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TIBÉRIO FABIAN SANTOS ESTRUTURA, SIGNO E JOGO NA CONSTRUÇÃO DO ROMANCE AVALOVARA, DE OSMAN LINS CURITIBA 2012

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ESTRUTURA, SIGNO E JOGO NA CONSTRUÇÃO DO ROMANCE

AVALOVARA, DE OSMAN LINS

CURITIBA

2012

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TIBÉRIO FABIAN SANTOS

ESTRUTURA, SIGNO E JOGO NA CONSTRUÇÃO DO ROMANCE

AVALOVARA, DE OSMAN LINS

Dissertação apresentada como requisito para a obtenção do Grau de Mestre ao Curso de Mestrado em Teoria Literária do Centro Universitário Campos de Andrade – UNIANDRADE. Orientadora: Brunilda T. Reichmann, PhD

CURITIBA

2012

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AGRADECIMENTOS

Agradeço à minha orientadora professora Dra. Brunilda T. Reichmann pela

confiança em mim depositada, por sua presteza e dedicação ao acompanhar a

feitura deste trabalho dissertativo, sem as quais o mesmo não poderia ser levado a

termo.

Pelo mesmo motivo, agradeço às professoras Dra. Dilma B. Juliano e Dra.

Anna S. Camati; bem como, por terem aceitado gentilmente compor a banca

avaliadora do presente trabalho.

Por fim, agradeço à Jô pelo apoio logístico.

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SUMÁRIO

LISTA DE FIGURAS ........................................................................................................... v

RESUMO .............................................................................................................................. vi

ABSTRACT ......................................................................................................................... vii

INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 01

1 OSMAN LINS, UMA VIDA VOLTADA À PALAVRA ....................................................... 04

1.1 OSMAN LINS: PERCURSOS DA PROSA .................................................................... 04

1.2 O TEATRO DE OSMAN LINS ....................................................................................... 12

1.3 VEREDAS E CAMINHOS DA PRODUÇÃO CRÍTICA OSMANIANA ............................. 19

2 AVALOVARA, VORA SEM PONTO DE BASTA ............................................................. 27

2.1 A DIMENSÃO ORIGINÁRIA DA LINGUAGEM EM AVALOVARA ................................. 27

2.2 AVALOVARA: ENGENHO E PALAVRA ........................................................................ 35

2.3 INTERTEXTUALIDADE E ESTRUTURA EM AVALOVARA .......................................... 43

3 AVALOVARA, VOO EM ASCENSO INFINITO ............................................................... 58

3.1 O ROMANCE COMO POTÊNCIA DESAPODERADORA DA LINGUA ......................... 58

3.2 BARTHES E A “ASSIMBOLIA” .................................................................................... 70

3.3 O RASTRO, A ESPIRAL E O QUADRADO ................................................................... 85

4 AVALOVARA, VERBO A CÉU ABERTO: A VIA, A PALAVRA, A VIDA ......................... 94

4.1 A RADICAL DIFERENÇA: DERRIDA E AS MARCAS DA LINGUAGEM ....................... 94

4.2 TRAÇO E IDENTIFICAÇÃO: UMA ABORDAGEM LACANIANA À LETRA .................... 99

4.3 MARCA, JOGO E LETRA NA ESCRITURA DE AVALOVARA ..................................... 103

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 116

REFERÊNCIAS ................................................................................................................. 120

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – “Quadrado Sator” e espiral: modelo do romance Avalovara, de Osman Lins .. 28

Figura 2 – Giuseppe Arcimboldo, Vertemnu ...................................................................... 35

Figura 3 – Capa de uma das edições de Avalovara. Editora Melhoramentos, 1973 ............. 35

Figura 4 – Deus Jano ......................................................................................................... 43

Figura 5 – Tao ................................................................................................................... 43

Figura 6 – William Blake, Newton ...................................................................................... 43

Figura 7 – Giuseppe Arcimboldo, Verão ............................................................................ 43

Figura 8 – Giuseppe Arcimboldo, Vegetais .................................................................. 57

Figura 9 – Giuseppe Arcimboldo, O cozinheiro ........................................................... 70

Figura 10 – Quadrado Sator .......................................................................................... 70

Figura 11 – As meninas, de Diego Velásquez ........................................................ 115

Figura 12 – Giuseppe Arcimboldo, O bibliotecário ................................................. 115

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RESUMO

Convergindo em campo comum as analíticas da linguagem operadas por Roland Barthes e Jacques Derrida, o presente estudo tem por objetivo passar em revista as marcas de significação dispostas no romance Avalovara de Osman Lins. Tomando por base a riqueza intertextual do seu discurso narrativo, visa-se aqui trabalhar a sua palavra naquilo que ela traz de mais acentuado: um traço de sentido que se notabiliza por sua cursiva abertura. Todo o jogo semântico disposto no interior do romance será submetido às fortunas teóricas de ambos os pensadores naquilo que trazem de mais pertinente ao dimensionamento da linguagem e as suas operações de significação. Lançando mão de um horizonte conceitual que une a mais aguda inflexão filosófica às condições de sentido acenadas desde o interior da própria letra ficcional do romance, constrói-se um percurso no qual as marcas linguísticas sopesam não como gestos imobilizados, mas como traços móveis de um dizer que em si não pode guardar-se em instância última. Como emblema máximo dessa movência no interior do romance está a figura da espiral: voluta que não nos permite ver onde se limitam o fim e o começo da narrativa. É ela, atrelada aos termos “indecidibilidade” e “neutralidade”, o primeiro caro a Jacques Derrida e o segundo, a Roland Barthes, que conflui guiar este trabalho dissertativo. Palavras-chave: Significação. Linguagem. Movência. Neutro. Indecidibilidade

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ABSTRACT

Converging to common field the analytics of the language operated by Roland Barthes and Jacques Derrida, the present study has as objective to analyse the significant marks present in the novel Avalovara, by Osmar Lins.Taking the intertextual richness of his narrative speech as basis, it aims at working at his word where it brings the most stressed trace of sense that is perceived in its cursive opening. All the semantic game used in the romance will be submitted to theoretical richness of both thinkers, who bring the most relevant to the language size and its meaningful operations. By using a conceptual horizon that links the most acute philosophical inflexion to the meaning, since the context of the fictional genre of the romance builds up a trajectory in which the linguistics marks stand out not as immobilized gestures, but as mobile traces of a saying that cannot keep itself in the last possibility. As a maximum emblem of this movement in the romance is the figure of a spiral: it is always changing so that it does not permit the reader to detect the limits of the end and the beginning of the narrative., which connected to the terms undecisiveness and neutrality,the first relevant to Jacques Derrida and the second to Roland Barthes, guides this dissertation. Keywords: Meaning. Language. Neutral. Undecisiveness.

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INTRODUÇÃO

Indo da montagem mais fabril ao recurso mais abstrato, as linhas de

Avalovara trilham a linguagem de modo peculiar. Tomada por aquilo que não retém

sentido ou se poderia nominar de antemão, a narrativa de Osman Lins faz do próprio

ato escritural um recurso aberto à significação. Figurado pela espiral fusionada a um

quadrado composto por tipos anagramáticos, o romance se investe da aventura

existencial das suas personagens. Contudo, não se trata da revelação de um

caminho iluminado pela marca da escritura; ao contrário, é da tensão sem fim entre

vida e narrativa que se cumprirá o curso do romance.

O estofo teórico, aqui utilizado, compõe-se basicamente das falas

empreendidas por Roland Barthes e Jacques Derrida no tocante à revista analítica

que ambos fazem à linguagem e às suas possibilidades de significação – em

especial, os discursos que ambos dedicam à literatura e a sua condição de produzir

sentido no interior da palavra escrita. Outros pensadores somarão corpo a este

horizonte de escrutação analítica; à guisa de exemplo, citam-se os nomes de Michel

Foucault, Martin Heidegger e Jacques Lacan. A esta plêiade conjuntam-se

comentadores que mais diretamente trabalharam o horizonte compositor das obras

de Osman Lins: Regina Igel, Sandra Nitrini, Regina Dalcastagnè e Ana Luiza

Andrade são aqui os principais nomes. Faz-se menção especial a José Paulo Paes

e a Modesto Carone, que com artigos perspicazes contribuem à analítica dirigida ao

horizonte criacional osmaniano. Também de valor, são os outros artigos e

comentários aqui utilizados pertencentes aos demais analistas, que em mesmo nível

de acuro, dirigem-se a Osman Lins e a sua obra.

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No capítulo um, “Osman Lins, uma vida dirigida à palavra”, será apresentada

uma breve cronologia contendo as datas das publicações das suas obras e fatos

relevantes de sua vida. Bem como, neste mesmo espaço se empreende mostrar o

percurso que trilha a escrita osmaniana; indo das suas primeiras obras de talhe

narrativo mais tradicional até Avalovara e Rainha dos cárceres da Grécia; nas quais

a linguagem, seus desdobramentos e possibilidades se põem por assento central.

Ainda, neste mesmo capítulo será analisada a sua produção teatral, artigos e

ensaios críticos. Mais uma vez é a palavra em sua dimensão narrativa e literária que

se faz surgir aí como mote principal.

No segundo capítulo, “Avalovara, vora sem ponto de basta”, é a inflexão

originária da linguagem que se coaduna à prosa osmaniana. Olhar dirigido à palavra

que não se faz comum em nossos dias – haja vista privilegiarmos sobremaneira um

horizonte de linguagem que, no mais das vezes, é altamente instrumentalizado e

instrumentalizador – tal visada, principalmente por Heidegger resgatada em sua obra

intitulada A caminho da linguagem, fala-nos diretamente aos gregos pré-socráticos e

ao modo destes se haverem com o horizonte linguístico. Nesse mesmo capítulo, o

percurso narrativo contido no romance vai se deslindando pari passu com esse

momento originário de se haver com a palavra.

Sempre fazendo recurso a trechos do livro – isso se dará a ver ao longo de

todo o percurso da dissertação – o terceiro capítulo, “Avalovara, voo em Ascenso

infinito”, dispõe-se sobre a palavra em sua condição de “pura abertura”.

Por fim, o capítulo quarto, “Avalovara, verbo aberto em meio à significação”,

busca analisar a palavra literária contida no interior do discurso de Avalovara,

fazendo-se medir mais propositadamente desde um campo de significação, que

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disposto em sua condição móbil de ser, visa-se não como horizonte ultimador de

sentidos, mas como instância de apropriação fluida deste. Faz-se aí, de modo mais

direto, recurso ao discurso da pintura, ligando-o em semelhança ao pulso narrativo

de Avalovara. Afiguram-se como exemplos diretos desta condição, as faces

compósitas saídas das telas do pintor Giuseppe Arcimboldo, e o discurso

semiológico acerca do lugar da representação, ensejado pelo o quadro As meninas,

de Diego Velásquez.

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1 OSMAN LINS, UMA VIDA DIRIGIDA À PALAVRA

1.1 OSMAN LINS: PERCURSOS DA PROSA

Pernambucano, nascido em Vitória de Santo Antão a 05 de julho de 1924,

Osman Lins inicia a sua lida literária escrevendo contos para concursos. Seu conto

intitulado “O eco” é laureado com o terceiro lugar no Concurso Jornal de Letras.

Outro conto seu, “A doação”, granjeará o primeiro lugar no Concurso Minas-Brasil.

Colaborador regular do caderno literário do Diário de Pernambuco, lá publica outros

contos. Obtém ainda segundo lugar no concurso Livro de Contos de Atibaia, com o

livro Os sós.

No ano de 1955 lança seu romance O visitante; com ele recebendo o prêmio

Fábio Prado. Sua estrutura narrativa divide-se “em três partes definidas que

correspondem à trajetória do drama litúrgico cristão: o primeiro caderno coincide à

queda de Celina, o segundo à sua morte e o terceiro à ressurreição, por ocasião do

Natal” (LINS citado em ANDRADE, 1987, p. 87). O seu livro de contos, Os gestos,

lançado em 1957, é agraciado com o prêmio Monteiro Lobato. Em sua composição

“verifica-se que os personagens se distinguem ora por gestos rituais, ou esquemas

em que o verdadeiro sentido se perdeu ‘numa repetição estéril desprovida de

significado’, ora pelo gesto vivo, que regenera o gesto ritual” (ANDRADE, 1987, p.

77). Sua peça O vale sem sol, neste mesmo ano é “Destaque Especial” no Concurso

Cia. Tônia-Celi-Autran. Ainda nesse mesmo período, para o jornal O Estado de São

Paulo, escreve a coluna intitulada “Carta do Recife” – que posteriormente passará a

se chamar “Crônica do Recife”.

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Na Escola de Belas-Artes da Universidade do Recife, em 1960, conclui o

curso de Dramaturgia – tendo pertencido à sua primeira turma.

Em 1961, vai à França na qualidade de bolsista da Aliança Francesa.

Durante o período que lá permanece, atua como correspondente do Jornal do

Comércio, produzindo crítica teatral. É também neste período que sua peça Lisbela

e o prisioneiro estreia no Rio de Janeiro. No mesmo ano lança o romance O fiel e a

pedra, premiado pela União Brasileira de Escritores.

Em 1963 é encenada a peça Idade dos homens no teatro Bela Vista de São

Paulo, e Osman Lins lança o romance Marinheiro de primeira viagem, no qual narra

as suas experiências vividas na Europa. Trata-se da fase de transição entre os seus

livros anteriores, compostos de uma narrativa mais enraizada na tradição, e uma

nova forma de escrita literária, firmada mais efetivamente com o lançamento de

Nove, novena.

1965 é o ano da peça infantil Capa verde e o Natal (Prêmio Narizinho, dado

pela Comissão Estadual de Cultura de São Paulo); este também é o ano da peça

Guerra do cansa-cavalo (Prêmio Anchieta, Comissão Estadual de Teatro de São

Paulo).

O ano de 1966 é marcado pela publicação de Nove, novena – símbolo de

um novo momento em sua ficção.

Em 1969 é lançada a coletânea de ensaios intitulada Guerra sem

testemunhas: o escritor, sua condição e a realidade social. Nela, Osman Lins alude

criticamente à situação do escritor, os impasses e dúvidas deste, o universo

editorial, e a receptividade do público.

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No ano de 1970, já aposentado do trabalho burocrático que exerceu por

vários anos no Banco do Brasil, vai lecionar literatura brasileira na Faculdade de

Filosofia de Marília; nesse mesmo ano inicia a escrita de Avalovara. A experiência

com a docência lhe é traumática; dela nascerá um conjunto de textos críticos,

posteriormente reunidos sob o título: Do ideal e da glória: problemas inculturais

brasileiros.

Em 1973, alcança o título de doutor pela USP com a tese Lima Barreto, e o

espaço romanesco – publicada na forma de livro em 1975. O ano de 1973 traz ainda

a publicação de Avalovara. No ano de 1976, Osman Lins publica o romance A rainha

dos cárceres da Grécia.

A quatro mãos com sua esposa a escritora Julieta de Godoy Ladeira, fruto

de uma viagem feita por ambos ao Peru e à Bolívia, em 1977 nascerá o livro La Paz

existe?. O mesmo ano trará ainda o lançamento do livro infantil, O diabo na noite de

Natal, baseado no conto machadiano, “Missa do galo”. Neste período Osman Lins

também se volta à preparação de um novo romance: Uma cabeça levada em triunfo

– que restará inacabado por conta de sua morte.

Postumamente, sua esposa publica o livro Evangelho na taba: novos

problemas inculturais brasileiros, composto de artigos escritos e entrevistas

concedidas por Osman Lins.

Portanto, compreendido o período que vai de 1955, ano do lançamento do

romance O visitante, às suas últimas publicações: tem-se um caminho rumo a uma

transfiguração literária. Como já foi dito, inclui-se ai uma viragem iniciada mais

fortemente a partir de Marinheiro de primeira viagem; no qual se evidencia o modo

fragmentado de narrar. O livro também se notabiliza pela exploração literária das

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impressões existencializadas de um viajante, ao correr da geografia que trilha.

Sandra Nitrini, em Trans-figurações (2010), aponta-nos esta inclinação:

Osman Lins tomou providências de ordem poética: colocou a narração de viagem

na terceira pessoa, o que lhe permitiu falar de coisas muito íntimas mais à vontade

e aproximar o gênero viagem do gênero romance e centrou-se no transitório, no

único, no que não virá a repetir-se, ficcionalizando com tintas fortes sua própria

experiência. (p. 68-69)

Pode-se dizer que Marinheiro de primeira viagem é o espaço por excelência

que dará prévio aviso às inovações narrativas de Nove, novena; posteriormente,

redundado também em contribuições à experiência composicional de Avalovara.

Ressalte-se que a sua narrativa de “estrutura fragmentária não é aleatória, o livro

obedece a uma construção. As primeiras impressões se fundem com as últimas para

dar a ideia de um círculo, de uma fase não inscrita no segmento normal da vida”

(NITRINI, 2010, p. 71). A fragmentação e a circularidade perpassam toda a escrita

do livro. A personagem do viajante no início do relato está em um hotel em Lisboa, o

espaço marca também a etapa final da viagem; sendo justamente deste ponto em

fusão com o fim da jornada que o relato se vai narrar: “Daí para frente, o leitor

acompanhará a experiência da personagem em Paris e em outras cidades europeias

até fechar o círculo e deparar-se com ela em Lisboa, prestes a retornar ao Brasil”

(NITRINI, 2010, p. 71). Admirador das artes, a persona do viajante traz consigo a

peculiaridade de fruir “obras estilizadas, com traços, às vezes, incompletos,

inacabados e seu desprezo em face da perfeição das reproduções nos museus de

cera” (NITRINI, 2010, p. 74). Esta atitude refratária mostra-nos mais do que uma

simples resistência à “pasteurização cultural”; ela se coaduna também à cena

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cultural europeia em ebulição naquele momento – chamado à atenção de Osman

Lins:

O plano de atividades culturais deste especial bolsista da Aliança Francesa incluía,

também, entrevistas com escritores e artistas. Seus encontros com Michel Butor,

Robbe-Grillet, Jean-Luis Barrault e Vintila Horia transformados em matéria de

Marinheiro de primeira viagem, constitui um bom roteiro que ajuda a compor o

pensamento de Osman Lins sobre literatura e teatro. (NITRINI, 2010, p. 74-75)

O resultado é que a sua escrita não vai passar incólume às marcas do

nouveau roman. Embora negue diretamente a influência do estilo (agudamente

fragmentário e não linear), o fato é que, buscando renovar o eixo de sua produção

ficcional, direta ou indiretamente, Lins acaba por englobar alguns traços desta

corrente literária. Uma indicação disto – ainda que não seja absoluta, posto haver

também distinções marcantes entre ambas as obras – é alguma semelhança com o

livro de viagem de Michel Butor, Móbile. Tanto Marinheiro de primeira viagem,

quanto o livro de Butor:

[...] apresentam um perfil fragmentado, inserindo-se em um pressuposto básico da

estética moderna. Marinheiro de primeira viagem propõe-se a resgatar uma

experiência humana de viagem, através de um discurso fragmentado. Em Móbile, a

fragmentação é de outro teor: ela atinge o sujeito da enunciação. (NITRINI, 2010, p.

82)

Em Nove, novena, adensam-se os recursos narrativos antimiméticos. O

horizonte metalinguístico que ali se impõe, rege-se ao par com uma condição

poético-prosaica inovadora. As existencialidades das personagens tecem-se por

delicadas nuances. Paulo Paes, em posfácio ao livro (1994), ao comentar um dos

contos, “O pássaro transparente”, diz:

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Nos monólogos interiores de “O pássaro transparente”, misturam-se em zigzag o

passado e o presente do protagonista, um homem de meia idade bem posto na vida

mas existencialmente frustrado, ao passo que sua ex-namorada acaba por realizar

o sonho de juventude de ambos: partir para a Europa e lá desenvolver suas

aptidões artísticas. (p. 202)

No conto “Os confundidos”, a fronteira individual que separa marido e

esposa, costura-se narrativamente à indecisão; ao ponto de não mais sabermos

onde se posicionam as individualidades de um e outro: “Por permutação e confusão,

as terminações verbais ora separam em dois, ora fundem em um só ‘eu’ os dois

interlocutores da narrativa, ele a acusá-la de infidelidade, ela a defender-se do seu

ciúme doentio” (PAES, 1994, p. 202).

Em “Um ponto no círculo”: a sensorialidade corpórea de dois amantes une-

se a uma cronologia fusionada de tempos (passado/presente). Tendo como espaço

um quarto de pensão, o presente dos amantes mistura-se às reminiscências de uma

época remota: lembranças de um Brasil colônia – seiscentista. Homem e mulher, em

uma tarde de amor, são narrados pela poesia da palavra em um emaranhamento

“espaço-temporal” sempre indecidido. Salta daí uma condição, na qual o rigor do

pensamento invoca-se fundido a uma percepção onírica sem marcas e fronteira:

Dentro em pouco, descerei a escada, atravessarei o vestíbulo onde ninguém me

verá, ganharei a rua. Levarei entre os dedos flores geométricas e meu vestido será

como o de Ana da Áustria. E depois? Que exércitos, areias e detritos cobrirão esta

hora? Hoje, amanhã, sepultada ou não, ou evocada, ou esquecida, recuso-me a

existir só em meu rigor; ou só em minha desordem. Seja este momento, e assim

minha existência, os ângulos dos geômetras e os bichos do furacão. (LINS, 1994, p.

28-29)

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Esta indecidibilidade da palavra é muito importante para o projeto literário de

Avalovara – bem como o é para o percurso dissertativo que se vai aqui produzindo.

Tanto em Avalovara quanto em Nove, novena, há uma experimentação no interior

da escrita que se conduz poeticamente a uma espécie de “borramento significativo”.

Esta abordagem encetada ao campo da significação se põe ainda afeita a outros

estados da arte ligados à escrita osmaniana. O recurso se faz ver desde Marinheiro

de primeira viagem – tendo, a partir de Nove, novena, presença mais efetiva:

Pois o que se vê, nestes textos do escritor pernambucano, não é simplesmente o

movimento de sondagem psicológica das figuras, mas o arrojo da concepção

novelesca, a paixão construtiva, o uso de símbolos gráficos com função narrativa e,

não raro, o hermetismo resultante da nomeação poética de realidades

visceralmente ambíguas. (CARONE, 2004, p. 228)

Trata-se de uma palavra desde sempre indecidida em sua marca

significacional; uma escrita que não se faz de uma reta superficialidade em seu

dizer, mas sim se complexifica significativamente em meio ao tramado textual que a

produz; pouco se inflectindo em jogos de sentido simplistas para com o leitor. Nisso,

ambos os livros (Avalovara e Nove, novena) estendem-se em similaridade prosaica

com o último romance de Osman Lins: A rainha dos cárceres da Grécia. O poeta

José Paulo Paes, em artigo intitulado “O mundo sem aspas” (2004), diz-nos desse

talhe narrativo; que em si dispensa-se de uma significação baseada em um verismo

eminentemente especular: “Aqui já não se trata, como na ficção verista, de um único

espelho a refletir homologicamente as cenas de um mundo real para o qual está

voltado. Trata-se, mais bem, de um dispositivo de espelhos conjugados em que o

jogo de múltiplos reflexos põe em xeque não só a noção de hegemonia como de

realidade” (p. 293).

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Na figurada busca da personagem Abel pela plenitude (curso a se cumprir

em meio, cidades e amores), Avalovara pleiteia-se em metáfora da procura de uma

significação plena pela via da palavra. Armado de uma riqueza intertextual, o

romance cursa descrever-se em um leito narrativo que não cinge sobre si um

sentido último. Marcado pelo fazimento de uma significação movente, sua trama

textualiza-se ao construir um horizonte de personagens perpassado por uma

infinitude cosmogônica, invariavelmente contemplada pelo enigma da palavra. Toda

a polifonia cabida às vozes que lhe compõem, encaminham-no ao movimento sem

fim dos seus gestos de significação. Deste modo: a letra do romance monta-se de

um arranjo narrativo saído do ultrapassamento das suas próprias marcas de sentido.

Modesto Carone em seu artigo “Avalovara: precisão e fantasia” (2004), nota que:

[...] o nível psicológico pode ser ultrapassado pela tensão metafísica, capaz de

desvendar nexos menos devassáveis entre o eu, o outro e os objetos. Por isso não

é raro que, nele, se manifeste a passagem do psicológico puro ao experimental.

Isso significa que o fluxo psíquico das personagens é trabalhado em termos de

pesquisa no próprio universo da linguagem. (p. 228)

Em Avalovara, portanto, trata-se de trazer a linguagem ao primeiro plano do

texto; fazê-la marca conotativa de um dizer que resta sempre aberto aos

movimentos da significação; de manusear uma palavra que se opera poeticamente

dos hiatos de sentido imiscuídos à própria composição da narrativa: “Em termos

gerais, o romance é dominado pelo contraste entre rigor e fantasia, aqui enlaçados

numa aliança desconcertante. Pois o geometrismo da composição é justamente o

recurso capaz de canalizar o vôo livre da imaginação” (CARONE, 2004, p. 228).

Assim, por central em Avalovara está a linguagem em sua capacidade de se dizer

“sem fim”. Deambulando em meio ao movimento que marca inscrever a palavra em

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um jogo textual e significativo jamais cessado, paradoxalmente, o romance

metaforiza a sua contenção formal na figura Quadrado Sator (ver fig. 01). Na mesma

medida, a expansão incessada de sua letra, representada pela linha espiral que

transpassa o Quadrado Sator – sempre fusionada a ele, e a ele indecidida –,

insinua-se em lhe ser invariavelmente um constante horizonte de ultrapassamento.

1.2 O TEATRO DE OSMAN LINS

A incursão de Osman Lins na narrativa teatral marca-se inicialmente por três

peças: Os animais enjaulados, O cão do segundo livro e O vale sem sol. Mas o

resultado de O vale sem sol não lhe agrada:

Insatisfeito com sua incursão como dramaturgo, considerando-a deficiente,

matricula-se [...] no curso de dramaturgia da Escola de Belas Artes do Recife, onde

vem a ser aluno de Joel Pontes, de Hermilo Borba Filho e de Ariano Suassuna.

Numa entrevista, Osman Lins mencionará este último como professor da disciplina

de play-writer, que teria exercido uma possível influência sobre ele, no que diz

respeito às normas de composição de Lisbela e o prisioneiro. (NITRINI, 2010, p. 58)

Primeira peça a receber reconhecimento mais amplo do público, Lisbela e o

prisioneiro (de molde narrativo ainda tradicional), pode ser apreciada tanto por um

espectador que busca apenas o entretenimento, quanto por àquele que, mais

observador, procura frui-la em suas várias camadas de significação. Sobre a peça,

diz-nos Sandra Nitrini em seu Transfigurações (2010):

Lisbela e o prisioneiro é uma comédia de caracteres, embora as ações

desenvolvidas na cadeia de Vitória de Santo Antão desempenhem uma função

considerável na sua estrutura tradicional, com exposição, desenvolvimento, falso

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clímax, clímax, desfecho de situações, vivenciadas por personagens nordestinas e

muito bem amarradas. (p. 59-60)

Crítica a uma sociedade patriarcal, o seu texto é marcado por expressões

populares teatralmente trabalhadas. Nela, “Osman Lins já enfrenta o problema de

enquadrar o assunto épico em fórmulas dramáticas que só será conscientemente

resolvido depois das narrativas de Nove, novena” (COSTA, 2004, p. 151).

Após Lisbela e o prisioneiro, em 1963, virá Idade dos Homens: “A peça

retrata um fato policial que envolve jovens. Procura fixar o problema da transição

entre a disponibilidade da juventude e a aceitação das regras do jogo estabelecido

pelos adultos, pelos ‘donos das coisas’, como diz uma das personagens” (LINS

citado por MOURA, 2003, p. 63). A partir daí Lins buscará para o seu teatro uma

harmonização que intensifique as condições aproximativas entre os elementos

diegéticos e miméticos do texto teatral. Persegue assim um assento dramático que

se coloque sem prejuízo à textualidade literária da palavra. Uma experiência de

convergência mais ampla entre o discurso narrado e o discurso dramatizado. Sendo

que as intensidades aí coabitadas entre a escritura e a sua teatralização, parece ser

uma preocupação premente no autor.

