Estudo de Caso sobre escolas indigena

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UNIVERSIDADE METODISTA DE PIRACICABA FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO BRINCADEIRAS E RELAÇÕES INTERCULTURAIS NA ESCOLA INDÍGENA: UM ESTUDO DE CASO NA ETNIA SATERÉ-MAWÉ JOÃO LUIZ DA COSTA BARROS Piracicaba, SP 2012

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Estudo de Caso sobre escolas indigena

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  • UNIVERSIDADE METODISTA DE PIRACICABA FACULDADE DE CINCIAS HUMANAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO

    BRINCADEIRAS E RELAES INTERCULTURAIS NA ESCOLA INDGENA: UM ESTUDO DE CASO NA ETNIA

    SATER-MAW

    JOO LUIZ DA COSTA BARROS

    Piracicaba, SP 2012

  • BRINCADEIRAS E RELAES INTERCULTURAIS NA ESCOLA INDGENA: UM ESTUDO DE CASO NA ETNIA

    SATER-MAW

    JOO LUIZ DA COSTA BARROS Orientadora: Profa. Dra. Maria Nazar da Cruz

    Tese apresentada Banca Examinadora do Programa de Ps-Graduao em Educao da UNIMEP, como exigncia parcial para obteno do ttulo de Doutor em Educao.

    Piracicaba, SP 2012

  • BANCA EXAMINADORA

    Profa. Dra. Maria Nazar da Cruz (Orientadora)

    Profa. Dra. Altina Abadia da Silva (UFG) Profa. Dra. Cludia Beatriz de Castro Nascimento Ometto (UNIMEP)

    Profa. Dra. Ida Carneiro Martins (UNINOVE) Profa. Dra. Roseli Pacheco Schnetzler (UNIMEP)

  • DEDICATRIA Ao meu eterno pai Luiz Barros, exemplo de vida e de presena nas minhas primeiras compreenses sobre o sentido da vida em famlia. minha amada me, Josefa Garcia da Costa, exemplo de f, esperana, alegria e amor nessa escola da vida. Ao meu eterno amor Anna Christina de Souza Barros, por tudo que vivemos e o que temos ainda por viver juntos nesta vida terrena, pessoa amorosa, dedicada, alegre, e por estar comigo em todos os momentos desta caminhada da vida e no trabalho docente. Aos meus filhos amados Luanna, Joo Vctor e Daniele Barros pela presena em vida, exemplos de esperana por um mundo mais justo, fraterno e digno de se viver. Ao amigo pai Edson Dantas pela presena significante em minha vida e de minha me.

  • AGRADECIMENTOS

    Este espao dedicado aos agradecimentos significa reconhecer a gradido que

    devoto a todos que, direta ou indiretamente, participaram de minha trajetria e elaborao desta Tese.

    Comunidade Indgena Sater-Maw pela oportunidade de construirmos juntos esta tese, num caminhar que pretendemos continuar por longos anos.

    Fundao de Amparo Pesquisa do Estado do Amazonas FAPEAM por financiar meus estudos integralmente no Programa de Ps-Graduao em Educao

    e pelo incentivo em poder divulgar esta tese.

    minha orientadora, Profa.Dra. Maria Nazar da Cruz, pela incansvel orientao, e por ser compreensiva com as minhas dificuldades no processo de

    doutoramento, pelas suas palavras firmes nos encontros de orientao que foram

    fundamentais para o meu crescimento pessoal e profissional e na concretizao

    desta etapa.

    As professoras que constituram a Banca do Exame de Qualificao e

    Examinadora, Profa. Dra. Roseli Pacheco Schnetzler e Profa. Dra. Ida Carneiro

    Martins, que atravs dos seus conhecimentos e pela dedicao colaboraram nesta

    importante etapa de minha formao docente. Suas intervenes foram

    fundamentais para os resultados alcanados.

    As professoras convidadas para compor a Banca Examinadora, Profa. Dra.

    Altina Abadia da Silva e Profa. Dra. Cludia Beatriz de Castro Nascimento Ometto,

    que se dispuseram a contribuir com este trabalho atravs de suas orientaes e

    esclarecedoras sugestes.

  • 7

    minha amiga Lcia Cludia, pelo apoio fundamental recebido nos momentos

    mais decisivos desta caminhada.

    A todos os colegas e funcionrios do Programa de Ps-Graduao em

    Educao, pela fraterna amizade e prazerosa convivncia, sobretudo, por

    compartilhar sentimentos e esperanas neste sonho coletivo.

    Aos amigos professores da Universidade Federal do Amazonas Ufam, do

    Instituto de Cincias Sociais, Educao e Zootecnia de Parintins/AM, do curso de

    Educao Fsica, pelas constantes palavras de incentivo e prazerosa convivncia.

    Aos professores do Programa de Ps-Graduao em Educao, que

    colaboraram na realizao deste trabalho e por incentivarem minha eterna busca

    pela produo do conhecimento.

    Aos meus amigos da Secretaria de Estado da Juventude, Desporto e Lazer e

    da Secretaria Municipal de Educao que me deram fora para continuar meu

    caminhar na vida acadmica.

    O PRESENTE TRABALHO FOI REALIZADO COM APOIO DA FUNDAO DE

    AMPARO A PESQUISA DO ESTADO DO AMAZONAS -

    FAPEAM/AMAZONAS/BRASIL

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    Com a ajuda da escola, com uma educao que realmente responda s nossas necessidades, queremos reconquistar a autonomia socioeconmica e cultural e sermos reconhecidos como cidados etnicamente diferentes. No queremos que a escola sirva para desestruturar nossa cultura e nosso jeito de viver; que no passe para nossas crianas a ideia de que somos inferiores e que, por isso, precisamos seguir o modelo dos brancos para sermos respeitados.

    Professor Guarani Valentim Pires (1998)

  • 9

    RESUMO

    Esta pesquisa tem por objetivo analisar as relaes interculturais que se estabelecem na educao escolar indgena, tendo como foco o brincar das crianas indgenas, na escola e nos contextos sociais especficos. Procura responder a questo: De que modo as relaes interculturais se articulam no espao escolar e nas brincadeiras das crianas indgenas Sater-Maw? Para o desenvolvimento deste trabalho realizamos um estudo de caso que teve como objeto de investigao a escola Tupan-Ypor, da aldeia Sahu-Ap. Utilizamos como procedimento de coleta de dados a observao participante na aldeia, na escola e nas brincadeiras das crianas e entrevistas semi-estruturadas com professores e lideranas na aldeia e, ainda, entrevistas coletivas com as crianas indgenas. Foram estabelecidos trs eixos de anlise para estudar o contexto de educao escolar intercultural, tendo o brincar como foco: a escola na aldeia; a participao da comunidade na escola e o sentido da escola para os indgenas; as brincadeiras das crianas na escola e na aldeia. A partir da anlise dos dados pudemos concluir que a educao das crianas indgenas possuem caractersticas diferenciadas e que a chegada da escola na aldeia deve se constituir enquanto um espao de trocas, respeito ao modo de vida dos indgenas, seus valores, seus costumes e suas brincadeiras e, sobretudo enquanto possibilidades da interculturalidade.

    PALAVRAS-CHAVE: Brincar, Crianas Indgenas, Relaes Interculturais; Educao Escolar Indgena.

  • 10

    ABSTRACT

    This research aims to analyze the intercultural relations that are established in indigenous education, focusing on the play of indigenous children in school and in specific social contexts. It seeks to answer the question: How intercultural relations are articulated in the school and the games of Satere-Mawe Indians children? To develop this work there were a case study that had as its object a investigation the School Tupana Yporo in the village Sahu-Ap. We used the procedure of data collection interviews, observation participant in the village, at school and at the children play and also semi-structured interviews, teachers and leaders the village, as well as collective interviews with are indigenous children. We established three lines of analysis to study the cultural context of school education, focusing on the play: a school in the village, community participation in school and the importance of school for natives and the games of children in school and in the village. From the data analysis we can conclude that the education of indigenous children have different characteristics, and the arrival of the school in the village would constitute as a space of exchange, respect the indigenous way of life, their values, customs and their play and, above all as possibilities of interculturality.

    KEYWORDS: Play; Indigenous Children; Intercultural Relations; Indigenous Education.

  • 11

    SUMRIO

    INTRODUO ........................................................................................................................ 12

    CAPTULO I SOBRE A EDUCAO ESCOLAR INDGENA: EM BUSCA DA INTERCULTURALIDADE ..................................................................................................... 21

    1.1 Constituio Histrica da Educao Escolar Indgena no Brasil ................. 24 1.2 Legislao Indgena e Polticas Pblicas para a Educao ......................... 35 Escolar Indgena: Questes Atuais. ............................................................................... 35 1.3 As escolas dos povos indgenas ....................................................................... 46

    CAPTULO II - INFNCIA, BRINCADEIRA E EDUCAO : A IMPORTNCIA DO BRINCAR NOS PROCESSOS EDUCATIVOS. .................................................................... 57

    2. 1. O lugar da criana e do brincar da Idade Mdia ao sculo XVII ....................... 60 2.2. O brincar das crianas do sculo XVIII aos dias atuais....................................... 70

    CAPTULO III O POVO SATER-MAW E A CRIANA INDGENA .......................... 84 3.1. Criana indgena sater-maw ................................................................................ 93

    CAPTULO IV - PROCEDIMENTOS METODOLGICOS.................................................99 4.1. Sujeitos da Pesquisa ................................................................................................. 99 4.2. Procedimentos para a recolha de informaes................................................... 101 4.3. Procedimentos de construo e anlise dos dados ........................................... 104

    CAPTULO V ANLISE DOS DADOS .......................................................................... 106 5.1. A escola na aldeia .................................................................................................... 106 5.2. A participao da comunidade na escola e o sentido da escola para os indgenas. .......................................................................................................................... 120 5.3. As brincadeiras das crianas na escola e na aldeia .......................................... 129

    CONSIDERAES FINAIS ................................................................................................. 150

    REFERNCIAS ..................................................................................................................... 160

  • 12

    INTRODUO

    Este trabalho fruto de um longo processo de aprendizagem: foi elaborado,

    escrito, reescrito e mudado ao longo de todo o caminhar de vida profissional. O

    tempo vivido na formao inicial e continuada, as experincias na docncia da

    educao infantil ao ensino superior, as posturas e relacionamentos assumidos a

    partir dos dilogos, dos encontros e ensinamentos contnuos que tive e tenho com

    as crianas, jovens e adultos, seja em Manaus ou no interior do Estado do Amazonas, me fizeram buscar novos conhecimentos e saberes da minha terra, em

    especial, das comunidades indgenas que ora estavam to distantes da cidade, e

    que hoje, esto prximas da nossa vida cotidiana urbana e rural. Inicialmente, em 1986, como estudante do curso de graduao em Educao

    Fsica participei do Projeto Rondon, visitando vrios municpios do interior do Estado, como Urucurituba, Itacoatiara, Manacapuru, Coari e Codajs, desenvolvendo atividades recreativas e esportivas para as crianas naquelas

    localidades distantes do prprio centro urbano dos municpios. amos no barco da prefeitura, visitando cada comunidade distante da prpria sede, permanecendo por

    l, pelo menos, cinco dias desenvolvendo as atividades programadas. Foi uma

    realidade que me fez olhar e conhecer um pouco mais as dificuldades que as

    pessoas que moram nas zonas rurais passam por estarem distantes dos centros

    urbanos quanto mais da cidade de Manaus, como por exemplo: ausncia de

    assistncia mdica sistemtica nas comunidades, poucas escolas e algumas

    distantes de suas casas, acarretando s crianas indgenas ou no, terem que pegar

    uma rabeta (canoa com motor) para se deslocar escola estadual ou municipal mais prxima de suas casas, sendo algumas sem professores para lecionar as aulas, sem

    material didtico e sem energia etc.

