Estrutura e Sentimento. Descola

download Estrutura e Sentimento. Descola

of 23

description

Estrutura e Sentimento. Descola

Transcript of Estrutura e Sentimento. Descola

  • A violncia exercida contra os animais suscita uma reprovao crescentenas opinies pblicas ocidentais, uma reprovao que, freqentemente,se torna ainda mais vivaz medida que diminui a familiaridade com asvtimas. Nascida da indignao com os maus-tratos infligidos aos animaisdomsticos e de estimao, em uma poca na qual burros e cavalos defiacre faziam parte do ambiente cotidiano, atualmente, a compaixonutre-se da crueldade a que estariam expostos seres com os quais os ami-gos dos animais, urbanos em sua maioria, no tm nenhuma proximida-de fsica: o gado de corte, pequenos e grandes animais de caa, os tourosdas touradas, as cobaias de laboratrio e os animais fornecedores de pele,as baleias e as focas, as espcies selvagens ameaadas pela caa preda-tria ou pela deteriorao de seu habitat etc. As atitudes de simpatia paracom os animais tambm variam, claro, segundo as tradies culturaisnacionais1. O horror legtimo ao sofrimento desnecessrio, e mesmo aconscincia de uma responsabilidade moral da espcie humana em asse-gurar o bem-estar dos seres com os quais ela partilha o planeta, so asprincipais motivaes da sensibilidade ecolgica nos pases latinos. Emcontrapartida, nos pases do norte da Europa e nos Estados Unidos pare-cem ganhar terreno as teses mais radicais da deep ecology, que conside-ra todos os componentes do meio natural como sujeitos de direitos hom-logos aos humanos.

    Todavia, na prtica, as manifestaes de simpatia pelos animais soordenadas em uma escala de valor geralmente inconsciente, mas to-talmente explcita em alguns animal philosophers (Singer 1989; Regan1983) cujo pice ocupado pelas espcies percebidas como as maisprximas do homem em funo de seu comportamento, fisiologia, facul-dades cognitivas ou da capacidade que lhes atribuda de sentir emo-es. Naturalmente, os mamferos so os mais bem aquinhoados nessahierarquia do interesse, e isso independentemente do meio onde vivem.

    ESTRUTURA OU SENTIMENTO:A RELAO COM O ANIMAL

    NA AMAZNIA

    Philippe Descola

    MANA 4(1):23-45, 1998

  • Ningum, assim, parece se preocupar com a sorte dos harenques ou dosbacalhaus, mas os golfinhos, que com eles so por vezes arrastados pelasredes de pesca, so estritamente protegidos pelas convenes internacio-nais. Quanto s medusas ou s tnias, nem mesmo os membros mais mili-tantes dos movimentos de liberao animal parecem conceder-lhes umadignidade to conseqente quanto a outorgada aos mamferos e aos ps-saros.

    O antropocentrismo, ou seja, a capacidade de se identificar com no-humanos em funo de seu suposto grau de proximidade com a espciehumana, parece assim constituir a tendncia espontnea das diversassensibilidades ecolgicas contemporneas, inclusive entre aqueles queprofessam as teorias mais radicalmente anti-humanistas. Tal atitudepoderia lembrar a maneira como os povos pr-modernos representamsuas relaes com o ambiente: respeito pela natureza, atitude benvolapara com as plantas e os animais ou cuidado de no pr em perigo o equi-lbrio dos ecossistemas foram erigidos em atributos ostensivos das popu-laes tribais, motivando em grande parte a simpatia que se lhes dedica.Muitas organizaes ecolgicas, alis, encontram uma fonte de inspira-o nas vises de mundo dos ndios da Amaznia ou da Amrica do Nor-te, convertidos pela mdia em smbolos da convivncia harmoniosa comuma natureza cada vez mais ameaada. A me-terra ou a floresta sa-grada tornam-se conceitos genricos da sabedoria tnica, mas seria bemdifcil encontrar seu equivalente exato na maior parte dos povos a quemse atribui esse tipo de noo, pois tais transposies em mo dupla noesto livres de qiproqu: freqentemente, a retrica ecolgica de algunslderes indgenas exprime menos as concepes cosmolgicas tradicio-nais complexas e diversificadas, logo difceis de formular no cdigosimplificador de nossa economia poltica da natureza do que um dese-jo de obter o apoio de organizaes internacionais influentes, graas aum discurso facilmente reconhecvel, e com a finalidade de conduzir lutasde reivindicao territorial (Descola 1985; Albert 1993). De selvagens,espera-se que tenham a linguagem de filhos da natureza; como eles dei-xariam de faz-lo se, por a, podem precaver-se da espoliao fundiria?

    Por outro lado, tais convergncias rapidamente encontram seus limi-tes, especialmente quando certas formas locais de caa ferem a sensibili-dade de militantes ecolgicos pouco inclinados a encarar com indulgn-cia os particularismos culturais que prejudicarem o bem-estar dos ani-mais. Ento, a caa de focas entre os Inuit ou aquela de grandes animaisentre os Masai aparece como brbara sobrevivncia que uma boa dosede educao em proteo do ambiente permitiria erradicar. Pior ainda, as

    ESTRUTURA OU SENTIMENTO: A RELAO COM O ANIMAL NA AMAZNIA24

  • tcnicas de subsistncia adotadas por populaes tribais podem ser per-cebidas por movimentos integristas de conservao da natureza comoperturbadoras do equilbrio de espaos protegidos, e no so raros oscasos em que povos autctones se defrontam com a interdio de seuacesso s fontes de reservas, erradamente ditas naturais, j que forameles que, por sua presena multissecular, contriburam sutilmente paratransformar sua ecologia. O antropocentrismo moderno, com efeito, amplamente inconsciente e no combina com a idia de que nosso am-biente em grande parte antrpico, mesmo em regies do mundo queparecem, como a Amaznia, ter conservado sua virgindade (Bale 1993).

    Os mal-entendidos alis, por vezes, produtivos entre minoriastribais e movimentos ecologistas devem-se ao fato de que, a despeito desimilitudes superficiais e interesses tticos comuns, suas respectivas ati-tudes com relao natureza so totalmente diferentes. Proteger os ani-mais outorgando-lhes direitos ou impondo aos humanos deveres paracom eles apenas estender a uma nova classe de seres os princpiosjurdicos que regem as pessoas, sem colocar em causa de maneira funda-mental a separao moderna entre natureza e sociedade. A sociedade fonte do direito, os homens o administram, e porque so condenadas asviolncias para com os humanos que as violncias com relao aos ani-mais se tornam condenveis. No nada disso para numerosas socieda-des pr-modernas, que, encarando os animais no como sujeitos de direi-to tutelado, mas como pessoas morais e sociais plenamente autnomas,se empenham to pouco em estender-lhes sua proteo, quanto julgamdesnecessrio velar pelo bem-estar de vizinhos distantes. Decidir tratar anatureza com respeito e benevolncia supe que a natureza exista etambm, sem dvida, que tenha sido primeiramente maltratada. Quandoa natureza no existe sob a forma de uma esfera autnoma, a relao comos animais s pode ser diferente da nossa, e a questo sobre matar umanimal s pode se colocar em termos muito distintos daqueles que nosso familiares. isso que um desvio pela Amaznia poderia permitir esta-belecer.

