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Estudo sobre a mediunidade-3Estudo sobre o passe-18 (Clarice Chibeni)

Porque Kardec-41Caracteres da revelação Espírita-44

paradigma Espírita-83As acepções da palavra “Espiritismo” e a preservação doutrinária--94

Revisão da terminologia Espírita?-99Religião Espírita-104A ciência oficial-108

As relações da ciência Espírita com as ciências acadêmicas-111Algumas abordagens recentes dos fenômenos espíritas-115

A pesquisa científica Espírita-122Espiritismo em seu tríplice aspecto-125

Ciência Espírita-II-143Algumas passagens de Kardec sobre filosofia Espíria-156

Espiritismo e religião-163Excelência metodológica do Espiritismo-183

As provas científicas-203A pesquisa cientifica do Espírito-205

Fenômenos psicofísicos de natureza espiritual-233-(Núbor)Algumas considerações oportunas sobre a relação Espiritismo-ciência-244-

(Ademir Xavier)A concepção Espírita de fatalidade-250

As paixões – Uma breve análise filosófica e espírita-261Ser Espírita-273

Sinopse dos principais fatos referentes às origens do Espiritismo-286Seis textos sobre as edições francesas de “O livro dos Espíritos”-301

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(Artigo publicado em Reformador de agosto de 1997, pp. 240-43 e 253-55.)

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ESTUDO SOBRE A MEDIUNIDADE

SILVIO E CLARICE SENO CHIBENI

1. Introdução

A mediunidade desempenha papel essencial no estabelecimento da base experimental da ciência espírita e nas atividades dos centros espíritas. Seu estudo sistemático e contínuo possibilita a correta compreensão tanto de sua natureza como de suas finalidades, habilitando-nos a dela obter seguros e produtivos resultados, com vistas ao nosso aperfeiçoamento intelectual e moral.

Esse estudo deve necessariamente estar centralizado no mais completo e profundo tratado que já se escreveu sobre a mediunidade: O Livro dos Médiuns, de Allan Kardec. Os presentes apontamentos devem ser tidos unicamente como uma exposição incompleta de alguns tópicos importantes, destinada a facilitar posteriores contatos com essa obra fundamental e a vasta literatura subsidiária surgida desde sua publicação, em 1861.

No Vocabulário Espírita que forma o capítulo 32 desse livro Kardec dá como sinônimos os termos mediunidade e medianimidade, definindo-os com “a faculdade dos médiuns”. Quanto à palavra médium, Kardec explicita o seu significado em várias passagens de suas obras, como por exemplo nesse mesmo Vocabulário, onde se encontra esta definição sucinta:

MÉDIUM. (do latim, medium, meio, intermediário). Pessoa que pode servir de intermediário entre os Espíritos e os homens.

Ao analisar os conceitos de médium e de mediunidade, faz notar que a palavra médium comporta duas acepções distintas, expressas com clareza neste trecho da Revue Spirite:1

Acepção ampla:

Qualquer pessoa apta a receber ou a transmitir comunicações dos Espíritos é, por isso mesmo, médium, quaisquer que sejam o modo empregado e o grau de desenvolvimento da faculdade, desde a simples influência oculta até à produção dos mais insólitos fenômenos.

Acepção restrita:

1 1859, p. 33; L’Obsession, p. 87. Ver também O Livro dos Médiuns, parágrafo 159.

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Em seu uso ordinário, todavia, esse termo tem uma aplicação mais restrita, aplicando-se às pessoas dotadas de um poder mediador suficientemente grande, seja para a produção de efeitos físicos, seja para transmitir o pensamento dos Espíritos pela escrita ou pela palavra.

Quando analisamos um texto ou um discurso onde o termo médium aparece, é importante reconhecer em qual desses sentidos está sendo empregado, a fim de se evitarem mal-entendidos e discussões sem fundamento. Assim, por exemplo, a afirmação feita no parágrafo 159 de O Livro dos Médiuns de que “todos [os homens] são quase médiuns” deverá ser entendida apenas na acepção ampla do termo, pois sabemos, pela questão 459 de O Livro dos Espíritos, que todos somos passíveis de receber a influência dos Espíritos, ainda que sob a forma sutil de intuição. In-correremos em grave equívoco se concluirmos daí que todos somos mais ou menos médiuns no sentido restrito e usual da palavra, ou seja, se julgarmos que todos podemos produzir manifestações ostensivas, tais como a psicofonia, a psicografia, os efeitos físicos etc.

2. A natureza da mediunidade

Limitando-nos daqui para frente à acepção restrita do termo ‘médium’, que é a mais usual e relevante, estaremos, no que se vai seguir, entendendo a mediunidade como a aptidão especial que certas pessoas possuem para servir de meio de comunicação entre os Espíritos e os homens.

A questão que naturalmente surge neste ponto é a de se determinar qual é a natureza da faculdade mediúnica: quais as suas causas, por que surge somente em determinadas pessoas e em modalidades e graus diversos, se é passível de desenvolvimento forçado mediante alguma técnica etc.

Um aspecto central relativo à natureza da mediunidade acha-se exposto na resposta à questão que Kardec endereçou aos Espíritos no parágrafo 226 de O Livro dos Médiuns:2

O desenvolvimento da mediunidade guarda proporção com o desenvolvimento moral dos médiuns?

“Não; a faculdade propriamente dita prende-se ao organismo; independe do moral. O mesmo, porém, não se dá com o seu uso, que pode ser bom ou mau, conforme as qualidades do médium.”

Como observamos pela resposta dos Espíritos, a capacidade de servir de “ponte” entre o mundo espiritual e o mundo material está ligada a fatores de ordem orgânica. Esse ponto encontra-se exarado em vários lugares das obras de Kardec e de outros autores espíritas abalizados, passando, no entanto, despercebido à maioria das pessoas, mesmo espíritas.

2 Nesta e demais citações e O Livro dos Médiuns e de Obras Póstumas utilizamos os textos originais, aproveitando em grande parte as traduções publicadas pela Federação Espírita Brasileira.

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Já em 1859 Kardec afirmava, em seu livro Instruções Práticas sobre as Manifestações Espíritas que “essa faculdade depende de uma disposição orgânica especial, suscetível de desenvolvimento.”3 Em O Livro dos Médiuns as referências nesse sentido são numerosas. No parágrafo 94, por exemplo, que trata das manifestações físicas espontâneas, os Espíritos informam que a aptidão de ser médium de efeitos físicos “se acha ligada a uma disposição física.” Bem mais adiante, ao estudar a formação dos médiuns (§ 209), Kardec retorna ao assunto:

Têm-se visto pessoas inteiramentre incrédulas ficarem espantadas de escrever [mediunicamente] a seu mau grado, enquanto que crentes sinceros não o conseguem, o que prova que esta faculdade se prende a uma disposição orgânica.

Notemos que nesta última passagem há referência a mais um princípio importante: a mediunidade não depende das convicções filosóficas ou das crenças religiosas do médium.

Por fim, em resposta à questão 19 do parágrafo 223 desse mesmo livro os Espíritos esclarecem que “a mediunidade propriamente dita independe da inteligência bem como das qualidades morais” do médium. Portanto a mediunidade independe também do desenvolvimento intelectual do médium.4

Resumindo o que vimos até aqui:

A mediunidade é a faculdade especial que certas pessoas possuem para servir de intermediárias entre os Espíritos e os homens. Ela tem origem orgânica, e independe:

• da condição moral do médium;

• de suas crenças;

• de seu desenvolvimento intelectual.

No parágrafo 200 de O Livro dos Médiuns, Allan Kardec deixa claro que “não há senão um único meio de constatar [a existência da faculdade mediúnica em alguém]: a experimentação.” Ou seja, só poderemos saber que uma pessoa é médium observando que efetivamente é capaz de servir de intermediário aos Espíritos desencarnados.

Isso naturalmente remete à importante questão do desenvolvimento da mediunidade. Por sua importância e pelas confusões e equívocos a que se tem prestado, merece ser abordada numa seção especial.

3 Vocabulário Espírita, item ‘Médium’. Ver também O Evangelho segundo o Espiritismo, capítulo 24, § 12.

4 Outras referências sobre a origem orgânica da mediunidade podem ser encontradas, por exemplo, em O Livro dos Espíritos, Introdução, item 4; O Livro dos Médiuns, parágrafo 174; Revue Spirite, 1859, “Écueils des médiums” (p. 33; L’Obsession, p. 88); Estudos Espíritas, de Joanna de Ângelis, capítulo “Mediunidade”.

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3. O desenvolvimento da mediunidade

Uma primeira observação a ser feita é que se a presença da faculdade mediúnica em uma pessoa independe de sua condição moral, intelectual e de crença, ninguém poderá tornar-se médium tão-somente pelo fato de moralizar-se, ou de estudar, ou de aderir às convicções espíritas. É evidente que essas atitudes serão de imenso proveito para a criatura, pois a colocarão em condições de compreender e utilizar bem a faculdade mediúnica que porventura possua.

É significativo, a esse respeito, que Kardec tenha alertado já no terceiro parágrafo da Introdução de O Livro dos Médiuns que muito se enganaria aquele que “supusesse encontrar nesta obra uma receita universal e infalível para formar médiuns.” Lança mão, a seguir, de uma comparação muito clara e objetiva, que esclarece o assunto à saciedade (os destaques são nossos):

Se bem que cada um traga em si o gérmen das qualidades necessárias para se tornar médium, tais qualidades existem em graus muito diferentes e o seu desenvolvimento depende de causas que a ninguém é dado conseguir se verifiquem à vontade. As regras da poesia, da pintura e da música não fazem que se tornem poetas, pintores, ou músicos os que não têm o gênio de algumas dessas artes. Apenas guiam os que as cultivam no emprego de suas faculdades naturais. O mesmo sucede com o nosso trabalho. Seu objetivo consiste em indicar os meios de desenvolvimento da faculdade mediúnica, tanto quanto o permitam as disposições de cada um, e, sobretudo, dirigir-lhe o emprego de modo útil, quando ela exista.

O caráter espontâneo da faculdade mediúnica é ainda destacado no parágrafo 208 de O Livro dos Médiuns (o destaque é nosso):

Se os rudimentos da faculdade [mediúnica] não existem, nada fará que apareçam [...].

No capítulo intitulado “Manifestações dos Espíritos” de Obras Póstumas

(parágrafo 6, no 34) encontramos esta densa passagem (destaque nosso):

O desenvolvimento da faculdade mediúnica depende da natureza mais ou menos expansível do perispírito do médium e da maior ou menor facilidade da sua assimilação pelo dos Espíritos; depende, portanto, do organismo e pode ser desenvolvida quando exista o princípio; não pode, porém, ser adquirida quando o princípio não exista.

E no parágrafo 198 de O Livro dos Médiuns, que trata da diversidade das faculdades mediúnicas, lemos ainda:

Em erro grave incorre quem queira forçar a todo custo o desenvolvimento de uma faculdade que não possua. Deve a pessoa cultivar todas aquelas de que reconheça possuir o gérmen. Procurar à força ter as outras é, antes de tudo, perder tempo, e, em segundo lugar, perder talvez, enfraquecer com certeza, as de que seja dotado.

Encerrando esse parágrafo, Kardec transcreve comunicação mediúnica de Sócrates sobre o desenvolvimento da mediunidade, que contém grave advertência:

Quando existe o princípio, o gérmen de uma faculdade, esta se manifesta sempre por sinais inequívocos. Limitando-se à sua especialidade, pode o médium tornar-se excelente e obter grandes e belas coisas; ocupando-se de tudo, nada de bom obterá. Notai, de passagem, que o desejo de ampliar indefinidamente o âmbito de suas faculdades é uma pretensão orgulhosa, que os Espíritos nuncam

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deixam impune. Os bons abandonam o presunçoso, que se torna então joguete dos mentirosos. Infelizmente, não é raro verem-se médiuns que, não contentes com os dons que receberam, aspiram, por amor-próprio ou ambição, a possuir faculdades excepcionais, capazes de os tornarem notados. Essa pretensão lhes tira a qualidade mais preciosa: a de médiuns seguros.

Apenas como exemplo de opinião de um outro autor, corroborativa da de Allan Kardec, vejamos como Emmanuel responde à questão 384 de seu livro O Consolador, questão essa que versa especificamente sobre o tema que estamos focalizando:

Dever-se-á provocar o desenvolvimento da mediunidade?

A mediunidade não deve ser fruto de precipitação nesse ou naquele setor da atividade doutrinária, porquanto, em tal assunto, toda a espontaneidade é indispensável, considerando-se que as tarefas mediúnicas são dirigidas pelos mentores do plano espiritual.

Logo em seguida, em resposta à questão 386, o conceituado Espírito reitera:

Ninguém deverá forçar o desenvolvimento dessa ou daqula faculdade, porque, nesse terreno, toda a espontaneidade é necessária; observando-se contudo, a floração mediúnica espontânea, nas expressões mais simples, deve-se aceitar o evento com as melhores disposições de trabalho e boa-vontade [...].5

Precisamos portanto estar vigilantes quanto à opinião, infelizmente tão comum no meio espírita, de que as pessoas que aparecem nas casas espíritas devem, cedo ou tarde, ser encaminhadas às chamadas “sessões de desenvolvimento mediúnico”. São dois os motivos mais freqüentemente alegados para esse tipo de recomendação: 1) o empenho e dedicação com que alguém se interesse pelo Espiritismo, sugerindo, segundo julgam, que tem “todas as condições” para exercer a mediunidade; 2) os desequilíbrios variados de saúde ou de comportamento que apresente, notadamente quando venham desafiando a perícia dos médicos.

Ora, no primeiro caso dever-se-ia ponderar que as boas disposições da pessoa deverão ser aproveitadas antes de mais nada em seu aperfeiçoamento intelectual e moral, e, em se tratando de sua colaboração nas atividades do centro espírita, naquele setor ao qual mais se ajuste por sua formação profissional, seus interesses e disponibilidades, quais sejam a condução de estudos, a evangelização infanto-juvenil, a administração, a biblioteca, as visitas fraternas, a costura de enxovais, a faxina, a distribuição de alimentos, a acolhida aos novos freqüentadores etc., ou os trabalhos mediúnicos, se os sinais de mediunidade se apresentarem de forma espontânea.

No segundo caso, que é o mais freqüente, seria preciso compreender que o mero fato de alguém encontrar-se desequilibrado significa que não pode ser inserido no grupo mediúnico, sob o risco de comprometer o seu bom funcionamento. A mediunidade em si é uma faculdade neutra, que não tem qualquer conexão com os 5 Todos os destaques são nossos. Ver também, sobre esse ponto, André Luiz, Nos Domínios da Mediunidade, cap. 1, pp. 18-9, e Yvonne Pereira, Devassando o Invisível, cap. 10, p. 216.

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desajustes físicos, mentais e espirituais da criatura. Estes surgem por motivos específicos, e requerem o tratamento médico, psicológico ou espírita adequado ao caso. Somente após seu retorno à normalidade é que a pessoa poderá participar, como médium, dos trabalhos mediúnicos, se a faculdade surgir espontaneamente. O exercício da mediunidade não é recomendável na presença de determinadas enfermidades físicas, como por exemplo, nas doenças contagiosas, ou onde o equilíbrio orgânico esteja “por um fio” e a atividade mediúnica envolva situações que emocionem muito o médium. No caso dos desequilíbrios mentais e espirituais, o exercício mediúnico não pode nunca ser iniciado, ou continuado. Um médium nessas condições não poderá contribuir positivamente, além de gerar dificuldades para o grupo, facilitando mesmo a atuação de Espíritos interessados na instalação da desarmonia, dos melindres, das suspeitas, do enregelamento das relações entre os membros.

O desenvolvimento mediúnico a ser promovido nos centros espíritas não deve nunca ser entendido como o aprendizado de técnicas e métodos para fazer surgir a mediunidade, pois que não os há nem pode haver, mas exclusivamente como o aprimoramento e direcionamento útil e equilibrado das faculdades surgidas de forma natural, o que pressupõe o aperfeiçoamento integral do médium, por meio do estudo sério e de seus esforços incessantes para amoldar suas ações às diretrizes evangélicas.

Ressaltemos, outrossim, que os núcleos espíritas não deverão iniciar qualquer trabalho mediúco, quer de desenvolvimento (no sentido correto do termo), quer, menos ainda, de assistência aos Espíritos enfermos, se não estiverem seguros de que dispõem de colaboradores suficientemente preparados, por seus conhecimentos doutrinários, por seu equilíbrio psicológico e por sua conduta cristã, que disponham de tempo para encetar com regularidade tão delicada tarefa.

Resumindo o que foi visto nesta seção:

• A mediunidade é uma faculdade natural, que surge espontaneamente.

• Não se deve procurar desenvolvê-la enquanto não aflorar por si só.

• O desenvolvimento da mediunidade deve ser entendido unicamente como a sua educação, o seu aprimoramento, a sua disciplina, o seu direcionamento útil para o bem.

• A mediunidade não é a causa primária dos desequilíbrios orgânicos e psicológicos.

• O exercício da mediunidade não deve ser colocado como a culminação obrigatória das atividades do cooperador da casa espírita.

4. Os mecanismos da mediunidade

Na presente seção procuraremos reunir alguns informes sobre os mecanismos da faculdade mediúnica, ou seja, sobre como se dá o fenômeno mediúnico. A fonte básica continuará sendo Allan Kardec. Iniciemos com este trecho, já parcialmente

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transcrito, do capítulo “Manifestações dos Espíritos” de Obras Póstumas (§ 6, no 34; o destaque é nosso):

O fluido perispirítico é o agente de todos os fenômenos espíritas, que só se podem produzir pela ação recíproca dos fluidos que emitem o médium e o Espírito. O desenvolvimento da faculdade mediúnica depende da natureza mais ou menos expansível do perispírito do médium e da maior ou menor facilidade da sua assimilação pelo dos Espíritos.

Esmiuçando as informações aqui contidas, notamos:

1) O perispírito desempenha papel de capital importância no processo mediúnico.

2) Sendo o perispírito “o agente de todos os fenômenos espíritas”, e estes só podendo produzir-se pela ação recíproca dos fluidos que emitem o médium e o Espírito, temos como regra sem exceções que, ocorrendo um fenômeno de comunicação com o mundo espiritual, necessariamente haverá a participação de um médium. Em alguns casos, como em certas manifestações de efeitos físicos, não se nota a presença do médium, mas podemos estar certos de que haverá alguém, em algum lugar, servindo de médium, ainda mesmo que este não esteja consciente do papel que desempenha. Também percebemos que serão vãos os esforços de certos pesquisadores que, desprezando a riquíssima contribuição do Espiritismo para o estudo daquilo que (impropriamente) denominam “paranormalidade”, tentam detectar o Espírito unicamente por meio de aparelhos. Se algum instrumento chegar a registrar um espírito, é porque houve a participação oculta de algum médium. Neste caso, seria mais confiável analisar a manifestação diretamente, sem o recurso indireto de instrumentos, que sempre constituem fonte adicional de incertezas.6

3) A presença da faculdade mediúnica em alguém liga-se à possibilidade de seu perispírito “expandir-se”. Veremos logo mais que essa “expansão” do corpo espiritual pode ser entendida como a sua parcial desvinculação do corpo físico.

4) A efetivação da comunicação exige, além da “expansão” do perispírito do médium, a assimilação deste com o perispírito do Espírito comunicante, ou seja, tem de haver sintonia entre ambos. Esse fato importante, de que o médium em geral não é capaz de comunicar-se indiscriminadamente com todos os Espíritos, é exposto em Obras Póstumas imediatamente após o trecho que acabamos de transcrever (§ 6, no 35; os grifos são nossos):

6 Esse é um ponto que merece reflexão, em vista da ampla divulgação em nossos dias da chamada “transcomunicação instrumental” (TCI). Em artigos anteriores (Chibeni 1984, 1988 e 1994) analisamos, à luz da moderna filosofia da ciência, a questão da cientificidade do Espiritismo e de sistemas alternativos, procurando mostrar que, do mesmo modo como entendia Kardec, o Espiritismo é uma disciplina genuinamente científica, enquanto que esses sistemas não. Contrariamente ao que em geral assumem os proponentes da TCI, o mero emprego de aparelhos não assegura a cientificidade de nenhuma disciplina; eles só são usados nas ciências ordinárias porque o seu objeto de estudo a matéria presta-se à análise quantitativa, e muitos de seus aspectos só podem ser observados com aparelhos. Já o objeto de estudo do Espiritismo o elemento espiritual não é passivel de análise quantitativa, como tão apropriadamente fez notar Kardec em várias de suas obras.

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As relações entre os Espíritos e os médiuns se estabelecem por meio dos respectivos perispíritos, dependendo a facilidade dessas relações do grau de afinidade existente entre os dois fluidos. Alguns há que se combinam facilmente, enquanto outros se repelem, donde se segue que não basta ser médium para que uma pessoa se comunique indistintamente com todos os Espíritos. Há médiuns que só com certos Espíritos podem comunicar-se ou com Espíritos de certas categorias, e outros que não o podem a não ser pela transmissão do pensamento, sem qualquer manifestação exterior.

No exame do assunto do item 3, podemos colher subsídios em André Luiz, o autor espiritual que tanto tem contribuído para a extensão de nosso conhecimento científico acerca da mediunidade. Em sua obra Evolução em Dois Mundos, ao analisar a fase evolutiva em que se elaborava a faculdade de desprendimento do veículo perispiritual durante o sono (capítulo 17, item “Mediunidade espontânea”), adianta esta valiosa informação (grifamos):

Consolidadas semelhantes relações com o Plano Espiritual [...], começaram na Terra os movimentos de mediunidade espontânea, porquanto os encarnados que demonstrassem capacidades mediúnicas mais evidentes, pela comunhão menos estreita entre as células do corpo físico e do corpo espiritual, em certas regiões do campo somático, passaram das observações durante o sono às da vigília, a princípio fragmentárias, mas acentuáveis com o tempo [...].

Vemos, assim, que o respeitado cientista deixa entrever a correlação íntima entre a possibilidade de contato com a realidade espiritual durante a vigília (mediunidade) e um certo “afrouxamento” das ligações entre as células do perispírito e as suas correspondentes do corpo material. Prosseguindo, André Luiz explicita mais essa correlação:

Quanto menos densos os elos de ligação entre os implementos físicos e espirituais, nos órgãos da visão, mais amplas as possibilidades na clarividência, prevalecendo as mesmas normas para a clariaudiência e modalidades outras, no intercâmbio entre as duas esferas [...].

Refletindo um pouco sobre as assertivas de André Luiz, verificamos, inicialmente, que não conflitam com a explicação dada por Kardec, em termos da capacidade de expansão do perispírito do médium. Há, pelo contrário, até um reforço, já que a noção de “expansão” é aqui suficientemente abrangente e flexível para permitir ulteriores elaborações e detalhamentos, dentro da natureza eminentemente progressiva do Espiritismo. Podemos compreender, deste modo, a “expansibilidade” do perispírito como a sua faculdade de desvinculação parcial e temporária do corpo físico, passando, nesse estado especial, a partilhar da realidade do mundo espiritual para nela colher impressões diversas, sem no entanto perder a possibilidade de atuação sobre o corpo denso.

É fundamental deixar claro que o que acabamos de expor não corrobora de modo algum a idéia popular de que no processo mediúnico o Espírito do médium “sai” e “dá lugar” ao Espírito comunicante, que passaria então a servir-se diretamente do corpo do médium. Os Instrutores Espirituais já esclareceram a Kardec, no importante capítulo “Do papel do médium nas comunicações espíritas” de O Livro dos Médiuns que essa idéia não corresponde à realidade. A mensagem sempre passa pelo Espírito do médium, mesmo quando ele não guarda disso a

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consciência ao despertar do transe. Vejamos o que dizem no item sexto do parágrafo 223:

O Espírito que se comunica por um médium transmite diretamente o seu pensamento, ou este tem por intermediário o Espírito do médium?

“É o Espírito do médium que é o intérprete, porque está ligado ao corpo que serve para falar e por ser necessária uma cadeia entre vós e os Espíritos que se comunicam, como é preciso um fio elétrico para comunicar à grande distância uma notícia e, na extremidade do fio, uma pessoa inteligente que a receba e transmita.”

Compreendemos então que, em última instância, o comando do veículo físico só pode ser feito pelo seu próprio “dono”. Poderíamos dizer que o corpo material é feito “sob medida” para cada Espírito, e que não “serve” para nenhum outro. O Espírito estranho não tem como agir diretamente sobre as células materiais formadas sob a influência de outro Espírito e para o seu próprio uso.

É interressante notar que nas questões seguintes à transcrita os Espíritos frisam mesmo enfrentando uma oposição inicial de Kardec que essa é uma regra absoluta, sem exceções, nem mesmo na mediunidade dita “mecânica”, ou ainda nos casos de efeitos físicos onde uma mensagem inteligente é transmitida (tiptologia, escrita por meio de pranchetas etc). Vemos, na questão 10 do referido parágrafo, que os Espíritos expressam indiretamente sua desaprovação a esse modo de denominar a mediunidade na qual o médium não guarda consciência do conteúdo da cominicação: o médium jamais atua como máquina, mecanicamente.

Resumindo o conteúdo desta seção:

• O perispírito desempenha papel essecial em todos os processos mediúnicos.

• A faculdade mediúnica liga-se à possibilidade de o perispírito desvincular-se parcialmente do corpo físico durante a vigília.

• A comunicação não se efetiva sem que haja sintonia entre os perispíritos do médium e do Espírito.

• A comunicação espiritual, ainda que de efeitos físicos, sempre passa pelo Espírito do médium.

5. As modalidades mediúnicas

Um aspecto importante dos esclarecimentos de André Luiz é que permitem compreender não somente como se dá o fenômeno mediúnico, mas também o porquê da existência de diferentes modalidades de mediunidade. Observamos, pelos trechos citados, que a faculdade mediúnica será deste ou daquele tipo conforme a região do organismo em que as células do perispírito apresentem maiores possibilidades de desvinculação das que lhe correspondem no corpo físico. Desse modo, segundo o exemplo dado, se for nos órgãos da visão que ocorre a maior liberdade das células do perispírito, a mediunidade assumirá a forma de vidência; se nos órgãos da audição, a de audiência; se nos da fala, a de psicofonia, e assim por diante.

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Devemos notar, no entanto, que os órgãos a que se refere André Luiz são, conforme se depreende de outras passagens de sua obra, não tanto os órgãos periféricos olhos, ouvidos, mãos etc. , mas fundamentalmente as regiões do cérebro responsáveis por seu comando. De fato, a ciência mostrou que há no cérebro grupos de neurônios (células nervosas) mais ou menos especializados para as diversas faculdades sensoriais e motoras. No caso da visão, por exemplo, tais neurônios recebem, através do nervo óptico, os impulsos elétricos gerados na retina do olho, sinais esses que a alma interpreta como imagens. O mesmo se dá, mutatis mutandis, com os demais sentidos. No caso das funções motoras, ao comando da alma determinados centros cerebrais enviam, através dos diferentes nervos, impulsos elétricos aos músculos, resultando daí os movimentos corporais.

Kardec dividiu os médiuns em duas grandes categorias: os de efeitos físicos e os de efeitos intelectuais. Os primeiros são “aqueles que têm o poder de provocar efeitos materiais, ou manifestações ostensivas”; os segundos, “os que são mais especialmente próprios a receber e a transmitir comunicações inteligentes” (O Livro dos Médiuns, parágrafo 187). Para fins didáticos, é conveniente subdividir a categoria de efeitos inteligentes em dois grupos: efeitos sensoriais (percepção da realidade espiritual na forma de uma impressão dos sentidos) e efeitos intelectuais propriamente ditos (transmissão de uma mensagem inteligente pela palavra escrita, oral, por gestos etc.).

Apresentaremos agora um quadro sinótico com os principais tipos de fenômenos mediúnicos, associados às diversas modalidades mediúnicas. Trata-se de uma adaptação do que foi elaborado por Jayme Cerviño em seu livro Além do Inconsciente, reunindo apenas as modalidades mais importantes. Nesse interessante e original livro, o autor infere, a partir de estudos clássicos da psicologia experimental e da neurofisiologia, bem como de investigações sobre os fenômenos espíritas, quais regiões do encéfalo estariam associadas às diferentes categorias de fenômenos espíritas.7

7 Note-se que, como toda classificação, esta não é absoluta, pois o estabelecimento de fronteiras nítidas entre diferentes modalidades mediúnicas não é possível. Lembremos ainda que o encéfalo é a parte do sistema nervoso contida na caixa craniana; o córtex cerebral corresponde à parte mais externa desse órgão, e coordena a inteligência, os sentidos, os reflexos condicionados ou adquiridos; o subcórtex, que inclui vários órgãos da base do encéfalo tálamo, hipotálamo, cerebelo é a sede dos reflexos incondicionados ou inatos: instintos, atividades fisiológicas, emoções.

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intuição Efeitos estritamente psicografia intelectuais psicofonia (córtex frontal) psicopraxia

EFEITOS INTELECTUAIS (mediunidades de expressão cortical) vidência

Efeitos sensoriais audiência (córtex extrafrontal) sensitividade

sons Telergia luzes movimentos curas EFEITOS FÍSICOS (mediunidades de Teleplastia materializações expressão subcortical) Somatização transfiguração estigmatização

6. O exercício da mediunidade

Na seção 2 deste trabalho vimos que se deve fazer uma distinção clara entre a mediunidade, enquanto faculdade, e o seu uso ou exercício. Se a faculdade em si é neutra, o mesmo não vale para o seu uso, que pode ser bom ou mau, dependendo da condição moral do médium.

Na Introdução de O Livro dos Médiuns Kardec destaca entre os objetivos da obra a orientação para que a mediunidade seja empregada de modo útil. Um requisito essencial para isso é a compreensão de sua natureza e mecanismos, no que o Espiritismo tem contribuído de forma decisiva. Respeitando a liberdade humana, ele não poderia prescrever normas de conduta para os médiuns de maneira cega, impositiva, sem um esclarecimento racional da sua necessidade. Éfacil constatar a justeza da afirmação de Kardec, nessa mesma Introdução, de que “as dificuldades e os desenganos com que muitos topam na prática do Espiritismo se originam na ignorância dos princípios desta ciência”.

A preocupação com a compreensão e o exercício corretos da mediunidade vem sendo partilhada pelos espíritas sérios, que se conscientizaram da necessidade do crescimento espiritual do médium para que sua faculdade seja bem empregada. Muitos dos grandes autores espíritas dos dois planos da vida nos têm legado estudos e lições preciosas sobre a mediunidade e seu objetivo. Procuraremos, no que se vai seguir, compilar alguns desses ensinamentos.

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Comecemos, no entanto, com O Livro dos Médiuns, em cujo parágrafo 226 Kardec pergunta aos Espíritos (no 3):

Os médiuns que fazem mau uso de suas faculdades, que não se servem delas para o bem, ou que não as aproveitam para se instruírem, sofrerão as conseqüências dessa falta?

“Se delas fizerem mau uso, serão punidos duplamente, porque têm um meio a mais de se esclarecerem e não o aproveitam. Aquele que vê claro e tropeça é mais censurável do que o cego que cai no fosso.”

A questão da responsabilidade moral do uso da mediunidade é semelhante à das demais faculdades do homem. Aquele que emprega mal a inteligência, a palavra, os dotes artísticos ou a força física arcará com as conseqüências desse emprego, devendo expiar e reparar as faltas cometidas. No caso da mediunidade há um agravante, conforme se salienta na resposta dada, pois ela é poderoso recurso iluminativo.

É por meio da mediunidade que nos certificamos de nossa natureza imortal, fato de suma importância, em torno do qual gira todo o Espiritismo e sua doutrina moral. É ela que nos desvenda a vida futura, possibilitando-nos conhecer de modo abrangente os efeitos de nossas ações. Ajuizaremos então com mais acerto sobre o que nos convém ou não fazer, com vistas à nossa felicidade integral.

Para nós, os encarnados, a mediunidade constitui advertência contra o equívoco de tudo considerarmos do ponto de vista de nossos interesses materiais e imediatos, incentivando-nos a lutar contra o egoísmo, o embrutecimento dos prazeres, a estagnação do conhecimento.

Para os desencarnados sofredores, revoltados ou aturdidos, representa muitas vezes a via preferencial de despertamento, possibilitando-lhes retomar o progresso espiritual. A maioria das instituições espíritas em nosso país hoje em dia centraliza sua atuação mediúnica precisamente nessa tarefa, tão louvável pelos benefícios que espalha, mas também tão delicada em sua condução, exigindo muito preparo da equipe, quer no que concerne ao conhecimento doutrinário e à disciplina, quer quanto ao espírito fraterno e à devoção incondicional ao bem do próximo.

A esse respeito adverte Emmanuel no capítulo “Examinando a mediunidade” do livro Encontro Marcado:

O exercício da mediunidade nas tarefas espíritas exige larga disciplina mental, moral e física, assim como grande equilíbrio das emoções.

Na obra Educação e Vivência, lição “Mediunidade e problemas”, o Espírito Camilo tece as seguintes considerações, ainda dentro desse tópico:

Tristemente, porém, muitas dessas criaturas que se sabem ou se imaginam médiuns não são bafejadas pelos recursos de amadurecido estudo, a fim de que compreendam o que é que se passa nesse vasto território dos fenômenos psíquicos.

Seria de esperar que os indivíduos que se embrenham pelos bosques das percepções mediúnicas fossem caindo em si, aprendendo que todos terão que dar conta desses talentos formidáveis que lhes

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são concedidos, nas experiências terrenas, na condição de empréstimo, proporcionando liberdade e ventura íntimas, logrando evadir-se dos tormentosos episódios do pretérito culposo ou negligente.

E em Cintilação das Estrelas (capítulo 32) esse lúcido Espírito prossegue no assunto:

Em mediunidade é importante que o médium se aplique em melhorar-se a si próprio, ampliando as percepções, iluminando-se a cada hora, nas lutas que deve enfrentar, na pauta do cotidiano.

O desenvolvimento da mediunidade marcha ladeando o desenvolvimento do médium. Quanto melhor o indivíduo, maior a sua fulgência mediúnica no bem.

Aprimore-se o homem para que se lhe ampliem as posições de sensibilidade mediúnica.