No capítulo 6 de Guerra sem testemunhas1 (1974), a personagem do

escritor Willy Mompou, representada pelas iniciais WM, conjuntada a de um

inquisidor também ficcionalizado, iconizada em dois triângulos invertidos ( )

formando uma espécie de alter ego híbrido do próprio autor, dirá em resposta a este:

1 Conjunto de ensaios no qual Osman Lins fala sobre o ato de escrever, bem como aborda o papel e

os problemas do escritor na contemporaneidade.

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Seria redundante e inútil, no texto dramático, referir determinadas coisas. Tudo

sucede no palco. Aí morreram os heróis, abrem-se as portas, os dias amanhecem,

estalam tempestades e decidem-se as guerras. Esta, justamente, uma das forças

da arte cênica.

WM

Certo. Mas, como escritor, isso não me satisfaz. Para mim, é mais importante dizer

como o dia nasceu que enunciar simplesmente o fato. Qualquer um pode fazer

estas indicações: “Amanhece o dia. A mesa ainda posta. A lareira apagada.

Silêncio.” Mas é preciso ser um Thomas Hardy para escrever: “Clare levantou-se

ante as primeiras luzes da manhã, tão furtivas e pálidas como se fossem cúmplices

de um crime. Diante dela estavam a lareira com seus carvões apagados; a mesa de

jantar ainda posta, o vinho turvo e alterado nas duas garrafas intactas; a cadeira de

Tess, ao lado da sua; os outros móveis, com seu ar eterno de impotência e de

intolerável indagação.” Restringindo-me a enunciar os dados cênicos, tenho o

sentimento de passar adiante funções que me concernem. (LINS, p. 91-92)

O tipo de experiência literária empreendida nas narrativas curtas de Nove,

novena, como já dito anteriormente, franqueia a Osman Lins a possibilidade de

trabalhar de modo mais consistente esse tensionamento entre a condição épica e a

condição dramática da palavra: expondo-a assim em uma espécie de cena

teatralizável, ainda que isso se faça sem se extrair de uma condição eminentemente

prosaica. É no interior da escrita de Retábulo de Santa Joana Carolina, texto que

compõem Nove, novena, que isso se faz ver de maneira mais efetiva. Ivana Moura

em Osman Lins. O matemático da prosa (2003), ao citar a estudiosa do teatro

osmaniano Marisa Balthasar, diz:

Para Marisa Balthasar, cabe a Osman Lins o papel singular de defender um teatro

literário, radicalizador da possibilidade épica no palco: “um convite ao diálogo

espectador/texto, e isto em um contexto histórico tão pouco afeito ao diálogo. É um

de nossos dramaturgos que se afinou com Brecht. A compreensão de que não se

pode modernizar o teatro sem passar a limpo os mecanismos de produção teatral, a

necessária intervenção pública na denúncia e questionamento dos problemas

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estruturais do teatro feitas em Guerra sem testemunhas e, especialmente, a

realização de Santa, automóvel e soldado lhe conferem lugar único na tradição”

(p. 69)

Esta coleção de três peças (Santa, automóvel e soldado) editada no ano de

1975 pela livraria Duas cidades: Mistérios das figuras de barro, Auto do salão do

automóvel e Romance dos dois soldados de Herodes, redigidas entre 1969 e 1970,

traz o adensamento do texto teatral ao conceder-lhe o performatismo da palavra em

meio sua própria condição de representação. Ao consistir peso literário às três

narrativas teatrais, sobrepondo-o as marcas eminentemente dramáticas, Osman Lins

postula o predomínio da palavra à solvência unicamente dramatizante da cena

teatral.

Como já visto, esse privilégio concedido à palavra literária é explicitado, por

exemplo, pelo próprio Lins no discurso crítico de Guerra sem testemunhas, mais

precisamente nos diálogos entre o escritor Willy Mompou e o seu inquiridor. Quando

do suscitar das peças de Shakespeare, segue-se o seguinte diálogo entre ambos:

Restrinjo-me, reforçando minha tese de que o teatro, no fundo, não satisfaz na

íntegra às virtualidades do escritor, a afirmar que os dramas shakespearianos,

apesar de toda a teatralidade, são romances postos em termos cênicos. A

multiplicidade de motivos, de lugares e de personagens, o percurso no tempo dos

acontecimentos expostos, assim como a opulência da linguagem, revelam a

procura de uma adequação desesperada entre as limitações do teatro e a força

imaginativa do escritor. (p. 93)

Apesar de Osman Lins não ter reconhecido fluência teatral em Retábulo de

Santa Joana Carolina, tanto que a faz constar das narrativas curtas que compõe

Nove, novena, nela “divisou a forma ainda inconquistada que sua dramaturgia vinha

pedindo desde Lisbela e finalmente encontrou nas peças escritas em fins dos anos

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60 e publicadas no volume Santa, automóvel e soldado, de 1975” (COSTA, 2004, p.

152).

Investido de uma inflexão densamente perpassada pela palavra, o teatro

osmaniano compõe-se de uma imbricação do literário ao curso gestual das cenas.

Não significando com isso tratar-se da pura e simples submissão de sua

expressividade ao texto escrito; mas sua épica (à moda de Brecht2) revela-se um

meio potencializador da marca discursiva, moldando-se assim ao encontro da

condição dramática.

É em favor da presença da palavra literária no interior do texto cênico, que a

persona de Willy Mompou (1974), em resposta ao seu perquiridor ( ), posiciona-se

quando da indagação deste sobre os comentários feitos pelo autor Gaston Baty3

acerca de uma maior efetividade do gesto teatral em detrimento de uma palavra

mais textualizada:

[...] Gaston Baty. Diz ele: “A tarefa do diretor será restituir à obra do poeta o que

esta haja perdido no caminho do sonho para o manuscrito.”

WM

A frase é bela e lisonjeira para o diretor. Infelizmente, não corresponde a minha

experiência. Quando chego afinal ao manuscrito, se perdi alguma coisa foram os

meus enganos, os equívocos que me abraçavam enquanto mergulhado no sonho.

No manuscrito está o mundo concreto, espesso e confuso (será isto o que Gaston

Baty denomina de sonho?) alçado a uma expressão verbal significativa. No teatro,

como na frase bíblica, o verbo faz-se carne? A lei básica do meu ofício, a mola de

minha ambição é exatamente ao contrário: transmutar a carne em verbo. (p. 95-96)

2 “Do mesmo modo que não existe um teatro puramente dramático e ‘emocional’, não há teatro épico

puro. Brecht, aliás, acabará falando em teatro dialético para administrar a contradição entre interpretar (mostrar) e viver (identificar-se). O teatro épico perdeu assim seu caráter francamente antiteatro e revolucionário para tornar-se um caso particular e sistemático da representação teatral” (PAVIS, 2008, p. 130). 3 Autor e diretor teatral, Gaston Baty é tido como “o principal dos Compagnons (Companheiros da

Quimera) agia na área da religiosidade com um toque de simbolismo” (BERTHOLD, 2001, p. 480).

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Por intermédio do mesmo Willy Mompou (1974), Osman Lins reage

criticamente ao excessivo performatismo cênico dado sobre o palco. Disso diz,

contradizendo toda e qualquer enunciação castradora às marcas significativas da

palavra:

Em minha infância, após a ceia, reuníamo-nos sob a lâmpada e um de nós lia

trechos de romances, em voz alta. Apreciávamos, embora fôssemos pessoas

incultas, aqueles momentos, a leitura sem ênfase e sem qualquer jogo cênico.

Evoco o fato porque esta seria a regra básica no espetáculo a ser esboçado:

ausência de interpretação. Ou, melhor, uma interpretação que poderíamos chamar

branca e que deveria aproximar-se, tanto quanto possível, da neutralidade da

página, uma vez que seu objetivo seria restabelecer o contato entre determinada

faixa de leitores e o livro. (Lembremos, de passagem, que uma das peças de

Claudel, homem de teatro e mestre da palavra, chama-se O livro de Cristovão

Colombo.) Seria necessário então que o ator não chamasse a si o encargo das

paixões ou mesmo do sentido do que lhe cabe transmitir. Jamais procuraria

encarnar-se em personagens, acaso os houvesse. Nenhuma convicção

interpretativa. Seu comportamento seria semelhante ao daqueles intérpretes do

Berliner Ensemble, que, sob a direção de Brecht, diziam nos ensaios, na terceira

pessoa, em forma narrativa, falas que lhes cabiam como personagens. (p. 96-97)

Metáfora de uma ampla abertura significativa, o horizonte desta palavra que

se quer escrita no interior da cena teatral (reivindicada por Osman Lins), conflui a

virtualidade firmativa do texto – sempre uma condição “por vir” – ao ato

interpretativo, ensejando-lhes um ao outro em uma constante possibilidade de uma

novação ao senso perceptivo do espectador. Por conseguinte, ao falarmos do texto,

seja ele disposto na forma de cena teatral, ou sulcado sobre uma folha de papel,

falamos, não de um sentido pronto, da oferta estanque de uma significação, mas da

construção continuada de uma possibilidade de expressão que exige sempre um

gesto “vivo” daquele que é o seu “expectador/leitor”. Portanto, é dessa diligência

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criativa de se haver com a palavra em cena, vista como significação encenada

justamente ao negar-se à condição de sentido único, que nos fala Osman Lins no

trecho acima de Guerra sem testemunhas. Aproximando-se assim das

considerações que Roland Barthes remete a Brecht, reconhecendo neste um crítico

das irrefletidas mostrações de jogos de cena ao público: “Consequentemente, é a

Brecht que o semiólogo Barthes deve sua eterna denúncia da Histeria, aqui

entendida como o “teatro do sentido” [...]” (MOTA, 2011, p. 55). A palavra assim não

se diz sem que nos hajamos conjuntamente a ela – significando que temos de nos

bater inclusive com sua tensão e ambiguidade. Essa expressiva permutação entre

texto, “expectador/leitor” e a significação, tenciona as divisas que supostamente

estabeleceriam de modo claro os lugares de cada um desses horizontes. A vivência

literária desta cena traz em si a possibilidade de nos encontrarmos, não com a

simples representação de algo ou de uma ação (de um ato), mas com a

teatralização daquilo que a palavra representa ser sua mais proeminente exibição: a

condição de “simplesmente” encenar-se como marca possibilitadora de um dizer,

não de algo em específico, mas simplesmente fazer-se representar na ação de se

dizer enquanto marca de linguagem.

Dimensão pertinente, não só à encenação da letra teatral disposta sobre o

palco, mas também à cena que se faz dizer no interior da escrita literária. Ao não

tomá-la como simples desdobramento literalizado das coisas que intentamos

representar em nosso dizer, a letra escrita (assim como a encenada) assume-se

então tão somente como o leve balizar de uma direção – um traço discretamente

decalcado e imiscuído ao próprio anúncio, rumo a uma imensidão de dizeres que é

invariavelmente infinita. E como tal, “o seu campo é do significante; o significante

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não deve ser imaginado como a primeira parte do sentido, o seu vestíbulo material,

mas sim, ao contrário, como o seu recuo [...]” (BARTHES, 1984, p. 57).

Sucederia ser esta a cena literária consonante ao discurso de Avalovara;

posto tratar-se de uma escritura que a si mesma movimentar-se-ia cenicamente pela

via do significante. Deste modo não nos apresentaria ser simplesmente a

coadjuvante escritural das histórias que narra: pois, na própria cena de sua escritura,

representaria a si como parte ativa do movimento acionador de um dizer; que lhe

seria sempre seu e próprio; não sendo, portanto, a mera interface de um gesto que

tem por obrigatoriedade o desvelamento de um sentido.

1.3 VEREDAS E CAMINHOS DA PRODUÇÃO CRÍTICA OSMANIANA

Com uma escrita que não se restringe a uma mensagem eminentemente

literária, Osman Lins é um desses autores que, além de escrever literatura,

posicionou-se criticamente acerca do seu ofício. Sua verve é antes de tudo uma

vivência de – e para com – a linguagem. Sobretudo, sua escrita não é um simples

ato de remissão ou de transitação pré-formada de conteúdos. Em seu horizonte

discursivo, tanto na porção literária quanto na parte que toca a sua escritura crítica,

não cessa de espraiar a busca pelo sentido que dirigimos à palavra mesma; um

gesto que para ele é sempre vivo, sempre em expansão.

Excetuando os textos de pendor mais ideológico, e aqueles mais datados, os

pronunciamentos que compõem sua obra crítica por excelência, Guerra sem

testemunhas, em linhas gerais vão ao encontro de uma escrita que explora o “sem

fim” da capacidade de significar pela palavra. Portanto, é parte integrante dessa sua

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produção pensar a escrita desde a incessada capacidade que tem ela de inflectir

sentido. Uma operação discursiva, que ao se medir em vigor metatextual, tornaria

ainda mais aguda esta percepção. Fazendo da palavra um silencioso aríete, a letra

para Osman Lins parece revelar àquilo que talvez ela traga de mais fundo: a

capacidade de simplesmente silenciar.

Precisamente no capítulo um de Guerra sem testemunhas, intitulado “O ato

de escrever”, após discorrer sobre as dúvidas e “imprecisões” acerca do ofício do

escritor (1974), Lins concorre mais criticamente à indecidibilidade da palavra

engendrada no interior do próprio discurso:

Este é o primeiro resultado obtido no trato com a matéria, na tarefa de compor o

livro. Se aspirava, acreditando saber mais do que sei (e comprovando, por este

modo, quão pouco sei de mim mesmo e de minha silenciosa profissão), redigir um

trabalho informativo, passar adiante a experiência colhida em aproximadamente

vinte anos de luta com a palavra escrita, sempre insubmissa, vejo que malogrou tal

ambição. (p. 14)

Desde aí, esta coleção de ensaios críticos compõe-se de uma temática

eminentemente voltada à ambiguidade da linguagem – pois, como nos anuncia o

autor: é a palavra “sempre insubmissa” (LINS, 1974, p. 14).

O reconhecimento de Osman Lins desta insurreição da palavra ao

condicionamento do sentido, obviamente também se transmite por sua literatura,

principalmente na fase da qual faz parte Avalovara. Portanto, a crítica aí é forjada

pari passu com o seu horizonte ficcional. Ambas as dimensões trabalham a palavra

à movência e a refração de uma significação ultimada. Destarte, apregoa que as

letras críticas que se moldam em Guerra sem testemunhas, são frutos de um

fazimento não mediado: “O livro que começa a surgir, embora diferente do outro, a

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princípio ideado, está longe de me ser entregue por qualquer mediação” (LINS,

1974, p. 16). Decorre daí ser a sua escrita não apenas apercebida da previa

concepção das coisas às quais quer tratar em suposição mais direta; compõe-se

também das surpresas engastadas na própria construção discursiva:

Planeja-se um livro: este plano difere, por exemplo, do preciso horário de um

comboio, num perfeito sistema ferroviário. É uma hipótese de trabalho; um plano,

sim, mas no sentido que estabelecemos, para nossa existência, uma diretriz, um

programa de ação. Se o livro que surge me surpreende – este ou qualquer outro –

não é por inesperado; ao contrário, esperamos sempre um livro diferente do que foi

imaginado em bruto. Há imprevisíveis, novidades, surpresas, sendo estas

surpresas, estas novidades, esses imprevistos, que irão apontar algum encanto à

tarefa exaustiva – e de nenhum modo amena – de escrever. (LINS, 1974, p. 16-17)

Como exemplaridade desta condição, a sua escrita se nos apresentaria

desde um lugar de enunciação que se quer “sem centro” e que seria disposto de

modo indecifravelmente compósito. Tratar-se, como já visto anteriormente, de se

fazer ver esta condição, por exemplo, na figura narrativa híbrida montada a partir

das personas do escritor Willy Mompou e de seu perquiridor. Por intermédio do

diálogo entretido por ambos, cujo foco se dispõe sobre os impasses produzidos pela

palavra literária, o autor tece, no bojo de um processamento discursivo

“crítico/literário”, uma área de significação invariavelmente “cinza” – “indefinida”.

Armada de uma dialética que não culmina em “síntese fechada”, a palavra vale-se aí

da justeza de ser constantemente inconclusa – “aberta”.

Privilegiando, não a pura e simples significação pronta e acabada, mas os

cursos e fazimentos de um gesto significativo que, no interior de sua própria teia, é

sempre indecidido, Willy Mompou e seu duplo, ambos convertidos em uma espécie

de alter ego compósito do autor, bem representariam o próprio estado de

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indecidibilidade encetado a toda e qualquer letra. Mais do que admiti-los como

simples antípodas um do outro; ou lhes confluir em uma só voz, o autor opta por

indecidí-los eles mesmos à sua própria personalidade opiniática. Sobre esta persona

que não cessa de pendular entre identidades, formada apenas de palavras, Osman

Lins assim se pronuncia:

[...] serei então dual, bifronte, duplo, dois, inquiridor e inquirido, um par, o que

procura e o que é observado. Como a antiga letra V, no alfabeto latino, que era ao

mesmo tempo consoante e vogal, sou um e somos dois, vogal e consoante, V e V,

V e U. A voz estranha – cobra sem dentes – enrola-se em minha língua, nova

cabeça apareceu no meu ombro, com quatro olhos contemplo – ou contemplamos?

– o relógio e a distante massa de edifícios ainda envolta em névoa, outro homem

saltou de dentro de meu corpo, está contra a parede, debruçado à mesa, de frente

para mim, tem meu rosto e meu nome, e ínfima parcela do que sou, e observa-me,

a mim Willy Mompou, que também o espreito. Como se houvesse entre nós uma

lâmina de vidro, de modo que pudéssemos ver um ao outro e ao mesmo tempo o

impreciso reflexo de nossa própria imagem, assim nos vemos e assim nos

contemplamos, escutando o rumor dos coletivos e dos automóveis, com seus

atribulados ocupantes, e alguém a martelar no quarteirão fronteiro, com insistência

e sem ritmo. (LINS, 1974, p. 18)

Conquanto, não se trata de um par antitético estanque; posto que,

paradoxalmente, este personagem “bifronte” é uma amalgamação sempre

poliédrica: “O escritor é um homem em guerra. Consigo próprio, com as palavras,

com as correntes literárias triunfantes, com o editor, com a estrutura social etc.”

(LINS, 1979, p. 145).

Saída de o Evangelho na taba: outros problemas inculturais brasileiros

(1979), a passagem acima, eminentemente carregada de fulcro crítico ao fazer

literário, conjunta-se a muitas outras questões que preocupavam Osman Lins, e que

não necessariamente se punham diretamente relacionadas ao ato escritural da

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literatura, ainda que ensejadas na mesma cepa da uma polifônica e instigativa

indecidibilidade:

Aqui temos aspectos de algumas: a revolta contra a opressão da tecnologia sobre o

nosso cotidiano; questões que afetam a qualidade de vida em nossas cidades; o

embotamento cultural instituído pelo sistema e encampado pelo ensino

universitário. Problemas sociais, políticos, problemas de comportamento humano. A

insensibilidade, a prepotência (em seus tantos disfarces). Estes são alguns dos

temas deste volume, onde temos o Osman Lins polêmico, levantando questões,

debatendo-as; e extremamente humano, apresentando dúvidas. Numa época em

que nos agridem tanto as afirmações infalíveis, ele reflete sobre os problemas e

oferece ao leitor a oportunidade de também refletir e tirar suas próprias conclusões.

(LADEIRA, 1979, p. 10)

Evangelho na taba assim é mais um libelo às mazelas impingidas à cultura

e à sociedade em geral do que propriamente uma auscultação direta ao coração da

palavra escrita. O mesmo pulso crítico retém-se em Do ideal e da glória: problemas

inculturais brasileiros; nele, em grande medida, há um conjunto de apreciações que

se faz acionado por uma malograda experiência como professor universitário na

área das letras. Osman Lins expõe criticamente o difícil trânsito, tanto entre os

alunos, quanto no seio da própria docência, de determinados conteúdos e

demandas intelectuais que por ventura não se apresentariam comodamente

instalados na cotidianidade usual da sala de aula:

A constatação é geral e pode ser percebida por qualquer professor (ao menos por

qualquer professor de letras): o nível intelectual dos alunos que ingressam nas

faculdades vem baixando a cada ano. Vez por outra, mas não com suficiente

clareza e jamais com a energia que seria de esperar, fala-se na incapacidade dos

alunos, em especial na sua incapacidade de redigir. Como solução, tem-se

sugerido redação nos vestibulares e curso de composição nas faculdades. Isto é

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tangenciar o problema e abordá-lo apenas de um lado. Não é só o aluno que está

em causa; o professor também [...]. (LINS, 1977, p. 79)

Não obstante a pertinência de tais reflexões, voltemo-nos aqui novamente às

incursões críticas que Lins dedica diretamente ao horizonte literário e as suas

marcas de significação. Em entrevista concedida no mês de maio de 1969 a Esdras

do Nascimento, em O Estado de São Paulo, Lins, em resposta a este, acerca de

como definiria o romance, diz:

A pergunta poderia levar-nos à controvertida questão dos gêneros: “Que é o

romance? A novela? Como se distinguem do conto?” Concedamos-lhe, portanto,

maior amplitude. Que devemos entender por ficção? É a fixação, através da palavra

escrita, e com ênfase na aparência das coisas, pelo autor decompostas e

reorganizadas, de uma visão pessoal do mundo, não raro absurda e quase sempre

insólita, que no entanto se confunde, sob a pressão do gênio do escritor, com o

universo onde todos habitamos. (LINS, 1979, p. 153)

O trecho nos dá a clara visão de quão cara era para Osman Lins a acepção

da linguagem e os seus desdobramentos pela palavra literária. Ao escritor,

enfaticamente após Nove, novena, como objeto central de sua literatura, vai

interessar mais diretamente o fazer da própria linguagem. Por exemplo: é a

linguagem que nos vem por fundamental à narrativa de Avalovara. E ao mesmo

Esdras, em outra entrevista que lhe concedeu, agora no ano de 1974, ao aludir

sobre o que regeu a feitura deste seu romance, e sobre como este, em alguma

medida, no tocante a certas demandas por respostas, diferencia-se de Guerra sem

testemunhas, Lins tece as seguintes considerações:

OL. – Aqui e ali, realmente, busquei certas respostas. Não foi isso, porém, que

regeu o romance. Quando escrevi Guerra Sem Testemunhas, minha atitude mental

e meus objetivos eram outros. Tratava-se de um ensaio e eu procurava enfrentar

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uma série de questões, algumas de ordem prática e todas relacionadas com o

ofício de escritor. Moveram-me a escrever Avalovara, que é um romance, razões

bem diferentes. Eu ambicionava realizar um texto que, sem limitar-se apenas a isto,

expressasse a minha paixão pela escrita e pelas narrativas. Um livro que fosse, no

primeiro plano, se assim posso dizer, uma alegoria da arte do romance. Há muito

tempo preparava-me. O projeto básico da obra, seu arcabouço, estão ligados à arte

de narrar e aludem constantemente à ambigüidade da palavra. Lendo-o com

atenção, vê-se que tudo isto o atravessa gerando uma infinidade de motivos. (LINS,

1979, p. 175)

Isto faz de Avalovara um horizonte literário francamente voltado às questões

distendidas ao ato de narrar. Trata-se de “um projeto ambicioso em que as

tendências para a abstração e as inovações técnicas de Nove, Novena se

radicalizaram” (ANDRADE, 1987, p. 40). Seu rico e meticuloso arcabouço formal

move-nos em direção a uma experiência para com a linguagem que não mais é da

ordem da captação de um determinado sentido. Toda a sua letra disponibiliza-se já

atravessada por uma torção significativa, rumada ao infinito. Deste modo, coabitam

em tensão, duas figuras icônicas no interior do romance: o “Quadrado Sator” e a

“Espiral” (Ver Figs. 1 e 11):

Em termos gerais a figura do quadrado desenhado sobre a espiral, esquema

estrutural em que se baseia Avalovara, representa o artefato literário produzido no

duplo movimento do romance sobre ele mesmo: o quadrado, como figura

geométrica limitada, evoca “as folhas de papel” (Avalovara, p. 19), enquanto a

espiral evoca a “aspiração do ser humano ao infinito” (ET, p. 166). (ANDRADE,

1987, p. 169)

É o próprio Osman Lins, em entrevista que concede pouco antes de sua

morte, que nos faz ver esta dimensão voltada à linguagem articulada no interior de

Avalovara:

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Trata-se de um mundo muito denso, muito compacto, e alguns anos hão de passar

antes que se comece realmente a penetrá-lo. Muitos estudos, alguns leitores mais

atentos, e particularmente seus tradutores – que tem de lê-lo em profundidade, por

força do ofício –, já se deram conta de que se trata de um universo amplo, com uma

infinidade de problemas humanos e literários lá dentro, à espera de decifração.

Como aqui já se observou, não foi apenas a produção ficcional de Osman

Lins a ir fundo nas prospecções à linguagem. Ainda que tenhamos em Avalovara o

sumo representante desta condição, esta mesma capacidade também se projetou

ao gradil ensaístico e crítico do autor – uma força escritural eminentemente

“literarizante” à formular linguagens.

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2 AVALOVARA, VORA SEM PONTO DE BASTA

2.1 A DIMENSÃO ORIGINÁRIA DA LINGUAGEM EM AVALOVARA

As marcas textuais de Avalovara se negam à reta elucidação; antes, são

indícios cujo papel é acentuar a força eminente da linguagem naquilo que ela traz de

mais fundo ao experimento literário: possibilidade, abertura e indecidibilidade. À

moda de alguns pré-socráticos, poderia se dizer que a sua palavra modela-se sob

um crivo agônico; exercício dirigido à linguagem que “Heráclito pensou como

polemos, como guerra: ‘De todas as coisas a guerra é pai; de todas as coisas é

senhor; a uns mostrou deuses, a outros, homens; de uns fez escravos, de outros,

livres’ (Frag. 53)” (LEÃO, 1991, p. 12).

Cumprida a jornada autoimposta entre amores e cidades, Abel rumará à

plenitude ao tempo em que marcha para a morte. O agônico brota então desses

sinais cruzados: movência e paragem, completude e morte. Debruçado sobre o leito

da própria escrita, o romance se verte em um difuso e sobreposto jogo de signos. À

sombra do relojoeiro Julius Heckethorn, ritmado ao som fabril e mecânico das peças

do relógio que compõe, o tempo conta a fabricação da narrativa ao lento exaurir da

sua própria matéria textual. Leny da Silva Gomes (2004) capta esse processo em

artigo intitulado “Avalovara a especialização da narrativa”: “A fragmentação do

romance em oito temas, a apresentação descontínua de personagens, de espaço e

tempo e de micronarrativas obrigam o leitor a justapor imagens num processo

intermitente, formando quadros que, em determinados momentos, se fundem” (p.

257).

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Estado narrativo que tudo galvaniza, o romance de Osman Lins compõe-se

de uma construção semiológica descida aos detalhes. Todo o périplo de Abel é

assistido por uma riqueza semiótica que faz do discurso prosaico de Avalovara uma

verdadeira escultura “verbo-visual”. Mas não se trata de buscar em seu interior

apenas apuro estético-formal; sua escrita palíndroma transpassa-se de uma rica

engenharia para daí vasculhar em profundidade originária os próprios recursos que

faz à significação. Se o último amor de Abel – síntese amorosa de seus outros

amores – é indicado no interior da trama apenas por um sinal gráfico ( ), por si só

isso já sugere tal posicionamento. Dessa forma “flagramos aspirações,

compromissos e encantamento em relação à palavra, à atividade criadora do

homem e à ordenação do mundo” (GOMES, 2004, p. 235). Continuado e incessante

movimento de dizer a vida pela via da palavra, essa cronotopia sem barras que é

Avalovara dilata sem fim suas próprias possibilidades semânticas. Segue como cifra

síntese da própria condição forjada na figura que lhe simboliza mais diretamente:

letras palindrômicas que formam um quadrado fusionado a uma linha em espiral

dirigida ao infinito (Ver Fig.1):

Fig. 1 – “Quadrado Sator” e espiral: modelo do romance Avalovara, de Osman Lins

Fonte: Cabeças compostas (FERREIRA, 2005, p. 49).