    Diferentemente do dualismo moderno que distribui humanos e no-humanos em dois domnios ontolgicos mais ou menos estanques, as cos-mologias amaznicas estabelecem uma diferena de grau, no de natu-reza, entre os homens, as plantas e os animais. Os Achuar da Amazniaequatoriana, por exemplo, dizem que a maioria das plantas e dos animaispossui uma alma (wakan) similar quela dos humanos, uma faculdadeque, ao assegurar-lhes a conscincia reflexiva e a intencionalidade, osinclui entre as pessoas (aents), torna-os capazes de experimentar emo-

    ESTRUTURA OU SENTIMENTO: A RELAO COM O ANIMAL NA AMAZNIA 25

  • es e permite-lhes trocar mensagens com seus pares e com membros deoutras espcies, e, assim, com os homens (Descola 1986; 1993a). Essacomunicao extralingstica possibilitada pela aptido atribuda wakan de transmitir, sem mediao sonora, pensamentos e desejos almade um destinatrio, modificando assim, por vezes sua revelia, seu esta-do de esprito e seu comportamento. Para esse fim, os humanos dispemde uma vasta gama de encantamentos mgicos, os anent, graas aosquais podem agir distncia sobre seus congneres, e tambm sobre asplantas, os animais, assim como sobre os seres sobrenaturais e algunsartefatos. A harmonia conjugal, um bom entendimento com parentes evizinhos, o sucesso na caa, a fabricao de uma cermica bonita ou umcurare eficaz, uma roa com plantas variadas e viosas, tudo isso depen-de das relaes de conivncia que os Achuar conseguirem estabelecercom uma variedade grande de interlocutores humanos e no-humanos,suscitando-lhes disposies favorveis por intermdio dos anent.

    Os Achuar estabelecem certas distines entre as entidades quepovoam o mundo. A decorrente hierarquia dos objetos animados e inani-mados no , contudo, fundada sobre graus de perfeio do ser, sobrediferenas de aparncia, ou sobre uma acumulao progressiva de pro-priedades intrnsecas. Ela se baseia na variao dos modos de comunica-o, a qual autorizada pela apreenso de qualidades sensveis desi-gualmente distribudas. Na medida em que a categoria das pessoas en-globa espritos, plantas e animais, todos dotados de uma alma, essa cos-mologia no diferencia os humanos e os no-humanos; ela somente intro-duz uma escala de ordenao segundo os nveis de troca de informaotidos como possveis. Os Achuar ocupam, como se poderia prever, o pi-ce da pirmide: eles se vem e se falam na mesma lngua. O dilogo ain-da possvel com os membros das outras tribos Jvaro que os cercam, ecujos dialetos so mais ou menos mutuamente inteligveis, sem que, toda-via, se possam excluir os mal-entendidos fortuitos ou deliberados. Comos brancos hispanfonos e as populaes vizinhas de lngua quchua, e oantroplogo tambm, v-se e fala-se simultaneamente, por menos queexista uma lngua em comum; mas o domnio desta geralmente imper-feito para aquele dos interlocutores que no a tem como lngua materna,introduzindo-se assim a possibilidade de uma discordncia semnticaque tornar duvidosa a correspondncia das faculdades que certifica aexistncia de dois seres sobre um mesmo plano do real. As distinesacentuam-se medida que se distancia do domnio das pessoas comple-tas, penke aents, definidas, antes de tudo, por sua aptido lingstica.Assim, os humanos podem ver as plantas e os animais que, quando pos-

    ESTRUTURA OU SENTIMENTO: A RELAO COM O ANIMAL NA AMAZNIA26

  • suem uma alma, so supostos perceberem os humanos; mas se os Achuarfalam com eles graas aos encantamentos anent, no obtm respostaseno por ocasio dos sonhos. Sucede o mesmo com os espritos e comalguns heris da mitologia: atentos ao que lhes dizem, e geralmente invi-sveis em sua forma primeira, s podem ser apreendidos em toda a suaplenitude no curso dos sonhos e transes induzidos pelos alucingenos.

    As pessoas aptas a se comunicarem so igualmente hierarquizadasem funo do grau de perfeio das normas sociais supostas de regeremas diferentes comunidades nas quais elas se acham distribudas. Algunsno-humanos so muito prximos dos Achuar por serem reputados derespeitar regras matrimoniais idnticas: esse o caso dos Tsunki, espri-tos do rio; de vrias espcies de caa (macacos barrigudos, tucanos...); ede plantas cultivadas (a mandioca e o amendoim...). Em contrapartida, hseres que se comprazem na promiscuidade sexual e assim, constantemen-te, violam o princpio da exogamia; este o caso do guariba ou do co. Onvel mais baixo da integrao social ocupado pelos solitrios: os esp-ritos iwianch, encarnaes das almas dos mortos que vagam abandonadasna floresta, ou ento os grandes predadores como o jaguar ou a sucuri.Entretanto, por mais distanciados das leis da civilidade que possam estar,todos esses seres solitrios so auxiliares dos xams, que os empregampara disseminar o infortnio ou combater seus inimigos. Situados nas mar-gens da cultura, esses seres nocivos no so de modo algum selvagens,uma vez que os senhores aos quais servem no esto fora da sociedade.

    Foram descritas em grande nmero cosmologias anlogas para asregies de floresta das terras baixas da Amrica do Sul (ver Weiss 1975;Viveiros de Castro 1992; van der Hammen 1992; Jara 1991; rhem 1996;Grenand 1980; Renard-Casevitz 1991; Reichel-Dolmatoff 1976). Emboradifiram em sua arquitetura interna, a caracterstica comum a todas essascosmologias no separar o universo da cultura, que seria apangioexclusivo dos humanos, do universo da natureza, no qual estaria includoo restante das entidades que constituem o mundo. Os animais, e as plan-tas em menor medida, so a percebidos como sujeitos sociais, dotadosde instituies e de comportamentos perfeitamente simtricos quelesdos homens. Alm disso, os seres do cosmos definem-se menos por umaessncia abstrata ou por uma faculdade particular (a presena ou ausn-cia de linguagem, por exemplo, ou de conscincia reflexiva e emoes)do que pelas posies que ocupam uns em relao aos outros, seja emfuno de caractersticas de seu metabolismo e, principalmente, de seuregime alimentar, seja em nome do tipo de comunicao em que soreputados capazes de se engajar. A identidade de cada um est, ento,

    ESTRUTURA OU SENTIMENTO: A RELAO COM O ANIMAL NA AMAZNIA 27

  • sujeita a mutaes ou metamorfoses, j que fundada em campos de rela-es que variam segundo os tipos de percepo recproca ou no recpro-ca atribudos s entidades em jogo. Com efeito, cada espcie, em sentidoamplo, suposta apreender as outras espcies a partir de seus prprioscritrios, de modo que em condies normais um caador no ver, porexemplo, que sua presa animal se v a si mesma como um humano, nemque ela o v como um jaguar. Do mesmo modo, o jaguar v o sangue queest bebendo como cauim; o macaco-aranha que o pssaro cassico acre-dita caar apenas um gafanhoto para o homem; e as antas de que a ser-pente pensa fazer sua presa principal na realidade so humanos. Graas troca permanente das aparncias gerada por esses deslocamentos deperspectiva, de boa-f os animais se consideram dotados dos mesmosatributos culturais que os humanos: seus penachos so para eles coroasde pluma, sua pelagem uma roupa, seu bico uma lana ou suas garrasfacas. Cultivam roas, caam, cozinham e se dedicam a rituais elabora-dos sob a direo de seus chefes e xams.

