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IV CONALI - Congresso Nacional de Linguagens em Interação
Múltiplos Olhares 05, 06 e 07 de junho de 2013
ISSN: 1981-8211
Estratégias de saber e poder:
análise discursiva foucaultiana do filme O anjo exterminador, de Buñuel1
Priscila Canova MOTTA2- UFSCar
Nádea Regina GASPAR3- UFSCar
1. Introdução
Em minha cidade, onde nasci há 22 de fevereiro de 1900, pode-se dizer
que a idade média prolongou-se até a primeira guerra mundial. Sociedade
isolada, imóvel, marcando nitidamente as diferenças entre as classes. O
respeito à subordinação do povo trabalhador com relação aos senhores,
aos grandes proprietários, parecia imutável, fortemente enraizado nos
hábitos antigos. Controlada pelos sinos da igreja do Pilar, a vida se
desenvolvia horizontalmente, sempre a mesma (BUÑUEL, 1982, p.14).
São poucas, ainda, as pesquisas acadêmicas brasileiras que analisam os trabalhos sobre o
diretor espanhol Luis Buñuel. O diretor foi o precursor da estética surrealista no cinema,
com uma aguçada percepção do meio social e cultural e, ao todo, produziu 32 filmes,
contendo críticas pungentes à sociedade. As referências sociais, culturais e religiosas de
seus filmes são atemporais, portanto essenciais para maior compreensão, também, da nossa
época.
1 Texto avaliado pela Profa. Dra. Ismara Tasso (UEM), como parte dos requisitos para obtenção do título de
especialista em “Discurso e Leitura de imagem”. 2 Socióloga, com especialização em “Discurso e Leitura de Imagem”, ambos pela UFSCar. Mestranda do
Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade, na Linha de Pesquisa em Linguagens,
Comunicação e Ciência (UFSCar). Atua como educadora no Sesc São Carlos. Membro do Grupo de Estudos
no CNPq Laboratório de Análise do Discurso da Imagem (LANADISI). 3 Professora da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), no Departamento de Ciência da Informação e
no Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade, na Linha de Pesquisa em Linguagens,
Comunicação e Ciência. Coordenadora do Grupo de Estudos no CNPq Laboratório de Análise do Discurso da
Imagem (LANADISI).
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O objetivo desta pesquisa, assim sendo, é o de estudar, no filme O Anjo Exterminador,
de Buñuel (1962), o modo como os sujeitos abastados são vistos por esse diretor, por meio
da análise discursiva de Michel Foucault, observando-se algumas “estratégias de saber e
poder”.
Segundo o autor, o poder não é algo que se apreende, por isso, para se realizar uma
análise, deve-se, outrossim, identificar de que forma as relações de saber e poder ocorrem e
se dão a ver no texto, no caso, fílmico. Para perceber os poderes exercidos pelos sujeitos,
no tocante a este filme, será necessário analisar as relações de “micropoderes” apresentadas
nas relações entre imagens e palavras, que indicam práticas discursivas concretas. Como
resultado, observa-se que no funcionamento entre saberes e poderes desse grupo de
sujeitos, os convidados, ocorrem relações intercambiáveis de afinidades entre os mesmos.
2. Foucault, enunciado, saber e poder
Os desdobramentos teóricos em análises discursivas, sob a ótica de Michel Foucault, nas
Ciências Humanas e Sociais, em termos de um olhar histórico-crítico atento às rupturas e
descontinuidades históricas, são também “ferramentas” metodológicas para o estudo de
“práticas discursivas” que agenciam possibilidades de críticas a respeito daquilo que somos,
de maneira que instrumentalizam o nosso olhar sobre a contemporaneidade.
O referencial teórico e a metodologia que mobilizaremos para esta pesquisa, portanto, é
a teoria da análise do discurso, mais especificamente a de Michel Foucault em seu
entendimento conceitual sobre “enunciado”, “saber e “poder”. Foucault, dentre seus
estudos, procurou entender os modos como o ser humano se torna sujeito, afirmando que o
tema geral de suas pesquisas é o sujeito, ou seja, o homem, e não o poder. Por isso não
desenvolveu um paradigma do poder, deixando bem claro que:
Gostaria de observar a maneira como diferentes mecanismos de poder
funcionam em nossa sociedade, entre nós, no interior e fora de nós.