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    Assim, pensei que investigar realidades to distantes e diferentes da nossa

    vida urbana, poderia nos ajudar refletir sobre a prpria profisso/professor de educao fsica em relao as vrias modalidades de ensino, em especial, a

    educao escolar indgena.

    A escolha da temtica do brincar em minha ao profissional, se inicia em

    1987, ainda no processo inicial da trajetria acadmica no curso de licenciatura em Educao Fsica, quando comeamos a trabalhar na educao bsica, em especial,

    nas sries iniciais do ensino fundamental em duas escolas pblicas, sendo uma

    estadual e a outra municipal.

    Mais tarde, a partir 1991, atuamos tambm em uma escola particular no ensino

    infantil e, assim, foram surgindo outros campos de atuao, mas sempre trabalhando

    com crianas. Em 1999, numa IES privada, em Manaus, iniciamos a caminhada no

    magistrio superior como professor convidado do curso de pedagogia para ministrar

    a disciplina Teoria e Prtica do Jogo. Entendemos que a experincia docente na

    educao infantil, nos anos iniciais do ensino fundamental e no ensino superior, fez

    com que buscssemos conhecer e entender com mais rigor a rea da educao.

    Alicerado em Arroyo (2009, p.199) podemos afirmar que a nossa histria constituda a partir de encontros, debates e reflexes, tendo o sentimento de que

    todos professores envolvidos na interao agem, pensam, sentem, vivem, e isso no

    interior e no exterior do trabalho, na totalidade dos seus espaos, dos seus tempos e

    das suas relaes sociais.

    No ano de 2004, ingressamos como docente no curso Normal Superior, da

    Universidade do Estado do Amazonas UEA, no municpio de Parintins para

    ministrar as disciplinas Educao Fsica na Educao Infantil e Sries Iniciais do

    Ensino Fundamental, at o ano de 2005. Neste perodo, desenvolvemos vrios

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    trabalhos de iniciao cientfica e orientaes de TCC nos campos do brincar e na

    formao de professores, entre eles o do acadmico Elias de Souza Menezes, de

    origem da etnia Sater-Maw com o trabalho intitulado Jogos como forma de

    aprendizagem em uma escola na zona rural do Municpio de Parintins, o que

    despertou em mim curiosidade epistemolgica, pois era um tema a priori

    desconhecido pelo meu contexto vivencial, mas ao mesmo tempo desafiador para a

    produo de um conhecimento.

    Em 2006 retornei Manaus, na Universidade do Estado do Amazonas para

    implantar na Escola Superior de Cincias da Sade, o Ncleo de Desenvolvimento

    Educacional em Sade, com o intuito de trabalhar a formao pedaggica juntos aos professores da Universidade. Nesta poca, criamos um espao de orientao

    didtico-pedaggica aos indgenas que estavam adentrando Universidade pelo

    sistema de cotas, pois muitos deles se assustavam com o ambiente da academia e a

    deixavam.

    Logo em seguida, em 2008, iniciamos o processo de doutoramento em

    Educao. No ano de 2010, iniciamos os primeiros contatos com o possvel universo

    da pesquisa, descobrindo mais tarde, nos dilogos informais, que o meu ex-

    orientando Elias Menezes era sobrinho da professora indgena Juraci. Isso fez com

    que nos aproximssemos e adquirssimos muito mais confiana da comunidade

    indgena urbana Sater-Maw, situada em Manaus.

    Nessas idas e vindas que antecederam o processo de escolha do lugar da

    pesquisa, convivemos com a comunidade YApyrehyt em algumas festividades, tais

    como: o Ritual da Tucandeira, significando a passagem da criana ao mundo adulto.

    Convivemos com as crianas no seu cotidiano. Conhecemos o Cacique Moiss e o

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    professor indgena Timteo, junto aos quais pudemos nos familiarizarmos com as questes indgenas que norteavam a etnia Sater-Maw no Estado.

    Mais tarde, durante a convivncia, a professora Juraci me informou que tinha

    uma outra comunidade Sater-Maw, do outro lado do Rio Negro, no municpio de

    Iranduba, cerca de 40 km de Manaus, me indagando se eu no gostaria de conhec-

    la. Marcamos o encontro e nos dirigimos pra l. Quando chegamos na aldeia Sahu-

    Ap, fomos bem recebidos pela Cacique Abac e por toda comunidade. Visitamos

    todos os seus espaos, conversamos com as crianas que ficavam o tempo todo

    conosco nos acompanhando juntamente com seus pais e a cacique Abac. Aps o trmino da visita, nos comprometemos a retornar para apresentar o projeto de pesquisa para sua anlise e parecer, o que aconteceu aps duas semanas.

    Explanamos detalhadamente sobre o projeto para a cacique, para os pais e para as crianas e com muita alegria obtivemos sua aceitao imediata.

    Descrevemos esse breve relato da experincia profissional e da aproximao

    com a comunidade indgena para pensarmos de fato o dilogo desafiador, que nos

    move na inteno da construo da tese, entre os saberes adquiridos na docncia

    com a lgica do conhecimento cientfico que estamos desenvolvendo, considerando

    nessa teia profissional, um novo conhecimento que deve ser debatido e construdo

    atravs da pesquisa sobre a educao escolar indgena.

    O estudo e a insero no contexto das relaes das polticas pblicas com a

    educao escolar indgena, enfatizando o sentido e o significado do brincar na aldeia

    e na escola Sater-Maw, comearam pela curiosidade de investigar esta realidade

    que est to prxima da vida cotidiana da cidade de Manaus. Movidos pelas

    incertezas do no saber, mas ao mesmo tempo conscientes da necessidade de

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    ampliar os saberes e conhecimentos na docncia, passamos a refletir sobre as

    anlises de Berger e Luckmann (1985, p. 38-39) ao afirmarem que:

    [...] tenho conscincia que o mundo consiste em mltiplas realidades. Quando passo de uma realidade a outra, experimento a transio como uma espcie de choque. Este choque deve ser entendido como causado pelo deslocamento da ateno acarretado pela transio [...] A realidade da vida cotidiana, porm, no se esgota nessas presenas imediatas, mas abraa fenmenos que no esto presentes.

    Alm das razes anteriormente apresentadas, queremos frisar que o fato do

    tema ser bastante efervescente na Universidade do Estado do Amazonas na poca,

    na qual aconteciam seminrios, colquios e semanas acadmicas de curso voltados

    especificamente para a questo, nos levou a estudar a temtica para formulao de

    um projeto de pesquisa. Consideramos tambm que um dos fatores que constituiram a escolha do tema

    da tese foi a vivncia de infncia, na qual tive a liberdade para vivenciar uma

    diversidade de experincias motoras: nos campos, nas ruas, nas caladas e na

    escola. Outro aspecto que contribuiu para a escolha foi minha atuao profissional

    com as crianas, tanto na educao infantil, quanto nas sries iniciais do ensino

    fundamental e, ao iniciar a docncia em um curso de Pedagogia junto aos futuros professores pude ressignificar as brincadeiras de infncia, por perceb-las em

    diferentes espaos e tempos de minha vida.

    O objetivo geral desta pesquisa analisar as relaes interculturais que se estabelecem na educao escolar indgena, tendo como foco o brincar das crianas

    indgenas, na escola e nos contextos sociais especficos.

    Dentre outros argumentos que justificam a tese, importante mostrar que a partir da Constituio de 1988 a educao escolar indgena vem obtendo avanos

  • 17

    significativos no que diz respeito s legislaes que a regulam quanto ao

    reconhecimento de uma educao especfica e diferenciada. No entanto, na prtica

    pedaggica, h enormes tenses, conflitos e contradies no que se refere s suas

    aplicabilidades entre os entes federados: Unio, Estados, Municpios e movimentos

    sociais indgenas.

    Tomamos o brincar como foco da pesquisa por ser uma atividade central dos

    processos de aprendizagem e desenvolvimento das crianas, quer sejam indgenas ou no, nos seus contextos sociais e culturais. H que se ressaltar que, na casa das

    crianas indgenas tais prticas vo desde sua vida na comunidade at a

    incorporao de novos elementos decorrentes da chegada da escola na aldeia e da

    sociedade circundante.

    Interessou-nos analisar os modos pelos quais as concepes do brincar e da

    educao foram historicamente produzidos no contexto branco/ocidental, os quais

    foram ganhando espao nas comunidades indgenas, atravs da organizao de

    tempos e espaos para aprender, para brincar e para trabalhar. Por outro lado,

    identificamos por intermdio dos exemplos de vrias sociedades indgenas que as

    crianas mostram a permanncia das tradicionais brincadeiras em suas prticas

    cotidianas e que, historicamente, essas prticas fazem parte da cultura infantil de

    vrias crianas de todo o Brasil.

    Assim, procuramos contextualizar o problema da pesquisa com a seguinte

    questo norteadora: De que modo as relaes interculturais se articulam no espao

    escolar e nas brincadeiras das crianas indgenas Sater-Maw?

    Para alcan-lo, estabelecemos um roteiro que se encontra no item

    denominado procedimentos para recolha de informaes, que tem como objetivo encaminhar a discusso com o enfoque no brincar, na escola e nas relaes

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    interculturais que constituem a comunidade pesquisada. Logo, ressaltamos que os

    objetivos das entrevistas e das observaes, juntamente com o referencial terico nos orientaram nos processos de anlise e na construo da tese.

    Os captulos da tese foram organizados a partir dos agrupamentos dos textos

    que foram produzidos no transcorrer dos encontros de orientao, dos estudos

    exploratrios e descritivos e dos dilogos com a comunidade indgena pesquisada,

    com professores e colaboradores e nos encontros tcnicos-cientficos que

    participamos.

