Estranhamentos: representações de gênero e etnia no filme "A Massai Branca"

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ESTRANHAMENTOS: REPRESENTAÇÕES SOBRE GÊNERO E ETNIA NO FILME “A MASSAI BRANCA” Texto publicado nos Anais do II Congresso Nacional de Gênero e Representações realizado no Centro de Educaçao da Universidade Estadual da Paraíba (junho de 2011) Prof.ª Ms. Érica Patrícia Barbosa (CAp-UFPE) Prof.ª Ms. Natália Barros (CAp-UFPE/ FUNDAJ/ NUPEGE-UFRPE) Uma mulher em busca do desejo, descobrindo novos horizontes, saindo da monotonia da cidade, assumindo o modo de gerir sua vida. Uma mulher disputando o poder com os homens, desestabilizando uma tradição secular, desrespeitando a autoridade social e historicamente estabelecida. Um guerreiro preso às tradições, numa sociedade falocrática e patrilinear. Um guerreiro capaz de ser diferente, dividido entre a tradição e o amor. Imagens, discursos, cores e sons do filme “A Massai Branca” contribuem na construção de representações múltiplas e, por vezes, contraditórias sobre o encontro de uma mulher suíça e de um homem Samburu. Povo originário de Núbia-Kush (região do Médio Vale do Rio Nilo), os Samburu se estabeleceram ao norte do Monte Quênia e ao sul do Lago Turkana, desde o século XV. Caracterizam-se por uma existência de seminomadismo e a sua economia está baseada no pastoreio. Possuem uma linhagem vinculada a dos massais, sendo confundidos com estes facilmente, como ocorre na citada obra. O filme nos apresenta a etnia Samburu gerida por regras sociais que teriam como base a necessidade do controle demográfico, como a circuncisão feminina e o sexo anal. O objetivo desse texto é apresentar as representações sobre gênero e sobre etnia que emergem das diferentes narrativas do filme e, simultaneamente, situar geográfica e historicamente a etnia Samburu. Destacamos que a imagem cinematográfica não ilustra nem reproduz a realidade, mas a reconstrói com base em uma linguagem própria, produzida em determinado contexto histórico.

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ESTRANHAMENTOS: REPRESENTAÇÕES SOBRE GÊNERO E ETNIA NO

FILME “A MASSAI BRANCA”

Texto publicado nos Anais do II Congresso Nacional de Gênero e Representações

realizado no Centro de Educaçao da Universidade Estadual da Paraíba (junho de

2011)

Prof.ª Ms. Érica Patrícia Barbosa (CAp-UFPE)

Prof.ª Ms. Natália Barros (CAp-UFPE/ FUNDAJ/ NUPEGE-UFRPE)

Uma mulher em busca do desejo, descobrindo novos horizontes, saindo da monotonia

da cidade, assumindo o modo de gerir sua vida. Uma mulher disputando o poder com os

homens, desestabilizando uma tradição secular, desrespeitando a autoridade social e

historicamente estabelecida. Um guerreiro preso às tradições, numa sociedade

falocrática e patrilinear. Um guerreiro capaz de ser diferente, dividido entre a tradição e

o amor. Imagens, discursos, cores e sons do filme “A Massai Branca” contribuem na

construção de representações múltiplas e, por vezes, contraditórias sobre o encontro de

uma mulher suíça e de um homem Samburu. Povo originário de Núbia-Kush (região do

Médio Vale do Rio Nilo), os Samburu se estabeleceram ao norte do Monte Quênia e ao

sul do Lago Turkana, desde o século XV. Caracterizam-se por uma existência de

seminomadismo e a sua economia está baseada no pastoreio. Possuem uma linhagem

vinculada a dos massais, sendo confundidos com estes facilmente, como ocorre na

citada obra. O filme nos apresenta a etnia Samburu gerida por regras sociais que teriam

como base a necessidade do controle demográfico, como a circuncisão feminina e o

sexo anal. O objetivo desse texto é apresentar as representações sobre gênero e sobre

etnia que emergem das diferentes narrativas do filme e, simultaneamente, situar

geográfica e historicamente a etnia Samburu. Destacamos que a imagem

cinematográfica não ilustra nem reproduz a realidade, mas a reconstrói com base em

uma linguagem própria, produzida em determinado contexto histórico.