Gostaria de saber de que maneira nossos corpos, nossas condutas do dia-
a-dia, nossos comportamentos sexuais, nosso desejo, nossos discursos
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científicos e teóricos se ligam a muitos sistemas de poder que são, eles
próprios, ligados entre si (FOUCAULT, 2006, p. 258).
De acordo com Foucault (1999), precisamos observar as relações existentes entre os
vários discursos, analisar os procedimentos que organizam, transformam e redistribuem o
discurso. O discurso é um conjunto de enunciados que não é uma estrutura, mas
é uma função de existência que pertence, exclusivamente, aos signos, e a
partir da qual se pode decidir, em seguida, pela análise ou pela intuição, se
eles "fazem sentido" ou não, segundo que regra se sucedem ou se
justapõem, de que são signos, e que espécie de ato se encontra realizado
por sua formulação (oral ou escrita) (FOUCAULT, 1999, p. 98).
Pormenorizando as circunstâncias que definem a função enunciativa, Foucault (2008)
afirma que para reconhecermos, na análise, o enunciado, este precisa vir atrelado à “série”
(em que reiteradamente ele aparece); à “materialidade” (distinções entre palavra, imagens
fixas e em movimento, etc.); ao “campo associado” (quando se vê ou se lê que o enunciado
correlaciona-se, identifica-se, iguala-se a si mesmo, ainda que esteja em gêneros e/ou
tipologias textuais distintas, ou dentro de um mesmo texto); ao “sujeito” (quando se
observam distintos pronunciamentos de um sujeito ou de diferentes sujeitos orais, escritos,
imagéticos, porém com o mesmo “conteúdo” enunciativo).
Observar, inicialmente, a “série”, a “materialidade”, o “campo associado” e o “sujeito” é
o que constitui, para Foucault, o primeiro olhar do analista quando se depara com
“enunciados discursivos”. Contudo, para Foucault, analisar as práticas e produções dos
discursos e apreender essas relações de saberes, ou seja, o que os homens disseram sobre
dado tema, requer compreender, também, essas relações com os poderes que os sujeitos
exercem uns sobre os outros, observados em suas práticas reveladas nos textos.
Foucault explica que o poder não é “o sentido do discurso, já que o discurso é uma série
de elementos que operam no interior do mecanismo geral do poder” (FOUCAULT, 2006, p.
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254). Dessa forma, para ele, devemos analisar os variados modos através dos quais o
discurso assume papéis dentro de um sistema:
Portanto, o poder não é nem fonte nem origem do discurso. O poder é
alguma coisa que opera através do discurso, já que o próprio discurso é
um elemento em um dispositivo estratégico de relações de poder
(FOUCAULT, 2006, p. 253).
As relações de poder permeiam toda a teia social e, portanto, as interações sociais com
suas “formas múltiplas de disparidade individual, de objetivos, de instrumentações dadas
sobre nós e aos outros” (DREYFUS & RABINOW, 1984, p.319) e demarcam as variadas
formas de poder. E estas existem em todos os níveis de interações entre pessoas, já que
as relações de poder existem entre um homem e uma mulher, entre aquele
que sabe e aquele que não sabe, entre os pais e as crianças, na família. Na
sociedade, há milhares e milhares de relações de poder e, por conseguinte,
relações de forças de pequenos enfrentamentos, microlutas, de algum
modo (FOUCAULT, 2006, p. 231).
Foucault refletiu sobre as relações e os múltiplos mecanismos de saber e poder que são
exercidos e perpassam toda sociedade. O poder não é algo que se possui ou se divide. O
poder é exercido em diversas direções, é algo que transita e está sempre interligado. As
relações de poder, assim, dão-se nas práticas sociais, nas interações e somente no concreto
exercício do poder, na teia social, os sujeitos tanto sofrem quanto exercem poder.