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Talvez o mais fiel propósito do romance de Lins seja fazer deslizar a

linguagem desde o seu próprio interior. Com seu eixo semântico cambado à

experimentação significacional, o romance converte suas palavras em pequenos

móbiles dispostos a um modo de significação tão móbil quanto. Sua marca não está

recaída sobre uma pretensa eminência significacional última da palavra; tão pouco

nos dirige a aduzi-la diretamente neste papel. Fazendo balançar os fios que

susteriam divisas e propósitos arranjados em prévia significação pelo próprio ato da

escritura, o romance é uma concessão inusual cedida à linguagem. Toda a sua

complexidade formal, toda a sua marcação gráfica e textual, convergem sua letra

para o mistério da palavra – tornando-a quem sabe o mais eloquente dos silêncios.

Modesto Carone (2004) em seu artigo Avalovara precisão e fantasia nos indica essa

condição: “Essa novidade abrange, simultaneamente, a matéria e a estrutura do

livro. Isso quer dizer que aciona realidades estranhas a nossa rotina cotidiana numa

forma narrativa que também é pouco usual. Nesse sentido ele pode, para alguns,

parecer obscuro. Cabe, no entanto, indagar em que consiste essa obscuridade” (p.

225).

No conjunto de preleções intitulado A caminho da linguagem, Martin

Heidegger (2003) nos diz: “Fazer uma colocação sobre a linguagem não significa

tanto conduzir a linguagem, mas conduzir a nós mesmos para o lugar de seu modo

de ser, de sua essência: recolher-se no acontecimento apropriador” (p. 8). Se não

nos fica clara esta ideia heideggeriana de habitação na linguagem, ficará por justo

apenas fazer da palavra um elemento de decodificação de uma suposta realidade

que nos seria circundante; porém, a redução ao medial esvai a potência da

linguagem de se exercer desde si como nos adverte Heidegger. É o próprio, no

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mesmo conjunto de preleções (2003), que nos dará indicação disso ao unir uma

indagação ao que seria a sua melhor resposta: “Dizer o mesmo duas vezes:

linguagem é linguagem, para onde isso haveria de nos levar? Não queremos,

porém, ir a lugar nenhum. Queremos ao menos uma vez chegar ao lugar em que já

estamos” (p. 8). Ao habituar a linguagem a essa mirada, abrimo-nos assim àquilo

que Roland Barthes, em aula inaugural à cadeira de Semiologia Literária, no ano

1977 no Colégio de França, chamou de “logro magnífico que permite ouvir a língua

fora do poder” (p. 16). E complementa:

Entendo por literatura não um corpo ou uma sequência de obras, nem mesmo um

setor do comércio ou de ensino, mas o grafo complexo das pegadas de uma

prática: a prática de escrever. Nela viso portanto, essencialmente o texto, isto é o

tecido dos significantes que constitui a obra, porque o texto é o próprio aflorar da

língua, e porque é no interior da língua que a língua deve ser combatida, desviada:

não pela mensagem que ela é o instrumento, mas pelo jogo das palavras em que

ela é o teatro. (BARTHES, 2004, p. 16 e 17)

Tanto para Barthes quanto para Heidegger, à medida que este também

parece ser o jogo de Avalovara, a convergência ao vivo exercício da linguagem

passa ao largo do puramente interveniente, mediativo e complementar; ao que seria

uma realidade “extraletra” (a do objeto que se separa da palavra pela realidade que

seria sempre externa a esta). Resulta daí fazer da escrita existencial do homem

Abel, um jogo literário remetido ao estado mais recôndito da linguagem – ou seja: o

fato de sermos jungidos a ela em detrimento mesmo de simplesmente nos servirmos

dela. Toda a processologia da obra (remissões e intertextos) liga-se então a uma

profunda e paradoxal marca criadora de ambiguidades, que não cede ao próprio

gozo da previsão, da previsibilidade e de um suposto verismo realista. Se no início

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do romance toda a ambiência que cinge Abel e sua amada – ambos já vitimados

pelas balas do revolver do marido traído (... Olavo Hayano) – se vai costurar pelo

mais preciso detalhamento “semiótico/formal”: “No espaço ainda obscuro da sala,

nesta espécie de limbo ou de hora noturna formada pelas cortinas grossas, vejo

apenas o halo do rosto que as órbitas ardentes parecem iluminar – ou talvez os

meus olhos: amo-a – e os reflexos da cabeleira forte, opulenta, ouro e aço” (LINS,

2005, p. 19); ocorre-lhe ser a cena sucessora justamente das linhas finais do livro:

um acelerado fluxo descritivo em meio aos mais banais acontecimentos do

cotidiano, refluindo assim fim e início ao ritmo urgente de uma consciência que se

sabe narrar em rápida descarga rumo ao pouco tempo que lhe resta. Ao final, tudo

passa a ser fechamento em som e ritmo ao tempo da escritura primeira que abre a

narrativa:

[...] cruzamos um limite e nos integramos no tapete somos tecidos no tapete eu e

eu margens de um rio claro murmurante povoado de peixes e de vozes nós e as

mariposas nós e girassóis nós e o pássaro benévolo mais e mais distantes latidos

dos cachorros vem um silêncio novo e luminoso vem a paz e nada nos atinge,

nada, passeamos, ditosos, enlaçados, entre os animais e plantas do jardim.

(OSMAN, 2005, p. 380 e 381)

Nesse fim que se revisita ao início indecidindo-se a ele, Abel resta morto e

só lhe pode operar o mundo por pura ausência. Sua jornada existencial, misturada

ao curso formal da narrativa, coabita, sem divisões, uma realidade lacunar

estabelecida pela morte; trazendo pelas frestas da linguagem literária toda a

viabilidade imposta por esta ausência. Essa experiência de real abertura, que

poderíamos chamar, ainda que apenas escrituralmente, de pura presença ao

significante da linguagem, justamente seria a própria conversão do ente homem em

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possibilidade desde sempre aberta ao ser da linguagem. Este estado de sopesar o

mundo pela via da linguagem irrompe a todo o momento sem contenção no interior

da letra de Avalovara. Trata de ser o romance um ousado experimento de palavra,

que literariamente nos faz indivisos ao próprio fluir da língua por ele escrita. Desse

modo “para pensar a linguagem é preciso penetrar na fala da linguagem a fim de

conseguirmos morar na linguagem, isto é, na sua fala e não na nossa”

(HEIDEGGER, 2003, p. 9, grifo do autor). Avalovara é sempre essa dimensão a nos

convidar à habitação desse espaço de lâmina – que indecide, corpo, fio, e corte.

Como nos atesta Modesto Carone em seu artigo “Avalovara precisão e fantasia”: “O

leitor que realiza essa experiência inclina-se, em geral, a se deixar invadir por um

sentimento de desconforto que, no extremo, às vezes chega à irritação: afinal, não

são todos os que se comprazem em sentir frustrados seus hábitos ou ver suas

certezas abaladas” (p. 225). A espiral gramada em Avalovara, em sua infinita

expansão, é esse estranho caminho que não mais visa distâncias em relação ao dito

e a suposta coisa que por ele se faz anunciar (Ver fig. 1).

Quem sabe assim possamos tomar Avalovara como um experimento

originário à palavra, à medida que se requerem suas letras distanciadas de toda a

usualidade pré-formativa eventualmente concedida à linguagem. Em queda livre

ante a própria condição de significar, cumpre-lhe ser uma fluida massa simbólica,

cuja marca escritural deambula sem fim; ainda que – e essa é talvez a mais pujante

das suas belezas discursivas – isso se faça em meio a um horizonte de signos

lógicos, míticos, místicos e matemáticos. Porém, esse denso peso intertextual, não

marca certezas para além da própria letra, ao contrário, movimenta sem fim a órbita

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expansiva de sua própria textualidade. Daí, Antonio Candido (2005), em prefácio à

obra, dizer:

Neste romance, uma das linhas é precisamente a da consciência crítica entrando a

cada instante pela série ficcional, denunciando o seu caráter fictício de empresa

deliberada, igualmente reversível entre a representação do real e o caráter

ilusionista da representação. Daí um livro que não tem medo de se apresentar

como livro, como maquinismo montado, como não-realidade – mas do qual jorram o

fascínio de uma vida que palpita, o traçado do mundo exterior e a surda potência

das emoções. (p. 8 e 9)

Portanto, Avalovara é um romance que invariavelmente se põe em torno, e

em direção à linguagem, sem marcar-se nela por sinais prévios. Trata-se de ser

enquanto palavra; enquanto engenho de linguagem; enquanto o fluir constante

desse engenho: não se ultrapassando para além de si; não atravessando o próprio

corpo da linguagem, para daí dizer-se. Essa condição de embutimento, de não se

fazer projetar para além da própria letra, é intrínseco ao homem, ser de linguagem.

Martin Heidegger (2003) ressalta essa inextrincável condição entre homem e

linguagem, quando de sua participação na série de conferências realizadas pela

Academia de Belas Artes da Baviera, e pala Academia de Belas Artes de Berlim, no

ano de 1959, intitulada A linguagem, parte integrante do seu conjunto de textos de A

caminho da linguagem: “A capacidade de falar distingue e marca o homem como

homem. Essa insígnia contém o desígnio de sua essência. O ser humano não seria

humano se lhe fosse recusado falar incessantemente e por toda parte, variadamente

e a cada vez, no modo de um ‘isso é’, na maior parte das vezes, impronunciado”

(HEIDEGGER, 2003, p. 191). Nessa declinação linguística residiria ao homem ser

curado e curador dos seus próprios assentos de sentido – ser-lhe ao tempo mesmo

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convocação e significado; ambos dispostos na mais pura abertura dada ao ser: uma

presença que se estende ao homem na totalidade das coisas enquanto linguagem.

Ao se firmar pelo que prende na palavra, é o homem erigido na própria clareira que

ergue em seu estado de “jogado no mundo”.

Erguida na direção da indivisão homem/linguagem, a voz escritural de

Avalovara é um conjuro dessa percepção. O livro de Osman Lins mostra o quanto

Loreius, escravo a quem o senhor lança um desafio – construir uma frase que

pudesse ser lida em todas as direções – mimetiza à perfeição a condição do homem

unicamente cabido nos sulcos da própria linguagem. A frase-palíndromo é a

seguinte: “SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS” (Ver Fig.6); que em tradução

significa: “O lavrador mantém cuidadosamente a charrua nos sulcos, podendo

também ser entendido como ‘O lavrador sustém cuidadosamente o mundo em sua

órbita” (DALCASTAGNÈ, 2000, p.15). Ao homem, portanto, suster a vida nas fendas

da linguagem. Nessa condição não há caminho, rumo, ou chegada; desde sempre é

o homem já habitado pela linguagem – único modo de exercer a sim mesmo e ao

mundo: “Somos, antes de tudo, na linguagem e pela linguagem. Não é necessário

um caminho para a linguagem. Um caminho para a linguagem é até mesmo

impossível, uma vez que já estamos no lugar para o qual o caminho deveria nos

conduzir” (HEIDEGGER, 2003, p. 191 e 192). O homem é então o sumo

representante da saga do dizer – caminho, homem e linguagem, confluídos em um

único espaço ao pulso da vida.

Cumpre daí estender “originaridade” à linguagem – cumpre-se daí a meta de

Avalovara. Igualmente aos modelos captados pelas tintas do pintor Giuseppe

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Arcimboldo4 (Ver. Figs. 2, 7, 8, 9 e 12), a narrativa de Avalovara não se firma pela

presença de uma centralidade significativa. O homem que por ela se diz, é sempre

um voo infinito em meio a sua própria expressividade – é Avalovara o mítico pássaro

feito de múltiplos pássaros (Ver Fig. 3).

Figura 2 – Giuseppe Arcimboldo, Vertemnu. Fonte:http://www.google.com.br/imgres?imgurl=

http://4.bp.blogspot.com/

Figura 3 – Capa do romance Avalovara, de Osman Lins, idealizada por Kélio Rodrigues de

Oliveira. Editora Melhoramentos, 19735.

Fonte: Cabeças compostas (FERREIRA, 2005, p. 168).

2.2 AVALOVARA: ENGENHO E PALAVRA

Ao adotar como figuras símbolo o quadrado e a espiral (Ver Fig. 1),

Avalovara nos impinge pensar a inefabilidade da escrita. Caminho de divisas

borradas, sua letra cursa mais pelo que “descontem” do que por aquilo que se

4 Pintor milanês (1527-1593), conhecido por utilizar em suas pinturas simbólicas elementos inusuais

para daí conformar faces humanas. Seu interesse se renovou quando os surrealistas valorizaram aquilo que nele entendiam como “trocadilhos visuais”. 5 Avalovara – “pássaro feito de pássaros” – nesta reprodução, traz nas porções da asa e do peito, de

modo estilizado, os muitos pássaros que o compõe.

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poderia nela reter. Experimento metalinguístico imposto à própria subversão,

Avalovara cava sua construção narrativa justamente ao retorquir a significação.

Suas linhas de influência, seus intertextos e a própria dramatização da sua condição

representacional, seriam insurgentes a um resgate semântico de ordem estrita.

Modesto Carone (2004) em seu artigo “Avalovara: Precisão e fantasia” evoca essa

questão:

A primeira resposta que ocorre é que esse romance tende a chocar certos hábitos

de leitura e compreensão de um texto narrativo. Em outros termos, isso significa

que não se encaixa facilmente no ‘horizonte de expectativa’. (Erwartungshorizont,

para usar a expressão consagrada por Hans Robert Jauss) de um número

considerável de leitores. (p. 225)

Portanto, não se trata apenas de estabelecer um recurso analítico

comparatista à letra de Avalovara. Não bastam guias às suas remissões e

intertextos: sua circulação simbólica volatiliza-se perante determinadas formulações

de compreensão. Infunde-se assim, no mais das vezes, em alguns leitores, o

desconforto quando do seu atravessamento. Para estes, ainda que espectralmente,

o texto romanesco teria de avançar suas variações sob a chave da “dizibilidade” – se

não prévia, ulterior. Em seu artigo, Modesto Carone (2004) nos diz ainda que “é

preciso lembrar, porém, que essas expectativas são condicionadas por uma

determinada tradição literária. Quando esta, já consolidada em normas e cânones

(explícitos ou não), se vê desrespeitada, a obra que veicula a violação se torna

“difícil”, quando não ‘incompreensível’” (p. 225). Não raro, a formação significacional

em Avalovara vem pelo tom da deriva. Toda a sua marcha narrativa; seus índices e

registros intertextuais – por vezes tão ressonantes – são aerados por essa condição

virtual de significação. Seu constructo textual se compõe de uma meada de vozes e

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remissões que se formam não para conter ou sustentar o sentido em uma condição

pontual, mas para mover sem fim as possibilidades da palavra. Uma vez mais, é a

figuração do quadrado e da espiral (Ver Fig. 1), em seu estado de fusão e

indecidibilidade, que leva a termo a infinita distensão da letra textual de Avalovara.

Em seu artigo, Modesto Carone dispõe também sobre essa questão: “Não é demais

lembrar que tal mobilidade e reversibilidade, que chega sempre ao mesmo

resultado, remete à concepção de um romance feito de espaços abertos e fechados,

tendentes a estruturar um mundo simultaneamente múltiplo e idêntico a si mesmo”

(p. 229).

Toda a exuberância verbal e visual que ilumina a poética de Avalovara é

havida do seu constante ultrapassamento. Constituir em exame a mobilidade de sua

significação implica não ceder à paragem de um sentido final dado à palavra – ou

como quer Blanchot: fazer da significatividade do livro (do texto), sempre “por vir”6.

Essa refulgência da letra, destravada em sua pura potência, resulta à palavra de

Avalovara itinerar sem fim pelos seus próprios pontos de fuga. Ressurgida em torno

dessa manobra que desconforta os halos e a firmação do dizer, qual a figura

palindrômica que lhe é recorrente (Ver Figs. 1 e 6), sua marca verbal desabre para a

significação em todas as direções:

Não ignora Loreius que a palavra central da frase a ser descoberta – e que servirá

de suporte às outras quatro – deverá também, para desempenhar sua função, ser

lida indiferentemente em ambos os sentidos. Repassa, assim, nos banhos, nos

sonhos, só, em companhia, durante as representações teatrais ou ao longo de seus

habituais passeios às vertentes suaves do vulcão, todos os termos palíndromos de

que pode lembrar-se, acabando por, dentre todos, optar pelo que mais fascinante

lhe parece. Escolhe a palavra TENET, não apenas por ser um verbo indicativo de

6 Alusão ao título do livro de Maurice Blanchot, O livro por vir.

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posse, de domínio, fator de alta importância para ele, um escravo, como por

subentender (tenet: “conduz”, “sustém”; mas quem conduz, quem sustém?) a

existência de um terceiro, um agente, alguém que age, desconhecendo-se porém a

sua identidade e o que faz ao certo. (LINS, 2005, p. 35)

É o próprio Blanchot quem nos põe a par dessa experiência de ter com a

palavra “a céu aberto”. Em nota interiorizada em A conversa infinita – a palavra

plural (2010), diz: “Invisivelmente, a escrita é convocada a desfazer o discurso no

qual, por mais infelizes que nos acreditemos, mantemo-nos, nós que dele dispomos,

confortavelmente instalados” (p. 9). Trata-se, portanto, não mais da simples eleição

de um recurso à linguagem que nos manteria apaziguados em seu interior;

confiando-nos à identificação de um pertencimento dado de antemão. Deste modo,

se ao final da narrativa de Avalovara concorre seu fim para o início e vice-versa; a

simples inscrição no interior do texto desta báscula temporal, se nos desabre a uma

totalidade que não mais pode ser circunscrita; posto jamais permitir que

requadremos todas as suas possibilidades significativas. Os tempos fusionados

indicam-se assim para além de uma simples mecânica dirigida à captação do

sentido da letra. Não constando em cifra segura, tais tempos tidos no interior da letra

do romance de Lins são um belo exemplo do maquinismo ativo das marcas

significacionais depositadas em sua escritura mesma. Não se trata da simples

guarda corriqueira e usual da palavra ao seu uso cotidiano – correm por outro eixo

os seus intercâmbios de significação. Tatiana Salem Levy em seu livro A experiência

do fora (2003) tece as seguintes considerações a esse respeito: “A linguagem do

dia-a-dia tem, como se sabe, referência direta com aquilo que designa: a realidade

dada como nossa. Seu objetivo não é senão o de remeter a um objeto que se

encontra no mundo” (p. 19).

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Sobretudo há de se dizer que a eminência da escritura de Avalovara não

está centrada nesse tipo de corte representacional dualizado; sua dimensão

discursiva vai para além dessa subscrição sagital dada à palavra. O seu discurso

encima-se do mais fundo gesto literário; permitindo jogar com o vazio no interior da

representação, sem com isso elevá-lo a categoria de um sentido último. Trata-se de

um trânsito de linguagem que se opera no limite da sua própria capacidade de se

fazer dizer... A beira do abismo... A deriva. Nessa textualização literária da palavra,

[...] a linguagem deixa de ser um instrumento, um meio, e as palavras não são mais

apenas entendidas vazias se referindo ao mundo exterior. Aqui, a linguagem não

parte do mundo, mas constitui o seu próprio universo, cria a sua própria realidade.

É justamente em seu uso literário que a linguagem revela a sua essência: o poder

de criar, de fundar um mundo. Dessa forma, as palavras passam a ter uma

finalidade em si mesmas, perdendo sua função designativa. (LEVY, 2003, p. 19)

Sobretudo a literatura torna-se um jogo de interpretações sem arrimo. Sua

letra não insula o sentido. Por exemplo, a progressão matemática de uma espiral

(Divisão Áurea/Sucessão de Fibonacci), é antes um rastro; apenas sulcos projetados

ao infinito sem a pretensão de deslindar a vida. O mesmo se dá no interior de

Avalovara, quando Julius Heckethorn, ao falar em seu diário dos quadrantes criados

por Anaximandro de Mileto, para facilitar a divisão do dia em horas pela incidência

da luz solar (Ver Fig. 6), poetiza tal gesto:

P

O RELÓGIO DE JULIUS HECKETHORN

Os relógios, escreve J. H., têm estreita relação com o mundo e o que representam

ultrapassa largamente a sua utilidade. Desde a origem, opõem ao eterno o

transitório e tentam ser espelho das estrelas. Mais ainda: exprimem em números

simples – tão simples que, ingenuamente, julgamos compreendê-los – o ritmo

impresso desde a origem à marcha solene e delicada dos astros. Vede os relógios

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de sol. Pode-se, após alguma reflexão, continuar a crer que Anaximandro de Mileto,

quando fabrica quadrantes, quer apenas facilitar a divisão do dia em horas? O que

ele pretendia é converter a luz solar, seu giro harmonioso, numa flor geométrica

que feneça ao anoitecer. (LINS, 2005, p. 156 e 157)

É desse fluir que se cobre de delicadezas; desse pronunciamento esférico

que sutiliza os ditos arcados pela palavra; que só se pode apelar na pronúncia,

jamais na certeza, que se configuraria, em extensão, o discurso literário de

Avalovara. Ao baldar pequenas mostras de uma realidade que não cessa de se

estender, a palavra literária internada na trama romanesca do livro, cumpre o seu

curso. É uma experiência de significação que desliza ao invés de cerrar sentido.

Qual o soar de um relógio ao marcar a marcha das horas de um dia, a letra literária

do romance de Lins grama marcas sobre o papel; escandindo histórias que jamais

lhe estão alhures. Se nos conforma de algum modo sua face discursiva, ela nuança

o passo ao proferir o seu dizer. Por vezes – é uma pujante carga neutra; já feita toda

apenas do manejo da palavra. Roland Barthes em uma das suas anotações às

aulas e seminários que ministrou no Collège de France, nos anos de 1977 e 1978,

reunidas sob o título de O neutro (2003), mostra-nos essa condição ao evocar a

figura orientalizada do Tao7 (Ver Fig. 5) “O Tao é ‘ao mesmo tempo o caminho por

percorrer e o fim do percurso, o método e a consecução. Não se há de distinguir

entre meio e fim <...> mal se envereda pelo cominho, ele já está todo percorrido’

cada figura é ao mesmo tempo busca do neutro e mostração do Neutro (≠

demostração)”. (p. 26)

7 O Tao significa caminho, não no sentido de ligar uma instância a outra, mas no sentido de, por si só,

ser a totalidade – uma unidade de integração e primordialização cósmica.

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Ao afigurar-se à Jano8 (Ver Fig. 4), deidade romana de dupla face, no

romance representada pela figura andrógena de Cecília, segundo amor de Abel, a

espiral (Ver Fig. 1), ao “Quadrado de Sator” (Ver Fig. 6), aos rostos compósitos

saídos das telas de Arcimboldo (Ver Figs. 2, 7, 8, 9 e 12), ao também compósito

corpo do pássaro avalovara – “feito de pássaros” (Ver Fig. 3), o romance de Osman

Lins se captaria pelo mesmo incessado ir e vir que Roland Barthes (2003) identifica

à figura do Tao – início e fim tangenciando-se em constante e perpétuo devir – (Ver

Fig. 5). Ambos os discursos se armariam da mesma vocativa escultórico-escritural

de nuançamento e neutralidade. Mais adiante, na mesma anotação, Barthes (2003)

diz:

Descrever, destecer o quê? As nuances. De fato, eu gostaria, se estivesse em meu

poder, de olhar as palavras-figuras (a começar pelo Neutro) com um olhar rasante

que pusesse à mostra nuances (mercadoria cada vez mais rara, verdadeiro luxo

deslocado da linguagem; em grego = diaphorá, palavra nietzschiana). Entenda-se

bem: isto não é reivindicação de sofisticação intelectual. O que procuro, na

preparação do curso, é uma introdução ao viver, um guia de vida (projeto ético):

quero viver segundo a nuance. Ora, há uma mestra de nuances, a literatura: tentar

viver segundo as nuances que a literatura me ensina (“Minha língua sobre sua pele

≠ meus lábios sobre sua mão”) → cadeira de semiologia = 1) Literatura: códice de

nuances + 2) Semiologia: escuta ou visão das nuances. (p. 27-28)

O próprio Roland Barthes, agora em aula inaugural à cadeira de Semiologia

Literária, no mesmo Collège de France, já denotara essa ética das nuances. Diz ele:

“a literatura faz girar os saberes, não fixa, não fetichiza nenhum deles; ela lhes dá

um lugar indireto, e esse indireto é precioso” (BARTHES, 2004, p. 18). Essa “in-

direção” cultivada no interior da palavra literária, faz do seu próprio experimento um

8 “Jano é um dos mais antigos deuses do panteão romano. É representado com dois rostos que se

opõem, um olhando para frente, outro para trás” (GRIMAL, 2000, p. 258).

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verdadeiro acinte ao que Barthes toma como sendo o poder fascista da linguagem;

ao contrário do que se possa parecer, esse poder não se notabiliza por uma ação

impeditiva (proibitiva): mas por um imperioso e autoritário “ter de dizer” – ao qual, em

nosso dia-a-dia, todos nós já estamos sempre submetidos. A cisão com esse gesto

discricionário votado à linguagem, só pode prorromper da insígnia da literatura: é

somente em seu interior que se pode dirigir a sublevação da palavra à própria

palavra. Sobretudo é por sua marca escritural que a linguagem pode refletir

“incessantemente sobre o saber, segundo um discurso que não é mais

epistemológico mais dramático” (BARTHES, 2004, p. 19). Ou seja: desde aí, se

enfeixa em drama o que tiramos por absoluto em nosso cotidiano; justamente o que

Maurice Blanchot, em seu Espaço literário (1987), toma por “não fala”. “Onde não

fala, já fala; quando cessa, persevera. Não é silenciosa porque, precisamente, o

silêncio fala-se nela” (BLANCHOT, 1987, p. 45).

Ao silenciar no interior da literatura, a linguagem emancipa-se do poder

designativo – não mais se visa pela invariante do “ter de dizer”, mas pelo ser

dramático que é: “Então, para o homem que lida em profundidade com as palavras,

a única superioridade do livro sobre os meios de registro direto não é ‘a simultânea

revelação do olhar’. Esta, nem sempre é a sua mais notável superioridade. O que

contém de mais importante o livro é precisamente o seu silêncio” (LINS, 1974, p.

146).

Apercebida desse nuançamento, a letra de Avalovara recua a palavra do

mero gozo da utilização – faz desse modo de ser um dos seus trunfos. Não atida

como simples jogo de contrastes marcados abruptamente: sua letra converte a vida

em escrita... Posto já tê-la antes tornado literatura.

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Figura 4 – Deus Jano Fonte:http://mitographos.blogspot.com.br/search/label/mitologia%20romana

Figura 5 – Tao Fonte:http://www.livredesi.com/wpcontent/uploads/2009/11/tao.png?w=150

Figura 6 – Quadrado Sator Fonte:

http://en.wikipedia.org/wiki/File:Sator_Square_at_Opp%C3

%A8de.jpg

Figura 7 – William Blake, Newton9

Fonte: Cabeças compostas (FERREIRA, 2005, p. 134)

2.3 INTERTEXTUALIDADE E ESTRUTURA EM AVALOVARA

São muitos e variados os intertextos que compõem Avalovara. As áreas

abrangidas vão do mito, passando pela filosofia, religião, arte e outros campos

saídos das humanidades. Constam ainda menções às ciências e a episódios

9 A ilustração de William Blake se apresenta aqui em alusão à descrição poética feita pela

personagem do relojoeiro Julius Heckethorn quando este descreve os quadrantes criados por Anaximandro de Mileto para facilitar a divisão do dia em horas, pela incidência da luz solar.

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políticos pontuais à vida brasileira das décadas de 50, 60 e 70 do século XX.

