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O texto eletrônico e os gênero do discurso A A A A A Antonio Carlos Xavier* Carmi Ferraz Santos** Resumo Este estudo coloca em discussão questões relativas à natureza textual/discursiva do hipertexto, produto lingüístico das novas tecnologias de comunicação. Introdução s novas tecnologias intelectuais têm gerado múltiplas e heterogêneas práticas sócio- culturais, que são insti- tucionalizadas, articuladas e disseminadas, no devir da história, pela linguagem. O REVOLUÇÃO DIGITAL, considerada por alguns * Prof. do Depto de Letras da UFPE e doutorando em Lingüística - IEL/UNICAMP). ** Doutoranda em Lingüística Aplicada - IEL/ UNICAMP.

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  • O texto eletrnicoe os gnerodo discurso

    AAAAA

    Antonio Carlos Xavier*Carmi Ferraz Santos**

    Resumo

    Este estudo coloca em discussoquestes relativas naturezatextual/discursiva do hipertexto,produto lingstico das novastecnologias de comunicao.

    Introduo

    s novas tecnologias intelectuaistm gerado mltiplas eheterogneas prticas scio-culturais, que so insti-tucionalizadas, art iculadas edisseminadas, no devir da histria,pela linguagem. O REVOLUODIGITAL, considerada por alguns

    * Prof. do Depto de Letras da UFPE e doutorandoem Lingstica - IEL/UNICAMP).

    ** Doutoranda em Lingstica Aplicada - IEL/UNICAMP.

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    historiadores da cincia como a Terceira Revoluo Industrial,implementada nesta ltima dcada de milnio parece promovermais uma grande modificao tambm nas formas de comunicaohumana, tais como o fizeram a inveno da escrita alfabtica e aimprensa de Gutenberg.

    reboque, a Revoluo Digital trouxe, A Sociedade daInformao , cu ja carac ter s t ica fundamenta l cons is te nadigitalizao das informaes que se do atravs de um textoconstrudo eletronicamente - o HIPERTEXTO. Este por sua vez, entreoutras propriedades, capaz de viabilizar a integrao e fuso dasduas modalidades de uso da lngua (oral e escrita) em uma mesmasuperfcie verbo-visual-auditiva de forma ubqua e simultnea.Assim, derivado das formas de textualizao anteriores, o textoeletrnico parece reconfigurar os gneros textuais/discursivos pelosquais a fala e escrita se materializam.

    1. Seria o Hipertexto um Gnero Tercirio do Discurso?

    Mikhail Bakhtin (1997:279) afirma que a lngua se relaciona smais diferentes esferas da vida humana nas mais variadas situaesde uso, para as quais haveria uma forma scio-culturalmente elaboradade utilizar os diversos tipos de textos em qualquer das modalidade dalngua. Ele define os Gneros do Discurso como enunciadosrelativamente estveis compostos indissoluvelmente por trselementos fundamentais, que so: contedo temtico, estilo econstruo composicional.

    Por serem naturalmente heterogneos e perpassarem a riquezadas atividades humanas, difcil demarcar com preciso os traoscomuns a todos os gneros. Para Bakhtin, medida que as esferas davida se desenvolvem e se complexificam, os gneros tambm sofremmodificaes.

    Na mesma perspectiva, Glich (apud Marcuschi 1996), afirmaser o gnero uma designao vaga e aberta para nomear qualquerforma textual caracterizada por propriedades que no se aplicam atodos os textos. Em outras palavras, gnero seria uma identificaoemprica, mas no necessariamente a identificao de um evento.Os usurios da lngua normalmente se apoiam em traos gerais dosgneros, adquiridos intuitivamente para utiliz-los, j que apresentamum alto grau de esteriotipia. H uma espcie de saber social comumatravs do qual as pessoas se orientam para escolher e produzirdeterminado gnero e no outro em cada contexto de comunicao.Os gneros seriam, ento, normalmente selecionados com base nosobjetivos dos interlocutores e na natureza do tpico tratado, sendo,

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    portanto, uma questo muito mais de uso que de forma, de acordocom Glich.

    Bakhtin distingue os gneros do discurso em basicamente dois,Primrios e Secundrios, de acordo com a sua essncia de realizao.Primrios so os gneros simples, constitudos em circunstncias decomunicao verbal espontnea ou em situao imediata com arealidade existente e com a realidade dos enunciados alheios (p.289).