Em outros termos, o poder não se aplica aos indivíduos, passa por eles
[...]. Ou seja, o indivíduo não é o outro do poder: é um de seus primeiros
efeitos. O indivíduo é um efeito do poder e, simultaneamente, ou pelo
próprio fato de ser um efeito, é seu centro de transmissão (FOUCAULT,
1999, p. 103).
O poder, para o teórico, não é algo estático nem palpável, movimenta-se em todas as
direções. Percebemos aqui uma noção múltipla de poder, pois são vários os poderes
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exercidos em todas as direções da rede social, em que se exercitam distintos métodos e
procedimentos. Foucault exemplifica:
A polícia, por exemplo, certamente tem seus métodos - nós os
conhecemos -, mas há igualmente todo um método, toda uma série de
procedimentos pelos quais se exercem o poder do pai sobre seus filhos,
toda uma série de procedimentos pelos quais, em uma família, vemos se
enlaçarem relações de poder, dos pais sobre os filhos, mas também dos
filhos sobre os pais, do homem sobre a mulher, e também da mulher sobre
o homem, sobre os filhos. Tudo isso tem seus métodos, sua tecnologia
próprios (FOUCAULT, 2006, p. 232).
Foucault discorda da ideia de que as microrrelações de poder são controladas pelo
Estado ou pela dominação de distintas classes sociais. Acredita que as relações de poder se
estendem além, não sendo o Estado capaz de englobar todas as esferas concretas das
relações de poder, e mais, o Estado só consegue existir da maneira que o faz devido a essas
microrrelações de poder. O propósito de Foucault é perceber que o exercício dos poderes
não provém apenas do Estado nem de seus “aparelhos”. O poder se organiza como uma
rede que engloba a todos. Mesmo em estabelecimentos extremamente hierarquizados, como
as Forças Armadas, não existe uma fonte de exercício de poder única, porque tanto os
comandantes como os comandados exercem poderes e se regulam de maneira recíproca e,
assim, eles se mantêm.
O que seria o poder de Estado, aquele que impõe, por exemplo, o serviço
militar, se não houvesse, em torno de cada individuo, todo um feixe de
relações de poder que o liga a seus pais, a seu patrão, a seu professor -
àquele que sabe, àquele que lhe enfiou na cabeça tal ou tal idéia? A
estrutura de Estado, no que ela tem de geral, de abstrato, mesmo de
violento, não chegaria a manter assim, contínua e cautelosamente, todos
os indivíduos, se ela não se enraizasse, não utilizasse, como uma espécie
de grande estratégia, todas as pequenas táticas locais e individuais que
encerram cada um entre nós (FOUCAULT, 2006, p. 231).
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O autor afirma que essas estratégias de poder foram criadas devido a necessidades e
situações específicas que tomam corpo aos poucos e, depois, são elaboradas em “conjuntos
coerentes”, como segue:
E preciso assinalar, além disso, que estes conjuntos não consistem em
uma homogeneização, mas muito mais em uma articulação complexa
através da qual os diferentes mecanismos de poder procuram apoiar-se,
mantendo sua especificidade. A articulação atual entre família, medicina,
psiquiatria, psicanálise, escola, justiça, a respeito das crianças, não
homogeneíza estas instâncias diferentes, mas estabelece entre elas
conexões, repercussões, complementaridades, delimitações, que supõem
que cada uma mantenha, até certo ponto, suas modalidades próprias
(FOUCAULT, 1999, p. 123).
As relações de poder, desse modo, não são desenvolvidas para servir a algum sistema
econômico dominante, mas
podem ser utilizadas como estratégias, de intervalos, de resistências; que
não se deve, portanto, pensar um fato primeiro e maciço de dominação
(uma estrutura binária com, de um lado, os "dominantes" e, do outro, os
"dominados”, mas, antes, uma produção multiforme de relações de
dominação, que são parcialmente integráveis a estratégias de conjunto
(FOUCAULT, 2006, p. 248).