Trabalhados habilmente por Osman Lins, esses quadros referencias atravessam o

romance, advindos de um inusitado uso que os desvia do ordinário. Fazendo da

palavra uma instância de constante derivação significativa, esses intertextos

costuram em fusão, afetos e cronotopias. Regina Dalcastagnè, em seu livro A

garganta das coisas (2000), entende que a narrativa osmaniana cursa

cosmogonicamente por duas linhas principais: “Osman Lins oferece a gênese e a

estrutura de sua criação em duas linhas narrativas de Avalovara – ‘A espiral e o

quadrado’ e ‘O relógio de Julius Heckethorn’” (p. 17).

Abel e Julius, respectivamente, figuram cada qual à frente de um desses

dois momentos: ao primeiro, três amores, em três tempos, cedidos em três espaços,

opera uma experiência sensorial-perceptiva de junção; ao segundo – a ilustrativa

fabricação dos mecanismos de um relógio – dimensionam-lhe ante uma escansão

espaço-temporal sem fim: simbolização da fusão enigmática das duas instâncias. As

demais personagens também estariam apercebidas desse mesmo modo de

mostração: “através da compressão de materiais estranhos, como fazia o pintor

milanês Giuseppe Arcimboldo, Osman Lins as converte em metáforas de si mesmas,

e acaba por problematizar toda a relação entre realidade e arte significacional”

(Dalcastagnè, 2000, p. 15).

Como no horizonte pictórico das telas de Arcimboldo (Ver Figs. 2, 7, 8, 9 e

12), os contornos dessas personagens se preencheriam do insólito. Condensadas

por elementos significacionais compósitos, o que estaria em relevo em suas

construções significacionais seria a dimensão puramente fantasmática, ensejada em

suas próprias representações. Sendo que é dessa agregação narrativa sem fundo

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ou núcleo, que parece brotar o estofo significativo que as compõe. O enlace

intertextual desses rostos pré-dispostos a uma constante mobilidade signa, forma

escritura pictorial que todo o momento perfura a própria camada de significação.

Sendo esse um dos modos representativos pelos quais a espiral

“escultórico/escritural” de Avalovara atravessa a si mesma em um quadro de

linguagem sempre palindrômico.

Portanto, é um movimento narrativo próprio e deambulado que se põe como

primordial. “Enquanto o quadrado é a imagem do espaço cósmico e da página do

livro, portanto da finitude, do horizonte, a espiral simboliza o tempo desenrolando-se

infinitamente, o caos. Espaço e tempo, caos e cosmos são elementos fundamentais

em Avalovara, são causa e consequência, forma e conteúdo” (DALCASTAGNÉ,

2000, p. 16).

Ao “desdizer” o uso habitual da representação ficcional, Avalovara molda

seu texto na direção de transpor em literatura uma realidade significante que só

pode principiar da sua própria letra. Toda uma dimensão significativa já se põe

assim indistinta ao próprio cursar escritural da sua narrativa:

Se passo horas na sombria umidade da cisterna e se lanço a rede até não poder

mais, não é com apanhar algum dos poucos peixes aí prisioneiros: procuro fazer,

deste ato ocioso e que executo mal, um eixo entorno de onde giram, nunca

chegando a termo, minhas indagações sem cabeça. Só, sob a cobertura – estalam

as folhas de zinco, nas noites mais quentes –, vou jogando a rede, colhendo-a e

indagando. (Onde? O quê? Por quê?) De respostas, nem sinal. (LINS, 2005, p. 77)

Esse modo de ser da letra de Avalovara se apresenta captado no que diz

Regina Igel (1988) em seu livro Osman Lins uma biografia literária, quando comenta

sobre certo rigor simétrico coadunado ao entalhe barroco do texto:

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A simetria rigorosa do romance, agregada a sua forte carga ornamental, povoada

de animais (grifo, anfisbena, borboletas, leões, carneiros, gatos, pássaros),

mansões e praias (Olinda, São Paulo), palácios (Europa), festas folclóricas

(Pastoril, baile nupcial), entre outras manifestações tipificantes, compõem a

globalidade do romance como partículas aderentes a um todo homogêneo. (p. 104)

Com isso não se quer aqui anunciar que a realidade não se torne matéria

narrativa nas letras do romance; ao contrário, o caminho do real para o ficcional está

presente, por exemplo, quando das referências “aos rostos e personalidades que

compõem a família da Gorda e do Tesoureiro, extraídos de pessoas com quem Lins

foi obrigado a conviver, durante o período que morou em Recife, em nome da boa

conduta social” (IGEL, 1988, p. 106).

Não apenas essas duas personagens10 estão dispostas sob este crivo,

outras cenas e personas também perfiguram literariamente o real. E é justamente

por estarem ao alcance da literatura, que podem nela habitar. Desse mesmo modo,

toda a calculabilidade significante disposta no interior do texto de Avalovara,

“representada pela contagem numérica das palavras e pelo crescimento

proporcional das narrativas nele inseridas, inclui a junção dos elementos

ornamentais assinalados, carregados de detalhes e contorcionismos léxicos e

sintagmáticos do barroco literário” (IGEL, 1988, p. 104). A sinuosidade barroca da

narrativa e o seu corte lógico, confortam-se em um só molde estruturador; todas as

suas figuras de sentido são assim inscritas enigmaticamente neste espaço duplo:

As previsões, narrativas contempladas ao espelho, narrativas ao contrário,

contadas no futuro. Pode ser que tudo exista simultaneamente e que tenhamos do

tempo não uma idéia correta ou verdadeira, e sim que preserve a nossa

10

As duas personagens aqui referidas são Gorda e Tesoureiro, ambas saídas de Avalovara. Gorda é ex-prostituta e mãe de três filhos, sendo um deles Abel; o Tesoureiro é marido de Gorda e pai adotivo de Abel.

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integridade. Temos de crer que somos um ponto, não um traço reto ou sinuoso;

aprendemos as coisas, não a soma de seus deslocamentos. (LINS, 2005, p. 134)

Por sua pletora de pronunciamentos, que sutilmente entranha

simultaneidades no tramado textual, Avalovara faz-se de ponto de interseção, que a

um só gesto une o “reto” ao “sinuoso” em matéria de sentido. Assim seguem-se a

vida amorosa de Abel e a trajetória do carrilhão montado por Julius Heckethorn –

este do próprio nascedouro na Alemanha, à conversão em testemunha opaca do

assassinato de Abel e de .

A disposição significacional sutilizada do livro mostra-se à semelhança do

relógio montado pela personagem Julius; sua “seqüência de notas está dispersa e

exige do observador um conhecimento geral das leis que regem a sua invenção,

sem o que facilmente parecerá fastidiosa, irregular e destituída de um conhecimento

aprofundado do ofício” (DALCASTAGNÉ, 2000, p. 19).

Tanto a feitura quanto o manuseio dos sinais semióticos que conformam o

texto de Avalovara, seguem, portanto, uma bula de “nuançamentos”. Convocada ao

pé de uma metafórica exatidão, concomitantemente tal bula evoca-se também na

sinuosidade contida em sua própria letra: “nem tudo se mostra em Avalovara –

subsiste, nas ranhuras de suas paredes, o inefável” (DALCASTAGNÉ, 2000, p. 19).

Quanto às semelhanças mantidas com textos clássicos da literatura, um dos

motes é o que enfeixa a personagem Abel em sua caminhada rumo a um estado de

redenção. A cata de um platô que só se fará atingido pela via do amor idealizado ele

nos remete a procura obsedante do comandante Ahab à Moby Dick, de Melville.

Percurso e busca também se encontram em Werther de Goethe. Mais próximo ainda

de Avalovara, à guisa de comparação, se poderia declinar A divina comédia de

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Dante. Muitos são os pontos de contato entre ambas as obras; por exemplo: são três

os amores de Abel; três, as partes em que se divide a Divina comédia – Inferno,

Purgatório e Paraíso. No poema de Dante círculos concêntricos divisam a terra em

sua nuclearidade; em Avalovara há uma espiral em conversão enigmática a uma

paradoxal centralidade, invariavelmente contida no fundo sem fim das letras

palindrômicas que ensejam simbolicamente o romance. Sandra Nitrini em seu livro

Trans-figurações (2010), também dá conhecimento desta gama de semelhanças:

“As ressonâncias desta obra medieval em Avalovara estendem-se na concepção

estrutural da obra, na linguagem simbólica, na numerologia e no ritmo poético de

seu discurso” (p. 143). Todavia, Nitrini (2010) aponta que:

Em todos esses casos, trata-se de um diálogo difuso, que não permite um cotejo

direto, mas que assinala a imersão de Osman Lins no universo literário de Dante e

seu aproveitamento naquilo que lhe interessa para compor seu discurso literário

específico, no Brasil, em pleno século XX, sob o signo da construção racional,

geométrica e simbólica e da arte da poesia que mescla realidade e fantasia. (p.143)

Outra fonte intertextual se compõe das três mulheres amadas por Abel. O

primeiro destes três amores é Anneliese Roos; tendo como cenário a Europa, o

bolsista Abel ao tempo de um semestre em que passa estabelecido na França, ama-

a intensamente – mas não é correspondido na mesma proporção. Regina Igel (1988)

entende que a estudante alemã, infensa às intensidades amorosas de Abel,

“representaria, no fluir da enunciação, a cultura européia urbana, com a qual Abel

entrava em contato pessoal pela primeira vez na sua vida” (p.127). Segundo Igel

(2010), Anneliese seria “a personificação da inconquistável Europa, sempre

contemplada e nunca possuída, perene frustração de latino-americanos edipianos

que, como Abel a seu tempo, embuçados em filhos pródigos, vão em busca do seio

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renascentista materno, enfrentando a insofismável realidade da rejeição histórica”

(p.128).

O segundo amor de Abel é Cecília; transcorrida na cidade natal de ambos,

Cecília também é recifense, a paixão neste caso se faz plena em correspondência.

Dois amores; o primeiro, vivido em terra estrangeira: não vinga; o segundo, cingido

na proximidade geográfica: viceja. Perdido o primeiro amor para a distância e para a

vida, é no exíguo espaço de um carro sinistrado por um grave acidente que Abel vê

fenecer o segundo para a morte.

Por fim, temos o que seria o amor síntese, o amor por . Se a Anneliese

Roos tocava o papel da figura feminina inatingível, de antemão se mostrando de

todo infrutífero. Se era Cecília amor à “meio caminho” – posto ser a completude que

se ceifa para a morte –, é a porção final do arco que compreende toda uma

caminhada textual: o fim dirigido para o “aberto da morte”e para o desabrido da

significação. É para a morte que Abel e são destinados em meio a culminação

amorosa que os enlaça; sendo ela também a redenção metafórica que abre a

narrativa para os seus infinitos circulos de significação. É ela, a morte, a

possibilidade do voo silêncio da letra do romance – reiterante condução à dimensão

neutra da página escrita... A possibilidade de uma interminável,constante e

renovada significação.

Há de se observar ainda que muitas outras indicações cruzam a letra de

Avalovara – mas quanto desse jogo de dizer coloca à lúmen o cerne de suas

significações? Por exemplo, como já visto no subcapítulo “A dimensão originária da

linguagem”, o terceiro amor de Abel é mais uma das ricas composições semânticas

comportadas no texto do romance – mas o que de fato isso nos indica? Boa parte

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dos nomes próprios contidos em Avalovara também está encadeada nesta mesma

semiose inesgotavelmente criativa; mas o que efetivamente isso confere à letra do

romance? Abaixo, por exemplo, Regina Igel (1988) dispõe-nos a um jogo semântico

envolvendo o nome de Anneliese Roos:

Num plano particular e, paradoxalmente, universal, pelos símbolos passíveis de

serem extraídos daí, Abel leu, nas quatro letras do nome “Roos” as iniciais de

Ravena, Oviedo, Órleans e Salsburg (A 21), e incorporou, a esta leitura

transcendental, a Cidade, cristalização do seu plano idealizado de chegada ou

conquista do segredo da vida, através da posse espiritual e física da mulher. A

efemeridade do relacionamento entre eles se consubstancia no símbolo de

fenecimento contido no nome ‘Rosa’, (Roos) o qual, como todos ou quase todos os

nomes próprios no romance, contém uma mensagem implícita. (p.128)

Essa concatenação simbólica empregada ao texto, sem dúvida agrega

riqueza ao artesanato discursivo de Avalovara; porém, verter o romance em simples

códice estetizado desses manejos é aproveitar muito pouco das suas possibilidades.

Indo além, o que se pode visar do jogo de remissões habilmente construído por

Osman Lins, é a dimensão da linguagem em seu amplo movimento de ser. O que se

quer aqui, portanto, é mostrar a escritura de Avalovara justamente naquilo que foge

de ser ela um projeto analítico de linguagem excessivamente ordenador. Posto que

esse nível de codificação, como demonstra Jacques Derrida em Gramatologia

(2006), no ensaio intitulado “O fim do livro e o começo da escritura”, colocaria “a

escritura numa função segunda e instrumental: tradutora de uma fala plena e

plenamente presente (presente a si, a seu significado, ao outro, condição mesma do

tema da presença em geral), técnica a serviço da linguagem, porta-voz (porte-

parole), intérprete de uma fala originária que nela mesma se subtrairia à

interpretação” (p. 9).

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Uma analítica feita dessa auscultação movente, ainda que levasse em conta

o rico manancial intertextual e semiótico de Avalovara, ter-se-ia de se mostrar

indistinta ao próprio fluir do jogo encenado em sua linguagem – imiscuir-se em seu

contínuo movimento. Visão consonante apresenta-nos Barthes nos cursos

ministrados no Collège de France, resgatados por Leyla Perrone-Moisés em seu

ensaio “A prática da Aula nos cursos do Collège de France” (2005): “‘Trata-se pois,

aqui, pelo menos como postulação, de cultura e não de método. Nada esperar

acerca do método – a menos que se tome a palavra em seu sentido mallarmaico:

ficção’: linguagem refletindo sobre a linguagem” (BARTHES, 2002a, p. 34 citado em

PERRONE-MOISÉS, p. 132).

Essa concitação à cultura e não ao método, bem como a lembrança à

Mallarmé11, são de suma importância para o entendimento das falas que Barthes

ministra no Collège – como também o são para este texto dissertativo. “Linguagem

refletindo sobre linguagem” – eis o ponto. Sobressai aí um exame contestador a toda

sorte de apriorismos metodológicos dirigidos à palavra. Sendo um corpo de análise

dirigido à linguagem, nada mais do que também linguagem entrega-se nesse

sempre infinito movimento de pronúncia. Como nos exames que procedemos às

faces esboçadas nos quadros de Arcimboldo, tais gestos de análise estariam

emborcados em uma “ausência de centro”. Mas, nem mesmo essa metafórica

extrapolação linguística, se poderá projetar para além de si mesma. Cheia de si, no

interior da própria palavra que a diz, toda a linguagem será sempre suas próprias

variações e possibilidades significativas, invariante somente ao próprio arco de suas

intermináveis possibilidades semânticas. Buscando então uma alternativa a essa

11

Mallarmé questiona as barreiras que dividem o discurso ficcional dos discursos que se querem representantes da realidade.

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analítica que se firmaria em uma continuada movência; sem, contudo, ir além da

própria circunstância que encerraria a linguagem em seu continuado movimento de

ser – Barthes toma-se da utopia do “Neutro”12. Mais precisamente, em suas aulas e

seminários ministrados no Collège de France, no período compreendido entre os

anos de 1977 e 1978, em especial em aulas como a ministrada em 25 de fevereiro

de 1978, intitulada “A fadiga”; na qual tratará de modo especial essa neutralidade

dirigida pela palavra a palavra mesma. O faz, inspirando-se em nota de A conversa

infinita (2010), de Maurice Blanchot, no que ali se nomeia por “fadiga” (“cansaço”):

“Oh! neutro, livra-me de meu cansaço, conduz-me em direção àquilo que, embora

me preocupando a ponto de ocupar todo o espaço, não me diz respeito – Mas é isto,

o cansaço, um estado que não é possessivo, que absorve sem por nada em

questão” (p. 21). Sendo justamente dessa possibilidade – desse “nada em questão”

– que Barthes é levado a refletir sobre esse estado da linguagem que nomina por

Neutro. Ainda que metafórico (utópico), ele nos permitiria pensar a linguagem em

uma condição distinta de suas disposições naturalizadas e usuais – ou seja: por

exemplo, formalizada desde um estabelecimento dicotômico entre “sujeito” e

“objeto”. Portanto, tratar-se-ia da desmobilização da linguagem em relação a todos

as suas chaves de declinação (de um constatativo “ter de dizer” – ainda que seja

esse dizer o abster-se firmado pela negativa de assim fazê-lo), para que, desde aí,

dispensando a linguagem dessas visa, possamo-la exprimir, não em função de algo

ou alguma coisa (“afirmando” – ou “negando”), mas fazendo-a paradoxalmente

“ativa” em sua pura condição de neutralidade. Eric Hoppenot, em seu artigo

12

“Barthes propõe uma definição do Neutro: ‘defino o Neutro como aquilo que burla o paradigma, ou melhor, chamo de Neutro tudo o que burla o paradigma. Pois não defino uma palavra; dou nome a uma coisa: reúno sob um nome, que aqui é Neutro” (BARTHES 2003, p. 16 e 17 citado em HOPPENOT, 2007, p. 81).

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“Escritura e Fadiga nas obras de Roland Barthes e Maurice Blanchot” (2007), fala-

nos dessa fadiga como:

[...] uma das modalidades essenciais do Neutro. Se a fadiga permite num

determinado momento da história do sujeito barthesiano, articular fadiga/

fragmentário/ Neutro, é que, sem dúvida graças à leitura de Blanchot, sua

apreensão da fadiga evolui. Não é mais apenas o tédio da mesa redonda ou a

desordem amorosa, a fadiga esconde uma energia que se transforma em escritura.

Escrever cansado, escrever sobre a fadiga é ainda escrever. (p. 85)

Tratar-se-ia de se captar essa condição neutra cabida à linguagem, como

atividade (como potência). Atividade que faria jus a si justamente por não ser um

estar “em função de”. Pois, “o Neutro não é a própria oposição ele é o terceiro termo

produzido por essa antítese” (HOPPENOT, 2007, p. 81). Sendo que é desse pairar

sobre toda a tensão antitética que se confluiria o Neutro barthesiano. Éric Marty, em

Roland Barthes, o ofício de escrever (2009), expõe-nos mais detidamente tal

condição: “O Neutro, assim, desmascara todas as repetições, todas as conclusões,

todas as reflexividades: errático como o fragmento, não é em nada o material de um

novo dogmatismo” (p. 371). Portanto, não se trataria nem mesmo de estabelecê-lo

conceitualmente. O Neutro se faria à linguagem sem lhe ser um gesto demarcatório;

sem exercê-la na qualidade de ditame – de instamento. Tratar-se-ia de uma

metáfora utópica do “não pensado” (...) do “não inscrito”... Da “palavra” sem qualquer

apercebimento ou marca; que só é – enquanto possuída da vontade que a ausenta

das demarcações de todo o querer dizer específico; sem com isso querer-se na

porção estabelecida de uma ausência. Somente nas bordas desse total

contrassenso, nessa utopia signa, é que se poderia exercer o Neutro – dito que é ele

um “Não querer-Possuir”; um sempre “por vir”: posto que “o Neutro verdadeiro, é

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sem fim. Essa versão literal atribuída ao Não-Querer-Possuir deve-nos convidar a

não responder à obrigação de definição, a questão do ‘O que é?’” (MARTY, 2009, p.

377).

É ainda Éric Marty (2009) quem nos diz ser possível essa ousada concepção

barthesiana (o Neutro) por ser ela uma fala analítica próxima à liberdade

desconstrutora que habitaria em potência o interior de todo discurso literário.

Segundo ele (2009), Barthes só pôde ser Barthes, porque que se afastaria da

massiva sistematização analítica advinda dos ordenamentos prévios da linguagem;

inclusive de certas analíticas sistematizadas saídas do horizonte discursivo da

própria filosofia – o que se pode pensar, já seria uma atitude eminentemente

filosófica:

Ora, Barthes, talvez porque não fosse filósofo, talvez porque seu único objeto (em

qualquer aparência) fosse a escritura, não pode se inserir na perspectiva de um

“sempre já”, de um sempre já escrito. Se existe nele um “heroísmo” do escritor, do

intelectual, não será esse o heroísmo de um dizer, mas (e daí falarmos de uma

“originalidade paradoxal”) o heroísmo de um silêncio, de uma inexpressão,

heroísmo que é, tal como já dissemos, o do neutro, através do qual o sujeito libera

a linguagem, a palavra, o dizer da alienação de um sentido pré-constituído, da

plenitude do estereótipo, da repetição, da generalidade. (p. 262)

Metalinguagem radicalmente construída, a propositura do Neutro

barthesiano é antes uma ação de desabrigo às construções de sentido que se

engenham previamente à letra. Para Barthes, a linguagem seria desde sempre

“metalinguagem, já que se trata justamente de inexprimir o inexprimível, mas ao

mesmo tempo toda a metalinguagem é abolida, já que não há saber objetivante, não

há verdade sobre a verdade, não há a última palavra [...]” (MARTY, 2009, p. 263).

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O discurso literário faz-se então dessa palavra que pode flutuar sem

determinismos; movida para além da simples alienação à representatividade da letra

– para além de uma operatividade funcionalizada. Só assim, “o poético, o inalienável

e a linguagem do mundo, a linguagem da generalidade, podem se cruzar” (MARTY,

2009, p. 263). A escritura literária em si, em sua função de dizer-se como letra

discursiva – como linguagem criacional –, teria de confluir plena em seu experimento

de significação; isto é – mobilizar-se pelos seus mais radicais registros de sentido;

pela intempestiva quebra dos mecanismos alienantes da representação. Lembra-

nos Leda Tenório da Motta, em Roland Barthes: uma biografia intelectual (2011),

que este já trazia consigo a concepção do Neutro quando dos textos de o Rumor da

língua – mais precisamente no ensaio “A morte do autor”:

Barthes já resolvia a questão ao definir, cabalmente, o Neutro como escritura, na

abertura de seu talvez mais célebre ensaio: “A morte do autor”, onde lemos, a

propósito da ambiguidade em que nos deixa a multiplicação das vozes em autores

como Balzac ou Proust, que “A escritura é esse Neutro, esse compósito, esse

oblíquo para o qual ruma nosso sujeito, esse branco e preto em que vem se perder

toda identidade... ”. (BARTHES, 49 citado em MOTTA, 2011, p. 123)

Avalovara se encerra nesse mesmo horizonte de discursividade. Seu

pluralismo intertextual dispõe-se em um movimento de inscrições textuais múltiplas e

compósitas. Sua ampla horizontalidade referencial, constituída de uma extensa

coleção de intertextos, faz dar não em uma unidade de sentido, mais em uma

multiplicidade disjuntiva e diaspórica conflitada com toda e qualquer nucleação

significante. Assim como na composição textual das célebres “Cabeças Compostas”

de Giussepe Arcimboldo, (ver Fig. 9) o jogo narrativo de Avalovara também se lança

ao insólito. Suas personagens são assim descritas por Ermelinda Maria Araújo

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Ferreira, na apresentação do seu estudo à escrita osmaniana intitulado Cabeças

compostas: a personagem feminina na narrativa de Osman Lins (2005): “[...]

estranhos e angustiantes perfis humanos” (p. 19). Deste modo, ainda que a letra de

Avalovara comprima as suas faces no texto, serão elas sempre passíveis de

perdimento nas entrâncias e ranhuras da própria letra que as confere.

Nas têmporas de , no espessor dos seus ossos, de súbito, um nome

resplandece, intraduzível. Ouço, junto às embarcações em repouso, as vagas e a

chuva leve no metal do carro, nos vidros. Seu rosto acende-se contra o horizonte

vago e os cascos das barcaças: livro transparente, iluminado, numa língua além do

meu alcance. (LINS, 2005, p. 39-40)

Disto decorre que ao deslindar as remissões textuais que conformam os

esboços personais de Avalovara, nuançam-se delicadas tonalidades, contornos e

gestos feitos de palavras das quais já não mais pode se saber desde onde se

inauguram: “não são todas, essas, concepções da inquietude humana – deus,

enfisbena, espiral, casal alquímico, dragão bicéfalo e frase palíndroma – sem

principio e sem fim, ou cujo fim, se existe, coincide com seu próprio início?” (LINS,

2005, p. 58).

Quais as faces compósitas compressas nas telas do pintor Giussepe

Arcimboldo (Ver Figs. 2, 7, 8, 9 e 12), todos os rostos e esboços distendidos no

interior da narrativa de Avalovara, conformam-se de muitas camadas e muitos

elementos dados à significação pela via da escritura; não por que falem

representativamente à escrita que os projeta; mas, por comporem-se pelo delicado

estranhamento que os faz ser literatura.

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Fig. 8 – Giuseppe Arcimboldo, Verão.

Fonte: O livro da arte (1999, p. 18)

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3. AVALOVARA, VOO EM ASCENSO INFINITO

3.1 O ROMANCE COMO POTÊNCIA DESAPODERADORA DA LÍNGUA

Em tese, todo o jogo de forças conotativas disposto no interior do discurso

literário, abre-nos a uma operação de escuta à linguagem que nos coloca em direto

apelo ao seu especial poder de significar. Sua inflexão, em alguma medida, às vezes

mais, às vezes menos, se faz distanciada daquilo que tiramos por “uso prático da

palavra” – seu uso meramente comunicacional... (“cotidianizado”).

Falar de uma mensurabilidade teórica dirigida a essa palavra (a palavra

literária), tão pouco nos é novidade; prova disso é o formalismo russo; o apuro

sociológico que a visão bakhtiniana dirige à literatura; as teorias da recepção

desenvolvidas por Wolfgang Iser e Hans Robert Jauss; os trabalhos teóricos Tzvetan

Todorov; bem como todos os outros discursos de relevo levantados em prol de uma

teorização mais esquemática da literatura.

Mas é mister das linhas que aqui se vão confeccionando dizer da própria

linguagem; em especial da que se dispõe ao texto de Avalovara. No entanto, não se

trata aqui de subsumi-la em uma sistematização analítica de ordem prévia. O que se

visa, é trabalhar a sua massa escritural desde onde já não se possa mais distinguir-

se dela; e desde aí, levantar a seguinte questão: o que significa ao homem gramar

suas percepções em texto? Desse modo: é a própria linguagem que se expõe ao

invés de se dispor sob um marco de análise que dela se queira para além.

A aventura textual de Avalovara se pensa aqui, está ligada diretamente a

esse iniludível olhar que “nada aparta”. Nos segmentos “S” do livro (2005), toma-se

contato com uma interessante maquinação metaliterária. Em determinado trecho do

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livro, a guisa de explicação daquelas cidades que seriam unicamente feitas

unicamente de palavras, lê-se:

Mas às cidades vistas nos mapas inventados, ligadas a um espaço irreal, com

limites fictícios e uma topografia ilusória, faltam paredes e ar. Elas não têm a

consistência da prancheta, do transferidor ou do nanquim com que trabalha o

cartógrafo: nascem com o desenho e assumem realidade sobre a folha em branco.

Aonde chegaria o inadvertido viajante que ignorasse este princípio? Elaborar um

mapa de cidades ou de continentes imaginários, com seu relevo e contorno,

assemelha-se portanto a uma viagem no informe. Pouco sabe do invento o

inventor, antes de o desvendar com o seu trabalho. Assim, na construção aqui

iniciada. Só um elemento, por enquanto, é claro e definitivo: rege-a uma espiral, seu

ponto de partida, sua matriz, seu núcleo. (p. 21)

Essa viagem feita pelo informe, que só se pode compor-se na materialidade

da palavra – a isso chamamos de literatura.

No diálogo platônico Timeu, uma cosmogonia que se visa como narrativa de

especulação, com vistas a uma “totalidade cósmica”, tem-se no nome khôra a

designação dessa totalidade: “lugar ocupado por alguém, país, lugar habitado, sítio

marcado, fileira, posto, posição conferida, território ou região” (DERRIDA, 1995, p.

41). Mas essa acepção – diz-nos Derrida, em obra de nome homônimo (1995) – não

é ainda a mais indicada: “Nesses preâmbulos, ainda não se trata de khôra, ao

menos daquela que dá lugar à medida do cosmos” (p. 43).

