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IV CONALI - Congresso Nacional de Linguagens em Interação Múltiplos Olhares 05, 06 e 07 de junho de 2013 ISSN: 1981-8211 Estratégias de saber e poder: análise discursiva foucaultiana do filme O anjo exterminador, de Buñuel 1 Priscila Canova MOTTA 2 - UFSCar Nádea Regina GASPAR 3 - UFSCar 1. Introdução Em minha cidade, onde nasci há 22 de fevereiro de 1900, pode-se dizer que a idade média prolongou-se até a primeira guerra mundial. Sociedade isolada, imóvel, marcando nitidamente as diferenças entre as classes. O respeito à subordinação do povo trabalhador com relação aos senhores, aos grandes proprietários, parecia imutável, fortemente enraizado nos hábitos antigos. Controlada pelos sinos da igreja do Pilar, a vida se desenvolvia horizontalmente, sempre a mesma (BUÑUEL, 1982, p.14). São poucas, ainda, as pesquisas acadêmicas brasileiras que analisam os trabalhos sobre o diretor espanhol Luis Buñuel. O diretor foi o precursor da estética surrealista no cinema, com uma aguçada percepção do meio social e cultural e, ao todo, produziu 32 filmes, contendo críticas pungentes à sociedade. As referências sociais, culturais e religiosas de seus filmes são atemporais, portanto essenciais para maior compreensão, também, da nossa época. 1 Texto avaliado pela Profa. Dra. Ismara Tasso (UEM), como parte dos requisitos para obtenção do título de especialista em “Discurso e Leitura de imagem”. 2 Socióloga, com especialização em “Discurso e Leitura de Imagem”, ambos pela UFSCar. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade, na Linha de Pesquisa em Linguagens, Comunicação e Ciência (UFSCar). Atua como educadora no Sesc São Carlos. Membro do Grupo de Estudos no CNPq Laboratório de Análise do Discurso da Imagem (LANADISI). 3 Professora da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), no Departamento de Ciência da Informação e no Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade, na Linha de Pesquisa em Linguagens, Comunicação e Ciência. Coordenadora do Grupo de Estudos no CNPq Laboratório de Análise do Discurso da Imagem (LANADISI).

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Múltiplos Olhares 05, 06 e 07 de junho de 2013

ISSN: 1981-8211

Estratégias de saber e poder:

análise discursiva foucaultiana do filme O anjo exterminador, de Buñuel1

Priscila Canova MOTTA2- UFSCar

Nádea Regina GASPAR3- UFSCar

1. Introdução

Em minha cidade, onde nasci há 22 de fevereiro de 1900, pode-se dizer

que a idade média prolongou-se até a primeira guerra mundial. Sociedade

isolada, imóvel, marcando nitidamente as diferenças entre as classes. O

respeito à subordinação do povo trabalhador com relação aos senhores,

aos grandes proprietários, parecia imutável, fortemente enraizado nos

hábitos antigos. Controlada pelos sinos da igreja do Pilar, a vida se

desenvolvia horizontalmente, sempre a mesma (BUÑUEL, 1982, p.14).

São poucas, ainda, as pesquisas acadêmicas brasileiras que analisam os trabalhos sobre o

diretor espanhol Luis Buñuel. O diretor foi o precursor da estética surrealista no cinema,

com uma aguçada percepção do meio social e cultural e, ao todo, produziu 32 filmes,

contendo críticas pungentes à sociedade. As referências sociais, culturais e religiosas de

seus filmes são atemporais, portanto essenciais para maior compreensão, também, da nossa

época.

1 Texto avaliado pela Profa. Dra. Ismara Tasso (UEM), como parte dos requisitos para obtenção do título de

especialista em “Discurso e Leitura de imagem”. 2 Socióloga, com especialização em “Discurso e Leitura de Imagem”, ambos pela UFSCar. Mestranda do

Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade, na Linha de Pesquisa em Linguagens,

Comunicação e Ciência (UFSCar). Atua como educadora no Sesc São Carlos. Membro do Grupo de Estudos

no CNPq Laboratório de Análise do Discurso da Imagem (LANADISI). 3 Professora da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), no Departamento de Ciência da Informação e

no Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade, na Linha de Pesquisa em Linguagens,

Comunicação e Ciência. Coordenadora do Grupo de Estudos no CNPq Laboratório de Análise do Discurso da

Imagem (LANADISI).