Foucault (2006, p. 249) diz que “não há relações de poder sem resistência e que estas
são tão mais reais e eficazes quanto mais se formem ali mesmo onde se exercem as relações
de poder”. Se todas as relações de poder apresentam resistências,
a análise dos mecanismos de poder não tende a mostrar que o poder é ao
mesmo tempo anônimo e sempre vencedor. Trata-se ao contrário de
demarcar as posições e os modos de ação de cada um, as possibilidades de
resistência e de contra-ataque de uns e de outros (FOUCAULT, 1999, p.
126).
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As relações de poder são relações de conflito, de força, consequentemente, “sempre
reversíveis. Não há relações de poder que sejam completamente triunfantes e cuja
dominação seja incontornável” (FOUCAULT, 2006, p. 232). O teórico afasta, assim, nosso
olhar do vício de pensar que todo poder é necessariamente repressivo e buscaremos
compreender como as relações de poder se instalam nas práticas discursivas. Aponta,
portanto, que se observe, para se analisar discursos, tanto os enunciados como também as
relações de poder. Desse modo, “a análise consiste em descrever as ligações e relações
recíprocas entre todos esses elementos” (FOUCAULT, 2006, p. 254), que associam
relações entre os saberes, advindas de enunciados discursivos e os poderes emanados
desses enunciados e que são pronunciados por sujeitos enunciadores. É nesta composição
complexa que os analistas apreendem os discursos.
Para perceber os mecanismos de poderes exercidos pelos sujeitos neste filme de Luis
Buñuel, analisaremos os micropoderes visualizados em práticas que aí foram materializadas
e encontradas. É necessário, assim, perceber a “microfísica do poder” como relações e
redes e deslocar a análise para uma multiplicidade de poderes circulantes. A pesquisa deve
apreender, portanto, o nível em que ela acontece. Todo o sistema é atingido pelo
micropoder. Recorreremos aos conceitos de “enunciado” e “relações entre saber e poder”,
em Foucault, procurando focar nosso olhar onde o exercício do poder se torna
concretamente microfísico e visível, ou seja, nas interações das linguagens que se
estabelecem em algumas sequências fílmicas, por meio dos discursos da Igreja Católica e
no fílmico de Buñuel, tendo em vista o olhar sobre os convidados.
3. Análise foucaultiana de O anjo exterminador
Algumas vezes lamentei ter filmado El Ángel Exterminador no México.
Imaginava-o mais em Paris ou em Londres, com atores europeus e um
certo luxo nas roupas e acessórios (Buñuel, 1982, p.355).
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O filme O Anjo Exterminador, de 1962, de Luiz Buñuel, narra a história de um grupo de
convidados que ceia na mansão de um casal e, sem explicações aparentes, não consegue
sair da sala de estar, permanecendo aí preso.
Buñuel apresenta, em toda sua obra fílmica, referenciais vindos da religião católica. Em
O Anjo Exterminador não foi diferente. É possível perceber o posicionamento do diretor
sobre os comportamentos dos “sujeitos”, no caso, os convidados, ocorridos na
contemporaneidade, uma vez que as evidências entre as relações de poder e saber dos
convidados, nesta narrativa audiovisual, estão profundamente relacionadas ao discurso
religioso.
Nesta trama, as relações entre os sujeitos discursivos, os criados e os convidados4,
estabelecem-se logo no início do filme. A anfitriã da mansão refere-se ao grupo de
convidados (08’:46”)5, quando entra na cozinha e vê dois criados saindo. Nesse momento,
ela diz: “[...] e no momento em que meus “convidados” acabam de sentar-se à mesa [...]”.
O outro grupo, o dos criados, é também citado (33’:34”) pelos convidados, pois estes
últimos os acusam de abandonar a casa, “como ratos que abandonam um navio prestes a
afundar”.
Os convidados são compostos por um grupo de empresários, grandes artistas, médicos,
além dos donos da casa, que nesta análise também serão denominados como convidados.
Todos estão vestidos luxuosamente. Os homens, com fraques e cartolas. As mulheres, com
casacos de pele, vestidos longos, saltos altos e joias. Estas indumentárias e adereços
mostram, claramente, que este é um grupo de pessoas de posse, de sujeitos que são ricos. O
grupo dos criados pode ser detectado, em suas indumentárias, por seus uniformes, suas
funções e saberes: o cozinheiro, as ajudantes de cozinha, a arrumadeira, os mordomos e o
chefe dos mordomos. Todos eles, contratados pelos patrões que são os donos da casa.