    O primeiro captulo intitulado SOBRE A EDUCAO ESCOLAR INDGENA: EM BUSCA DA INTERCULTURALIDADE aborda a dimenso da interculturalidade

    como um elemento constitutivo para a educao escolar indgena nos dias atuais,

    mostrando ao mesmo tempo, vrias concepes sobre o modo como a

    interculturalidade foi concebida, desde o perodo da colonizao, entre a sociedade

    indgena e no-indgena, num modelo de educao integradora, que tinha como

    pressuposto a assimilao dos ndios cultura dos brancos, com interesses de

    dominao, explorao e imposio, remetendo-os a uma posio de dependncia e

    de tutelados, sendo a escola um dos instrumentos dessa integrao. Entretanto,

    embora este modelo tenha sido modificado a partir da Constituio Federal de 1988

    com o reconhecimento desses povos a uma educao especfica, diferenciada e

    intercultural, atravs de processos prprios de aprendizagem, ainda vemos inmeras

    escolas indgenas obrigadas a seguir padres estabelecidos pela sociedade no-

    indgena, desconsiderando a realidade dos povos indgenas e seus conhecimentos.

    (PAULA, 1999; MELI, 1999; BORGES, 1999; SILVA & FERREIRA, 2001a; GRUPIONI, 2005; BERGAMASCHI, 2007; SAVIANI, 2008a; BERGAMASCHI &

    MEDEIROS, 2010) entre outros.

  • 19

    O segundo captulo denominado INFNCIA, BRINCADEIRA E EDUCAO: A IMPORTNCIA DO BRINCAR NOS PROCESSOS EDUCATIVOS serviu para orientar a construo do objeto, focalizando aspectos histricos e educacionais relevantes ao contexto estudado. Ajudou rigorosamente na discusso com autores que estudaram e estudam as temticas da infncia e brincadeiras relacionadas

    educao e vida em sociedade, servindo para compreender o ser criana em sua

    totalidade. Destaca a importncia do brincar no processo educativo, tendo como

    pano de fundo a abordagem histrico-cultural que valoriza o outro na interao

    social, emergindo novos significados que ampliam a compreenso sobre o brincar.

    (LUZURIAGA, 1973; ALTMAN, 2002; DEL PRIORE, 2002; RAMOS, 2002; RIES, 2011; VYGOTSKY, 2007, 2009) entre outros.

    O Terceiro captulo O POVO SATER E A CRIANA INDGENA apresenta um breve estudo sobre o lugar da criana nas sociedades indgenas no Brasil.

    Discute o contexto scio-histrico do povo Sater-Maw com foco na criana

    indgena Sater-Maw. (LORENZ, 1992; TEIXEIRA, 2005; BERNAL, 2009; SOUZA, 2009; ALVAREZ, 2009) entre outros.

    O Quarto captulo intitulado PROCEDIMENTOS METODOLGICOS Apresenta o universo e os sujeitos da pesquisa, os critrios de escolha, a relevncia e os objetivos da pesquisa, os problemas de investigao, a proposta metodolgica estudo de caso que serviu de base para a recolha de informaes, bem como a

    construo e anlise dos dados. (LDKE e ANDR, 1986) O quinto captulo denominado ANLISE DOS DADOS descrevemos os dados

    coletados, interpretando e discutindo teoricamente a partir da literatura estudada, o

    que foi vivido na interao social com as crianas, professores e cacique na

    comunidade indgena Sah-Ap, atravs dos registros do dirio de campo,

  • 20

    transcrio dos trechos de entrevistas e fotografias. Assim, elaboramos trs eixos

    que nos ajudaram na organizao da anlise dos dados. Primeiro, a escola na aldeia: histria; localizao, estrutura fsica, condies materiais, rotina e

    conhecimentos trabalhados. Segundo, a participao da comunidade na escola e os

    sentidos da escola para os indgenas. Terceiro, as brincadeiras das crianas na

    escola e na aldeia.

    Concluimos este trabalho, com o objetivo de, a partir das concepes estudadas, discutir as dimenses acerca do brincar no contexto social indgena, e

    propor a possibilidade de ampliao do seu significado no contexto da educao

    escolar intercultural, pois identificamos o brincar enquanto uma prtica social das

    mais relevantes na infncia e no mundo adulto indgena, o que nos permite apont-

    lo enquanto um elemento essencial para o ensino na educao escolar indgena

    num movimento compartilhado de apropriao e ressignificao de experincias

    mediados pelas duas culturas: a indgena e no indgena. Desta forma, nosso intuito

    foi contribuir para o entendimento de vrias concepes historicamente produzidas

    sobre a infncia, enfatizando o modo como o processo de interculturalidade se

    estabeleceu entre as culturas ocidental e indgena, bem como a reflexo sobre o

    fazer pedaggico que envolva o brincar enquanto uma atividade fundamental no

    processo de aprendizagem e desenvolvimento das crianas indgenas.

  • 21

    CAPTULO I SOBRE A EDUCAO ESCOLAR INDGENA: EM BUSCA DA INTERCULTURALIDADE

    Focalizamos neste captulo uma breve reviso de literatura sobre a educao

    escolar indgena relacionada a realidade de algumas escolas pesquisadas por

    autores que problematizam o processo de escolarizao entre os indgenas.

    Ressignificar o aparecimento da escola em suas aldeias ou comunidades

    segundo suas necessidades, nos parece ser um ponto fundamental muito discutido

    por vrios estudiosos, pelas lideranas e professores indgenas, os quais lutam para

    que a escola no desestruture sua cultura e o seu jeito de viver. (TEIXEIRA, 2005) Decorrente dessas reflexes iniciais, a literatura tem nos apontado algumas

    contribuies de documentos oficiais e de autores que pesquisam o tema no sentido

    de refletirmos sobre a implementao da escola na comunidade indgena, em

    particular, os Sater-Maw, foco da pesquisa.

    Abordaremos sobre o processo identidrio da constituio histrica da

    educao escolar indgena no Brasil, desde a concepo colonialista at os dias

    atuais. Neste sentido, podemos afirmar que estamos tratando com conhecimentos

    desenvolvidos por sociedades e situaes histricas diferentes, em que as relaes

    entre estas duas sociedades esto, efetivamente, ocorrendo numa situao

    intercultural marcadas por conflitos e conquistas, tendo a prpria apropriao da

    instituio escolar no contexto indgena como exemplo desse fato.

    Assim, iniciamos por uma breve reviso da literatura sobre o tema, pontuando

    os trabalhos mais recentes, entre aqueles que se ocupam, mais especificamente,

    das polticas pblicas para a educao escolar indgena com a realidade das

    escolas tomando como foco o brincar.

  • 22

    Escolhemos iniciar o texto, com um dado estatstico muito interessante sobre o

    nmero de alunos matriculados na educao escolar indgena nos ltimos anos,

    pontuando um crescimento significativo da demanda de crianas e jovens atendidas nos espaos educacionais, e que podem estar relacionado s inmeras pesquisas

    sobre a presena e o significado da escola para o povo indgena.

    Atualmente, no Brasil, existem cerca de 230 diferentes povos indgenas

    distribudos por quase todos os Estados da federao, totalizando de 400 a 500 mil

    ndios. Num pas de mais de 190 milhes de habitantes, a populao indgena se

    constitui em torno de 0,2% da populao total do pas. (IBGE, 2010) Numa perspectiva comparativa, para fins de anlise dos processos de

    escolarizao das populaes indgenas no pas, diante de uma populao total de

    500 mil, os dados do censo escolar de 2006 mostram que a oferta de educao

    escolar indgena alcanou o nmero de 174.255 estudantes matriculados na

    educao bsica entre o perodo de 2003 a 2006, enquanto que, no censo escolar

    de 2010, entre o perodo de 2007 a 2010, o nmero aumentou para 246.793

    matrculas, o que corresponde um crescimento de aproximadamente 41%.

    (BRASIL/CENSO ESCOLAR/2006, 2010) Dentro desse cenrio, podemos observar que uma das explicaes para a

    expanso do nmero de matrculas na educao escolar indgena no pas nos

    ltimos anos, est associada garantia dos direitos dos povos indgenas

    conquistados a partir da constituio de 1988, com os desdobramentos legais e

    institucionais que a ela se seguiram, seguindo a tendncia mundial de universalizar

    o direito educao.

    Entretanto, pensamos e concordamos com Benzadolli (2011) que este aumento do nmero de matrculas na educao escolar indgena pode estar relacionado aos

  • 23

    interesses administrativos, financeiros e pedaggicos das secretarias municipais de

    educao, no que diz respeito ao fato de que:

    Os gestores municipais descobriram rapidamente que quanto mais alunos declarados no Censo Escolar, mais recursos por meio do Fundeb recebiam. Como o controle social sobre o uso dessas verbas mnimo, observou-se a partir de ento, o ingresso de crianas abaixo da idade no ensino fundamental, inchando os nmeros de matrculas. Alm disso, como contratados ou concursados pelas secretarias de educao, os professores podiam ser mais facilmente contidos, tornando o controle social ainda mais difcil. Isso, sem deixar de lado o fato ainda atual de grande parte das escolas indgenas no serem reconhecidas, entrando no Censo Escolar como classes de extenso e, como tal, alm de no receberem os benefcios especficos Educao Escolar Indgena, torna impossvel qualquer controle sobre os recursos que seriam a elas destinados. (Benzadolli, 2011, p.179)

    Vemos que o aumento do nmero de alunos indgenas matriculados nas

    escolas indgenas, independentemente dos interesses ambguos entre o movimento

    social indgena e o governo, ampliou as perspectivas do direito educao entre os

    povos indgenas enquanto uma estratgia que poder ser essencial na construo

    dos seus projetos por uma educao escolar especfica, deflagrando uma possibilidade de reconhecimento de sua cultura em relao a sociedade circundante,

    de carter complementar e no contraditrio. (SILVA e FERREIRA, 2001b) Movidos por esse cenrio de expanso do nmero de alunos nas escolas

    indgena e pela complexidade que o tema exige, compreendendo as experincias,

    as questes legais e pedaggicas, modificaes ou complementos culturais com a

    chegada da educao escolar nas aldeias, focalizaremos o processo histrico que

    levou-nos a este contexto.

  • 24

    1.1 Constituio Histrica da Educao Escolar Indgena no Brasil

    No contexto desta tese apresentamos e refletimos sobre processo de

    constituio histrica da Educao Escolar Indgena no Brasil, iniciando pelas

    primeiras interferncias dos brancos europeus sobre a educao e cultura dos povos

    indgenas habitantes no nosso territrio. Pretendemos mostrar gradativamente a

    participao do Estado Brasileiro na elaborao e aplicao de polticas

    educacionais especficas na ateno aos ndios.

    Realizamos uma pesquisa bibliogrfica sobre este percurso, buscando

    conhecer, primeiramente, os caminhos que nortearam o processo de colonizao no

    Brasil entre os sculos XVI a XVIII, com a presena dos jesutas, que foram os primeiros a sinalizarem a tentativa de aculturao e domnio sobre esse povo.