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O objetivo desta pesquisa, assim sendo, é o de estudar, no filme O Anjo Exterminador,

de Buñuel (1962), o modo como os sujeitos abastados são vistos por esse diretor, por meio

da análise discursiva de Michel Foucault, observando-se algumas “estratégias de saber e

poder”.

Segundo o autor, o poder não é algo que se apreende, por isso, para se realizar uma

análise, deve-se, outrossim, identificar de que forma as relações de saber e poder ocorrem e

se dão a ver no texto, no caso, fílmico. Para perceber os poderes exercidos pelos sujeitos,

no tocante a este filme, será necessário analisar as relações de “micropoderes” apresentadas

nas relações entre imagens e palavras, que indicam práticas discursivas concretas. Como

resultado, observa-se que no funcionamento entre saberes e poderes desse grupo de

sujeitos, os convidados, ocorrem relações intercambiáveis de afinidades entre os mesmos.

2. Foucault, enunciado, saber e poder

Os desdobramentos teóricos em análises discursivas, sob a ótica de Michel Foucault, nas

Ciências Humanas e Sociais, em termos de um olhar histórico-crítico atento às rupturas e

descontinuidades históricas, são também “ferramentas” metodológicas para o estudo de

“práticas discursivas” que agenciam possibilidades de críticas a respeito daquilo que somos,

de maneira que instrumentalizam o nosso olhar sobre a contemporaneidade.

O referencial teórico e a metodologia que mobilizaremos para esta pesquisa, portanto, é

a teoria da análise do discurso, mais especificamente a de Michel Foucault em seu

entendimento conceitual sobre “enunciado”, “saber e “poder”. Foucault, dentre seus

estudos, procurou entender os modos como o ser humano se torna sujeito, afirmando que o

tema geral de suas pesquisas é o sujeito, ou seja, o homem, e não o poder. Por isso não

desenvolveu um paradigma do poder, deixando bem claro que:

Gostaria de observar a maneira como diferentes mecanismos de poder

funcionam em nossa sociedade, entre nós, no interior e fora de nós.

Gostaria de saber de que maneira nossos corpos, nossas condutas do dia-

a-dia, nossos comportamentos sexuais, nosso desejo, nossos discursos

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científicos e teóricos se ligam a muitos sistemas de poder que são, eles

próprios, ligados entre si (FOUCAULT, 2006, p. 258).

De acordo com Foucault (1999), precisamos observar as relações existentes entre os

vários discursos, analisar os procedimentos que organizam, transformam e redistribuem o

discurso. O discurso é um conjunto de enunciados que não é uma estrutura, mas

é uma função de existência que pertence, exclusivamente, aos signos, e a

partir da qual se pode decidir, em seguida, pela análise ou pela intuição, se

eles "fazem sentido" ou não, segundo que regra se sucedem ou se

justapõem, de que são signos, e que espécie de ato se encontra realizado

por sua formulação (oral ou escrita) (FOUCAULT, 1999, p. 98).

Pormenorizando as circunstâncias que definem a função enunciativa, Foucault (2008)

afirma que para reconhecermos, na análise, o enunciado, este precisa vir atrelado à “série”

(em que reiteradamente ele aparece); à “materialidade” (distinções entre palavra, imagens

fixas e em movimento, etc.); ao “campo associado” (quando se vê ou se lê que o enunciado

correlaciona-se, identifica-se, iguala-se a si mesmo, ainda que esteja em gêneros e/ou

tipologias textuais distintas, ou dentro de um mesmo texto); ao “sujeito” (quando se

observam distintos pronunciamentos de um sujeito ou de diferentes sujeitos orais, escritos,

imagéticos, porém com o mesmo “conteúdo” enunciativo).

Observar, inicialmente, a “série”, a “materialidade”, o “campo associado” e o “sujeito” é

o que constitui, para Foucault, o primeiro olhar do analista quando se depara com

“enunciados discursivos”. Contudo, para Foucault, analisar as práticas e produções dos

discursos e apreender essas relações de saberes, ou seja, o que os homens disseram sobre

dado tema, requer compreender, também, essas relações com os poderes que os sujeitos

exercem uns sobre os outros, observados em suas práticas reveladas nos textos.

Foucault explica que o poder não é “o sentido do discurso, já que o discurso é uma série

de elementos que operam no interior do mecanismo geral do poder” (FOUCAULT, 2006, p.