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ESTRANHAMENTOS: REPRESENTAÇÕES SOBRE GÊNERO E ETNIA NO

FILME “A MASSAI BRANCA”

Prof.ª Ms. Érica Patrícia Barbosa (CAp-UFPE)

Prof.ª Ms. Natália Barros (CAp-UFPE/ FUNDAJ/ NUPEGE-UFRPE)

1. “A Massai Branca”: aproximações

Baseado no autobiográfico livro homônimo da suíça Corinne Hofmann, o filme

“A Massai Branca”, uma produção alemã de 2005, dirigida por Hermine

Huntgeburth, conta a história de Carola, uma jovem suíça que numa visita de férias

ao Quênia, acompanhada de seu então namorado Stefan, tem a oportunidade de

conhecer um guerreiro Samburu (na narrativa fílmíca nomeado de Massai). A cena

que descreve o primeiro encontro da mulher branca com o negro africano mostra o

olhar insistente de Carola sobre Lemalian, um olhar simultaneamente curioso e

desejoso, retribuído, desde o começo, pelo jovem guerreiro. Enquanto a postura de

Stefan é de reserva e apreensão, mesmo depois de Lemalian e seu companheiro

salvarem o casal de um possível assalto, ao irem procurar maconha na periferia de

Mombasa, a atitude de Carola é oposta; ela é extremamente simpática, receptiva e

procura se aproximar ao máximo dos Samburu, saindo pra beber e dançar com os

guerreiros, deixando o namorado no hotel. Embora estes saibam falar inglês, a

convivência de Carola com os guerreiros é marcada por um silêncio profundo, uma

ausência de diálogo, de troca de repertório. Carola, então, “quebra o gelo”

chamando Lemalian pra dançar. É o momento em que percebemos que o diálogo

entre esses sujeitos dar-se-á no plano corpóreo, no âmbito do carnal, o que os une é

o desejo físico. A chegada de Stefan no bar interrompe abruptamente a atmosfera de

envolvimento entre Carola e Lemalian e numa cena típica de ciúmes o namorado

arrasta a jovem para o hotel.

As próximas cenas mostram o gradativo distanciamento entre Carola e Stefan,

culminando com a decisão da jovem de não embarcar com o namorado, decidida a

ficar no Quênia e procurar Lemalian. Carola decide permanecer na África, abrindo

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mão da estabilidade de sua vida na Suíça, sem consultas ou despedidas familiares.

Mas, será que essa decisão poderia ser apenas sua? O namorado de Carola, abalado,

revoltado e sem entender sua decisão afirma categoricamente: você quer sexo!

Sem saber quase nada sobre Lemalian, Carola peregrina pelas ruas de Mombasa

com uma foto do guerreiro, a sua procura. Depois de muitas investidas, é orientada a

seguir para Maralal e procurar Elizabeth, mulher que poderia ajudá-la. Elizabeth,

como Carola, é branca, européia e casada com um homem queniano. É esta mulher

que explica a jovem o estilo de vida dos Samburu, povo que, segundo sua descrição,

não vive o futuro nem o passado. A mulher explica a Carola que ela deve esperar o

guerreiro, pois, ele saberá de sua permanência na cidade e somente a ele caberá a

decisão de ficarem juntos. Elizabeth também deixa clara a percepção dos massai

sobre as mulheres, para eles “as mulheres vem depois das cabras”, “o que você quer

não importa pra um Samburu”.

Após longas semanas, finalmente, numa noite, Lemalian aparece e, sem

nenhuma troca de palavras, Carola o segue. Num pequeno quarto, sem nenhum

afago, eles tem sua segunda aproximação física, uma relação sexual anal, rápida e

intensa, com a visível extenuação do guerreiro, típica do pós-gozo masculino.

Carola, muda, perplexa, levanta, se veste e vai pra fora. O guerreiro a procura, ela

parece ter chorado. O que teria passado na cabeça de Carola após aquele sexo? Será

que se sentiu violentada? Terá sido um choro de dúvida e arrependimento por sua

decisão? Lemalian a interroga: “está tudo bem?” Carola afirma que sim, está tudo

bem. Lemalian, então, concretiza o momento tão esperado por Carola: ela ficará

com ele, seguirão para Barsaloi, povoado onde mora seu grupo étnico. As cenas

seguintes descreverão a convivência entre o casal, inseridos num ambiente

geográfico, social e cultural absolutamente diferente do mundo europeu de Carola.

Aproximações superficiais, porém intensas, muito provavelmente guiadas pelo

desejo, direcionam a decisão do guerreiro e da jovem suíça. Ambos são sujeitos que

ousam experimentar a troca cultural, que parecem entender que antes de serem suíça

ou samburu, são homem e mulher, que amam, desejam, tem dúvidas e hesitações.