    O hiper-relativismo perceptivo das cosmologias amaznicas engen-dra uma ontologia s vezes batizada de perspectivismo (Viveiros deCastro 1996), que nega aos humanos o ponto de vista de Sirius, afirman-do que mltiplas vises de mundo podem conviver sem se contradize-rem. Isso acarreta uma conseqncia tica importante: se os animais sevem a si mesmos como pessoas empenhadas em atividades culturais,ento no possvel negar-lhes a humanidade que pretendem encarnar.Ao contrrio do dualismo moderno, que desdobra uma multiplicidade dediferenas culturais sobre o fundo de uma natureza imutvel, o pensa-mento amerndio encara o cosmos inteiro como animado por um mesmoregime cultural, diversificado no tanto por naturezas heterogneasquanto por modos diferentes de se apreender uns aos outros. Avalia-setoda a diferena para com o antropocentrismo ocidental, para quemalguns animais so dignos de proteo em nome de supostas faculdadesmuito prximas daquelas dos humanos: a sensibilidade, o altrusmo, oamor materno etc. No se acha nada disso na Amaznia, onde o referen-te comum s entidades que povoam o mundo no o homem enquantoespcie, mas a humanidade enquanto condio. Os animais so com cer-teza diferentes de ns em sua morfologia e em seu comportamento; con-tudo, a existncia social que eles tm nossa revelia idntica nossa.Alm disso, e como os mitos o atestam abundantemente, a condio ini-cial de uns e outros cultural, no natural. Em um continuum originalonde os humanos no se distinguem das plantas e dos animais, onde unse outros falam, tocam msica ou fazem cermica, uma srie de aconteci-

    ESTRUTURA OU SENTIMENTO: A RELAO COM O ANIMAL NA AMAZNIA28

  • mentos catastrficos vai introduzir descontinuidades de aparncia e depontos de vista que condenaro os sujeitos do cosmos a uma certa formade iluso: doravante, salvo circunstncias excepcionais, os homens nopodero mais ver os animais como congneres ligados a um destinocomum, e ento pelo trabalho da memria, alimentado pela tradiooral, que se poder restabelecer uma continuidade que os sentidos nopermitem mais averiguar. Por meio da ao ritual, pode-se ainda ultra-passar o solipsismo induzido pela diferenciao das faculdades sensveis.Os ritos de caa e cultivo, a mediao do xam nas relaes com os esp-ritos que regem o destino dos animais de caa e dos peixes, a oniroman-cia, tudo isso atesta no cotidiano que plantas e animais so interlocutoreslegtimos; a despeito das aparncias enganadoras, eles no vivem em umplano ontolgico distinto daquele dos humanos.

    Ora, os povos amaznicos tiram da caa e da pesca uma parte de suaalimentao. Quase todo dia os homens se confrontam, ento, com anecessidade de fazer perecerem seres cobertos de penas, plos ou esca-mas, mas que com eles se parecem por vrios atributos. Todos conhecemas circunstncias dessa destruio. A morte dos animais e sua prepara-o no dissimulada em recintos afastados da viso dos profanos, comoocorre entre ns atualmente, e todo mundo na Amaznia familiarizadodesde a mais tenra idade com aqueles corpos ainda quentes que se voesfolar, estripar e cortar para cozinhar. Graas s interminveis histriasde caa que os homens gostam de contar, todo mundo tambm sabe qualfoi o comportamento do animal antes de morrer, o medo, a tentativa defuga abortada, o sofrimento, as manifestaes de aflio dos seus compa-nheiros. Em suma, ningum pode ignorar de que maneira um ser vivo setorna comida. Como esses povos podem ento conciliar a violncia queexercem cotidianamente contra os animais com a idia de que esses seresso, de algum modo, humanos disfarados? Como matar e alimentar-sede quase-semelhantes sem que tal incorporao do vivo pelo vivo apare-a como uma forma de canibalismo? Tal contradio muito mais forteque aquela que, eventualmente, ns prprios podemos experimentar nahora de consumir a carne. Os vegetarianos que se recusam cumplicida-de da destruio de uma vida, nem por isso se consideram congneresdos animais que se abstm de comer. Os mais decididos partidrios daliberao animal decerto reconhecem direitos intrnsecos queles queMichelet chamava nossos irmos inferiores, mas nenhum deles imagi-na que as vacas, os porcos ou as cobaias levem uma vida dupla e que,sob a iluso de seu avatar animal, se escondam seres dotados de uma cul-tura idntica nossa.

    ESTRUTURA OU SENTIMENTO: A RELAO COM O ANIMAL NA AMAZNIA 29

  • A soluo desse dilema foi formulada muitas vezes em termosmorais: consciente do dano que obrigado a causar a um de seus seme-lhantes, o caador se empenharia em todos os tipos de compensaessimblicas para aliviar sua m conscincia e precaver-se das conseqn-cias que seu ato no poderia deixar de acarretar. A antiguidade o mri-to dessa explicao funcional. Frazer a prope desde o comeo do sculopara dar conta do que chamava ritos expiatrios em relao aos animaiscaados (Frazer 1922: caps. 53 e 54). A etnografia russa do pr-guerra in-vocou-a igualmente para explicar os ritos de caa siberianos, em particu-lar a obrigao dos homens de alimentar os ongon, aquela categoria deentidades que engloba tanto figuras em forma animal ou humana quantoanimais selvagens de estimao: alimentando tais substitutos de caaacolhidos no lar, o caador assim desviaria a vingana que est conscien-te de merecer pelas violncias que exerce contra a caa (Zelenin 1952).Em um tom similar, embora sem meno explcita Sibria, Philippe Erik-son (1984) props considerar a criao de animais selvagens na Amaz-nia como uma prtica compensatria, reparao simblica do dano infli-gido aos genitores por meio da adoo e sustento dos filhotes da caa.Certamente os povos da regio obedecem de antemo a uma tica dacaa no matar mais animais alm do necessrio, comportar-se comrespeito para com a caa, no faz-la sofrer toa etc. Vrios deles ofere-cem ainda contrapartidas rituais aos animais ou aos espritos que osrepresentam na forma de ofertas de tabaco, comida ou mesmo almas.Entretanto, em um universo cultural em que a reciprocidade seria umvalor cardinal, tais dispositivos no chegariam a suprimir completamenteo mal-estar conceitual que o caador experimentaria diante da retira-da unilateral de uma vida. Da a funo de justificao da criao de ani-mais: acolhendo os rfos, no poupando esforos para garantir-lhes oscuidados necessrios sobrevivncia, os ndios anulariam o ato de vio-lncia que essa adoo torna necessrio.

    Do mesmo modo, a m conscincia do caador que Stephen Hugh-Jones invoca para interpretar a atitude ambivalente dos ndios da Ama-znia em relao carne de caa: a carne desejvel, mas perigosaquando consumida em excesso ou de modo indiscriminado. Uma densarede de interdies e prescries alimentares, de procedimentos rituaisde descontaminao e de dispositivos semnticos de ocultao deve ate-nuar, ento, as conseqncias da triste obrigao em que se encontramos homens de destruir vidas animais para reproduzir a sua. SegundoHugh-Jones, essa mistura de reconciliao e duplicidade com relao aomatar e consumir o animal no seria prpria aos ndios da Amaznia;

    ESTRUTURA OU SENTIMENTO: A RELAO COM O ANIMAL NA AMAZNIA30

  • refletiria um trao universal da natureza humana e, nesse sentido, o com-portamento dos amerndios nada teria de extico ou arcaico, mas seriainteiramente homlogo m conscincia que os ocidentais experimen-tam atualmente diante da carne dos aougues (Hugh-Jones 1996).