Têm-se infelizmente observado muitos agrupamentos mediúnicos descuidados quanto às superiores finalidades da mediunidade, bem como quanto às diretrizes doutrinárias que devem guiar sua prática. Não raro desenvolvem suas atividades de forma ritualística, tratando os médiuns como simples máquinas de comunicação. No momento do intercâmbio, os trabalhadores assumem posturas formais, como que denotando concentração e devoção ao bem, mas que nem sempre se fazem acompanhar das atitudes íntimas correspondentes. Manoel Philomeno de Miranda comentou esse tópico no capítulo intitulado “Mediunidade e viciação”, do livro Sementeira da Fraternidade (p. 123):

O médium é filtro por cuja mente transitam as notícias da vida além-da-vida.

Nesse sentido, consideramos a concentração mental de modo diverso dos que a comparam a interruptor de fácil manejo que, acionado, oferece passagem à energia comunicante, sem mais cuidados... A concentração, por isso mesmo, deve ser um estado habitual da mente em Cristo, e não uma situação passageira junto ao Cristo.

Já analisamos na seção 3 a situação na qual o aparecimento da faculdade mediúnica se dá juntamente com desequilíbrios físico-espirituais variados, destacando o erro dos que consideram tais distúrbios como uma conseqüência da mediunidade em si. Em Educação e Vivência (p. 111), Camilo enfoca outro ângulo dessa questão:

A decantada “mediunidade de provas” não passa de episódio no qual alguém em provas e sérias expiações recebeu da Divina Misericórdia as excelênicas da sensibilidade mediúnica, através de cujas portas será chamado ou convocado à assunção de responsabilidades, bem como ao cumprimento dos deveres para com Deus, através do próximo.

Dessa forma a mediunidade, mesmo quando se apresente assinalada por impertinentes padecimentos dos médiuns, representa para eles a mão da Celeste Providência evitando dores maiores e tormentos mais acerbos.

A origem do nosso sofrimento, da nossa aflição, não reside na mediunidade, mas a bagagem de desacertos que ainda trazemos, acumulada nesta e em vidas pregressas. É por isso que nossos recursos mediúnicos, neutros em si memos, amiúde ainda se ligam aos mundos de sombra. Mal empregada, a mediunidade significará o cultivo da ignorância, a disseminação da dúvida e da mentira, o insuflamento do

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egoísmo e do orgulho, da vaidade e do personalismo, o verbo e o texto degradantes, a manipulação de forças mentais deletérias, a porta aberta às obsessões.

No capítulo 39 do livro Sementeira da Fraternidade, Vianna de Carvalho descreve a mediunidade como “canal cósmico por onde transitam seguras as consolações e esperanças para o atribulado espírito humano” (p. 179), destacando outro aspecto da mediunidade: o consolo que prodigaliza ao homem em sua vida de incertezas e de dores. Que de mais belo existe do que saber que o abismo que se imagina existir entre nós e os entes queridos que já partiram não é intransponível; que os sofrimentos que não conseguimos evitar têm causas justas ligadas ao nosso passado!...

Dádiva com que a misericórdia divina nos favorece, informando-nos de nossa natureza de seres imortais, a mediunidade bem empregada reveste as formas de esclarecimento acerca da vida além-túmulo, de consolo para os que perderam a esperança, de advertência salvadora para os equivocados, de amparo para os que cambaleiam, de recursos terapêuticos para os que enfermaram, de despertamento para os sofredores e os trânsfugas do dever que já cruzaram a aduana da morte. Daí a necessidade de desenvolvermos esse abençoado talento, nos trabalhos da caridade, nos exercícios constantes de benevolência para com todos, indulgência para com as imperfeições dos outros, de perdão das ofensas, conforme a questão 886 de O Livro dos Espíritos.

Reconheçamos, acima de tudo, que mais importante do que sermos bons médiuns, no que toca à faculdade, é sermos médiuns bons, a serviço de Jesus.

Referências bibliográficas

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. Evolução em Dois Mundos. (Médiuns Francisco Cândido Xavier e Waldo Vieira.) 1a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, 1959.

CAMILO. Cintilação das Estrelas. (Médium José Raul Teixeira.) Niterói, Fráter, 1992.

. Educação e Vivência. (Médium José Raul Teixeira.) Niterói, Fráter, 1993.

CERVIÑO, J. Além do Inconsciente. 2a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, 1968.

CHIBENI, S. S. “Espiritismo e ciência”, Reformador, maio de 1984, pp. 144-47 e 157-59.

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. “A excelência metodológica do Espiritismo”, Reformador, novembro de 1988, pp. 328-333, e dezembro de 1988, pp. 373-378.

. “O paradigma espírita”, Reformador, junho de 1994, pp. 176-80.

EMMANUEL. O Consolador. (Médium Francisco Cândido Xavier.) 8a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, 1940.

. Encontro Marcado. (Médium Francisco Cândido Xavier.) 6a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira.

JOANNA DE ÂNGELIS. Estudos Espíritas. (Médium Divaldo P. Franco.) 2a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, 1982.

KARDEC, A. Le Livre des Esprits. Paris, Dervy-Livres, s.d. (dépôt légal 1985).

. Instruction Pratique sur les Manifestations Spirites. Paris, La Diffusion Scientifique, 1986.

. Le Livre des Médiums. Paris, Dervy-Livres, s.d. (dépôt légal 1978). O Livro dos Médiuns. Trad. Guillon Ribeiro, 59a ed., revista, Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s.d.

. L’Évangile selon le Spiritisme. (Reprodução fotográfica da 3a edição francesa.) 1a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, 1979.

. Oeuvres Posthumes. Paris, Dervy-Livres, 1978. Obras Póstumas. Trad. Guillon Ribeiro, 18a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s.d.

. L’Obsession. (Extratos da Revue Spirite.) Farciennes, Éditions de L’Union Spirite, 1950.

PEREIRA, Y.A. Devassando o Invisível. 4a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, 1963.

PHILOMENO DE MIRANDA, Manoel. “Mediunidade e viciação”, in: Sementeira da Fraternidade. (Ditado por Espíritos diversos a Divaldo Pereira Franco.) 3a ed., Salvador, Livraria Espírita Alvorada Editora, 1979. Capítulo 25, pp. 121-24.

VIANNA DE CARVALHO. “Hipnose e mediunidade”, in: Sementeira da Fraternidade. (Ditado por Espíritos diversos a Divaldo Pereira Franco.) 3a ed., Salvador, Livraria Espírita Alvorada Editora, 1979. Capítulo 39, pp. 177-81.

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ESTUDO SOBRE O PASSE

Clarice Seno Chibeni

Índice

1. Introdução2. O passe e o conceito de cura.3. O passe e a finalidade do centro espírita.4. Os mecanismos do passe.5. A aplicação do passe.6. O passista: Requisitos morais.7. O passista: Requisitos físicos.8. O enfermo.9. Quando receber o passe.10.O recinto do passe.11.Os efeitos do passe.12.A água fluidificada.13.Jesus - O Divino Modelo.14.Referências bibliográficas.

1. Introdução

"Passes"

"E rogava-lhe muito, dizendo: Minha filha está moribunda; rogo-te que venhas e lhe imponhas as mãos para que sare, e viva" - Marcos 5: 23.

"Jesus impunha as mãos nos enfermos e transmitia-lhes os bens da saúde. Seu amoroso poder conhecia os menores desequilíbrios da Natureza e os recursos para restaurar a harmonia indispensável.

"Nenhum ato do Divino Mestre é destituído de significação. Reconhecendo essa verdade os apóstolos passaram a impor as mãos fraternas em nome do Senhor e tornavam-se instrumentos da Divina Misericórdia.

"Atualmente, no Cristianismo redivivo, temos, de novo, o movimento socorrista do Plano Invisível, através da imposição da mãos. Os passes, como transfusões de forças psíquicas, em que preciosas energias espirituais fluem

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dos mensageiros do Cristo para os doadores e beneficiários, representam a continuidade do esforço do Mestre para atenuar os sofrimentos do mundo.

"Seria audácia por parte dos discípulos novos a expectativa de resultados tão sublimes quanto os obtidos por Jesus junto aos paralíticos, perturbados e agonizantes.

"O Mestre sabe, enquanto nós outros estamos aprendendo a conhecer. É necessário, contudo, não desprezar-lhe a lição, continuando, por nossa vez, a obra de amor, através das mãos fraternas.

"Onde exista sincera atitude mental do bem, pode estender-se o serviço providencial de Jesus.

"Não importa a fórmula exterior. Cumpre-nos reconhecer que o bem pode e deve ser ministrado em seu nome."

Emmanuel (Caminho, Verdade e Vida, cap. 153).

2. O passe e o conceito de cura

A Organização Mundial da Saúde considera que a saúde é o completo bem estar físico, mental e social. Nós, espíritas, anuímos a essa definição; só que admitimos que toda doença de alguma gravidade tem uma origem espiritual. A ação moral desequilibrada do Espírito afeta o perispírito; e estando o perispírito intimamente ligado ao corpo físico, seu desajuste vibratório afeta-o, e ele adoece.

Em sua essência profunda, o passe é a mobilização ativa de nosso amor em favor do bem do semelhante. Jesus, o Divino Modelo, ensinou-nos a fazê-lo em diversas e bem conhecidas passagens de sua vida. Na página que fizemos figurar como introdução destes apontamentos, por exemplo, Emmanuel comenta o caso de Jairo, que procurou Jesus, movido por ardente fé, implorando pela filha, em estado de morte aparente. Atendendo-lhe ao pedido, Jesus vai até sua casa e, convocando-a à vida, restaura-lhe prontamente a saúde.

No versículo 9 do décimo capítulo de seu Evangelho, Lucas registra importante recomendação de Jesus aos discípulos: "E curai os enfermos que nela houver e dizei-lhes: É chegado a vós o Reino de Deus." Entendemos que o Mestre se reportava aqui a dois tipos de cura:

1. Os recursos fluídicos benéficos, restauradores do corpo: o passe.2. Os recursos do esclarecimento, que propiciam a cura integral e

definitiva do homem, sobrepondo-se a todas as terapias que se têm criado no mundo.

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A começar por Allan Kardec, praticamente todos os grandes autores espíritas dedicaram muita atenção ao passe e à questão da saúde integral do ser humano. Eis algumas passagens significativas a esse respeito:

O passe não é unicamente transfusão de energias anímicas. É o equilibrante ideal da mente, apoio eficaz de todos os tratamentos. (André Luiz, Opinião Espírita, cap. 55, p. 180.)

Para evitar essas recidivas, é necessário que o remédio espiritual ataque o mal em sua base [...], é preciso tratar, ao mesmo tempo, o corpo e a alma. (Abade Príncipe de Hohenlohe,Revue Spirite, outubro de 1867.)

O maior milagre que Jesus operou, o que verdadeiramente testa a sua superioridade, foi a revolução que os seus ensinos produziram no mundo, mau grado à exigüidade dos seus meios de ação. (Kardec, A Gênese, cap. 15, § 63.)

Sabemos que essa "revolução" a que se refere Kardec é o ensino e a exemplificação do amor, do bem, da fraternidade e todas as demais virtudes nascidas desses belos sentimentos, que estabelecem o Reino de Deus em nosso Espírito, adornando-o com as lindas e perfumosas flores do jardim do Evangelho.

Como almejar à cura total dos nossos desequilíbrios orgânicos e espirituais, se ainda agasalhamos em nosso ser o orgulho, o egoísmo e todas as mazelas deles decorrentes?

Como sararmos da úlcera, da alergia desconfortável, da artrite deformante, do coração em descompasso, se a ira e o grito de cólera ainda ecoam em nossa alma?

Como almejarmos o fim da ansiedade, da depressão e todas as distonias anímicas de múltiplas nomenclaturas, se ainda nutrimos ódio, rancor, mágoa, ciúme, inveja, pensamentos sombrios? Como, se a excelsa virtude a mansidão cantada por Jesus em suas bem-aventuranças (Mateus 5: 5-12) ainda não se instalou em nossos corações?

Como pretendermos ter o equilíbrio físico e psíquico, se vivemos em guerra com a sociedade, com o vizinho menos evoluído, com os familiares em processo de reajuste, com o nosso grupo de trabalho? Quantas vezes até mesmo em nossas lides na casa espírita nos deixamos envolver por sentimentos contrários àqueles que Jesus nos ensinou: mágoas, revoltas, melindres, que constituem sombras densas em nossos corações, enfermando-nos?

Como poderemos ser felizes e saudáveis, se a ganância das posses materiais nos absorvem todo o tempo e as energias? Como, se nos esquecemos da busca dos tesouros imperecíveis que não são consumidos pelas traças, pela ferrugem e pelos ladrões? Além de se constituírem libertação das dores, dos sofrimentos, das enfermidades, os tesouros espirituais são também passaporte

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para as moradas celestes, como prometeu Jesus, que partiria para nos preparar o lugar no "céu" para aquele que seguisse os seus ensinos (João 14: 1-3).

Onde buscar a saúde, se sorvemos os venenos dos tóxicos, do álcool, do tabaco, entregando-nos ainda aos excessos da alimentação, do sexo e tantos outros? Como seguir o preceito sublime de Jesus - amar o próximo -, se não somos capazes de amar a nós próprios, mantendo vícios e paixões que desgastam a nossa harmonia orgânica?

Serão de pouca valia os recursos da medicina da Terra e do Céu, enquanto não aprendermos os caminhos de Jesus. Palmilhando esses caminhos, teríamos menos necessidade de hospitais, de hospícios, de presídios, de creches, de asilos ...

A grande Cura proposta pelo Espiritismo deve ser o cumprimento de um sério e amplo programa de iluminação interior, apoiado na prática do bem, na vivência cristã constante.

3. O passe e a finalidade do centro espírita

O Centro Espírita - unidade fundamental do Movimento Espírita -, "para bem atender às suas finalidades, deve ser núcleo de estudo, de fraternidade, de oração e de trabalho, com base no Evangelho de Jesus, à luz da Doutrina Espírita". Desviá-lo dessa diretriz é comprometer a causa a que se pretende servir.

Editorial de Reformador, março de 1992.

O passe foi incluído nas práticas do Espiritismo como um auxiliar dos recursos terapêuticos ordinários. É, portanto, um meio e não a finalidade do Espiritismo. No entanto, muitas pessoas procuram o centro espírita em busca somente da cura ou melhora de seus males físicos, psicológicos e dos distúrbios ditos "espirituais".

Geralmente, as pessoas que assim procedem são nossos irmãos que desconhecem os fundamentos do Espiritismo. Muitos vêem no Espiritismo mais uma religião, criada por Kardec. Outros ligam-no somente à mediunidade, temendo sua prática, que envolveria o relacionamento com "almas do outro mundo". Ainda outros associam-no a curas, e mesmo à fórmulas místicas para a solução de problemas financeiros, conjugais, etc. Há aqueles que, sem nada conhecer, tomam passes freqüentemente, por hábito, mesmo sem estarem necessitando. Isso tudo resulta do desconhecimento doutrinário, de interpretações pessoais, da disseminação de conceitos errôneos.

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É dever do centro espírita, por meio do seu corpo de trabalhadores, esclarecer os que o procuram acerca dos objetivos maiores do Espiritismo, que gravitam em torno da libertação da criatura das amarras da ignorância das leis divinas, alçando-a à perfeição.

Bem orientado, o centro espírita é um foco de luz na Terra, que ilumina o saber e o amor, a razão o e sentimento. Daí ele ser a um só tempo:

Escola - que possibilita ao ser humano, pelo estudo constante disciplinado, inteirar-se das sábias leis divinas que regulam o seu destino.

Hospital - onde são socorridos os acidentados da alma pelos recursos fluídicos e espirituais, como o passe, a água fluidificada, a prece, a desobsessão, a palavra de esperança e encorajamento, o estudo evangélico e doutrinário.

Oficina de trabalho no bem - onde, ajudando o próximo carente, o ser ajuda-se a si próprio, aprendendo e vivenciando os valores cristãos, a verdadeira caridade, tal qual definida na resposta à questão 886 de O Livro dos Espíritos: "Benevolência para com todos, indulgência para as imperfeições dos outros, perdão das ofensas".

4. Os mecanismos do passe

Muitas vezes, a fé que leva as pessoas a procurarem os recursos do passe é cega. Desconhecem os seus mecanismos, os seus efeitos e sua aplicação. A fé cega é mística. A fé verdadeira é uma força atrativa e fixadora das energias benéficas.

O Espiritismo possui elementos para o devido esclarecimento acerca dos mecanismos do passe. O passe não é algo sobrenatural. Ele ocorre com base em leis naturais que regulam a ação dos fluidos responsáveis por todos os fenômenos espirituais. São leis diversas das que regem os fenômenos da matéria, do mundo corporal. A ciência oficial, que têm como objeto exclusivo o estudo da matéria, não pode explicar o passe.

Para entendermos os mecanismos do passe, é importante estudarmos os fluidos e suas leis, o que inclui a análise do perispírito, suas funções, suas propriedades. Tudo isso encontra-se exposto nas obras básicas de Allan Kardec, notadamente no capítulo 14 de A Gênese, bem como em outras obras sérias, como as de André Luiz, Léon Denis, Yvonne Pereira, Philomeno de Miranda, etc.

Do ponto de vista "técnico", o passe é a ação dirigida de certos fluidos. Sua aplicação processa-se de perispírito a perispírito. E por estar o perispírito ligado ao corpo físico célula a célula, exerce sobre ele preponderante

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influência. Daí se compreende, por exemplo, o bem estar físico que decorre da ação do passe. A energia salutar transmitida ao perispírito repercute no corpo, nos órgãos enfermos, por um processo de ressonância. É por isso que o passista não necessita tocar o corpo do paciente enfermo.

No referido capítulo 14 A Gênese, § 31, há uma explicação clara de como ocorre essa transmissão fluídica medicamentosa. Vejamos este trecho:

Como se há visto, o fluido universal é o elemento primitivo do corpo carnal e do perispírito, os quais são simples transformações dele. Pela identidade da sua natureza, esse fluido, condensado no perispírito, pode fornecer princípios reparadores ao corpo; o Espírito, encarnado ou desencarnado, é o agente propulsor que infiltra num corpo deteriorado uma parte da substância de seu envoltório fluídico.

Notemos a referência à ação do perispírito no passe: "parte da substância do seu envoltório fluídico", que é o perispírito. E continua o texto:

A cura se opera mediante a substituição de uma molécula malsã por uma molécula sã. O poder curativo estará, pois, na razão direta da pureza da substância inoculada; mas depende também da energia da vontade que, quanto maior for, tanto mais abundante emissão fluídica provocará e tanto maior força de penetração dará ao fluido. Depende ainda das intenções daquele que deseje realizar a cura, seja homem ou Espírito. Os fluidos que emanam de uma fonte impura são quais substâncias medicamentosas alteradas.

Logo adiante, no parágrafo 33, Kardec enumera as diversas maneiras em que a ação fluídica pode produzir-se:

1o - Pelo próprio fluido do magnetizador; é o magnetismo propriamente dito, ou magnetismo humano, cuja ação se acha adstrita à força e, sobretudo, à qualidade do fluido.

Trata-se, pois, do passe que provém somente do passista encarnado ("magnetizador"). Era o recurso utilizado por Jesus para restabelecer as saúde dos enfermos. A força fluídica abundante, penetrante, pura no mais alto grau que se pode ajuizar, saía dele próprio. No livro Pão Nosso, Emmanuel legou-nos página intitulada "Magnetismo de Jesus", que muito elucida a grandeza de seu magnetismo balsâmico.

2o - Pelo fluido dos Espíritos, atuando diretamente e sem intermediário sobre um encarnado, seja para o curar ou acalmar um sofrimento, seja para provocar o sono sonambúlico espontâneo, seja para exercer sobre o indivíduo uma influência física ou moral qualquer. É o magnetismo espiritual, cuja qualidade está na razão direta das qualidades do Espírito.

É o passe que provém unicamente dos Espíritos desencarnados. Ninguém fica ao abandono quanto aos medicamentos do "Céu". Pelos eflúvios dos missionários do Mundo Maior quantas curas, quantas melhoras ocorrem, quantas esperanças se espalham! Mesmo aqueles que ainda não aprenderam a buscar os recursos do passe estão sempre sendo socorridos pelo Alto, nos lares, no tumulto das ruas, no silêncio dos hospitais, nas guerras, em todo lugar.

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3o - Pelos fluidos que os Espíritos derramam sobre o magnetizador, que serve de veículo para esse derramamento. É o magnetismo misto, semi-espiritual, ou, se o preferirem,humano-espiritual. Combinado com o fluido humano, o fluido espiritual lhe imprime qualidades de que ele carece. Em tais circunstâncias, o concurso dos Espíritos é amiúde espontâneo, porém, as mais das vezes, provocado por um apelo do magnetizador.

Neste terceiro e último processo há o passe "misto", em que cooperam os Espíritos e os encarnados. Quando se fala em passes nas casas espíritas hoje em dia, em geral se entende esse tipo de passe. Nele o "magnetizador" é também um médium. Ele recebe para dar. É o intermediário entre os Espíritos e o enfermo, contribuindo, ao mesmo tempo, com seus próprios recursos. Muitas vezes o enfermo necessita de fluidos mais "materiais", que os Espíritos por si sós não podem fornecer. Compreende-se, então, a importância dessa modalidade de passe.

Para complementar o estudo de A Gênese, vamos transcrever os itens 1 a 6 do parágrafo 176 de O Livro dos Médiuns, em que Kardec trata dos médiuns curadores.

1. Podem considerar-se as pessoas dotadas de força magnética como formando uma variedade de médiuns?

" Não há que duvidar."

2. Entretanto, o médium é um intermediário entre os Espíritos e o homem; ora o magnetizador, haurindo em si mesmo a força de que se utiliza, não parece que seja intermediário de nenhuma potência estranha.

"É um erro: a força magnética reside, sem dúvida, no homem, mas é aumentada pela ação dos Espíritos que ele chama em seu auxilio. Se magnetizas com o propósito de curar, por exemplo, e invocas um bom Espírito que se interessa por ti e por teu doente, ele aumenta a tua força e a tua vontade, dirige o teu fluido e lhe dá as qualidades necessárias."

3. Há, entretanto, bons magnetizadores que não crêem nos Espíritos.

"Pensas então que os Espíritos só atuam nos que crêem neles? Os que magnetizam para o bem são auxiliados por bons espíritos. Todo homem que nutre o desejo do bem os chama, sem dar por isso, do mesmo modo que, pelo desejo do mal e pelas más intenções, chama os maus."

4. Agiria com maior eficácia aquele que, tendo a força magnética, acreditasse na intervenção dos Espíritos?

"Faria coisas que consideraríeis milagre."

5. Há pessoas que verdadeiramente possuem o dom de curar pelo simples contato, sem o emprego dos passes magnéticos?

"Certamente; não tens disso múltiplos exemplos?"

6. Nesse caso, há também ação magnética, ou apenas influencia dos Espíritos?

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"Uma e outra coisa. Essas pessoas são verdadeiros médiuns, pois que atuam sob a influencia dos Espíritos; isso, porém, não quer dizer que sejam quais médiuns escreventes, conforme o entendes."

Ao doarmos as nossas próprias energias somos "magnetizadores", mas podemos ao mesmo tempo ser médiuns, quando nossos recursos são aumentados e enriquecidos pelos Espíritos. Indivíduos não espíritas, não cristãos, não filiados a qualquer credo religioso, mas que laboram no bem em outros campos do amor, podem também ceder fluidos curadores para quem necessite, inclusive com o auxílio de Espíritos, sem se darem conta disso. O que importa é ser bom, é amar o próximo como ensinou Jesus.

5. A aplicação do passe

a) Preparo

Para lograr bom resultado, todo trabalho espiritual necessita de preparo. No caso do passe, deve haver preparo tanto do passista como do enfermo. Da parte do primeiro, porém, esse preparo deve ser constante, em vista das emergências que ocorrem no centro espírita e fora dele.

O ideal seria que toda aplicação de passe fosse precedida de esclarecimento doutrinário sobre os fluidos, a fé, a oração, etc. Com o estudo e as reflexões evangélicas o ambiente se tranqüiliza e os fluidos atuam de forma mais adequada.

Por meio dessas atividades preparatórias, quem vai receber o passe aprende a buscar sua melhoria não somente pelo passe, mas pela eliminação de suas imperfeições morais, causa última dos seus males. Essa é a terapêutica de profundidade proposta pelo Espiritismo.

Quanto ao passista, não há necessidade que receba antes o chamado "passe de limpeza", a fim de estar mais apto para aplicar o passe. Essa "limpeza" deve ser obtida por seus esforços em seguir as normas apontadas nas seções 6 e 7. Não é submetendo-se a uma operação momentânea que poderá tornar-se instrumento dócil e puro dos Espíritos Superiores.

b) Técnicas

Perguntado sobre qual seria a melhor técnica para a transmissão do passe (O Consolador, no 99), Emmanuel respondeu:

O passe deverá obedecer à fórmula que forneça maior percentagem de confiança, não só a quem o dá, como a quem o recebe. Devemos esclarecer, todavia, que o passe é transmissão de uma força psíquica e espiritual, dispensando qualquer contato físico na sua aplicação.

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Comentando o assunto em seu livro Conduta Espírita (cap. 28), André Luiz, adverte:

Lembrar-se de que na aplicação de passes não se faz precisa a gesticulação violenta, a respiração ofegante ou o bocejo contínuo [...]. A transmissão do passe dispensa qualquer recurso espetacular.

Não há técnicas únicas para aplicação do passe. O passe deve ser simples. Em qualquer caso, dispensam-se quaisquer gestos estranhos, fórmulas místicas e outros recursos espetaculares. É falta de estudo da Doutrina Espírita que tem levado a adoção de práticas estranhas nos trabalhos de passe em muitas casas espíritas.

Detalhando mais o ensino, destaquemos algumas atitudes exteriores comuns que o médium passista deve abolir:

Tilintar dos dedos, esfregar ou tremer as mãos; Tocar o paciente. O passe não é dado no corpo físico, como já salientamos. É recomendável guardar certa distância do paciente. Reflexos. O doador de energias pelo passe não deve se deixar influenciar pelos desarranjos emocionais e enfermiços de certos pacientes. A influencia negativa nunca atinge quem está bem física e espiritualmente, com domínio de suas emoções. É da lei que o bem dilua o mal. André Luiz conta em Nos Domínios da Mediunidade que num trabalho mediúnico se comunicou o Espírito José Maria, altamente perturbado, inferior. A médium que o serviu foi Celina, que era qual "harpa delicada" nas mãos dos Benfeitores, pelos seus dotes morais. André Luiz estranhou que justamente ela fosse a intérprete de tão perversa criatura. O Instrutor Áulus explica, porém: "Quanto aos fluidos de natureza deletéria, não precisamos teme-los. Recuam instintivamente ante a luz espiritual que os fustiga e desintegra". De fato, a ação do bem irradiado por Celina desintegrou os fluidos perniciosos de José Maria. Se a médium não estivesse preparada os danos seriam inevitáveis. Assim também ocorre no passe. Tomar passe após aplicá-lo. É uma pratica dispensável. Muitos passistas empregam-na por desconhecimento dos mecanismos fluídicos; alegam que é para "eliminar as más influências" e se "reabastecer". O passe adequadamente desenvolvido não exaure quem o transmite, muito pelo contrário. No livro Conduta Espírita, André Luiz recomenda-nos "jamais temer a exaustão das forças magnéticas" (cap. 28). O médium passista é canal pelo qual circulam abundantemente as forças radiantes que emanam do "Céu". Em sua obra Nos Domínios da Mediunidade (cap. 17), esse mesmo autor relata um diálogo de seu amigo Hilário Silva com o Instrutor Áulus. Perguntando Hilário se os trabalhadores encarnados que examinavam ministrando o passe não precisariam recear a exaustão, obtém esclarecedora resposta:

De modo algum. Tanto quanto nós, não comparecem aqui com a pretensão de serem os senhores do beneficio, mas sim na condição de beneficiários que recebem para dar. A oração, com o reconhecimento de nossa desvalia, coloca-nos na posição de simples elos de uma cadeia de socorro, cuja orientação reside no Alto. Somos nós aqui, neste recinto consagrado à missão evangélica, sob a inspiração de Jesus, algo semelhante à tomada elétrica, dando passagem à força que não nos pertence e que servirá na produção de energia e luz.

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Quanto ao tempo de duração do passe, compreende-se que não seja fixo. Cabe ao passista usar o bom senso e a inspiração do momento. Demorar muito, principalmente em crianças, não é confortável e causa irritação. Não é aconselhável também acumular fluidos só numa parte do corpo, a cabeça, por exemplo.

6. O passista: Requisitos morais.

Quem pode aplicar o passe? Essa é uma das primeiras perguntas que surgem quando pensamos na programação das atividades de passe nas casas espíritas. O conhecimento da natureza e dos mecanismos do passe nos possibilita inferir que todas as pessoas sadias poderiam, em princípio, aplicar o passe. Todas possuem fluidos, em várias gradações, naturalmente, que podem ser mobilizados pelo amor na direção do semelhante que sofre.

Mas para efetivamente nos qualificarmos como bons servidores do passe, precisamos muito esforço, muita vontade ativa, muita disciplina para irmos adquirindo certas condições mínimas, de que resumidamente trataremos nesta seção e na seguinte.

Ao comentar a passagem evangélica relatada em Mateus 8: 17, Emmanuel ressalta a influência da pureza dos sentimentos de Jesus na promoção da cura, acrescentando que o mesmo se aplica aos nossos esforços na aplicação do passe, embora ainda estejamos imensamente distantes da condição do Cristo:

Se pretendes, pois, guardar as vantagens do passe que, em substância, é ato sublime de fraternidade cristã, purifica o sentimento e o raciocínio, o coração e o cérebro. (Segue-me, cap. "O passe", p. 134)

No capítulo 19 do livro Missionários da Luz, de André Luiz, encontramos estas significativas palavras do Instrutor Alexandre:

O missionário do auxilio magnético, na Crosta ou aqui em nossa esfera, necessita ter grande domínio sobre si mesmo, espontâneo equilíbrio de sentimentos, acendrado amor aos semelhantes, alta compreensão da vida, fé vigorosa e profunda confiança no Poder Divino.

Vemos aqui a imensa gama de conquistas requeridas de todo aquele que se propõe doar fluidos balsamizantes aos necessitados. Logo após, Alexandre faz um esclarecimento que achamos importante transcrever:

Cumpre-me acentuar todavia, que semelhantes requisitos em nosso plano constituem exigências a que não se pode fugir, quando, na esfera carnal, a boa vontade sincera, em muitos casos, pode suprir essa ou aquela deficiência, o que se justifica, em virtude da assistência prestada pelos benfeitores de nossos círculos de ação ao servidor humano, ainda incompleto no terreno das qualidades desejáveis.

O passe é um trabalho de equipe. É comum que os colaboradores encarnados mostrem maior soma de deficiências que os desencarnados, em geral mais

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conscientes de seus deveres e da delicadeza da tarefa. Não podendo os serviços serem prejudicados, já que é o bem do próximo que está em jogo, tais deficiências podem ser supridas pelos Espíritos, quando de nossa parte houver boa vontade e desejo sincero de ajudar. Meditando nisso, vemos como precisamos lutar por nossa melhoria integral!

Continuemos o estudo com André Luiz, acompanhando-lhe o diálogo com Alexandre:

- Ainda mesmo que o operário humano revele valores muito reduzidos, pode ser mobilizado? [...]

- Perfeitamente [...]. Desde que o interesse dele nas aquisições sagradas do bem seja mantido acima de qualquer preocupação transitória, deve esperar incessante progresso das faculdades radiantes, não só pelo esforço próprio, senão também pelo concurso de Mais Alto de que se fez merecedor.

Que resposta profunda! No inicio, Alexandre afirma: "Perfeitamente", acrescentando no entanto que é mais importante o interesse do passista no seu aprimoramento do que em cuidar das coisas do mundo. Temos observado que isso nem sempre ocorre; comumente, a luta espiritualizante é deixada em segundo plano.

Os livros de André Luiz nos têm trazido lições primorosas sobre vários temas. Vamos transcrever mais um trecho do diálogo entre Hilário Silva e o Instrutor Áulus, registrado no capítulo 17 de Nos Domínios da Mediunidade":

- Quer dizer que numa casa como esta [um centro espírita] há colaboradores espirituais devidamente fichados, assim como ocorre com médicos e enfermeiros num hospital terrestre comum?

- Perfeitamente. Tanto entre os homens como entre nós, que ainda nos achamos longe da perfeição espiritual, o êxito do trabalho reclama experiência, horário, segurança, responsabilidade do servidor fiel aos compromissos assumidos. A Lei não pode menosprezar as linhas da lógica.

- E os médiuns [Clara e Henrique]? são invariavelmente os mesmos?

- Sim; contudo, em casos de impedimento justo, podem ser substituídos, embora nessas circunstâncias se verifiquem, inevitavelmente, pequenos prejuízos resultante de natural desajuste.

E um pouco mais adiante:

- Preparam-se, os nossos amigos [Clara e Henrique], à frente do trabalho, com o auxilio da prece?

- Sem dúvida. A oração é prodigioso banho de forças, tal a vigorosa corrente mental que atrai. Por ela, Clara e Henrique expulsam do próprio mundo interior, os sombrios remanescentes da atividade comum que trazem do círculo diário de luta e sorvem do nosso plano, as substâncias renovadoras de que se repletam, a fim de conseguirem operar com eficácia a favor do próximo. Desse modo ajudam e acabam por ser firmemente ajudados.

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Quantos ensinamentos para o passista! Quantas diretrizes para o preparo do doador de fluidos! Áulus afirma que o serviço de passe deve ser exercido com a mesma responsabilidade dos médicos que socorrem nos hospitais da Terra. Cada hospital possui a sua equipe de médicos, encarregados cada um de sua área, obedecendo à disciplina que o hospital estipula. Achamos importante a referência ao fichamento dos colaboradores no "hospital" do centro espírita. Como são graves as conseqüências da ausência do passista escalado no dia e hora do passe! Tudo estava programado para que os seus fluidos fossem utilizados, os Espíritos contavam com ele, mas ... Nas substituições apressadas é inevitável o dano geral. Ciente disso, é importante que o passista só falte em situações excepcionais.

Outro ponto fundamental do texto transcrito é a necessidade de o passista recorrer à oração como um meio iluminado para alijar do mundo interior eventuais pensamentos sombrios, remanescentes das atividades do dia, e sorver dos bons Espíritos as substâncias renovadoras, para ajudar com eficácia o enfermo.

Com base na vasta literatura espírita sobre o assunto, tentaremos enumerar agora algumas das diretrizes que o passista deve seguir tanto em sua vivência cotidiana quanto na aplicação do passe.

a) Estudo

Na introdução de O Livro dos Espíritos, na primeira parte de O Livro dos Médiuns e em outras de suas obras, Allan Kardec ressalta a importância do estudo contínuo do Espiritismo, apresentando diversas sugestões de como ele deve ser empreendido. Há muita diferença entre ler um texto e estudá-lo, meditando sobre o seu conteúdo.