    J os gneros Secundrios do discurso aparecem emcircunstncias de uma comunicao cultural, mais complexa erelativamente mais evoluda. So produtos de um processohistrico de formao, atravs do qual os gneros primrios soabsorvidos e transmutados. Desta forma teria gerado a uma sriede gneros discursivos, inclusive inserindo e reinterpretando osgneros primrios dentro de sua prpria estrutura, assim como oromance literrio, por exemplo, introduziu o estilo conversacionalem seu escopo.

    Ta l como a esc r i t a reorgan izou as funes sc io -comunica t ivas da fa la e , conseqen temente , pe rmi t iu aemergncia de vrios outros gneros do discurso inexistentes atento, sem negar, anular ou substituir os gneros anteriores,parece-me razovel conjecturar que: as novas tecnologias decomunicao, especificamente a Hipermdia e o seu produtolingst ico mais s ignif icat ivo, o Hipertexto, possibi l i tam osurgimento de gneros textuais/discursivos hbridos, isto , quefundem gneros primrios e secundrios entre si num mesmosuporte fsico, cujo resultado um gnero do discurso de terceiraordem, que, na esteira da classificao bakhtiniana, se poderiadenominar de GNERO TERCIRIO DO DISCURSO.

    2. Quais seriam as principais Operaes Modificadoras efetuadaspelo Hipertexto sobre os gneros do discurso dos quais derivou?

    O Hipertexto se forma e se constitui inegavelmente a partir dostraos caractersticos dos gneros anteriores, especialmente dossecundrios. Sendo assim, pode-se observar que o Hipertexto tende apromover, pelo menos, trs operaes modificadoras nos gneros dodiscurso, que so:

    a) a reconfigurao das formataes tradicionais da escrita,b) a superposio de sistemas semiticos e, por ltimo,c) a complexificao das funes scio-comunicativas dos

    gneros anteriores.

    Como, ento, operam tais agentes modificadores do discurso?

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    2.1.Reconfigurao das Formataes Tradicionais da EscritaAlm de utilizar a formatao tradicional do texto escrito, tais

    como: a diviso em pargrafos, sees, captulos e obedecer divisoe seqenciao das palavras e sentenas, exigncia dos sinaisdiacr t icos e a necessidade de pontuao em seu empregoconvencional, o texto eletrnico subverte esses elementos ereaproveita-os, reconfigurando-os de uma outra maneira,resignificando-os diferentemente.

    Isto perceptvel atravs da introduo dos emoticons1 nosHipertextos produzidos durante as interaes pelo computador emsalas de bate-papo, e-mails, fruns eletrnicos. Ou seja, so conesque traduzem as emoes (emotional icons) do enunciador diante doenunciatrio.

    Esta tcnica criada consuetudinariamente pelos usurios doHipertexto na Internet busca suprir a ausncia do acesso ao tom devoz, gestos e expresses faciais dos interlocutores prprias dasinteraes face-a-face. Este tambm foi um problema enfrentado pelaescrita alfabtica, quando da sua inveno, que foi, ao longo da suahistria, parcamente resolvido pela convencionalizao dos sinaisde pontuao.

    Alm dos emoticons, os usurios da rede hipertextualconstruram coletivamente outras maneiras de demonstrar estadosemocionais, tais como:

    a) escrever palavras em letras MAISCULAS geralmente paraindicar um grito do enunciador ou que ele estaria falandoalto.

    b) usar o sinal grfico asterisco (*) como forma diferenciada deenfatizar uma determinada palavra ou frase. Antes, o asteriscos era empregado para fazer remisso a uma nota de rodap,fim de captulo ou de volume, ou ainda para indicar separaode perodos.

    Assim, a necessidade aliada imaginao fizeram com que osusurios jogassem com os topogramas j existentes e bastanteconhecidos scio-culturalmente, a fim de solucionar uma dificuldadeconcreta em situao de telecomunicao e criassem taisengenhocas icnicas substitutivas dos elementos paralingsticos.