Mas, pode-se romper com a cultura na qual se está inserido? Conseguimos nos

desvencilhar dos papéis sociais que cada cultura constrói sobre o ser homem e ser

mulher? Até onde chega nossa alteridade, tolerância e capacidade de aprendizado

com a cultura do “outro”? Após meses de convivência com os Samburu e com

Lemalian, a certa altura do filme Carola afirma para Elizabeth: “Quanto mais fico

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aqui, menos o compreendo”. O filme “A Massai Branca” mostrará as tentativas de

compreensão, não apenas de Carola, mas, de todos os envolvidos na narrativa, da

maneira de experimentarem relações sociais marcadas pelas diferenças culturais.

2. Samburu: história e tradição

Os Samburu descendem dos mesmos ancestrais dos massai, sendo

confundidos com estes facilmente, como ocorre no filme “A Massai Branca”.

Não há dúvida que a linguagem é similar, derivado do “Maa”. Os costumes são

praticamente idênticos, mas é preciso assinalar uma característica peculiar dos

Samburu: os seus guerreiros trazem argolas de marfim nas orelhas. Ainda é uma

incógnita para os historiadores como a linhagem se separou. Os anciãos

asseguram que os Samburu são originários de Núbia-Kush (região do Médio

Vale do Rio Nilo, atual Sul do Sudão) e se estabeleceram ao norte do Monte

Quênia e ao sul do Lago Turkana (mapa 1), na área do Vale do Rift Africanoi

(mapa 2), desde o século XV. Caracterizam-se por uma existência de semi-

nomadismo e a sua economia está baseada no pastoreio de cabras e vacas. Como

na maioria dos povos pastores africanos, a carne é pouco consumida: só em

cerimônias especiais, enterros, ritos, festas da circuncisão, casamentos, entre

outras. Com exceção de animais mortos, naturalmente, doentes ou roubados. A

dieta alimentar desta etnia está baseada no leite e, às vezes, o sangue de suas

vacas, refletindo a dependência deste tipo de economia. O sangue é coletado

através de uma pequena abertura na jugular do animal, após drenar o sangue

necessário, a ferida é rapidamente selada com cinzas quentes. A dieta Samburu é

complementada com as raízes, legumes e tubérculos.

A província de Rift Valley, no Quênia, é caracterizada por uma terra árida e

semi-árida. Sendo necessário que esta etnia desloque-se periodicamente para

assegurar alimento fresco aos animais. Suas cabanas são construídas de barro,

couro e tapetes de grama, amarrado sobre os pólos. Uma cerca espinhosa é

construída em torno das cabanas para proteção de animais selvagens. Os

barracos são construídos de modo que são facilmente desmontados, quando

ocorre o movimento de Samburu para um novo local. Esse povo geralmente vive

em grupo de cinco a dez famílias. Os homens cuidam do gado e também são

responsáveis pela segurança do grupo. Os guerreiros defendem a tribo do ataque

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de homens de outros grupos e de animais selvagens. Eles também vão tentar

invadir as terras de clãs rivais Samburu para levar o gado.

Os meninos aprendem a cuidar do gado desde a mais tenra idade e também

são ensinados a caçar. As meninas geralmente ajudam as mães com seus

afazeres domésticos. Tanto as meninas como os meninos passam pela

circuncisão, numa cerimônia de iniciação que marca suas entradas na vida

adulta. As mulheres são responsáveis pela coleta de raízes, legumes e água,

cuidando das crianças. São também responsáveis pela manutenção das casas. A

lista de atividades da mulher Samburu inclui: Construir a casa e realizar longas

caminhadas para conseguir os materiais necessários; Fazer a manutenção da casa

no período mais úmido, utilizando material argiloso molhado misturado com

esterco de vaca; Tirar o leite da vaca; Monitorar e relatar ao marido as vacas

doentes e grávidas; Preparar comida para todos da casa, incluindo qualquer

visitante; Coletar água, lenha, raízes, ervas (para tratamento de doentes);

Certificar-se que o fogo não se apague, para preparação de alimentos e para o

aquecimento da casa; Lavar roupas; Fazer arte decorativa para ela, marido e

filhos, entre outras atividades.