    No nego absolutamente que a necessidade de matar animais parase alimentar possa suscitar sentimentos ambivalentes. Bem no incio deminha estada entre os Achuar, eu mesmo tive uma experincia muito vivaquando atirei em um animal pela primeira vez na vida, instado por meucompanheiro desarmado que no via razo verdadeira para que a espin-garda de que tive a idia ridcula de me prover a fim de completar a pan-plia de antroplogo no pudesse servir para matar o macaco que zomba-va de ns em um galho baixo. mesmo muito provvel que tal ambiva-lncia seja universal, se levarmos em conta os estudos de psicologia cog-nitiva sobre a construo ontogentica das categorias do vivo. Com efei-to, parece que as crianas desenvolvem muito cedo uma espcie de teo-ria ingnua dos estados mentais, isto , um saber implcito que lhes per-mite interpretar os atos e as atitudes dos seres animados em funo decertos atributos que imputam a eles, como a intencionalidade ou a capa-cidade de sentir emoes. Os trabalhos de Susan Carey (Carey 1985;Carey e Spelke 1994), em particular, indicam que a prpria animao percebida como derivada desses atributos, de tal modo que as crianasmuito pequenas concebem os humanos e os animais como pertencendo auma mesma categoria ontolgica, formalmente homloga ao que pode-ramos definir como uma pessoa. S mais tarde emerge a categoria deanimal, organizada em grande medida a partir das propriedades que acriana associa s atividades humanas. O ltimo estgio da construodo conceito de objeto vivo ocorre com a juno do domnio das plantasquele dos animais, no quadro do desenvolvimento de uma teoria ing-nua das funes biolgicas.

    Provavelmente, na idade adulta, preservamos os traos dessa indis-tino conceitual originria entre o homem e o animal. Como no reco-nhecer o estatuto ambguo dos animais, especialmente dos mamferossuperiores, to prximos de ns sob tantos aspectos e contudo to dife-rentes? Quem nunca atribuiu, ainda que de maneira fugaz, emoes, umasensibilidade, uma intencionalidade a um animal de estimao? O pr-prio sofrimento infligido s vezes aos animais no seria um sinal de quepercebemos sua natureza como essencialmente equvoca, a meio cami-nho da humanidade e dos outros objetos do mundo, vivos ou no-vivos? isso que Luc Ferry (1992:90-91) observa muito justamente, comentandoMaupertius: quer se tenha prazer ou no, o espetculo do sofrimento de

    ESTRUTURA OU SENTIMENTO: A RELAO COM O ANIMAL NA AMAZNIA 31

  • ESTRUTURA OU SENTIMENTO: A RELAO COM O ANIMAL NA AMAZNIA32

    um animal no pode nos deixar indiferentes pois, evocando o nosso, lem-bra-nos uma analogia fundamental que as plantas so incapazes de sus-citar, mesmo com um grande esforo de imaginao.

    Na prpria Amaznia muitos sinais atestam uma atitude ambivalen-te para com os animais caados. Por exemplo, o emprego bastante comumde eufemismos que dissimulam ou atenuam a violncia que se faz a caasofrer. raro falar-se de matar animais, e exprime-se a ao de caar pormetforas que no evocam o matar de maneira direta. Sucede muito fre-qentemente no se designar os animais por seu nome no contexto deuma batida de caa, preferindo-se substitutos estereotipados. Sempre noplano terminolgico, a caa com zarabatana claramente diferenciadada caa com lana ou com borduna (e atualmente com espingarda): fala-se em soprar pssaros entre os Achuar, soprar a caa entre os Tuka-no, ou mesmo ir soprar entre os Huaorani, atenuando, assim, por essasmetonmias instrumentais a ligao de causa e efeito entre a ao docaador e seu resultado (Hugh-Jones 1996:137; Rival 1996:155). Enfim, otema da vingana dos animais caados muito comum, embora a ampli-tude das represlias a eles imputadas e as medidas de precauo variemconsideravelmente segundo as culturas. Se o animal de caa sente algummotivo para se vingar, ento os amerndios tm uma conscincia bastan-te clara de que a sorte que lhe impem no inteiramente normal.

    Incontestavelmente, todas essas razes advogam pela consideraoda ambivalncia das atitudes do caador amaznico ao matar um animal.Mas da a lhe imputar um sentimento de m conscincia e a derivar des-ta os comportamentos na realidade muito diversos que caracterizam otratamento da caa na regio, h um passo que me recuso a dar. Aindaque formulada com muitas nuanas, a tese da m conscincia, com efei-to, oferece mais inconvenientes que vantagens. Primeiramente, porqueisso implica projetar sobre culturas muito diferentes da nossa uma formade sensibilidade com relao aos animais que talvez experimentemosespontaneamente, mas que sabemos ser o produto de uma evoluo espe-cfica das prticas e das mentalidades, traada em toda a sua complexi-dade por historiadores como Robert Delort (1984) ou Keith Thomas (1983).No tivemos sempre m conscincia em face do sofrimento dos animais,e muitos turistas ingleses que ficam indignados com a barbrie da toura-da provavelmente ignoram que o ataque de molossos a um touro preso(bull-baiting) era um espetculo apreciado por todas as classes sociais naInglaterra do sculo XVIII.

    Alm disso, a m conscincia implica um dilema moral, e portantoum quadro tico em cujo seio se desenvolve um sistema mais ou menos

  • ESTRUTURA OU SENTIMENTO: A RELAO COM O ANIMAL NA AMAZNIA 33

    explcito de direitos, obrigaes e valores. Seria preciso ento supor queesse quadro tico seja universal e que se coloque, sempre e em toda par-te, o mesmo tipo de dilema quando se mata um animal. esquecer-seque nossa prpria concepo sobre o que fundamenta a distino entre ohomem e o animal sofreu uma profunda mutao ao fim do sculo XVIII,quando pensadores como Rousseau e Kant definiram a humanidade pelaliberdade, ou seja, pela faculdade de subtrair-se s determinaes instin-tivas. Ora, o humanismo moderno baseia-se exatamente nessa idia paradefinir nossos deveres para com os animais: porque alguns dentre elesso dotados da capacidade de agir com vistas a um fim consciente diferena das plantas ou das bactrias e porque essa atitude apresentaanalogias com o livre-arbtrio que nos singulariza, que ns nos devemoso respeito a eles, ou seja, devemos respeitar neles aquilo que nos leva anos respeitar a ns mesmos2. O sentimento de culpa gerado pela mortede um animal ento alimentado aqui pela conscincia de uma pertur-badora proximidade entre a negao de um direito vida e a negao deum direito liberdade. Parece-me duvidoso que os ndios da Amazniatenham um raciocnio moral idntico.

    Parece-me duvidoso, inclusive, que se possa dizer de uma disposi-o tica qualquer que ela seja universal, tanto a normatividade nessedomnio depende das escolhas culturais3. Poderamos nos indagar, porexemplo, sobre a natureza dos preceitos fundamentais que uma moralamaznica compreenderia, por vezes no sentido em que se fala de umamoral judaico-crist. Vejo unicamente dois preceitos que seriam incon-testveis em toda a regio: a condenao da avareza e a exigncia docontrole de si. O primeiro deriva menos de uma obsesso pela reciproci-dade que da obrigao de ser generoso com o prximo e de um certo des-dm com relao acumulao de bens materiais. Quanto ao segundo,cuja marca pode ser vista em toda parte nas condutas de autoconten-o a abstinncia sexual, a valorizao da frugalidade, da aptido paraa viglia e da resistncia fsica, a prtica da flagelao e de banhos emgua gelada, ou o uso de purgantes e emticos , ele manifesta menosuma transferncia para si do desejo recalcado de exercer uma domina-o sobre outrem que a necessidade de afirmar a todo momento a supe-rioridade de uma autodisciplina livremente consentida sobre um controlesocial passivamente sofrido. De resto, existe uma variao muito grande,segundo as culturas amaznicas, quanto ao grau de tolerncia diante dedeterminados comportamentos individuais ou coletivos. O ardil, a menti-ra e a dissimulao podem ser considerados meios legtimos ou, ao con-trrio, condenveis para se atingir os prprios fins; a capacidade de exer-