    1 Emoticons - uma espcie de carinha, cuja melhor visualizao ocorre quando se inclina a cabeapara a esquerda. Os mais usados na Internet so::-* beijinho; :*) beber pouco; #-) beber muito; :-( chorando; :-0 chocado; :-| com sono;:-/ confuso; :-S contradizer; 8-) de culos; :-(= dentuo; :-e desiludido; :-@ gritando;>:-( irado; :-7 irnico; :-! Fumar; :- homem; :-9 lamber os lbios>- mulher; :-p mostrar lngua; :-& ofendido; \ ~/ oferecer um drink; ### prestar socorro;;-) piscar os olhos; :-) rir; :-)) rir muito; :-| srio; >:-> sorrir com malcia;0:-) sorrir feliz; :- uma rosa;

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    2.2. Superposio de Sistemas SemiticosSabe-se que, do ponto de vista fsico, a escrita diferencia-se da

    fala por ser aquela de natureza essencialmente visual, enquanto estabasicamente auditiva. Sendo de natureza hbrida, isto , capaz demesclar elementos da oralidade com os da escrita, o texto eletrnicopermite tambm que outras formas semiticas lhe sejam adicionadastais como as imagens animadas e efeitos sonoros outros e no apenasos da voz humana.

    Esta confluncia de estruturas sgnicas agregadas a um mesmoaparato eletrnico torna o Hipertexto uma possibil idadecomunicacional plural, dinmica e muito mais envolvente, ainda que distncia, j que os usurios passam a ter acesso a mais de umaforma de linguagem ao longo da interao.

    Os gneros hipertextuais instauram uma nova arquiteturalingstica que reorganiza os elementos verbais, visuais e auditivos,fazendo-os ocupar um espao especfico e relevante dentro damontagem geral desta reconfigurao semitica.

    Editadas todas em um mesmo espao de leitura tela digital -as diversas linguagens clipadas, bricoladas umas as outras ganhamum efeito de significao extremamente rico, profundamenteabundante de recursos perceptuais que quando acessados isoladamenteum a um, pois os interpretantes hipertextuais - passam a dispor de noapenas uma linguagem, mas de vrias operando conjuntamente econcorrendo simultaneamente para construo do sentido propostopelo produtor do gnero hipertextual.

    Imersa neste universo de mltiplas manifestaes, a experincialingstico-cognitiva do enunciatrio torna-se bem mais farta epotencialmente mais completa em relao dos gneros secundrios,uma vez que o universo sensorial mobilizado pelo enunciador, noHipertexto, para produzir o seu discurso ultrapassa o nvel do sistemaalfabtico da escrita e atinge os sistemas pictrico e auditivo.

    Esta superposio dos sistemas semiticos efetuados pelo/noHipertexto no chega a modificar radicalmente tais sistemas sgnicosem si; no esta a pretenso. Busca-se, antes, justap-los lado a ladoconservando a funcionalidade original de cada um, todaviacondensada e redirecionada para atuar cooperativamente, e no maissolitariamente, como fonte nica e total de sentido2. No hsubstituio ou apagamento de qualquer um dos sistemas semiticos.Pelo contrrio, h adio, soma, acrscimo deles.

    O que ocorre, na verdade, uma tentativa bem sucedida defazer convergir para um mesmo lugar sistemas diferentes de linguageme, com isso, permitir o acesso do interpretante ao sentido de um modo

    2 Cabe-me aqui salientar que no estou com isto querendo dizer que o sentido construdo noHipertexto tende a ser uniforme ou nico, at porque defender esta posio seria ignorar a grandecomplexidade que envolve o processo de compreenso. Todavia, o ajuntamento de sistemas delinguagem aumentaria a quantidade de pistas inferenciais verbais e no-verbais no quadro enunciativogeral proposto pelo enunciador.

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    mais global, tal como ocorre com a fala, cuja sobreposio deelementos verbais, paraverbais (tom de voz, ritmo, entoao) e no-verbais (gestos, olhares), dentro de um ambiente espontneo derealizao, do aos interlocutores a condio ideal para a interaosocial efetiva.

    Certamente, em cada um dos gneros hipertextuais haveruma tendncia ao predomnio de um dos sistemas sgnicos. Constata-se na prtica linguageira das salas de bate-papo, os chamados chats,o emprego intenso de emoticons e figuras, algumas delas at comrecurso de animao, a fim de se obter um ritmo conversacionalmais prximo do dilogo cotidiano. O mesmo j no ocorre com osFruns Virtuais e com os E-mails nos quais se usam menos expressesindicadoras de emoo, poucas figuras e mais enunciados verbais.

    2.3. Complexificao das Funes Scio-Interativas dosGneros Anteriores

    Uma vez retrabalhados e reaproveitados diferentemente, oselementos da escrita e de outras linguagens no-verbais, o gnerotercirio de natureza hipertextual mistura vrias funes scio-comunicativas dos diversos gneros discursivos ligados fala e escrita.