Tércia, ao tempo que integrante das partes que seria a compositora, khôra

seria o elemento perene a totalidade das coisas, incluso aí a linguagem. É por assim

dizer, o “mítico lugar” de sustentação significativa do todo. Mas como falar de algo

assim? Dito, não estaríamos nós na ordem do mais absoluto contrassenso; posto

que só se pudesse dizer da totalidade se nos dispensássemos de dizê-la de um

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determinado recorte de fala – por exemplo, como o que aqui se produz?... Ou, desde

sempre seria ela um móvel semântico que só se pode ser enquanto pura extensão

movente e continuada?

A escrita de Avalovara (2005) sabe-se atravessada por essa estranha e

paradoxal questão. Ao convocar-se na figura da espiral (Ver Fig. 1), o romance

indica só poder guardar-se no fluxo do seu próprio dizer: “Somos nós que impomos

limite, em ambas as extremidades, para a espiral. Idealmente, ela começa no

Sempre e o Nunca é seu termo” (p. 23). Assim, o incômodo sinal sem fim ou começo

da espiral só se pode barrar na contenção e nos limites da própria linguagem. Mas é

a própria letra de Avalovara (2005), que a todo o momento, faz arranhar esse

mesmo princípio ordenador: “Nem a eternidade bastaria para chegarmos ao término

da espiral – ou sequer ao seu princípio. A espiral não tem começo nem fim” (p. 23).

Mas não se trata da simples firmativa de um “sim” na contracondição de um “não”;

trata-se, antes, de coabitá-los inscritos em seus próprios termos. Este estranho

estado enigmático, já não seria a própria condição da linguagem?

Qual um normógrafo que vai ao fundo das águas de um rio, inflectido por

braços e mãos, mas de lá não faz conter a massa aquosa que lhe perpassa, a letra

de Avalovara não se pode dispor para além de si mesma. Cabe-lhe apenas dar

molde àquilo que não se pode possibilitar na retenção.

Sendo a espiral infinita, e limitadas as criações humanas, o romance inspirado

nessa figura geométrica aberta há que socorrer-se de outra, fechada – e

evocadora, se possível, das janelas, das salas e das folhas de papel, espaços com

limites precisos, nos quais transita o mundo exterior ou dos quais o espreitamos.

(LINS, 2005, p. 24-25)

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Todo o seu molde textual, seria então a perfeita metáfora da coextensão de

uma totalidade que jamais se pode cessar de produzir-se por uma incontida pletora

de significações. Assim, é que a figura aberta da espiral, que ao transpassar a letra

do romance produz-se em uma interminável distensão (Ver Fig. 1), não se fará retida

à superfície que lhe intenta conter a figura do palíndromo (Ver Fig. 1): apenas

perpassa por este em tensão e torção, já indistinta a este espaço pretensamente

delimitador. Tudo lhe é, a um só tempo, “continente” e “conteúdo”... “Contenção e

coisa contida”; e talvez aí sobressaia a exata definição de khôra aplicada à

Avalovara: “[...] que não é um lugar dentre outros, mas talvez o próprio lugar, o

insubstituível lugar” (DERRIDA, 1995, p. 45).

No Timeu, segundo Derrida (1995), khôra é essa plasticidade

incomensurável do todo. Fazendo recurso a Jean-Pierre Vernant, quando este, em

sua obra Mito e sociedade na Grécia antiga (1999), traz à baila a “lógica do

ambíguo, do equívoco”, criticando assim o “principio de não contradição”, evocado

por muitos filósofos (p. 221). Derrida vislumbra em khôra aquilo que Platão no Timeu

parece dispor como o lugar do desafio à “‘lógica de não-contradição dos filósofos’ da

qual fala Vernant, essa lógica ‘da binaridade, do sim ou do não’” (DERRIDA, 1995, p.

9). Faz-se assim viver na letra a própria plasticidade e a aporia de uma totalidade

supostamente cósmica e incontida – e que, em si, inexoravelmente, já seria desde

sempre, o que parece ser a própria precondição estendida ao jogo da linguagem.

Em Avalovara, a espiral é khôra: que “parecendo avançar num determinado

sentido, é na verdade uma imagem de retorno, de vez que os seus extremos, por

inconcebíveis, tendem a unir-se. Seu princípio é seu fim e, além disto, quer como

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figura que imaginariamente avança para os centros, quer como figura que deles se

distancia, é sempre uma espiral” (LINS, 2005, p. 57).

Outrossim, esse assento indecidível feito de uma fluida e plástica totalidade,

comum tanto à letra de Avalovara quanto a do Timeu: “não é uma oscilação dentre

outras, uma oscilação entre dois pólos. Ela oscila entre dois gêneros de oscilação: a

dupla exclusão (nem/nem) e a participação (ao mesmo tempo... e, isto e aquilo)”

(DERRIDA, 1995, p. 13). Em Avalovara, trata-se sempre de prenunciar esse

desabrido estado por uma contínua e incontida condição de giro imposta à

linguagem: a espiral cursando infinda e perpassante o QUADRADO DE SATOR (Ver

Figs. 1 e 6). Khôra e a espiral fazem, portanto, pela via da palavra, às vezes de

horizonte de incorporação desse mítico “lugar” de ultrapassamentos à significação.

Ambas as dimensões representariam um espaço de infinitas derivações. Khôra e a

espiral seriam assim os lugares de sustentação de uma ordem simbólica, paradoxal

e enigmaticamente constituída como o “lugar dos lugares” da significação; e como

tal, inauditos pelas próprias palavras que intentam dizê-los. Osman Lins, em outro

trecho metanarrativo do romance (2005), fala-nos poeticamente desse desabrido

lugar: “seus começos perdem-se num abismo aquático, infestado de sereias, de

peixes cantores, grandes hipocampos alados e aves que não pousam, assim como

acabavam, para os antigos, o mundo então conhecido e seus mapas imperfeitos”

(LINS, 2005, p. 72-73).

Avalovara não é uma experiência metaliterária usual; na qual o fluxo

narrativo desliza sobre um claro e demarcado esteio metatextual; trata-se sempre, e

mais, de se percorrer um chão sem limites; ainda que isso se dê, e somente assim,

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pela via da linguagem; de se ir, invariavelmente, às marcas da significação que já

trariam em si, desde sempre, todos os caminhos:

Outras ilações pressentimos ainda entre as fugidias naturezas da espiral e do

quadrado mágico, dissecados aqui com instrumentos pouco agudos. Entanto, não

as captamos. Se bem possamos ler, com outros olhos que não os de turvar o

visível, as cinco palavras latinas nas conchas dos moluscos, nos ciclones, bem

como em chifres de caprídeos, de ovídeos e de antílopes, muitas relações

permanecem além de nosso alcance, como uma música que, meio adormecidos à

margem de um rio, ouvimos, noite alta, cantada por alguém numa canoa que desce

a correnteza. Nossa mente assegura-nos que a melodia continua, sem que os

sentidos confirmem tal certeza. (LINS, 2005, p. 73)

O simples percebimento da mobilidade semântica contida nas cinco palavras

palíndromas: SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS (Ver Fig.6), não nos faz

cônscios da ampla possibilidade de suas significações; ao contrário, o que nos arma

neste sentido é sempre o “ir e vir” da móbil condição significante ali anunciada; ainda

que nesse espaço nada se prenda de modo efetivo. Roland Barthes em O óbvio e o

obtuso (1990), diz que isso ocorre, por conta do “próprio processo da ‘composição’

que perturba, desagrega, desarranja o surgimento unitário da forma” (p. 132). Assim:

ao analisar as Cabeças Compostas saídas das pinturas de Giuseppe Arcimboldo,

Barthes vivifica nelas a ausência de uma centralidade de sentido que se possa ver

ali articulada; isso ao tempo mesmo que elas mesmas nos impedem de denotarmos

isoladamente seus elementos compositores. A frase palíndroma de Avalovara segue

essa mesma trilha; se em um primeiro momento, seus elementos composicionais só

são vistos em termos da mobilidade espacial dos seus próprios deslocamentos; em

um segundo tempo – e isto é o que nos interessa – forma-se um enigmático jogo de

significações que não pode cerra-se tão somente no deslocamento espacial das

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palavras. Assim, o que principalmente traz a frase de Loreius, SATOR AREPO

TENET OPERA ROTAS (Ver Fig. 6), é uma mobilidade semântica sem fim; sendo-

lhe sempre necessário um segundo gesto interpretante – deste modo, reitera-se

como força significacional sempre deslizante:

O sentido exato da expressão, tão concisa, perder-se-á com o tempo, tornando-a

ambígua. Aos contemporâneos de Loreius, porém, a sentença é de uma grande

clareza e o seu único mistério consiste numa duplicidade de sentido. Diz-se: O

lavrador mantém cuidadosamente a charrua nos sulcos. E também se entende: O

Lavrador sustém cuidadosamente o mundo em sua órbita. Esta última significação,

portanto, atende também aos anseios místicos de Ubonius. Sobre um campo

instável, o mundo, reina uma vontade imutável. (LINS, 2005, p. 36)

Tanto nas pinturas de Arcimboldo (Ver Figs. 2, 7, 8, 9 e 12), quanto na frase

palíndroma criada pelo escravo Loreius, ou ainda no próprio curso narrativo de

Avalovara; o que está em questão não é a simples mobilidade mecânica dos

discursos ali expressados:

[...] o verdadeiro palíndromo nada muda na mensagem, que, apenas, é lida de

maneira idêntica nos dois sentidos: Roma tibi súbito motibus ibit amor, diz

Quintiliano; a frase, colocada diante de um espelho – a partir do fim do verso – será

exatamente igual; o mesmo acontece com as figuras de um baralho: o espelho

corta, repete, mas não desnatura. Ao inverter uma imagem arcimboldesca, ao

contrário, haverá, certamente, um sentido (por isso há palíndromo), mas esse

sentido resultante do movimento de inversão mudou: o prato transforma-se em

cozinheiro. ‘Tudo é sempre idêntico’, diz o verdadeiro palíndromo; qualquer que

seja o sentido em que coloquemos os objetos, a verdade permanece. ‘Tudo pode

tomar um sentido contrário’, diz Arcimboldo; isto é: tudo tem sempre um sentido,

qualquer que seja o tipo de leitura, porém esse sentido nunca é o mesmo. (p. 127)

Percebendo que a malha de elementos que dá sustentação às faces

arcimboldescas, produz uma cena significativa que não se irradia nuclearmente, mas

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que a despeito do cerramento plural de seus agentes compositores, marca-se

sempre e unicamente na sugestibilidade significativa dos seus próprios movimentos,

Roland Barthes nota que nelas “tudo significa e, no entanto, tudo é surpreendente.

Com o ‘muito conhecido’ Arcimboldo fabrica o fantástico (Ver Figs. 2, 7, 8, 9 e 12): a

soma não corresponde à adição das partes: é mais bem o restante” (BARTHES,

1990, p. 127).

Esse “restante de significação”, que Barthes entende permanece por entre o

tramado textual das figuras compósitas saídas da pintura de Arcimboldo (Ver Figs. 2,

7, 8, 9 e 12), seria em semelhança ao que se contém como perpassante ao tramado

textual do palíndromo de Loreius (Ver Fig.6), e ao próprio andamento narrativo de

Avalovara – o quadrado do palíndromo varado constantemente pela sinuosidade

enigmática de uma espiral (Ver Fig. 1): Disso fala-nos Lins (2005) desde o interior do

próprio romance: “Como, então, fazer repousar a arquitetura de uma narrativa,

objeto limitado e propenso ao concreto, sobre uma entidade ilimitada e que nossos

sentidos, hostis ao abstrato, repudiam?” (LINS, 2005, p. 23).

Isso que “resta”, ao tempo que perpassa e sustem, é o lugar mítico que no

Timeu está reservado à nominação khôra. Mas khôra, em sua amplitude

cosmogônica, não se pode opor ao que nela, em tese, vem a confluí-la em horizonte

de significação – a pura totalidade. Temos então de cerrá-la em uma concatenação

de entendimento que não mais pode ser da ordem da “lógica do Logos’. A khôra não

é nem ‘sensível’, nem ‘inteligível’; ela pertence a um ‘terceiro gênero’ (triton genos,

48e, 52a)” (DERRIDA, 1995, p. 9).

Seria então khôra esse advento terceiro que tudo faz mover; inclusive a

linguagem em sua continuada ação de comunicar? “Mas essa alternativa entre a

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lógica de exclusão e aquela da participação, como veremos mais detalhadamente,

talvez se deva a uma aparência provisória e às coerções da retórica, ou até mesmo

a alguma inaptidão em nomear” (DERRIDA, 1995, p. 10). Khôra, em tese, não se

pode estar em nenhuma posição meada. Não sendo então o medeio, mais a própria

tensão que a tudo perpassa, Derrida (1995) lembra-nos que “o embaraço declarado

por Timeu se manifesta de outra forma: algumas vezes a khôra não parece ser isso

nem aquilo, outras simultaneamente isso e aquilo” (p. 10). O que teríamos seria uma

perturbadora dimensão convertida em “não lugar” – um “lugar” excetuado de sua

condição dimensional e dimensionadora. Assim: “khôra parece estrangeira à ordem

do ‘paradigma’, esse modelo inteligível e imutável. Apesar disso, ‘invisível’ e sem

forma sensível, ela ‘participa’ do inteligível de forma muito incômoda, na verdade,

aporética (aporôtata, 51b)” (DERRIDA, 1995, p. 10).

Mas que exepcionalizado horizonte é esse? “Ele é nomeável? E ele não teria

alguma relação impossível com a possibilidade de nomear? Existe aí alguma coisa

para pensar, como dizíamos tão depressa, e para pensar segundo a necessidade?”

(DERRIDA, 1995, p. 11). Subsumida toda a condição discursiva a esse

encadeamento proposicional, a letra já seria flexionante ela mesma de um jogo

significante sem fim... Um jogo cuja fala em abismo – um mises en abyme – não dá

fundo ou limite a própria polissemia. Prestemos uma vez mais atenção naquilo que

nos diz Derrida (1995):

Esclareçamos desde já. Essas analogias formais ou essas mises em abyme

refinadas, sutis (sutis demais, pensarão alguns), não as consideramos aqui, em

primeiro lugar, como artifícios, temeridades ou segredos de composição formal: a

arte de Platão, o escritor? Essa arte nos interessa e deveria fazê-lo ainda mais,

mas o que nos importa aqui mesmo, em primeiro lugar, independentemente das

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supostas intenções de um escritor, são as restrições que geram essas analogias.

(p. 37)

Trata-se assim de se assumir a linguagem em seu mais fundo horizonte: o

da “in-contenção”. Descabida ao modo de um dizer último, a palavra não mais

pontifica, nem mesmo quando lhe seria mister falar à sua própria mobilidade. Ela

não mais marca polaridades definitivas; pulsa, ou então pendular entre o que lhe faz

ser a encenação daquilo que toma por dicotômico: “sujeito/objeto”, “ação/recepção”,

“continente”/”contido”... Etc. O mais premente exemplo disso seria o próprio

pronunciamento de Sócrates em uma das porções do Timeu: “procede ou parece

proceder da errância, de um lugar móvel ou não-marcado ou, em todo caso, de um

espaço de exclusão que se encontra, além de tudo, neutralizado” (DERRIDA, 1995,

p. 42). De assento aporético, as falas socráticas atidas no diálogo, são disposições

da mais aguda transitação da palavra. Sua estratégia de fala “opera com base em

uma espécie de não-lugar, e é isso que a torna desnorteante, senão

enlouquecedora” (DERRIDA, 1995, p. 39).

“Nãolugar” como “lugar”? A esta altura é lícito que façamos tal questão.

Como haver-se com tal situação? Cabendo, de modo direto e simples, a pergunta:

como dizer daquilo que não pode ser guardado em palavras?... Em suma: como se

pode anunciar àquilo que não é da ordem do dizer; mas de uma totalidade que a

tudo abraça?

Essa incessada deriva, por exemplo, nos assalta quando Sócrates, no

diálogo, diz se assemelhar aos sofistas; mas não se põe na eminência de se estar

neste papel; tão pouco em seu contraponto:

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Se Sócrates finge colocar-se entre aqueles cujo gênero é o de não ter lugar, não se

assimila a eles, diz que se lhes assemelha. Ele se mantém, então, em um terceiro

gênero, por assim dizer, nem aquele dos sofistas, poetas e outros imitadores (do

qual fala), nem aquele dos filósofos-políticos (ao qual fala, propondo-lhe somente

escutá-lo). (DERRIDA, 1995, p. 42)

Por conseguinte: “sua palavra não é nem seu endereço nem aquilo que ela

refere. Ela chega em um terceiro gênero e no espaço neutro de um lugar sem lugar,

um lugar em que tudo se marca, mas que seria ‘em si mesmo’ não marcado”

(DERRIDA, 1995, p. 42).

Essa mesma movência radical da palavra, pronunciada por Sócrates no

Timeu, é também a que compõe a mobilidade dispersiva da letra pictórica de

Arcimboldo. Por isso, seria válido imputar, e isso não somente as duas instâncias

narrativas, mas também ao tramado textual de Avalovara, o que Derrida, em Khôra

(1995), toma por ser a ordem semovente da palavra:

As permutas, as substituições, os deslocamentos não dizem somente respeito a

nomes. A encenação se desdobra segundo um gastamento de discurso de tipo

narrativo, relatados ou não, dos quais a origem ou a primeira enunciação parece

sempre substituída, aparentando desaparecer aí mesmo onde ela aparece. Sua

dimensão mítica é às vezes exposta como tal, e a mise en abyme aí se dá a refletir

sem limite. Não se sabe mais – de onde às vezes o sentimento de vertigem – sobre

quais bordas, na superfície de qual parede: caos, precipício, khôra. (p. 47)

Disso, pode se tirar que toda a visão cosmogônica disposta no diálogo,

indicar-se-ia pelo “des-poder” da contenção de um sentido unitário no interior de

toda e qualquer narrativa. Todavia não se trata nem mesmo de fazer reter por

palavras tal registro; a própria totalidade seria um deambular sem fim, sem nada

trazer de meado em seu corpo que a faça dizer dela mesma em contraplano às suas

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partes. Baça e maciça só poderia ela espraiar-se indefinida ao que tiramos nela por

instâncias (... partes versus uma suposta totalização). Deste modo, a palavra dispor-

se-ia a sua dimensão maximizada (a totalidade) à moda do Neutro barthesiano:

“utopia de uma linguagem sem marcas, ele designa o sentido velado, o ‘branco’ do

sentido, branco sendo um sinônimo, aliás, uma parada, uma suspensão da

linguagem” (MOTTA, 2011, p. 33). Assim, khôra não pode guardar-se na sua própria

descrição – seu horizonte significante tão pouco se poderia fazer inscrito em

qualquer marca de sentido último que fosse.

Esse estranho horizonte, que não se deixa dimensionar de todo pela palavra

(mas que em si, só se faz pronunciável por ela), é o mesmo e metafórico movimento

mostrado pela figura da espiral no interior da letra de Avalovara (2005): “Tendo

presentes a espiral e o quadrado, um ponto evidencia-se, iluminando as criações do

romance como um pó que as transfigura. Aí estão, homens e mulheres, inventados

para ajudar o autor a desvendar uma ilha do mundo – e tudo, personagens e fatos,

vem de um começo inalcançável” (p. 73-74).

Contudo, esse inalcançável lugar (esse “todo” jamais totalizável pela

palavra), que transpassa a própria condição de se fazer dito pela letra que o intenta

dizer; dispor-se-ia, por indecidido, a todo o tropo retórico que tenta interná-lo em em

compreensão. E, justamente “é precisamente a essa impossibilidade topológica que

a literatura não quer, nunca quer render-se” (BARTHES, 2004 a, p. 22). Dizendo-se

dessa subversiva resistência ao próprio dizer, a literatura “encena a linguagem, em

vez de, simplesmente, utilizá-la, a literatura engendra o saber no rolamento da

reflexibilidade infinita [...]” (BARTHES, 2004 a, p. 19). E assim, ao encenar a

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linguagem, brilha em seu esplendoroso “des-poder” (não diz... Encena-se neste

papel).

Fig. 9 – Giuseppe Arcimboldo, Vegetais Fonte:http://upload.wikimedia.org/

Fig. 10 – Giuseppe Arcimboldo, O cozinheiro Fonte:http://3.bp.blogspot.com/_EuDO_MVumAw

3.2 BARTHES E A “ASSIMBOLIA”

Talvez até aqui o Neutro seja a figura que desponte com maior recorrência

no interior do presente trabalho. Mas do que falamos quando aludimos ao Neutro

barthesiano? Qual o seu estatuto? Como dizer-lhe a partir de um estado de palavra

que faria a linguagem infensa a qualquer sentido último? Seria, em si, essa uma

condição naturalmente “assimbólica”? Tratar-se-ia simplesmente da pura aversão

aos símbolos e signos que pontuam nosso horizonte comunicante? Mas se assim o

é – como se faz notar? Como se pode indicar, inclusive em sua própria

neutralidade? Como se autoriza em fim a firmar-se em tal medimento? Leda Tenório

da Motta, em seu livro Roland Barthes: uma biografia intelectual (2011), assim nos

diz dele: “Utopia de linguagem sem marcas, ele designa o sentido velado, o branco

do sentido, branco sendo um seu sinônimo, aliás, uma parada, uma suspensão da

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linguagem” (p. 33). Essa dimensão utópica toma impreterivelmente a linguagem

como uma inscrição fantasmática; concedendo à palavra ser mais concreta

justamente onde não diz; onde, já retornada do seu uso, recolocar-se-ia na sua

condição mais pura – o “Neutro”. Seria então uma utopia linguística já não remetida

a qualquer ordem de sentido; convertendo a palavra no próprio “grau zero” das suas

possibilidades significativas. Deste modo, “quando se lê Barthes do fim para o

começo, da perspectiva desse grande motivo trazido para o penúltimo curso, é que

também ele já estava em pauta desde sempre. O que significa dizer que já era o

assunto em O grau zero da escritura” (MOTTA, 2011, p. 34). Sendo visto também “a

meio caminho, em Roland Barthes por Roland Barthes, no fragmento ‘A isenção de

sentido’; em que é do Neutro que Barthes está tratando, quando fala de si na

terceira pessoa, como um ator-curinga de Brecht, nos seguintes termos:

‘Visivelmente, ele sonha com um mundo isento de sentido (como se é isento do

serviço militar)” (MOTTA, 2011, p. 34).

Essa posição de neutralidade dirigida à palavra seguirá permeando outros

textos seus:

Por-se-á a recobrir não só toda a literatura para Barthes digna desse nome, porém

certos tópicos não literários. Assim, extrapolando o tema dos retiros dos escritores

em busca da grande obra, o antepenúltimo curso também passará por certos

modelos suspensivos da vida religiosa e da vida filosófica, o que nos dá um corpus

extremamente variado: textos literários, textos filosóficos, textos místicos, de muitas

procedências e livremente escolhidos. Isso inclui André Gide, Maurice Blanchot,

Baudelaire, Paul Valéry, Marcel Proust, mas, também, filósofos não platônicos

como Protágoras e Pirro (através dos escritos dos seguidores, no caso deste

último, que, como Sócrates, nada escreveu), espíritos exotéricos como os de um

Swedenborg. Todos esses tópicos desdobram o neutro em 23 casos de figura tais

como a Fadiga, a Benevolência, o Silêncio, a Delicadeza e contrafiguras tais como

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a Cólera, o Conflito, a Arrogância, a Resposta, através das quais se propõe, sob

novas vestes, aquela mesma entrada em colapso autocrítico da máquina semiótica

que é própria das escrituras no zero grau. (MOTTA, 2011, p. 35)

Portanto, todo o discurso barthesiano está focado na linguagem e nas

maneiras pelas quais ela pode operar o sentido. Obviamente, há de se levar em

consideração que há um percurso na apresentação desses estados da arte; um

trajeto e um traquejo medido por uma palavra cada vez menos convertida em marca

de algo – tornada cada vez mais uma marca pela qual se possa dispor de modo

irrestrito a possibilidade, a abertura e a pluralidade. Por conseguinte, “os escritos de

Barthes, através da prodigiosa variedade dos assuntos que abordou, só tem um

assunto: a escritura mesma” (MOTTA, 2011, p. 25).

Como também já visto aqui, é a letra romanesca quem melhor encena esse

trajeto. Somente ela pode estender-se em uma continuada deambulação simulando

ser a mimese daquilo que, por impenetrável, não se pode representar em absoluto:

uma totalidade “extraletra”. Ou seja, a palavra da literatura encenaria uma

“presença”; dando corpo a todos os jogos de dizeres saídos linguagem. Ao fim,

impreterivelmente, tudo lhe será apagamento (neutralidade). Só aí, quando já

descabida do manejo de conter, é que a letra se faria na qualidade de marca

silenciosa de si mesma – sem remissões (vazia). Sendo que para Barthes esse

vazio não pode ser confundido com a deflação específica e particularizada de uma

determinada marca de significação; pois ainda assim vigoraria uma presença – a

presença ativa de uma subtração... Presença de uma “falta” enquanto marca de

sentido.

Trata-se aqui de um Barthes assumidamente estruturalista, que desce ao

campo da estrutura da linguagem, justamente por negativá-la como dimensão de

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asserção e sentido? Ou contrariamente assumir-se-ia como o mais agudo dos

antiestruturalistas; justamente pelas potentes críticas que imporia a determinados

constructos analíticos? Motta (2011) reproduz trecho de um escrito crítico de

Barthes, no qual lucubra ele sobre certa analítica estruturadora da palavra: “A

estrutura é, portanto, um simulacro do objeto, mas um simulacro direcionado,

interessado, pois o objeto imitado faz aparecer algo que permanecia invisível ou,

dizendo de outro modo, estava incompreendido no objeto natural. O homem

estruturalista toma o real, o decompõe, depois o recompõe...” (BARTHES citado em

MOTTA p. 196).

Tal trabalho de “corte/cola” cumpre já ser boa parte da composição

significativa desse “homem antecedido pelo signo e nele mergulhado

inconscientemente” (p. 196). Para melhor ilustrar essa condição, Motta (2011) nos

dirige ainda a um outro ponto da mesma coleção de “Ensaios críticos” de Barthes: “A

finalidade de toda atividade estruturalista é reconstituir um ‘objeto’, de modo a

manifestar nessa reconstituição as regras de funcionamento (as ‘funções’) do

mesmo objeto’” (BARTHES citado em MOTTA p. 196).

Assim, para Barthes, a lida direta com a linguagem depreenderia questões

que só podem ser objetos da própria linguagem. Sendo que é do horizonte humano

– daquilo que lhe cumpre ser da ordem das suas fabricações de sentido – já estar

sempre às expensas da palavra. Desta maneira, em tese, estamos nós eternamente

já inseridos em uma inquebrantável circularidade: desde onde, homem e linguagem,

giram sobre um eixo que os impossibilita de se intervalarem. Mas, haverá aí alguma

oferta de sentido remissa ao que se possa transcender a esta relação? Que

houvesse ser uma montagem teórica capaz de versar acerca de toda e qualquer

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estrutura atinente à palavra – e que, partida da própria linguagem, se pudesse

revistar a si mesma, e a toda a sua operabilidade de letra estruturando-se na

condição mesma de sua explicação? Todavia, se é sempre da própria linguagem

que são nascidas tais demandas; bem como seus eventuais escopos explicativos; é-

lhes a linguagem, invariavelmente o estuque que compõe e recobre as suas

armações – não havendo, portanto, como cindir “corpo e sombra”.