    Posteriormente, explanaremos sobre os missionrios no Brasil Imprio do sculo

    XIX, que mantinham a mesma relao de poder na aplicao do modelo jesutico. Finalizaremos com as polticas de Estado dos sculos XX e XXI que,

    respectivamente, prescreveram e continuam a formular a estrutura e o

    funcionamento das escolas para os ndios, considerando seus direitos educao e

    a manuteno de seus hbitos, costumes, tradies, crenas e lnguas a partir de

    sua integrao sociedade nacional.

    Portanto, esse texto visa dar a ver o dinamismo histrico das relaes sociais

    e culturais, que contribuiram para que os povos indgenas dessem um salto

    significativo na afirmao de sua identidade, de seus direitos e interesses

    registrados na prpria promulgao da Constituio Federal de 1988. Segundo o

    texto da Constituio, em seu Ttulo VIII Da Ordem Social Captulo VIII Dos

    ndios, Art. 231:

  • 25

    So reconhecidos aos ndios sua organizao social, costumes, lnguas, crenas e tradies, e os direitos originrios sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo Unio demarc-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. (BRASIL, 2005, p.161)

    Como afirma o parecer 14/99 do colegiado da Cmara do Ensino Bsico do

    Conselho Nacional de Educao sobre o Referencial Curricular Nacional para as

    Escolas Indgenas (BRASIL, 2008, p.9):

    A introduo da escola para os povos indgenas concomitante ao incio do processo de colonizao do pas. Num primeiro momento a escola aparece como instrumento privilegiado para a catequese, depois para formar mo de obra e, por fim, para incorporar os ndios definitivamente Nao como trabalhadores nacionais desprovidos de atributos tnicos ou culturais.

    Ao chegarem a terras brasileiras os portugueses encontraram vrias

    comunidades primitivas que viviam numa determinada forma de organizao social,

    na qual a educao se desenvolvia em relao prpria condio de vida, ou seja, os ndios tinham uma educao literalmente voltada para sua subsistncia e

    manuteno de seus costumes e crenas.

    De acordo com relatos de Fernandes (1989) e Ponce (2001), nos sculos XVI e XVII, as tribos indgenas no Brasil eram consideradas comunidades primitivas por

    se constiturem de forma coletiva, natural e de subsistncia, como pessoas livres e

    de economia comunitria, sem a presena de classes sociais. Todos tinham o direito

    sobre a terra.

    Nesse perodo, vale ressaltar, que os prprios ndios j eram utilizados como mo de obra para a explorao do pau-brasil numa relao de trabalho em forma de

    trocas denominada escambo.

    Em 1549, com a instituio do primeiro governo geral designado por Dom Joo

    III, na colnia brasileira, tivemos a chegada dos jesutas com a inteno de

  • 26

    catequizar todos os habitantes que aqui viviam. Estes desenvolveram uma educao

    aos nativos a fim de integr-los, instrui-los e domin-los culturalmente como meio de

    fomentar a assimilao dos ndios civilizao crist. Segundo Saviani (2008b, p. 29) o processo de colonizao aconteceu em trs momentos historicamente situados: a posse e explorao da terra, a educao enquanto aculturao e a

    catequese.

    O autor (2008b, 31), comenta que h uma estreita simbiose entre educao e catequese na colonizao do Brasil. Em verdade, a emergncia da educao como

    um fenmeno de aculturao tinha na catequese a sua idia-fora.

    Cada momento histrico retrata a participao dos portugueses na estrutura

    social dos silvcolas, com sua escravizao para o trabalho sobre a terra a ser

    explorada; a imposio aos nativos da cultura europia, com prticas de dominao

    religiosa e cultural atravs dos encontros da catequese crist em contraposio s

    crenas tradicionais dos ndios.

    O autor tece uma anlise reflexiva desse tempo histrico acerca do povo

    Tupinamb, ressaltando suas caractersticas culturais e de educao em relao s

    ideias religiosas e educacionais desenvolvidas pelos jesutas. A nosso ver, tais ideias, refletem as ideias pedaggicas dos dias atuais.

    O exemplo dos Tupinambs mostra que, nessas circunstncias, a educao se desenvolvia em ntima articulao com as condies de vida, guiada pelo princpio do aprender fazendo. A educao assumia um sentido comunitrio, sendo os conhecimentos disponveis acessveis a todos; a diviso do trabalho limitava-se a caractersticas de sexo e idade, no se pondo o problema da alienao social do ser humano; no havia diferenciao por especializao, o que tornava igualitria a participao na cultura. A transmisso da cultura dava-se por contatos diretos e pessoais, no sendo requerida a educao sistemtica e o recurso a tcnicas pedaggicas especficas. Nessas condies, as idias educacionais encontravam-se organicamente identificadas com a prtica educativa. (SAVIANI, 2008b, p.444 - 445)

  • 27

    De modo geral, ordens religiosas como a dos franciscanos, jesutas e outras, atuaram na evangelizao dos povos indgenas por meio das escolas que fundaram

    em vrios lugares do Brasil. Como alguns exemplos, temos: Olinda, Cear,

    Maranho, Rio de Janeiro, So Paulo e o Amazonas.

    No Amazonas, em 1653, com a vinda do padre Antnio Vieira, por

    determinao da Coroa Portuguesa, os jesutas atuaram na catequese dos ndios numa poltica indigenista. Essa atuao durou at 1759 com suas expulses pelo

    Marqus de Pombal.

    Vemos, pois, que um dos principais objetivos da educao colonial foi a evangelizao e cristianizao dos indgenas e, posteriormente a educao geral

    dos habitantes. Assim, os jesutas, com apoio literal da Coroa Portuguesa, defenderam a educao dos indgenas com os ensinamentos dos atos de ler e

    escrever e, sobretudo, da doutrina crist.

    Para exemplificar o plano inicial de instruo dos jesutas, na poca, elaborado por Manuel da Nbrega, recorremos ao que Saviani (2008b, p.43) denomina de Pedagogia Braslica, ocorrido no perodo de 1549 a 1599:

    O plano iniciava-se com o aprendizado do portugus (para os indgenas); prosseguia com a doutrina crist, a escola de ler e escrever e, opcionalmente, canto orfenico e msica instrumental; e culminava, de um lado, com o aprendizado profissional e agrcola e, de outro lado, com a gramtica latina.

    Contudo, esse plano encontrou resistncia dentro da Ordem Jesutica por no

    atender s questes especficas da colnia. Um ponto interessante a salientar sobre

    esse plano o que Saviani (2008b) comenta sobre a participao dos indgenas a respeito de uma solicitao para incluir as mulheres indgenas da Bahia no processo

  • 28

    educativo. O pedido foi negado por determinao da metrpole que controlava todos

    os interesses sociais e culturais da colnia.

    Com a institucionalizao da pedagogia jesutica ou Ratio Studiorum atravs da aplicao do Plano de Estudos da Companhia de Jesus por Incio de Loyola,

    tudo mudou. O plano de Manuel da Nbrega foi superado e, assim, a partir de 1552,

    comeava uma nova forma de conduo dos estudos no Brasil, o que aconteceria

    at 1759, com a expulso dos jesutas pelo Marqus de Pombal. Nessa vigncia, do novo plano institudo, os povos indgenas foram totalmente excludos da formao

    por parte dos jesutas. Saviani (2008, p.56) explana sobre o sentido do iderio pedaggico do Ratio Studiorum:

    O plano contido no Ratio era de carter universalista e elitista. Universalista porque se tratava de um plano adotado indistintamente por todos os jesutas, qualquer que fosse o lugar onde estivessem. Elitista porque acabou destinando-se aos filhos dos colonos e excluindo os indgenas, com o que os colgios jesutas se converteram no instrumento de formao da elite colonial.

    Portanto, mesmo as reformas pombalinas de 1759 a 1834 com as ideias laicas

    advindas do iluminismo e se contrapondo aos pensamentos religiosos, o

    aparecimento das aulas rgias1 e estudos nos seminrios e colgios, as tribos

    indgenas do Brasil continuaram alheias a uma prtica educativa alinhada,

    organizada e sistematizada que permitissem reconhecer sua organizao social,

    crenas, tradies e lnguas na interao com os brancos.

    Silva e Ferreira (2001a, p.72) nos ensinam que:

    1 Ver Saviani (2008, p.108) o qual comenta que as aulas rgias eram sinnimos de escolas que, por

    sua vez, se identificavam com determinada cadeira, funcionando, em regra, na casa dos prprios professores. Da as expresses aulas de primeiras letras, aula de latim, de grego, de filosofia etc. Eram aulas avulsas, portanto, os alunos podiam freqentar umas ou outras indiferentemente, pois, alm de avulsas, eram isoladas, isto , sem articulao entre si.

  • 29

    O primeiro e mais longo momento da histria da educao escolar para os ndios no Brasil do perodo colonial, em que o objetivo das prticas educativas era negar a diversidade dos ndios, ou seja, aniquilar culturas e incorporar mo-de-obra indgena sociedade nacional.

    V-se, portanto, que nesse perodo, os indos ainda eram mantidos distantes

    de sua condio enquanto seres historicamente situados. Na sociedade nacional

    eles participavam to somente nas atividades extrativistas e como de mo de obra

    domstica.

    Em 1845, o governo imperial regulamentou as misses de catequese e de

    civilizao, permitindo vrias aes missionrias, semelhana do modelo jesuta. A inteno era dar continuidade a difuso da doutrina catlica e, consequentemente,

    preparar as crianas indgenas e vrios grupos de ndios, oriundos de suas aldeias,

    a frequentarem os internatos e escolas dos salesianos, com o propsito de que,

    instrudos de alguns ofcios e do aprendizado da leitura e escrita da lngua

    portuguesa, pudessem servir nas construes das cidades e praticar um modo de

    vida alheio sua cultura.

    Silva e Ferreira (2001a, p.73) comentam que:

    Nesses internatos, o ensino do portugus era imposto em detrimento do uso das lnguas nativas. Crianas eram separadas das famlias e, fundamentalmente, investia-se na capacitao profissional dos ndios, como forma de produzir mo de obra barata para a populao no ndia circunvizinha. [...] Os ndios tiveram de habitar casas distribudas e organizadas conforme os ideais catlicos, provocando transformaes na maneira como concebiam a si mesmos e o mundo.

    Podemos perceber que as relaes de dominao e explorao econmica

    por intermdio da integrao dos povos indgenas cultura europia, nos quatros

    primeiros sculos, XVI a XIX, uniu doutrinao crist e instruo e,

    consequentemente, se deu a supremacia cultural dos brancos europeus e a

    desqualificao cultural dos habitantes nativos.