  • ESTRUTURA OU SENTIMENTO: A RELAO COM O ANIMAL NA AMAZNIA34

    cer violncias fsicas pode aparecer como uma dimenso da virt mascu-lina ou, ao contrrio, suscitar um verdadeiro horror; a crueldade podedespertar a reprovao ou constituir um elemento julgado indispensveldos rituais de iniciao ou do tratamento dos cativos (ver, p. ex., Clastres1973). Em resumo, seria bem difcil atribuir aos povos da regio um con-junto de disposies morais partilhadas. Seria ento legtimo afirmar quea m conscincia, isto , o produto de um conflito moral, seja ali deslan-chada como entre ns pelas mesmas circunstncias? Recusar a universa-lidade da m conscincia em face do consumo de um animal apresenta,certamente, o inconveniente de fazer os ndios da Amaznia pareceremmuito diferentes de ns. No , porm, ceder a um relativismo culturaldesenfreado pensar que eles o so de fato: afinal de contas, no conside-ramos os animais como pessoas exceto como pessoas jurdicas, parauma minoria e nosso antropocentrismo, conforme vimos, possui razesmuito diferentes do deles.

    Enfim, e como Hugh-Jones (1996:147) observa muito justamente,mesmo no seio das sociedades tribais, h grande variabilidade individualde preferncias alimentares e de atitudes para com os animais. O argu-mento da m conscincia permitiria atribuir essa diversidade de condu-tas s morais que cada um forja por conta prpria em funo de sua sen-sibilidade e temperamento. Se este fosse realmente o caso, reinaria nessedomnio a mais completa arbitrariedade. Ora, a inegvel variabilidadeindividual exprime-se, contudo, no seio de um esquema geral de com-portamento partilhado por todos os membros de uma cultura, e que dife-re de uma cultura para outra. Acontece hoje, por exemplo, de os Achuarcomerem animais tradicionalmente proibidos. Mas tal relaxamento temlimites, e a idia de consumir certas espcies continua a suscitar uma sin-cera repugnncia. Comprova-o a aventura de um jovem Achuar em visi-ta aos Quchua: tendo comido com grande prazer uma carne que lhe fize-ram acreditar ser uma cotia, ele foi tomado subitamente de nusea e obri-gado a ir vomitar quando os anfitries zombeteiros bem informadosacerca dos hbitos alimentares de seus vizinhos tribais revelaram-lheque, na verdade, se tratava, que abominao, de um gamb. A despeitodas aparncias, tambm entre ns grande a normatividade. Decerto, eapesar do atributo totmico que os ingleses nos conferem, alguns france-ses no comem r nunca; porm, no conheo nenhum que coma cobraordinariamente. Comer ou no comer rs depende da variabilidade dasescolhas individuais no interior de uma norma aceita ou da acessibili-dade do animal; no comer cobras depende de um interdito cultural, que implcito mas nem por isso deixa de orientar nossas decises. Insistir

  • ESTRUTURA OU SENTIMENTO: A RELAO COM O ANIMAL NA AMAZNIA 35

    sobre as determinaes morais e individuais das condutas talvez permitarestituir toda a complexidade do real; seria tambm tornar penosa, se noimpossvel, a ambio antropolgica de dar um sentido a comportamen-tos disparatados, mas que apresentam certa coerncia quando tomadostodos juntos no seio de uma determinada comunidade.

    O mal-estar conceitual invocado por Erikson para qualificar o esta-do de esprito do caador amaznico parece-me, portanto, prefervel m conscincia, pelo menos em nome dos argumentos cognitivos j con-siderados. No estou contudo persuadido de que a adoo de filhotes decaa, na Amaznia, possa ser considerada sempre e em toda parte comouma forma de compensao destinada a dissipar esse embarao psicol-gico. Com efeito, comum se tratar os humanos de maneira idntica: nasguerras inter e intratribais, as mulheres e os filhos dos inimigos mortosso capturados e integrados s famlias dos vencedores, geralmente semreservas nem discriminao. Ora, a julgar pelo exemplo jvaro, esta prti-ca no procede absolutamente do desejo de fornecer aos inimigos umacontrapartida pelas vidas que lhes foram tiradas; pelo contrrio, o raptode crianas a expresso de uma filosofia da predao, segundo a qual aapropriao junto a outrem de substncias, identidades e pessoas a con-dio necessria para a perpetuao do si (Descola 1993a: cap. 17; 1993b).Que, a despeito dos benefcios simblicos e sociais que proporciona, ohomicdio de um inimigo possa suscitar sentimentos ambivalentes, osJvaro no discordariam, e dizem do guerreiro vitorioso que ele prprioest um pouco morto e perigoso para os seus em funo de seu ato,devendo, por essa razo, submeter-se a um tratamento ritual longo e rigo-roso antes de retomar seu lugar entre os vivos ordinrios. O exemplo jva-ro est longe de ser nico: muitas sociedades amaznicas entendem queo homicida, penetrado pelo sangue ou pela alma da vtima, sofre umatransformao corporal suficientemente perigosa para acarretar a mortecaso no cumpra rpido os ritos adequados4. Em todos esses casos, asconseqncias da violncia contra outrem voltam-se ento contra si e demodo algum implicam a idia de que se possa cair em dvida. O que valepara a morte de um homem deveria valer a fortiori para a morte de umanimal, e isso me parece excluir a hiptese de que, em um bom nmerode sociedades amaznicas, a domesticao da caa possa ser aparentadacom uma forma de compensao.

    Fundamentar a relao com os animais caados na generalizao deum dilema moral proibir-se de compreender as modalidades muitodiversas que a relao entre caadores e presas pode assumir na Amaz-nia. Com efeito, uma vez que se conferem propriedades culturais aos ani-

  • ESTRUTURA OU SENTIMENTO: A RELAO COM O ANIMAL NA AMAZNIA36

    mais, as relaes estabelecidas com eles so antes de tudo relaes depessoa a pessoa, ou seja, so relaes sociais, e me parece que esseaspecto social que deve ser privilegiado na anlise5. Ora, no interior deum quadro geral relativamente uniforme na escala da Amaznia, a socio-logia da relao com os animais pode ser dita de vrios modos. Esse qua-dro geral, como j foi observado h muito tempo, aquele de uma alian-a contratual que vincula os humanos aos animais ou, s vezes, a seusrepresentantes (Zerries 1954). Mais recentemente, percebeu-se que mui-to freqentemente essa aliana era conceituada sob a forma de uma rela-o entre afins e que era marcada pela mesma rede de obrigaes queaquela caracterstica das relaes entre parentes por aliana (Descola1983; Erikson 1984)6.