Mas, então, o que podemos fazer, quando desde a linguagem nos dispomos

a analisá-la? Martin Heidegger reflete sobre essa questão nas preleções de A

caminho da linguagem (2003):

Falamos a linguagem. Que outra proximidade da linguagem possuímos senão a

fala? Mesmo assim, nossa relação com a linguagem mantém-se indeterminada,

obscura, quase indizível. Refletindo sobre essa estranha conjuntura, dificilmente

conseguimos evitar a impressão de estranheza e incompreensibilidade que

acompanha uma tal observação. Por isso, é indispensável perdermos o hábito de

só ouvir o que já compreendemos. Esse conselho não vale apenas para cada

ouvinte em particular. Vale sobre maneira para aquele que pretende falar sobre a

linguagem e isso ainda mais quando essa fala tem a intenção de mostrar

possibilidades que nos permitam atentar para a linguagem e para a nossa relação

com a linguagem. (p. 122)

Nesse passo também vai o discurso barthesiano – e, em extensão, as

marcas de linguagem que podemos remeter à Avalovara. No romance, por exemplo,

é emblemático como se nos apresenta o terceiro amor de Abel: sua referência não é

sustentada por uma grafia convencional, e sim por uma distinção icônica (um

símbolo): . Antonio Candido (2005), em prefácio à obra, ao fazer referência a esta

mulher que ama Abel e por ele é amada, dela, diz:

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[...] espantosamente carnal e viva para o leitor; mas é um ente mental do escritor,

uma peça do jogo palindrômico, representada simbolicamente pelo círculo fechado

onde tudo começa e acaba, com seu alvo fincado no meio. As pontas da espiral,

desgarradas no infinito, unem-se aqui para a consecução de uma plenitude que é

toda a busca do livro. (p. 9)

Abel, ao rumar para o seu terceiro amor, busca nele uma plenitude utópica –

um fantasmático e fantasístico preenchimento que cubra um vazio que se lhe impõe

sempre a ser significado. A paixão por trama-se na pretensão de ser a mais

absoluta simbiose entre o objeto, o desejo mesmo, e o próprio agente

propulsionador deste. Um objeto de desejo disposto sem folgas ente a

representação e a sua significação. Porém, é o vagar faltante da palavra depositada

no interior do romance, justamente ao apresentar-se em fecho pela morte de ambos

os amantes, que encenará o efeito da mais abrupta cisão representacional no arco

escritural da narrativa. A morte assim é o cessar dado à palavra no interior do livro –

todavia, será também o mais desabrido dos resultados impingidos ao verbo; que em

meio à busca de um sentido vai bate-se com o mais agudo vazio à significar: a

suposição da ausência de todo e qualquer tipo de sujeitidade em face da morte.

Uma realidade cuja significação não mais estaria disponível a palpabilidade

manifesta de um sujeito. Com efeito, a morte ao se tangenciar pela eloquência do

seu próprio silêncio, ao que tudo faz suspender, se faz assim da mais funda marca

significante de uma ausência. O inefável da morte se marcar pelo que de mais

prenhe há na linguagem: o eloquente silêncio saído da ausência de um sujeito que

outrora ocupava um lugar de fala no interior da própria linguagem – mas isso, ao

sabor da própria linguagem.

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A sala na qual os amantes restarão abatidos pelas mãos passionais do

marido traído, indicia em si este silêncio. Na atmosfera perpassada por um sem fim

de questões, corre o tênue fio de um tempo definitivo, que tudo, para todo o sempre,

abarca e consome:

Surgem onde, realmente – vindos, como todos e tudo, do principio das curvas –,

esses dois personagens ainda larvares e contudo já trazendo, não se sabe se na

voz, se no silêncio ou nos rostos apenas adivinhados, o sinal do que são e do que

lhes incumbe? A porta junto à qual se contemplam ou avaliam, face a face,

rodeados de sons, cheiro de pó e obscuridade, é limiar de quê? Ingressam ambos

na sala e talvez, ao mesmo tempo, no espaço mais amplo, conquanto igualmente

limitado, do texto que os desvenda e cria. (LINS, 2005, p. 20)

Como já se fez ver em outros trechos deste trabalho, a linguagem não é em

si um gesto impossibilitador (ou impossibilitado) aos medimentos da significação; ao

contrário, possibilita-se ao se ser um móbile semântico pelo qual tudo faz viver pelas

palavras. Confluída das muitas possibilidades que se lhe podem marcar o sentido, a

linguagem seria sempre um produto de nuançamentos sem fim à significação.

Mas, “Onde começa e onde termina o sentido? Afinal, é sempre aí que está

o problema. Naturalmente podem-se dar soluções ideológicas ou estéticas ao

problema do limite do sentido, mas uma resposta técnica, precisa, é muito mais

difícil” (BARTHES, 2004b, p. 109). Deste modo, ao tempo em que dirige um dizer, a

palavra já se verteria em seu próprio enigma. Deriva daí, que para Barthes isso não

depreende ser uma asserção pela via da negação – mas, tão pouco lhe será

necessariamente uma possibilidade de acesso ao horizonte último das significações.

Deste modo, não lhe faz prumo uma nosologia explicativa ultimadora; ou qualquer

outra manobra de sustentação e revelação estruturante e clareadora da verdade

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acerca da palavra: seja ela extraída de uma “sede” por origem, autoria, ou recepção.

A guisa de exemplo, um dos alvos de rechaço de Barthes seriam os postulados

sobre os quais “a crítica histórica assenta o seu direito judicativo: a regra da

“clareza”, a regra do “gosto”, a regra da “verossimilhança, tão caras ao espírito

clássico e tão sorrateiramente normatizadoras daquilo mesmo que designam como

fato dado” (MOTTA, 2011, p. 209).

Mas tão pouco Barthes vai aderir ao oposto dessa condição – ou seja: um

primado assimbólico naturalmente dado à palavra. Ainda que seja “esta tópica de

uma crítica talvez mais atualizada, que, no entanto, teme a polissemia, ou o sentido

multiplicado, ou a coexistência de sentidos, porque a fuga infinita das metáforas

mostra que não há nenhuma verdade estável em nenhum fundo último das obras”

(MOTTA, 2011, p. 209).

Trata-se sim de se ir ao encontro da própria incontinência plural da

linguagem: “Está absolutamente claro que um único e mesmo significado pode ter

vários significantes, ou que um significante pode ter vários significados; é o que se

chama então, em sentido próprio, de polissemia; espécie de desigualdade entre os

dois termos, significante e significado” (BARTHES, 2004b, p.109).

A letra de Avalovara é consonante com esse horizonte; o seu gestual

significativo monta-se do sem fim multiplicável da própria significação; de um ressoar

discursivo marcado pelo interminável curso espiralado do próprio dizer, que assim se

marca sobre a trama do texto. Toda essa incessada movência, alocada à letra do

romance – seu vivo pulsar –, dispõe-nos a uma experiência limite para com a

linguagem. Todavia, não falamos aqui da mera impossibilidade de se alcançar um

sentido pela letra narrativa – tampouco, trata-se de se ir cruamente ao caminho

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inverso, ou seja: a pura constatação de que não há nenhum sentido. Sobretudo

trata-se de imiscuir a narrativa do romance na indecidibilidade da própria linguagem.

Da multiplicação dos assentos significacionais de Avalovara, nascidos dos

apelos existenciais de seus personagens (homens e mulheres); que a nós

passariam despercebidos pelo comum que suscitam; e ainda pela exuberância de

sua letra barroca; somos dirigidos para uma experiência com a palavra que nos

coloca face a face ao constante deslizar da significação. Assim, afirma-se todo um

jogo textual movediço, capaz, por exemplo, de fazer do “significante morte” uma

“marca mestra” deste deslizamento. A morte, no interior da narrativa do livro, em seu

eloquente curso misterioso, infestada de significados; segue encenada em seus

silêncios e contradições:

[...] vai Natividade cada vez mais pesada entre os cimentos e aços de São Paulo, a

cabeça povoada de vozes que se calam e manhãs luminosas que se apagam,

rebentam nos jardins e nas ruas as flores pascais das quaresmeiras, distinguem-se

nas rendas o fundo e a flor, panos roxos cobrem as imagens na capela do antigo

colégio arquidiocesano, as detentas do Presídio Feminino erguem-se todas de uma

vez à passagem do caixão, ficam de pé junto às grades para que o enterro as

atravesse, o enterro atravessa-as, Natividade atravessa-as, atravessa o refeitório, o

pátio, as sentinas, as celas, morta e presídio com o mesmo cheiro de ossos no

monturo, o Ser, de costas para todos, gane pelo avesso a palinódia, são dez horas

no relógio da estação da Luz, a flor da renda também se chama ornato e se forma

pelo cruzamento de fios entre as malhas, os jovens pés da negra vencem rápidos

as sendas, percorrem as plantações de café e algodão, endurecem com os anos e

os percursos restringem-se, sempre mais cautelosos e lentos e pesados os pés,

como se tendessem para a quietude e agora atravessam na manhã de maio os

corpos das mulheres, rasgam-se nos corpos, artelhos e unhas vão sendo extraídos

(corpos de arame farpado o das presidiárias?, de cacos de garrafas?, de ganchos

de açougueiros?), transpassados pelo corpo de Natividade os corpos parecem

engrenagens malignas, dilaceram o couro crestado dos beiços, furam os olhos

cegos, rasgam a casca de rugas e descobrem – mas sem dentes, e também cortam

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fundo – a cara da menina negra que, iludida, canta no algodoal. (LINS, 2005, p.

338)

Maquiniza-se assim a cerebral e intricada (mas também inefável)

estruturação metalinguística de Avalovara. Em seu interior, a morte é uma marca

significacional que se desabre em puro significante. Se na lâmina que encima a

superfície do romance encontramos a história de vida de um homem (Abel), e das

vidas que lhe entornam ou a ela se cruzam; é ao encontro do próprio fim,

palmilhando os amores e as cidades vivenciados por essa personagem, que o livro

epiloga-se ao tempo que cerra a existência física da persona de Abel e do seu último

e grande amor. Trânsito incessado de significações, qual o cortejo fúnebre de uma

outra personagem, Natividade, acima descrito, o livro parece cursar sua marcha em

meio a um perpassante e ruidoso silêncio; preenchido apenas pelo constante

deslizar das suas próprias palavras. No interior da trama, tudo parece cortado por

esse movente e silencioso fluxo:

Conclui-se que a idéia básica do livro assenta sobre elementos claros, nítidos e

nem por isto menos esquivos. Imita, em seus pontos principais, antigo poema

moralizante. Busca, porém, descrever apenas relações entre várias mulheres e um

homem, delineando-se por esta via profana um trajeto que o protagonista ignora e

cujo significado, para o autor, não está ainda definido. (LINS, 2005, p. 73)

Bater-se com o desvio da letra (com a deriva do próprio jogo significacional),

parece ser esta a principal aposta de Avalovara – uma experiência limite que

Barthes (2004b) pleiteia, ainda que seja pela via utópica, como sendo da ordem

daquilo que ele nomina por “assemia”:

No nível geral em que nos colocamos, a assemia, ou seja, a não simbolia – que,

como veremos, é diferente da assimbolia – , só pode representar uma experiência-

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limite, e é no nível das experiências-limite, no plano das sociedades, das

civilizações, que devemos buscá-la. Trata-se de esforços, bem localizados em

certas civilizações, em certas sociedades, de chegar àquilo que chamo de isenção

total do sentido. Isso nada tem a ver, estruturalmente, com o absurdo; o absurdo ou

a absurdez é um sentido, o sentido do absurdo precisamente; a isenção de sentido

é, portanto, um estado do sentido infinitamente mais difícil de realizar, é uma

espécie de vazio do sentido, ou melhor, o sentido lido como vazio, o que não é o

caso do absurdo. Esse vazio do sentido onde se encontra, para termos alguns

exemplos? Todas as linguagens formalizadas, sobretudo as da matemática ou da

lógica, são linguagens vazias de sentido. São constituídas por puras relações; mas

nessas relações não há nenhuma plenitude de sentido inserida. Seria como uma

língua que só existisse em sintaxe, e não em léxico. Aí esta mais ou menos o que

seria esse vazio, essa linguagem vazia dos sistemas formalizados. (p. 117-118)

Neste mesmo texto (2004b), na direção de melhor ilustrar essa experiência

de esvaziamento do sentido, Barthes conclamará vivências místicas de fundo

religioso; mas toma o cuidado de eleger aquelas de assento não monoteístas. Diz:

“O monoteísmo não representa um bom exemplo dessa espécie de libertação total

do sentido e da isenção de sentido que tento abordar agora; é preciso buscar esse

vazio, essa isenção do sentido em experiências como as do zen-budismo (budismo

japonês)” (p. 118). O verbo assim, ainda que pelo peso eminentemente metafórico,

seria dispensado de ser continência ou conteúdo; nem mesmo se dimensionado por

um localismo de cunha estatutária: autor, leitor, texto, teoria etc. “Toda a ascese do

zen é precisamente dirigida para uma espécie de esvaziamento, de vacuidade do

sentido; e os teóricos do zen entenderam muito bem que a tarefa mais difícil do

mundo não é dar sentido (fazemos isso naturalmente), mas, ao contrário, retirar

sentido [...]” (BARTHES, 2004b, p.118-119).

Por essa via, ingressamos a um tipo de experiência literária, que

compreendida nas décadas de 1950, 1960 e 1970, notabilizou-se por um

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vanguardismo rumado ao desmonte das legibilidades discursivas da literatura. Nos

anos 1950: é o nouveau roman sua voz potente. Tendo à frente escritores como

Michel Butor, Marguerite Duras, Alain Robbe-Grillet e Philippe Sollers – este último

analisado por Barthes em Sollers escritor – o nouveau roman propõem uma ruptura

com a linearidade e a coesão de sentido no interior do discurso romanesco. Casado

com este momento está o das páginas da revista Tel Quel: que nas décadas de

1960 e 1970 discute temas ligados às vanguardas literárias e ao pós-estruturalismo.

Barthes (2004b) irá reconhecer aí um tratamento especial dirigido à questão do

sentido no interior da linguagem. Segundo Barthes (2004b), a revista volta-se para o

desmonte da linearidade da narração; suas críticas “giram em torno de uma espécie

de destruição da legibilidade, do legível” (p. 119).

Ainda que vejamos tais discursos como datados (ou como querem alguns,

até mesmo já passadistas); o fato é que tal efervescência cabida nesses anos, traz à

lúmen aquilo que é central à fala barthesiana; ou seja: a capacidade de se haver

genealogicamente com os mecanismos da significação postados na linguagem. No

mesmo texto crítico, intitulado “Uma problemática do sentido” (2004b), Roland

Barthes dirá: “Há nessa vanguarda literária, uma reflexão muito interessante sobre a

legibilidade, sobre os limites do legível. É uma experiência de assemia ou de procura

de um discurso que esteja de algum modo desipotecado do sentido ou, em todo

caso, do antigo regime de sentido” (p. 121). Assim, se nos afiguraria uma

experiência para com a palavra no nível da contingência; no nível das ações de

linguagem desapercebidas de uma ordem prévia – logocêntrica. Toda essa deriva

perspectivante, imputada à textualidade da palavra, não se pode senão sustentar-se

apenas em seu próprio gesto – sendo marca prima da contingência (nada além).

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Barthes (2004b), fazendo recurso a Lacan, vai haver-se da seguinte maneira com

esta questão:

Lacan descreveu a psique humana como um campo no qual se elaboram cadeias

de significantes, significantes em concatenação (em relais), nas quais cada

significante se torna significado de um outro significante que o leva para mais longe.

São as cadeias de símbolos, construídos segundo um espécie de forma metafórica

(pois a própria metáfora é uma cadeia de significantes), que estruturariam, de

algum modo, o inconsciente e, no fundo, teriam apenas um significado último [...].

(p. 121-122)

Todo esse deslizar das cadeias discursivas da linguagem; toda a sua

compleição movente, mostrar-nos-ia que um significante jamais se decalca a um

significado; posto ser ele mesmo sempre e tão somente: significante; que em si, e

por si só, só se pode do ponto de vista do discurso psicanalítico lacaniano, dispor-se

a outro significante em uma sucessão sem fim ou par. Assim, Barthes (2004b), ainda

amparando-se no discurso psicanalítico de Lacan, dirá:

[...] nossa psique, seja ela normal ou patológica, passaria o tempo a elaborar

símbolos e significantes a partir de um vazio, um vazio que é definido em termos

psicanalíticos pela castração. Isso é novo e importante porque, precisamente, se

opõe de algum modo a todas as psicologias da plenitude, a todas as psicologias da

essência e das essências psicológicas, e constitui uma meditação extremamente

nova sobre as relações entre sentido e vazio. (p. 122)

Para Barthes, outra visada prospectiva dirigida ao horizonte da significação,

seria de cunho mais marcadamente metafísico. Neste rumo, Barthes (2004b), ao

conclamar Saussure, diz-nos: “Para que haja signo é preciso que haja diferença,

diferença entre dois significantes (jogo paradigmático). Saussure foi o primeiro a

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dizer, de modo muito revolucionário, que a língua não passa de um sistema de

diferenças [...]” (p. 123).

Tocamos então novamente no que é o cerne deste trabalho dissertativo: o

signo não é senão ele o oposto de uma unidade de contenção do significado – ele

só faz deslizar sem fim em suas próprias marcas e possibilidades de significação. A

letra decalca-se aí, não pela fixidez e contenção de um significado, mas por se fazer

mover infindamente em seu gesto significativo. Toda a semioticidade do signo torna-

se então a marca de uma radical diferença. Sendo que, para Barthes, e se assim o

quisermos também para Lacan, é desde aí que estamos; desde um querer dizer à

palavra que só pode sê-lo enquanto “furo”... Enquanto desejo de ser ela em fim um

significado... Enquanto “vazio” que assim se preencheria de um querer ser absoluto

em seu próprio movimento de significação.

Barthes (2004b) também irá conclamar Derrida para expressar essa

radicalidade: “Derrida levou as coisas ao extremo e viu que o signo é uma diferença,

é o ponto de partida de uma espécie de processo infinito, que faz diferir infinitamente

o significado” (p. 123). Desse modo o significado é como se fosse o percurso

espiralar e incontido e infinito atido à letra de Avalovara. Toda a marca de linguagem

só se poderia assim escandir-se ou clivar-se, como uma circulação significante sem

fim. Cada dizer é em si um traço feito da mais irredutível das diferenças. Não lhe

havendo, como nos era usual anteriormente em nossas assunções à linguagem,

dar-lhe condições de assemelhamento ou mesmo o rumo, ainda que fugidio, àquilo

que, porventura, pretendêssemos representar desde fora da linguagem.

Diz-nos Barthes (2004b) que, outrora “achava-se que os signos eram uma

mistura de significantes e significados, mas, que, atingido o significado, o signo

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parava, tudo estava pleno, tudo estava preenchido, tudo estava normal” (p. 123).

Para Barthes, todo o signo se vai marcar, não por essa guarda esgotável rumo a um

sentido findo; mas, justamente na direção oposta: por não se fazer ancorar na

substancialidade de um significado. Assim: “se começa a entrever que os sistemas

de signos nunca podem parar, que nunca se podem deter esses sistemas em

significados últimos ou num significado último” (BARTHES, 2004b, p. 123). Disto

decorre que é a própria substancialidade da significação que tem de ser pensada de

um modo mais originário. Não se tratando aí de uma originaridade que se quer

buscada na condição primeva da linguagem – fazendo-se derivar axiomaticamente

uma cadeia de causação (e explicação). Trata-se sim, de um exame originário

dirigido à linguagem, desde onde ela já é puramente irredutível e contingente.

Portanto, pensá-la originariamente é justamente “despensar a origem, pois num

processo infinito de diferenças a própria origem já não pode ser pensada”

(BARTHES, 2004b, p. 124).

Mas Barthes não fala de uma não condição da transitação daquilo que

tiramos por mais natural à linguagem: sua capacidade inerente de produzir um a

marca significante. Trata-se, segundo ele, quando a questão é auscultar a palavra

desde ela mesma, de nos cambarmos sempre para o horizonte da “assemia”. Não

confundir aqui “assemia” com “assimbolia”; esta tomada enquanto expressão eletiva

de um caráter patologizante (seria ela, no jargão da psiquiatria, uma insuficiência na

assimilação da linguagem). Já a assemia, para Barthes, seria da ordem de intuirmos

a condição móvel da linguagem; tratando-se de vê-la como jogo de plenitude

metafórica – e que jamais teria por fundo, um dizer último.

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3.3 O RASTRO, A ESPIRAL E O QUADRADO

Em rápido exame, nota-se que o discurso de Avalovara é um manancial de

inesgotáveis indicações intertextuais. Sua riqueza de sinais faz com que possamos

empreender-lhe inusitados assentos de significação. Por essa via, lhe permeariam o

corpo discursivo várias possibilidades de concatenação e encadeamentos; das

quais, parece, se depreenderiam muitas ordens de legibilidade. Por intermédio do

seu discurso somos levados a pensar a linguagem desde um ponto de vista

radicalmente distinto àquele que empregamos usualmente em nossa linguagem

cotidiana. Seus jogos e marcas de significação estariam abertos a uma proliferação

de ordens e sentido sem par.

Evando Nascimento em texto de introdução às obras de Derrida (2004c), no

tocante à análise que este faz às construções lógicas dirigidas as ordens

discursivas, sejam elas saídas da oralidade ou da escrita que gramamos sobre o

papel, fala-nos:

Enfatizemos o fato de não haver oposição entre phármakon, fala-e-escrita

(arquiescrita), rastro, grammé, de um lado, e logocentrismo, fonocentrismo,

falocentrismo, arkhé, ousía, eîdos, do outro. Os primeiros são mais abrangentes, e

sua estranha lógica (sob rasura) inclui e vai além dos conceitos metafísicos. Derrida

recorre a um quiasma, figura de cruzamento calcada na letra grega khi(X), para

indicar que essas duas lógicas se cruzam, sem que se reduzam uma à outra, pois

uma das pontas da bifurcação (a dos indecidíveis) vai mais longe, excedendo os

limites da conceituação metafísica. (p. 36)

Trata-se de uma dupla captação cognoscível às ordens do discurso; ou uma

proliferação de condicionamentos ditos logocêntrico abertos à sua captação; disto

decorreria perceber o que pode haver nesses gestos de “presença” ou de

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“logocentrismo metafísico”: “Desenvolvendo este argumento, haveria como que a

história em aberto de um corpus dito metafísico, cujo modo de funcionamento se dá

por meio do que se chama de estrutura centrada, indicativa de um fechamento

(clôture)” (NASCIMENTO, 2004c, p. 36). Encerrando-se radicalmente nesta condição

de análise, tocaria questionar como se operam as marcas asseveradoras destes

juízos – que, por si mesmos requerer-se-iam como centros próprios de uma

circulação explicativamente estruturadora da linguagem:

A “metafísica da presença”, como visto, supõe a existência de centros, que em

princípio seriam fixos, permanentemente remissíveis em sua articulação, mas que

paradoxalmente se deslocaram através do tempo, foram reconceituados e se

multiplicaram, quando gostariam de ser únicos. Na verdade, para ser realmente

centro era fundamental que houvesse um e somente um, cujo nome, exclusivo,

seria soberano em relação a qualquer outro. (NASCIMENTO, 2004c, p. 36)

Aludindo a obra A escritura e a diferença de Jacques Derrida, Evando

Nascimento (2004c) dispõe-nos a possibilitação de tais estatutos; justamente

fazendo-o pela via da problematização e da fluidez de toda e qualquer estrutura:

Porém, o fato é que o nome desses centros, segundo o famoso ensaio de A

escritura e a diferença, “A noção de jogo, signo e estrutura no discurso das ciências

humanas”, variou enormemente ao longo da história da metafísica ocidental [...]:

ousía, essência, arkhé, télos, enérgeia, Deus, homem etc. Assim, se o nome do

centro mudou é porque ele não é nem absoluto, nem fixo, e menos ainda

homogêneo, auto-identificado a si mesmo. Se, igualmente, esses nomes de centro

se inserem numa cadeia de múltiplas substituições, de marcas que se transferem,

intertraduzindo-se entre sistemas diversos, é porque se sustentam numa rede

conceitual intrincada e sem limites definidos. (p. 37)

Toda uma lógica dirigida à linguagem, estruturada pelo primado da fixidez e

de estados opositivos ultimados, é posta assim em xeque. O binarismo da

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linguagem, no mais das vezes tomado por condição fundante ao funcionamento de

todo e qualquer discurso, teria de se deslocar da sua usual dimensão de verdade

axiomática. Deste modo, aplicando-se uma desconstrução crítico-examinativa, se

descaberia toda e qualquer ordem de fundação dicotômica ligada ao sentido – e, por

conseguinte, à linguagem; daí decorrendo por em questão os “três preconceitos da

metafísica: o logocentrismo, o falocentrismo e o fonocentrismo. Estes, por sua vez,

são informados pela lógica do complemento” (NASCIMENTO, 2004c, p. 37).

Essa franca refutação a uma metafísica bivalente destinada à linguagem faz

ligados Nietzsche, Heidegger e Derrida:

Essa lógica opositiva (bem/mal, presente/ausente, superior/inferior etc.) e centrada

do complemento estruturaria o texto da dita ‘metafísica’, designação esta

radicalmente problematizada por Nietzsche, o qual buscou reverter o platonismo.

Tal como Heidegger propôs uma Destruktion da herança metafísica de Platão e

Aristóteles. (NASCIMENTO, 2004c, p. 37)

Isso posto, o que se tem é uma outra maneira de se operar com o horizonte

da palavra. Não lhe havendo um centro emanador de sentido, a sua cursividade

tomar-se uma infinita multiplicação de ascendências à significação.

Múltipla e descentrada, a linguagem seria em si simplesmente marca

entregue a uma identificação pela via do afeto dada ao homem, em detrimento de

ser conjunto inamovível de uma significação ultimadora. Afigurada assim, não por

ser preenchimento, mas, simplesmente “sulco”, “rastro”; que se inflectiria não pela

asseveração de uma certeza absoluta, mas pela ascendência identificatória aos

nossos próprios jogos afetivos: a palavra no interior da linguagem assume-se por ser

marca de uma indecidibilidade; não lhe haveria redução última a um prumo

fundante; ao contrário: todos os seus gestos e supostos objetos, já estariam

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entregues as contingências de se fazerem percebidos por dimensões puramente

abertas á significação. Sendo assim:

Cruzando-se com esse processo de ordem metafísica, haveria o outro processo e a

outra lógica, por assim dizer, incomensuráveis. Essa outra é que Derrida nomeia

como lógica do suplemento, sendo um de seus rastros ou vestígios o fato de se

pautar não por uma estrutura centrada mas por uma estruturalidade múltipla,

descentrada, cujos nomes indecidíveis Derrida refere como escrita/escritura,

subjétil, traço, vestígio, rastro, grammé, numa série sem fim e segundo uma sintaxe

textual. A “estruturalidade da estrutura” desconstrutora passa pela necessidade de

assumir diversas estratégias discursivas, de não se fixar numa atitude única, ainda

que seja a mais pertinente, de assumir posições e compromissos ou engajamentos

politicamente diferenciados. (NASCIMENTO, 2004c, p. 37-38)

Disto, deriva ser que a palavra não pode assegurar-se de um ideal único de

sentido. Seu jogo semântico se faz invariavelmente continuado: sem “centro” ou

“bordas”. Forjada na multiplicidade sem fim, desligada de uma centralidade

metafísica, toda a marca de linguagem já seria em si dirigida a essa lógica que nada

pode cingir de modo fixo. Por mais ricos que sejam os indícios de sentido

depositados na palavra, ela só poderia contornar-se como “pura marca”.

Invariavelmente – por mais paradoxal que se possa ser – seria a palavra um perene

“estado de indecidibilidade”... De “pura abertura”.

Em campo oposto: “as conceituações centralizantes da metafísica são

expostas por meio de teses, noções e categorias que sonham com uma unidade

ideal, visando assim uma decisão simples entre pólos opositivos, de modo a

estabelecer afirmações téticas de tese” (NASCIMENTO, 2004c, p. 38-39). A malha

“semântico-analítica” da linguagem se disporia em um estado de asseveração, que

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se quer estruturalmente rígido. Fulcro requerido em sentido último – resguardado em

uma pretendida e firme centralidade articuladora.

Em campo oposto, Derrida toma por cara a dimensão dos “indecidíveis”.