    Certas aes de linguagem j prefiguradas em determinadosgneros secundrios e/ou primrios, que lanam sobre os interlocutoresdeterminados horizontes de expectativas, so reemolduradas em umnovo espao de enunciao, que faculta ao seu produtor o uso dealgumas formataes lingstico-rituais e estruturaes estilsticasprprias de cada gnero, colocando-o na fronteira com outros gneroscom os quais mantm alguma relao de similaridade.

    Este fenmeno o que parece acontecer no Correio-Eletrnicoque, ao contrrio de ser apenas um suporte digital para envio erecepo instantnea de mensagens (em forma de arquivos eletrnicosdiversos: textos, imagens, programas, etc.), apresenta traos muitosemelhantes a diversos outros gneros secundrios do discurso, taiscomo bilhete, aviso, telegrama, convite, carta entre amigos, etc., osquais portam mensagens de pequena extenso com estruturaslingsticas menores e mais simples.

    Paradoxalmente, o mesmo E-mail comporta tambm, e no sanexadamente, textos extensos e mais juridicamentecomprometedores, como contratos, minutas, processos cvis ecriminais, artigos (jornalsticos e cientficos), inquritos, atas,balancetes, entre outros de estruturas composicionais maiores e mais

    3 Deve ficar claro aqui que no considero a extenso do texto, a quantidade de palavras ou o volumefsico do discurso como critrios para avaliar o grau de complexidade da sua estrutura. A idia fazer o leitor visualizar agrupadamente os gneros que demandam mais elaborao, mais ritualizaoe rigor estrutural de um lado, e de outro, aqueles gneros secundrios menos cerimoniosos e, porisso, de formatao mais aberta e flexvel.

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    elaboradas3.Is to, na real idade, aponta para a versat i l idade e ,

    conseqentemente, para a grande complexidade deste que seria, apriori, apenas mais um suporte de mensagens, mas que, na prtica,vem se configurando como espao mltiplo de enunciaes possveisdentro da vasta constelao de gneros discursivos que ele acomodae viabiliza, conforme as necessidades comunicativas dos usurios.

    O Frum Eletrnico, no entanto, um gnero tercirio queguarda mais semelhanas com os gneros primrios por seremconstitudos basicamente por marcas da oralidade tanto na formacomposicional como no tempo de execuo, embora a suaconcretizao se d pela escrita. Perodos simples e curtos, frasestruncadas, preferncia por construes verbais na voz ativa, menordensidade informacional, marcas de envolvimento, presena demarcadores conversacionais, entre outras caractersticas da oralidadecostumam aparecer muito nos fruns virtuais.

    Alm disso, ele geralmente produzido no calor da emoo deum debate, em razo da alta polarizao dos temas que geralmenteso disponibilizados na rede, levando os interlocutores a daremrespostas imediatas, sem uma argumentao mais slida eamadurecida.

    O E-mail, por sua vez, tende a preservar mais as caractersticasdos gneros escritos, desenvolvendo-os, complexificando-os eflexibilizando-os, fatores que o fazem axialmente diferente dos gnerossecundrios dos quais deriva. Em sntese, pode-se afirmar, ento, queo Gnero Tercirio especificamente o E-mail e o Frum Virtual , secalcam respectivamente na dialtica da concretude e historicidadeda escrita e da espontaneidade e simultaneidade da fala.

    3. Concluso

    Para concluir, preciso dizer que este breve ensaio em tornodo Hipertexto como gnero tercirio do discurso ainda est em fasede gestao e necessita de anlises mais refinadas, a fim de ganharconsistncia e se consolidar no cenrio dos estudos relativos aosgneros hoje novamente no centro das discusses na LingsticaTextual e na Educao.

    Porm, acredito ser de fundamental importncia iniciar umaabordagem o quanto antes deste novo espao de escrita (Hipertexto)que se mostra, no mnimo, diferente das formas tradicionais deproduo e compreenso textual/discursiva, tendo em vista a suapenetrao inegvel na vida e nas prticas culturais e lingsticasdas sociedades contemporneas.

    Assim, cabe tambm Cincia da Linguagem contribuir parase conhecer melhor e mais profundamente este que no mero suportede produes textuais/discursivas mltiplas e plurais, mas tem seconfigurado como um gnero de discurso com caractersticas prpriase diferenciadas, ainda que enraizadas nas dos gneros anteriores.