  • 30

    Do ponto de vista dessa reflexo, podemos afirmar que a luta dos ndios por

    direitos humanos e sociais, de forma ainda tmida, e o interesse do Estado Brasileiro

    em torn-los integrados sociedade nacional enquanto produtores agrcolas visando

    o comrcio e as necessidades do mercado em geral, juntamente com o discurso pela defesa da diversidade lingstica e cultural, fizeram surgir, no comeo do sculo

    XX, em 1910, o Servio de Proteo dos ndios SPI numa concepo poltica indigenista e integracionista.

    Neste perodo, a princpio poder-se-ia pensar que teramos uma mudana

    quanto o respeito aos direitos indgenas na implantao da poltica integracionista.

    Entretanto, os discursos e as situaes prticas conceberam outro reverso. Como

    est citado no Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indgenas (1998, p. 26-27):

    A poltica integracionista comeava por reconhecer a diversidade das sociedades indgenas que havia no pas, mas apontava como ponto de chegada o fim dessa diversidade. Toda diferenciao tnica seria anulada ao se incorporarem os ndios sociedade nacional. Ao se tornarem brasileiros, tinham que abandonar sua prpria identidade. O Estado brasileiro pensava uma escola para os ndios que tornasse possvel a sua homogeneizao. A escola deveria transmitir os conhecimentos valorizados pela sociedade de origem europia. Nesse modelo, as lnguas indgenas, quando consideradas, deviam servir apenas de traduo e como meio para tornar mais fcil a aprendizagem da lngua portuguesa e de contedos valorizados pela cultura nacional.

    Uma das maiores dificuldades continuava sendo a falta de densidade poltica

    que levassem a mobilizao dos povos indgenas junto sociedade civil para fazer frente s aes integracionistas do Estado.

    Alm disso, a poltica integracionista visava formao tcnica dos ndios

    para o comrcio atravs do aprendizado de tcnicas primrias para a agricultura e

  • 31

    atividades domsticas, contribuindo assim, para diminuio de sua presena nas

    escolas institudas tambm para a alfabetizao bilngue.

    As mobilizaes sociais e polticas dos povos indgenas em meados da

    dcada de 70 deram origem mais tarde, na dcada de 80, a criao da primeira

    organizao representativa dos ndios do Brasil denominada Unio das Naes

    Indgenas UNI, que por sinal, ocorreu em terras Sater-Maw. A partir da UNI

    formaram-se inmeras organizaes indgenas regionais que contriburam com o

    debate acerca da afirmao dos direitos indgenas sociedade nacional.

    Silva e Ferreira (2001b, p.93-94) apontam que a partir de 1981 outros fatores importantes aconteceram na histria da educao escolar para os ndios, tais como

    a criao dos ncleos de estudo e pesquisa nas Universidades, o que proporcionou

    a elaborao de propostas educacionais e a organizao de eventos tcnico-

    cientficos. Segundo as autoras:

    Destacam-se o Ncleo de Estudos Indigenistas do Departamento de Letras da Universidade Federal de Pernambuco; o Ncleo de Educao Indgena de Roraima; o Ncleo de Educao Indgena de Mato Grosso; o Ncleo de Estudos e Educao Indgena de Belm; o Seminrio Permanente de Educao e Estudos Indgenas da Universidade Federal do Rio de Janeiro; e o MARI Grupo de Educao Indgena da Universidade de So Paulo.

    O exemplo concretizado dessa luta est prescrito na Constituio Brasileira de

    1988 Captulo VII Dos ndios, no Art. 231, citada no incio do texto, com o reconhecimento dos direitos indgenas nos campos sociais, culturais e educacionais.

    As novas perspectivas oriundas a partir da Constituio de 1988 sobre a

    educao escolar diferenciada, especfica, intercultural e bilnge comeam a

    instigar a produo de vrios documentos legais organizados pelos rgos do

    governo para sua legitimao. Como por exemplo, resumidamente, podemos citar o

  • 32

    documento da Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade -

    Secad (2005, p.45) do Ministrio de Educao intitulado As Leis e a Educao Escolar Indgena que diz o seguinte:

    O direito assegurado s sociedades indgenas, no Brasil, a partir da Constituio de 1988, vem sendo regulamentado por meio de vrios textos legais, a comear pelo Decreto 26/91 que retirou a incumbncia exclusiva do rgo indigenista (Funai) de conduzir processos de educao escolar nas sociedades indgenas, atribuindo ao MEC a coordenao das aes, e sua execuo aos estados e municpios. A Portaria Ministerial No. 559/91 aponta a mudana de paradigmas na concepo da educao escolar destinada s comunidades indgenas, quando a educao deixa de ter o carter integracionista preconizado pelo Estatuto do ndio (Lei No.6.001/73) e assume o princpio do reconhecimento da diversidade sociocultural e lingstica do pas e do direito a sua manuteno.

    A Constituio Brasileira de 1988 abriu caminhos, na direo de assegurar o

    direito educao indgena diferenciada e o respeito a sua condio de ndio na

    sociedade nacional. No Ttulo VIII Da Ordem Social Captulo III Seo

    Educao em seu art. 210 encontramos: Sero fixados contedos mnimos para o

    ensino fundamental, de maneira a assegurar formao bsica comum e respeito aos

    valores culturais e artsticos, nacionais e regionais e, ainda no referido artigo, o 2

    pargrafo garante que O ensino fundamental regular ser ministrado em lngua

    portuguesa, assegurada s comunidades indgenas tambm a utilizao de suas

    lnguas maternas e processos prprios de aprendizagem.

    As transformaes prescritivas realizadas a partir da constituio de 1988

    fizeram com que houvesse diversas mobilizaes junto s organizaes indgenas e sociedade civil gerando encontros, fruns e assembleias, os quais foram decisivos

    na formulao de documentos que constavam reivindicaes quanto afirmao

    dos seus direitos.

  • 33

    Acreditamos tambm que esses encontros abriram inmeras possibilidades para se

    pensar princpios fundamentais que passariam a nortear a educao escolar

    indgena.

    Em outubro de 1994, aps as representaes indgenas terem sido

    estruturadas em suas regies, aconteceu um grande encontro na cidade de Manaus,

    a fim de discutir e elaborar 15 princpios que norteariam as ideias educacionais e

    pedaggicas dos povos indgenas, que deveria ser gestada por uma escola indgena

    ou uma escola diferenciada para os ndios.

    A nova Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional promulgada no final

    de 1996 garante o reconhecimento dos direitos dos ndios de forma constitucional a

    fim de manter sua identidade cultural, o que fortaleceu os povos indgenas em suas

    organizaes ao afirmarem princpios que norteariam tacitamente o uso da lngua

    materna e os processos prprios de aprendizagem nas escolas indgenas.

    De fato, a LDB (1996) no Ttulo V, captulo II Da Educao Bsica Seo III, no seu artigo 32 3 retrata fielmente o que j foi preconizado na Constituio Brasileira de 1988 no seu artigo 210 2, ou seja O ensino fundamental regular ser ministrado em lngua portuguesa, assegurada s comunidades indgenas

    tambm a utilizao de suas lnguas maternas e processos prprios de

    aprendizagem.

    Cada momento histrico vivido na constituio da educao escolar indgena

    quanto a legalizao e legitimao de suas prticas educativas levaram vrios

    estudiosos do Ministrio da Educao - MEC, professores indgenas convidados,

    Secretarias Estaduais e Municipais, Organizaes No-Governamentais a se

    reunirem, refletirem e sistematizarem um documento que fundamentasse a

    organizao e o desenvolvimento do currculo das escolas indgenas. Este

  • 34

    documento denominado Referencial curricular nacional para as escolas indgenas

    RCNEI do Ministrio da Educao foi publicado em 1998.

    A partir do referencial, abriu-se um dilogo denso e consubstanciado das

    experincias pedaggicas nas escolas indgenas de todo o Brasil. O que possibilitou

    reflexes sobre a prtica, contextualizadas com outros saberes plurais e

    heterogneos de lugares distintos. Conhecimentos esses que necessitavam estar ao

    alcance de todos os envolvidos, tanto dos anseios e interesses das comunidades

    indgenas no campo da formao de educadores reflexivos quanto no

    desenvolvimento do currculo. Como consta no RCNEI (1998, p.13) O referencial tem funo formativa e no normativa.

    Enfim, o processo de constituio da educao escolar indgena no Brasil, no

    seu tempo histrico, aponta para as diversas particularidades dos discursos que

    ajudaram a refletir que os povos indgenas so constitudos de conhecimentos, saberes e valores, tantas vezes, desprezados pelo poder hegemnico, de cada

    poca, a favor de interesses polticos e econmicos para manuteno do poder

    dominante. (SILVA & FERREIRA, 2001) Contudo, hoje, existem movimentos organizados na sociedade indgena que

    lutam pela consolidao de polticas pblicas para e com os povos indgenas no

    campo educacional e pedaggico. Dessa forma, crescem os direitos coletivos dos

    povos indgenas por uma educao escolar alinhada s realidades e necessidades

    de cada comunidade. Mas, para isso acontecer preciso regulamentar e legitimar

    nos espaos pblicos federal, estadual e municipal programas e projetos que possibilitem o dilogo e a reflexo constante dos processos educativos indgenas.

  • 35

    1.2 Legislao Indgena e Polticas Pblicas para a Educao Escolar Indgena: Questes Atuais.

    Pretendemos aproximar os debates e reflexes atuais sobre a legislao da

    educao escolar indgena, localizando os desdobramentos das questes de ordem

    legal e institucional com as polticas pblicas.

    Iniciamos o estudo, apoiando-nos na Constituio Federal de 1988, a qual se

    tornou o marco referencial para os povos indgenas, devido ao fato de que sua

    prescrio reconhece os direitos manuteno de suas lnguas, culturas e tradies,

    considerando-os enquanto ndios em seus modos prprios de ensinar e educar seus

    filhos. (BRASIL, 1988) Bendazolli (2011, p.147) considera a Constituio de 1988 um acontecimento

    extraordinariamente importante para os povos indgenas na medida em que ela

    delimitou o fim da tutela e o incio do direito manuteno de suas lnguas e cultura,

    de se manterem ndios, com suas formas prprias de organizao social.