Cara ao seu projeto de “desconstrução” – posto que todo o assento de

indecidibilidade depositado na linguagem será em si um movimento saído à própria

linguagem; posto que, desconstruir não se é destruir – pelo contrário, é tangenciador

de uma abertura significacional depositada na própria linguagem. Assim: haverá

sempre um itinerário disposto á palavra; uma ação à impulsioná-la rumo a um “sem

fim”; a uma direção estendida e predisposta a um dizer – que em si: é sempre um

“por vir”. A palavra será então invariavelmente “o estado puro” de uma possibilidade

(“pura potência”): jamais sendo em si o “ato final” de um sentido consumado.

Fazendo-se em matizamento à significação. Sua riqueza e usos só se poderiam

dimensionar da própria infinitude dos atos e possibilidades da significação (para

Derrida: “indecidíveis”) – um “poder ser” fazendo-se pela via da palavra que já desde

si seria a via da ambiguidade. Deste modo, a letra jamais se põe por deflagrada em

seu dizer último – sempre (e simplesmente) é potência em meio a uma condição de

significação jamais chegada.

Avalovara, se assim quisermos, bem pode dispor-se como metáfora desta

condição, posto que nada em seu corpo textual pode aperceber-se em sentido

último. Fluxo contínuo e corrente, a sua pronúncia narrativa não cessa sob a marca

final de um dizer:

Quanto desejaria encontrar a cidade cuja imagem aparece-me uma tarde,

miniatural, vinda através de mares e estações, como o espectro de um pássaro ou

de um antepassado! Será possível, entretanto, reconhecê-la? Não deve ter-me

chegado completa. Torres e tetos, na sua migração, ruíram em parte e é possível

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que vegetações, muros e até pontes lhe tenham sido acrescidos, extraviados quem

sabe de outras cidades. (LINS, 2005. p. 89)

Composta de um discurso onírico saído da cabeça de Abel, as marcas desta

cidade narrada se montam em fugidios limites e gestos composicionais improváveis.

A questão, portanto, em assim sendo, não mais poderá ser do âmbito da palavra

cabida em uma simples dicotomia (realidade/representação). Este horizonte de

linguagem passa a ser um elemento compósito, e que não faz fulcro em uma

unidade de sentido última. Nada do que se dispõe neste trecho do romance, diz de

modo cabal. Ao utilizar-se da territorialidade de uma cidade imaginada, o texto

imprime vários lances de significação, fazendo com que toda a marca de linguagem

aí imposta, lamine-se ao infinito. A cidade aí é um ajuntamento referencial que em si

é “indecidível” (uma indecidibilidade derridiana na acepção da palavra). Esta cidade,

cujo gesto composicional lembra uma pintura de Giuseppe Arcimboldo (Ver Figs. 2,

6, 8, 9 e 10), saída às substâncias descritivas de várias cidades, torna-se assim um

único agrupamento de traços – mas, uma trama que em si, não traz nenhuma

centralidade identitária.

A esta altura é oportuno lembrar o célebre ensaio de Derrida, “A farmácia de

Platão”. Nele, a cena central da literatura é uma “dupla cena”: “O que conta para

Derrida é a leitura como função em certo sentido ‘pragmática’, ou seja, o ato de fala

ou de discurso como prática de um sujeito, que fala, escreve, agencia valores,

desloca sentidos, redimensiona estruturas etc.” (NASCIMENTO, 2004, p. 14). Trata-

se de uma relação “viva” entre o sujeito e o discurso a ele predisposto. Uma ação

que fulgura dispensada de prévios caminhos à palavra. Deste modo, “em Derrida o

sentido é algo sempre por ser elaborado, remanejado, deslocado etc., em função

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dos sujeitos relacionados aos atos de fala e/ou de escrita” (NASCIMENTO, 2004, p.

14).

Sujeito e texto não mais são regidos por papéis fixos. A “sujeitidade” e a

“textualidade” formam uma só pulsão – um múltiplo ato aberto à força viva da

palavra. Assim: “as noções de sujeito e objeto como instâncias fixas e idênticas a si

próprias são abaladas” (NASCIMENTO, 2004, p. 15).

Nesse texto célebre de Derrida, que é a Farmácia de Platão, se analisa o

diálogo Fedro, de Platão; estabelece-se nele uma dupla cena acerca do mítico

nascimento da escrita:

Trata-se do momento em que o deus Thoth submete à apreciação do Deus

supremo Tamuz algumas de suas inovações. A última destas, na ordem de

apresentação ao Deus-Rei, são os caracteres escritos (grámmata) que, segundo

Thoth, devem servir como “remédio” (phármakon) para a memória e para a

instrução. O argumento do rei para a rejeição dessa oferenda de Thoth vai ser o de

que a escrita é boa não para a memória (mnéme) mas para a simples recordação

(hypómnesis). Tamuz reverte o sentido e o valor do invento atribuídos por seu

criador, transformando o “remédio” em “veneno” para a memória efetiva.

(NASCIMENTO, 2004, p. 18)

Para Derrida, a questão central se faz ver justamente na ambiguidade

irredutível do termo phármakon. Sobretudo, quando se volta em crítica a

determinadas traduções que o tendem apenas a uma de suas duas dimensões

(remédio/veneno). Não obstante não ter sido ele o primeiro a problematizar tal

marca: “O dado inovador na leitura proposta por ‘A farmácia de Platão’ é tornar

praticamente inviável uma decisão simples por um dos polos, o positivo ou o

negativo” (NASCIMENTO, 2004, p. 19). Por conseguinte, essa chancela de

indecidibilidade dirigirá a palavra, é sempre à revelia de uma “presença” última; de

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um gesto fundador de sentido. Desde essa dimensão, toda a nota discursiva não se

deriva de um “pai”: ou seja, de um ato inaugural, de uma centralidade emanadora de

sentido – um axioma.

O discurso de Avalovara associa-se a essa indecidibilidade. Sua carga

semântica desde sempre já está disposta ao cunho de uma discursividade ambígua.

Em meio à movimentação inaudita da própria massa significativa, o seu texto nos

leva a uma dimensão de sentido que, por caudalosa e compósita, nos faz

experimentar o que há de indecidível na língua. A territorialidade escritural do

romance, sempre fluída, chega-nos, por exemplo, pelos traços oníricos de uma

cidade saída da voz de Abel:

Sim, a cidade, certamente, não é igual à imagem que um dia me aparece e logo

submerge. Acredito, porém, que a reconhecerei – e assim busco-a. Não que saiba

com qual fim e por quê. Sim, sei. Vendo-a, encontrarei – e o verbo, neste caso, em

si mesmo termina, é como se eu dissesse: cantarei. Canta-se uma ária, uma

canção; disto não se pode fugir. Será preciso acrescer, para que se compreenda o

sentido do ato de cantar, o que se canta? (LINS, 2005, p. 90)

Para falar, faz-se necessário compreender a fala? Comprimi-la em

explicação se faz imprescindível, para somente daí admiti-la em estado

comunicante? Essa escrutação que, em si, já é um gesto de palavra –

invariavelmente uma ação metalinguística – não poderia se não ser desde dentro da

própria linguagem. Assim: o jogo metafórico da escritura se faz presente, “cada vez

que a diferença e a relação são irredutíveis, cada vez que a alteridade introduz a

determinação e põe um sistema em circulação” (DERRIDA, 1997, p. 118). É

justamente por se despossuir de um caráter agenciador, que a escrita se faz puro

traço aberto ao deslizar sem fim da significação. Não sendo ela aquela que diz, mas

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que metaforiza um dizer, que goza da perene possibilidade de se ser pura abertura

significativa. Portanto, distanciando-se daquilo “que Derrida, no rastro de Heidegger,

chamou de ‘metafísica da presença’, ou seja, o privilégio da presença como valor

supremo, em prejuízo de qualquer diferimento, repetição ou diferença em todos os

sentidos do termo” (NASCIMENTO, 2004, p. 21).

A voluta continuada da espiral de vozes que perpassa Avalovara é, em si,

uma conversão metafórica dessa “irredutível diferença”. Seu dizer movente não salta

de um fundo último de sentido – é apelo de linguagem atido somente a própria

mobilidade de seu jogo significante, que cursa irredutível pelo verbo em uma trama

textual sem fim.

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4 AVALOVARA, VERBO ABERTO EM MEIO A SIGNIFICAÇÃO

4.1 A RADICAL DIFERENÇA: DERRIDA E AS MARCAS DA LINGUAGEM

Jacques Derrida pertence a uma geração que foi a fundo nas acepções

genealógicas da linguagem. Ladeado por pensadores como Michel Foucault, Gilles

Deleuze, Jean-François Lyotard e Roland Barthes, foi um dos responsáveis por

aquilo que de modo generalizado se chamou “pós-estruturalismo francês”; ou ainda

“pensamento da diferença”: “A primeira denominação se deve sobretudo à leitura

norte-americana desses autores, mas contém um equívoco básico: o de dar um

sentido de bandeira, movimento ou escola, quando eles jamais se organizaram num

grupo coeso” (NASCIMENTO, 2004, p. 11). Portanto, se é imprescindível uma

nominação de grupo, o mais adequado seria chamá-los de “pensadores da

diferença”: “Com a vantagem adicional de que a tematização mesma da diferença é

diferencial e, em certo sentido, irredutível, em Derrida ou em Barthes, em Foucault

ou em Deleuze, ou ainda em Lyotard” (NASCIMENTO, 2004, p. 12).

Por conseguinte, por central à fala de Derrida está o termo diferença. Trata-

se, em linhas gerais, de dirigir toda a expressividade da linguagem a uma

“irredutibilidade significativa”. Tal “irredução”, Derrida nomina por différance. Trata-se

de criar uma diferença eminentemente produzida na escrita: posto que no francês, a

sonorização tanto de différence quanto différance não se distingue (ambas, têm a

mesma pronúncia). Ainda que na língua portuguesa o exemplo perca força, posto

que para nós, grafia e pronúncia sejam sempre distintas: esse exemplo (esse

“quaseconceito”) dá-nos a dimensão de uma ação significativa que opera sua

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irredutibilidade pela via gráfica – embora isso só se possa compor no nível de uma

metáfora:

A différance, nos textos performados por Derrida como leituras múltiplas da tradição

filosófica, se alinha aos outros indecidíveis capazes de abrir para o horizonte da

alteridade. Já houve várias tentativas de traduzir o termo para o português, tais

como “diferência”, “diferaença”, “diferensa”, “diferança”, dentre outras. Todo o

problema da tradução reside na dificuldade de reproduzir em português a rasura

que Derrida imprime no termo francês “différence”, normalmente grafado com “e”, e

que em “différance” vem grafado com “a”. Tal diferença é estritamente gráfica, pois

do ponto de vista fonológico não há como distinguir as duas pronúncias. Essa foi

uma maneira encontrada por Derrida para inverter o privilégio metafísico da phoné,

obrigando a que se leia para perceber a distinção entre os dois termos. A différance

é legível, mas não audível. Há ainda outras vantagens trazidas pela rasura da

différence, dentre elas a de a terminação “ance” remeter a uma voz média, nem

ativa, nem passiva, indecidível, pois. (NASCIMENTO, 2004, p. 54)

Avalovara compõe-se de vários “indecidíveis”. As marcas da “différance”

atravessam-lhe os elementos textuais. As inflexões dessa indecidibilidade estão

presentes, por exemplo, no signo unitário que substitui o nome próprio do terceiro

amor de Abel; indo até períodos inteiros que formam o corpus discursivo do

romance. Todo o seu jogo textual, indicado em suas composições frasais, traceja-

nos um mapa que nos dirige a uma escrita múltipla. Seguindo o seu letramento,

enredamo-nos em um labirinto de possibilidades significacionais; cada palavra sua

envereda-nos a um continuum de asserções. Apontando-nos muitas possibilidades,

seu discurso nos dispõe a uma multiplicação sem fim de dizeres – e por múltiplo:

nos indecide no curso de suas marcas mesmas.

Evando Nascimento (2004) lembra-nos, que Jacques Derrida, em Paixões,

entende que “o segredo da literatura tem a ver com um ‘resto sem resto’, sem

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conteúdo, substância, ou sujeito, quando muito um rastro ou traço de uma presença

desde sempre diferida” (p. 58). Isso, de pronto, pode nos causar profunda

estranheza – pode nos parecer por demais afastado daquilo que nos é usualmente

uma experiência para com a literatura. Pois, para nós, por natural, será um traço

escrito poder transferir-se a outrem que dele partilha, tal e qual afeito ao que seria

uma prévia indicação de sentido. Mas Derrida nos aponta que não há como medir

tais sujeições de um texto – qualquer que seja ele. Não se dá a ver de modo certeiro

onde, nem como isso ocorre. Não há lugares fixos à escritura: autor/texto/leitor.

Assim, esse “resto sem resto” da literatura “se explica pelo fato de a experiência que

está na origem de um poema, um romance, uma peça, um ensaio somente poder

ser lida em sua configuração literária ou em sua reinvenção ficcional”

(NASCIMENTO, 2004, p. 58). Espaço textual por excelência, a literatura far-se-ia

sem a necessidade correlativa de uma instância que se lhe suponha outra (outra

face a face escrita do texto). Mas dizê-la deste modo, já não seria também asseverá-

la em um lugar de fala, fixo? Derrida, em Margens da filosofia, ao transformar em

pura textualidade todo o assento metafísico, fala-nos que “a metafísica apagou em si

própria a cena fabulosa que a produziu e que permanece todavia ativa, inquieta,

inscrita a tinta branca, desenho invisível e recoberto no palimpsesto” (DERRIDA,

1991, p. 254).

A literatura bem representa essa continuada cena que não se ultima em uma

subjacente camada significativa. Nela, far-se-ia abrigar apenas o substrato material

que lhe asseguraria a condição de traço; “Daí Derrida dizer que a literatura significa

o direito ao ‘segredo ostentado’ (secret affiché). Um segredo que se relaciona

intensamente ao rastro, à escrita e ao resto” (NASCIMENTO, 2004, p. 58). Segundo

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ele, isso faz com que o discurso literário anuncie-se como “presença” de uma

“diferença” (uma “irredutível diferença”). O texto em si, e as suas supostas marcas

significativas, seriam impreterivelmente atravessados pela instância da

indecidibilidade: “De um lado, a experiência inscrita na literatura se dá a ler em sua

quase literalidade, não escondendo nada. Mas de outro, ao sofrer uma recodificação

literária, essa mesma experiência se dá como segredo, pois pode estar tão

reconfigurada que se torna irreconhecível enquanto tal” (NASCIMENTO, 2004, p.

58). Essa irredução a um sentido último (seja ele qual for) nos faz dispostos ante o

“traço de esfinge” da escrita: trata-se já de toda a constituição do seu mistério. Dota-

se a escrita da marca do “segredo” (“mistério”), para desde aí evadir-se de um gesto

último de sentido. Derrida nos aponta que:

[...] o segredo é aquilo que recusa qualquer resposta perante toda autoridade, todo

o sujeito, e nisso consiste sua singularidade mesma, irredutível a qualquer fala ou

escrita em sentido simples. Ela é a não-resposta absoluta, daí seu sentido de

resistência no espaço democrático. Ostentando o suficiente para falar de uma

experiência individual, particular, privada, mas também disfarçado o suficiente para

não se submeter às instâncias de nenhuma autoridade, o segredo literário é, a seu

modo, indecidível. Trata-se de um segredo que não secreta nenhum conteúdo

ontológico, nem subjetivo, nem objetivo. (NASCIMENTO, 2004, p. 59)

Para Derrida, a letra literária está desprendida do ofício da simples remissão

significativa. Ao desviar-se da necessária entrega de um sentido, opera-se na lida de

um dizer que se dispõe ao largo desta condição. Deste modo: “A literatura é o

excesso de si mesma, ela vive de sua diferença, de seu resto que a leva além de

suas fronteiras discursivas” (NASCIMENTO, 2004, p. 61). Por conseguinte, a voz

literária apresenta-se como um impronunciável segredo aberto ao infinito jogo das

significações. Sobretudo: “É através do segredo singular – essencialmente legível e

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reproduzível em uma face, e codificado, talvez para sempre indecifrável, na outra

face – que a literatura consigna uma experiência, a qual a ultrapassa enquanto

instituição histórica” (NASCIMENTO, 2004, p. 61).

Avalovara traz esse ultrapassamento à medida que se compõem como cena

escrita de uma indecidibilidade significativa. Somos levados a este tipo de

experiência, justamente por sua magistral riqueza indicativa: nascida da assunção

sem fim da palavra. Enquanto Abel deambula pelas ruas de Amsterdã na

expectativa de encontrar Annelise Roos, o sentimento amoroso, a territorialidade e a

palavra estão irrefreavelmente fusionados; rumados a uma única e incessada

abertura dirigida aos seus próprios gestos e marcas de significação:

Em Roos, essas vertentes parecem confundir-se. Ela abriga, dentre todas as

cidades que em momentos propícios diviso no seu corpo (nas quais incursiono e

me perco, sabendo que em breve daí serei arrancado e que logo haverei de voltar à

cidade onde eu me espero, espero por mim, à sua frente), a que procuro e entre

cujos muros, quando menos supuser, ver-me-ei, solitário; ao mesmo tempo, flui da

sua pele, como se muitas velas a iluminassem de dentro, um esplendor – talvez a

expressão visível do que sonho encontrar na cidade, de maneira concreta, assim

unindo a expressão e o seu objeto, tal como se durante anos eu houvesse lido, em

palavras díspares – vida, ave, uva, sonho, hoje, ver – , as letras esparsas, ainda

não unas, da palavra vinho, mais tarde a palavra vinho, antes que existisse o vinho

– e um dia, de súbito, encontrasse o vinho, e o bebesse, e me embriagasse, e

soubesse que vinho era o seu nome, e que nele também estavam os sonhos, o

hoje, a vida, as aves, as uvas, o ver. (LINS, 2005, p. 91-92)

A linguagem do romance de Osman Lins dispõe-se por ser esse pulso que

indecide a representação a uma significação última – corpo único e múltiplo em suas

possibilidades significativas, já é em si a pura ausência de uma decisão de sentido.

Entretanto, nem mesmo o múltiplo se pode assumir como significação de um dizer –

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pois, por múltiplo, indecide-se o estatuto de um sentido unitário (uma presença).

Assim, a letra de Avalovara é em si o cenário escritural de uma indecidibilidade

significativa. Indecidibilidade que Derrida evoca pelo jogo textual da literatura como

“possibilidade de dizer tudo ao mesmo tempo em que guarda o segredo. Um

segredo que não se reduz à coisa, pessoa ou qualquer identidade. Um tal segredo

rasura o próprio regime ontológico das identidades pontuais e homogêneas”

(NASCIMENTO, 2004, p. 59). A radicalidade significativa da literatura é assim a

irredução à cena da linguagem como mero meio de transferência de sentido. Marca

de uma aguda alteridade, desde sempre já se faz predisposta a uma condição de

aporia (uma aporia que é da ordem mesma da própria significação). Monta-se assim

um jogo de dizeres que não distingue o que há de estranho e familiar no horizonte

da sua própria representação. Deste modo, o discurso literário anuncia-se pela via

de um “segredo dotado de uma dupla formulação (visível/invisível,

aparente/essencial, legível/indecifrável), ele jamais coincide plenamente com a

ordem da visibilidade ideal própria ao fenômeno” (NASCIMENTO, 2004, p. 62). Disto

decorre ser a letra literária: “marca que diz”; desincompatibilizando-se de ser marca

“por onde se diz”.

4.2 TRAÇO E IDENTIFICAÇÃO: UMA ABORDAGEM LACANIANA À LETRA

Jacques Lacan, voltando-se às cifras de sentido arbitradas aos nossos

traços comunicantes, interroga-nos, e a si, acerca de como cerramos sentido aos

nossos dizeres e os remetemos àqueles que, supomos, sejam “o outro” de nossa

comunicação.

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No livro 2, que compõem o conjunto dos seus seminários, O eu na teoria de

Freud e na técnica da psicanálise (1985), Lacan passa em revista ao conto A carta

roubada de Edgar Allan Poe. Aí, como de resto em boa parte de suas obras, a

questão coloca-se no nível da linguagem – de sua condição de significar.

Discorrendo sobre as marcas de sentido deixadas por uma carta – sendo ela a

própria figura central da trama –, Lacan concentra-se no que é próprio da linguagem

e nas cadeias significantes dela resultantes: “Partamos da primeira cena. Há quatro

personagens – o rei, a rainha, o ministro, e o quarto, quem será? SR.

GUÉNINCHAULT: – A carta. Claro, a carta e não aquele que a envia” (p. 247). Posto

que, é ela quem fará todo o itinerário que aqui chamaremos de “percurso da

significação”. A história do conto, montada em uma superfície narrativa

aparentemente acessível no tocante a sua estrutura, nos diz dos caminhos

percorridos pela inscrição significativa de uma carta, que assim é disposta no próprio

teor escritural do conto. Subtraída dos aposentos reais por um ministro da corte, à

vista da rainha, e à ignorância do rei, “a carta é aqui sinônimo do sujeito inicial,

radical. Trata-se do símbolo a deslocar-se em estado puro, no qual não se pode

tocar sem se ficar imediatamente preso em seu jogo” (LACAN, 1985, p. 247). Assim,

o fato é que não sabemos o que verdadeiramente se passa no interior da narrativa;

desconfiamos; fazemos ilações; levantamos suspeições; queremos enfim saber o

segredo contido na carta (se é que ele existe!).

Desejamos, na qualidade de leitores, em vão decifrar de maneira cabal o

conto de Poe; mas mal percebemos que já fomos acoplados a ele como peças

significantes do seu jogo textual; integrados a ele em uma relação textual que em si

já é eminentemente deslizante no que toca à significação. Tratar-se assim, de uma

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identificação para com a letra, justamente onde ela nos falta. Assim, Lacan (1985)

nos chama a atenção ao que “Poe é um homem estupendamente avisado, e basta

que leiam o conjunto do texto para ver o quanto a estrutura simbólica da história

ultrapassa e de longe o alcance deste raciocínio, por um instante sedutor, porém

excessivamente fraco, que só tem aqui a função de um conto-do-vigário” (p. 245).

Portanto, isso se faz do próprio ultrapassamento do mero significado último a qual

está dirigida a estrutura da narrativa – ainda que seja esta pela própria indicação

mesma de sua impossibilidade de se fazer significação ultimada.

Toda a ordem simbólica guardada no interior da trama de Poe, não nos faz

na fiúza de um significado – ao contrário, o texto faz-se ao puro sabor do deslizar

das suas próprias cadeias significantes. Isto se nos é mostrado por intermédio da

circulação da carta: “Quando os personagens se apoderam desta carta, pode-se

dizer que algo, que sobrepuja e de muito suas particularidades individuais, os pega e

os arrasta” (LACAN, 1985, p. 248). Sendo o jogo significativo sem fim corrente no

interior da narrativa, põe-se a dizer mais pelo que não diz. Deste modo, a posição

significativa das personagens jamais “é fixa. Na medida em que eles entraram na

necessidade, no movimento próprio à carta, cada qual se torna, no decurso das

sucessivas cenas, funcionalmente diferente em relação à realidade essencial que

ela constitui” (LACAN, 1985, p. 248).

Logo, a experiência significativa é sempre uma marca discursiva

singularizada (e singularizadora). Assim, anuncia-nos Lacan (1985): “Em outros

termos, se considerarmos esta história em seu aspecto exemplar, a carta é, para

cada um, seu inconsciente. É seu inconsciente com todas as consequências, ou

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seja, a cada momento do circuito simbólico, cada qual torna-se um outro homem”

(LACAN, 1985, p. 248).

Desde aí, confluímos o conto de Poe e a fala de Lacan sobre a linguagem,

ao texto de Avalovara. O romance de Osman Lins, ao bancar-se de toda a sua

riqueza significacional, dirige-nos a um tipo de experiência para com a linguagem

que faz da significação e da palavra, meios móveis pelos quais podemos

experimentar o constante deslizar do sentido. E é como metáfora escritural dessa

condição inquietante, que o posicionamos como experiência discursiva afeita ao

interminável deslizar da significação. Condição que podemos ver expressada na

própria voz do autor, quando de uma entrevista concedida ao “O Estado de São

Paulo”, no ano de 1974:

Não era então um livro onde eu buscasse respostas a questões colocadas pela

vida. Não teve essa finalidade que eu poderia dizer “pragmática”. Aliás, acho difícil

que um romance possa dar ao seu autor aquele tipo de resposta. O máximo que

posso dizer de Avalovara é que ele expressa a minha inquietude diante da vida e

das palavras. (LINS, 1979, p. 176)

É desta ambígua inquietude nascida para com a palavra e com a vida: e que

a todo o momento demanda que se lhe façamos uma sustentação significativa, que

Lins diz tratar-se a porção central de Avalovara: “O projeto básico da obra, seu

arcabouço, estão ligados à arte de narrar e aludem constantemente à ambigüidade

da palavra. Lendo-o com atenção, vê-se que tudo isto o atravessa gerando uma

infinidade de motivos” (LINS, 1979, p. 175). Trazendo inquietação à letra, e ao que

por ela se faria significar, o romance, nas palavras do seu autor, dispor-se-ia,

portanto, na direta questão da linguagem e do seu interminável fluir. Quando

pergunta a Abel (LINS, 2005) sobre do que trata seu ensaio literário A viagem e o

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rio; este assim lhe responde: “Do tempo mítico e de suas relações com a narrativa”

(p. 171).

Lacan trabalha a significação, visando saber como aderimos pela palavra

àquilo que julgamos ser a reta relação de sentido entre as coisas mesmas e o

campo da linguagem. E é desde aí que a significação conflui-se à magia do sentido.

Por não se constituir ao direto espelhamento ao que lhe é dado representar, as

marcas da linguagem significam ao exacerbar a nossa imaginação, são-nos a

fulguração dos traços. Deste modo estamos expostos à nossa própria nervura

imaginária. Independentemente do suporte e do traço gravado em nossas sulcagens

significativas: se “grafemizado”, ideogramático, ou ainda pictórico; trata-se sempre

da mítica ligação de nós mesmos para com a nossa própria dimensão

representacional. Então, ao que nunca é por fim significado de modo último – a

atávica pergunta pela motivação de nossas próprias existencialidades desde a

linguagem mesma, sempre feita faltante na incompletude das respostas, segue-nos

fazer da vida uma interminável escrita.

4.3 A MARCA, O JOGO E A LETRA NA ESCRITURA DE AVALOVARA

Ao tempo que se assemelha a compressão geométrica da arte da

marchetaria, Avalovara distingue-se da elementaridade puramente formal. Composto

de um jogo linguístico que a todo o momento faz “borrar” as divisas que lhe intentam

apartar forma e conteúdo; o seu discurso literário não mede esforços em construir

uma palavra que se estruture ao nível de uma significação ampla – “aberta”. Marca

escritural montada sob uma forte condição móbil de ser, a sua narrativa engenha-se

de um movimento discursivo sempre incessado. Por sobre o seu chão textual

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desenha-se um tapete linguístico; que ao nível da significação, mostra-se sempre

multicolorido; todas as cores e motivos que lhe perpassam o tramado (o texto) estão

poeticamente imiscuídos sem distinção ao que lhes seria uma suposta exterioridade.