Outra marca dessa linhagem é ser um grupo étnico falocrático e patrilinear,

isto é baseado nos ditames da figura masculina. A poligamia e a gerontocracia

também caracteriza este grupo, sendo permitido ao homem casar-se com quantas

mulheres puder sustentar e os anciãos gerenciadores da estrutura social. Todos

esses aspectos são passíveis de identificação na citada película. Entretanto, de

uma forma geral, os povos africanos tem na ampliação do sistema de linhagem a

representação do poder, ou seja, pessoa é riqueza. Inclusive essa foi uma das

muitas dificuldades de compreensão dos povos europeus em relação aos

africanos da área Subsaariana, quando se depararam com os grupos étnicos

menos complexos do ponto de vista da organização social. Para os europeus a

propriedade privada da terra era o sinônimo de riqueza. No entanto, a obra nos

apresenta a etnia Samburu gerida por regras sociais que teriam como base a

necessidade do controle demográfico. Ações como a circuncisão feminina e o

sexo anal remetem a práticas que fundamentam o controle populacional. Tendo a

primeira, o objetivo de retirada do prazer feminino com a finalidade do “controle

da mulher”. Já a segunda teria como fim a prática do sexo sem a possibilidade de

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procriação, sendo o sexo vaginal realizado quando este fosse o objetivo. Decisão

que caberia ao homem, já que para a mulher o prazer sexual foi usurpado. Sendo

uma sociedade de pastores, a necessidade de mão-de-obra é bastante reduzida

em relação aos grupos de vivem da agricultura.

Conforme os costumes dos Samburu do Quênia, meninas são iniciadas no já

citado ritual de passagem, onde ocorre a retirada do clitóris, na preparação para o

casamento, geralmente com homens bem mais velhos, nos moldes tradicionais

das suas antepassadas. A vida das mulheres Samburu, de acordo com a tradição,

deve ser integralmente submissa ao pai e ao esposo.

Muitas consequências do processo de colonização vem trazendo alterações

definitivas nos padrões culturais deste grupo étnico. Um exemplo destas

transformações foram os ataques de soldados ingleses sediados no Quênia, nas

proximidades onde vivem os Samburu. Estes realizavam exercícios militares nos

anos 80 e 90. Mais de cinqüenta mulheres foram estupradas pelos soldados

enquanto recolhiam a lenha. Apesar dos protestos e reivindicações destas

mulheres, que tinham como base o argumento de que foram violentadas pela

ineficácia da proteção dos homens, responsáveis tradicionalmente por conferir a

proteção das aldeias e das áreas de onde retiram a sobrevivência, as mulheres

foram ridicularizadas, espancadas e obrigadas a abandonar o grupo étnico.

Inúmeras mulheres vítimas do patriarcalismo e das injustiças fundaram uma

vila que se tornou símbolo de abrigo contra o casamento forçado, do desprezo

após serem estupradas, da mutilação genital feminina, entre outras injustiças.

Vivem das atividades tradicionais, mas também da atividade turística agregada a

venda de artesanato Samburu.

Tal como ocorre com muitas outras etnias da África Subsaariana, os

Samburu estão sob forte pressão de seu governo para se instalarem em povoados

permanentes. Eles tem resistido ao estabelecimento permanente, pois isto,

obviamente, iria alterar todo o seu modo de vida. As características naturais da

área em que vivem dificultam o cultivo, pois são áreas áridas e semi-áridas. Isto

significa que a etnia iria ficar dependente de ações governamentais para

complementação de renda. Uma vez que o status de riqueza da cultura Samburu

está atrelado a quantidade de gado que é dono, uma vida sedentária agrícola

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destruiria a estrutura social em que este grupo está assentado. Alguns integrantes

deste clã foram forçados a resolver a problemática enviando os homens adultos

para as cidades para trabalhar como guardas. Este é um tipo de trabalho que

evoluiu naturalmente por causa de sua forte reputação como guerreiros.

3. Cinema e Práticas Discursivas sobre Gênero e Etnia

O filme “A Massai Branca”, portador da linguagem cinematográfica, pode ser

entendido como prática discursiva, uma linguagem em ação (SPINK; MEDRADO,

2000). Por meio dessa linguagem a diretora Hermine Huntgeburth produz sentidos

sobre o feminino e o masculino, sobre a cultura européia e africana e posiciona-se

sobre as relações sociais trazidas nas cenas. A narrativa construída, enquanto prática

cultural e discursiva gera uma multiplicidade de representações e percepções sobre o

mundo e sobre ações dos sujeitos. É como mulher branca, feminista e diretora de

cinema, uma atividade ainda predominantemente masculina, que Huntgeburh

posiciona-se na elaboração da narrativa. No momento mesmo da sua escolha por

adaptar o livro ao cinema ela posiciona-se, ela toma o partido de Corinne e de

Carola. Podemos pensar que “A Massai Branca”, uma produção do começo do

século XXI, apresenta a potencialidade do feminino pós-feminista ao mostrar uma

mulher independente financeiramente e gerente de suas próprias decisões: ficar no

Quênia, seguir o Samburu, ter um carro e abrir um negócio próprio em Barsaloi e,

até mesmo, decidir voltar a Europa levando sua filha, rompendo com a vida de

casada. No entanto, não podemos deixar de ressaltar a permanência do ideal de amor

romântico que perpassa a narrativa e se impregna como motor da vida de Carola.