No caso do passe, é importante ter conhecimento especializado de sua natureza, seus mecanismos, seus efeitos. No capítulo 14 de O Livro dos Médiuns Kardec indaga se o poder de curar pode ser transmitido (§ 176, no 7). E os Espíritos esclarecem: - "O poder, não; mas o conhecimento de que necessita para exercê-lo, quem o possua".

No já citado capítulo 19 de Missionários da Luz encontramos ainda a exposição de conceitos notáveis sobre o valor do conhecimento para o bom desempenho das tarefas espíritas. Ausência de estudo significa estagnação, emqualquer setor de trabalho.

Acima de tudo, o estudo metódico do Espiritismo desperta nas pessoas o desejo de amar, perdoar sempre, de incorporar em suas almas as virtudes evangélicas, essenciais para uma vida feliz.

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b) Disciplina

Com o trabalho disciplinado, o espírita encontra tempo para cumprir todos os seus deveres e ser mais assíduo e pontual nas tarefas assumidas no centro espírita.

Deve-se lembrar que as tarefas espirituais não são mecânicas. O operário chega na indústria, liga as máquinas e tudo começa a funcionar. As atividades espirituais, porém, precisam de preparo íntimo, meditação, asserenamento físico e mental para serem desenvolvidas a contento.

O respeito à programação estabelecida para os trabalhos do passe é indispensável. Faltar ou chegar atrasado desorganiza o ritmo harmônico das atividades.

c) Amor

Eleger o amor como a base da vida. Ele é a maior mola do nosso progresso, rumo aos cimos onde nos aguardam a paz e a felicidade.

d) Paciência

A paciência é uma virtude imprescindível a quem se dispõe a acolher os irmãos necessitados e aflitos, que muitas vezes chegam ao centro espírita em franco destrambelho psíquico, podendo causar irritação a quem não se lembre de que é alguém que enfermou do espírito.

A afabilidade e a doçura são filhas diletas da paciência. Ouvir com paciência aquele que está em desequilíbrio, ou que desconheça os mecanismo espirituais, já é um avanço no tratamento de muitos males. O bom trabalhador espírita deve adquirir o excelente hábito de ouvir mais do que falar. Que "fale" sobretudo com o coração, pelas emissões do bem.

e) Vivência cristã constante

É muito bom termos ímpetos generosos; mas é melhor ainda que a generosidade seja constante em todas as nossas atitudes. Nos momentos floridos é muito fácil assumir atitudes cristãs. Na hora dos testemunhos expiatórios, dos testes com pessoas difíceis, porém, o grito de cólera, a critica contumaz, os pensamentos menos nobres invadem o nosso ser, ainda próximo da irracionalidade. Como conseqüência, surgem os distúrbios incômodos da depressão, do desânimo, do suicídio, dos processos obsessivos cruéis.

f) Equilíbrio emocional

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O equilíbrio emocional um requisito bastante difícil, mas que pode ser conquistado. Para essa conquista é preciso que não nos desgastemos com mágoas excessivas, paixões, ressentimentos, temores, nervosismo, etc. São estados doentios que expressam a falta de fé nos desígnios divinos. A oração e o serviço ao próximo são notáveis recursos para o equilíbrio emocional.

Devemos abster-nos de dar passe quando em desequilíbrio espiritual, pois os fluidos ficam como que "poluídos".

g) Preparo contínuo

A necessidade de aplicar passe em alguém pode surgir a qualquer momento. Daí a importância de o passista estar sempre preparado, mesmo durante o seu trabalho profissional ou nos momentos de lazer.

Os bons Espíritos precisam contar conosco para as tarefas de emergência, às vezes fora da casa espírita. Podem mobilizar nossos recursos para atender nossos irmãos mais carentes sem mesmo tomarmos consciência disso, na via pública, no ônibus, no local de trabalho, numa visita fraterna, etc.

h) Fé e oração

Devemos ter confiança absoluta na misericórdia e justiça de Deus, lembrando que é dela que, em última instância, provêm os recursos terapêuticos do passe. A prece, a meditação, estabelecem nossa ligação com os emissários divinos, criando um clima excelente para o êxito do trabalho espiritual.

7. O passista: Requisitos físicos.

Depois de havermos apontado alguns dos requisitos morais, tão difíceis de conquistar, faremos alguns comentários sobre as condições físicas de quem ministra o passe.

i) Higiene

A higiene é um dos requisitos básicos para a saúde. Além de beneficiar o passista, a sua higiene representa respeito para os que vão receber o passe.

ii) Alimentação

A alimentação deve ser equilibrada, adequada ao organismo, sem os excessos da gula e do jejum. Hábitos alimentares sadios, com a ingestão de frutas, legumes, verduras fazem bem não só aos passistas, mas a qualquer pessoa. O trabalhador dos serviços de passe e, aliás, da mediunidade em geral, não deve apresentar-se de estômago cheio; nas horas que antecedem as atividades deve

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evitar a ingestão de alimentos de difícil digestão, como carnes e gorduras, de condimentos fortes e de excitantes, como café, chás (exceto de ervas), etc.

iii) Vícios: álcool, fumo, tóxicos

É fácil compreender que uma pessoa que assista a necessitados na área do passe, ou em outras tarefas mediúnicas, deve abster-se completamente de tais vícios. Eles lesam o organismo, obscurecem o raciocínio, impregnam negativamente os fluidos a serem mobilizados a favor do próximo e propiciam a atração de Espíritos inferiores que, mesmo desencarnados, querem continuar cultivando-os. Sabemos do imenso zelo dos bons Espíritos que cooperam nas atividades do passe na casa espírita no sentido de anular a ação maléfica das substâncias tóxicas que ingerimos. Apresentando-nos nessas condições lamentáveis desrespeitamos não apenas esses Espíritos, dando-lhes redobrado trabalho, mas também as pessoas que vão, confiantes, receber o passe.

iv) Conduta sexual

A atividade sexual em si é instintiva, mas o seu uso é moral. O sexo só deve ser exercido com equilíbrio, nobreza, acompanhado do verdadeiro amor.

v) Hábito do Jogo

O hábito do jogo é assunto muito discutido no Movimento Espírita. Alguns segmentos admitem certos jogos, como rifas ou bingos, para ajudar o centro espírita. No entanto, devemos refletir se, acolhendo esse tipo de atividade em nosso meio não estaríamos de alguma forma apoiando a visão de que devemos buscar o ganho material fácil na chamada "sorte", em detrimento do trabalho, por humilde que seja. A manutenção material dos centros de fato constitui problema comum e difícil para os dirigentes, pois os colaboradores nem sempre se dão conta de que lhes cumpre o dever de ajudá-lo materialmente, na medida de suas possibilidades, é claro.

Não apresenta os inconvenientes dos jogos de azar a confecção de produtos, como roupas, alimentos, móveis, etc. e a sua venda, em benefício do centro, desde que ninguém seja moralmente constrangido a participar dessas atividades, e desde que se evite de forma absoluta pedir-se produtos e favores a pessoas não espíritas e políticos.

Alega-se também que os jogos sem apostas servem como distração; um baralho nas manhãs ou tardes domingueiras para passar o tempo, por exemplo. É claro que ao espírita não estão interditas as diversões sadias. Mas será que o verdadeiro espírita dispõe de tanto tempo que precisa jogar para passar? E o tempo para as leituras e estudos edificantes? E o preparo das aulas, a caridade,

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o trabalho fraterno? Será que os grandes luminares do Espiritismo precisaram arranjar passatempos?

8. O enfermo

a) Posição mental para receber o passe

Para que obtenha melhora, as pessoas que buscam o recurso do passe devem ter postura mental adequada. A esse respeito, é interessante consultarmos o item 10 do capítulo 15 de A Gênese. Kardec analisa aí a passagem evangélica da mulher hemorroíssa (Marcos, 5: 25-34), uma das inúmeras curas operadas por Jesus. Vejamos este trecho:

Considerado como matéria terapêutica, o fluido tem que atingir a matéria orgânica, a fim de repará-la; pode então ser dirigido sobre o mal pela vontade do curador, ou atraído pelo desejo ardente, pela confiança, numa palavra: pela fé do doente. Com relação à corrente fluídica, o primeiro age como uma bomba calcante e o segundo como uma bomba aspirante.

Aquele que vai receber o passe deve pautar-se na atitude da mulher hemorroíssa, que foi curada porque, pela sua ardente fé, aspirou, atraiu, assimilou os fluidos amorosos de Jesus. Razão tinha pois o Mestre para dizer-lhe: "Tua fé te salvou".

Sabemos que os fluidos são assimilados pelo perispírito, que possui, dentre outras, a notável propriedade de absorver fluidos ambientes. Constatamos, assim, a grande importância da postura mental e espiritual do enfermo, com o pensamento em prece, em ligação constante com os bons Espíritos, para que o passe seja eficaz.

b) Posição física para receber o passe

Quem vai receber o passe deve ficar na posição que lhe dê mais conforto físico. O passe transmite-se ao perispírito, independentemente da posição do corpo físico. Dependendo do lugar, pode ficar deitado, sentado ou de pé. Mas em qualquer caso, deverá ficar descontraído, respirando normalmente.

Não há necessidade de ficar com as mãos espalmadas para cima, como se fossem "receber" algo material.

Certas pessoas alegam que não se devem cruzar os braços ou as pernas, porque tais posturas dificultariam a "circulação" dos fluidos. Parece-nos, porém, que se não devemos cruzar os membros é apenas porque isso em geral atrapalha a circulação sangüínea e gera tensões musculares.

Sensações de calor, frio, tremor, suor, arrepio, choro podem ocorrer durante o passe. São, geralmente, motivadas por causas psicológicas. O misticismo, de

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que muitos ainda se não desvencilharam, pode provocar efeitos ilusórios variados.

Nem o passista nem o paciente precisam retirar pulseiras, colares, relógios, óculos, sapatos, etc. Tais objetos não interferem no passe, porque são de natureza diversa daquela dos fluidos.

Vemos alguns fumantes que apressam-se em alijar-se momentaneamente do maço de cigarros. A presença dos cigarros não é, em si, o problema. O problema sério é o hábito de fumar, que intoxica o organismo, atuando em sentido contrário ao do passe, quando recebido.

9. Quando receber o passe

Não abuses, sobretudo, daqueles que te auxiliam. Não tomes o lugar do verdadeiramente necessitado, tão só porque os teus caprichos e melindres pessoais estejam feridos.

Emmanuel, Segue-me, p. 134

A ninguém imponhas precipitadamente as mãos.

Paulo, I Timóteo 5: 22

Dessas sábias advertências de Emmanuel e do Apóstolo dos Gentios concluímos que as pessoas só devem buscar os recursos do passe quando têm realmente necessidade. Passe é remédio. E todo remédio só se toma quando necessário, na dose certa e até que se recupere a saúde. Se estamos bem, o passe é dispensável.

No capítulo 28 de Conduta Espírita, André Luiz recomenda-nos "esclarecer os companheiros quanto à inconveniência da petição de passe todos os dias, sem necessidade real, para que esse gênero de auxílio não se transforme em mania."

Se a pessoa não precisa de passe, devemos esclarecê-la a esse respeito, orientando-a para o estudo doutrinário e o serviço ao próximo. Devemos lembrar-nos que os problemas do nosso dia podem ser resolvidos com bom senso, honestidade, equilíbrio e muita disciplina.

Em seu livro Segue-me, Emmanuel assim se expressa sobre a questão de quem necessita do passe: "O passe exprime também gastos de forças, e não deves provocar o dispêndio de energias do Alto, com infantilidades e ninharias" (p. 134).

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Muitas pessoas que buscam o passe deveriam igualmente buscar a ajuda da medicina humana. Allan Kardec advertiu diversas vezes que diante de qualquer distúrbio, deve-se antes de mais nada pesquisar suas possíveis causas orgânicas. Não a função do passe e do Espiritismo substituir os métodos da ciência no tratamento das enfermidades. O Espiritismo visa, em primeiro lugar, a esclarecer a criatura, para que corrija o seu proceder moral, forrando-se assim às necessidades de expiar e de sofrer. Depois, objetiva a suplementar o tratamento médico, renovando os fluidos vitais do enfermo pela aplicação do passe e da água fluidificada.

Quando tudo o que puder ser feito na esfera médica e espírita estiver sendo feito, a Doutrina Espírita nos esclarece que a dor estará sendo necessária para a evolução do enfermo, devendo ser enfrentada com resignação.

Nos que padecem enfermidades irreversíveis o passe produz efeito benéfico, muito ajudando-os a suportar a suas dores, e contribuindo para tornar menos penoso o processo da desencarnação.

Nos casos de obsessão o passe pode contribuir para desligar o obsessor do psiquismo do obsidiado. Mas esse desligamento não constitui terapêutica de base. Obtida assim uma "trégua", é necessário que o hospedeiro das influências maléficas seja orientado a buscar os recursos do Evangelho e da Doutrina Espírita para a sua libertação definitiva, transformando seu padrão mental e moral.

O passe é também usado como tratamento abençoado para os Espíritos sofredores do mundo espiritual. Isso pode ocorrer quando a pessoa encarnada que recebe o passe está intimamente vinculada a um Espírito, que então se beneficia igualmente dos recursos fluídicos. O passe pode também ser ministrado por um Espírito sobre outro, no Mundo Espiritual, como se relata, por exemplo, nos capítulos 22 a 25 do livro Os Mensageiros, de André Luiz.

10. O recinto do passe

De ambiente poluído nada de bom se pode esperar.

André Luiz, Conduta Espírita, cap. 28.

O lugar mais adequado para a transmissão do passe é o centro espírita, que, pela natureza de suas atividades, constitui o núcleo mais importante de assistência a encarnados e desencarnados no que tange ao socorro de ordem espiritual.

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Se possível, deve-se reservar uma sala especial para essa tarefa, na qual se reúnem sublimados recursos fluídicos movimentados pelos pensamentos elevados e pelas preces.

A sala de passes deve ser simples, mas muito limpa, arejada, ensolarada. Os Espíritos auxiliam na preparação do ambiente espiritual, porém não podem usar vassoura, água e sabão.

É desnecessária a sua decoração com quadros e fotos dos fundadores desencarnados. Todo o centro espírita, aliás, dispensa quaisquer objetos de culto, como placas, retratos, bustos, monumentos, recintos com nomes de mentores. Por outro lado, são apreciadas as flores, em vasos ou em latadas nos pátios e jardins, onde os Espíritos e os freqüentadores haurem as energias das plantas e se encantam com o Belo.

Quanto à iluminação da sala de passes, podemos dizer que a luz reduzida pode auxiliar na manipulação dos fluidos pelos Espíritos. Mas é preferível a claridade suave ao escuro completo. Este pode suscitar idéias de misticismo, medo e até malícia nas mentes menos equilibradas.

O passe pode ser aplicado também nos lares, hospitais, creches, trabalho, ruas, etc., com a devida discrição. Se não houver um ambiente reservado, no qual só estejam presentes pessoas que entenderão e contribuirão positivamente com a tarefa, devemos abster-nos de qualquer prática ostensiva. Neste caso, recorreremos à oração silenciosa, pedindo aos Bons Espíritos que aproveitem, se possível, os nossos recursos fluídicos no auxílio ao próximo. Assim, podemos transmitir o passe com um abraço, um aperto de mão ou com um simples olhar de amor. O passe é dado sem ser percebido por curiosos.

Sempre, porém, que o enfermo puder se locomover até o centro espírita, deveremos pedir que o faça, para receber o passe. Dessa forma, também aproveitará as preleções evangélicas e doutrinárias, que devem sempre anteceder a transmissão dos passes, despertando para os valores nobres da vida, meditando sobre suas ações, corrigindo rumos.

Algumas pessoas têm vergonha de serem vistas no centro espírita, e então solicitam que a equipe do passe vá até sua casa. Nesse caso devemos sugerir-lhe a modificação de atitude e, não obtendo sucesso, delicadamente abster-nos de atender-lhe ao apelo pouco razoável. Evidenciará ainda não estar disposto a trocar seus preconceitos e idéias antigas pelos valores espirituais. Foi por conhecer a relutância da criatura humana em fazer essa transformação que Jesus asseverou, em linguagem figurada: "Porque se alguém, nesta geração adúltera e pecadora, se envergonhar de mim e das minhas palavras, também dele se envergonhará o Filho do homem, quando vier na glória de seu Pai com os santos anjos." (Marcos 8: 38, Lucas 9: 26) Não é que devamos nos vingar

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dessa pessoa, ou ficar magoados com ela; mas devemos deixar que o tempo opere seu amadurecimento.

Mesmo no caso de impedimento por enfermidade, só deveremos aplicar passes fora do centro quando forem solicitados pelo enfermo ou, no absoluto impedimento deste, por sua família. Temos notícias de casos em que familiares ou amigos solicitaram passe para um enfermo que, na hora, o rejeitou. Nesses casos, o passe não teria efeito.

O passe fora do centro espírita tem o inconveniente do ambiente possivelmente desfavorável, impregnado de miasmas fluídicos de ira, maledicência, alcoólicos, de fumo etc. Mesmo assim, é caridade atender e vencer com equilíbrio os obstáculos, quando houver um pedido sincero e um mínimo de boa vontade por parte do enfermo e seus familiares. O bom senso e a caridade são sempre os elementos que devem preponderar na tomada de qualquer decisão a esse respeito. Não devemos nos impor regras inflexíveis e automatizadas em tarefas desse gênero.

11. Os efeitos do passe

Existem vários fatores que influem nos efeitos do passe. A despeito da ajuda segura dos bons Espíritos, o resultado dependerá das condições do enfermo e também do passista, se bem que as deficiências deste possam em geral ser supridas pelos Espíritos.

Temos observado que algumas pessoas se sentem curadas, outras apenas melhoram, enquanto outras ainda permanecem completamente impermeáveis aos recursos do passe.

O clima de fraternidade, simpatia entre o passista e o enfermo é condição importantíssima para que o passe produza bons resultados.

A fé é outro fator relevante. Observamos que muitos não voltam mais ao centro espírita após constatarem que não obtiveram melhoras imediatas. Na sua ignorância, alegam que o centro é "fraco", ou mesmo descrêem completamente dos recursos fluídicos e dos mecanismos divinos.

O passista não deve aplicar-se em demasia no exame dos resultados do passe. Empenhe-se em cumprir os requisitos que se exigem de sua posição, e confie na Providência Divina, que saberá, melhor do que ele, quais as reais condições de cada enfermo, quais os seus méritos e suas necessidades provacionais e expiatórias. Nunca se envaideça de eventuais resultados positivos, lembrando sempre de que a fonte última de todo o bem é Deus.

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Antes de cogitarmos, em vão, acerca do merecimento que tenhamos, procuremos dar novos rumos aos nossos passos, para irmos ao encontro dos necessitados; às nossas mãos, para que elas abençoem, agasalhem, acariciem;. ao nosso coração, para aprendermos amar os semelhantes. Imprimamos novas diretrizes aos nossos hábitos infelizes. Acendamos novas luzes para os nossos pensamentos e sentimentos. Adotemos atitudes cristãs no lar, no trabalho, no mundo!

12. A água fluidificada

É assim que as mais insignificantes substâncias, como a água, por exemplo, podem adquirir qualidades poderosas e efetivas, sob a ação do fluido espiritual ou magnético, ao qual elas servem de veículo, ou se quiserem, de reservatório.

Kardec, A Gênese, cap. 15, § 25

A água é dos corpos mais simples e receptivos da Terra. É como que a base pura, em que a medicação do Céu pode ser impressa, através de recursos substanciais de assistência ao corpo e à alma, embora em processo invisível aos olhos mortais.

Emmanuel, Segue-me, p. 131.

Por essas assertivas, aprendemos que água é passível de adquirir qualidades diversas, de natureza sutil ou "fluídica", ao influxo da vontade de um agente. No meio espírita, a água modificada pela ação de Espíritos desencarnados ou encarnados no sentido de tornar-se medicamentosa ficou conhecida como "água fluidificada" ou "magnetizada". Trata-se de expressões impróprias, mas que o uso já consagrou. (Do ponto de vista da física, a água pura que bebemos já é um fluido, e não é suscetível de magnetizar-se por um ímã, por exemplo.)

A água dita "fluidificada" é, na verdade, um veículo de recursos medicamentosos que atuam no perispírito. Indiretamente, contribui para o restabelecimento do corpo carnal. Em seu livro Fluidos e Passes Therezinha Oliveira assim se refere à ação da água fluidificada (p. 89):

Ao ser ingerida, [...] é metabolizada pelo organismo, que absorve as quintessências que vão atuar no perispírito, à semelhança de medicamento homeopático.

A água fluidificada é indicada nos casos de carência fluídica, comuns quando há desequilíbrio emocional, debilitação orgânica por enfermidade, nos desgastes por processo obsessivo, nas lesões de órgãos, etc.

Sendo uma espécie de medicamento, não devemos abusar de sua utilização, tornando sua ingestão um hábito indiscriminado.

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A água pode ser fluidificada para uso geral ou para determinado enfermo. Isso deve ser claramente considerado quando mobilizamos a nossa vontade com o objetivo de preparar a água. Como no último caso a água adquire propriedades específicas para a pessoa que temos em vista, não deve ser usada por outras pessoas.

Para fluidificar a água não é necessário impor as mãos sobre ela. Muito receptiva aos fluidos espirituais, a água se torna remédio salutar pela ação da prece em ambientes de silêncio e respeito, onde há vontade ardente de ajudar o semelhante necessitado. Como o passe, a fluidificação é uma tarefa executada pelos Espíritos bons com a ajuda dos recursos humanos.

13. Jesus - O Divino Modelo

Qual o tipo mais perfeito que Deus tem oferecido ao homem, para lhe servir de guia e modelo? "Jesus".

O Livro dos Espíritos, questão no 625.

Jesus pertence à classe dos Espíritos Puros, aqueles que já atingiram a perfeição máxima, como se explica na questão 97 de O Livro dos Espíritos. Para a humanidade terrena, Jesus ocupa uma posição especial, tendo-se encarregado de conceber e coordenar a formação e a evolução do planeta e dos seres vivos que o têm habitado.

Pastor de nossas almas, vela incessantemente por nosso bem, conduzindo-nos com acendrado amor ao aprisco divino. E nós, que aspiramos à condição de seus discípulos humildes, devemos empenhar-nos para seguir-Lhe as pegadas sublimes.

Todos os aspectos de Sua passagem na Terra fornecem-nos exemplos a serem imitados. Acima de tudo, devemos inspirar-nos em sua conduta moral, marcada pelo amor puro que distribuía entre todos e tudo que encontrava. Em muitas ocasiões, a mobilização desse amor deu-se na forma de alívio para as dores, nas múltiplas expressões das enfermidades orgânicas e espirituais. Cegueiras e paralisias, ulcerações e debilidades, processos letárgicos e obsessivos foram por Ele sanados ou aliviados.

As numerosas curas operadas pelo Mestre foram em geral tidas por milagrosas. Coube ao Espiritismo a sua explicação racional, pela ação fluídica impulsionada por uma poderosa vontade.

Foi no último livro que publicou A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo que Kardec examinou alguns dos principais feitos materiais de Jesus, destacando-se entre eles as curas de diversas doenças e

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limitações orgânicas. Devemos, a esse respeito, consultar os capítulos 13, 14 e 15. No último deles são analisados, de forma particular, os casos da mulher hemorroíssa (Mc 5: 25-34), do cego de Betsaida (Mc 8: 22-26), do paralítico de Cafarnaum (Mt 9: 1-8), dos dez leprosos (Lc 17: 11-19), do homem da mão seca (Mc 3: 1-8), da mulher curvada (Lc 13: 10-17), do paralítico da piscina de Betesda (Jo 5: 1-17), do cego de nascença (Jo 9: 1-34), além de vários casos de "possessões" e "ressurreições".

É de notar-se que ao propiciar alívio para as dores físicas Jesus costumava concitar os beneficiados à renovação moral, à liberação dos "pecados", para que "coisas piores" não lhe adviessem, ensinando-nos assim a correlação que existe entre as nossas condições moral e física.

Aprendemos, em Espiritismo, que as raízes profundas de nossos males residem na alma. Purificada esta, o corpo se melhorará naturalmente, num prazo maior ou menor, dependendo das características de nosso caso. De nada adianta procurarmos a cura das enfermidades físicas, tanto pela medicina da terra como pela do céu, se permanecermos desatentos com o nosso procedimento moral. Busquemos, pois, aprimorar-nos de maneira integral, pautando-nos sempre no exemplo de Jesus-Cristo e daqueles que ao longo dos séculos o têm seguido.

14. Referências bibliográficas

1. ANDRÉ LUIZ. Os Mensageiros. (F.C. Xavier.) 13a ed., Rio, FEB.2. -----. Missionários da Luz. (F.C. Xavier.) 14a ed., Rio, FEB.3. -----. Conduta Espírita. (Waldo Vieira.) 8a ed., Rio, FEB.4. -----. Nos Domínios da Mediunidade. (F.C. Xavier.) 13a ed., Rio, FEB.5. -----. "O passe". In: Opinião Espírita. Emmanuel e André Luiz. (F.C.

Xavier e Waldo Vieira). 5a ed., Uberaba, CEC, 1982.6. EMMANUEL. O Consolador. (F.C. Xavier.) 8a ed., Rio, FEB.7. -----. Caminho, Verdade e Vida. (F.C. Xavier.) 9a ed., Rio, FEB.8. -----. Segue-me. (F.C. Xavier.) 5a ed., Matão, O Clarim, 1982.9. -----. Pão Nosso. (F.C. Xavier.) 1a ed., Rio, FEB, 1950.10.KARDEC, A. O Livro dos Espíritos. (Trad. Guillon Ribeiro.) 76a ed.,

Rio, FEB.11.------. O Evangelho Segundo o Espiritismo. (Trad. Guillon Ribeiro.)

113a ed., Rio, FEB.12.-----. A Gênese. (Trad. Guillon Ribeiro.) 19 ed., Rio, FEB.13.OLIVEIRA, T. (org.) Fluidos e Passes. 1a ed., Capivari, EME, 1995.

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Por que Allan Kardec?

Silvio Seno Chibeni

Dogmatismo? Tradicionalismo? Fanatismo? Visão estreita?

Vejamos:

1. A obra de Allan Kardec, quando analisada internamente, revela uma solidez lógica, uma racionalidade, uma limpidez argumentativa, uma coerência de fazerem inveja aos mais conceituados tratados filosóficos que a Humanidade possui;

2. Allan Kardec revelou, em tudo o que fez, uma prudência, um equilíbrio, uma sobriedade, um espírito positivo e despreconcebido, um bom senso, enfim, que singularizam sua figura entre todos os expoentes da cultura humana;

3. A obra de Allan Kardec, contrariamente ao que em geral acontece com outras que abordam os mesmos assuntos, está firme e amplamente baseada em fatos, cuidadosa e minuciosamente examinados à luz dos referidos critérios racionais; não surgiu entre as quatro paredes de um gabinete, mas de uma extensa convergência de informações;

4. Allan Kardec era possuidor de uma vasta erudição, transitando inteiramente à vontade pelos mais variados campos do saber – das ciências às artes, das filosofias às religiões – o que lhe permitiu trazer ao seu domínio de estudo os mais relevantes problemas que interessam ao homem, dentro de uma visão abarcante e integrada da realidade;

5. A obra de Allan Kardec apresenta-se dentro de padrões de clareza e objetividade tais, que não deixa nenhuma margem a ambigüidades e mal-entendidos, especialmente quanto aos pontos fundamentais;

6. Allan Kardec soube ser impessoal, separando com rigor suas opiniões pessoais e peculiaridades de sua vida privada do conhecimento doutrinário, que é independente e objetivo; jamais pretendeu a posse exclusiva e completa da verdade, nunca recusou um princípio pelo só fato de ter sido descoberto ou proposto por outrem, nunca hesitou em abandonar uma idéia quando provada errônea por argumentos insofismáveis;

7. A obra de Allan Kardec é incomparavelmente abrangente, ocupando-se desde os fatos mais palpáveis, destacadamente os relativos à sobrevivência do ser, até as mais profundas investigações da ética, passando pelo exame lúcido das grandes questões filosóficas que ao longo das eras têm desafiado o raciocínio do homem;

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8. Allan Kardec tem sido confirmado, por fontes independentes e fidedignas, como um grande emissário de Jesus, especialmente escolhido por Ele para concretizar na Terra a Sua promessa do envio do Consolador, [nota 1] que nada mais é do que o Espiritismo, que veio para nos ensinar todas as coisas (o esclarecimento abundante que traz), para nos fazer lembrar tudo o que Jesus nos disse (a sanção e explicação que ele nos dá dos Evangelhos), e que estará sempre conosco (a perenidade do Espiritismo);

9. A obra de Allan Kardec não é uma estrutura estática e fechada, mas sim dinâmica e aberta a complementações futuras, incorporando a característica daprogressividade, essencial a todo sistema científico ou filosófico que não pretenda ser sepultado pelas constantes e inevitáveis descobertas de fatos novos e pela ampliação geral do conhecimento humano;

10.Allan Kardec testemunhou em todos os atos de sua vida a sua condição de Espírito de escol: jamais prejudicou a alguém; só com o bem retribuiu as ingratidões, ofensas e calúnias com que em vão tentaram embaraçar-lhe os passos; doou-se por completo à grande obra de educação dos homens que é o Espiritismo: a ela sacrificou o conforto, o repouso, os bens materiais, a saúde e até a própria vida.

Estudemos com seriedade essa obra. Conheçamos de perto esse autor. [nota 2]

Depois, comparemo-los à obras e autores que os pretendam superar. Quais se poderão gloriar de fazer-lhes frente em apenas algumas das dez características enumeradas (para não dizer em todas)?

Retornemos, por fim, à questão: Por que Allan Kardec?

Talvez já não seja difícil respondê-la ... [nota 3]

Notas:

1.Cf. Evangelho de João, cap. 14.

2. Para uma visão precisa, detalhada e completa da personalidade de Allan Kardec, bem como das origens, dimensões e significado de sua obra, consulte-se o livro Allan Kardec (3 vols.), de Zêus Wantuil

e Francisco Thiesen, editado pela Federação Espírita Brasileira em 1979/80.]

3. Para uma exposição do caráter legitimamente científico (à luz da moderna filosofia da ciência) do desenvolvimento de uma atividade de pesquisa em torno de um núcleo de princípios básicos (como o Espiritismo o faz em relação aos princípios fundamentais da obra de Allan Kardec), veja-se o artigo "Espiritismo e ciência", em Reformador de maio de 1984. (Nota do Autor em outubro de 1998: Para o mesmo tema, ver também os artigos "A excelência metodológica do Espiritismo" e "O paradigma

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espírita", publicados na mesma revista, números de novembro e dezembro de 1988 e junho de 1994, respectivamente.)

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“Caracteres da revelação espírita”

Silvio Seno Chibeni

www.unicamp.br/~chibeni

Grupo de Estudos Espíritas da Unicamp

www.geeu.net.br

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© Silvio Seno Chibeni, 2011 2

Texto básico: • Allan Kardec, A Gênese, cap. 1: “Caracteres da

revelação espírita” (1868).

Textos subsidiários: • Revista Espírita, abril de 1866: “Da revelação”

• Revista Espírita, setembro de 1867: “Caracteres da revelação espírita”

• Obras Póstumas: “Minha primeira iniciação ao Espiritismo” e “Minha missão”

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© Silvio Seno Chibeni, 2011 3

Referências bibliográficas

La Genèse, les miracles et les prédictionsselon le Spiritisme:

• Fac-simile da primeira edição (6/1/1868), disponibilizada como imagem pelo IPEAK: www.ipeak.com.br

• Edição da Union Spirite Française etFrancophone: www.leon-denis.org (“1a ed.” ?)

• A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo: Trad. de Guillon Ribeiro (“5a ed.”): www.febnet.org.br

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© Silvio Seno Chibeni, 2011 4

Caractères de la révélation spirite. Paris, Bureau de la Revue Spirite. 59, rue etpassage Sainte-Anne, 1868. (Brochura vendida separadamente, 15 centimes. Ver RS, fev.1868, p. 64.) (Disponível como imagem no site do IPEAK)

Revue Spirite:• Fac-simile de edições originais, disponíveis

como imagem no site do IPEAK• Edição do Centre d'Études Spirites Léon Denis

(em PDF)• Revista Espírita: Traduções de J. Abreu, S.

Gentile e E. N. Bezerra

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Relações entre os textos

RE 1866

.

RE 1867

Gênese, cap. 1 (1a ed. 1868) =Caracteres (1868) ≅Gênese, cap. 1 (5a ?? ed.)

§§ 1 a 55

§§ 56 a 62

§§ 1 a 11*

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RE, 4/1866: “Da revelação” (I)

• “A revelação, no sentido litúrgico, implica uma idéia de misticismo e de maravilhoso. ... Supõe a intervenção de poderes e inteligências extra-humanas” (p. 97)

• “Considerada sob esse ponto de vista, a revelação implica a passividade absoluta; é aceita sem controle, sem exame, nem discussão.” (CRE, 7)

• Nesse sentido é rejeitada por Kardec: “... idéia falsa que se tem da revelação” (p. 97)

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© Silvio Seno Chibeni, 2011 10

Filosofia moderna (séc. XVI →→→→)

• Emancipação intelectual do homem

• Livre-exame

• Rejeição do misticismo

• Rejeição do sobrenatural

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© Silvio Seno Chibeni, 2011 11

John Locke (séc. XVII)

Ensaio sobre o Entendimento Humano (1690):

• “Quando Deus faz o profeta, não desfaz o homem”

• “A revelação deve ser julgada pela razão”

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© Silvio Seno Chibeni, 2011 12

Kardec, O Livro dos Espíritos, 455

• “Dessa exaltação ... Espíritos inferiores costumam aproveitar-se para dominar o extático, assumindo ... aparências que mais o aferram às idéias ou preconceitos que nutre no estado de vigília. ... Cabe-nos tudo julgar friamente e pesar-lhes as revelações na balança da razão.”

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© Silvio Seno Chibeni, 2011 13

RE, 4/1866: “Da revelação” (II)

Acepção original do termo revelação:

“Revelar é tornar conhecida uma coisa ... [ou] ensinar a alguém algo que ele desconhece” (p. 97)

• Portanto, podemos dizer que pela pesquisa, a ciência revela as leis físicas, a filosofia revela as leis morais, etc. (p. 97)

• Nesse sentido há uma “revelação incessante” no conhecimento humano; CRE, 2.