    Representar os animais caados como afins no tem nada de sur-preendente no contexto amaznico. A predominncia, a, do cognatismoe dos sistemas de parentesco de tipo dravidiano tem como efeito a redu-o do registro das categorias sociais a uma grande dicotomia organiza-da em torno do eixo que separa a consanginidade da afinidade. Dada adiversidade das situaes em que devem ser empregadas, essas duascategorias se tornam operadores lgicos relativamente abstratos que per-mitem denotar relaes mais englobantes do que aquelas que definemos laos de consanginidade e afinidade efetivamente atestados no seiodo grupo local. esse particularmente o caso da afinidade, relao inst-vel e freqentemente conflituosa, que oferece ento um suporte metaf-rico excelente para qualificar as relaes com o exterior, especialmentecom os inimigos prximos ou longnquos. Alm disso, o dualismo engen-drado pelo sistema dravidiano temperado por uma tendncia muitogeral para manipular as atitudes e as terminologias de parentesco, demodo a minimizar os laos de afinidade no seio do grupo local em pro-veito de uma consanginidade ideal, e a sublinh-los, contrariamente,nas relaes com o exterior. A relao de afinidade torna-se, por conse-guinte, cada vez mais abstrata e esquemtica, medida que se afastado centro onde efetivamente ela orienta a aliana de casamento (Vivei-ros de Castro 1993; para o caso jvaro, Taylor 1983 e Descola 1993b).Seria previsvel que essa categoria genrica da afinidade servisse demolde mental para a conceituao da relao com a caa, assim comoseria previsvel que os animais de estimao fossem considerados antescomo consangneos, a exemplo dos filhos dos inimigos raptados paraserem integrados famlia do homicida de seus pais. O animal de caaapresenta-se assim na Amaznia, seja como um alter ego em posio deexterioridade quando caado, seja como demasiado idntico a si para

  • ESTRUTURA OU SENTIMENTO: A RELAO COM O ANIMAL NA AMAZNIA 37

    ser comido quando domesticado uma distino de estatuto que formu-lei recentemente (Descola 1994) nos termos de uma homologia estruturalclssica:

    caa : animais de estimao : : inimigos : crianas cativas : : afins :consangneos

    Todavia, no mbito desse quadro muito geral, coexistem vrios sis-temas de relaes mais particularizados. Posso discernir pelo menos trs,que chamarei reciprocidade, predao e ddiva, e que correspondem atrs modalidades lgicas, e tambm sociolgicas, de integrar a oposiouniversal entre eu e outrem. A reciprocidade quer que toda vida animalseja compensada (freqentemente por uma ou outra forma de vitalidadehumana); a predao implica que nenhuma contrapartida seja oferecidapelos humanos contra uma vida animal; finalmente, a ddiva significaque os animais oferecem sua vida aos humanos de maneira deliberada esem nada esperar em troca7.

    Os Desana, grupo de lngua tukano do noroeste amaznico, forne-cem a mais clssica ilustrao etnogrfica do modelo da reciprocidade(Reichel-Dolmatoff 1976). Esta aqui fundada sobre um princpio deequivalncia entre homens e animais no seio de um cosmos concebidocomo um circuito fechado homeosttico. Na medida em que a energiavital genrica presente na biosfera existe em quantidade finita, as trocasinternas devem ser organizadas de modo a que as retiradas efetuadaspelos homens, especialmente por ocasio da caa, possam ser reinjeta-das no circuito. O feedback energtico assegurado, principalmente,pelo retorno das almas dos defuntos ao Senhor dos Animais que as con-verte em caa. Entre os Desana, portanto, os humanos e os animais sosubstitutos uns dos outros e possuem um estatuto equivalente na comu-nidade de energia do mundo vivo; juntos, eles contribuem para manter oequilbrio dos fluxos, j que suas funes so reversveis nessa busca deuma homestase perfeita.

    O modelo da predao particularmente manifesto no caso das tri-bos Jvaro, que no oferecem nenhuma compensao pela vida da caa.Certamente, s vezes acontece que os excessos sejam punidos: os Senho-res dos Animais podem aplicar represlias sob a forma de picadas decobra ou acidentes provocados na floresta queles que teriam violadoas regras de respeito e moderao relativas atividade de caa; mas nose trata em absoluto de um processo regular de troca voluntria fundadosobre uma paridade dos parceiros. Diferentemente dos Tukano, aqui ne-nhuma idia de circulao de energia vem conferir uma aparncia deeqidade a essa atitude predatria para com os animais de caa, dissimu-

  • ESTRUTURA OU SENTIMENTO: A RELAO COM O ANIMAL NA AMAZNIA38

    lada sem precaues excessivas por trs de uma simblica da aliana naqual uma das partes jamais honra suas obrigaes.

    Finalmente, o modelo da ddiva bem ilustrado pelas tribos Arua-que que habitam o piemonte amaznico dos Andes centrais do Peru(Weiss 1975; Renard-Casevitz 1972). As espcies caadas, particularmen-te os pssaros, dependem, quanto ao essencial, de uma raa de bons esp-ritos que os Aruaque chamam de nossa gente, ou nossos congne-res, e que so reputados de demonstrarem boa disposio para com osndios. Matar pssaros assimilado a uma metempsicose provocada:depois de o caador ter-lhe pedido sua roupa, o pssaro voluntaria-mente oferece seu invlucro carnal flecha, preservando seu duplo ima-terial que se reencarna imediatamente em um corpo idntico. No seincorre ento em nenhum dano, e este ato de benevolncia no pede con-trapartida. Com efeito, no plano ontolgico, os bons espritos e seus ava-tares animais so idnticos aos humanos: so considerados como paren-tes muito prximos, consangneos ou afins segundo as espcies, de talmodo que a ddiva de seus despojos percebida como uma simples pro-va do dever de generosidade que se impe entre pessoas estreitamenteprximas pelo parentesco.

    Em que esses modelos de comportamento diante dos animais mani-festam uma dimenso sociolgica? Justamente no fato de revelarem umaatitude mais geral perante outrem, humanos e no-humanos a confundi-dos totalmente, tpica de cada uma das culturas em questo. Admito debom grado que a prxis de uma sociedade no poderia ser reduzida a umesquema nico e que pertence utopia uma comunidade na qual as con-dutas fossem regidas exclusivamente pela oblao ou captura. O obser-vador que mergulha por muito tempo em uma cultura no pode contudodeixar de perceber que seus membros orientam seus atos em funo deum pequeno nmero de valores que muito freqentemente permanecemno formulados. sempre arriscado colocar uma etiqueta sobre essesvalores, mas esta a servido de todo procedimento analtico e a condi-o para explicitar o que poderia ser chamado de estilo distintivo, ouethos de uma sociedade.

    Assim, a organizao social dos Desana, como das outras tribosTukano do Vaups, fundada sobre uma lgica da paridade completa-mente homloga quela que rege as relaes com os animais. A exoga-mia lingstica e a rede de circulao dos artefatos geram uma situaona qual cada tribo, cada grupo local, se percebe como um elemento noseio de um metassistema regional, elemento que deve sua perenidadematerial e ideal s trocas regradas com as outras partes do todo (Jackson

  • ESTRUTURA OU SENTIMENTO: A RELAO COM O ANIMAL NA AMAZNIA 39

    1983; Hugh-Jones 1993). Inversamente, nos grupos Jvaro, o estado deguerra generalizado exprime a necessidade de compensar cada mortepela captura junto a outrem de identidades reais o rapto de mulherese crianas ou virtuais as cabeas-trofus, peas centrais de um dis-positivo ritual de produo de filhos (Taylor 1993; Descola 1993b). Certa-mente, a obrigao da vingana acaba por restaurar o equilbrio; noentanto, compreender-se- sem dificuldade que as represlias dos inimi-gos sejam uma conseqncia prevista, mas no ativamente procurada,dos atos de violncia cometidos contra eles. A predao mtua assimum resultado no intencional de uma rejeio geral da reciprocidade,mais do que uma troca deliberada de vidas humanas atravs de umcomrcio belicoso. Por fim, embora a lgica da ddiva seja mais difcil dese aplicar de modo sistemtico nas peripcias cotidianas da vida social, impressionante verificar a que ponto os grupos Aruaque subandinos seesforam para minimizar em seu seio as oposies entre o eu e o outro. o que testemunham de modo particularmente claro os Amuesha, que, aexemplo de Aristteles, consideram que o amor constitui a fonte e o prin-cpio de existncia de tudo o que h. Distinguem dois tipos de amor: mue-reets significa a ddiva de si na criao da vida e caracteriza a atitudedas divindades e dos lderes religiosos em uma relao assimtrica;enquanto morrenteets denota o amor mtuo indispensvel a qualquersociabilidade e se exprime por uma generosidade permanente, isenta declculo e previso de retribuio (Santos Granero 1994). Como no seimpressionar aqui, tambm, com a estreita correspondncia entre o trata-mento da caa e o tratamento dos humanos?