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254). Dessa forma, para ele, devemos analisar os variados modos através dos quais o

discurso assume papéis dentro de um sistema:

Portanto, o poder não é nem fonte nem origem do discurso. O poder é

alguma coisa que opera através do discurso, já que o próprio discurso é

um elemento em um dispositivo estratégico de relações de poder

(FOUCAULT, 2006, p. 253).

As relações de poder permeiam toda a teia social e, portanto, as interações sociais com

suas “formas múltiplas de disparidade individual, de objetivos, de instrumentações dadas

sobre nós e aos outros” (DREYFUS & RABINOW, 1984, p.319) e demarcam as variadas

formas de poder. E estas existem em todos os níveis de interações entre pessoas, já que

as relações de poder existem entre um homem e uma mulher, entre aquele

que sabe e aquele que não sabe, entre os pais e as crianças, na família. Na

sociedade, há milhares e milhares de relações de poder e, por conseguinte,

relações de forças de pequenos enfrentamentos, microlutas, de algum

modo (FOUCAULT, 2006, p. 231).

Foucault refletiu sobre as relações e os múltiplos mecanismos de saber e poder que são

exercidos e perpassam toda sociedade. O poder não é algo que se possui ou se divide. O

poder é exercido em diversas direções, é algo que transita e está sempre interligado. As

relações de poder, assim, dão-se nas práticas sociais, nas interações e somente no concreto

exercício do poder, na teia social, os sujeitos tanto sofrem quanto exercem poder.

Em outros termos, o poder não se aplica aos indivíduos, passa por eles

[...]. Ou seja, o indivíduo não é o outro do poder: é um de seus primeiros

efeitos. O indivíduo é um efeito do poder e, simultaneamente, ou pelo

próprio fato de ser um efeito, é seu centro de transmissão (FOUCAULT,

1999, p. 103).

O poder, para o teórico, não é algo estático nem palpável, movimenta-se em todas as

direções. Percebemos aqui uma noção múltipla de poder, pois são vários os poderes

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exercidos em todas as direções da rede social, em que se exercitam distintos métodos e

procedimentos. Foucault exemplifica:

A polícia, por exemplo, certamente tem seus métodos - nós os

conhecemos -, mas há igualmente todo um método, toda uma série de

procedimentos pelos quais se exercem o poder do pai sobre seus filhos,

toda uma série de procedimentos pelos quais, em uma família, vemos se

enlaçarem relações de poder, dos pais sobre os filhos, mas também dos

filhos sobre os pais, do homem sobre a mulher, e também da mulher sobre

o homem, sobre os filhos. Tudo isso tem seus métodos, sua tecnologia

próprios (FOUCAULT, 2006, p. 232).

Foucault discorda da ideia de que as microrrelações de poder são controladas pelo

Estado ou pela dominação de distintas classes sociais. Acredita que as relações de poder se

estendem além, não sendo o Estado capaz de englobar todas as esferas concretas das

relações de poder, e mais, o Estado só consegue existir da maneira que o faz devido a essas

microrrelações de poder. O propósito de Foucault é perceber que o exercício dos poderes

não provém apenas do Estado nem de seus “aparelhos”. O poder se organiza como uma

rede que engloba a todos. Mesmo em estabelecimentos extremamente hierarquizados, como

as Forças Armadas, não existe uma fonte de exercício de poder única, porque tanto os

comandantes como os comandados exercem poderes e se regulam de maneira recíproca e,

assim, eles se mantêm.

O que seria o poder de Estado, aquele que impõe, por exemplo, o serviço

militar, se não houvesse, em torno de cada individuo, todo um feixe de

relações de poder que o liga a seus pais, a seu patrão, a seu professor -

àquele que sabe, àquele que lhe enfiou na cabeça tal ou tal idéia? A

estrutura de Estado, no que ela tem de geral, de abstrato, mesmo de

violento, não chegaria a manter assim, contínua e cautelosamente, todos

os indivíduos, se ela não se enraizasse, não utilizasse, como uma espécie

de grande estratégia, todas as pequenas táticas locais e individuais que

encerram cada um entre nós (FOUCAULT, 2006, p. 231).