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© Silvio Seno Chibeni, 2011 14

RE, 4/1866: “Da revelação” (III)

• Homens de gênio: “reveladores primários” (p. 98)

“O homem de gênio é um Espírito que viveu mais, e, conseguintemente, adquiriu mais conhecimento ... que os que estão menos adiantados” (p. 98)

• Professores: “reveladores secundários” (p. 97-98)

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© Silvio Seno Chibeni, 2011 15

RE, 4/1866: “Da revelação” (IV)

“Incontestavelmente, os homens progridem por si mesmos e pelos esforços de sua inteligência.” (p.

99)

“Espíritos capazes de fazer avançar a Humanidade, por sua energia e superioridade de seus conhecimentos, podem encarnar, pela vontade de Deus, para auxiliar o progresso, num sentido determinado.” (p. 99)

“Dado que os Espíritos podem comunicar-se com os homens, esses mesmos gênios podem dar-lhes instruções sob a forma espiritual, como o fizeram sob a forma corpórea.” (CRE, 57)

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© Silvio Seno Chibeni, 2011 16

RE, 4/1866: “Da revelação” (V)

“Se Deus suscita reveladores para as verdades científicas, pode, com mais forte razão, suscitá-los para as verdades morais, que são um dos elementos essenciais do progresso. São os filósofos, cujas idéias atravessaram os séculos” (p. 99)

“No sentido especial da fé religiosa, os reveladores são mais geralmente designados pelos nomes de profetas ou messias. (p. 99)

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© Silvio Seno Chibeni, 2011 17

RE, 4/1866: “Da revelação” (VI)

“Infelizmente, as religiões sempre foram... Instrumentos de dominação. O papel de profeta excitou ambições secundárias, tendo surgido uma multidão de pretensos reveladores ou messias, que, devido ao prestígio desse nome, exploraram a credulidade em proveito de seu orgulho, de sua cupidez, ou de sua indolência... A religião cristã não ficou ao abrigo desses parasitas” (p. 99-100)

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© Silvio Seno Chibeni, 2011 18

RE, 4/1866: “Da revelação” (VII)

“Uma nova e importante revelação está em curso em nossa época: é a que nos mostra a possibilidade de nos comunicarmos com os seres do mundo espiritual. Esse conhecimento não é novo ... mas estava, até agora, no estado de letra morta, ou seja, sem proveito para a Humanidade.”

“A ignorância das leis que regem essas relações o havia abafado sob a superstição; o homem não conseguia tirar daí nenhuma dedução salutar. Estava reservado à nossa época desembaraçá-lo desses acessórios ridículos, de compreender seu alcance, e de fazer que dele surgisse a luz que deverá iluminar os caminhos do futuro.” (p. 101)

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© Silvio Seno Chibeni, 2011 19

“Caracteres da revelação espírita”§1:

a) “Pode o Espiritismo ser considerado uma revelação?

b) “Neste caso, qual o seu caráter?

c) “Em que se funda a sua autenticidade?

d) “A quem e de que maneira foi ela feita?

e) “É a doutrina espírita uma revelação, no sentido teológico da palavra?” ...

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© Silvio Seno Chibeni, 2011 20

(CRE, § 1, cont.)

f) É absoluta ou suscetível de modificações?

g) Qual a autoridade do ensino dos Espíritos, se eles não são infalíveis, nem superiores à Humanidade?

h) Quais as verdades novas que eles nos trazem?

i) Precisa o homem de uma revelação?

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© Silvio Seno Chibeni, 2011 21

12. (a) “O Espiritismo, dando-nos a

conhecer o mundo invisível que nos cerca

e no meio do qual vivíamos sem o

suspeitarmos, assim como as leis que o

regem, suas relações com o mundo

visível, a natureza e o estado dos seres

que o habitam e, por conseguinte, o

destino do homem depois da morte, é

uma verdadeira revelação, na acepção

científica da palavra.”

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© Silvio Seno Chibeni, 2011 22

• 13. (b) “Por sua natureza, a revelação espírita

tem duplo caráter: participa ao mesmo tempo da

revelação divina e da revelação científica.

• “Participa da primeira, porque foi providencial o

seu aparecimento e não o resultado da iniciativa,

nem de um desígnio premeditado do homem ...

• “Participa da segunda, por não ser esse ensino

privilégio de nenhum indivíduo...; por não serem

os que o transmitem e os que o recebem seres

passivos, dispensados do trabalho da

observação e da pesquisa, ...”

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13, cont.“... por não renunciarem ao raciocínio e ao livre-

arbítrio; porque não lhes é interdito o exame, mas, ao contrário, recomendado; enfim, porque a doutrina não foi ditada completa, nem imposta à crença cega; porque é deduzida, pelo trabalho do homem, da observação dos fatos que os Espíritos lhe põem sob os olhos e das instruções que lhe dão, instruções que ele estuda, comenta, compara, a fim de tirar ele próprio as ilações e aplicações.”

“Numa palavra, o que caracteriza a revelação espírita é o ser divina a sua origem e da iniciativa dos Espíritos, sendo a sua elaboração fruto do trabalho do homem.”

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“50. [O Espiritismo], vindo numa época de

emancipação e madureza intelectual, em

que a inteligência, já desenvolvida, não se

resigna a representar papel passivo; em que

o homem nada aceita às cegas, mas quer ver

aonde o conduzem, quer saber o porquê e o

como de cada coisa, tinha que ser ao mesmo

tempo o produto de um ensino e o fruto do

trabalho, da pesquisa e do livre-exame.”

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• “14. (c, d) Como meio de elaboração, o

Espiritismo procede exatamente da mesma

forma que as ciências positivas, aplicando o

método experimental.”

• “Fatos novos se apresentam, que não podem ser

explicados pelas leis conhecidas; ele os

observa, compara, analisa e, remontando dos

efeitos às causas, chega à lei que os rege;

depois, deduz-lhes as conseqüências e busca as

aplicações úteis.”

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14, cont. (1)

• “É, pois, rigorosamente exato dizer-se que o Espiritismo é uma ciência de observação e não produto da imaginação.”

• “As ciências só fizeram progressos importantes depois que seus estudos se basearam sobre o método experimental; até então, acreditou-se que esse método só era aplicável à matéria, ao passo que o é também às coisas metafísicas.”

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• 16. “Assim como a ciência propriamente dita tem por objeto o estudo das leis do princípio material, o objeto especial do Espiritismo é o conhecimento das leis do principio espiritual.”

• “O Espiritismo e a ciência completam-se reciprocamente; a ciência, sem o Espiritismo, se acha na impossibilidade de explicar certos fenômenos só pelas leis da matéria; ao Espiritismo, sem a ciência, faltariam apoio e controle.”

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(f) 55. “O Espiritismo, pois, não estabelece como princípio absoluto senão o que se ache evidentemente demonstrado, ou o que ressalte logicamente da observação. Entendendo com todos os ramos da economia social, aos quais dá o apoio das suas próprias descobertas, assimilará sempre todas as doutrinas progressivas, de qualquer ordem que sejam, desde que tenham assumido o estado de verdades práticas e abandonado o domínio da utopia, sem o que ele se suicidaria.”(Ver tb. Revista Espírita, julho 1868, “A geração espontânea...”, p. 201-208.)

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• (g, h, i) 50. “Os Espíritos não ensinam senão justamente o que é mister para guiar o homem no caminho da verdade, mas abstêm-se de lhe revelar o que pode descobrir por si mesmo,

deixando-lhe o cuidado de discutir, verificar e

submeter tudo ao cadinho da razão ...”

• “Fornecem-lhe o princípio, os materiais; cabe-

lhe a ele aproveitá-los e pô-los em obra.”

• 61. “... as condições da nova existência em que se acham lhes dilatam o círculo das percepções: eles vêem o que não viam na Terra...

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• (61, cont. ) “É nisto que consiste a superioridade dos Espíritos com relação à humanidade corpórea, e daí vem a possibilidade de serem seus conselhos, considerado o grau de adiantamento que alcançaram, mais judiciosos e desinteressados do que os dos encarnados.

• “O meio em que se encontram lhes permite, ademais, iniciar-nos nas coisas, que ignoramos, relativas à vida futura e que não podemos aprender no meio em que estamos.”

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• (61, cont. ) “Até ao presente, o homem apenas formulara hipóteses sobre o seu porvir; tal a razão pela qual suas crenças a esse respeito se fracionaram em tão numerosos e divergentes sistemas, desde o niilismo até as concepções fantásticas do inferno e do paraíso. Hoje, são as testemunhas oculares, os próprios atores da vida de além-túmulo que nos vêm dizer em que se tornaram, e só eles o podiam fazer.

• “Suas manifestações, conseguintemente, serviram para dar-nos a conhecer o mundo invisível que nos rodeia e do qual nem suspeitávamos; e esse conhecimento já seria de capital importância, mesmo que nada mais pudessem os Espíritos ensinar-nos.”

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• 57. “... os Espíritos se limitam a pô-lo [o homem] no caminho das deduções que ele pode tirar da observação dos fatos. Ora, as manifestações, nas suas inumeráveis modalidades, são fatos que o homem estuda para lhes deduzir a lei, auxiliado nesse trabalho por Espíritos de todas as categorias, que, de tal modo, são mais colaboradores seus do que reveladores, no sentido usual do termo.”

• “Ele lhes submete os dizeres ao cadinho da lógica e do bom senso: desta maneira se beneficia dos conhecimentos especiais de que os Espíritos dispõem pela posição em que se acham, sem abdicar o uso da própria razão.”

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60. “...De há muito, a experiência demonstrou ser errôneo atribuir-se aos Espíritos o conhecimento integral e toda a sabedoria... Sendo parte da Humanidade, eles constituem uma de suas faces. Assim como na Terra, no plano invisível também os há superiores e vulgares; muitos, pois, que, científica e filosoficamente, sabem menos do que certos homens; eles dizem o que sabem, nem mais, nem menos.

“Do mesmo modo que os homens, os Espíritos mais adiantados podem instruir-nos sobre maior porção de coisas, dar-nos opiniões mais judiciosas do que os atrasados. Pedir o homem conselhos aos Espíritos não é entrar em entendimento com potências sobrenaturais; é tratar com seus iguais, com aqueles mesmos a quem ele se dirigiria neste mundo; a seus parentes, seus amigos, ou a indivíduos mais esclarecidos do que ele.

“Disto é que importa se convençam todos, e é o que ignoram os que, não tendo estudado o Espiritismo, fazem idéia completamente falsa da natureza do mundo dos Espíritos e das relações com o além-túmulo.”

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A postura de Kardec (Obras Póstumas, “Minha primeira iniciação ao

Espiritismo”)“Um dos primeiros resultados que colhi das

minhas observações foi que os Espíritos, nada mais sendo do que as almas dos homens, não possuíam nem a plena sabedoria, nem a ciência integral; que o saber de que dispunham se circunscrevia ao grau de adiantamento que haviam alcançado, e que a opinião deles só tinha o valor de uma opinião pessoal.”

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A postura de Kardec – cont.

“Reconhecida desde o princípio, essa verdade me preservou do grave escolho de crer na infalibilidade dos Espíritos e me impediu de formular teorias prematuras,tendo por base o que fora dito por um ou alguns deles.

“Vi logo que cada Espírito, em virtude da sua posição pessoal e de seus conhecimentos, me desvendava uma face daquele mundo ...

“Conduzi-me, pois, com os Espíritos, como houvera feito com homens. Para mim, eles foram, do menor ao maior, meios de me informar e não reveladores predestinados.”

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Relação como o Cristianismo

• 56. “Do ponto de vista moral, é fora de dúvida que Deus outorgou ao homem um guia, dando-lhe a consciência, que lhe diz: «Não faças a outrem o que não quererias te fizessem.» A moral natural está positivamente inscrita no coração dos homens. Porém, sabem todos lê-la nesse livro? Nunca lhe desprezaram os sábios preceitos? Que fizeram da moral do Cristo?

• A moral que os Espíritos ensinam é a do Cristo, pela razão de que não há outra melhor. Mas, então, de que serve o ensino deles, se apenas repisam o que já sabemos?”

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• (56, cont). “O que o ensino dos Espíritos acrescenta à moral do Cristo é o conhecimento dos princípios que regem as relações entre os mortos e os vivos, princípios que completam as noções vagas que ele havia dado acerca da alma, de seu passado e de seu futuro, dando por sanção à doutrina cristã as próprias leis da Natureza.

• “Com o auxílio das novas luzes que o Espiritismo e os Espíritos espargem, o homem se reconhece solidário com todos os seres e compreende essa solidariedade; a caridade e a fraternidade se tornam uma necessidade social; ele faz por convicção o que fazia unicamente por dever, e o faz melhor.”

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62: Os “resultados da revelação nova”:

• “veio encher o vácuo que a incredulidade cavara, levantar os ânimos abatidos pela dúvida ou pela perspectiva do nada e

• imprimir a todas as coisas uma razão de ser. ...• [a] transformação que estas novas crenças hão

de necessariamente operar no caráter dos homens, nos seus gostos, nas suas tendências e, por conseguinte, nos hábitos e nas relações sociais.

• Pondo fim ao reino do egoísmo, do orgulho e da incredulidade, elas preparam o do bem, que é o reino de Deus, anunciado pelo Cristo”

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O paradigma espírita

Silvio Seno Chibeni

Resumo:

Este trabalho indica as linhas gerais da visão kuhniana de ciência, em contraste com as concepções anteriores. Depois, argumenta que a Doutrina Espírita constitui um paradigma científico, no sentido apontado por Kuhn, sendo, portanto, genuinamente científica. O criador do paradigma foi Allan Kardec. Diante da tradição de ciência normal estabelecida pelo paradigma kardequiano, que prossegue com grande sucesso até nossos dias, transparece a inadequação das tentativas de se iniciarem outros paradigmas (metapsíquica, parapsicologia, etc.).

1. Introdução

Muito se tem discutido nos meios espíritas a questão da cientificidade do Espiritismo. Embora Allan Kardec a tenha abordado de forma precisa e completa, alegam alguns que desenvolvimentos recentes na ciência e em linhas não-espíritas de pesquisa dos fenômenos a que chamam "paranormais" trouxeram novidades ao palco dos debates. Neste trabalho procuraremos investigar o aspecto científico do Espiritismo e a alegação acima, recorrendo à filosofia da ciência contemporânea, e, mais especificamente, aos estudos do filósofo americano Thomas Kuhn.

A filosofia da ciência é o ramo da filosofia que se ocupa da análise do conhecimento científico: seus fundamentos, sua abrangência, sua especificidade, sua evolução. De maior relevância para os nossos presentes propósitos é a questão do chamado critério de demarcação entre ciência e não-ciência, ou pseudo-ciência. Essa questão interessou de perto a todos os filósofos que se dedicaram ao estudo da ciência, havendo se destacado com o surgimento da ciência moderna, nos séculos 16 e 17. Nessa época, as investigações científicas, especificamente no domínio daquilo que hoje chamamos física, conduziram a um notável incremento no poder preditivo e explicativo da ciência, com as contribuições de Galileo, Huygens, Descartes e Newton, entre outros.

Difundiu-se então a idéia, antecipada por Francis Bacon, de que o sucesso da ciência se devia à adoção de um método especial, o chamado método científico. A aplicação desse método é que demarcaria a ciência genuína das atividades não-científicas. A explicitação, compreensão e elaboração do método científico passou a constituir tópico de pesquisa dos filósofos (que, em muitos casos, eram os próprios cientistas a divisão mais ou menos nítida entre a ciência e a filosofia é recente).

Em uma descrição aproximada, pode-se afirmar que a questão do método científico recebeu uma resposta mais ou menos uniforme desde o século 16 até meados de nosso século, quando então começou a ser posta em dúvida.

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Embora fosse muito útil, não dispomos de espaço aqui para apresentar as idéias centrais da concepção clássica de ciência e das críticas que recentemente levaram à sua substituição.{nota 1} Diremos apenas que essa concepção clássica é ainda a que predomina entre o público leigo, e, em boa parte, entre os cientistas, havendo, pois, um descompasso entre eles e os filósofos e historiadores da ciência contemporâneos.

Em seus traços mais gerais, a visão clássica da ciência assume que uma disciplina científica é aquela que parte de um processo longo de coleta de dados, ou seja, de observação dos fenômenos. Desses dados resultariam então as leis gerais que regem os fenômenos. Reunidas, essas leis formariam as teorias científicas. O progresso da ciência se daria pelo acréscimo de novas observações, das quais resultariam leis adicionais, que iriam se incorporando às teorias.

No processo assim esquematizado são essenciais as seguintes assunções: 1) Na etapa de coleta de dados não intervém nenhuma diretriz teórica: as observações são neutras; 2) Igualmente, as leis resultam dos fenômenos por um método neutro, objetivo e infalível; e, 3) As novas leis descobertas ao longo da evolução da ciência são sempre complementares, nunca incompatíveis, com as leis já estabelecidas.

A articulação suprema dessa concepção tradicional de ciência se deu no bojo do programa filosófico do positivismo lógico, que floresceu nas décadas de 1920 a 1940. Esse programa alcançou níveis admiráveis de sofisticação formal e teórica, vindo a exercer uma profunda e duradoura influência sobre a classe científica. Já em 1934, porém, o filósofo austríaco, mais tarde naturalizado britânico, Karl Popper publicou um livro intitulado A Lógica da Descoberta Científica (Popper 1968), contendo críticas incisivas à concepção clássica, lógico-positivista de ciência. Tais objeções passaram em grande parte desapercebidas até o final da década de 1950, quando apareceu uma versão inglesa do livro, e o programa do positivismo lógico já havia experimentado por mais de duas décadas um processo vigoroso de auto-crítica.

Mais uma vez, limitações de espaço não nos permitem expor aqui as críticas de Popper, ou sua concepção de ciência, conhecida hoje por falseacionismo. Observamos apenas que, a seu turno, o falseacionismo topou com restrições mais ou menos severas, levantadas por outros filósofos da ciência. Dentre eles, os mais importantes são Thomas Kuhn, Imre Lakatos e Paul Feyerabend.{nota 2} Em trabalhos anteriores (Chibeni 1984, 1988 e 1991), tivemos a ocasião de tratar da filosofia da ciência de Lakatos, em conexão com a questão da ciência espírita. Agora, tentaremos abordar essa mesma questão à luz das idéias kuhnianas da ciência. Salientamos, desde já, que para que fosse levado a cabo de maneira satisfatória, esse empreendimento exigiria uma exposição detalhada da filosofia de Kuhn, o que evidentemente não pode

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caber nas dimensões de um artigo. Pretendemos, pois, que o que se vai seguir seja tomado apenas como uma motivação para estudos ulteriores.

2. Esboço da filosofia da ciência de Kuhn

Kuhn começou sua carreira acadêmica como físico teórico, interessando-se depois por história da ciência. Ao longo das importantes investigações que empreendeu acerca das teorias científicas passadas, realizadas segundo uma nova perspectiva historiográfica, que procura compreender uma teoria a partir do contexto de sua época, e não do ponto de vista da ciência de hoje, Kuhn se deu conta de que a concepção de ciência tradicional não se ajustava ao modo pelo qual a ciência real nasce e se desenvolve ao longo do tempo. Essa percepção da inadequação histórica das idéias usuais sobre a natureza da ciência o conduziu, finalmente, à filosofia da ciência. Seus estudos nessa área apareceram publicados de modo mais amplo em seu livro de 1962, A Estrutura das Revoluções Científicas. Esse trabalho viria a exercer uma influência decisiva nos rumos da filosofia da ciência. Embora em uma linguagem aparentemente acessível, Kuhn avança nele teses bastante sofisticadas sobre o conhecimento científico e o conhecimento em geral, que receberam críticas filosóficas diversas ao longo dos anos. Naturalmente, este não é o lugar para adentrarmos essas discussões. Limitar-nos-emos a expor simplificadamente alguns dos pontos destacados por Kuhn e que se tornaram reconhecidos, com esta ou aquela alteração menor, pela quase totalidade dos filósofos da ciência. Felizmente, são esses pontos mais consensuais os que maior relevância têm para os nossos propósitos neste artigo.

A espinha dorsal da concepção kuhniana de ciência consiste na tese de que o desenvolvimento típico de uma disciplina científica se dá ao longo da seguinte estrutura aberta:

fase pré-paradigmática > ciência normal > crise > revolução >

nova ciência normal > nova crise > nova revolução ...

Daremos agora uma explicação simplificada das noções envolvidas nessa cadeia evolutiva de uma ciência.

A fase pré-paradigmática representa, por assim dizer, a pré-história de uma ciência, aquele período no qual reina uma ampla divergência entre os pesquisadores, ou grupos de pesquisadores, sobre quais fenômenos dever ser estudados, e como o devem ser, sobre quais devem ser explicados, e segundo quais princípios teóricos, sobre como os princípios teóricos se inter-relacionam, sobre as regras, métodos e valores que devem direcionar a busca, descrição, classificação e explicação de novos fenômenos, ou o desenvolvimento das teorias, sobre quais técnicas e instrumentos podem ser

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utilizados, e quais devem ser utilizados, etc. Enquanto predomina um tal estado de coisas, a disciplina ainda não alcançou o estatuto de científica, ou seja, não constitui uma ciência genuína.

Uma disciplina se torna uma ciência quando adquire um paradigma, encerrando-se a fase pré-paradigmática e iniciando-se uma fase de ciência normal. Este é o critério de demarcação proposto por Kuhn para substituir o critério da concepção clássica (esboçado na seção anterior). O termo 'paradigma' tem uma acepção bastante elástica no texto original de Kuhn, e não podemos aqui adentrar as sutilezas de seu significado. Em seu sentido usual, pré-kuhniano, o termo significa 'exemplo', 'modelo'. Assim, amo, amas, ama, amamos, amais, amam é um paradigma da conjugação do indicativo presente dos verbos regulares da Língua Portuguesa terminados em 'ar'.

Kuhn percebeu que a transição para a maturidade, para a fase científica, de uma disciplina envolve o reconhecimento, por parte dos pesquisadores, de uma realização científica exemplar, que defina de maneira mais ou menos clara os principais pontos de divergência da fase pré-paradigmática. A mecânica de Aristóteles, a óptica de Newton, a química de Boyle, a teoria daeletricidade de Franklin estão entre os exemplos dados por Kuhn de paradigmas que fizeram algumas disciplinas adentrar a fase científica.

É difícil explicitar, especialmente em poucas palavras, os elementos que entram na formação de um paradigma. Kuhn sustenta mesmo que essa explicitação nunca pode ser completa. A razão disso é que o conhecimento de um paradigma é, em parte, tácito, adquirido pela exposição direta ao modo de fazer ciência determinado pelo paradigma. Assim, por exemplo, é somente fazendo óptica à maneira de Newton que se pode conhecer completamente o paradigma óptico newtoniano, ou fazendo eletromagnetismo à maneira de Maxwell que se pode conhecer completamente o paradigma eletromagnético.

No entanto, podemos, a título de balizamento, considerar como partes integrantes de um paradigma: uma ontologia, que indique o tipo de coisa fundamental que constitui a realidade; princípios teóricos fundamentais, que especifiquem as leis gerais que regem o comportamento dessas coisas; princípios teóricos auxiliares, que estabeleçam sua conexão com os fenômenos e as ligações com as teorias de domínios conexos, regras metodológicas, padrões e valores que direcionem a articulação futura do paradigma; exemplos concretos de aplicação da teoria; etc.

Um paradigma fornece, pois, os fundamentos sobre os quais a comunidade científica desenvolve suas atividades. Um paradigma representa como que um "mapa" a ser usado pelos cientistas na exploração da Natureza. As pesquisas firmemente assentadas nas teorias, métodos e exemplos de um paradigma são

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chamadas por Kuhn de ciência normal. Essas pesquisas visam, principalmente, a extensão do conhecimento dos fatos que o paradigma identifica como particularmente significativos, bem como o aperfeiçoamento do ajuste da teoria aos fatos pela articulação ulterior da teoria e pela observação mais precisa dos fenômenos.

Um ponto importante destacado por Kuhn é que enquanto o "mapa" paradigmático estiver se mostrando frutífero, e não surgirem embaraços sérios no ajuste empírico da teoria, o cientista deve persistir tenazmente no seu compromisso com o paradigma. Embora a ciência normal seja uma atividade altamente direcionada, e em um certo sentido seletiva, essa restrição é essencial ao desenvolvimento da ciência. É somente centrando sua atenção em uma gama selecionada de fenômenos e princípios teóricos explicativos que o cientista conseguirá ir fundo no estudo da Natureza. Nenhuma investigação de fenômenos poderá ser levada a cabo com sucesso na ausência de um corpo de princípios teóricos e metodológicos que permitam seleção, avaliação e crítica do que se observa. Aqui se nota um dos principais enganos da concepção clássica de ciência, que imaginava ser possível fazer observações neutras. Nas concepções contemporâneas, reconhece-se que fatos e teorias estão em constante relação de interdependência, como que em "simbiose", os primeiros sustentando as últimas e estas contribuindo para a sua seleção, classificação, concatenação, predição e explicação. De posse de um corpo de princípios teóricos e regras metodológicas, o cientista não precisa a cada momento reconstruir os fundamentos de seu campo, começando de princípios básicos e justificando o significado e uso de cada conceito introduzido, assim como a relevância de cada fenômeno observado.

Kuhn entende a ciência normal como uma atividade de resolução de "quebra-cabeças" (puzzles), já que, como eles, ela se desenvolve segundo regras relativamente bem definidas. Só que na ciência os quebra-cabeças nos são apresentados pela Natureza. Ao longo da exploração de um paradigma pode ocorrer que alguns desses quebra-cabeças se mostrem de difícil solução. O dever do cientista é insistir no emprego das regras e princípios paradigmáticos fundamentais o quanto possa. Utilizando a analogia, não vale, por exemplo, cortar um canto de uma peça do quebra-cabeça para que se encaixe em uma determinada posição. Mas no caso da ciência esse apego ao paradigma, que é essencial, como indicamos acima, não pode ser levado ao extremo. Quando quebra-cabeças sem solução a que Kuhn denomina anomalias se multiplicam, resistem por longos períodos aos melhores esforços dos melhores cientistas, e incidem sobre áreas vitais da teoria paradigmática, chegou o tempo de considerar a substituição do próprio paradigma. Nestas situações de crise, membros mais ousados e criativos da comunidade científica propõem alternativas de paradigmas. Perdida a confiança no paradigma vigente, tais alternativas começam a ser levadas a sério por um número crescente de cientistas. Instala-se um período de discussões e divergências sobre os

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fundamentos da ciência que lembra um pouco o que ocorreu na fase pré-paradigmática. A diferença básica é que mesmo durante a crise o paradigma até então adotado não é abandonado, enquanto não surgir um outro que se revele superior a ele em praticamente todos os aspectos.

Quando um novo paradigma vem a substituir o antigo, ocorre aquilo que Kuhn chama de revolução científica. Grande parte das teses filosóficas sofisticadas desse autor que se tornaram alvo de polêmicas entre os especialistas ligam-se ao que ele assevera acerca das revoluções científicas. Conforme já alertamos, não adentraremos esse assunto aqui. O esquema geral da natureza da ciência que apresentamos acima representa a contribuição mais consensual de Kuhn à filosofia da ciência, e pode também ser identificado, com adaptações, principalmente terminológicas, na filosofia da ciência de Lakatos, a segunda das duas mais sistemáticas e importantes tentativas contemporâneas de compreensão da ciência.

3. O paradigma espírita

Neste ponto o leitor familiarizado com a história do Espiritismo e que tenha lido, estudado, meditado e compreendido a obra de Allan Kardec já terá percebido o embasamento de nossas teses principais: a obra de Kardec constitui um genuíno paradigma científico, e esse paradigma representa, até hoje, a única diretriz segura ao longo da qual se podem desenvolver pesquisas científicas acerca dos fenômenos espíritas e do aspecto espiritual do ser humano em geral.

A explicitação completa dessas teses exigiria que percorrêssemos toda a história do Espiritismo, toda a obra kardequiana, e as tentativas de estudo dos fenômenos espíritas fora do paradigma espírita. Evidentemente, não há espaço aqui para encetarmos tal empreendimento. Indicaremos apenas alguns pontos mais salientes, para motivar aqueles que queiram refletir sobre o assunto.

Como repetidamente enfatizou o próprio Kardec, alguns dos fatos mais significativos que serviram de base para as suas pesquisas eram conhecidos, embora de modo impreciso e obscuro, desde os primeiros tempos da civilização humana. No entanto, transparece claramente que, não obstante tenham sempre sido objeto de estudo por parte de indivíduos e doutrinas, não havia, até o advento do Espiritismo, um paradigma científico que os concatenasse e integrasse em um corpo de princípios teóricos precisos e abrangentes, acompanhados de métodos, critérios e valores que definissem rumos confiáveis ao longo dos quais a sua investigação pudesse caminhar. Foi a fase pré-paradigmática das pesquisas do espírito.

Tal fase encerrou-se com o trabalho de Allan Kardec. Ele nos legou um paradigma admiravelmente coerente, abrangente, empiricamente adequado e

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heuristicamente fértil, que não deixa nada a desejar aos mais bem sucedidos paradigmas das ciências ordinárias, como a termodinâmica, o eletromagnetismo, as teorias da relatividade, a mecânica quântica, etc.

Como uma indicação geral e aproximada, podemos dizer que O Livro dos Espíritos estabeleceu a ontologia e os princípios teóricos básicos; O Livro dos Médiunse a segunda parte de O Céu e o Inferno efetuaram a conexão com a base experimental; O Evangelho segundo o Espiritismo e a primeira parte de O Céu e o Inferno exploraram as repercussões filosóficas do paradigma no campo da ética; {nota 3} A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo e ensaios diversos nas Obras Póstumas e Revista Espírita aprofundaram vários pontos da teoria, sendo que a Revista constitui também valioso repositório de relatos experimentais.

Imperioso notar que a teoria espírita se faz acompanhar daqueles elementos vitais de um legítimo paradigma científico, e que nem sempre são inteiramente explicitáveis: critérios, métodos e valores que norteiam a busca, descrição e avaliação tanto de fatos como de princípios teóricos auxiliares. E mais: Kardec nos forneceu em profusão exemplos concretos de problemas resolvidos pela teoria espírita, verdadeiros modelos a serem seguidos na abordagem de outros problemas. Vemos, em consonância com as concepções de Kuhn, que tais aplicações exemplares da teoria desempenham de fato grande papel na assimilação da real essência do Espiritismo. Aqueles que não se debruçaram sobre eles, e inspecionaram os princípios espíritas apenas "de fora", e muitas vezes mesmo de forma fragmentária, encontram-se incapacitados de bem julgar o paradigma kardequiano; não adquiriram aquilo que Kuhn (seguindo Michael Polanyi) chama de conhecimento tácitoda ciência espírita.

Examinando a história do Espiritismo após Kardec, vemos que o paradigma por ele iniciado prosseguiu o seu desenvolvimento, dentro de uma bem sucedida tradição de ciência normal. Léon Denis, nos primeiro tempos, e depois Bezerra, Emmanuel, André Luiz, Yvonne Pereira, Philomeno deMiranda, entre outros, foram pesquisadores encarnados ou desencarnados que se destacaram na extensão do paradigma em sua pureza original.

Uma questão que naturalmente pode ser suscitada pela comparação do paradigma espírita com os paradigmas das ciências ordinárias é a das revoluções científicas. A história mostra a ocorrência de revoluções em quase todas as áreas da ciência, e se poderia perguntar se o Espiritismo não estaria também sujeito a uma revolução. Essa é uma questão delicada, e no pouco espaço que nos resta aqui não lhe podemos fazer justiça plena. Nossa resposta comporta duas observações principais, que esboçamos a seguir.

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Primeiro, o exame isento e criterioso da situação mostra de forma inquestionável que o Espiritismo não experimenta, nem jamais experimentou, qualquer processo de acumulação de anomalias, e muito menos em seus pontos essenciais, acumulação essa que constitui, segundo Kuhn, um pré-requisito para o desencadeamento de uma crise, capaz de justificar a proliferação de teorias alternativas, e, eventualmente, a substituição do paradigma. Aproveitamos para notar aqui que, em vista disso, incorreram em erro científico aqueles que, já desde os primeiro tempos, têm desenvolvido suas pesquisas fora do paradigma espírita. Não há razões científicas para essa atitude, que só contribui para a dispersão de esforços tão prejudicial ao avanço do conhecimento, como mostrou Kuhn.

A segunda parte de nossa resposta passa pela observação de que, dada a natureza específica do paradigma espírita, não se deve esperar que tenha um dia que ser abandonado ou modificado em seus princípios fundamentais. A razão disso é que, exceto por alguns princípios reguladores abstratos, tais princípios encontram-se muito próximos do nível fenomênico, de modo que, utilizando-nos da nomenclatura filosófica, poderíamos classificar a teoria espírita como essencialmentefenomenológica. O exemplo mais claro de uma teoria desse tipo nas ciências ordinárias é a termodinâmica, desenvolvida em meados do século 19. Por ser fenomenológica, ela goza de uma alta estabilidade diante do progresso de outras áreas da ciência, havendo atravessado incólume as radicais mudanças de paradigma ocorridas na física nas primeiras décadas de nosso século. Essa característica da termodinâmica exerceu grande atração sobre Einstein (entre outros), que procurou desenvolver sua teoria especial da relatividade em moldes fenomenológicos.

Em termos simplificados, podemos tentar esclarecer esse ponto dizendo que nas teorias não-fenomenológicas (ditas teorias construtivas), que são a maioria das teorias da física e da química, o "grau de teoricidade" dos princípios é muito maior ; eles estão bem mais distantes da observação empírica direta. Em tal caso, o caminho que vai dos fenômenos até os princípios teóricos é bastante tortuoso, passando por uma série de teorias auxiliares, necessárias, por exemplo, para tratar do funcionamento e interpretação dos dados fornecidos pelos aparelhos envolvidos. Nessas circunstâncias, a segurança com que os princípios podem ser asseridos fica evidentemente reduzida; há, em geral, possibilidades plausíveis de explicação dos mesmos fenômenos por princípios teóricos diferentes. A história da física e da química ilustra bem a vulnerabilidade de suas teorias construtivas, que vão sendo substituídas de tempos em tempos.