4 Embora Foucault não trabalhe com a noção de classe social de Karl Marx, Buñuel recorre, em termos
discursivos, às denominações “convidados” e “criados” ao se referir aos distintos grupos sociais em sua
narrativa fílmica. 5 Esta marcação do tempo fílmico refere-se às sequencias que serão analisadas.
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O comportamento dos sujeitos criados e convidados segue o movimento da “série
enunciativa” discursiva. Todos os criados vãos embora furtivamente, sem dar explicações, e
saem da casa. Vemos acontecer esta ação em cinco momentos, sendo a primeira logo no
início do filme. Aparece um portão enorme, todo adornado (2’:07’’), e um homem saindo
furtivamente. Um segundo homem chega e pergunta o motivo do primeiro sair, já que estão
previstos 90 convidados para o jantar. O primeiro homem, sujeito de um discurso de um
grupo, o dos criados, mostra-se agitado, desconversa e, apressado, vai embora. Em seguida
(3’:18’’), vemos a cozinha, onde quatro criados uniformizados terminam de preparar o
jantar. Eles também se mostram inquietos e combinam ir embora como se algo fosse
acontecer e precisassem sair dali rapidamente. Logo depois, duas criadas (4’:46’’) colocam
seus casacos e saem. Outros dois criados (1’:20’’) vão embora escondidos. Apenas um dos
criados, o chefe dos mordomos, permanece na casa. Porque o discurso dele tem
propriedades específicas de dar ordens e comandar, assegura-lhe um lugar de quem exerce
este poder. Ele diz (11’:11’’), para a dona da casa, que acredita que os criados estão cada
vez mais insolentes, como se ele mesmo não pertencesse a este grupo. E assim, como os
convidados, ele também fica preso na casa.
Observa-se, no filme, um cenário claramente bíblico, ou seja, ficam explícitos os
“campos que se associam” entre relações do discurso religioso e o da Igreja Católica com o
discurso fílmico de Buñuel. O diretor consegue fazer analogias entre ambos os discursos,
concentrando-se no comportamento dos convidados e questionando o posicionamento deste
grupo.
Nesse sentido, o título do filme O Anjo Exterminador é citado na Bíblia, no livro do
Êxodo. Deus utiliza o exterminador para punir o povo egípcio, e esta foi uma das dez
pragas enviadas ao Egito por Deus para que o Faraó libertasse seu povo protegido, os
hebreus.
Disse Iahweh a Moisés e Aarão na terra do Egito: [...] Cada um tomará
para si um cordeiro para cada casa. Tomai alguns ramos de hissopo,
molhai-o no sangue que estiver na bacia, e marcai a travessa da porta e os
seus marcos com o sangue que estiver na bacia; nenhum de vós saia de
casa até pela manhã. Porque Iahweh passará diante desta porta e não
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permitirá que o Exterminador entre em vossas Iahweh casas, para vos
ferir. (BIBLIA, ÊXODO, 2012,12: 1-27, p.118).
Se observarmos esta história bíblica em particular e a trama do filme, perceberemos as
relações entre os “campos associados” do discurso religioso católico e o do discurso
midiático de Buñuel, uma vez que se revelam as relações entre a passagem do Êxodo, cujo
conteúdo é refeito na narrativa fílmica.