    O fim da tutela ao qual a autora se refere anteriormente, relaciona-se ao modo

    como era concebido e conduzido o oferecimento da educao escolar s

    comunidades indgenas, desde o sculo XVI, at a promulgao da constituio de

    1988. Naquele perodo a educao era to somente pautada na catequizao,

    civilizao e integrao dos ndios sociedade nacional atravs dos missionrios

    jesutas, dos especialistas do Servio de Proteo aos ndios e Funai. Grupioni (2005, p. 41) nos ajuda a resumir como era concebido o sentido de

    escola para os povos indgenas, desde o processo de colonizao no pas at a

    promulgao da constituio de 1988:

    Num primeiro momento a escola aparece como instrumento privilegiado para a catequese, depois para formar mo-de-obra e, por fim, para

  • 36

    incorporar os ndios definitivamente Nao como trabalhadores nacionais desprovidos de atributos tnicos ou culturais. A idia de integrao firmou-se na poltica indigenista brasileira, desde o perodo Colonial at o final dos anos 1980. A poltica integracionista comeava por reconhecer a diversidade das sociedades indgenas que havia no pas, mas apontava como ponto de chegada o fim dessa diversidade. Toda diferenciao tnica seria anulada ao se incorporar os ndios sociedade nacional. Ao tornar-se brasileiros, tinham de abandonar sua prpria identidade.

    a partir da Constituio de 1988 que a educao escolar indgena conquistou novas estruturas legais e conceituais com desdobramentos que levaram

    a elaborao de leis, diretrizes, resolues e pareceres voltados aos direitos das

    sociedades indgenas a uma educao escolar especfica, diferenciada e

    intercultural, como podemos identificar atravs da Lei de Diretrizes e Bases da

    Educao (Lei No. 9.394/96). Em suas Disposies Gerais, nos seus artigos 78 e 79, a lei reconhece literalmente o que foi assegurado s comunidades indgenas na

    Constituio de 1988, a saber: o uso de suas lnguas maternas e processos prprios

    de aprendizagem. (GRUPIONI, 2002) H que se ressaltar, a LDB explicitou, apenas em 1996, pela primeira vez, a

    existncia da Educao Escolar Indgena no seu texto, incluindo-a em suas

    disposies gerais e no em um nvel especfico de ensino. O texto evidenciava

    possibilidades de desenvolvimento de programas de ensino e pesquisa.

    (BENDAZOLLI, 2011) Do ponto de vista dos direitos conquistados pelos ndios a partir da

    promulgao da Constituio Federal de 1988 podemos destacar respectivamente o

    artigo 231, do Ttulo VIII Da ordem social captulo VIII, que diz So reconhecidos

    aos ndios sua organizao social, costumes, lnguas, crenas e tradies, e os

    direitos originrios sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo

    Unio demarc-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

  • 37

    Alm da Constituio de 1988 que reconhece os direitos dos ndios

    manuteno de sua identidade cultural, abriu-se tambm a possibilidade para que a

    escola indgena fosse instituda, e que de fato, tal escola pudesse ser um espao de

    desenvolvimento tnico e cultural, considerando a prpria cultura indgena quanto o

    acesso aos conhecimentos dos valores culturais da sociedade envolvente.

    Desta forma, em decorrncia desse aparato constitucional inicial favorvel aos

    ndios, a educao escolar indgena adquiriu novas redefinies de marcos jurdicos e institucionais. Com a publicao do Decreto No. 26/1991, ainda no governo

    Fernando Collor de Mello oficializou-se a transferncia da coordenao da educao

    escolar indgena da Funai para o Ministrio de Educao MEC, levando com isso,

    sua execuo para os estados e municpios, nos mesmos formatos como acontecia

    com a educao dos no-ndios. (BENDAZZOLI, 2011; GRUPIONI, 2005) Tais mudanas ocorreram com o intuito de ampliar a discusso sobre a

    situao da Educao Escolar Indgena, pois as escolas mantidas pela Funai tinham

    a ideia da educao dirigida somente para o trabalho. Os projetos elaborados e executados pela Funai nas escolas tinham os objetivos integracionistas de inserir e formar os ndios para a produo de mercadorias, gerao de renda e incluso na

    sociedade nacional. (CUNHA, 1990) Outro aspecto a ser ressaltado, subsequente ao decreto anterior, est contido

    na Portaria Ministerial No. 559/91, que trouxe modificaes na concepo da

    educao escolar para as comunidades indgenas, quando afirmou que ela deixou

    de ter o carter integracionista preconizado pelo Estatuto do ndio (Lei 6.001/73). Essa postura integracionista pelo Estado est relacionada aos modos como os

    ndios eram incorporados comunidade nacional antes da aprovao da

    Constituio de 1988, os quais eram considerados como uma categoria tnica e

  • 38

    social, historicamente conduzida extino, sem o direito diferena cultural e de

    permanecerem enquanto ndios. (GRUPIONI, 2005) Essa Portaria Ministerial se fundamentou no respeito diversidade

    sociocultural atravs da manuteno dos costumes, lnguas e organizao social das

    comunidades indgenas na criao de sua escola, orientando-as na criao dos

    Ncleos de Educao Escolar Indgena, vinculados diretamente s secretarias

    estaduais e municipais de Educao. Essas escolas deveriam assegurar a

    participao de representantes das entidades indgenas que atuam na rea

    educacional, estabelecendo ainda, s condies para a regulamentao das escolas

    indgenas quanto ao seu calendrio escolar, metodologia e avaliao de

    materiais didticos. (GRUPIONI, 2005) Assim, constatamos que essa portaria reconheceu a Educao Escolar

    Indgena enquanto um instrumento para assegurar a autonomia dos povos

    indgenas, no que diz respeito organizao das escolas e o desenvolvimento do

    ensino relacionado diversidade sociocultural.

    Levando-se em conta este contexto e de outros pesquisados, podemos afirmar

    que atualmente existe um movimento reivindicatrio muito forte por parte dos povos

    indgenas no Brasil por uma educao escolar indgena especfica e diferenciada,

    para que, de fato, sua aceitao no sistema pblico de ensino, se legitime. (SILVA, 2001; TASSINARI, 2001; GRUPIONI, 2005; BENDAZOLLI, 2011)

    Nessa linha de pensamento, apoiamo-nos em Bendazolli (2011) ao afirmar que os avanos das discusses dos movimentos indgenas junto ao sistema de ensino dos Estados e municpios, por uma escola que atenda aos interesses e direitos dos

    povos indgenas esto se ampliando, mas que sua implantao, ainda se apresenta

    de forma crtica no Estado do Amazonas. Segundo a autora a poltica federal de

  • 39

    descentralizao da educao promovida a partir do governo de Fernando Henrique

    Cardoso estimulou as Secretarias Estaduais de Educao a delegarem aos

    municpios a responsabilidade pela educao escolar indgena.

    Este tipo de medida acarretou, de certa forma, a municipalizao da categoria

    escola indgena no sistema oficial de ensino no Estado do Amazonas, deixando para

    os municpios a responsabilidade de implantar e gerenciar tal categoria. A medida foi

    tomada mesmo sabendo da existncia de uma estrutura deficitria para o ensino dos

    no-ndios quanto mais para a educao escolar indgena. (BENDAZOLLI, 2011) Atualmente encontra-se em tramitao nas reunies ordinrias do Conselho

    Nacional de Educao o projeto de resoluo que institui as novas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao Escolar Indgena na Educao Bsica. No

    texto das Diretrizes encontramos os princpios norteadores que a amparam

    legalmente e podem subsidiar as posies e orientaes na criao dos territrios

    etnoeducacionais. Ao mesmo tempo, espera-se que sua efetivao seja assumida por todos os envolvidos na gesto das polticas educacionais indgenas e que

    estejam alicerados tanto no protagonismo indgena, quanto na interculturalidade; no dilogo entre os povos indgenas com o sistema de ensino e demais instituies.

    Espera-se o aperfeioamento do regime de colaborao entre os entes federados.

    (BRASIL, 2012) Assim, no desenrolar desse arcabouo legal que norteia o processo histrico

    de estruturao e funcionamento da educao escolar indgena, podemos destacar

    dois documentos fundamentais relacionados necessidade de reconhecimento dos

    direitos das comunidades indgenas a uma educao escolar especfica e

    intercultural, integrada ao seu cotidiano, o Referencial Curricular Nacional para as

    Escolas Indgenas (RCNEI) de 1998 e as Diretrizes Curriculares Nacionais

  • 40

    especficas para essa modalidade de ensino. Ambos aprovados atravs do Parecer

    14/99 do Conselho Nacional de Educao.

    O RCNEI foi elaborado por especialistas do MEC com a participao dos

    indgenas, e tem como objetivo oferecer subsdios aos indgenas para a elaborao de propostas curriculares compostas por disciplinas da base comum do sistema

    nacional de ensino, lnguas, matemtica, geografia, histria, cincias, arte e

    educao fsica atravs do conhecimento de seus direitos fundamentais, seguido de

    vrias experincias pedaggicas existentes no interior das escolas indgenas de

    diversas regies do pas. (BRASIL, 1998) Visto deste modo, para Mindlin (2002, p. 37) o RCNEI representa um

    importante passo para o dilogo e reflexo acerca dos preceitos legais conjugados com as questes pedaggicas e curriculares nas escolas das aldeias, para que haja, de fato, uma interao entre a realidade dos alunos e professores indgenas com os

    conhecimentos de diversas culturas humanas:

    O RCNEI, ao pensar na educao como um processo para formar uma sociedade pautada por valores escolhidos com muita reflexo, um achado, simples e complexo ao mesmo tempo, resultado de consultas a muitos setores, especialistas, ndios e professores. O esforo aproximar da realidade e do currculo de cada escola indgena os princpios e direitos assegurados pela CF e pelas leis como vimos avanados. Trata-se de construir modelos e contedos pedaggicos, elaborando a diferena, em vez de impor idias predeterminadas.

    Ressaltamos aqui que este referencial contempla somente o ensino

    fundamental, delimitando o atendimento s demais sries da educao bsica.

    Porm, podemos observar que atualmente h uma mobilizao de ndios e no-

    ndios para que se amplie e aprofunde essa abordagem para auxiliar os professores

  • 41

    na organizao e no desenvolvimento das escolas indgenas em todos os nveis do

    ensino bsico.

    Com relao s prticas sociais atravs do brincar nas comunidades indgenas

    o RCNEI traz uma preocupao bastante interessante, justificando como motivo para implantao de uma proposta de Educao Fsica na escola indgena a questo do

    abandono a prpria cultura indgena determinado por outros modos de jogar adquiridos entre os indgenas, devido aos contatos com a sociedade nacional. justamente a realidade que as crianas e os jovens vivem com as novas experincias sociais que poder lev-las a modificar os tipos de jogos que so praticados na educao indgena. (BRASIL, 1998)

    Parece-nos que a justificativa apresentada pelo RCNEI no que se refere presena da Educao Fsica na escola indgena est no fato de que o brincar um

    processo social vivido cotidianamente na comunidade indgena e, considerando sua

    forma e contedo, poder se constituir como um dos elementos fundamentais para

    que o professor conhea e compreenda o modo de brincar de cada povo indgena.