No caso dos princípios espíritas básicos, como a existência e sobrevivência do espírito, o livre-arbítrio, a lei de causa e efeito, a reencarnação, etc., a situação é bastante diversa. Sua confirmação independe totalmente de aparelhos, conforme bem enfatizou Kardec, o que é uma enorme vantagem do ponto de

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vista epistemológico, pelas razões esboçadas acima. São proposições da mesma classe epistêmica que, digamos, as proposições de que o Sol existe, de que o fogo queima, a cicuta envenena, etc. Notemos que a inferência espírita diante de um fenômeno de efeitos intelectuais não difere em nada das inferências que fazemos a partir dos fenômenos ordinários. Quando, por exemplo, o carteiro traz à nossa casa um papel no qual lemos certas frases, não nos acudirá a idéia de que elas não foram escritas por um determinado amigo, quando relatam fatos, contêm expressões e veiculam pensamentos peculiares e íntimos. Exatamente o mesmo se dá com os variados e abundantes casos de psicografia de que somos testemunhas. Não constitui exagero, pois, afirmar-se que a constatação cuidadosa de uns poucos casos dessa espécie é suficiente para eliminar qualquer dúvida quanto ao princípio básico da Doutrina Espírita, a existência e sobrevivência do espírito.

Como se isso não bastasse, a base experimental do Espiritismo incorpora ainda muitos outros tipos de fenômenos, como a psicofonia, a xenoglossia, as materializações, vidência, a pneumatografia e a pneumatofonia, etc. Além desses fenômenos, que formam uma classe específica, a dos fenômenos espíritas, o Espiritismo apóia-se também em inúmeros fenômenos ordinários. Referimo-nos, por exemplo, às nossas inclinações e sentimentos, às peculiaridades de nosso relacionamento com as pessoas que nos cercam, aos acontecimentos marcantes de nossa vida, aos distúrbios da personalidade, aos efeitos psicossomáticos, aos sonhos, à evolução das espécies e das civilizações, etc. Entendemos que a desconsideração desse vasto corpo de evidências a favor do Espiritismo constitui séria omissão por parte de seus críticos e daqueles que tentam fazer ciência não-espírita do espírito.

Em outro artigo (Chibeni 1988; ver também Chibeni 1986) procuramos mostrar que Kardec possuía um senso científico e filosófico que caminhava muito adiante de seu tempo, identificando corretamente as características de uma verdadeira ciência, e desenvolvendo suas pesquisas de acordo com elas. Isso fica claro tanto da análise de sua obra, como de inúmeras declarações explícitas suas sobre a natureza da ciência, o que torna ainda mais lamentável a busca de uma ciência do espírito fora do paradigma kardequiano, busca essa que prossegue até nossos dias, quando os avanços da filosofia da ciência já puderam mostrar cabalmente onde ela de fato se encontra.

Notas: [volta ao início]

1. Para um esboço desses pontos, ver Chibeni 1984. [volta]

2. Suas obras mais representativas são Kuhn 1970, Lakatos 1970 e Feyerabend 1978. Para uma exposição mais ou menos acessível das idéias

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principais desses filósofos e da concepção clássica de ciência, ver Chalmers 1978. [volta]

3. Sobre a ética espírita e sua fundamentação na ciência espírita, ver Chibeni 1985. [volta]

Referências bibliográficas:

(O leitor poderá encontrar vertidas para o nosso idioma todas as obras em lingua estrangeira desta lista bibliográfica, embora, com exceção das indicadas traduções das obras de Kardec a cargo da Federação Espírita Brasileira, essas traduções apresentem, como é quase regra, falhas mais ou menos graves, que não as recomendam ao estudioso exigente.)

CHALMERS, A. F. What is this Thing called Science? St. Lucia, University of Queensland Press, 1978.

CHIBENI, S.S. Espiritismo e ciência. Esboço de uma análise do Espiritismo à luz da moderna filosofia da ciência. Reformador, maio de 1984, pp. 144-7 e 157-9.

----------. Os fundamentos da ética espírita. Reformador, junho de 1985, pp. 166-9.

---------- . Por que Allan Kardec ? Reformador, abril de 1986, pp. 102-3.

----------. A excelência metodológica do Espiritismo. Reformador, novembro de 1988, pp. 328-33 e dezembro de 1988, pp. 373-8.

----------. Ciência espírita. Revista Internacional de Espiritismo, março de 1991, pp. 45-52.

FEYERABEND, P. K. Against Method. London, Verso, 1978.

KARDEC, A. Le Livre des Esprits. Paris, Dervy-Livres, s.d. O Livro dos Espíritos. Trad. Guillon Ribeiro, 43ª ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s.d.

----------. L'Évangile selon le Spiritisme. Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, 1979. O Evangelho segundo o Espiritismo. Trad. Guillon Ribeiro. 87ª ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s.d.

----------. Le Ciel et l'Enfer. Farciennes, Éditions de L'Union Spirite, 1951. O Céu e o Inferno. Trad. Manuel Quintão. 28ª ed. Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s.d.

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----------. La Genèse, les Miracles et les Prédictions selon le Spiritisme. Paris, La Diffusion Scientifique, s.d. A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo. Trad. Guillon Ribeiro, 23ª ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s.d.

----------. Oeuvres Posthumes. Paris, Dervy-Livres, 1978. Obras Póstumas. Trad. Guillon Ribeiro, 18ª ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s.d.

KUHN, T. S. The Structure of Scientific Revolutions. 2nd. ed., enlarged. Chicago and London, University of Chicago Press, 1970.

LAKATOS, I. Falsification and the methodology of scientific research programmes. In: Lakatos & Musgrave 1970, pp. 91-195.

LAKATOS, I. & MUSGRAVE, A. (eds.) Criticism and the Growth of Knowledge. Cambridge, Cambridge University Press, 1970.

POPPER, K. R. The Logic of Scientific Discovery. 2nd. ed., revised. London, Hutchinson, 1968.

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Questões acerca da natureza do Espiritismo - I

As acepções da palavra ‘Espiritismo’ e a preservação doutrinária

Silvio Seno Chibeni

A série de artigos que ora se inicia reproduz, com algumas adaptações formais e de conteúdo, entrevista concedida por mim ao GEAE (Grupo de Estudos Avançados de Espiritismo), pioneiro na divulgação do Espiritismo pela Internet. As questões originaram-se em debates do Grupo, tendo sido reunidas por Carlos Alberto Iglesia Bernardo.[1]

Os dois primeiros artigos versam sobre certos problemas terminológicos, o terceiro sobre a religião espírita e os quatro restantes sobre vários aspectos das relações entre o Espiritismo e a ciência. A exposição em forma de perguntas e respostas será mantida, por motivos didáticos.

Questão:

Existe um problema de significado de palavras que tem gerado alguma confusão até mesmo em meios espíritas. Trata-se da interpretação da própria palavra ‘Espiritismo’. Há os que interpretam a palavra em sentido amplo, como significando o estudo dos fenômenos mediúnicos e das comunicações com os Espíritos, sem referência necessária à codificação de Kardec. Outros são da opinião de que a palavra ‘Espiritismo’ refere-se apenas à doutrina codificada por Allan Kardec, empregando-se para outras noções expressões como ‘novo espiritualismo’ ou ‘espiritualismo moderno’, ‘umbanda’, ‘candomblé’, etc. Neste caso, as expressões ‘Espiritismo kardecista’ e ‘Espiritismo cristão’ serviriam apenas para dar ênfase a idéias embutidas na própria palavra ‘Espiritismo’, sendo pois redundantes. Como vê essa questão?

Resposta:

A palavra ‘Espiritismo’ tem realmente sido utilizada com acepções bastante diversas. Trata-se de um fato comum em toda linguagem natural; somente em linguagens artificiais, como certas linguagens da lógica e da matemática, consegue-se evitar a polissemia.[2] As palavras, quer escritas, quer faladas, são símbolos com os quais representamos idéias ou conceitos. Essa relação de representação é arbitrária, ou seja, associamos tal palavra a tal idéia de forma inteiramente livre e convencional.

A necessidade de comunicação, que constitui o principal objetivo da linguagem, recomenda-nos, no entanto, entrarmos em acordo com os outros integrantes de nossa comunidade lingüística acerca dessas convenções, para se evitarem desentendimentos semânticos. Nas linguagens ordinárias tal acordo estabelece-se de forma natural e muitas vezes inconsciente, possibilitando um razoável grau de comunicação, pelo menos quanto às noções do dia-a-dia. Quando surgem noções novas e complexas, porém, costuma ocorrer um período de indefinição ou confusão, que pode se prolongar

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muito, se não tomarmos as providências cabíveis, para que todos utilizem as mesmas palavras para designá-las.

Quando Allan Kardec deu início a uma nova abordagem dos fenômenos mediúnicos e anímicos – que sempre existiram, naturalmente –, preocupou-se com esse ponto. Percebendo que o desenvolvimento de uma nova teoria tipicamente envolve a criação de novos conceitos, cunhou diversos termos, nos casos em que se fazia absolutamente necessário, como ‘Espiritismo’, ‘espírita’, ‘perispírito’, ‘mediunidade’ e outros tantos, utilizados, por exemplo, para designar diversas noções da teoria dos processos mediúnicos. Fez isso de forma deliberada e explícita, em diversas de suas obras. Além desses neologismos, a teoria espírita exigiu a alteração dos significados de muitas palavras já em uso, como é o caso de ‘Deus’, ‘anjo’, ‘demônio’, ‘céu’, ‘inferno’, ‘bem’, ‘mal’, etc. Nesses casos também Kardec indicou claramente as novas acepções dadas aos vocábulos.

Não obstante todas as precauções tomadas por Kardec, é inegável que muitas das palavras cuja acepção ele procurou fixar a bem da inteligibilidade vêm sofrendo desvios de significado por vezes bastante grandes, como se ressalta corretamente na questão, relativamente à própria palavra ‘Espiritismo’. Fatos desse gênero ocorrem também nas diversas disciplinas acadêmicas, porém em menor escala, dadas as peculiaridades das correspondentes comunidades lingüísticas, formadas por indivíduos que passaram por longo e rigoroso (idealmente!) processo de formação. No caso do Espiritismo, porém, não há e nem deve haver uma formação oficial dos espíritas. A preservação doutrinária e, por conseguinte, lingüística, do Espiritismo fica, assim, na dependência do empenho de cada pessoa e de cada instituição (centro, federação, editora, associação) em estudar profundamente os textos básicos, mantendo-os constantemente como referência ou paradigma, ainda que complementações e ajustes periféricos se façam eventualmente necessários. [3]

Ora, é isso o que pouco se vê no movimento espírita atualmente. Nem todos lêem; poucos estudam; raros compreendem. Faltam reuniões de estudo de Espiritismo em muitos centros. Editoras, revistas e jornais proliferam em grande número, muitas vezes publicando sem critérios doutrinários rigorosos. O resultado não poderia ser outro: confusões, desorientações e disputas muito freqüentes.

O que fazer? Um pouco de reflexão mostra que os problemas de linguagem do movimento espírita não podem ser resolvidos com imposições deste ou daquele teor, ou de apelo a dicionários. Os filósofos contemporâneos têm ressaltado que o conteúdo semântico do vocabulário de uma disciplina pode ser delimitado por meio de definições explícitas, mas apenas parcial e preliminarmente. O que confere significado completo e estável às palavras é sua utilização em corpos teóricos coerentes e com potencial elucidativo de uma determinada gama de fenômenos. Considere-se, por comparação, as definições de ‘massa’, ‘força impressa’, ‘inércia’, etc. que Newton fez figurar no início de sua monumental obra Princípios Matemáticos da Filosofia Natural (1687). É claro que elas servem para indicar algo, porém se forem isoladas da teoria mecânica desenvolvida no restante do livro perderão inteligibilidade e conteúdo cognitivo. Tomando agora um exemplo negativo, analisem-se as propostas de investigação que surgiram com a pretensão de substituir o Espiritismo, como a metapsíquica e a parapsicologia. À falta de teorias completas e coerentes – pois que não as têm – tais disciplinas viram-se e ainda vêem-se a braços com notória proliferação terminológica que, não obstante sua complexidade, pouco parece contribuir para a veiculação de conceitos inteligíveis, com conteúdo empírico (isto é, que expressem a realidade dos

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fatos) e fertilidade heurística (ou seja, que contribuam para o desenvolvimento do conhecimento).

No caso do Espiritismo, Kardec e alguns dos seus continuadores mais lúcidos trataram de desenvolver o arcabouço lingüístico simultaneamente com uma teoria dotada de todas as principais características de uma boa teoria científica, e na medida estrita da necessidade de expressão simbólica dos conceitos envolvidos. Desse modo, para o estudioso atento e esclarecido do Espiritismo não há lugar para dúvidas e mal-entendidos acerca das palavras, noções e princípios fundamentais. As confusões que se notam nos meios espíritas ou semi-espíritas não provêm de falhas estruturais ou conceituais no programa de pesquisa espírita iniciado por Kardec, mas da falta de preparo e de estudo sério, conforme já ressaltei. O remédio é, pois, único e fácil de encontrar, mas de difícil aplicação. Requer-se uma mudança de atitude intelectual e prática, que começa pelo reconhecimento do valor paradigmático das realizações de Kardec, passa pela disposição de colocar a doutrina acima de vaidosas concepções pessoais e falsas necessidades de modernização, e culmina com a instituição de uma política sistemática e pertinaz de valorização do estudo e do rigor doutrinário. (É justo registrar aqui que é ao longo dessas linhas que se vem pautando a atuação de diversos indivíduos e instituições respeitáveis no movimento espírita, do tempo de Kardec aos nossos dias, cabendo destacar, por seu vulto e ancianidade, as contribuições da Federação Espírita Brasileira.)

Para finalizar, retomo de forma mais tópica a questão formulada. O bom senso indica que se deve reservar a palavra ‘Espiritismo’ para designar aquilo para que foi cunhada, ou seja, a doutrina, teoria, paradigma, ou programa de pesquisa iniciado por Kardec.Devemos notar que já na primeira edição do Livro dos Espíritos(1857) Kardec traça a distinção clara entre o espiritualismo e a doutrina espiritualista específica cujos fundamentos essa obra estava lançando – o Espiritismo. Dada a importância do assunto, Kardec aborda-o já no primeiro parágrafo da Introdução. Quando essa Introdução é reformulada e ampliada, na segunda edição (1860), o trecho em questão é mantido quase sem alteração, figurando ainda no parágrafo inicial do livro, valendo a pena ser relido:

Para se designarem coisas novas são precisos termos novos. Assim o exige a clareza da linguagem, para evitar a confusão inerente à variedade de sentidos das mesmas palavras. Os vocábulos espiritual, espiritualista, espiritualismo têm acepção bem definida. Dar-lhes outra, para aplicá-los à doutrina dos Espíritos, fora multiplicar as causas já numerosas de anfibologia. Com efeito, o espiritualismo é o oposto do materialismo. Quem quer que acredite haver em si alguma coisa mais do que matéria, é espiritualista. Não se segue daí, porém, que creia na existência dos Espíritos ou em suas comunicações com o mundo visível. Em vez das palavras espiritual, espiritualismo, empregamos, para indicar a crença a que vimos de referir-nos, os termos espírita e espiritismo, cuja forma lembra a origem e o sentido radical e que, por isso mesmo, apresentam a vantagem de ser perfeitamente inteligíveis, deixando ao vocábulo espiritualismo a acepção que lhe é própria. Diremos, pois, que a doutrina espírita ou o Espiritismo tem por princípio as relações do mundo material com os Espíritos ou seres do mundo invisível. Os adeptos do Espiritismo serão os espíritas, ou, se quiserem, os espiritistas.

Essas considerações são de uma clareza impressionante. Agora se outras pessoas utilizam a palavra ‘Espiritismo’ com acepções diversas da original, para designar, por exemplo, o espiritualismo ou o “novo espiritualismo”, ou seitas mediunistas afro-brasileiras, não podemos obrigá-las a empregar outras palavras, dado o respeito que devemos ter pela liberdade de expressão. Notando, porém, que existe uma dependência da preservação semântica de uma teoria relativamente à integridade do próprio conteúdo da teoria, vemos que a única medida eficaz que podemos tomar é a de zelar pela

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preservação da teoria espírita e insistir no uso original do termo ‘Espiritismo’ (e cognatos) em todas as ocasiões que se nos deparem, fazendo ver as diferenças doutrinárias existentes entre as abordagens.

Há, ou podem ser criadas, palavras em número suficiente para designar sem ambigüidade todas as teorias, doutrinas ou seitas. Não creio que devamos apelar para artifícios aparentemente mais fáceis, como o de acrescentar adjetivos diversos (‘kardecista’, ‘cristão’, etc.) ao termo ‘Espiritismo’. Se descuidarmos da preservação doutrinária nas instituições e publicações, tais expressões sofrerão, a seu turno, desvios de significado, que terão de ser corrigidos novamente com mais acréscimos, num processo sem fim certo.

* * *

No próximo artigo desta série será analisada criticamente a proposta de revisão de certos termos utilizados no Espiritismo, que alguns alegam ser necessária para a “modernização” da doutrina ou para sua “adaptação” ao progresso da ciência.

Referências:

(Estes artigos e outros que tratam de assuntos correlacionados estão disponíveis também na Internet. Consulte-se o site do Grupo de Estudos Espíritas da Unicamp: http://www.geocities.com/Athens/Academy/8482.)

CHAGAS, A. P. “Polissemias no Espiritismo”, Revista Internacional de Espiritismo, setembro de 1996, p. 247-49.

CHIBENI, S. S. “Por que Allan Kardec?” Reformador, abril 1986, p. 102-3.

––. “A excelência metodológica do Espiritismo”, Reformador, novembro de 1988, p. 328-333, e dezembro de 1988, p. 373-378.

––. “O paradigma espírita”, Reformador, junho de 1994, p. 176-80.

KARDEC, A. O Livro dos Espíritos. Trad. de Guillon Ribeiro. 43a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s.d.

XAVIER Jr., A. L. “Algumas considerações oportunas sobre a relação Espiritismo-Ciência”, Reformador, agosto de 1995, p. 244-46.

[1] A entrevista foi publicada no Boletim n. 300 (edição extra), que circulou em 7/7/1998, podendo ser encontrado no site http://www.geae.org. Gostaria de agradecer ao GEAE a anuência para o aproveitamento do material nesta série de artigos. Sou especialmente grato aos seus membros Ademir L. Xavier Jr., pela iniciativa da entrevista, e Carlos A. Iglesia Bernardo, por haver reunido as relevantes e oportunas questões. Nas transcrições de trechos das obras clássicas de Allan Kardec utilizei as excelentes traduções publicadas pela Federação Espírita Brasileira, confrontando-as com os originais franceses.[2] Um termo polissêmico é aquele que possui mais de um significado. Para um exame de alguns termos que têm sido empregados polissemicamente em textos espíritas, com efeitos negativos, ver o artigo de Aécio P. Chagas, “Polissemias no Espiritismo”. Consulte-se também o artigo de Ademir L. Xavier Jr. citado na lista de referências bibliográficas.[3] Para uma análise da noção de paradigma e de seu papel na ciência e no Espiritismo, veja-se o artigo “O paradigma espírita”, citado na lista de referências bibliográficas. A solidez científica e filosófica dos

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fundamentos lançados por Kardec é abordada no texto “A excelência metodológica do Espiritismo”. Consulte-se também, a esse respeito, o artigo “Por que Allan Kardec?”.

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Questões acerca da natureza do Espiritismo - II

Revisão da terminologia espírita ?

Silvio Seno Chibeni

Neste artigo analisa-se criticamente a proposta de revisão de certos termos utilizados em Espiritismo, que alguns alegam ser necessária para a “modernização” da doutrina ou para sua “adaptação” ao progresso da ciência. [1]

Questão:

Algumas pessoas alegam que é necessário atualizar os termos técnicos utilizados no Espiritismo. Para elas o uso de termos como ‘fluidos’, ‘mediunidade’, etc. prejudica a posição científica do Espiritismo. Há alguma fundamentação, em filosofia da ciência,para essas criticas? Sendo uma ciência independente, dedicada ao estudo de fenômenos que escapam ao escopo das ciências clássicas, o Espiritismo não teria a liberdade de definir seus próprios termos? Historicamente, o Espiritismo precede à metapsíquica e à parapsicologia, sendo também anterior às novas concepções de matéria e energia da física atual. Isso não lhe daria a posição de pioneiro no estudo e definição dos fenômenos espíritas, cabendo-lhe o direito de estabelecer sua própria nomenclatura?

Resposta:

As considerações sobre a natureza da linguagem apresentadas no primeiro artigo desta série já forneceram o essencial para esclarecer o presente problema. Igualmente, as afirmações corretas implícitas nas próprias interrogações do final da questão tornam a resposta quase desnecessária. Todavia, gostaria de acrescentar algo em sentido explícito.

De fato, propostas de revisão do vocabulário técnico do Espiritismo são bastante comuns hoje, especialmente por parte de pessoas com alguma familiaridade com disciplinas acadêmicas. Os termos mencionados como exemplo parecem, em particular, causar-lhes certo incômodo, sendo freqüentemente substituídos por palavras como ‘energia’ e ‘paranormalidade’, ‘sensibilidade’, etc. Imagina-se estar assim conferindo maior cientificidade ao Espiritismo, livrando-o de noções “ultrapassadas” do século XIX. Ora, o mais elementar senso filosófico mostra que não é no vocabulário que assenta o caráter científico ou não de uma disciplina.

As palavras são, como foi lembrado no artigo anterior, meros símbolos para a expressão de conceitos; se estes não encontrarem respaldo em uma teoria científica coerente, abrangente e empiricamente adequada (isto é, adaptada aos fatos), de nada adiantará modificá-las. Por outro lado, uma teoria científica não será substancialmente alterada pela modificação de seu vocabulário. Logo, qualquer alegação de que o Espiritismo tem de passar por uma atualização não pode limitar-se à substituição de palavras, como ingenuamente se procura fazer. Essa alegação só se poderia justificar a partir de uma análise profunda, exaustiva e meticulosa da teoria espírita e de todos os fatos de que trata, que revelasse racionalmente que ela não lhes dá explicação adequada,

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ou contém falhas de consistência lógica, propondo-se concretamente uma outra teoria melhor que a possa substituir. No parágrafo 14, n. 8, de O Livro dos Médiuns Kardec resume as condições para uma crítica sustentável do Espiritismo (e, aliás, de qualquer outra ciência) que, por sua lucidez e atualidade, merece ser aqui reproduzida:

O Espiritismo não pode considerar crítico sério senão aquele que tudo tenha visto, estudado e aprofundado com a paciência e a perseverança de um observador consciencioso; que do assunto saiba tanto quanto o adepto mais esclarecido; que haja, por conseguinte, haurido seus conhecimentos algures, que não nos romances da ciência; aquele a quem não se possa opor fato algum que lhe seja desconhecido, nenhum argumento de que já não tenha cogitado e cuja refutação faça, não por mera negação, mas por meio de outros argumentos mais peremptórios; aquele, finalmente, que possa indicar, para os fatos averiguados, causa mais lógica do que a que lhe aponta o Espiritismo. Tal crítico ainda está por aparecer.

Esse trecho serviu de mote para o artigo “A excelência metodológica do Espiritismo”, citado na lista de referências bibliográficas. Nele procuro mostrar, ainda que de forma breve e simplificada, que as condições para uma revisão do Espiritismo em nome da cientificidade até hoje não foram satisfeitas. A teoria espírita kardequiana tem tudo o que é essencial para sua classificação como uma ciência genuína, à luz das concepções atuais da filosofia da ciência. Não é naturalmente o caso de repetir aqui o que expus nesse trabalho e em outros sobre o mesmo tema. No entanto, parece-me importante particularizar um pouco a análise, com vistas aos exemplos dados na pergunta.

A palavra ‘mediunidade’ foi criada por Kardec para designar a faculdade que certos indivíduos possuem de servir, em maior ou menor grau e de modos diversos, de intermediários entre os Espíritos e os homens. Essa noção recebeu precisão e conteúdo cognitivo por sua inserção em uma teoria completa dos fenômenos mediúnicos, exposta principalmente em O Livro dos Médiuns (ver o artigo “Estudo sobre a mediunidade”, citado no final). Embora ela se encontre, como qualquer teoria científica, em contato periférico com teorias de áreas contíguas, de dentro e de fora do Espiritismo, possui bases de sustentação autônomas, não tendo que sofrer alterações substanciais ou terminológicas em virtude do que possa ocorrer nesses domínios conexos.

As modificações que se têm proposto para o Espiritismo geralmente limitam-se ao plano lingüístico, como se se tivesse vergonha de escrever ou pronunciar as palavras ‘médium’ e ‘mediunidade’, preferindo-se antes adornar o discurso com termos rebuscados, provenientes de linhas de investigação incipientes ou pseudo-científicas, como a metapsíquica, a parapsicologia e diversas vertentes ligadas à psicologia ou mesmo a doutrinas orientalistas.

É evidente que isso só contribui para aumentar as dificuldades de compreensão e comunicação ou, o que é pior, para dispersar as pesquisas relativamente ao núcleo teórico paradigmático da ciência espírita, com graves repercussões para o seu desenvolvimento. Constitui fato reconhecido entre os filósofos da ciência contemporâneos que as substituições de conceitos e teorias fundamentais numa ciência somente se justificam pela degeneração global do programa de pesquisa no qual se inserem, juntamente com o fornecimento efetivo de um programa alternativo que o suplante em coerência, abrangência, precisão e fertilidade heurística. Ora, não padece dúvida para qualquer estudioso isento que nada disso sequer esboçou-se no caso do Espiritismo.

Considerações semelhantes aplicam-se à palavra ‘fluido’. É certo que ao cunhar a expressão ‘fluidos espirituais’ para denotar certos elementos materiais “sutis” que

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tomam parte em processos diversos examinados pelo Espiritismo, como a ação dos Espíritos sobre a matéria ordinária (mediunidade, curas, passes, etc.), ou a constituição dos corpos e da ambiência dos Espíritos (perispírito, objetos do mundo espiritual, etc.), Kardec procurou analogias, ainda que tênues, com certos elementos que, segundo as melhores teorias físicas da época, participariam dos fenômenos elétricos, magnéticos ou térmicos: os chamados fluidos elétrico e magnético, e o calórico, igualmente invisíveis, sutis, imponderáveis.

Ora, como não houve mais do que analogia e apropriação de um símbolo lingüístico para construir uma expressão nova – ‘fluidos espirituais’, que em geral se simplificava para ‘fluidos’, dentro do contexto espírita – , não se segue que a teoria espírita tenha de ser modificada terminológica ou substancialmente na caracterização dos referidos processos porque as teorias físicas que sugeriram as analogias tenham sido alteradas ou substituídas no curso evolutivo da física.

Um historiador da ciência bem informado seguramente poderá encontrar diversas situações semelhantes no âmbito das ciências acadêmicas. Reportemo-nos de passagem, por exemplo, ao que aconteceu na química quando as teorias físicas sobre a estrutura da matéria se alteraram na década de 1920, com o desenvolvimento e aceitação da mecânica quântica. Embora os químicos tenham levado em conta a nova teoria física, dada a proximidade e as interseções entre as áreas, tendo-se mesmo criado ramos e técnicas de cálculo novos na química, as concepções e métodos referentes às ligações químicas, estruturas moleculares, etc. continuaram mais ou menos como eram, em um amplo espectro de investigações teóricas e experimentais.

Voltando ao caso do Espiritismo, salienta-se bem na pergunta que ele constitui “uma ciência independente, dedicada ao estudo de fenômenos que escapam ao escopo das ciências clássicas”, tendo “a liberdade de definir seus próprios termos”; e, poderia acrescentar: seus conceitos e teorias. Modificações nesses pontos só se legitimariam, repito, na medida em que análises rigorosas internas ao programa científico espírita indicassem sua necessidade.

Ainda com relação à noção de fluido, deve-se notar que ela não é tão abominada na física como parecem crer os reformistas. Em primeiro lugar, cumpre notar que todos os líquidos e gases são fluidos, e seu estudo é feito em diversas áreas da ciência, como a hidrodinâmica. Depois, quanto à eletricidade, magnetismo e termodinâmica, as teorias atuais prescindem dessa noção no nível operacional, tendo assumido feições preponderantemente matemáticas e preditivas. No entanto, quando se desce à análise de fundamentos – e raros cientistas dedicam-se a isso atualmente – percebe-se que, à semelhança das demais teorias da física, estão envoltas em problemas conceituais graves. Não é nada claro, por exemplo, o que seja um campo elétrico ou magnético (noções usadas nas teorias físicas que sucederam às teorias de fluidos), não do ponto de vista de sua caracterização matemática, é claro, mas de sua representação intuitiva, de sua essência, do modo pelo qual surge, se propaga e causa certos fenômenos. Lembremo-nos, por fim, que os próprios pais da teoria eletromagnética, como Faraday e Maxwell, não dispensaram o conceito de fluido quando se tratava de explicar – e não simplesmente calcular – os fenômenos.

Dir-se-á talvez que Einstein baniu esse conceito da ciência ao criar a teoria da relatividade restrita, em 1905. Embora essa afirmação se tenha tornado comum em certos círculos, entre os especialistas em fundamentos não há consenso sobre o ponto, não obstante seja claro que o chamado “éter eletromagnético” regido por leis mecânicas não compareça na aludida teoria. Mas essa não é a única teoria da ciência, nem tampouco está isenta de dificuldades conceituais e teóricas diversas.

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Evidentemente, este não é o lugar para adentrar esse tópico complexo. Fica, porém, uma advertência aos espíritas de boa vontade para que não se deixem influenciar facilmente por tais assertivas, antes que façam estudos profissionais, que levem em conta, por exemplo, a teoria da relatividade geral e todas as perplexidades que envolvem as teorias do espaço-tempo e da cosmologia contemporâneas, nas quais noções muito próximas à de fluido parecem estar encontrando lugar.

Apenas para concluir, vale mencionar que virou moda nos meios espíritas e semi-espíritas a substituição da palavra ‘fluido’ por ‘energia’, sempre no pressuposto de que é por aí que vai a ciência. Ora, assim como as noções de espaço, tempo, força, massa, carga elétrica, campo, etc., a noção de energia é objeto de inúmeras dificuldades conceituais, não se ganhando nada em clareza, precisão e cientificidade com a sua utilização, muito pelo contrário. Ademais, esse uso apresenta o inconveniente de se dar numa área distante da área de sua criação original, a física, representando uma enxertia no programa científico espírita, fonte certa de confusões.

A respeito da utilização das noções das palavras ‘fluido’, ‘energia’ e ‘magnetismo’ no Espiritismo, recomendo a leitura do artigos de Aécio P. Chagas, “Polissemias no Espiritismo” e “A ciência confirma o Espiritismo?” Outra análise profissional do emprego impróprio de noções científicas, em particular da noção de energia, no Espiritismo é feita no artigo “Algumas considerações oportunas sobre a relação Espiritismo-Ciência”, de Ademir L. Xavier Jr., que também consta da lista de referências bibliográficas.

* * *

No próximo artigo desta série será examinado o aspecto religioso do Espiritismo, que apesar de ter sido lucidamente abordado por Kardec ainda parece não ser bem compreendido em alguns setores do movimento espírita.

Referências:

(Estes artigos e outros que tratam de assuntos correlacionados estão disponíveis também no site do Grupo de Estudos Espíritas da Unicamp: http://www.geocities.com/Athens/Academy/8482.)

CHAGAS, A. P. “A ciência confirma o Espiritismo?”, Reformador, julho de 1995, p. 208-11.

––. “Polissemias no Espiritismo”, Revista Internacional de Espiritismo, setembro de 1996, p. 247-49.

CHIBENI, S. S. “A excelência metodológica do Espiritismo”, Reformador, novembro de 1988, p. 328-333, e dezembro de 1988, p. 373-378.

––. “Estudo sobre a mediunidade” (em co-autoria com Clarice Seno Chibeni), Reformador, agosto de 1997, p. 240-43 e 253-55.

KARDEC, A. O Livro dos Médiuns. Trad. Guillon Ribeiro, 59a ed., revista, Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s.d.

XAVIER Jr., A. L. “Algumas considerações oportunas sobre a relação Espiritismo-Ciência”, Reformador, agosto de 1995, p. 244-46.

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[1] O conteúdo do texto corresponde, com algumas adaptações, a parte de entrevista concedida por mim ao GEAE (Grupo de Estudos Avançados de Espiritismo), pioneiro na divulgação do Espiritismo pela Internet. A entrevista foi publicada no Boletim n. 300 (edição extra), que circulou em 7/7/1998, podendo ser encontrado no site http://www.geae.org. Gostaria de agradecer ao GEAE a anuência para o aproveitamento do material nesta série de artigos. Sou especialmente grato aos seus membros Ademir L. Xavier Jr., pela iniciativa da entrevista, e Carlos A. Iglesia Bernardo, por haver reunido as relevantes e oportunas questões.

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Questões acerca da natureza do Espiritismo - III

A religião espírita

Silvio Seno Chibeni

O presente artigo examina algumas questões ligadas ao aspecto religioso do Espiritismo, que apesar de ter sido lucidamente abordado por Kardec ainda é objeto de discussão em alguns setores do movimento espírita.[1]

Questões:

a) Dentro dos conceitos atuais da ciência e da filosofia, como poderíamos classificar o Espiritismo? O que lhe parece a clássica apresentação do Espiritismo como uma doutrina de conseqüências cientificas, filosóficas e religiosas?

b) Considerando essa forma de apresentar a doutrina, segundo seus aspectos básicos, qual seria a diferença entre dizer-se “conseqüências religiosas” e “conseqüências morais”?

c) No GEAE (Grupo de Estudos Avançados de Espiritismo) tem-se discutido a aplicação da designação de religião para o Espiritismo; aparentemente, não há divergências quanto à sua classificação como ciência e filosofia. Segundo a filosofia, o que caracteriza uma religião? Quais os limites entre ciência, filosofia, moral e religião? O Espiritismo é uma religião?

Respostas:

A perspectiva para a compreensão do Espiritismo apontada no item (a) parece-me correta, desde que se mude um pouco a forma de expressão. Dizer que ele é uma doutrina “de conseqüências” científicas, filosóficas e morais implica considerá-lo como uma quarta coisa, da qual decorreriam essas conseqüências. Na verdade, poderíamos afirmar que ele constitui uma ciência associada a uma filosofia e a um sistema moral, ou, mudando a ênfase, uma filosofia com bases científicas e implicações morais.