A Igreja Católica possui seus mecanismos de coerção para que os seus fiéis sigam as
regras estabelecidas por esta instituição. Os que não seguirem as regras estarão cometendo
pecados. Uma das alternativas dos antigos hebreus para remissão dos pecados era a de
sacrificar animais. Matar um cordeiro, assá-lo e comê-lo juntamente com pães sem
fermento, caldo de ervas e vinho é uma forma de comemorar e relembrar a libertação do
povo hebreu do domínio do Egito, em uma celebração chamada Páscoa. Segundo a Bíblia,
Jesus (homem, filho de Deus) substituiu essa comemoração e os seus elementos, que
passaram, então, a ser representados apenas pelo pão e o vinho, representando, com estas
simbologias, seu sacrifício físico e o derramamento de seu sangue por seu povo. Enquanto
comiam, Jesus tomou um cálice, agradeceu e disse: “[...] pois isto é o meu sangue, o sangue
da Aliança, que é derramado por muitos, para remissão de pecados” (BÍBLIA,
MATEUS,2012,26:28,p.1752). Na introdução ao Evangelho de João, percebemos que
Cristo é o Cordeiro de Deus que foi sacrificado para a libertação dos pecados de seu povo:
“[...] mas a última páscoa se tornará a Páscoa de Cristo, sua passagem deste mundo para o
pai, Cristo é agora o verdadeiro cordeiro pascal” (BÍBLIA, 2012, p.1838). Deste fato a
Igreja Católica criou um ritual para libertação dos pecados de seus fiéis e que acontece na
Missa, em que os católicos, entre outros procedimentos, devem confessar seus pecados,
arrepender-se deles e reencenar a última ceia realizada por Jesus, libertando-se, assim, de
todos os seus pecados. No filme, é oferecida uma ceia (7’:29’’) na qual é servido um
guisado que, tradicionalmente, na Espanha, é feito de cordeiro.
Muitas imagens de cordeiros aparecem ao longo do filme. Os cordeiros são uma
referência constante, evidenciando-se enunciativamente e formando uma “série
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enunciativa”, já que a presença do cordeiro se repetiu cinco vezes. Na cena final
(1h28’:41’’), os “cordeiros” surgem entrando na igreja onde os convidados e sacerdotes
estão presos novamente. Outra sequência ocorre quando a dona da casa entra na copa
(8’:40’’), onde são vistos um urso e alguns “cordeiros”, e ela pede para que estes sejam
levados ao jardim, pois não os utilizará. Uma terceira sequência é quando se escutam
balidos e se veem “cordeiros” subindo a escada (1h03:15’). Em outra ainda, os “cordeiros”
(1h03:54’) tomam a direção da sala e são cercados por todos. Em uma sequência bastante
significativa do que estamos mostrando, são vistos uma fogueira com restos de lã e ossos
(1h:08’’) e um “cordeiro” vivo. Um sujeito cobre os olhos do cordeiro para que outro o
mate com uma faca. Em seguida, outro sujeito anuncia: “[...] vamos esperar o sacrifício do
último cordeiro”. Nesta cena, Buñuel se vale da materialidade do texto religioso e o
concretiza em imagem. O diretor se baseia neste ritual, que se inicia numa prática
discursiva deste acontecimento, encarna materialmente o texto religioso escrito e toma
corpo em outra materialidade, a imagética. Podemos ver o sacrifício do último cordeiro, na
figura 1
Figura 1 – Sacrifício do último cordeiro
Fonte: Filme O Anjo Exterminador (Buñuel, 1962)
Os “sujeitos convidados” estão presos na casa, mas não existe um impedimento
concreto, físico, restringindo-os a sair da sala. No livro do Êxodo, fica clara a ordem de
Deus para que ninguém saia de casa, pois o exterminador passará. E os sujeitos convidados
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não saem, mesmo sofrendo privações como falta de água e de comida. Ninguém consegue
entrar ou sair da casa. A solução para que eles saiam desse estado, ou seja, o de não
conseguir sair de modo algum da casa, só aparece dias depois de reclusos, quando os
sujeitos convidados se colocam nas mesmas posições em que estavam na sala, na noite do
jantar. Só então eles conseguem sair da casa. Mas isto só acontece após sacrificar todos os
cordeiros e assá-los no fogo.
No final do filme, imagens de uma igreja surgem novamente (01h:25”). Vemos todo o
grupo dos convidados dentro da igreja ( 01h25’:40”), na celebração de uma missa. Não se
veem os criados. Terminada a celebração, os sujeitos do clero e todas as pessoas que estão
dentro da igreja não conseguem sair dela (1h26’:11”). Revela-se no filme, por parte de
Buñuel, a sutileza de um questionamento sobre o comportamento assumido pelos sujeitos
que compõem a classe dos convidados que, nesse momento, passa a incluir também os
sujeitos do clero. Por que este grupo se encontra constantemente nessa situação de
“prisão”? Antes, na ceia, e agora, na igreja? Afere-se que eles estão agora em uma missa,
realizando um ritual de remissão de seus pecados, mas, ainda assim, necessitam sacrificar
mais cordeiros.