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O autor afirma que essas estratégias de poder foram criadas devido a necessidades e

situações específicas que tomam corpo aos poucos e, depois, são elaboradas em “conjuntos

coerentes”, como segue:

E preciso assinalar, além disso, que estes conjuntos não consistem em

uma homogeneização, mas muito mais em uma articulação complexa

através da qual os diferentes mecanismos de poder procuram apoiar-se,

mantendo sua especificidade. A articulação atual entre família, medicina,

psiquiatria, psicanálise, escola, justiça, a respeito das crianças, não

homogeneíza estas instâncias diferentes, mas estabelece entre elas

conexões, repercussões, complementaridades, delimitações, que supõem

que cada uma mantenha, até certo ponto, suas modalidades próprias

(FOUCAULT, 1999, p. 123).

As relações de poder, desse modo, não são desenvolvidas para servir a algum sistema

econômico dominante, mas

podem ser utilizadas como estratégias, de intervalos, de resistências; que

não se deve, portanto, pensar um fato primeiro e maciço de dominação

(uma estrutura binária com, de um lado, os "dominantes" e, do outro, os

"dominados”, mas, antes, uma produção multiforme de relações de

dominação, que são parcialmente integráveis a estratégias de conjunto

(FOUCAULT, 2006, p. 248).

Foucault (2006, p. 249) diz que “não há relações de poder sem resistência e que estas

são tão mais reais e eficazes quanto mais se formem ali mesmo onde se exercem as relações

de poder”. Se todas as relações de poder apresentam resistências,

a análise dos mecanismos de poder não tende a mostrar que o poder é ao

mesmo tempo anônimo e sempre vencedor. Trata-se ao contrário de

demarcar as posições e os modos de ação de cada um, as possibilidades de

resistência e de contra-ataque de uns e de outros (FOUCAULT, 1999, p.

126).

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As relações de poder são relações de conflito, de força, consequentemente, “sempre

reversíveis. Não há relações de poder que sejam completamente triunfantes e cuja

dominação seja incontornável” (FOUCAULT, 2006, p. 232). O teórico afasta, assim, nosso

olhar do vício de pensar que todo poder é necessariamente repressivo e buscaremos

compreender como as relações de poder se instalam nas práticas discursivas. Aponta,

portanto, que se observe, para se analisar discursos, tanto os enunciados como também as

relações de poder. Desse modo, “a análise consiste em descrever as ligações e relações

recíprocas entre todos esses elementos” (FOUCAULT, 2006, p. 254), que associam

relações entre os saberes, advindas de enunciados discursivos e os poderes emanados

desses enunciados e que são pronunciados por sujeitos enunciadores. É nesta composição

complexa que os analistas apreendem os discursos.

Para perceber os mecanismos de poderes exercidos pelos sujeitos neste filme de Luis

Buñuel, analisaremos os micropoderes visualizados em práticas que aí foram materializadas

e encontradas. É necessário, assim, perceber a “microfísica do poder” como relações e

redes e deslocar a análise para uma multiplicidade de poderes circulantes. A pesquisa deve

apreender, portanto, o nível em que ela acontece. Todo o sistema é atingido pelo

micropoder. Recorreremos aos conceitos de “enunciado” e “relações entre saber e poder”,

em Foucault, procurando focar nosso olhar onde o exercício do poder se torna

concretamente microfísico e visível, ou seja, nas interações das linguagens que se

estabelecem em algumas sequências fílmicas, por meio dos discursos da Igreja Católica e

no fílmico de Buñuel, tendo em vista o olhar sobre os convidados.

3. Análise foucaultiana de O anjo exterminador

Algumas vezes lamentei ter filmado El Ángel Exterminador no México.

Imaginava-o mais em Paris ou em Londres, com atores europeus e um

certo luxo nas roupas e acessórios (Buñuel, 1982, p.355).

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O filme O Anjo Exterminador, de 1962, de Luiz Buñuel, narra a história de um grupo de

convidados que ceia na mansão de um casal e, sem explicações aparentes, não consegue

sair da sala de estar, permanecendo aí preso.

Buñuel apresenta, em toda sua obra fílmica, referenciais vindos da religião católica. Em

O Anjo Exterminador não foi diferente. É possível perceber o posicionamento do diretor

sobre os comportamentos dos “sujeitos”, no caso, os convidados, ocorridos na

contemporaneidade, uma vez que as evidências entre as relações de poder e saber dos

convidados, nesta narrativa audiovisual, estão profundamente relacionadas ao discurso

religioso.

Nesta trama, as relações entre os sujeitos discursivos, os criados e os convidados4,

estabelecem-se logo no início do filme. A anfitriã da mansão refere-se ao grupo de

convidados (08’:46”)5, quando entra na cozinha e vê dois criados saindo. Nesse momento,

ela diz: “[...] e no momento em que meus “convidados” acabam de sentar-se à mesa [...]”.