    Entende-se, portanto, que a brincadeira no pode estar ausente dos espaos

    educacionais e, em especial, da Educao Escolar Indgena, por ser uma das

    possibilidades para que a escola possa ajudar a enfrentar as possveis situaes de abandono da prpria cultura. (BRASIL, 1998)

    Do ponto de vista dessa reflexo, Kishimoto (2010, p. 65) explicita que:

    A compreenso das brincadeiras e a recuperao do sentido ldico de cada povo dependem do modo de vida de cada agrupamento humano, em seu tempo e espao. Da emerge a imagem que se faz da criana, seus valores, seus costumes e suas brincadeiras.

  • 42

    Dada a dimenso do RCNEI frente aos gestores, professores e tcnicos das

    secretarias de educao que desenvolvem as polticas pblicas para a Educao

    Escolar Indgena na Educao Bsica, acreditamos que este documento pode ser

    caracterizado como um ponto de partida para discusses e reflexes. Temas densos

    foram apresentados de forma superficial, sem aprofundamento, se limitando a dar

    nfase aos aspectos gerais que podem estar relacionados aos modos de vida dos

    indgenas, e vice-versa.

    Como resultado desses aspectos gerais, podem surgir contextos de tenso

    entre conhecimentos indgenas e ocidentais, que venham a influenciar algumas

    ideias errneas sobre essa relao entre a cultura branca e indgena. Muitos ainda

    pensam que quando os povos indgenas modificam alguns aspectos no seu modo

    de viver tornam-se aculturados, e no so mais autnticos. Acreditam que no

    podem mais reivindicar os direitos fundamentais a sua condio de ndio, amparados

    legalmente por leis, decretos, pareceres e resolues. (BRASIL, 1998) Entre os documentos que amparam legalmente a educao escolar dos povos

    indgenas, as Diretrizes Curriculares Nacionais da Educao Escolar Indgena,

    aprovada por meio do Parecer 14/99 da Cmara Bsica do CNE, e normatizadas

    pela Resoluo 03/99, estabelecem a fundamentao da educao escolar

    indgena, considerando a estruturao e organizao da escola, bem como o seu

    funcionamento. Institui as diretrizes curriculares do ensino intercultural e a afirmao

    da cultura e diversidade tnica dos povos indgenas.

    Esse texto legal considera de suma importncia a participao das

    comunidades indgenas na elaborao de projetos pedaggicos, regimentos, calendrios, currculos e materiais didtico-pedaggicos especficos. Garantem aos

  • 43

    professores indgenas a prioridade da docncia nas escolas das aldeias.

    (GRUPIONI, 2005; BENDAZOLLI, 2011) Esses ordenamentos jurdicos explicitam objetivamente as atribuies da

    Unio, Estados e Municpios, cabendo instncia federal legislar, elaborar diretrizes,

    dar suporte tcnico e aporte financeiro aos sistemas de ensino dos Estados no

    desenvolvimento da educao escolar indgena, na formao de professores e

    preparao de material didtico especfico.

    O problema na implementao de uma educao escolar indgena que atenda

    aos princpios e normas estabelecidas pelas legislaes especficas no est

    associado falta de recursos por parte do governo federal, aos estados e

    municpios, mas a m vontade poltica. H que se considerar que existem programas

    do MEC e FNDE destinados s escolas indgenas, os quais possibilitam o

    atendimento atravs dos programas de Merenda Escolar, repasse do Fundeb,

    programa Dinheiro Direto na Escola e Programa Nacional do Livro Didtico. H,

    tambm, e mais o PAR Indgena voltado formao de professores indgenas,

    construo de escolas, desenvolvimento do ensino e elaborao de material didtico

    especfico aos povos indgenas, os quais so pouco ou quase nada destinados s

    escolas das aldeias. (BENDAZOLLI, 2011) Como consequncia dessa realidade, Bendazolli (2011, p.179) nos aponta

    inmeras reclamaes por parte dos indgenas na conduo de sua educao

    escolar, o que nos parece serem os mesmos da escola municipal indgena Tupan-

    Ypor, na aldeia Sah-Ap:

    As queixas dos indgenas quanto a falta de atendimento atravs desses programas sempre foi uma constante: falta de merenda ou sua entrega espordica, atrasada e com produtos de m qualidade que j chegavam vencidos; contrato de professores que previa apenas o pagamento dos meses de aula, sem frias ou recesso; escolas que funcionavam em

  • 44

    moradias, casas de farinha e outros locais improvisados; imposio de projetos pedaggicos e calendrios vlidos para as escolas das cidades; entrega de poucos livros e quase sempre inadequados aos alunos indgenas.

    Parece-nos, portanto, que os entraves apresentados na constituio das

    escolas indgenas, em grande parte do pas so similares, a falta de vontade poltica

    evidente na consolidao da Educao Escolar Indgena nos sistemas de ensino,

    pois as reclamaes por parte dos professores que trabalham com a escola nas

    aldeias so frequentes, sem que haja mudanas concretas para reverter tal realidade.

    Atualmente, existe uma presso muito forte por parte dos movimentos

    indgenas no Estado do Amazonas para que o Conselho Estadual de Educao

    Escolar Indgena (CEEI/AM) se transforme em rgo normativo, desvinculando-se do Conselho Estadual de Educao (CEE/AM). Essa separao seria uma postura mais firme junto ao governo do Estado, tendo em vista a necessidade de cumprir com mais rigor os princpios e normas estabelecidas nas legislaes para Educao

    Escolar Indgena. Ainda que o aparato legal garanta o respeito especificidade da

    educao escolar indgena, os estados e municpios continuam a infringir as leis,

    justificando-se pelo princpio de autonomia dos entes federados. (BENDAZOLLI, 2011)

    O que observamos no debate atual sobre a educao escolar indgena no

    Brasil, o embate que ocorre entre o movimento indgena pela concretizao da

    legislao especfica apresentada pelo MEC, com as limitaes das aes que os

    Sistemas Estaduais de Ensino desenvolvem pela educao escolar indgena. O

    movimento indgena considera que deve haver um tratamento diferenciado de

    escolarizao, j os sistemas Estados e Municpios necessitam, ainda, se estruturar

  • 45

    para cumprir essas prescries estabelecidas por leis, decretos, resolues e

    pareceres. Precisam organizar-se com um corpo tcnico qualificado que desenvolva

    as aes necessrias que, de fato, possam fortalecer a autonomia dos povos

    indgenas.

    Cabe lembrar que o projeto de resoluo sobre as novas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao Escolar Indgena na Educao Bsica, j foram aprovadas e homologadas pelo Conselho Nacional de Educao atravs do Parecer

    CNE/CEB No. 13/2012.

    As diretrizes propem uma mudana significativa quanto universalizao da

    escolarizao para os povos indgenas, deixando de se limitar to somente ao

    ensino fundamental, como preconizava o Plano Nacional de Educao (2001-2010 Lei No. 10.172/01). O documento entende a necessidade de estender a escolarizao indgena por toda educao bsica: da educao infantil ao ensino

    mdio, e nas modalidades de ensino: educao especial, educao de jovens e adultos (EJA) e educao profissional e tecnolgica.

    Percebe-se, portanto, no plano terico, atravs dos movimentos indgenas,

    sociedade civil e governo federal o quanto educao escolar indgena est sendo

    amparada legalmente, o que abre prerrogativas suficientes para a construo de

    instrumentos adequados para que os Estados e Municpios possam transformar em

    polticas pblicas todo esse aparato legal.

    Contraditoriamente, percebe-se, na prtica, o distanciamento de sua real

    concretizao por parte dos Estados e municpios, sua implementao segue os

    mesmos caminhos normatizados e burocratizados da administrao da educao

    escolar no pas, ou seja, uma mquina mal preparada para o trato da diferena. (SILVA,1998; BENDAZOLLI, 2011)

  • 46

    1.3 As escolas dos povos indgenas

    O incio do ano de 2001 representou um marco significativo na rea da

    educao escolar indgena. Vrias obras desenvolvidas e organizadas pelo grupo de

    Educao Indgena, do Departamento de Antropologia da USP, constitudo de uma

    equipe multidisciplinar de pedagogos, antroplogos e historiadores, publicam trs

    obras que se tornaram referncias em vrios trabalhos de dissertaes e teses no

    Brasil: Prticas Pedaggicas na Escola Indgena, organizada por Silva e Ferreira

    (2001), Antropologia, Histria e Educao, organizada por Silva e Ferreira (2001) e Crianas Indgenas: Ensaios Antropolgicos, organizada por Silva, Macedo, Nunes

    (2002). So coletneas de textos decorrentes de pesquisas bibliogrficas e de campo,

    que abordam a construo de uma educao escolar indgena respaldada pelos

    direitos conquistados, considerando as especificidades de cada povo indgena de

    vrias regies do pas.

    Em linhas gerais, as autoras baseiam-se num grande nmero de experincias

    escolares concretas, envolvendo no s a definio de currculos e prticas

    pedaggicas locais, mas tambm toda uma ampla soma de projetos e cursos de formao de professores indgenas. (SILVA e FERREIRA, 2001; SILVA, MACEDO e NUNES, 2002)

    Assim, selecionamos um cenrio deste livro que nos interessa discutir aqui.

    Relacionados tese de Silva (2002, p. 38) encontramos uma importante experincia com dois povos indgenas, autodenominados A`Uwe - Xavante e Xerente de Mato

    Grosso, no que se refere ao modo de vida das crianas, pequenos xams, com a

    educao escolar indgena nas aldeias.

  • 47

    Nesta pequena escola rural perdida no meio do Brasil, construda nos moldes tradicionais que permitem ao mestre vigiar e punir, tempo e espao pr-definidos no so suficientes para impedir a brincadeira inusitada para a hora do recreio: o calor convida, o banho no crrego inevitvel. Crianas molhadas voltam aos lpis e cadernos no espao regrado das carteiras escolares.

    Essa experincia relatada pela pesquisadora nos mostra que as crianas

    A`uwe na educao escolar modificaram seu modo de estar na escola quando

    tiveram a condio do tempo do recreio, da liberdade de se movimentar nos espaos

    da aldeia, o que lhes peculiar, e que essas crianas nos ajudaram a refletir sobre este importante momento de independncia e de exerccio de seu modo prprio de

    aprender vivendo, experimentando, e que seus movimentos podem se constituir

    instrumentos de aprendizado no processo de escolarizao. (SILVA, 2002) Assumimos a experincia desse lugar refletindo com Silva (2002, p.57):

    possvel superar a contradio que existe entre a escola, instituio

    homogeneizadora por excelncia, e as especificidades das populaes indgenas,

    extremamente diversificadas em todos os sentidos?.

    Decorrente dessa reflexo, entendemos que talvez a questo da dimenso da

    interculturalidade no cotidiano da escola indgena possa estar ligada questo do

    conhecimento, o que pode ser entendida como uma das condies necessrias para

    que haja um espao que reflita a vida dos povos indgenas na prtica pedaggica, o que acontece na sala de aula retrata fatos vivenciados pelas crianas, uma vez que

    no se distanciam do que est acontecendo na vida da comunidade, isto , essas

    experincias com as crianas devem ser pensadas nos processos educativos de

    cada povo.