Todas as decisões citadas como possíveis práticas de autonomia do sujeito mulher

no mundo, perdem força na narrativa ao nos depararmos com o ideal romântico de

Carola. Lemalian, um amor à primeira vista, não seria como na maioria das

narrativas tradicionais voltadas a educação do gênero feminino, o príncipe

encantado de Carola? Mais uma vez, não seria o masculino o condutor das decisões

das mulheres? Carola e Elizabeth, as personagens femininas de maior destaque no

filme, são mulheres que abandonam família, amigos e estilos de vida próprios, na

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busca do homem dos sonhos. Acrescido esse ideal do amor romântico, da própria

percepção das personagens sobre a África, para elas, a terra pura, exótica e calma,

perfeita para construírem suas vidas.

Destacamos que na contemporaneidade homens e mulheres são ditos e

representados visual e textualmente de maneira complexa, demonstrando-nos a

existência de singularidades, de peculiaridades na produção dos gêneros, mas,

também, a permanência de ideais sobre o feminino e masculino que persistem na

produção audiovisual. Segundo Roger Chartier, as representações são matrizes de

discursos e de práticas diferenciadas, que têm por objetivo a construção do mundo

social (CHARTIER, 1990). Assim, investigá-las supõe-nas como estando sempre

colocadas num campo de concorrência e de competições, dentro de relações de

poder. Entendemos as práticas discursivas do cinema, da imprensa, da publicidade,

como produtoras de múltiplas representações e práticas e como articuladas entre si,

aspirando à universalidade daquilo que projetam nas páginas e nas telas,

fortalecendo e unificando entendimentos sobre os gêneros, fragmentariamente

presentes no social. Pensamos ainda estas narrativas como um conjunto de palavras

que usamos para significar, nomear, instituir espacialidades e relações sociais que,

sem dúvida, descrevem, mas toda descrição é um ato culturalmente criador.

Narrativas que produzem alterações sociais, pois, emitem signos e produzem

significados (CERTEAU, 2004).

Emblemático do poder instituidor de percepções sobre o mundo, no caso

específico do filme aqui analisado, do mundo africano, é a primeira cena, quando a

personagem começa a contar sua história. Carola aparece deitada, numa praia, a

imagem é invertida, o seu olhar é captado e mostra-se os coqueiros de cabeça pra

baixo, o mundo é modificado pelo olhar de Carola, invertendo a ordem da natureza e

do social. Sutilmente, “A Massai Branca” constrói a personagem Carola como o

elemento de mudança, de transformação e a cultura africana aparece marcada pela

permanência, pela falta de dinamismo e, principalmente, pela ausência da

capacidade de aceitar o novo. Em poucos momentos percebe-se a disponibilidade de

Lemalian em aprender com Carola. A maior parte da narrativa não demonstra a

potência criativa dos grupos africanos apresentados. Respeito à tradição não implica

necessariamente em congelamento social. É tudo muito mais complexo e

problemático e a narrativa cinematográfica, e até mesmo a científica, nem sempre

consegue captar.

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REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

CERTEAU, Michel de. A invenção do Cotidiano. Vol. 1. 10ª Ed. RJ:Vozes, 2004.

CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. 2ª Ed. Lisboa:

Difel; RJ: Bertrand, 1990.

SPINK, Mary Jane; MEDRADO, Benedito. Produção de sentidos no cotidiano: uma

abordagem teórico-metodológica para análise das práticas discursivas. In: SPINK, Mary

Jane (org.) Práticas discursivas e produção de sentidos no cotidiano. 2ª Ed. São Paulo:

Cortez,

i O Vale do Rift Africano é um complexo de falhas tectônicas criado há cerca de 35 milhões de anos com a separação das placas tectônicas africana e arábica. Esta estrutura estende-se no sentido norte-sul por cerca de 5000 km, desde o norte da Síria até ao centro de Moçambique, com uma largura que varia entre 30 e 100 km e, em profundidade de algumas centenas a milhares de metros. O Vale da Grande Fenda ou Rift Valley rasga no sentido vertical o Quênia.