O outro grupo, o dos criados, é também citado (33’:34”) pelos convidados, pois estes

últimos os acusam de abandonar a casa, “como ratos que abandonam um navio prestes a

afundar”.

Os convidados são compostos por um grupo de empresários, grandes artistas, médicos,

além dos donos da casa, que nesta análise também serão denominados como convidados.

Todos estão vestidos luxuosamente. Os homens, com fraques e cartolas. As mulheres, com

casacos de pele, vestidos longos, saltos altos e joias. Estas indumentárias e adereços

mostram, claramente, que este é um grupo de pessoas de posse, de sujeitos que são ricos. O

grupo dos criados pode ser detectado, em suas indumentárias, por seus uniformes, suas

funções e saberes: o cozinheiro, as ajudantes de cozinha, a arrumadeira, os mordomos e o

chefe dos mordomos. Todos eles, contratados pelos patrões que são os donos da casa.

4 Embora Foucault não trabalhe com a noção de classe social de Karl Marx, Buñuel recorre, em termos

discursivos, às denominações “convidados” e “criados” ao se referir aos distintos grupos sociais em sua

narrativa fílmica. 5 Esta marcação do tempo fílmico refere-se às sequencias que serão analisadas.

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O comportamento dos sujeitos criados e convidados segue o movimento da “série

enunciativa” discursiva. Todos os criados vãos embora furtivamente, sem dar explicações, e

saem da casa. Vemos acontecer esta ação em cinco momentos, sendo a primeira logo no

início do filme. Aparece um portão enorme, todo adornado (2’:07’’), e um homem saindo

furtivamente. Um segundo homem chega e pergunta o motivo do primeiro sair, já que estão

previstos 90 convidados para o jantar. O primeiro homem, sujeito de um discurso de um

grupo, o dos criados, mostra-se agitado, desconversa e, apressado, vai embora. Em seguida

(3’:18’’), vemos a cozinha, onde quatro criados uniformizados terminam de preparar o

jantar. Eles também se mostram inquietos e combinam ir embora como se algo fosse

acontecer e precisassem sair dali rapidamente. Logo depois, duas criadas (4’:46’’) colocam

seus casacos e saem. Outros dois criados (1’:20’’) vão embora escondidos. Apenas um dos

criados, o chefe dos mordomos, permanece na casa. Porque o discurso dele tem

propriedades específicas de dar ordens e comandar, assegura-lhe um lugar de quem exerce

este poder. Ele diz (11’:11’’), para a dona da casa, que acredita que os criados estão cada

vez mais insolentes, como se ele mesmo não pertencesse a este grupo. E assim, como os

convidados, ele também fica preso na casa.

Observa-se, no filme, um cenário claramente bíblico, ou seja, ficam explícitos os

“campos que se associam” entre relações do discurso religioso e o da Igreja Católica com o

discurso fílmico de Buñuel. O diretor consegue fazer analogias entre ambos os discursos,

concentrando-se no comportamento dos convidados e questionando o posicionamento deste

grupo.

Nesse sentido, o título do filme O Anjo Exterminador é citado na Bíblia, no livro do

Êxodo. Deus utiliza o exterminador para punir o povo egípcio, e esta foi uma das dez

pragas enviadas ao Egito por Deus para que o Faraó libertasse seu povo protegido, os

hebreus.

Disse Iahweh a Moisés e Aarão na terra do Egito: [...] Cada um tomará

para si um cordeiro para cada casa. Tomai alguns ramos de hissopo,

molhai-o no sangue que estiver na bacia, e marcai a travessa da porta e os

seus marcos com o sangue que estiver na bacia; nenhum de vós saia de

casa até pela manhã. Porque Iahweh passará diante desta porta e não

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permitirá que o Exterminador entre em vossas Iahweh casas, para vos

ferir. (BIBLIA, ÊXODO, 2012,12: 1-27, p.118).

Se observarmos esta história bíblica em particular e a trama do filme, perceberemos as

relações entre os “campos associados” do discurso religioso católico e o do discurso

midiático de Buñuel, uma vez que se revelam as relações entre a passagem do Êxodo, cujo

conteúdo é refeito na narrativa fílmica.