Na sequência final, (1h27:55”), escutam-se sons de tiros, gritos, porque há a cavalaria e
homens fardados atirando nas pessoas nas ruas e muito tumulto - uma imagem clara de um
conflito, como vemos na figura 2.
Figura 2 – “Rebelião”
Fonte: Filme “O anjo Exterminador Buñuel” 1962)
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O filme termina com um embate armado acontecendo em frente à igreja, onde estão
presos os sujeitos: convidados e clero. No final vemos muitos cordeiros entrando na igreja,
provavelmente, para mais um sacrifício. Quantos cordeiros serão necessários abater, para
redimir o grupo dos convidados? Na história bíblica, sacrificar animais não foi suficiente
para livrar os homens de seus pecados. Foi necessário o martírio de um homem, de Jesus.
Esse massacre, que se vê no final do filme, sugere que são os outros grupos da sociedade
que sofrem o sacrifício real, uma vez que o grupo dos convidados - dos ricos e abastados,
está preso, sim, mas, por outro lado, “protegido” do conflito, pois agora está dentro da
igreja.
4. Considerações finais
Neste trabalho, mobilizamos os conceitos de “enunciado” e “relações de saber e poder”,
de Michel Foucault, e os aplicamos no filme O Anjo Exterminador, de Luis Buñuel (1962).
Foi possível observar um enunciado discursivo, qual seja “o modo como os mais
abastados da sociedade, no caso, os convidados de uma ceia, são vistos por Buñuel”,
observando-se e traçando-se relações com o discurso religioso, ao qual recorre o diretor
nesta narrativa cinematográfica.
No discurso religioso católico, os hebreus, um povo escravizado e sofrido, obedeceu ao
comando de Deus. Para tanto, recolheram-se em suas casas, onde permaneceram a noite
toda e sacrificaram um cordeiro, para que pudessem ser libertados e salvos do extermínio.
No filme, o anjo exterminador são as relações de poder que se refletem nos sujeitos desta
análise. O diretor mostra que os convidados não saem da sala até que se realize o sacrifício
dos cordeiros, para que só depois se libertem. Buñuel deixa a sugestão ao espectador, pela
sequência final, em que se veem os cordeiros entrando na igreja - os sujeitos convidados
juntamente com os sacerdotes conseguirão novamente sua redenção. Isto nos leva a uma
importante conclusão: o grupo dos convidados é o povo escolhido e protegido. E o grupo
dos criados é aquele que sofre a ira, no caso, nas ruas.
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Na dinâmica da trama fílmica, não percebemos uma dominação de um grupo sobre
outro. Ao contrário, a movimentação dos dois grupos demonstra que os procedimentos de
poder são constantemente “reajustados, reforçados e transformados”, como diz Foucault
(2006, p.249), oferecendo espaços para a criação de uma diversidade de relações de
dominação. As situações nas quais o grupo dos convidados está envolvido são o foco
central deste filme de Buñuel, em que ele demonstra enunciativamente a formação de um
discurso de como o grupo dos ricos é resguardado, pois desenvolve constantemente fortes
estratégias percebidas em “uma produção multiforme de relações de dominação”
(FOUCAULT, 2006, p.249). Buñuel utiliza uma trama baseada em uma história bíblica
para afirmar seu posicionamento de inconformidade e reprovação em relação ao grupo dos
convidados. Apreende-se, em seu discurso midiático, uma manipulação nos sentidos do
discurso da Igreja Católica. Ao invés do povo pobre, sofrido e oprimido, que no caso de
nossa sociedade se reflete no grupo dos criados, ser protegido e “liberto”, ocorre o
contrário, quando o grupo protegido é o dos convidados, que faz parte de uma classe
privilegiada.
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