O jogo bivalente de “dentro” e “fora”, “interno” e “externo”, ao contrário de balizar

estas duas dimensões, funde-as em uma territorialidade que indecide os seus

gestos demarcatórios. Por exemplo, isso fica evidente quando da descrição do

tapete sobre o qual Abel e se amam. Este retábulo internado na sala de estar do

apartamento de , sobre o qual são molduradas as cenas de amor entre os dois

amantes, composto de motivos que reúnem uma fauna e flora saídas de um idílio

mítico tingido por fortes cores, se nos dá a impressão de retê-los sob um abrigo

“pictorializado”, mais do que circunscrevê-los em um campo destacado daquilo que

os cerca, os fazem compelidos, e a nós leitores do romance, a uma “zona cinza”;

que já não mais pode destacar as inscrições individualizadas de ambos em relação

a tudo mais que os rodeia. Mediados pela letra do romance, fazem-se os dois já

indecididos à recalcitrante invasão de uma totalidade que não dá a ver onde termina

a extensão dos corpos e inicia a triunfante infinitude cósmica que a tudo cinge e

transpassa:

Ele beija meu sexo e sustenta-me os peitos, o crocodilo passeia junto ao bule de

prata tombado no tapete, ramos de flores nascidos do tapete quase ocultam as

paredes e enredam-se nos lustres, se enredam, pendem para fora através da

janela, as leoas passam pelos nossos corpos, as leoas, o coelho, cabras de pêlo

branco e cadelas de cabeça humana passam pelos nossos corpos, andam na sala,

sobem nas poltronas. Ele roça com os dedos as pontas dos meus peitos, sua

postura é a de um homem a quem apontam uma arma, os braços para o alto, nos

meus peitos florescem margaridas brilhantes , rebentam violetas dentro do meu

ventre e o crocodilo – roxo, vermelho e verde –, o crocodilo desliza junto ao bule de

prata (LINS, 2005, p. 191-192).

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Narrativa que delibera perder o seu centro; que extravaza a própria

marcação significativa ao erguer-se em signos compósitos (pois é Avalovara, no

interior do romance, um pássaro que tem o corpo “feito de pássaros”), por natureza

insurreta a qualquer campo de leitura que lhe imponha reter de modo último às suas

expressões de sentido, a todo o momento, seja por intermédio de uma geometria

intertextual, seja pela distribuição calculativa das suas seções narradoras (“R: e

Abel: encontros, percursos, revelações” / “S: A espiral e o quadrado” / “O: História de

, nascida e nascida” / “A: Roos e as cidades”/ “T: Cecília entre os leões” / “P: O

relógio de Julius Heckethorn” / “E: e Abel: ante o paraíso” / “N: e Abel:

oParaíso”), as suas palavras susteem-se de uma indecidibilidade levada à fatura

indicativa dos seus muitos signos; sejam eles intertextuais ou intratextuais. Outro

exemplo, é a construção semiótica das próprias personagens do livro: o engenho

narrativo que dá a ver Cecília no interior do romance é um deles; amor do meio de

Abel, cursa ser ela,por conta do seu hemafroditismo, uma figura que cerra em si a

capacidade de dotar-se tanto da masculinidade quanto da feminilidade – isso

inclusive valendo para a ordem anatômica do seu corpo. No entanto, essa pretença

bivalência sexual, fato biológico evidente, é apenas sugerida em sua possibilidade

de ser, jamais se faz demarcada de modo absoluto. Basta-nos saber que ela lá esta,

sem que com isso se assinale de modo ecessivamente pronunciado a territorialidade

de ambos os domínios (masculino/feminino):

Abel considera os galernos de Cecília e os seu contrários. Vê a discórdia entre a

branca curva dos ombros e a falta de curvas nos quadris; entre os seios grados (de

bicos tensos) e o peito do pé com os seus tendões, um pouco largo à altura dos

dedos; espanta-o que venha de Cecília o eco de inúmeros ramos delicados, secos,

cautamente pisados e que ao mesmo tempo algum sinal no seu rosto sugira

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determinação; e, mais ainda, que essa figura alada e plena de graças seja

sustentada por um impalpável arcabouço de virilidade (LINS, 2005, p. 111).

Logo, o jogo significativo de Avalovara faz deslindar a sua condição

quiasmática13 de ser. Não lhe interessa o mapeamento decisivo das suas inscrições

de sentido; interessa-lhe a condição de ser um palimpsesto narrativo – de ser-se um

infinito gesto de sobreposições significativas:

Uma literatura que permite pensar, por exemplo, nossa relação com a lei, com sua

loucura original, indecidível entre vida e morte, masculino e feminino, atividade e

passividade, escritor e leitor.

[...] A questão do gênero literário não é uma questão formal: atravessa de ponta a

ponta o motivo da lei em geral, da geração, no sentido natural e simbólico, do

nascimento, no sentido natural e simbólico, da diferença de geração, da diferença

sexual entre o gênero masculino e o gênero feminino, do hymen entre os dois, de

uma relação entre os dois, de uma identidade e de uma diferença entre o feminino

e o masculino (DERRIDA, 1986c, p. 277). (DERRIDA citado em NASCIMENTO,

2001, p. 299)

Avalovara enfeixa-se em um horizonte quiasmático de escrita, carrega o

próprio bloco narrativo das delicadas fusões e sobreposições que fazem sempre

ultrapassar as medidas de um sentido último. Tal experiência franqueia-nos a um

modo de expressividade que não está convergido a um único estado de emanação

significante: “A parte vale pelo todo porque conta da estrutura desse todo

necessariamente aberto, deiscente, transbordado por ambos os lados, e dando

sobre um abismo” (NASCIMENTO, 2001, p. 297-298). Ao continuar a peroração

acerca da estrutura narrativa blanchotiana, ao que irá suceder o comentário

13

A palavra quiasma aqui se põe no sentido de uma interseção ou sobreposição – que já não mais faz ver o que se sobrepõe a quê.

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anteriormente exposto, Evando Nascimento em seu Derrida e a literatura (2001),

acrescenta: “A narrativa (de Blanchot) se sustenta nesse limite imponderável entre

um dentro e um fora que só a estrutura de um quiasma pode comandar, de maneira

enigmática, como a letra grega: ” (p. 298). Assim, se é lícito perguntar:

O que resta ainda de uma estrutura transbordada? Como ainda falar rigorosamente

de estrutura e texto diante de um relato que questiona os limites mesmo de seu

corpo, questionando igualmente por extensão metonímica, os limites do corpus em

geral, em qualquer domínio em que se apresente como tal, seja em história, crítica

ou teoria literárias, filosofia, teologia, lingüística e outras disciplinas antropológicas?

(NASCIMENTO, 2001, p. 298).

Sobretudo, trata-se de perceber a mobilidade como marca estruturante de

qualquer narrativa; mas não fazendo dessa condição instância de puro fulcro, posto

tratar-se de se instituir pela movência de uma enigmática e indecidível totalidade que

a tudo abarca e transpassa. A narrativa torna-se então um instante único, entificado

propriamente por uma condição de ocasião que é em si sempre movente; jamais

desveladora de um sentido último. Deste modo, toda a circunscrição de sentido que

se faz jazer pela letra já seria pura abertura significacional à própria

“impermanência”. No interior da narrativa de Avalovara dispõe-se um belo exemplo

poético deste paradoxal “lugar”:

Salta o peixe das vastidões do mar, salta o peixe e este salto nem sempre ocorre

no momento propício, nem sempre advém próximo à terra, às ilhas, aos arrecifes,

nem sempre há luz nessa hora, pode o peixe encontrar um céu negro e sem

ventos, ou uma tempestade noturna sem relâmpagos, ou uma tempestade de raios

e relâmpagos, assim o salto, o instante do salto, esse rápido instante pode coincidir

com a treva e o silêncio, pode coincidir com o mundo ensolarado, enluarado, o

peixe no seu salto pode nada ver, pode ver muito, pode ser visto no seu brilho de

escamas e de barbatanas, pode não ser visto, pode ser cego e também pode no

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salto, no salto, no salto, encontrar no salto, exatamente no salto, uma nuvem de

pássaros vorazes, ter os olhos vazados no momento de ver, ser estraçalhado,

convertido em nada, devorado, e o espantoso é que esses pássaros famintos

representam a única e remota possibilidade, a única, concedida ao peixe, de

prolongar o salto, de não voltar às guelras negras do mar. Mas não serão essas

aves, seus bicos de espada, uma outra espécie de mar, sem nome de mar? (LINS,

2005, p. 52)

Em várias ocasiões, no correr deste trabalho, ligamos a prosa osmaniana às

faces compósitas saídas das telas do pintor Giuseppe Arcimboldo (Ver Figs. 2, 7, 8,

9 e 12). O objetivo de fazê-las figurar como exemplo não foi outro senão o de

demonstrar de modo metafórico que toda a palavra declinada não seria se não um

assento significacional sopesado por infinitas escansões e clivagens. Toda a palavra

dita e significada tornar-se-ia assim um gesto saído de uma ação composicional feita

infinitamente deslizante em seu intento. Se nos são insólitos os elementos que

sustentam as faces das figuras arcimboldescas; eles nos fazem refletir sobre os

lugares que votamos a enunciação dos nossos próprios discursos. Ao buscar chão

firme aos pronunciamentos linguístico que usualmente empreendemos, damo-nos

com uma ausência de firmeza, que no mais das vezes, aos mais desavisados, pode

surpreender. O suposto espaço no qual ancoramos as nossas representações, ele

próprio parece já estabelecido por gestos compósitos que se montariam em um

crescendo – rumados todos a um sem fim que lhes caracterizaria ser as suas

próprias essências. O objeto e o seu espaço de representação, deste modo estariam

imiscuídos a uma horizontalidade significativa que jamais se faria ver em sua

integridade substancial.

Michel Foucault em As palavras e as coisas, por ocasião da análise que faz

ao quadro As meninas de Velázquez (Ver Fig. 11), trabalha de modo inquietante o

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lugar da representação. Por intermédio da troca de miradas que entretemos nós (os

espectadores) com a figura do próprio Velázquez; que a si se auto retrata no interior

do quadro, ante uma tela que conjecturamos pinta; ato contínuo estamos nós já

desdobrados do nosso lugar de espectadores ao tempo mesmo que compomos a

célebre cena; crédulos disso estamos unicamente pela ambiência que se faz ensejar

no interior da própria pintura; e que, a nós mesmos, agora nos parece magicamente

misturar-se: a filha de cinco anos do rei Felipe IV, a Infanta Margareta-Teresa, seu

entourage, um visitante que ao fundo indica sair por uma porta ali posicionada, e que

pode mirar frontalmente toda a cena exposta no interior do quadro, inclusive

vislumbrando o que vai retratado no interior da tela que se nos apresenta Velásquez

ao revés, visando o próprio Velásquez , quem sabe, fazer-nos crer que é de próprio

punho que a pinta; por fim, ao centro, um espelho pelo qual é refletida a figura do rei

Felipe IV e sua esposa; ao que, inferimos nós, mais uma vez movidos pela própria

ambiência do quadro, posam eles para o próprio Velásquez, que auto retratado,

parece dispor-se ante a tela na posição daquele que os pinta – tal cena,

barrocamente carregada de detalhes, diz-nos muito deste que é o lugar da

representação:

Aparentemente, esse lugar é simples; constitui-se de pura reciprocidade: olhamos

um quadro de onde um pintor, por sua vez, nos contempla. Nada mais que um face-

a-face, olhos que se surpreendem, olhares retos que, em se cruzando, se

superpõem. E, no entanto, essa tênue linha de visibilidade envolve, em troca, toda

uma rede complexa de incertezas, de trocas e de evasivas. (FOUCAULT, 2002, p.

5)

Tanto Arcimboldo quanto Velázquez dizem-se diretamente ao pulso da

escrita osmaniana. Quando em suas pinturas complexificam as barras que separam

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a representação do representado – Arcimboldo convidando-nos a destituir a

condição unificada de toda e qualquer marca significante por meio das suas figuras

hiperbolicamente compósitas, e Velázquez ao problematizar mais propriamente o

lugar da representação – ambos captam pelo curso pictórico aquilo que Osman Lins,

em Avalovara, nos oferta pela via da escrita, a saber: um modo narrativo modulado

rumo a indecidibilidade da própria conjunção que une a letra ao seu significado. Por

conta da acurada estruturação barroca, o livro é, ele mesmo, fornido diligente e

abundantemente de tais marcas. Dispostas em um gradil de significados, móbeis e

mobilizadas em suas funções de ultrapassamento, elas fazem romper com tudo que

lhes impõe ser marca e assento de sentido último. Esta levada metalinguística,

conformando a palavra ao seu horizonte de manifestação, fala-nos, a um só gesto,

às portas de uma confluência de ambas as instâncias discursivas – pintura e

escritura. Disto, é apropriada a aproximação que faz Sandra Nitrini em seu Trans-

fuigurações (2010), quando da comparação da escrita osmaniana ao universo da

pintura em geral:

O autor pernambucano de Vitória de Santo Antão não rompe apenas as fronteiras

entre gêneros literários, mas também, num certo sentido, entre a literatura e a

pintura, ao absorver conhecimentos dessa arte visual, evidente nos limites da

natureza da linguagem literária. Poderíamos dizer que ele realiza a “escritura

pictural”, nos termos de Daniel Bergez. Diferentemente da ekfrasis, que é da

descrição de uma obra de arte, a escritura pictural, além de designar implicitamente

seu referente, como sendo de natureza pictórica, interioriza a linguagem da pintura,

tornando-a também estilo. (p. 162)

Foucault, na análise empreendida ao quadro As meninas de Velásquez (Ver

Fig. 11), dispõe-nos a um espaço de escrita que nos expõe as indecidibilidade do

lugar da representação. Este “lugar”, que bem poderíamos metaforizar como sendo

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um “nãolugar”, tão pouco seria uma disposição espacial negativa; seus horizontes

entoados estariam invariavelmente cingidos em uma territorialidade para todo o

sempre atópica – uma atopia, que em si, fundiria limites e marcações aos próprios

estados de ser da representação. Esta dimensão de giro, atida à própria dinâmica

imagética do quadro, em sua infinita condição de voluta, de torção; traz-nos de modo

surpreendente ao interior de uma “ciranda representacional”, na qual fazemo-nos já

fusionados a ela em um único corpo semiótico: cujo espelho internado no centro da

tela é o espaço por excelência de uma junção, em detrimento de sê-lo de transição.

De modo pertinente, indaga Foucault (2002):

Que há, enfim, nesse lugar perfeitamente inacessível, porquanto exterior ao quadro,

mas prescrito por todas as linhas de sua composição? Que espetáculo é esse,

quem são esses rostos que se refletem primeiro no fundo das pupilas da infanta,

depois dos cortesãos e do pintor e, finalmente, na claridade longínqua do espelho?

(p.17)

Sendo o espelho a personificação deste lugar transicional – lugar de fusão

de todo o agenciamento da representação: ele “assegura uma metatese da

visibilidade que incide ao mesmo tempo sobre o espaço representado no quadro e

sua natureza de representação; faz ver, no centro da tela, aquilo que, do quadro, é

duas vezes necessariamente invisível” (FOUCAULT, 2002, p. 10). Instância de puro

reflexo, o espelho vai engolfar a nós espectadores àquilo que tiramos por ser da

dimensionalidade interna da tela. Foucault (2002) bem nota que Velásquez neste

quesito não segue o seu velho mestre Pachero: “Estranha maneira de aplicar ao pé

da letra, mas invertendo-o, o conselho que o velho Pachero dera, ao que parece, ao

seu aluno, quando trabalhava no ateliê de Sevilha: ‘A imagem deve sair da moldura’”

(p. 11). Assim, somos nós que adentramos ao interior da pintura velasquiana; e

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mais, isso já nos faz indecididos à sua própria conformação imagética. Participamos,

ainda que compulsoriamente, do seu processo semiótico – somos sua extensão: “o

rosto que o espelho reflete é igualmente aquele que o contempla; o que todas as

personagens do quadro olham são também as personagens a cujos olhos elas são

oferecidas como uma cena a contemplar; o quadro como um todo olha a cena para a

qual ele é, por sua vez, uma cena” (FOUCAULT, 2002, p. 17). Tomados por objetos

de observação do próprio objeto que observamos, ao tempo que o observamos, não

mais nos dispomos pura e simplesmente ante a sua cena, tão pouco assim, se

poderá ela, a nós constituir-se; mas já indecididos ambos os espaços, comporemos

uma terceira cena: que não mais se dispõe marcar-se em fronteiras e distinções

entre observador e coisa observada. Este jogo imagético de infinito espraiamento,

que nos desintegra como simples espectadores, para nos reintegrar como participes

sem marcas ou divisas ao próprio dinamismo semiótico da cena que vislumbramos,

põe em questão o lugar do sujeito da representação e a acena na qual ele próprio é

constituído enquanto tal:

Talvez haja, neste quadro de Velásquez, como que a representação da

representação clássica e a definição do espaço que ela abre. Com efeito, ela

intenta representar-se a si mesma em todos os seus elementos, com suas imagens,

os olhares aos quais ela se oferece, os rostos que torna visíveis, os gestos que a

fazem nascer. Mas aí, nessa dispersão que ela reúne e exibe em conjunto, por

todas as partes um vazio essencial é imperiosamente indicado: o desaparecimento

necessário daquilo que a funda – daquele a quem ela se assemelha e daquele a

cujos olhos ela não passa de semelhança. Esse sujeito mesmo – que é o mesmo –

foi elidido. E livre, enfim, dessa relação que a acorrentava , a representação pode

se dar como pura representação.

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Qual o peixe narrado em Avalovara, que pelo salto se desliga para sempre

do mar ao tornar-se presa de um pássaro faminto, o sujeito dispõe-se não mais por

ser uma rematada fixidez. É ele agora, por móbil e transpassado, aderido ao próprio

horizonte que outrora lhe era apenas mirada. O olho e o seu objeto assimilam-se um

ao outro já indecididos na mutualidade contingente que agora os une. Metáfora da

conjunção assimilatória do sujeito ao seu objeto, este trecho do romance de Lins faz-

nos ver o lugar da representação com “outros olhos” – já aderidos e indistinguidos

dele pela perpétua dinâmica de ser o ser das coisas fluxo constante. Este lugar que

não mais pode reduzir o seu funcionamento ao mais fundamental dos binarismos:

sujeito/objeto – trazido exemplarmente tanto no horizonte narrativo do quadro As

meninas de Velásquez (Ver Fig. 11), quanto em Avalovara, e nas figuras compósitas

arcimboldescas (Ver Figs. 2, 7, 8, 9 e 12) –, remete-nos ao centro de todo o

movimento atido à representação: a linguagem e o seu poder de inscrição. Trata-se

de prospectar a presença mesma da escritura, como presença a si mesma, já a ela

englobadas, indistintamente, as suas próprias marcas de sentido e significação: “O

rastro da diferença apagou-se. Se pensa-se que a diferença (é) ela mesma outra em

relação à ausência e à presença, (é) (ela-mesma) rastro, é sem dúvida o rastro do

rastro que desaparece no esquecimento da diferença entre o ser e o ente”

(DERRIDA, 1991, p. 103). Não há assim, linguagem em relação à ausência ou à

presença de um sentido; a dupla cena da linguagem, mais o seu sentido, está elidida

da posição de uma presença pronta e acabada – é sempre presença de uma

diferença... De uma radical diferença. Jacques Derrida em A farmácia de Platão, diz:

“Um texto permanece, aliás, sempre imperceptível. A lei e a regra não se abrigam no

inacessível de um segredo, simplesmente elas nunca se entregam, no presente, a

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nada que se possa nomear rigorosamente uma percepção” (DERRIDA, 1997, p. 7).

Todas as dimensões da letra (da linguagem), sejam elas graficamente inscritas,

pictóricas, ou ainda corporalmente gestualizáveis; são, por assim dizer, não o

desdobramento que se expõe na forma de um sentido, que assim se poderia tomar

como “totalmente outro”, agenciado na condição de ser, por si mesmo,

desmembrado de seu horizonte perceptivo, mas já sendo implementado à indivisão

do próprio pulso que lhe dá a ser a sua própria percepção. Assim, “O suplemento de

leitura ou de escritura deve ser rigorosamente prescrito, mas pela necessidade de

um jogo, signo ao qual é preciso outorgar o sistema de todos os seus poderes”

(DERRIDA, 1997, p. 8). Sobretudo o horizonte de suplementação da escritura – a

sua marca escritural e o seu suposto assento de sentido – só se podem desdobrar

em dúplice, sob o jogo de cena da própria representação: “Ele é então álogos ou

átopos. Ou então o jogo começa a ser alguma coisa e sua presença mesma dá

ensejo a alguma confiscação dialética” (DERRIDA, 1997, p. 111). Este lugar não se

pode medir por uma lógica de ordem prévia: ele próprio é uma metáfora escrita –

mas que, no entanto, não está inscrito de modo cabal à própria escritura que o

escreve. Assim, é que “os saberes movimentam-se, através da escritura, em torno

da literatura, identificada como exercício da linguagem, como prática na linguagem,

como texto ou malha de significantes, ‘o próprio aflorar da língua’ (BARTHES, s.d.:

17)” (MUCCI, 2007, p. 31).

Deste modo, se extrai do horizonte da literatura, de seu assento imaginativo

de ser, um modo pelo qual se pode mais propriamente pensar a linguagem desde a

sua mais pura condição de neutralidade; estado que ao assim confluí-la, não mais

pode sabê-la em retração ou expansão no tocante a uma condição ultimada de

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sentido; e que assim pode propriamente destacá-la em seu movimento que é

sempre ulterior a qualquer assento de significação – seja ele qual for. O que importa

é já ser toda a condição e possibilidade do seu jogo significacional. Manter-se

solvente nesta posição de jogo, que paradoxalmente o põe sem centro ou

extremidades é o que lhe é mister. Daí nasce o movimento significacional de

Avalovara, da voluta e da condição compósita dos seus próprios signos; que se

desdobrando infinitamente em ser uma territorialidade sem marcas, são as únicas

coisas apropriadoras na movência do jogo do dizer e nas possibilidades infinitas de

suas próprias marcas de significação.

Fig. 11 – As meninas, de Diego Velásquez. Fonte: http://peregrinacultural.files.wordpress.com

/2010/01/velazquez-las-meninas.jpg

Figura 12 – Giuseppe Arcimboldo, O bibliotecário

Fonte: http://mesquita.blog.br/wp-content/imagescaler/36ef31f9c6 aab5316442f5fe36562112.jpg

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Todo o processo argumentativo, ao qual se propôs a presente dissertação,

entende-se foi modulado a contento. Avalovara é uma obra rica no tocante às

experiências atidas na linguagem. Tomando por fato que o seu arcabouço narrativo

é uma complexa e delicada empresa discursiva, sua intensa experimentação visa-se

em um continuado movimento de prospecção significante. Trata-se de um horizonte

narrativo cuja linguagem se faz sair da palavra mesma; um engenho discursivo

voltado à tessitura de uma escrita disposta em constante renovação. É deste lugar

significativamente fluido, que a palavra literária de Osman Lins é medida. Gesto não

afeito à suportação de um sentido último, a escritura de Avalovara é um espaço de

constante mobilidade semântica. Ao convocar pensadores da linguagem como

Jacques Lacan, Roland Barthes, Jacques Derrida e Michel Foucault, tomou-se por

certo acolher a fluidez desta palavra no interior do romance. Foi justamente por

intermédio da leitura destes e de outros pensadores, filiados ao mesmo horizonte de

análise, que se pôde aqui perceber na escrita de Avalovara uma condição

significativa de manejo diaspórico. Marcá-la por esse viés foi justamente dizê-la

desde um tempo e um espaço narrativos que não se perquirem pela continência da

significação única; ao contrário, imiscuem-se ao incessado e plástico movimento

pelo qual a palavra jamais se faz derradeira em seu sentido. Uma pronúncia dita na

constante deambulação da própria insígnia escritural.

Convertida na mais ampla horizontalidade, a letra romanesca de Lins foi aqui

tratada em temas como o “Neutro” barthesiano; expressão cunhada por Roland

Barthes para que possamos pensar a linguagem desde um lugar que não é o da

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especificidade dos seus usos gregários: de onde manobramo-la convencionalmente

na interioridade dos nossos “socioletos”; mas do próprio encenar expressivo da

linguagem: a literatura. Assumida assim, a palavra é tão somente a continência de

uma possibilidade de sentido; uma condição de dizer que jamais se põe na

pregnância final de uma significação. Ela é apenas um modo de ser que aponta

poeticamente à cena comunicacional que nos singulariza enquanto espécie;

enquanto seres comunicantes que somos; enquanto operadores de uma

comunicação que em si é eminentemente simbólica. Lugar por excelência da rasura,

a linguagem traduz-se por ser um horizonte de contiguidades e continuidades

significantes; um palimpsesto sobre o qual já estão desde sempre intercedidas

muitas marcas de sentido. Assim alude Jacques Derrida ao acolher a palavra na

figura do quiasma, para daí indicar a sua volição significativa. Vertendo a marca

quiasmática em jogo de intermináveis sobreposições significantes, Derrida dá-lhe

semblante por intermédio da letra grega “Khi” (X). Por ser todo feito da intercessão e

das sobreposições dos vários assentos de sentido que lhe são conferidos, o

quiasma se exerce do sem fim das indicações de sentido que lhe inculcamos. Esta

porção quiasmática pode ser lida como o próprio lugar da linguagem; um lócus pelo

qual palavras e coisas se intercedem pela simples condição de se fazerem ditas.

Na última parte do presente trabalho, traçando um paralelo à narrativa de

Avalovara, foram apresentados os discursos pictóricos saídos das telas de Giuseppe

Arcimboldo e do quadro As meninas de Diego Velásquez. Destes lugares

expressivos, assumidos na paradoxal condição de “não lugares” da representação,

estariam acondicionados, em poética contradição, o próprio espraiamento e a

incontinência da linguagem. Assumidas desta maneira, tais marcas nos levariam a

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uma indecidibilidade significacional. Estes lugares picturais perfariam de si mesmos

horizontes de problematização dirigidos ao próprio lócus da representação. Ao fim e

ao cabo, se lhes comporia o medimento de ser a linguagem um limite sem feitos

externos; ou como quer Barthes, sê-la sem exterior; ou ainda, ser Kôra, como nos

aponta Jacques Derrida ao trazer-nos esta que é uma expressão usada no diálogo

Timeu de Platão, para daí comportar uma reflexão filosófica acerca da compreensão

linguística da totalidade.

Sobretudo, decorre daí que as coisas mesmas e a possibilidade das suas

compressões representativas pela via da palavra, como o visto em As palavras e as

coisas de Michel Foucault, parecem guardar um dos mais caros temas à Avalovara,

a saber: a indecidibilidade do lugar da representação – de ser a palavra disposta na

própria indecisão construtiva de sua significação. A análise dirigida por Foucault ao

quadro As meninas de Diego Velásquez, primeiro texto da série que forma o

conjunto de escritos de As palavras e as coisas, pesa esta problemática;

principalmente naquilo que toca à condição da palavra em sua função de guardiã

representacional das coisas. A tese do lócus de uma linguagem espacializada na

própria indecidibilidade de suas marcas, propositura requerida por Foucault em seu

texto, foi aqui apropriada em reforço à condição de indecidibilidade dada à palavra,

por Osman Lins, na trama romanesca de Avalovara.

De igual forma, Jacques Lacan foi aqui requerido. Tendo o tema da inscrição

significativa sobressaído nas apreciações analíticas dirigidas ao conto de Edgar Alan

Poe, “A carta roubada”; exposta em seu seminário “O eu na teoria de Freud e na

técnica da psicanálise”, como também em seus Escritos; é o mesmo lugar da

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indecidibilidade da linguagem que ali se concede – trazido na investidura conceitual

do “significante lacaniano”.

Ajudaram-nos ainda nesta jornada, autores como Martin Heidegger, A

caminho da linguagem, e Maurice Blanchot, O espaço literário e A conversa infinita,

que em meio a outras obras suas, bem como à fala dos outros autores, reforçaram

esse lugar itinerante e incontido da linguagem. Ao consorciar todos eles à

engenharia discursiva da escritura de Avalovara, se quis demonstrar aqui que o

intento da palavra não se visa apenas como meio significacional unicamente dirigido

a uma suposta exterioridade sua; mas que pode a palavra também ser pensada

como espaço único, desde onde operaria uma fantasística de ser em si ao tempo

mesmo que se é seu meio de atingimento. A linguagem e a sua produção de

sentido, assim estão confluídas a um espaço que não se dualiza entre a palavra e a

coisa representada. Portanto, tratou-se aqui de dimensioná-la enquanto o seu

próprio “por vir” à significação; enquanto estabelecida no “vir a ser” do próprio

sentido... Enquanto singela expressividade humana cunhada no tecido da totalidade.

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