A Igreja Católica possui seus mecanismos de coerção para que os seus fiéis sigam as

regras estabelecidas por esta instituição. Os que não seguirem as regras estarão cometendo

pecados. Uma das alternativas dos antigos hebreus para remissão dos pecados era a de

sacrificar animais. Matar um cordeiro, assá-lo e comê-lo juntamente com pães sem

fermento, caldo de ervas e vinho é uma forma de comemorar e relembrar a libertação do

povo hebreu do domínio do Egito, em uma celebração chamada Páscoa. Segundo a Bíblia,

Jesus (homem, filho de Deus) substituiu essa comemoração e os seus elementos, que

passaram, então, a ser representados apenas pelo pão e o vinho, representando, com estas

simbologias, seu sacrifício físico e o derramamento de seu sangue por seu povo. Enquanto

comiam, Jesus tomou um cálice, agradeceu e disse: “[...] pois isto é o meu sangue, o sangue

da Aliança, que é derramado por muitos, para remissão de pecados” (BÍBLIA,

MATEUS,2012,26:28,p.1752). Na introdução ao Evangelho de João, percebemos que

Cristo é o Cordeiro de Deus que foi sacrificado para a libertação dos pecados de seu povo:

“[...] mas a última páscoa se tornará a Páscoa de Cristo, sua passagem deste mundo para o

pai, Cristo é agora o verdadeiro cordeiro pascal” (BÍBLIA, 2012, p.1838). Deste fato a

Igreja Católica criou um ritual para libertação dos pecados de seus fiéis e que acontece na

Missa, em que os católicos, entre outros procedimentos, devem confessar seus pecados,

arrepender-se deles e reencenar a última ceia realizada por Jesus, libertando-se, assim, de

todos os seus pecados. No filme, é oferecida uma ceia (7’:29’’) na qual é servido um

guisado que, tradicionalmente, na Espanha, é feito de cordeiro.

Muitas imagens de cordeiros aparecem ao longo do filme. Os cordeiros são uma

referência constante, evidenciando-se enunciativamente e formando uma “série

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enunciativa”, já que a presença do cordeiro se repetiu cinco vezes. Na cena final

(1h28’:41’’), os “cordeiros” surgem entrando na igreja onde os convidados e sacerdotes

estão presos novamente. Outra sequência ocorre quando a dona da casa entra na copa

(8’:40’’), onde são vistos um urso e alguns “cordeiros”, e ela pede para que estes sejam

levados ao jardim, pois não os utilizará. Uma terceira sequência é quando se escutam

balidos e se veem “cordeiros” subindo a escada (1h03:15’). Em outra ainda, os “cordeiros”

(1h03:54’) tomam a direção da sala e são cercados por todos. Em uma sequência bastante

significativa do que estamos mostrando, são vistos uma fogueira com restos de lã e ossos

(1h:08’’) e um “cordeiro” vivo. Um sujeito cobre os olhos do cordeiro para que outro o

mate com uma faca. Em seguida, outro sujeito anuncia: “[...] vamos esperar o sacrifício do

último cordeiro”. Nesta cena, Buñuel se vale da materialidade do texto religioso e o

concretiza em imagem. O diretor se baseia neste ritual, que se inicia numa prática

discursiva deste acontecimento, encarna materialmente o texto religioso escrito e toma

corpo em outra materialidade, a imagética. Podemos ver o sacrifício do último cordeiro, na

figura 1

Figura 1 – Sacrifício do último cordeiro

Fonte: Filme O Anjo Exterminador (Buñuel, 1962)

Os “sujeitos convidados” estão presos na casa, mas não existe um impedimento

concreto, físico, restringindo-os a sair da sala. No livro do Êxodo, fica clara a ordem de

Deus para que ninguém saia de casa, pois o exterminador passará. E os sujeitos convidados

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não saem, mesmo sofrendo privações como falta de água e de comida. Ninguém consegue

entrar ou sair da casa. A solução para que eles saiam desse estado, ou seja, o de não

conseguir sair de modo algum da casa, só aparece dias depois de reclusos, quando os

sujeitos convidados se colocam nas mesmas posições em que estavam na sala, na noite do

jantar. Só então eles conseguem sair da casa. Mas isto só acontece após sacrificar todos os

cordeiros e assá-los no fogo.