    Assim, identificamos em vrias literaturas que o movimento por uma educao

    escolar no seio de suas comunidades indgenas no Brasil pode ser traduzido como

  • 48

    sendo uma das possibilidades que a escola encontre para que possa ser um lugar

    onde se desenvolva densamente o sentido de interculturalidade entre duas

    sociedades: indgena e no indgena. Essa perspectiva abriria espao para um

    dilogo intercultural, com troca de conhecimentos, configurando-se como um espao

    de encontro e de interao entre duas concepes de mundo. (SILVA & FERREIRA, 2001; TASSINARI, 2001a; BERGAMASCHI & MEDEIROS, 2010)

    Bergamaschi & Medeiros (2010, p. 61) identificam trs possibilidades interpretativas, no que se refere ao lugar da interculturalidade na escola:

    Veem-na como uma necessidade para o dilogo intercultural, na medida em que preciso conhecer a sociedade nacional para com ela se relacionar. Mas, tambm, veem-na como um risco ao modo de vida tradicional, uma invaso dentro de sua prpria terra, j que, a escola uma instituio alheia ao modo de vida dos povos indgenas e historicamente tem causado danos aos processos prprios de educao e ao uso de seus idiomas [...]. E por fim, veem-na como um modo de transformar a escola num processo de apropriao, ressignificao e de recriao, evidenciando assim a possibilidade de incorporar aspectos da cultura do outro sem perder os elementos constitutivos da cultura indgena.

    Observamos nos estudos de Meli (1999) que o termo alteridade est fortemente inserido nos seus trabalhos a partir das experincias com o povo Arawk

    que habita a regio oeste do Estado de Mato Grosso. O autor destaca que um dos

    principais mtodos indgenas a participao da comunidade na ao pedaggica.

    precisamente a participao da comunidade que assegura a alteridade desse povo.

    Ele afirma que esses ndios nunca se mostraram dissociados de sua cultura,

    mesmo perante a escola, continuam mantendo estratgias prprias na conduo do

    seu modo de vida, no s mantendo a diferena entre as culturas, mas tambm

    mostrando que a alteridade indgena, enquanto ao pedaggica, poder servir de

  • 49

    exemplo sociedade nacional atravs de um mundo mais humano e de pessoas

    livres na sua alteridade e em suas diferenas. Porm, destaca que tal questo pode

    estar ameaada com a presena da escola em diversas aldeias no pas, pois essa

    aproximao com os novos conhecimentos advindos da escola seria entendida, para

    alguns, como um dos fatores decisivos de generalizao e uniformidade. (MELI, 1999)

    Dessa maneira, assumimos e concordamos com o autor, que a chegada da

    escola nas comunidades indgenas poder, em muitos casos, ser compreendida

    como uma ao pedaggica que no descaracterize o modo como se transmite a

    educao tradicional de cada um dos povos indgenas; e que essa alteridade, de

    fato, no desaparea mediante a aproximao com o sistema de ensino nacional.

    Acreditamos na escola como um lugar onde professores e os movimentos indgenas

    consigam debater e defender seus direitos sobre a terra, contra a discriminao e a

    falta de respeito, pois torna-se necessrio que os professores e alunos possam se

    posicionar de maneira diferente diante do Estado e da sociedade circundante,

    devido aos conhecimentos advindos da escola. (MELI, 1999) Por outro lado, a conquista por escolas indgenas nas aldeias poder levar ao

    esvaziamento da ao pedaggica tradicional para a alteridade devido ao fato de

    que, em geral, se encontram nos livros e cartilhas de lngua materna um currculo

    adaptado realidade indgena. Tambm h que se considerar a contratao de

    professores indgenas por parte dos Estados e municpios, caso contrrio

    acontecer uma fragmentao na relao entre a escola e a cultura indgena.

    (MELI, 1999) Segundo o autor:

  • 50

    A lngua com palavras indgenas pode no ser indgena; a adaptao de currculos e contedos pode ficar reduzida ao campo do folclrico e do bvio; os professores podem ser cooptados pelo Estado e pelas instituies, com efeitos mais destrutivos, precisamente porque parece que j foram satisfeitas as demandas e as exigncias dos indgenas. (Meli ,1999, p. 14)

    Esta constatao fica clara no bojo de outras literaturas consultadas, tais como: o texto de Silva & Monteiro (2010) intitulado: Escolarizao da Educao Indgena entre os Sater-Maw: O war e a Epistemologia Escolar e o livro coordenado por

    Teixeira (2005) denominado: Sater-Maw retrato de um povo indgena, principalmente no que se refere ao processo de escolarizao da educao indgena

    entre os Sater-Maw, localizados esquerda do rio Waikurapa, no baixo

    Amazonas, prximo da cidade de Parintins. Em especial destacam-se as

    comunidades de So Francisco de Assis, Nova Alegria e Vila Batista, por considerar

    suas formas tradicionais de conhecer, de registrar e de produzir a vida vm sofrendo

    impactos preocupantes quanto chegada da educao escolar nos seus territrios e

    redondezas.

    Constatamos nos estudos que um dos fatores impactantes no processo de

    negao da prpria identidade Sater-Maw est associado ao processo migratrio

    que vem ocorrendo nas aldeias, pois, na grande maioria das escolas indgenas, no

    h o ensino fundamental e mdio completos, fazendo com que os alunos indgenas,

    busquem outros lugares distantes de suas origens, tais como a cidade de Parintins,

    Barreirinha, Maus, e at mesmo Manaus, para a continuao dos estudos.

    (TEIXEIRA, 2005; SILVA & MONTEIRO, 2010) Identificamos que a expanso do processo de escolarizao entre os povos

    indgenas no Brasil tm provocado profundas mudanas na vida das comunidades,

    nas dimenses social, poltica e cultural. (GOMES, 2006)

  • 51

    A prescrio relativa ao direito criao e aos parmetros de funcionamento e

    organizao das atividades didticas referentes s escolas indgenas no Brasil est

    amparada legalmente pelos textos da Constituio Federal de 1988, no ttulo VIII,

    captulo VIII, art. 231; da Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional de 1996,

    no ttulo V, captulo II, artigo 32 3, ainda no captulo V Da Educao Especial, atravs do ttulo III, artigo 78; do Referencial Curricular Nacional para as Escolas

    Indgenas, de 1998; do documento da Secretaria de Educao Continuada,

    Alfabetizao e Diversidade Secad, de 2005, do Ministrio da Educao intitulado

    As Leis e a Educao Indgena.

    Neste ltimo documento, o sentido legal procura garantir as exigncias e as

    caractersticas de cada povo indgena em torno da insero do espao escolar no

    contexto da rea indgena, sem que provoque profundas mudanas na vida das

    comunidades, sobretudo, na educao tradicional indgena, especialmente na

    utilizao da lngua materna e aos processos prprios de aprendizagem.

    Refletindo sobre essa questo, podemos apontar dois sentidos em relao

    entrada da escola no contexto indgena: uma por parte do Estado nacional brasileiro,

    juntamente, com os pensamentos das lideranas e professores indgenas. Essa frente considera que a educao escolar poder ajudar a melhorar a condio de vida das pessoas, essencialmente quando se trata da construo da cidadania em

    um Estado democrtico, h interesse de que os direitos constitucionais possam ser

    refletidos, discutidos e assegurados de forma coletiva para as comunidades

    indgenas.

    O outro sentido est mais atrelado s aes pedaggicas de professores,

    caciques e outras lideranas num movimento de apropriao e transformao da

    escola em prol de suas prticas sociais resultantes da dinmica das relaes sociais

  • 52

    historicamente to disseminadas com o mundo no-indgena que, ainda, so e

    fazem parte desse processo civilizatrio entre as duas culturas.

    fato que, a Lei de Diretrizes e Bases da Educao 9394/96 permitiu a construo de novas propostas pedaggicas de ensino para as sociedades

    indgenas, reconhecendo suas especificidades.

    Grupioni destaca (2005, p. 23 e 24):

    Artigo 32 3 - O ensino fundamental regular ser ministrado em lngua portuguesa, assegurada s comunidades indgenas a utilizao de suas lnguas maternas e processos prprios de aprendizagem. Art. 78 I proporcionar aos ndios, [...] a recuperao de suas memrias histricas; a reafirmao de suas identidades tnicas; a valorizao de suas lnguas e cincias; II garantir [...], o acesso s informaes, conhecimentos tcnicos e cientficos [...]. Art. 79 da educao intercultural [...] fortalecer as prticas scio-culturais [...],manter programas de formao pessoal [...], desenvolver currculos e programas especficos [...], elaborar e publicar material didtico especfico e diferenciado.

    Segundo Brostolin (2003), o cenrio que se apresenta nas escolas indgenas, mesmo com as condies prescritas nas legislaes constitudas sobre os direitos

    sociais e educacionais dos povos indgenas, aparece num modelo de educao

    homogeneizadora, dificultando o dilogo intercultural no interior da escola.

    Assim, concordamos com o autor, quando afirma:

    A realidade, como se apresenta hoje na maioria das aldeias, de uma escola que nada tem de diferenciada, e sim de modeladora e uniformizadora. As escolas situadas nas aldeias indgenas seguem programas estabelecidos para a educao bsica geral. Se tais programas j so deficitrios para as crianas da prpria sociedade nacional envolvente,quanto mais para uma etnia diferenciada em que seus problemas ficam margem. O modelo de educao escolar oferecido, ainda se centra na aculturao. (BROSTOLIN, 2003,p.98)

  • 53

    Visto desta maneira, para Silva e Monteiro (2010) a escola apresentada aos indgenas, em suas comunidades, parece ser uma experincia acompanhada por um

    estranhamento, oposio, abstrao, sem vnculos com o universo dos afazeres

    indgenas. A escola aparece de modo explcito como uma mquina ou aparelho no

    seio da comunidade.

    Neste sentido, h a necessidade de olharmos a criana na escola indgena no

    to somente em sua condio de aluno, mas consider-la em sua vida social, pois

    elas possuem liberdade e autonomia nas sociedades indgenas. Essa caracterstica

    recorrente nos estudos realizados sobre a infncia indgena. (COHN, 2005; NUNES, 2002; TASSINARI, 2009).

    Isto posto, pensamos e concordamos com Tassinari (2009, p. 9) quando argumenta que a idia refletir sobre as formas como essa liberdade e autonomia

    se concretizam em situaes especficas de interao e aprendizagem.

    Quando a discusso sobre o processo de escolarizao das crianas Sater-

    Maw se apresenta no seio das comunidades indgenas, acreditamos que h

    necessidade de reconhecer que sua participao na escola deve ocorrer num

    contexto amplo de comunicao de conhecimentos e saberes p