Quanto aos itens (b) e (c), cumpre lembrar inicialmente que a moral (ou ética) é uma das áreas da filosofia, investigada com atenção por filósofos de todas as épocas, desde a Grécia Antiga até nossos dias. De modo muito simplificado, poderíamos defini-la como o estudo do bem e do mal. Seu problema fundamental é o estabelecimento de critérios pelos quais se possam distinguir as ações em boas e más, certas e erradas, ou, sob outro ângulo, avaliar criticamente os critérios propostos para tal fim pelas diferentes religiões, ideologias, sistemas políticos, etc.

Nunca houve uma sociedade humana civilizada totalmente destituída de códigos morais que estabelecessem limites para as ações dos indivíduos. Nos primórdios da civilização tais códigos usualmente baseavam-se nas concepções religiosas vigentes, a seu turno amplamente dependentes do ensino de indivíduos considerados especiais, tais como profetas, pitonisas, gurus, etc. Tais pessoas muitas vezes alegavam dispor de meios incomuns, sobrenaturais, de comunicação com a própria Divindade ou divindades; suas doutrinas eram, pois, tidas como “revelações”.

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Especialmente a partir do Renascimento (séculos XV e XVI), a autoridade moral das religiões estabelecidas em tais bases começou a ser mais e mais questionada. O movimento intelectual de valorização das faculdades cognitivas naturais – a razão e a observação – encontrou terreno preparado pelas fragilidades teóricas do revelacionismo religioso que, ademais, havia tantas vezes conivido, legitimado ou participado diretamente de ações em franco desacordo com um certo sentido ético natural do ser humano (discriminações, perseguições, torturas, assassinatos, etc.).

Sob a influência vigorosa de grandes filósofos do período moderno, entre os quais cumpre destacar o inglês John Locke (1632-1704), as legislações civis dos povos mais esclarecidos foram se dissociando dos sistemas religiosos, quaisquer que fossem. Pontos altos desse processo foram, por exemplo, as revoluções inglesa (1688) e francesa (1789), e a assinatura da Constituição Americana (1789). Em todos esses episódios, os códigos de direitos e deveres dos cidadãos resultaram de deliberações e acordos tácitos ou explícitos de grupos laicos. Os filósofos acadêmicos modernos desenvolveram seus estudos éticos sob perspectivas diversas e nem sempre compatíveis umas com as outras, mas que em geral excluem consciente e explicitamente quaisquer fundamentos religiosos, teológicos ou místicos.

A moral sempre constituiu parte integrante das religiões. No entanto, estas não se resumem à proposição e defesa de sistemas morais, incluindo, de modo típico, cultos, liturgias e rituais diversos, hierarquias, princípios teológicos abstratos sem relação direta com a questão da conduta humana, etc. Foi essa bagagem-extra, aliás, o que mais repulsa causou aos chamados “livres-pensadores”, responsáveis pela renovação da filosofia e da ciência a partir do Renascimento, tendo conduzido, por um processo compreensível de exacerbação, ao ateísmo e ao materialismo, em graus sem precedentes na história da humanidade.

Perdidas as bases religiosas tradicionais, a ética teve dificuldades para estabelecer princípios de conduta objetivos. Nasceu daí uma vertente bastante visível na sociedade hodierna, que é o chamado relativismo ético, segundo o qual o que é certo ou errado, bom ou ruim, depende da pessoa, do grupo social, da época, etc. De forma oportunista, intelectuais (ou pseudo-intelectuais) têm explorado esse canal para tentar legitimar os mais aberrantes comportamentos individuais ou grupais, contribuindo assim decisivamente para a degeneração das estruturas psicológicas e sociais.

No campo da filosofia acadêmica, existem propostas éticas não-religiosas que procuram refutar o relativismo, dividindo-se em duas grandes classes: os sistemas éticos racionalistas, ou aprioristas, como o de Immanuel Kant (1724-1804), e o utilitarismo, que encontra raízes em Locke, mas só foi desenvolvido mais explicitamente por Jeremy Bentham (1748-1832) e John Stuart Mill (1806-1873). Pode-se afirmar com razoável segurança que o efeito prático dos sistemas éticos do primeiro tipo sobre as sociedades contemporâneas é quase nulo, por razões que não vem ao caso examinar aqui. Quanto à segunda proposta, embora a palavra ‘utilitarismo’ tenha impropriamente adquirido uma conotação negativa fora dos círculos filosóficos, é inegável que repercutiu de forma profunda no estabelecimento dos melhores sistemas sociais existentes, quer do ponto de vista material, quer dos direitos humanos e do fomento às artes, ciências e filosofia. Mesmo nessas sociedades, porém, assiste-se hoje a crescente desvalorização das avaliações a longo prazo das ações humanas e ao esquecimento dos princípios filosóficos seguros que nortearam os seus fundadores, abrindo amplo espaço para o referido relativismo moral.

Quando devidamente compreendido, o Espiritismo traz contribuições importantes para todo esse panorama da ética, tão imperfeitamente esboçado aqui. Refinando e

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estendendo o conhecimento acerca do ser humano, ele permite a elaboração de uma ética objetiva e clara, explorando, com adaptações, a vertente de Bentham e Mill. Tratei desse assunto nos artigos “Os fundamentos da ética espírita” e “A excelência metodológica do Espiritismo” (seção 5), que devem ser consultados para o desenvolvimento ulterior desta resposta.

Em diversas de suas obras, Kardec deu grande importância ao estabelecimento da moral espírita, abordando o assunto em profundidade. Mostrou que com o conhecimento científico espírita a moral deixa de ser uma questão de especulações abstratas ou de opiniões, estando indissociavelmente ligada ao estudo das conseqüências das ações humanas, em conexão com a busca da felicidade, objetivo comum de todos os seres humanos. Ressaltou ainda que o corpo de princípios morais obtidos por essa via da razão e da experiência coincide com aquele proposto por Jesus. Conforme registrou no parágrafo 56 do primeiro capítulo de A Gênese, o Espiritismo “[dá] por sanção à doutrina cristã as próprias leis da Natureza”.

Ora, na medida em que fornece ao homem conhecimento seguro das regras de conduta capazes de harmonizá-lo consigo mesmo e com os demais seres, o Espiritismo torna-se “o mais potente auxiliar da religião”, conforme nota Kardec nos lúcidos comentários adidos às questões 147 e 148 de O Livro dos Espíritos. A religião aqui aludida não se confunde, evidentemente, com as doutrinas religiosas tradicionais, com suas hierarquias, dogmas inquestionáveis e práticas exteriores, sendo antes uma religião no sentido próprio do termo, a re-ligação da criatura ao Criador.

A velha questão de se o Espiritismo é ou não uma religião não admite, pois, resposta unívoca, dada a duplicidade semântica do termo ‘religião’. Esse ponto foi lucidamente estudado e, a meu ver, esgotado, no artigo de Kardec intitulado justamente “Le Spiritisme est-il une religion?”, que apareceu na Revue Spirite de 1868. Para encerrar, vejamos estes parágrafos do famoso texto:

[...] o Espiritismo é, assim, uma religião? Sim, sem dúvida, senhores: No sentido filosófico o Espiritismo é uma religião, e disso nos honramos, pois que é a doutrina que funda os laços da fraternidade e da comunhão de pensamentos não em uma simples convenção, mas sobre a mais sólida das bases: as próprias leis da Natureza.

Por que então declaramos que o Espiritismo não era uma religião? Pela razão de que há apenas uma palavra para exprimir duas idéias diferentes, e que, segundo a opinião geral, o termo religião é inseparável da noção de culto, evocando unicamente uma idéia de forma, com o que o Espiritismo não guarda qualquer relação. Se se tivesse proclamado uma religião, o público nele não veria senão uma nova edição, ou uma variante, se quisermos, dos princípios absolutos em matéria de fé, uma casta sacerdotal com seu cortejo de hierarquias, cerimônias e privilégios; não o distinguiria das idéias de misticismo e dos enganos contra os quais se está freqüentemente bem instruído.

Não apresentando nenhuma das características de uma religião, na acepção usual da palavra, o Espiritismo não poderia nem deveria ornar-se de um título sobre cujo significado inevitavelmente haveria mal-entendidos. Eis porque ele se diz simplesmente uma doutrina filosófica e moral.

* * *

No próximo artigo desta série começarão a ser abordadas algumas questões acerca da ciência espírita e temas correlacionados.

Referências:

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CHIBENI, S. S. “A excelência metodológica do Espiritismo”, Reformador, novembro de 1988, p. 328-333, e dezembro de 1988, p. 373-378. (Disponível no sitedo Grupo de Estudos Espíritas da Unicamp: http://www.geocities.com/Athens/Academy/8482.)

––. “Os fundamentos da ética espírita”, Reformador, junho de 1985, p. 166-9.

KARDEC, A. O Livro dos Espíritos. Trad. de Guillon Ribeiro. 43a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s.d.

––. A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo. Trad. Guillon Ribeiro, 23a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s. d.)

––. Le Spiritisme est-il une religion? In: L’Obssession. Extraits textuels des Revues Spirites de 1858 a 1868. Farciennes, Bélgica, Éditions de l’Union Spirite, 1950. (Uma tradução confiável para o vernáculo, de Ismael Gomes Braga, pode ser encontrada no Reformador de março de 1976.)

[1] O conteúdo do texto corresponde, com algumas adaptações, a parte de entrevista concedida por mim ao GEAE (Grupo de Estudos Avançados de Espiritismo), pioneiro na divulgação do Espiritismo pela Internet. A entrevista foi publicada no Boletim n. 300 (edição extra), que circulou em 7/7/1998, podendo ser encontrado no site http://www.geae.org. Gostaria de agradecer ao GEAE a anuência para o aproveitamento do material nesta série de artigos. Sou especialmente grato aos seus membros Ademir L. Xavier Jr., pela iniciativa da entrevista, e Carlos A. Iglesia Bernardo, por haver reunido as relevantes e oportunas questões.

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Questões acerca da natureza do Espiritismo - IV

A “ciência oficial”

Silvio Seno Chibeni

Neste artigo são tecidas algumas considerações acerca da ciência oficial ou acadêmica, que serão úteis para o esclarecimento de certas questões sobre a ciência espírita, nos artigos subseqüentes desta série.[1]

Questão:

Costuma-se dizer que a “ciência” aprova ou rejeita determinado ponto. O que devemos entender por isso? Existe realmente uma “posição oficial” da ciência? Nesse caso quais seriam os órgãos ou pessoas que poderiam ter tal prerrogativa, de determinar a posição oficial da ciência? Parece-nos que na época de Kardec essa frase normalmente se referia às grandes academias e aos órgãos oficiais dos estados europeus. Há hoje algo equivalente?

Resposta:

A autoridade de que a ciência desfruta hoje em dia entre o público em geral pode ser aquilatada pelo fato de ser freqüentemente explorada para induzir à aceitação de determinadas teses, processos, sistemas políticos, produtos de consumo, etc. Há um efeito quase que intimidador associado à rotulação de algo como ‘científico’. Bens de consumo variados, desde cremes dentais até sofisticados aparelhos eletrodomésticos são ditos terem sido elaborados por processos científicos, ou submetidos a testes científicos. Geralmente despreparadas para avaliar por si próprias se, em cada caso, a qualificação é ou não pertinente, as pessoas tornam-se vítimas de manipulações diversas.

Mesmo no plano das idéias e teorias – e isso é o que mais de perto nos interessa aqui –, a demanda por cientificidade é notória. Diversas disciplinas mais recentes na história do pensamento, ou menos seguras de seus fundamentos e métodos, procuram de alguma forma modelar-se pelas disciplinas mais estabelecidas e bem sucedidas, como a física, a química e a biologia, inquestionavelmente consideradas científicas. Em nome desse processo de modelagem, porém, têm-se produzido verdadeiras aberrações científicas, que retardam o desenvolvimento das disciplinas nascentes ou em vias de consolidação. Embora a proposta de aprender-se algo acerca da natureza da ciência, ou do chamado “método científico”, pela inspeção das disciplinas paradigmaticamente científicas seja adequada e mesmo indispensável, a falta de preparo filosófico tem amiúde levado ao seu fracasso parcial ou total.

Bastante diverso foi o resultado alcançado por Allan Kardec no desenvolvimento do Espiritismo. Possuidor de sólida formação filosófica e científica, ele soube imprimir às investigações dos novos fenômenos um cunho genuinamente científico, conforme procurei destacar nos artigos da lista de referências bibliográficas. A ciência espírita, cujos fundamentos ele lançou, têm por objeto de estudo o elemento espiritual do ser humano. Esse elemento manifesta-se em múltiplos fenômenos psicossomáticos,

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anímicos e mediúnicos, sendo estes últimos os que desencadearam as pesquisas iniciais e permitiram o estabelecimento das leis básicas da teoria.

Nos referidos trabalhos, argumento, ademais, que o Espiritismo constitui a única abordagem científica disponível para essa gama de fenômenos. As propostas alternativas surgidas após ele invariavelmente incorreram nas aludidas distorções de concepção, por falta, entre outras coisas importantes, de uma adequada percepção das diferenças de objetos de estudo relativamente às ciências exatas. Em sua lucidez, Kardec reconheceu-as prontamente, apontando-as em diversas de suas obras, como por exemplo no item 7 da Introdução de O Livro dos Espíritos e ao longo das primeiras partes de O que é o Espiritismo e O Livro dos Médiuns. Estruturou então a teoria espírita em conformidade com as peculiaridades dos fenômenos de que trata, conferindo-lhe, ademais, consistência lógica, simplicidade, poder explicativo, abrangência, coerência e integração harmônica com ciências limítrofes, atributos igualmente necessários para qualquer disciplina que queira fazer jus ao título de ‘científica’.

Feitas essas observações preliminares (que serão parcialmente desenvolvidas nos artigos restantes desta série), posso adentrar agora mais diretamente o tópico específico da pergunta formulada. Felizmente, posso poupar-me à maior parte da tarefa, recomendando ao leitor a consulta dos artigos de Aécio P. Chagas, “O que é a Ciência?” e “A Ciência confirma o Espiritismo?”, incluídos na lista de referências bibliográficas. Nesses trabalhos a questão da ciência oficial, relativamente aos interesses espíritas, foi tratada de modo seguro e esclarecedor. Não me cabe aqui reproduzir seu conteúdo. Limitar-me-ei a relembrar alguns dos tópicos principais da análise do Prof. Chagas, estendendo um pouco a discussão para responder de forma explícita a pergunta que foi feita.

Uma distinção importante destacada nos trabalhos mencionados é aquela entre “ciência-conhecimento”, “ciência-atividade” e “ciência-comunidade”. Quando se afirma que a ciência aprova isso ou aquilo, a frase é passível de dupla interpretação: Ou significa que a coisa faz parte (ou pode ser deduzida) do corpo teórico paradigmático de uma das ciências maduras (física, química e biologia); ou, em sentido secundário, que a comunidade científica tem uma opinião mais ou menos geral a seu respeito, embora ela ainda não faça parte de nenhuma teoria bem estabelecida.

A idéia de uma “posição oficial” da ciência só é razoável se entendida com referência às teorias que, à época, integram os paradigmas das ciências maduras. Felizmente, não existe na ciência um Conselho Supremo (como o de certas religiões, partidos ou governos) que decida qual é a ortodoxia. É inerente à natureza da ciência contemporânea a distribuição do poder de avaliação em múltiplas instâncias, entre as quais se encontram as academias, departamentos universitários, institutos de pesquisa, agências de fomento e, principalmente, os periódicos especializados.

Os profissionais acadêmicos não ignoram que os jornais e revistas especializados canalizam hoje o grosso da produção científica, possuindo complexo sistema de filtragem que em inglês se chama de “double-blind refereeing”: os trabalhos submetidos para publicação são enviados anonimamente a vários membros conceituados da própria comunidade científica, que os examinam criticamente e anonimamente. Teses discrepantes dos paradigmas que não sejam maciçamente apoiadas por evidências experimentais e argumentos racionais são barradas por esse sistema. Se quisermos, podemos dizer que conflitam com a “posição oficial”, mas apenas nesse sentido específico. Não estou afirmando que o sistema seja infalível, mas ao lado de procedimentos semelhantes de rigor na preparação de profissionais, contratação, etc.,

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asseguram o rigor das teorias, técnicas e processos da ciência, possibilitando o seu progresso seguro.

No tempo de Kardec as publicações periódicas eram em número bem menor e não haviam ainda assumido o papel central que desempenham hoje; o conhecimento científico era veiculado principalmente em livros e memórias, publicados sob iniciativa individual ou das academias. Estas últimas ocupavam, conforme se sugere na pergunta, um papel muito importante; as instâncias avaliatórias da ciência eram, pois, mais centralizadas. Não raro isso deu margem a abusos e decisões erradas, como aliás observou Kardec várias vezes, ao discutir o caráter falível das corporações científicas. Hoje abusos e erros naturalmente ainda ocorrem, porém são geralmente detectados com mais facilidade pela enorme e integrada malha da comunidade científica.

* * *

O próximo artigo examinará alguns aspectos das relações entre a ciência espírita e as ciências acadêmicas, destacando-se a esclarecida e firme postura de Allan Kardec a esse respeito.

Referências:

(Vários destes artigos encontram-se, ao lado de outros sobre temas correlacionados, disponíveis no site do Grupo de Estudos Espíritas da Unicamp: http://www.geocities.com/Athens/Academy/8482.)

CHAGAS, A. P. “O que é a Ciência?”, Reformador, março de 1984, p. 80-83 e 93-95.

––. “A Ciência confirma o Espiritismo?”, Reformador, julho de 1995, p. 208-11.

CHIBENI, S. S. “Espiritismo e ciência”, Reformador, maio de 1984, p. 144-47 e 157-59.

––. “A excelência metodológica do Espiritismo”, Reformador, novembro de 1988, p. 328-333, e dezembro de 1988, p. 373-378.

––. “Ciência espírita”, Revista Internacional de Espiritismo, março 1991, p. 45-52.

––. “O paradigma espírita”, Reformador, junho de 1994, p. 176-80.

[1] O conteúdo do texto corresponde, com várias adaptações, a parte de entrevista concedida por mim ao GEAE (Grupo de Estudos Avançados de Espiritismo), pioneiro na divulgação do Espiritismo pela Internet. A entrevista foi publicada no Boletim n. 300 (edição extra), que circulou em 7/7/1998, podendo ser encontrado no site http://www.geae.org. Gostaria de agradecer ao GEAE a anuência para o aproveitamento do material nesta série de artigos. Sou especialmente grato aos seus membros Ademir L. Xavier Jr., pela iniciativa da entrevista, e Carlos A. Iglesia Bernardo, por haver reunido as relevantes e oportunas questões.

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Questões acerca da natureza do Espiritismo - V

As relações da ciência espírita com as ciências acadêmicas

Silvio Seno Chibeni

Este artigo examina brevemente alguns aspectos das relações entre a ciência espírita e as ciências acadêmicas, destacando-se a esclarecida e firme postura de Allan Kardec a esse respeito.[1]

Questão:

Na época do surgimento do Espiritismo alguém que se dedicasse à pesquisa dos fenômenos mediúnicos e não se inclinasse a considerá-los como fantasias ou fraudes arriscava-se a cair em descrédito nos meios científicos e acadêmicos. Houve alguma mudança nessa postura? Ainda existe antagonismo entre ciência e espiritualismo? A ciência é necessariamente materialista?

Resposta:

Existe, como está implícito nas considerações feitas no artigo precedente, um certo grau de conservadorismo na “ciência-comunidade”, e as análises filosóficas contemporâneas reconhecem aí um requisito importante de uma ciência madura. A compreensão desse ponto paradoxal requer estudos especializados. Em alguns artigos sobre a ciência espírita (ver referências bibliográficas) procurei indicar o papel daquilo que o filósofo da ciência Imre Lakatos chamou de “heurística negativa” de uma ciência. Trata-se, de forma simplificada, da decisão metodológica explícita ou tácita dos membros de uma comunidade científica de preservar, tanto quanto possível, o núcleo de leis fundamentais de seu programa científico de pesquisa.

Lakatos argumentou convincentemente que sem essa política conservadora moderada e racional o desenvolvimento científico ficaria inviabilizado. É somente quando condições excepcionais se reúnem, envolvendo o fracasso sistemático do programa de pesquisa em resolver problemas teóricos e de ajuste empírico que o núcleo do programa é revisto ou rejeitado. Na atividade normal da ciência os ajustes e desenvolvimentos teóricos se dão em partes menos centrais da malha teórica, que Lakatos denominou de “cinturão protetor” de leis auxiliares.

Menciono isso para ressaltar que a relutância da comunidade científica em aceitar uma nova teoria sobre o ser humano, como é o caso do Espiritismo, é natural e esperada. Cumpre notar que o Espiritismo trata de coisas que escapam ao domínio das ciências ordinárias, cujo objeto de estudo são os fenômenos e leis pertinentes à matéria. Detenhamo-nos um pouco mais sobre esse ponto.

Um elemento central na análise da ciência é a distinção entre teoria, método e objeto de estudo. As diversas ciências distinguem-se entre si, em primeira instância, por seus objetos de estudo, os conjuntos de fenômenos que investigam. Fenômenos mecânicos,

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elétricos, magnéticos e nucleares, por exemplo, são do escopo da física; a formação e dissociação de moléculas constitui objeto de estudo da química; a vida, em muitas de suas expressões, é examinada pela biologia. Existem, naturalmente, pontos de contato, interseções e hibridações entre as ciências, mas isso não dilui a distinção fundamental entre elas.

Ora, dada a diversidade de objetos de estudo, haverá diferenças expressivas nos métodos e características teóricas das várias ciências. A identificação de elementos comuns entre elas é tarefa mais difícil do que à primeira vista parece, constituindo um tópico dos mais importantes da área da filosofia denominadafilosofia da ciência.

Nos artigos mencionados procurei apresentar alguns traços importantes dessa disciplina, em conexão com o exame do aspecto científico do Espiritismo. Uma tese central neles defendida é que o Espiritismo, tal como estruturado por Allan Kardec, exibe todas as características de uma genuína ciência, à luz da filosofia da ciência contemporânea. Não se deve, porém, confundir o fato de o Espiritismo ser uma ciência com a suposição falsa de que ele é parte das ciências acadêmicas, que tratam de fenômenos referentes à matéria.

No parágrafo 7 da Introdução de O Livro dos Espíritos Kardec discorre lucidamente sobre o assunto, de uma perspectiva filosófica bem avançada para sua época, concluindo seguramente que “o Espiritismo não é da alçada da ciência”, isto é, das ciências acadêmicas. Retoma essa análise de forma mais extensa em O que é o Espiritismo, onde encontramos, por exemplo, este interessante raciocínio no capítulo I, segundo diálogo, seção “Oposição da ciência”:

As ciências vulgares repousam sobre as propriedades da matéria, que se pode, à vontade, manipular; os fenômenos que ela produz têm por agentes forças materiais.

Os do Espiritismo têm como agentes inteligências que possuem independência, livre-arbítrio e não estão sujeitas aos nossos caprichos; por isso eles escapam aos nossos processos de laboratório e aos nossos cálculos, e, desde então, ficam fora dos domínios da Ciência propriamente dita.

A Ciência enganou-se quando quis experimentar os Espíritos como o faz com uma pilha voltaica; foi mal sucedida, como devia ser, porque agiu pressupondo uma analogia que não existe; e depois, sem ir mais longe, concluiu pela negação, juízo temerário que o tempo se encarrega de ir emendando diariamente, como já fez com tantos outros [...].

As corporações científicas não devem, nem jamais deverão, pronunciar-se nesta questão; ela está tão fora dos limites do seu domínio como a de decretar se Deus existe ou não; é, pois, um erro tomá-las aqui por juiz.

No primeiro capítulo de A Gênese, parágrafo 16, Kardec salienta, a esse propósito, que estudando domínios diferentes e complementares “o Espiritismo e a ciência completam-se reciprocamente”.

A autonomia do Espiritismo com relação às ciências ordinárias parece estar suficientemente demonstrada (não aqui, neste breve resumo, evidentemente, mas nos extensos estudos feitos por Kardec e outros pensadores espíritas). Preocupa a incompleta percepção desse ponto por muitos espíritas em nossos dias, aqueles que pretendem, como dizem, “trazer a ciência para o Espiritismo”. Não se dão conta adequadamente de que o Espiritismo já constitui por si uma ciência independente e vigorosa, e que, ademais, a peculiaridade de seu objeto de estudo torna fora de propósito qualquer hibridação fundamental com as ciências da matéria. Há, é claro, áreas periféricas de contato, como por exemplo, o estudo das enfermidades psicossomáticas, onde pode e deve haver contribuições mútuas.

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Não se deve confundir o que estou dizendo com as justificadas críticas já avançadas por Kardec a pessoas que, em nome da ciência ou não, julgam o Espiritismo sem haver examinado atentamente todos os fatos de que trata, bem como sua estrutura teórica. Isso é inadmissível filosófica e cientificamente. Tal atitude infelizmente continua sendo comum, inclusive nos meios acadêmicos. A especialização que caracteriza a formação científica parece mesmo favorecê-la, com também notou Kardec no referido item de O Livro dos Espíritos:

Aquele que se fez especialista prende todas as suas idéias à especialidade que adotou. Tirai-o daí e o vereis sempre desarrazoar, por querer submeter tudo ao mesmo cadinho: conseqüência da fraqueza humana.

Na pergunta formulada alude-se também à questão mais geral da posição da ciência acerca do espiritualismo. Conforme em outras palavras ressaltou Aécio Chagas em alguns de seus artigos mencionados na lista de referências, não faz muito sentido discutir se as ciências acadêmicas, enquanto conhecimento, são materialistas ou não. Foram concebidas expressamente para descrever e explicar exclusivamente os fenômenos materiais, não tendo nada a dizer sobre a disputa materialismo versus espiritualismo, que gira em torno da questão da existência de algo além da matéria.

Se se pergunta agora se a comunidade científica acadêmica é materialista ou não, a questão faz sentido, mas só admite resposta estatística, visto que a convicção pessoal de cada um de seus integrantes acerca desse problema filosófico não constitui critério necessário ou suficiente para a sua admissão na profissão. Parece certo que significativa parcela dos cientistas atuais é materialista, mas isso talvez apenas reflita o padrão geral de crença das sociedades nas quais mais prosperam as ciências, como sugere o Prof.Chagas.

Seja como for, nós espíritas não devemos nos inquietar com isso, como advertiu Kardec ainda no mesmo parágrafo de O Livro dos Espíritos, de onde extrairei mais este trecho, para concluir:

O Espiritismo é o resultado de uma convicção pessoal, que os cientistas, como indivíduos, podem adquirir, abstração feita de sua qualidade de cientistas [...].

Quando as crenças espíritas se houverem difundido, quando estiverem aceitas pelas massas humanas [...], com elas se dará o que tem acontecido a todas as idéias novas que hão encontrado oposição: os cientistas se renderão à evidência. Lá chegarão, individualmente, pela força das coisas. Até então será intempestivo desviá-los de seus trabalhos especiais, para obrigá-los a se ocupar de um assunto estranho, que não lhes está nem nas atribuições, nem no programa. Enquanto isso não se verifica, os que, sem assunto prévio e aprofundado da matéria, se pronunciam pela negativa e escarnecem de quem não lhes subscrevem o conceito, esquecem que o mesmo se deu com a maior parte das grandes descobertas que fazem honra à Humanidade.

* * *

No próximo artigo será analisado brevemente o estatuto científico de algumas abordagens recentes de investigação de fenômenos espíritas.

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Referências:

(Alguns destes artigos encontram-se disponíveis no site do Grupo de Estudos Espíritas da Unicamp: http://www.geocities.com/Athens/Academy/8482.)

CHAGAS, A. P. “O que é a Ciência?”, Reformador, março de 1984, p. 80-83 e 93-95.

––. “O Espiritismo na Academia?”, Revista Internacional de Espiritismo, fevereiro de 1994, p. 20-22 e março de 1994, p. 41-43 .

––. “A ciência confirma o Espiritismo?”, Reformador, julho de 1995, p. 208-11.

––. Ainda sobre as relações entre as ciências e o Espiritismo. (Submetido para publicação.)

CHIBENI, S. S. “Espiritismo e ciência”, Reformador, maio de 1984, p. 144-47 e 157-59.

––. “A excelência metodológica do Espiritismo”, Reformador, novembro de 1988, p. 328-333, e dezembro de 1988, p. 373-378.

––. “Ciência espírita”, Revista Internacional de Espiritismo, março 1991, p. 45-52.

––. “O paradigma espírita”, Reformador, junho de 1994, p. 176-80.

KARDEC, A. Le Livre des Esprits. Paris, Dervy-Livres, s.d. (O Livro dos Espíritos. Trad. de Guillon Ribeiro. 43a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s.d.)

––. Qu'est-ce que le Spiritisme. Paris, Dervy-Livres, 1975. (O que é o Espiritismo. s. trad. 25a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s.d.)

––. La Genèse, les Miracles et les Prédictions selon le Spiritisme. Paris, La Diffusion Scientifique, s.d. (A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo. Trad. Guillon Ribeiro, 23a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s. d.)

[1] O conteúdo do texto corresponde, com adaptações, a parte de entrevista concedida por mim ao GEAE (Grupo de Estudos Avançados de Espiritismo), pioneiro na divulgação do Espiritismo pela Internet. A entrevista foi publicada no Boletim n. 300 (edição extra), que circulou em 7/7/1998, podendo ser encontrado no site http://www.geae.org. Gostaria de agradecer ao GEAE a anuência para o aproveitamento desse material nesta série de artigos. Sou especialmente grato aos seus membros Ademir L. Xavier Jr., pela iniciativa da entrevista, e Carlos A. Iglesia Bernardo, por haver reunido as relevantes e oportunas questões.

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Questões acerca da natureza do Espiritismo - VI

Algumas abordagens recentes dos fenômenos espíritas

Silvio Seno Chibeni

Neste artigo analisa-se brevemente o estatuto científico de algumas abordagens recentes de investigação de fenômenos espíritas.[1]

Questão:

A transcomunicação instrumental, o fenômeno de quase-morte e a terapia de vidas passadas, que surgiram recentemente como novos campos de estudos, investigam fenômenos que representam desafios para as concepções cientificas vigentes. Dentro da filosofia da ciência, qual seria a postura adequada a ser seguida no seu estudo? Alguns espíritas têm participado individualmente do desenvolvimento dessas pesquisas. Seria recomendável um engajamento das instituições espíritas? Haveria justificativa para algo como um comitê de investigação patrocinado por uma federação ou um conselho espírita?

Resposta:

Parte 1

A análise do estatuto científico das três áreas de investigação mencionadas deve ser precedida de algumas considerações filosóficas gerais, complementares às tecidas nos artigos anteriores. Na segunda parte do artigo (que não fez parte da entrevista ao GEAE) farei alguns breves comentários particulares sobre cada uma delas.

A abordagem científica de qualquer classe de fenômenos requer o cumprimento de uma série de condições. Não há espaço aqui para enumerá-las. Poderia destacar, noentanto, que o desenvolvimento de uma disciplina científica pressupõe não apenas a observação rigorosa dos fatos, mas principalmente a formulação de teorias logicamente consistentes, abrangentes, coerentes, simples e integradas às teorias estabelecidas dedomínios conexos de fenômenos. Insisto nesse ponto porque a falha metodológica mais comum nas linhas de investigação que têm pretendido, sem sucesso, suplantar o Espiritismo em nome da cientificidade é exatamente a desatenção ao aspecto teórico. Aliás, como já indiquei em alguns dos artigos mencionados na lista bibliográfica, isso parece ser uma herança indesejável das concepções antigas de ciência, de cunho positivista. (Consultem-se também, a esse respeito, os textos de Aécio Chagas.)

O que efetivamente tem sido publicado com relação às aludidas abordagens não alivia a suspeita de que as falhas de concepção científica que caracterizaram a metapsíquica e a parapsicologia não foram definitivamente superadas. Não se pode, evidentemente, generalizar; mas que há um risco potencial aqui, há. Seria sensato que os investigadores interessados nesses fatos, ou alegados fatos, desenvolvessem seus estudos a partir do fértil e seguro programa científico de pesquisa espírita, pois que nunca se apontaram razões ponderáveis para a sua substituição. Ao invés disso, avança-

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se explicita ou implicitamente que serão essas e outras linhas de pesquisa assemelhadas que finalmente colocarão o estudo do espírito na rota da ciência ...

Quanto ao engajamento de instituições espíritas, com a constituição de comissões, não parece recomendável, não apenas em vista das reservas expressas acima, mas também porque tal prática não mais condiz com a ciência, devendo ser deixada para partidos políticos, administradores e seitas hieraquizadas. Na ciência, e portanto no Espiritismo, a regra do jogo é o livre-exame, o intercâmbio de idéias, a sujeição de todas as propostas à mais vigorosa crítica. Que cada um, pois, investigue o que achar melhor, já que todo fato tem uma certa importância para o nosso conhecimento do mundo; previna-se, no entanto, de assumir certas teses filosóficas sobre a cientificidade desse ou daquele método, dessa ou daquela disciplina, sem o necessário respaldo em estudos profissionais.

Parte 2

Sem pretender fazer plena justiça à complexidade do assunto, indico agora de forma muito sucinta aquilo que me parece mais importante na análise particular de cada uma das abordagens mencionadas na questão.

Comecemos pela chamada “transcomunicação instrumental” (TCI). Relembrando o que foi visto no artigo anterior, o objeto de estudo do Espiritismo é o elemento espiritual. Portanto ele não é da alçada das ciências acadêmicas. Segundo a concepção contemporânea de ciência, o Espiritismo é científico devido às características estruturais de sua teoria e o modo pelo qual se relaciona com os fenômenos: malha teórica hierarquizada, coerente e simples, em simbiose com a totalidade dos fenômenos, acoplada a regras metodológicas de preservação das leis básicas e de desenvolvimento da teoria.

Conforme Kardec apropriadamente notou em diversos lugares, o estabelecimento dos princípios fundamentais do Espiritismo prescinde de análises quantitativas, e portanto de aparelhos. O mero emprego de aparelhos não assegura a cientificidade de nenhuma disciplina. Só são usados nas ciências ordinárias porque não há outro recurso para a detecção de certas entidades e aspectos do mundo material. No entanto, deve-se lembrar que seu uso diminui o grau de confiabilidade epistêmica: quando possíveis, as observações sem aparelhos são sempre mais seguras.

Ademais, quando se trata de uma área de investigação nova o apelo indiscriminado a aparelhos pode encobrir deficiências metodológicas, dando uma falsa impressão de cientificidade. Para uma análise um pouco mais extensa desses tópicos complexos, do âmbito da epistemologia (teoria do conhecimento), remeto o leitor aos três primeiros textos de minha autoria da lista bibliográfica, assim como aos artigos de Aécio Chagas nela citados.