    Reciprocidade, predao e ddiva constituem trs formas de relaoentre os humanos e os animais que, ao menos em duas delas, parecemdissimular, sob a aparncia de uma relao social livremente consentida,a violncia efetiva exercida pelo caador contra a caa. Errar-se-ia,porm, vendo a uma astcia da razo selvagem destinada a tornar supor-tvel a idia de matar seres dos quais tudo nos aproxima, em suma, umaforma de hipocrisia coletiva e inconsciente que transformaria a necessi-dade de destruir e incorporar o vivo em uma mentira partilhada por aque-les que a esto enredados e por suas vtimas. Errar-se-ia, primeiramente,porque certas sociedades amaznicas, como os Jvaro, no experimen-tam absolutamente a necessidade de dissimular para si mesmas a natu-reza assimtrica de sua relao com a caa. A m-f que manifestam aofingirem ter com ela uma relao igualitria de afinidade sem contudojamais satisfazerem as obrigaes de reciprocidade que uma tal relaoimplica comandada pelo medo de v-la desaparecer, no por um sen-

  • ESTRUTURA OU SENTIMENTO: A RELAO COM O ANIMAL NA AMAZNIA40

    timento qualquer de culpa8. A violncia, aqui, manifesta e livrementeassumida. Errar-se-ia ainda porque uma tal perspectiva coloca em dvi-da que os amerndios possam acreditar suficientemente no que dizempara agir de acordo com o que pensam. Ora, levando-se a srio o queenunciam os Desana, os Ashaninka, os Matsiguenga ou os Amuesha,deve-se admitir que matar um animal que eu creio que v reencarnarimediatamente, no matar, mas ser o agente de uma metamorfose;igualmente, matar um animal que eu creio poder substituir ao fim poralmas humanas, menos matar do que aceitar o adiantamento de umavida. A violncia desaparece aqui no porque seja recalcada, mas por-que no poderia ser efetiva em cosmologias concebidas como sistemasfechados nos quais a conservao do movimento dos seres e das coisasexige que as partes troquem constantemente de posio.

    Traduo de Tnia Stolze Lima

    Recebido em 19 de maio de 1997

    Aprovado em 16 de junho de 1997

    Philippe Descola diretor de estudos da cole des Hautes tudes en Scien-ces Sociales e membro do Laboratoire dAnthropologie Sociale, Paris. Recen-temente, publicou Les Lances du Crpuscule (1994) e, com G. Plsson, Natu-re and Society (1996).

  • ESTRUTURA OU SENTIMENTO: A RELAO COM O ANIMAL NA AMAZNIA 41

    Notas

    1 Quanto ao tratamento do animal, ver, por exemplo, a diferena entre acaa na Europa meridional (Bernardina 1996) e a caa de tradio germnica(Hell 1994).

    2 Tomo de Luc Ferry (1992:100-101) esta apresentao da posio humanista.

    3 claro que isso no quer dizer que uma antropologia moral universal noseja desejvel: o relativismo que invoco aqui provm da constatao emprica,no da afirmao de um valor positivo.

    4 Ver, por exemplo, para os Yanomami (Albert 1985); para os Arawet (Vivei-ros de Castro 1992); para os Krah (Carneiro da Cunha 1978); para os Apinay(Da Matta 1976).

    5 O fato de ser formulada em termos abstratos, no torna uma relao socialmenos irrigada por um conjunto de afetos, mas, se o procedimento analtico oreconhece facilmente, isso no implica que se seja obrigado a dar a essa dimen-so um papel distintivo ou explicativo.

    6 Roberte Hamayon (1990) chegou a concluses similares para a Sibria.

    7 Tambm Erikson (1984:108-113) isola na Amaznia trs maneiras de resol-ver o mal-estar conceitual do caador: pela ddiva, pela negociao e pelaaliana. Segundo ele, tais tentativas seriam pouco satisfatrias, por deixarem sub-sistir uma parte de culpabilidade; da a criao de filhotes da caa. Parece-me,contudo, que, diferena das trs modalidades que eu proponho, as solues deErikson no se situam em um mesmo plano analtico: a negociao englobadapela reciprocidade, visto que esta que constitui sua condio prtica, enquantoa aliana englobante, j que forma o quadro geral da relao de afinidade [rela-tion affinale] com o animal de caa.

    8 Poder-se-ia dizer o mesmo dos Yanomami (Albert 1985:326-335), que vema caa de duplos animais dos humanos como uma forma de predao contra comu-nidades longnquas; ou dos Arawet (Viveiros de Castro 1986:206-209), que colo-cam a caa e a guerra sob o mesmo registro de atividades desejveis.

  • ESTRUTURA OU SENTIMENTO: A RELAO COM O ANIMAL NA AMAZNIA42

    Referncias bibliogrficas

    ALBERT, B. 1985. Temps du Sang, Tempsdes Cendres. Reprsentation de laMaladie, Systme Rituel et EspacePolitique chez les Yanomami duSud-est (Amazonie Brsilienne).Tese de Doutorado, Paris-X.

    ___ . 1993. LOr Cannibale et la Chutedu Ciel. Une Critique Chamaniquede lconomie Politique de la Na-ture (Yanomami, Brsil). LHomme,126-128:349-378.

    RHEM, K. 1996. The Cosmic FoodWeb: Human-Nature Relatedness inthe Northwest Amazon. In: P. Des-cola e G. Plsson (orgs.), Nature andSociety: Anthropological Perspec-tives. London: Routledge. pp. 185-204.

    BALE, W. 1993. Indigenous Transfor-mations of Amazonian Forests: AnExample from Maranho, Brazil.LHomme, 126-128:231-254.

    BERNARDINA, S. Dalla. 1996. LUtopiede la Nature. Chasseurs, cologisteset Touristes. Paris: Imago.

    CAREY, S. 1985. Conceptual Change inChildhood. Cambridge, Mass.:Bradford Books for the MIT Press.

    ___ e SPELKE, E. 1994. Domain-Specif-ic Knowledge and ConceptualChange. In: L. Hirschfeld e S. A.Gelman (orgs.), Mapping the Mind.Domain Specificity in Cognition andCulture. Cambridge: CambridgeUniversity Press. pp. 169-200.

    CARNEIRO DA CUNHA, M. 1978. OsMortos e os Outros. Uma Anlise doSistema Funerrio e da Noo dePessoa entre os ndios Krah. SoPaulo: Editora Hucitec.

    CLASTRES, P. 1973. De la Torture dansles Socits Primitives. LHomme,13(3):114-120.

    DA MATTA, R. 1976. Um Mundo Dividi-do. A Estrutura Social dos ndiosApinay. Petrpolis, RJ: EditoraVozes.

    DELORT, R. 1984. Les Animaux Ont uneHistoire. Paris: Le Seuil.

    DESCOLA, P. 1983. Le Jardin de Coli-bri. Procs de Travail et Catgoriza-tions Sexuelles chez les Achuar delEquateur. LHomme, 23(1):61-89.

    ___ . 1985. De lIndien Naturalis lIndien Naturaliste: Socits Ama-zoniennes sous le Regard de lOcci-dent. In: A. Cadoret (org.), Protec-tion de la Nature. Histoire et Idolo-gie. Paris: LHarmattan. pp. 221-235.

    ___ . 1986. La Nature Domestique.Symbolisme et Praxis dans lcolo-gie des Achuar. Paris: Editions de laMaison des Sciences de lHomme.