No final do filme, imagens de uma igreja surgem novamente (01h:25”). Vemos todo o

grupo dos convidados dentro da igreja ( 01h25’:40”), na celebração de uma missa. Não se

veem os criados. Terminada a celebração, os sujeitos do clero e todas as pessoas que estão

dentro da igreja não conseguem sair dela (1h26’:11”). Revela-se no filme, por parte de

Buñuel, a sutileza de um questionamento sobre o comportamento assumido pelos sujeitos

que compõem a classe dos convidados que, nesse momento, passa a incluir também os

sujeitos do clero. Por que este grupo se encontra constantemente nessa situação de

“prisão”? Antes, na ceia, e agora, na igreja? Afere-se que eles estão agora em uma missa,

realizando um ritual de remissão de seus pecados, mas, ainda assim, necessitam sacrificar

mais cordeiros.

Na sequência final, (1h27:55”), escutam-se sons de tiros, gritos, porque há a cavalaria e

homens fardados atirando nas pessoas nas ruas e muito tumulto - uma imagem clara de um

conflito, como vemos na figura 2.

Figura 2 – “Rebelião”

Fonte: Filme “O anjo Exterminador Buñuel” 1962)

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O filme termina com um embate armado acontecendo em frente à igreja, onde estão

presos os sujeitos: convidados e clero. No final vemos muitos cordeiros entrando na igreja,

provavelmente, para mais um sacrifício. Quantos cordeiros serão necessários abater, para

redimir o grupo dos convidados? Na história bíblica, sacrificar animais não foi suficiente

para livrar os homens de seus pecados. Foi necessário o martírio de um homem, de Jesus.

Esse massacre, que se vê no final do filme, sugere que são os outros grupos da sociedade

que sofrem o sacrifício real, uma vez que o grupo dos convidados - dos ricos e abastados,

está preso, sim, mas, por outro lado, “protegido” do conflito, pois agora está dentro da

igreja.

4. Considerações finais

Neste trabalho, mobilizamos os conceitos de “enunciado” e “relações de saber e poder”,

de Michel Foucault, e os aplicamos no filme O Anjo Exterminador, de Luis Buñuel (1962).

Foi possível observar um enunciado discursivo, qual seja “o modo como os mais

abastados da sociedade, no caso, os convidados de uma ceia, são vistos por Buñuel”,

observando-se e traçando-se relações com o discurso religioso, ao qual recorre o diretor

nesta narrativa cinematográfica.

No discurso religioso católico, os hebreus, um povo escravizado e sofrido, obedeceu ao

comando de Deus. Para tanto, recolheram-se em suas casas, onde permaneceram a noite

toda e sacrificaram um cordeiro, para que pudessem ser libertados e salvos do extermínio.

No filme, o anjo exterminador são as relações de poder que se refletem nos sujeitos desta

análise. O diretor mostra que os convidados não saem da sala até que se realize o sacrifício

dos cordeiros, para que só depois se libertem. Buñuel deixa a sugestão ao espectador, pela

sequência final, em que se veem os cordeiros entrando na igreja - os sujeitos convidados

juntamente com os sacerdotes conseguirão novamente sua redenção. Isto nos leva a uma

importante conclusão: o grupo dos convidados é o povo escolhido e protegido. E o grupo

dos criados é aquele que sofre a ira, no caso, nas ruas.

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Múltiplos Olhares 05, 06 e 07 de junho de 2013

ISSN: 1981-8211

Na dinâmica da trama fílmica, não percebemos uma dominação de um grupo sobre

outro. Ao contrário, a movimentação dos dois grupos demonstra que os procedimentos de

poder são constantemente “reajustados, reforçados e transformados”, como diz Foucault

(2006, p.249), oferecendo espaços para a criação de uma diversidade de relações de

dominação. As situações nas quais o grupo dos convidados está envolvido são o foco

central deste filme de Buñuel, em que ele demonstra enunciativamente a formação de um

discurso de como o grupo dos ricos é resguardado, pois desenvolve constantemente fortes

estratégias percebidas em “uma produção multiforme de relações de dominação”

(FOUCAULT, 2006, p.249). Buñuel utiliza uma trama baseada em uma história bíblica

para afirmar seu posicionamento de inconformidade e reprovação em relação ao grupo dos

convidados. Apreende-se, em seu discurso midiático, uma manipulação nos sentidos do

discurso da Igreja Católica. Ao invés do povo pobre, sofrido e oprimido, que no caso de

nossa sociedade se reflete no grupo dos criados, ser protegido e “liberto”, ocorre o

contrário, quando o grupo protegido é o dos convidados, que faz parte de uma classe

privilegiada.

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