Desse modo, à luz de uma análise epistemológica rigorosa o cerne da alegada justificativa de se usar aparelhos para a comprovação da existência do espírito fica comprometido. Aliás, como também comento no artigo “Ciência espírita”, a investigação dessa questão não constitui tópico de pesquisa propriamente espírita, já que, em boa razão, quem estiver em dúvida sobre a existência do espírito ainda não será espírita. O Espiritismo alcançou a certeza sobre isso nos primórdios de seu desenvolvimento, e por meios epistêmica e cientificamente irretocáveis. É claro que aqueles que deixaram de estudar essas origens, os fatos e a teoria espírita, e ainda não se convenceram, têm o direito de investigar a questão como melhor lhes pareça, correndo os riscos peculiares à metodologia que escolham.

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Cumpre agora notar que segundo a teoria espírita os alegados fenômenos de TCI são possíveis. A se comprovarem, serão mais uma modalidade de fenômenos de efeitos físicos. Neste caso, a evidência que poderão fornecer necessariamente será menos confiável do que a obtida pelos fenômenos de efeitos físicos mais simples (sons diretamente perceptíveis, movimentos de objetos, etc.), que a seu turno são menos confiáveis do que os fenômenos de efeitos intelectuais, conforme ressaltou Kardec em diversas de suas obras.

Ainda segundo constatou Kardec, nos fenômenos de efeitos físicos o Espírito nunca atua diretamente sobre a matéria: precisa sempre do concurso de um médium (que pode nem saber que está participando da ocorrência). Kardec desenvolve interessante teoria acerca das manifestações físicas no cap. IV da segunda parte de O Livro dos Médiuns. Sobre o papel do médium na produção desses fenômenos, ver também nessa obra os parágrafos 74 (itens 8 e 9) e 223 (questões 9 e 9a). Assim, uma outra justificação dada para as investigações de TCI – a possibilidade de se dispensarem os médiuns – não encontra respaldo doutrinário.

Análise da literatura sobre a TCI em diversas ocasiões infelizmente evidencia não apenas desatenção para com os aspectos filosóficos e teóricos apontados acima, mas também pouco rigor científico. Sons confusos e imagens grotescas são dados como evidência ou mesmo prova, expondo os pesquisadores ao ridículo nos meios acadêmicos (conforme, aliás, se constatou recentemente em programa televisivo brasileiro). Em um esforço desesperado, até mesmo prováveis fraudes têm sido produzidas e divulgadas, num atentado aos princípios éticos que deveriam nortear tais estudos. Isso tudo parece confirmar as observações de Kardec de que os fenômenos de efeitos físicos são mais comumente produzidos por Espíritos inferiores em saber e moralidade.

Não me alongarei sobre esse tópico, dado que existem excelentes análises publicadas na imprensa espírita. Recomendaria, em particular os artigos de Ademir L. Xavier Jr. e Josué de Freitas incluídos nas referências bibliográficas.

Assim como os fenômenos de ação dos Espíritos sobre objetos inanimados, os chamados “fenômenos de quase-morte” apresentam potencial interesse para a investigação do elemento espiritual do ser humano. E tanto em um caso como no outro a contribuição experimental e teórica do Espiritismo não deve ser desconsiderada. Ele fornece um arsenal de informações e métodos valiosos para o exame da questão, tendo já podido penetrar muito além do mero registro e catalogação dos relatos empíricos. A renúncia em aproveitar suas contribuições representa prejuízo certo para a interpretação e controle científicos dos fatos.

Mais uma vez, é o que infelizmente vem ocorrendo com freqüência. Nos estudos não-espíritas dos casos notam-se amiúde limitações diversas, entre as quais destacaria a falta de recursos rigorosos de avaliação, que permitam separar de modo seguro as várias causas possíveis dos fenômenos: fisiológicas, anímicas e espirituais. À luz do conhecimento espírita, o alto grau de uniformidade dos relatos (luzes, seres vestidos de branco, “túnel”, etc.) é indicativo da preponderância de fatores dos dois primeiros tipos, já que sabemos das lamentáveis condições em que vive e desencarna a maioria dos habitantes deste planeta.

Conforme ressaltam os filósofos da ciência contemporâneos, é somente uma teoria sólida e bem estruturada que confere fertilidade experimental e interpretativa ao estudo dos fenômenos. Kardec notou o ponto mesmo em sua época, conduzindo suas

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investigações num processo integrado de teoria e experimentação. Comentando essa questão filosófica no parágrafo 29 de O Livro dos Médiuns, observa:

Podemos dizer que, para a maioria dos que não se preparam pelo raciocínio, os fenômenos materiais quase nenhum peso têm. Quanto mais extraordinários são esses fenômenos, quanto mais se afastam das leis conhecidas, maior oposição encontram e isto por uma razão muito simples: é que todos somos levados naturalmente a duvidar de uma coisa que não tem sanção racional. Cada um a considera de seu ponto de vista e a explica a seu modo [...].

Essa “sanção racional” é a que advém da explicação dos fatos através da teoria. No parágrafo 34, após ressaltar a importância dos fatos na fundamentação da teoria, Kardec considera, por outro lado, que de dez pessoas novatas que assistam a uma sessão de experimentação espírita “nove sairão sem estar convencidas e algumas mais incrédulas do que antes, por não terem as experiências correspondido ao que esperavam”. Prossegue então Kardec:

O inverso se dará com as que puderem compreender os fatos, mediante antecipado conhecimento teórico. Paras estas pessoas, a teoria constitui um meio de verificação, sem que coisa alguma as surpreenda, nem mesmo o insucesso, porque sabem em que condições os fenômenos se produzem e que não se lhes deve pedir o que não podem dar. Assim, pois, a inteligência prévia dos fatos não só as coloca em condições de se aperceberem de todas as anomalias, mas também de apreenderem um sem número de particularidades, de matizes, às vezes muito delicados, que escapam ao observador ignorante. [2]

Em suma, uma apreciação semelhante pode ser feita da TCI e dos fenômenos de “quase-morte”: são áreas legítimas de investigação, mas de importância apenas relativa para o Espiritismo, estando longe de constituir bases sobre as quais deva apoiar-se, nem mesmo em nome de uma suposta cientificidade. Ademais, na pesquisa de tão complexos e delicados fenômenos não se pode prescindir do conhecimento espírita, arduamente adquirido, sem que se retroceda científica e filosoficamente.

Passando, por fim, à chamada “terapia de vidas passadas” (TVP),[3] saliento de início que as considerações filosóficas que vêm de ser tecidas acerca das duas outras abordagens aplicam-se, mutatis mutandis, também a ela. A possibilidade do fenômeno de regressão de memória está estabelecida há muito nos anais do Espiritismo, desde a obra de Kardec. Fenômenos desse tipo podem ser relevantes para a comprovação da existência do espírito, da reencarnação e da lei de causa e efeito, entre outros pontos importantes. Não são, todavia, determinantes, e sua complexidade só pode ser decifrada à luz da teoria espírita. Mais uma vez, aquilo que se observa nesse campo é passível de interpretações múltiplas, e a ausência de uma teoria sólida pode reduzir seu estudo a um empirismo anti-científico, propiciador de equívocos e ilusões. O terreno para os adversários do Espiritismo ficaria, assim, aplainado.

O que singulariza a proposta da TVP são suas implicações éticas. Constatada a possibilidade do fato, Kardec tratou de aprofundar esse aspecto, como costumava fazer em todas as suas investigações científicas. Assim é que encontramos seções com o título “Esquecimento do passado” tanto em O Livro dos Espíritos (cap. 7 da segunda parte, questões 392 a 399) como em O Evangelho Segundo o Espiritismo (cap. 5, n. 11). A leitura a reflexão sobre o rico conteúdo desses textos é indispensável a quem quer que se interesse pelo assunto e se preocupe em evitar passos em falso.

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Tentando uma difícil síntese, diria que, embora possível enquanto fenômeno, a recordação explícita do passado foi providencialmente velada por um mecanismo natural relativo à encarnação. Interferir deliberadamente nesse mecanismo pode significar a violação de uma lei natural, e isso não se faz sem as correspondentes conseqüências. Vejamos estas palavras de Kardec na citada seção de O Evangelho Segundo o Espiritismo: [4]

Em vão se objeta que o esquecimento constitui obstáculo a que se possa aproveitar da experiência de vidas anteriores. Havendo Deus entendido de lançar um véu sobre o passado, é que há nisso vantagem. Com efeito, a lembrança traria gravíssimos inconvenientes. Poderia, em certos casos, humilhar-nos singularmente, ou, então, exaltar-nos o orgulho e, assim, entravar o nosso livre-arbítrio. Em todas as circunstâncias, acarretaria inevitável perturbação nas relações sociais.

Freqüentemente, o Espírito renasce no mesmo meio em que já viveu, estabelecendo de novo relações com as mesmas pessoas, a fim de reparar o mal que lhes haja feito. Se reconhecesse nelas as a quem odiara, quiçá o ódio se lhe despertaria outra vez no íntimo. De todo modo, ele se sentiria humilhado em presença daquelas a quem houvesse ofendido.

Para nos melhorarmos, outorgou-nos Deus, precisamente, o de que necessitamos e nos basta: a voz da consciência e as tendências instintivas. Priva-nos do que nos seria prejudicial.

Ao nascer, traz o homem consigo o que adquiriu, nasce qual se fez; em cada existência, tem um novo ponto de partida.

Pouco lhe importa saber o que foi antes: se se vê punido, é que praticou o mal. Suas atuais tendências más indicam o que lhe resta a corrigir em si próprio e é nisso que deve concentrar-se toda a sua atenção, porquanto, daquilo de que se haja corrigido completamente, nenhum traço mais conservará. As boas resoluções que tomou são a voz da consciência, advertindo-o do que é bem e do que é mal e dando-lhe forças para resistir às tentações.

Diversos autores espíritas, tanto encarnados como desencarnados, têm escrito sobre o tema ao longo dessas mesmas linhas. Entre eles inclui-se Emmanuel, que, em conhecida página psicografada em 1991 por Chico Xavier, desenvolve graves considerações relativas à recordação induzida do passado (ver referências).

Quando a recordação ocorra espontaneamente, obedecerá por certo a uma determinação útil, sendo freqüentemente controlada por Espíritos superiores. (VerO Livro dos Espíritos, comentário à questão 399.) Tais Espíritos têm o poder de penetrar minuciosamente o passado das pessoas envolvidas num determinado problema e, avaliando com segurança a conveniência de uma recordação mais explícita por parte dessa ou daquela, podem promovê-la por recursos que lhes são próprios. No entanto, isso se dá em geral durante o sono (se a pessoa estiver encarnada), como se relata em algumas obras mediúnicas confiáveis. (Aliás, na seqüência do texto supracitado Kardec alude à naturalidade com que a recordação ocorre durante o sono.) Ao despertar, o ser guardará intuição mais ou menos vaga do que se passou, podendo aproveitar a experiência em seu benefício.

Ora, parece temerário adaptar esses procedimentos levados a efeito no mundo espiritual para o nosso plano de ação. Primeiro, em geral não dispomos das necessárias informações prévias acerca do passado do “paciente”. Depois, nem sempre teríamos o discernimento suficiente para processar essas informações e decidir o melhor curso a seguir. Além disso, poderemos não ter as técnicas adequadas para promover a regressão na medida e nas condições certas. E, por fim, não contamos com a proteção natural do esquecimento parcial que o retorno ao corpo denso propicia.

Em conclusão, parece sensato a nós espíritas acatarmos as recomendações de Kardec e Emmanuel, entre outros Espíritos lúcidos que se manifestaram sobre o tema. Enquanto

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não ascendermos a mundos superiores, nos quais a recordação do passado se apresente sem inconvenientes (ver questões 394 e 397 do Livro dos Espíritos), substituamos essa prática pela terapia espírita: aquela que se baseia na observação de nossas tendências instintivas, na aplicação da receita evangélica para a superação do homem velho e viciado que existe em nós, e para a edificação de um homem capaz de viver e distribuir o amor, o equilíbrio e a paz em suas múltiplas expressões.

* * *

Encerrando esta série, o próximo artigo ressaltará a necessidade de se prosseguir no desenvolvimento das pesquisas científicas espíritas ao longo das linhas traçadas pelo próprio programa espírita de investigação iniciado por Kardec, em integração com os outros aspectos do Espiritismo.

Referências:

(Alguns desses artigos encontram-se disponíveis no site do Grupo de Estudos Espíritas da Unicamp: http://www.geocities.com/Athens/Academy/8482.)

CHAGAS, A. P. “O que é a Ciência?”, Reformador, março de 1984, p. 80-83 e 93-95.

––. “O Espiritismo na Academia?”, Revista Internacional de Espiritismo, fevereiro de 1994, p. 20-22 e março de 1994, p. 41-43 .

––. “A ciência confirma o Espiritismo?”, Reformador, julho de 1995, p. 208-11.

CHIBENI, S. S. “Espiritismo e ciência”, Reformador, maio de 1984, p. 144-47 e 157-59.

––. “A excelência metodológica do Espiritismo”, Reformador, novembro de 1988, p. 328-333, e dezembro de 1988, p. 373-378.

––. “Ciência espírita”, Revista Internacional de Espiritismo, março 1991, p. 45-52.

––. “O paradigma espírita”, Reformador, junho de 1994, p. 176-80.

EMMANUEL. Regressão de memória. Texto psicografado por F. C. Xavier em 30/6/1991. Publicado em A Voz do Espírito, setembro de 1991, p. 1.

FREITAS, J. “Transcomunicação: De volta às mesas girantes”. A Voz do Espírito, novembro 1990, p. 1-2.

KARDEC, A. O Livro dos Espíritos. Trad. de Guillon Ribeiro. 43a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s.d.

––. Le Livre des Médiums. Paris, Dervy-Livres, 1972. (O Livro dos Médiuns. Trad. Guillon Ribeiro, 46a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s.d.)

––. O Evangelho Segundo o Espiritismo. (Trad. Guillon Ribeiro.) 113a ed., Rio, FEB.

XAVIER Jr., A. L. Será que algum dia os aparelhos eletrônicos vão substituir os médiuns? A Voz do Espírito, ano 9, n. 90, março/abril 1998, p. 5.

[1] O conteúdo da primeira parte deste texto corresponde, com algumas adaptações, a parte de entrevista concedida por mim ao GEAE (Grupo de Estudos Avançados de Espiritismo), pioneiro na divulgação do Espiritismo pela Internet. A entrevista foi publicada no Boletim n. 300 (edição extra), que circulou em

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7/7/1998, podendo ser encontrado no sitehttp://www.geae.org. Gostaria de agradecer ao GEAE a anuência para o aproveitamento desse material nesta série de artigos. Sou especialmente grato a Ademir L. Xavier Jr., pela iniciativa da entrevista e por haver lido uma versão preliminar deste artigo. Sou grato ainda a Carlos A. Iglesia Bernardo, que reuniu as relevantes e oportunas questões.[2] Essas passagens e outras correlacionadas são analisadas na seção 2 do artigo “A excelência metodológica do Espiritismo”, citado nas referências bibliográficas.[3] Alguns adeptos preferem dizer “terapia de vivências passadas”, na tentativa de evitarem o compromisso com a tese da reencarnação. Abrigam-se, assim, sob uma perspectiva demasiadamente genérica, que contribui, malgrado sua intenção, para distanciar ainda mais seus estudos de uma legítima cientificidade.[4] Os destaques são meus. É interessante notar que este trecho foi adaptado do comentário à questão 394 do Livro dos Espíritos.

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Questões acerca da natureza do Espiritismo - VII

A pesquisa científica espírita

Silvio Seno Chibeni

Encerrando a série, o presente artigo ressalta a necessidade de se prosseguir no desenvolvimento das pesquisas científicas espíritas ao longo das linhas traçadas pelo próprio programa espírita de investigação iniciado por Kardec, em integração com os outros aspectos do Espiritismo.[1]

Questão:

Algumas pessoas alegam que a ênfase religiosa tem prejudicado os aspectos científicos da doutrina, propondo um “Espiritismo não-religioso” ou “laico”. Dizem que a pesquisa espírita tem sido relegada a segundo plano, ou que praticamente não existe. O que caracterizaria uma pesquisa científica espírita? Seria um ramo separado da ciência ou uma postura diferenciada dentro dos ramos atuais? O que poderia ser feito para incentivar o desenvolvimento dessa pesquisa?

Resposta:

Como foi ressaltado no terceiro artigo desta série, a genuína religião está na busca e cultivo de princípios morais capazes de nos colocar em harmonia com o plano da Criação, transformando-nos gradualmente em seres felizes que espalham felicidade ao seu redor. Assim entendida, a religião integra-se naturalmente à ciência espírita, pois que é esta que determina as conseqüências globais das ações humanas a curto e longo prazos, formando a base experimental sobre a qual a razão operará para identificar os preceitos de conduta que nos aproximem da felicidade. Ver, portanto, antagonismos ou tensões quaisquer entre a religião e a ciência espíritas constitui evidência de pouco estudo e pouca reflexão sobre a verdadeira índole do Espiritismo.

Infelizmente, o despreparo e os atavismos de muitos indivíduos que colaboram de boa vontade nas fileiras espíritas fazem com que certas práticas pouco condizentes com a pureza doutrinária se implantem em diversas instituições, e acabem mesmo divulgadas em palestras, livros e periódicos ditos espíritas. Quem compreende essa situação deve trabalhar para modificá-la. Mas a via para isso é a do esclarecimento, do estudo, do convencimento pela razão e pelo amor, jamais os anátemas ou, o que é ainda pior, o repúdio daquilo que se supõe ser o “aspecto religioso do Espiritismo”.

É provável, aliás, que essa “rejeição do bebê com a água do banho” tenha pesado muito no declínio e virtual extinção do movimento espírita em países europeus a partir, digamos, do início do século. Não se pode mutilar um corpo doutrinário integrado, como o é o Espiritismo, sem arcar com efeitos drásticos, seja qual for a área em que o tenhamos atingido. (Em movimento oposto ao indicado na questão, pode-se querer desprezar as bases científicas do Espiritismo, e as conseqüências não seriam melhores.)

A esse respeito, são expressivas as palavras do presidente da Union Spirite Française et Francophone, Roger Perez, em recente entrevista concedida ao jornal

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paranaense Universo Espírita (ver referências). Perguntado sobre se teria uma explicação para o quase desaparecimento do movimento espírita na França (até sua recente renovação), inicia sua lúcida e firme resposta nestes termos (o destaque é meu): “Sim. Há uma muito simples. Quando o Espiritismo não é aplicado com as regras ditadas por Allan Kardec, ele morre.”

Quanto à pesquisa científica espírita, acredito que sua natureza já tenha sido salientada indiretamente nos artigos precedentes desta série. Em artigo publicado em 1991 sob o título “A ciência espírita” abordo explicitamente o tema, ainda que de forma breve, lembrando que constitui equívoco imaginar que essa pesquisa deva dar-se nas mesmas instituições e com os mesmos métodos e pressupostos teóricos que os das ciências da matéria. O reconhecimento desse ponto seria de suma importância hoje em dia, quando se nota uma inclinação de muitos espíritas na direção de linhas de pesquisa científica e filosoficamente primitivas relativamente à do genuíno Espiritismo.

A afirmação de que não se têm realizado pesquisas científicas espíritas parece resultar de uma compreensão deficiente do que sejam a ciência e o Espiritismo. Após as fundamentais realizações de Allan Kardec, que instituíram o paradigma científico espírita, outros investigadores encarnados e desencarnados prosseguiram em sua extensão, não necessariamente em laboratórios acadêmicos, porque não é aí que os fenômenos relativos ao espírito podem mais apropriadamente ser estudados, mas nos centros espíritas, no recesso dos lares, no mundo espiritual e onde quer que se possa observar e refletir sobre a face espiritual do ser humano.

Gosto de dar como exemplos de pesquisadores espíritas André Luiz, Philomeno de Miranda e Yvonne Pereira, dentre tantos outros, que, num trabalho silencioso e fecundo, enriqueceram o acervo de informações e reflexões sobre os fenômenos anímicos e mediúnicos, as condições da vida no plano espiritual, a lei de causa e efeito, etc. Quem ler suas obras apenas superficialmente, ou com inadequado senso científico, tenderá a ver nelas apenas romances, historietas e narrações literárias, quando na realidade seu objetivo primordial é bem outro.

No referido artigo, aponto, a título ilustrativo e de modo muito esquemático, algumas áreas importantes de investigação espírita. Transcrevo aqui a lista, com adaptações: [2]

1. Evolução do espírito: o elemento espiritual dos seres dos reinos inferiores, origem dos espíritos humanos, encarnação e reencarnação, pluralidade dos mundos habitados.

2. O mundo espiritual: constituição, leis que o regulam, interação com o mundo material.

3. Interação espírito-corpo: perispírito, efeitos psicossomáticos, mediunidade.

4. Implicações morais (uma área científica e filosófica): livre-arbítrio, lei de causa e efeito.

Em suma, o incentivo e incremento das pesquisas científicas espíritas deve principiar com a identificação e o abandono de abordagens incipientes ou pseudo-científicas, prosseguir com a adesão às linhas de pesquisa paradigmáticas da doutrina, e passar ao estudo filosófico das conseqüências da ciência espírita para a questão de nosso acerto com as normas morais evangélicas, sem o que essa ciência se tornará estéril.

Referências:

(Os dois primeiros artigos encontram-se, ao lado de outros acerca de temas correlacionados, disponíveis no site do Grupo de Estudos Espíritas da Unicamp: http://www.geocities.com/Athens/Academy/8482.)

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CHAGAS, A. P. “As provas científicas”, Reformador, agosto de 1987, p. 232-33.

CHIBENI, S. S. “Ciência espírita”, Revista Internacional de Espiritismo, março 1991, p. 45-52.

PEREZ, R. Entrevista concedida a Universo Espírita, ano 3, n. 30, dezembro 1998, p. 4-6.

[1] O conteúdo do texto corresponde, com algumas adaptações, a parte de entrevista concedida por mim ao GEAE (Grupo de Estudos Avançados de Espiritismo), pioneiro na divulgação do Espiritismo pela Internet. A entrevista foi publicada no Boletim n. 300 (edição extra), que circulou em 7/7/1998, podendo ser encontrado no site http://www.geae.org. Gostaria de agradecer ao GEAE a anuência para o aproveitamento do material nesta série de artigos. Sou especialmente grato aos seus membros Ademir L. Xavier Jr., pela iniciativa da entrevista, e Carlos A. Iglesia Bernardo, por haver reunido as relevantes e oportunas questões.[2] “Ciência espírita, p. 49-50. Note-se que não incluí o tópico “comprovação da existência do espírito”, pela razão exposta na segunda parte do artigo precedente: trata-se de uma questão já resolvida, preliminar ao Espiritismo propriamente dito, e na qual não devem as investigações estacionar. Para esse ponto, ver também o artigo “As provas científicas”, de Aécio P. Chagas.

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Publicado em Reformador, agosto 2003, pp. 315-319, setembro 2003, pp. 356-359, outubro 2003, pp. 397-399.

O Espiritismo em seu tríplice aspecto: científico, filosófico e religioso 1

Silvio Seno Chibeni

Resumo:

Tornou-se comum no meio espírita afirmar-se que o Espiritismo é ciência, filosofia e religião, ou tem um

“tríplice aspecto”, englobando as três áreas. Essa caracterização não pode ser encontrada exatamente

nesses termos na obra de Kardec. É, porém, correta e, em sua essência, está presente no pensamento do

criador do Espiritismo e de seus mais lúcidos continuadores. No entanto, a questão tem dado lugar a mal-

entendidos, por causa da compreensão incorreta ou imprecisa dos conceitos de ciência, filosofia e religião,

bem como da verdadeira natureza do Espiritismo. Este trabalho procura contribuir para esclarecer o

assunto, com o apoio da filosofia e dos próprios textos de Kardec.

1. Introdução

Ao refundir o material da primeira edição de O Livro dos Espíritos (1857), preparando a segunda

edição (1860), Kardec achou por bem inserir, já na primeira linha da livro, na folha de rosto, a

seguinte frase: “Filosofia Espiritualista”. Kardec quis, com ela, fornecer ao leitor uma

caracterização sucinta do caráter do Espiritismo, cujas bases a obra assentava. Essa

caracterização é depois detalhada de modo implícito ou explícito no resto do livro e no restante

de sua produção espírita. Uma das primeiras especializações do conceito expresso na frase é

introduzida já na Introdução do mesmo livro, item I, no qual Kardec traça a distinção entre

espiritualismo e Espiritismo. A partir desse ponto, tratará sempre (salvo para efeito de

comparação) do conceito mais específico de filosofia espírita.

O destaque dado por Kardec a esse conceito indica que é por ele que devemos começar a

análise do chamado “tríplice aspecto” do Espiritismo. Essa caracterização não pode ser

encontrada exatamente nesses termos na obra de Kardec. Não nos ocuparemos aqui da questão

histórica da origem dessa maneira tão disseminada de compreender o Espiritismo. Nosso objetivo

1 Texto apresentado no XII Congresso Estadual de Espiritismo (USE). Campinas, SP, 17 a 20/4/2003.

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neste artigo é estabelecer que ela é, em sua essência, correta, e que está presente no pensamento

do criador do Espiritismo. Além disso, pretendemos esclarecer alguns mal-entendidos a que a

caracterização tem dado lugar, por causa da compreensão incorreta, ou imprecisa dos conceitos

de ciência, filosofia e religião, bem como da verdadeira natureza do Espiritismo.

2. O que é filosofia?

Antes de tentarmos entender o que Kardec entendia por ‘filosofia espírita’, e por que ele priorizou

essa noção ao dar uma fórmula sucinta do Espiritismo, é importante compreendermos a noção

geral de filosofia. É claro que se trata de um assunto complexo, que requereria estudos

especializados para ser abordado de forma satisfatória. O que exporemos aqui é apenas um

esboço, mas que, tanto quanto julgamos, é correto e útil para investigações ulteriores.

Como quase todas as palavras, filosofia possui diversos significados. Popularmente, o

termo tem hoje três acepções principais: 1) certos valores ou princípios de vida, muito gerais e

variáveis segundo os indivíduos ou grupos sociais; 2) certos métodos, regras e propósitos de um

empreendimento qualquer; e 3) certas doutrinas esotéricas ou místicas. Nenhum desses três

significados corresponde à noção original, acadêmica, de filosofia, e que foi usada por Kardec em

quase todas as ocasiões em que falou no aspecto filosófico do Espiritismo.

Não obstante aparentemente simples, as questões do que é e para que serve a filosofia – no

sentido acadêmico do termo – estão entre as que mais dificuldades e divergências causam entre

os próprios filósofos profissionais. Esse mero fato, porém, já indica algo importante sobre a

natureza da filosofia: o questionamento sistemático, incessante e profundo de tudo o que se

afirma.

As origens da filosofia remontam à Grécia Antiga. Pela própria etimologia do termo,

notamos que a filosofia era entendida como o amor do saber, ou a busca da verdade. Naquela

época e, em certa medida, por muitos séculos da era cristã, a filosofia englobava todos os ramos

do conhecimento puro (em contraste com as artes e ofícios, o conhecimento “aplicado”).

Gradualmente, alguns desses ramos foram se tornando autônomos, como a matemática, a

astronomia, a história, a biologia, a física. Mais ou menos a partir do século XVII, alguns deles

começam a ser agrupados sob outra denominação: a de ciência.

Hoje em dia costuma-se considerar pertencentes ao tronco principal da filosofia as

disciplinas da estética, lógica, ética, epistemologia e metafísica. De forma muito simplificada,

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3

pode-se dizer que a estética examina abstratamente a beleza e a feiúra; a lógica investiga o

encadeamento formal das proposições; a ética estuda questões relativas ao bem e ao mal, aos

direitos e deveres; a epistemologia ocupa-se do conhecimento, suas origens, fundamentos e

limites, enquanto que a metafísica procura especular sobre a natureza última das coisas. Fora

esses ramos fundamentais, há ainda diversos outros que resultam de suas interconexões e

especializações, como a teologia, a filosofia política, a filosofia da linguagem, a filosofia da

ciência.

Uma das principais correntes filosóficas contemporâneas propõe que a filosofia não deve

ser entendida como a formulação ou defesa de teses ou conjuntos de teses sobre o que quer que

seja, mas simplesmente como o desenvolvimento de métodos de análise crítica e sistemática, a

serem aplicados especialmente ao chamado conhecimento científico. Nessa perspectiva, o

filósofo seria alguém que tenta explicitar os conceitos, os pressupostos, a estrutura lógica e as

implicações das teorias científicas, políticas, religiosas, etc. Semelhante atitude crítica – que não

se confunde com uma crítica leviana, estouvada ou interesseira – seria a essência da filosofia, o

elemento comum que permearia a grande variedade de linhas filosóficas existentes.

Embora quando se olhe para as abstrações e sutilezas tipicamente discutidas pelos filósofos

se possa concluir que a filosofia para nada serve, a referida proposta talvez permita encontrar,

num plano afastado do das necessidades materiais cotidianas, uma finalidade útil para a filosofia:

a elucidação das bases, métodos e implicações das ciências e de outras disciplinas intelectuais,

contribuindo assim para a identificação de fundamentos falsos ou inseguros, de falácias

argumentativas, de dogmas encobertos.

Ensinando, ou pelo menos convidando, o homem a refletir criticamente sobre tudo o que se

afirma ou faz em todos os setores, a filosofia de alguma forma auxilia o aprimoramento de seu

intelecto e, talvez, de seus sentimentos, que o diferenciam de um mero ser que come, bebe, dorme

e se reproduz.

3. A filosofia espírita

Passando agora à noção de filosofia espírita, uma observação preliminar importante é que no

tempo de Kardec o sentido original, amplo, da palavra ‘filosofia’ ainda prevalecia, em boa

medida. Assim, ao dizer que o Espiritismo era uma filosofia, Kardec não estava excluindo seu

caráter científico, muito pelo contrário. Além disso, como a ética ou moral é uma das áreas da

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filosofia – e isso até hoje –, aquela designação também não excluía o aspecto moral do

Espiritismo, que é a essência da chamada religião espírita. Detalharemos esses pontos nas seções

seguintes deste trabalho.

Há referências à filosofia, ou à filosofia espírita, em todas as obras de Kardec. O

significado preciso das expressões varia, é claro, segundo o contexto. De um modo geral,

podemos identificar duas acepções principais da expressão, uma ampla e outra restrita.

Na acepção ampla, Kardec entende pela expressão alguma teoria, conjunto de teses, ou

atividade intelectual que se caracterizam pela racionalidade, e se inserem portanto na tradição da

filosofia acadêmica de cultivo do saber pelo saber. Nesse sentido a filosofia engloba a própria

ciência e a moral, como já apontamos. Há dezenas de passagens nas obras de Kardec em que a

expressão é usada nessa acepção. A primeira é, naturalmente, a já mencionada frase da folha de

rosto.Vejamos algumas outras, restringindo-nos, por falta de espaço, ao Livro dos Espíritos (os

itálicos do termo ‘filosofia’ são nossos).2

LE, Prolegômenos: “Este livro é o repositório de seus ensinos. Foi escrito por ordem e mediante ditado de Espíritos superiores, para estabelecer os fundamentos de uma filosofia racional, isenta dos preconceitos do espírito de sistema.”

LE, Prefácio da 2a edição (que não é mais reproduzido nas edições atuais): “O ensino relativo às manifestações dos Espíritos, propriamente ditas, bem como aos médiuns, forma uma parte distinta da filosofia espírita, podendo constituir objeto de um estudo especial” [a ser desenvolvido no Livro dos Médiuns].

LE, Conclusão, item V: “Três períodos distintos apresenta o desenvolvimento dessas idéias: primeiro, o da curiosidade, que a singularidade dos fenômenos produzidos desperta; segundo, o do raciocínio e da filosofia; terceiro, o da aplicação e das conseqüências. O período da curiosidade passou; a curiosidade dura pouco. Uma vez satisfeita, muda de objeto. O mesmo não acontece com aquilo que se dirige à razão e evoca reflexões sérias. Começou o segundo período, o terceiro virá inevitavelmente.”

LE, Conclusão, item VII: “O Espiritismo se apresenta sob três aspectos diferentes: o fato das manifestações, os princípios de filosofia e de moral que delas decorrem e a aplicação desses princípios. Daí, três classes, ou, antes, três graus de adeptos: [...]” 3

2 Neste trabalho usaremos as seguintes abreviações: LE - O Livro dos Espíritos; QE – O que é o Espiritismo;

LM – O Livro dos Médiuns; ESE – O Evangelho Segundo o Espiritismo; CI – O Céu e o Inferno; G – A Gênese; OP

– Obras Póstumas (as referências de páginas deste livro são feitas pela tradução da FEB); VE – Viagem Espírita em

1862 (páginas pela edição francesa corrente). 3 Outros exemplos importantes do uso da expressão ‘filosofia espírita’ na acepção ampla estão em: LM,

parágrafos 14 (n. 7) e 32, capítulo 31 (item 18); OP, pp. 221, 247 e 253; QE, Preâmbulo; VE, pp. 6, 8 e 20.

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Na acepção restrita da expressão ‘filosofia espírita’, Kardec refere-se a tópicos clássicos

tratados pelos filósofos, como a existência e atributos de Deus, a distinção alma-corpo, as idéias

inatas, o livre-arbítrio, a objetividade dos critérios morais, etc. Na maior parte das vezes em que

ele usa o termo ‘filosofia’ nesse sentido mais específico, quer ressaltar um ponto de central

importância: a capacidade que o Espiritismo tem de tratar com segurança, clareza e plausibilidade

alguns dos mais espinhosos e desafiadores problemas filosóficos. Em alguns casos o ponto é

mencionado genericamente; em outros ele considera explicitamente esses problemas. Vejamos

alguns exemplos, começando com alguns trechos do primeiro tipo (destacamos o termo

‘filosofia’).

LE, Conclusão, item 1: “Pois bem! Sabei, vós que não credes senão no que pertence ao mundo material, que dessa mesa, que gira e vos faz sorrir desdenhosamente, saiu toda uma ciência, assim como a solução dos problemas que nenhuma filosofia pudera ainda resolver.”