    ___ . 1993a. Les Lances du Crpuscule.Relations Jivaros. Haute Amazonie.Paris: Plon.

    ___ . 1993b. Les Affinits Slectives.Alliance, Guerre et Prdation danslEnsemble Jivaro. LHomme, 126-128:171-190.

    ___ . 1994. Pourquoi les Indiens dA-mazonie nOnt-Ils pas Domestiqule Pcari? Gnalogie des Objets etAnthropologie de lObjectivation.In: B. Latour e P. Lemonnier (orgs.),De la Prhistoire aux Missiles Balis-tiques. LIntelligence Sociale desTechniques. Paris: La Dcouverte.pp. 329-344.

    ERIKSON, P. 1984. De lApprivoisement lApprovisionnement: Chasse, Al-liance et Familiarisation en Ama-zonie Amrindienne. Techniqueset Cultures, 9:105-140.

    FERRY, L. 1992. Le Nouvel Ordre colo-

  • ESTRUTURA OU SENTIMENTO: A RELAO COM O ANIMAL NA AMAZNIA 43

    gique. LArbre, lAnimal et lHomme.Paris: Grasset.

    FRAZER, J. G. 1922. The Golden Bough.A Study in Magic and Religion(Abridged Edition). London:MacMillan.

    GRENAND, P. 1980. Introduction l-tude de lUnivers Waypi: Ethno-cologie des Indiens du Haut-Oy-apock (Guyane Franaise). Paris:SELAF/CNRS.

    HAMAYON, Roberte. 1990. La Chasse lme. Esquisse dune Thorie duChamanisme Sibrien. Nanterre:Socit dEthnologie.

    HELL, B. 1994. Le Sang Noir. Chasse etMythes du Sauvage en Europe.Paris: Flammarion.

    HUGH-JONES, S. 1993. Clear Descentor Ambiguous Houses? A Reexami-nation of Tukanoan Social Organi-zation. LHomme, 126-128:95-120.

    ___ . 1996. Bonnes Raisons ou Mau-vaise Conscience? De lAmbiva-lence de Certains Amazoniens en-vers la Consommation de Viande.Terrains, 26:123-148.

    JACKSON, J. 1983. The Fish People. Lin-guistic Exogamy and TukanoanIdentity in the Northwest Amazon.Cambridge: Cambridge UniversityPress.

    JARA, F. 1991. El Camino del Kumu:Ecologa y Ritual entre los Akuri deSurinam. Utrecht: ISOR.

    REGAN, T. 1983. The Case for AnimalRights. Berkeley: University of Cali-fornia Press.

    REICHEL-DOLMATOFF, G. 1976. Ama-zonian Cosmos. The Sexual and Re-ligious Symbolism of the Tukano In-dians. Chicago: The University ofChicago Press.

    RENARD-CASEVITZ, F. M. 1972. LesMatsiguenga. Journal de la So-cit des Amricanistes de Paris,61:215-253.

    ___ . 1991. Le Banquet Masqu. UneMythologie de ltranger chez lesIndiens Matsiguenga. Paris: Lierre& Coudrier.

    RIVAL, L. 1996. Blowpipes and Spears:The Social Significance of HuaoraniTechnological Choices. In: P. Des-cola e G. Plsson (orgs.), Nature anSociety: Anthropological Perspec-tives. London: Routledge. pp. 145-164.

    SANTOS GRANERO, F. 1994. El Poder delAmor. Poder, Conocimiento y Mora-lidad entre los Amuesha de la SelvaCentral del Per. Quito: EdicionesAbya-Yala.

    SINGER, P. 1989. Animal Liberation.New York: Random House.

    TAYLOR, A. C. 1983. The Marriage Al-liance and its Structural Variationsin Jivaroan Societies. Social Sci-ence Information, 22(3):331-353.

    ___ . 1993. Les Bons Ennemis et lesMauvais Parents. Le Traitement delAlliance dans les Rituels de Chas-se aux Ttes des Shuar (Jivaro) delEquateur. In: E. Copet-Rougier eF. Hritier-Aug (orgs.), Les Com-plxits de lAlliance: IV. Economie,Politiques et Fondements Symboli-ques. Paris: Editions des ArchivesContemporaines. pp. 73-105.

    THOMAS, K. 1983. Man and the NaturalWorld. Changing Atitudes in Eng-land (1500-1800). London: AllenLane.

    VAN DER HAMMEN, M. C. 1992. ElManejo del Mundo. Naturaleza ySociedad entre los Yukunas de la

  • ESTRUTURA OU SENTIMENTO: A RELAO COM O ANIMAL NA AMAZNIA44

    Amazonia Colombiana. Bogot:Tropenbos.

    VIVEIROS DE CASTRO, E. 1986.Arawet. Os Deuses Canibais. Riode Janeiro: Jorge Zahar/Anpocs.

    ___ . 1992. From the Enemys Point ofView. Humanity and Divinity in anAmazonian Society. Chicago/Lon-don: The University of ChicagoPress.

    ___ . 1993. Alguns Aspectos da Afini-dade no Dravidianato Amaznico.In: M. Carneiro da Cunha e E. Vi-veiros de Castro (orgs.), Amaznia:Etnologia e Histria Indgena. SoPaulo: NHII/USP. pp. 149-210.

    ___ . 1996. Os Pronomes Cosmolgi-cos e o Perspectivismo Amerndio.Mana: Estudos de Antropologia So-cial, 2(2):115-144.

    WEISS, G. 1975. Campa Cosmology. TheWorld of a Forest Tribe in SouthAmerica. New York: American Mu-seum of Natural History.

    ZELENIN, D. 1952. Le Culte des Idolesen Sibrie. Paris: Payot.

    ZERRIES, O. 1954. Wild- und Bushgeis-ter in Sdamerika. Eine Unter-suchung Jgerzeitlicher Phnome-ne im Kulturbild SdamerikanisherIndianer. Wiesbaden: Studien zurKulturkunde, 11(2).

  • ESTRUTURA OU SENTIMENTO: A RELAO COM O ANIMAL NA AMAZNIA 45

    Resumo

    Uma certa tradio antropolgica tendea interpretar a simblica da caa comouma maneira de exprimir a ambivaln-cia, at mesmo a m conscincia, quetodos os humanos sentiriam ao mata-rem animais. Se essa interpretao pa-rece legtima no quadro das sociedadesmodernas, marcadas desde o sculoXIX por uma evoluo profunda dassensibilidades nesse domnio, ela noparece s-lo para as sociedades pr-modernas, sobre as quais se pode duvi-dar que partilhem a mesma moral queos cidados euro-americanos do fim dosculo XX. O exemplo do tratamento dacaa na Amaznia indgena mostra quea relao com o animal ali menos de-terminada por uma gama de sentimen-tos universais que por esquemas decomportamento enraizados nos siste-mas cosmolgicos, ontolgicos e socio-lgicos caractersticos dessa rea cultu-ral.

    Abstract

    A certain anthropological traditiontends to interpret the symbolism ofhunting as a way of expressing the am-bivalence, or even the troubled con-science, that all humans are supposedto feel upon killing animals. While thisinterpretation appears legitimate in theframework of modern societies, markedsince the 19th century by a profoundevolution in the sensitivities pertainingto this domain, the same does not ap-pear to be true for pre-modern soci-eties, who may very well not share thesame morals as late 20th-century Euro-American citizens. The way indigenouspeoples deal with hunting in the Ama-zon illustrates how the relationship toanimals there is determined less by arange of universal feelings than by be-havioral schemata rooted in this cultur-al areas characteristic cosmological,ontological, and sociological systems.