LE, Conclusão, item 6: “Mesmo quem não testemunhou nenhum fenômeno material relativo às manifestações dos Espíritos diz para si próprio: à parte esses fenômenos, há a filosofia, que me explica o que NENHUMA outra havia explicado. Nela encontro, por meio unicamente do raciocínio, uma solução racional para os problemas que no mais alto grau interessam ao meu futuro. Ela me dá calma, segurança, confiança; livra-me do tormento da incerteza.”

QE, Preâmbulo: No terceiro capítulo, publicamos um resumo de O Livro dos Espíritos, com a solução, pela doutrina espírita, de certo número de problemas do mais alto interesse, de ordem psicológica, moral e filosófica, que diariamente são propostos, e aos quais nenhuma filosofia deu ainda resposta satisfatória. [...] Procurem resolvê-los por qualquer outra teoria, sem a chave que nos fornece o Espiritismo; comparem suas respostas com as dadas por este, e digam quais são as mais lógicas, quais as que melhor satisfazem à razão.”

Vejamos agora algumas passagens com referências a problemas filosóficos tradicionais,

que têm solução adequada pelo Espiritismo. Indicamos sumariamente entre colchetes o problema

em questão.

LE, Introdução, item 17 [a continuidade evolutiva na criação]: “A razão nos diz que entre o homem e Deus outros elos necessariamente haverá, como disse aos astrônomos que, entre os mundos conhecidos, outros haveria, desconhecidos. Que filosofia já preencheu esta lacuna? O Espiritismo no-la mostra preenchida pelos seres de todas as ordens do mundo invisível e estes seres não são mais do que os Espíritos dos homens, nos diferentes graus que levam à perfeição. Tudo então se liga, tudo se encadeia, desde o alfa até o ômega.”

LE, item 222 [a desigualdade das aptidões face à justiça divina]: “Qual a filosofia ou a teosofia capaz de resolver estes problemas? É fora de dúvida que, ou as almas são iguais ao nascerem, ou são desiguais. Se são iguais, por que, entre elas, tão grande diversidade de aptidões?”

LM, par. 35, n. 2 [o futuro do homem]: “O Livro dos Espíritos. Contém a doutrina completa, como a ditaram os próprios Espíritos, com toda a sua filosofia e todas as suas conseqüências morais. É a

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revelação do destino do homem, a iniciação no conhecimento da natureza dos Espíritos e nos mistérios da vida de além-túmulo.”

ESE, cap. 5, item 6 [a dor face à justiça divina]: “Que dizer, enfim, dessas crianças que morrem em tenra idade e da vida só conheceram sofrimentos? Problemas são esses que ainda nenhuma filosofia pôde resolver, anomalias que nenhuma religião pôde justificar e que seriam a negação da bondade, da justiça e da providência de Deus, se se verificasse a hipótese de ser criada a alma ao mesmo tempo que o corpo e de estar a sua sorte irrevogavelmente determinada após a permanência de alguns instantes na Terra.”

CI, parte 1, cap. 1, item 13 [a questão do materialismo e do panteísmo]: Apresente-se-lhe, porém, um futuro condicionalmente lógico, digno em tudo da grandeza, da justiça e da infinita bondade de Deus, e ele repudiará o materialismo e o panteísmo, cujo vácuo sente em seu foro intimo, e que aceitará à falta de melhor crença. O Espiritismo dá coisa melhor; eis por que é acolhido pressurosamente por todos os atormentados da dúvida, os que não encontram nem nas crenças nem nas filosofias vulgares o que procuram. O Espiritismo tem por si a lógica do raciocínio e a sanção dos fatos, e é por isso que inutilmente o têm combatido.”

G, cap. 4, item 11 [a origem das faculdades espirituais do homem]: “Mas a história do homem, considerado como ser espiritual, se prende a uma ordem especial de idéias, que não são do domínio da Ciência propriamente dita e das quais, por este motivo, não tem ela feito objeto de suas investigações. A Filosofia, a cujas atribuições pertence, de modo mais particular, esse gênero de estudos, apenas há formulado, sobre o ponto em questão, sistemas contraditórios, que vão desde a mais pura espiritualidade, até a negação do principio espiritual e mesmo de Deus, sem outras bases, afora as idéias pessoais de seus autores. Tem, pois, deixado sem decisão o assunto, por falta de verificação suficiente.”

G, cap. 4, item 12 [origem e destino do homem]: “Esta questão, no entanto, é a mais importante para o homem, por isso que envolve o problema do seu passado e do seu futuro. A do mundo material apenas indiretamente o afeta. O que lhe importa saber, antes de tudo, é donde ele veio e para onde vai, se já viveu e se ainda viverá, qual a sorte que lhe está reservada. Sobre todos esses pontos, a Ciência se conserva muda. A Filosofia apenas emite opiniões que concluem em sentido diametralmente oposto, mas que, pelo menos, permitem se discuta, o que faz com que muitas pessoas se lhe coloquem do lado, de preferência a seguirem a religião, que não discute.

OP, pp. 86-7 [o problema mente-corpo]: Onde acaba o poder da alma sobre os corpos? Qual a parte dessa força inteligente nos fenômenos do Magnetismo? Qual a do organismo? Aí estão questões de muito interesse, questões graves para a Filosofia, como para a Medicina. [...] Tínhamos, como se vê, grandes motivos para avançar que o estudo dos fenômenos magnéticos guarda fortes relações com a filosofia e a psicologia.

QE, pp. 169-70, 189 [a imortalidade da alma] As manifestações não são, pois, destinadas a servir aos interesses materiais; sua utilidade está nas conseqüências morais que delas dimanam; não tivessem, elas, porém, como resultado senão fazer conhecer uma nova lei da Natureza, demonstrar materialmente a existência da alma e sua imortalidade, e já isso seria muito, porque era largo caminho novo aberto à Filosofia. [...] Nas lições de filosofia clássica, os professores ensinam a existência da alma e seus atributos, segundo as diversas escolas, mas sem apresentar provas materiais. [...] Quando um cientista emite uma hipótese, sobre um ponto de ciência, procura com empenho e colhe com alegria tudo o que possa demonstrar a veracidade dessa hipótese; como, pois, um professor de filosofia, cujo dever é provar a seus discípulos que eles têm uma alma, despreza os meios de lhes fornecer uma patente demonstração?

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Esses trechos ilustram bem a afirmação de Kardec em O que é o Espiritismo (diálogo com

o cético, p. 65) de que “O Espiritismo prende-se a todos os ramos da Filosofia [...]”. E note-se

que tal afirmação é confirmada não só por passagens como as citadas, em que o termo ‘filosofia’

aparece explicitamente (e há ainda muitas outras em que isso ocorre), mas também pelos estudos

efetivamente desenvolvidos por Kardec acerca de numerosos outros tópicos filosóficos.

4. O que é ciência? 4

Como já ressaltamos, aquilo que hoje chamamos ciência derivou da filosofia, tal qual entendida

nos primeiros tempos de nossa cultura ocidental. É importante, pois, identificar os traços que

servem para distinguir o conhecimento científico de outros tipos de conhecimento. Essa é uma

das questões de que se ocupa um dos ramos especiais da filosofia mencionados anteriormente, a

filosofia da ciência.

Notadamente na segunda metade do século XX, progressos significativos foram realizados

nessa área. Reconhece-se hoje entre os especialistas que uma certa concepção de ciência cujas

origens remontam à época do nascimento da ciência moderna, no século XVII, e que é comum

até hoje entre o público leigo, padece de sérias inadequações. Ela não resiste nem a variados

argumentos filosóficos levantados mais recentemente, nem ao confronto com a descrição da

gênese, evolução e estrutura das disciplinas científicas maduras, ou seja, da física, da química e

da biologia. A versão mais bem articulada dessa concepção é a doutrina filosófica conhecida

como positivismo lógico, que teve seu apogeu nas décadas de 1920 e 1930.

Grosso modo, essa visão comum de ciência pressupõe que uma ciência inicia seu

desenvolvimento com um período longo de coleta de dados experimentais (dados empíricos, na

linguagem filosófica); nessa etapa não compareceriam hipóteses teóricas de nenhuma espécie.

Uma vez de posse de um conjunto suficientemente grande e variado de dados, os cientistas

aplicariam então certos métodos supostamente seguros e neutros para obter as teorias científicas,

que seriam descrições objetivas da realidade investigada.

4 Esta seção e a seguinte aproveitam partes de nossos artigos “Espiritismo e ciência” e “A excelência

metodológica do Espiritismo”, que deverão ser consultados para um tratamento mais detalhado do assunto. Ver

também os artigos sobre ciência espírita na série “Questões sobre a natureza do Espiritismo”. As referências são

dadas no final deste trabalho.

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O exame cuidadoso da história da ciência e os argumentos filosóficos desenvolvidos pelos

filósofos da ciência contemporâneos mostraram que essa caracterização da ciência não somente

não corresponde ao que de fato ocorreu e continua ocorrendo com as ciências bem estabelecidas,

como também pressupõe procedimentos impossíveis de serem levados a cabo. Observação e

teoria, experimento e hipótese nascem e se desenvolvem juntos, num complexo processo

simbiótico de suporte recíproco. A acumulação prévia de dados neutros, ainda que fosse possível,

seria inútil. Nenhum conjunto de dados leva de modo lógico a leis científicas; a imaginação

criadora do homem desempenha papel essencial na gênese das teorias científicas.

A imagem de ciência a que os filósofos da ciência chegaram a partir das pesquisas recentes

indica que uma ciência autêntica consiste, de modo simplificado, de um núcleo teórico principal,

formado por leis fundamentais, introduzidas a título de hipóteses. Esse núcleo é circundado por

hipóteses auxiliares, que o complementam e efetuam sua conexão com os dados empíricos. Essa

estrutura teórica mais ou menos hierarquizada faz-se acompanhar de determinadas regras, nem

sempre explícitas, que norteiam o seu desenvolvimento. De um lado, há a regra “negativa”, que

estipula que nesse desenvolvimento os princípios do núcleo teórico devem, o quanto possível, ser

mantidos inalterados. Eventuais discrepâncias entre as previsões da teoria e as observações

experimentais devem ser resolvidas por ajustes nas partes menos centrais da malha teórica,

constituídas pelas hipóteses auxiliares. Regras “positivas” sugerem ao cientista como, quando e

onde essas correções e complementações devem ser efetuadas. Essa é uma descrição sucinta e

simplificada daquilo que o filósofo da ciência contemporâneo Imre Lakatos chamou de programa

científico de pesquisa. 5

A exigência fundamental de um programa científico de pesquisa é que a estrutura teórica

como um todo forneça previsões empíricas corretas, ou seja dê conta dos fatos. Outras

características importantes de qualquer boa teoria científica são: a consistência: a teoria não pode

envolver contradições; a coerência: os princípios da teoria devem apoiar-se mutuamente; a

abrangência: a teoria deve explicar, ao menos em linhas gerais, todos os principais fenômenos de

seu domínio; deve ainda exibir unidade e simplicidade, ou seja, a explicação que fornecem dos

5 Ver Lakatos 1970. Para uma exposição acessível dessa e de outras abordagens da questão da natureza da

ciência, consulte-se Chalmers 1982. Para uma análise da ciência espírita à luz de outra teoria filosófica

contemporânea acerca da ciência, elaborada por Thomas Kuhn mais ou menos no mesmo período, ver nosso artigo

“O paradigma espírita”.

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diversos fenômenos deve decorrer de maneira natural e simples de um corpo de leis teóricas

integrado e tão reduzido quanto possível. Há, por fim, o vínculo externo de não conflitar com as

demais teorias científicas bem confirmadas que tratem de domínios de fenômenos

complementares.

Tendo fornecido essa noção geral, bastante simplificada e incompleta, da concepção

contemporânea de ciência, passemos à questão da ciência espírita.

5. A ciência espírita

A inspeção meticulosa e isenta das origens, estrutura e desenvolvimento do Espiritismo revela

que ele possui todos requisitos de uma ciência genuína, segundo as caracterizações da filosofia da

ciência contemporânea, como a esboçada na seção precedente. Em artigo anterior, “A excelência

metodológica do Espiritismo”, procuramos mostrar, além disso, que Allan Kardec antecipou-se

às conquistas recentes da filosofia da ciência, e compreendeu muito bem a questão. Sua visão de

ciência, exposta explícita e implicitamente em seus escritos, corresponde efetivamente à visão

que os filósofos da ciência têm hoje. Isso teve a conseqüência feliz de que, ao travar contato com

uma nova ordem de fenômenos, Kardec empregou em sua investigação métodos e critérios

corretos, o que lhe possibilitou a implantação de uma verdadeira ciência do espírito.

O corpo teórico fundamental do Espiritismo encontra-se delineado em O Livro dos

Espíritos. O exame dessa obra revela a adequação da teoria com os fatos, sua consistência e seu

alto grau de coesão e simplicidade, bem como a amplitude de seu escopo. Ademais, ali estão

implicitamente presentes as diretrizes que nortearam os desenvolvimentos ulteriores das

investigações espíritas. Muitos desses desenvolvimentos foram, como se sabe, implementados

pelo próprio Kardec, e se acham expostos nas demais obras que escreveu. Consoante com a

natureza de uma verdadeira ciência, o progresso experimental e teórico do Espiritismo prossegue

até hoje, pelos esforços de pesquisadores encarnados e desencarnados.

Em contraste com os fundamentos científicos sólidos lançados por Kardec no estudo do

elemento espiritual do homem, as linhas de pesquisa que surgiram mais tarde, com a pretensão

competir com o Espiritismo nessa área, não alcançaram o mesmo sucesso. Deve-se notar, a tal

respeito, que elas tiveram início justamente na época em que o positivismo lógico fornecia os

parâmetros segundo os quais uma atividade genuinamente científica se desenvolveria. Ora, tais

parâmetros sendo equivocados, como os filósofos perceberam depois, as linhas de pesquisa

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nascentes, que alimentavam a pretensão à cientificidade, acabaram por assimilar uma visão de

ciência irreal. Isso levou a que adotassem métodos inadequados aos fins a que se propuseram,

bloqueando-lhes as possibilidades de contribuir significativamente para o avanço de nosso

conhecimento no domínio do espírito.

Lamentavelmente, a adoção de uma concepção falha de ciência levou os pesquisadores

dessas linhas de investigação a não somente empenharem de modo infrutífero os seus esforços,

como também a desprezarem, ou mesmo repelirem, as conquistas e métodos de uma legítima

ciência do espírito, o Espiritismo. Uma análise mais detalhada desse ponto pode ser encontrada

na seção 4 de “A excelência metodológica do Espiritismo”, e não será reproduzida aqui.

6. A ciência espírita e as ciências acadêmicas

Contrariamente ao que alguns críticos mal informados acerca do Espiritismo e das teorias

científicas contemporâneas alegam, o Espiritismo não conflita com qualquer uma das teorias

científicas maduras, quer da física, quer da química ou da biologia. É de crucial importância notar

que embora o Espiritismo seja uma ciência, ele não se confunde com tais ciências, do mesmo

modo como elas não se confundem entre si. Os domínios de fenômenos por elas tratados não

coincidem, sendo antes complementares.

Kardec compreendeu perfeitamente bem essa distinção, e chamou a atenção para ela em

diversos de seus textos, como por exemplo no item VII da Introdução do Livro dos Espíritos. Ali

argumentou com segurança que “o Espiritismo não é da alçada da ciência”, ou seja, das ciências

acadêmicas. Por outro lado, no parágrafo 16 do primeiro capítulo de A Gênese, enfatizou a

referida complementaridade do Espiritismo e dessas ciências, afirmando que “o Espiritismo e a

ciência completam-se reciprocamente”.6

A percepção desses pontos evita uma série de julgamentos e posturas equivocados, que têm

ameaçado o movimento espírita atual. Vêem-se, com efeito, pessoas que imaginam que a ciência

espírita consiste justamente naquelas linhas de investigação iniciadas depois de Kardec, e cuja

fragilidade científica é evidente, à luz de uma análise filosófica cuidadosa. Outros pensam que a

6 Note-se que nessas citações o termo ‘ciência’ é usado numa acepção mais restrita do que a anteriormente

elucidada. Para um estudo mais completo da análise kardequiana das relações entre o Espiritismo e as ciência

ordinárias, ver a seção 3 de “A excelência metodológica do Espiritismo” e as partes IV e V da série “Questões sobre

a natureza do Espiritismo”.

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ciência espírita consiste de investigações do âmbito das ciências acadêmicas, especialmente as

que envolvam experimentos conduzidos com o auxílio de aparelhagens complexas, de uso nos

laboratórios de física, e dentro de referenciais teórico-conceituais emprestados dessa ciência.

Assume-se que é o uso desses aparelhos e o emprego de terminologia técnica (aliás quase sempre

não compreendida por quem a usa dentro de tais contextos) que confere cientificidade às

investigações.

Dada a gravidade dos enganos envolvidos em semelhantes posições, vale a pena nos

determos um pouco mais sobre elas. Deve-se, além dos esclarecimentos gerais já indicados, notar

que o estabelecimento dos princípios básicos do Espiritismo prescinde completamente do uso de

qualquer aparelho e do recurso a qualquer teoria física. O mais fundamental de tais princípios é o

da existência do espírito, ou seja, da existência de algo no homem que é a sede do pensamento e

dos sentimentos e sobrevive à morte corporal. Como enfatizou Kardec, a comprovação cabal

desse princípio se dá mediante os fenômenos a que denominou “de efeitos intelectuais”, quais

sejam a tiptologia, a psicofonia e a psicografia. Quem quer que reflita com isenção sobre

fenômenos dessa ordem não terá dificuldade em reconhecer que atestam a existência do espírito

de modo inequívoco.

Nessa avaliação, é importante notar a diferença que existe entre esse princípio básico do

Espiritismo e alguns dos princípios das teorias físicas e químicas contemporâneas, por exemplo.

Nestes últimos casos, o “grau teórico” (se assim nos podemos exprimir) é muito maior, ou, em

outros termos, os princípios estão muito mais distantes do nível fenomenológico, ou seja, da

observação empírica direta. O caminho que vai da observação até o princípio teórico é bastante

indireto, passando por uma série de teorias auxiliares, necessárias, por exemplo, para tratar do

funcionamento e interpretação dos dados dos aparelhos envolvidos. Nessas circunstâncias, a

segurança com que os princípios podem ser afirmados fica evidentemente limitada; há em geral

possibilidades plausíveis de explicações dos mesmo fenômenos através de princípios teóricos

diferentes. E, de fato, a história da física e da química tem ilustrado a instabilidade de suas teorias

que avançam além do nível da percepção direta.

No caso do referido princípio espírita, bem como de vários outros dos princípios básicos do

Espiritismo, a situação é bastante diversa. Trata-se de princípios pertencentes à classe de

princípios a que os filósofos denominam “fenomenológicos”, que estão na base do edifício do

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conhecimento, dado o seu alto grau de certeza. Proposições dessa classe são, por exemplo, as de

que o fogo queima e a cicuta envenena.

Notemos que a inferência espírita diante de um fenômeno de efeitos intelectuais – a saber,

que são causados por uma inteligência humana desencarnada – não difere em nada das

inferências que fazemos a partir dos fenômenos ordinários. Quando, por exemplo, o carteiro traz

à nossa casa um papel no qual lemos certas frases, não nos acudirá à cabeça a idéia de que elas

não foram escritas por um determinado amigo, por exemplo, quando relatam fatos, contêm

expressões e expressam pensamentos peculiares e íntimos, característicos daquele amigo.

Exatamente o mesmo se dá com numerosos e variados casos de psicografia ou outras

manifestações inteligentes. Não constitui exagero, pois, afirmar-se que a constatação cuidadosa

de uns poucos casos dessa espécie é suficiente para eliminar qualquer dúvida acerca da

sobrevivência do ser.

É importante observar, por fim, que além dos fenômenos especiais que formam a classe dos

fenômenos espíritas, o Espiritismo apóia-se também em uma multidão de fenômenos ordinários,

em virtude de oferecer uma base sólida para sua compreensão. Referimo-nos, por exemplo, às

nossas inclinações e sentimentos, às peculiaridades de nosso relacionamento com as pessoas que

nos cercam, aos acontecimentos marcantes de nossas vidas, aos distúrbios da personalidade, aos

efeitos psicossomáticos, aos sonhos, à evolução das espécies e das civilizações, etc.

Entendemos que a desconsideração desse vasto corpo de evidências indiretas a favor do

Espiritismo constitui omissão séria da parte de seus críticos. Com seu agudo senso científico,

Kardec percebeu desde o início que o alcance do Espiritismo transcendia de muito os fenômenos

mediúnicos e anímicos específicos que motivaram o seu surgimento. “O estudo do Espiritismo é

imenso”, disse Kardec em outra passagem; “interessa a todas as questões da metafísica e da

ordem social; é todo um mundo que se abre diante de nós” (O Livro dos Espíritos, Introdução,

item XIII).

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7. O aspecto religioso do Espiritismo 7

Do mesmo modo como tem havido falta de compreensão acerca do caráter científico do

Espiritismo e de suas relações com as ciências, seu caráter religioso e suas relações com as

religiões também têm constituído ponto de freqüentes confusões. Assim como se pode mostrar

ser o Espiritismo científico, embora não se inclua entre as ciências ordinárias, por estudar um

domínio diverso de fenômenos, pode-se, conforme o fez o próprio Kardec, mostrar que o

Espiritismo é religioso, embora não se confunda com as religiões ordinárias. Se no

estabelecimento da primeira dessas teses é necessário identificar corretamente que características

de uma teoria a tornam científica, temos, para justificar a segunda, que estabelecer critérios

adequados para a classificação de uma doutrina no âmbito religioso.

A palavra religião evoca, por sua origem, à idéia da “re-ligação” do homem ao Criador.

Como se sabe, ao longo da história inúmeras propostas se apresentaram de como essa “re-

ligação” deve ser entendida e efetuada, resultando daí as diversas “religiões”.

Afora divergências sobre a própria noção de Deus e da natureza do ser humano, as religiões

se diferenciam quanto aos requisitos propostos para que a criatura se religue a Deus. Quase

sempre, eles incluem a adequação da conduta a certas regras morais. Tipicamente, também

incluem a satisfação de providências formais e externas de vária ordem: participação em cultos,

rituais, cerimônias; realização de determinados gestos; recitação de fórmulas e rezas; adoração de

imagens e objetos diversos; promessas, penitências, jejuns, etc.

Ora, já se pode perceber aqui algumas distinções fundamentais entre o Espiritismo e as

religiões ordinárias. Como elas, o Espiritismo também se preocupa com o destino do homem, na

Terra e no além-túmulo, procurando instruí-lo quanto ao que deve fazer para que alcance estados

de felicidade cada vez maior. No entanto, o Espiritismo propõe que esse objetivo pode ser

alcançado exclusivamente pela adaptação da conduta a determinados preceitos morais. Qualquer

medida de ordem exterior é mostrada ser não somente ineficaz, mas também, em muitos casos,

nociva, por desviar a atenção do ponto principal e induzir ao sectarismo.

7 Esta seção aproveita idéias e trechos de nossos artigos “Os fundamentos da ética espírita”, “A excelência

metodológica do Espiritismo”, seção 5, e “A religião espírita” (o terceiro artigo da série “Questões acerca da

natureza do Espiritismo”), que deverão ser consultados para um maior desenvolvimento do assunto.

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Depois, uma diferença crucial surge no modo pelo qual as regras éticas são justificadas. As

religiões ordinárias procuram justificar as normas morais que propõem recorrendo à autoridade

desse ou daquele indivíduo ou instituição. Já o Espiritismo fundamenta o corpo de seus princípios

éticos – sintetizados no preceito cristão do amor ao próximo – no conhecimento que

cientificamente alcança das conseqüências das ações humanas ao longo da existência ilimitada

dos seres, conjugado à cláusula teleológica de que todos almejam a felicidade. Não há aqui lugar

para dogmas e imposições, mas exclusivamente investigação livre e racional dos fatos. Aliás esse

já era o modo pelo qual o Apóstolo Paulo entendia a moral, pois em sua primeira carta aos

Coríntios (10:23) asseverou: “Todas as coisas são lícitas, mas nem todas convêm; todas são

lícitas, porém nem todas edificam.”

Em diversas de suas obras, Kardec deu grande importância ao estabelecimento da moral

espírita, abordando o assunto em profundidade. Mostrou que, com o conhecimento científico

espírita, a moral deixa de ser uma questão de especulações abstratas ou de opiniões, estando

indissociavelmente ligada ao estudo dos efeitos naturais das ações humanas, em conexão com a

busca da felicidade, objetivo comum de todos os seres humanos. Ressaltou ainda que o corpo de

princípios morais obtidos por essa via da razão e da experiência coincide com aquele proposto

por Jesus. Conforme registrou no parágrafo 56 do primeiro capítulo de A Gênese, o Espiritismo

“[dá] por sanção à doutrina cristã as próprias leis da Natureza”.

Ora, na medida em que fornece ao homem conhecimento seguro das regras de conduta

capazes de harmonizá-lo consigo mesmo e com os demais seres – e portanto, efetivamente, com o

plano divino –, o Espiritismo torna-se “o mais potente auxiliar da religião”, conforme nota

Kardec nos lúcidos comentários adidos às questões 147 e 148 de O Livro dos Espíritos. A

religião aqui aludida não se confunde, evidentemente, com as doutrinas religiosas tradicionais,

com suas hierarquias, dogmas inquestionáveis e práticas exteriores, sendo antes uma religião no

sentido próprio do termo, explicado acima.

A velha questão de se o Espiritismo é ou não uma religião não admite, pois, resposta

unívoca, dada a duplicidade semântica do termo ‘religião’. Esse ponto foi estudado em

profundidade no artigo de Kardec intitulado justamente “Le Spiritisme est-il une religion?”, que

apareceu na Revue Spirite de 1868.8 Para encerrar, vejamos estes parágrafos do famoso texto:

8 Dezembro, pp. 353-62. Note-se que se trata de uma dos últimos números da Revue compostos por Kardec.

O texto expressa, pois, o seu pensamento mais refletido sobre o assunto.

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[...] o Espiritismo é, assim, uma religião? Sim, sem dúvida, senhores: No sentido filosófico o Espiritismo é uma religião, e disso nos honramos, pois que é a doutrina que funda os laços da fraternidade e da comunhão de pensamentos não em uma simples convenção, mas sobre a mais sólida das bases: as próprias leis da Natureza.

Por que então declaramos que o Espiritismo não era uma religião? Pela razão de que há apenas uma palavra para exprimir duas idéias diferentes, e que, segundo a opinião geral, o termo religião é inseparável da noção de culto, evocando unicamente uma idéia de forma, com o que o Espiritismo não guarda qualquer relação. Se se tivesse proclamado uma religião, o público nele não veria senão uma nova edição, ou uma variante, se quisermos, dos princípios absolutos em matéria de fé, uma casta sacerdotal com seu cortejo de hierarquias, cerimônias e privilégios; não o distinguiria das idéias de misticismo e dos enganos contra os quais se está freqüentemente bem instruído.

Não apresentando nenhuma das características de uma religião, na acepção usual da palavra, o Espiritismo não poderia nem deveria ornar-se de um título sobre cujo significado inevitavelmente haveria mal-entendidos. Eis porque ele se diz simplesmente uma doutrina filosófica e moral.

8. Conclusões

Inegavelmente, o Espiritismo é um empreendimento intelectual de ampla envergadura. Em

diversas ocasiões Allan Kardec ressaltou o seu caráter abrangente, bem como a importância de

considerá-lo em seu conjunto, quando se trata de avaliá-lo e de investigar suas implicações.

Como vimos, na primeira linha da segunda edição do Livro dos Espíritos Kardec

caracterizou-o sucintamente como “filosofia espiritualista”. Espiritualista, porque estando

centrado na constatação de que o homem é essencialmente, enquanto ser pensante, espírito,

insere-se no âmbito das doutrinas que se contrapõem ao materialismo. Filosofia, porque investiga

esse ser espiritual segundo uma abordagem racional, sistemática e abrangente, típica da tradição

de pesquisa inaugurada pelos filósofos gregos, e que permeia toda a cultura ocidental até hoje.

Nesse sentido original, a filosofia abarcava todos os ramos do saber puro. Mesmo aquilo que, a

partir de uma certa época da história do pensamento, passou a ser chamado de ciência caía sob o

escopo da filosofia.

Assim, a caracterização kardequiana em análise não deve ser tomada como excluindo a

dimensão científica do Espiritismo, muito pelo contrário. Conforme deixou claro no

desdobramento de suas pesquisas, Kardec compreendeu que tal dimensão não somente existia,

mas que constituía mesmo a base sobre a qual a filosofia espírita repousa. Note-se, por exemplo,

que no preâmbulo de O que é o Espiritismo Kardec o define como “uma ciência que trata da

natureza, origem e destino dos Espíritos, bem como de suas relações com o mundo corporal”.

Quando bem compreendida, essa definição não conflita com a que está na página de rosto do

Livro dos Espíritos. Apenas salienta que os fundamentos da filosofia espírita são científicos, e

não puramente especulativos, ou derivados de alguma tradição mística, religiosa, ou qualquer

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outra. Foi a análise científica de certos fenômenos que deu origem ao Espiritismo, e estabeleceu

desde então o núcleo teórico sobre o seu objeto de estudo, ou seja, o espírito.

No entanto, como essa análise conduz, por sua própria natureza, a tópicos extremamente

abrangentes e fundamentais, no que diz respeito ao conhecimento do espírito, ela avança por

domínios tipicamente considerados filosóficos, mesmo segundo a concepção contemporânea,

mais restrita, de filosofia. O caso quiçá mais importante dessa extensão é o da moral (ou ética).

Kardec explorou com grande lucidez as implicações do conhecimento científico espírita para as

questões-chave da moral, dentre as quais a da fundamentação das regras morais. Fez notar que o

conhecimento científico acerca do homem propiciado pelo Espiritismo permite o estabelecimento

de um corpo de princípios morais objetivos, e que ele coincide com aqueles propostos pelo

Cristo. Salientou ainda que tais princípios sintetizam o que há de essencial na noção de religião.

Nesse sentido, e apenas nele, o Espiritismo pode ser dito uma religião, adverte Kardec no famoso

artigo da Revue Spirite.

Dessa forma, os chamados “três aspectos” (ou “partes”) do Espiritismo encontram-se

inextricavelmente ligados. Talvez mesmo devêssemos evitar a utilização dessa expressão, porque

pode induzir à idéia errônea de que se trata de três elementos separados ou separáveis, que

agrupamos apenas por conveniência. É significativo, a esse respeito, que o próprio Kardec tenha

evitado caracterizar o Espiritismo em tais termos. Quando tentou sintetizar a natureza do

Espiritismo, recorreu ora à noção de filosofia, ora à de ciência, dependendo do contexto. Mas em

ambos os casos indicou que não se tratava de uma delimitação muito estreita da noção.

Se pensarmos no Espiritismo em termos de filosofia, será uma filosofia apoiada em bases

científicas, e que tem como um dos objetivos centrais o estudo das questões morais. Se

pensarmos em termos de ciência, não será uma pesquisa seca, que simplesmente constate e

sistematize fatos, mas de uma investigação de longo alcance sobre um objeto de fundamental

importância, o elemento espiritual. Essa ciência complementa, pois, as ciências acadêmicas, cujo

objeto de estudo é o elemento material. E, pela própria natureza de seu objeto de estudo, a ciência

espírita necessariamente diz respeito a tópicos genuinamente filosóficos, dentre os quais ressalta,

por sua importância prática, aqueles referentes à moral.

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Referências

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Press, 1982.

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–––. “O paradigma espírita”, Reformador, junho de 1994, pp. 176-80.

–––. “As acepções da palavra ‘Espiritismo’ e a preservação doutrinária”. Reformador, julho de

1999, pp. 212-214. (Questões sobre a natureza do Espiritismo – I.) –––. “Revisão da terminologia espírita?”. Reformador, agosto de 1999, pp. 250-252. (Questões

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natureza do Espiritismo – III.)

–––. “A ‘ciência oficial’”. Reformador, outubro de 1999, pp. 312-313. (Questões sobre a natureza

do Espiritismo – IV.)

–––. “As relações da ciência espírita com as ciências acadêmicas”. Reformador, novembro de

1999, pp. 344-346. (Questões sobre a natureza do Espiritismo – V.)

–––. “Algumas abordagens recentes dos fenômenos espíritas”. Reformador, dezembro de 1999,

pp. 380-383. (Questões sobre a natureza do Espiritismo – VI.)

–––. “A pesquisa científica espírita” Reformador, janeiro de 2000, pp. 24-25. (Questões sobre a

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original de Leymarie, em texto eletrônico, Centre d'Études Spirites Léon Denis:

http://perso.wanadoo.fr/charles.kempf/

–––. Obras Póstumas. Trad. Guillon Ribeiro, 18a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita

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CIÊNCIA ESPÍRITA

SILVIO SENO CHIBENI

Le Spiritisme est une science qui traite de la nature, de l'origine et de la destinée des Esprits, et de leur rapports avec le monde corporel.

Allan Kardec

1. INTRODUÇÃO: CIÊNCIA E PSEUDO-CIÊNCIA

Com a frase em epígrafe, que figura no Preâmbulo do importante livro O que é o Espiritismo, Allan Kardec indica, de modo sumário porém preciso, o objeto de estudo do Espiritismo, enquanto ciência. Quando a escreveu, em 1859, Kardec já havia, ao longo de alguns anos de investigações teóricas e experimentais intensas, desenvolvido suficientemente o Espiritismo para poder afirmar sem hesitação que se tratava de uma nova disciplina científica. Como é bem sabido, os desdobramentos filosóficos e morais que essa disciplina comporta foram igualmente objeto de grande atenção por parte de Kardec. No presente trabalho centralizaremos nossa análise no aspecto científico do Espiritismo, atendendo à natureza desta seção da Revista Internacional de Espiritismo.[1]

A questão de que características tornam uma disciplina merecedora do qualificativo científica tem ocupado lugar proeminente nos estudos dos filósofos da ciência. Notadamente nas últimas três décadas, progressos significativos foram realizados no sentido de se lhe oferecer uma resposta satisfatória. Um dos elementos mais importantes nesse aperfeiçoamento de nossa concepção de ciência foi a maior atenção que os filósofos da ciência passaram a atribuir à análise detalhada da história da ciência, dentro de uma abordagem historiográfica renovada.

Reconhece-se hoje entre os especialistas que a concepção comum de ciência padece de defeitos sérios, por não resistir nem a variados argumentos filosóficos recentemente levantados, nem ao confronto com a descrição da gênese, evolução e estrutura das disciplinas científicas maduras, ou seja, da Física, da Química e da Biologia. Os elementos problemáticos dessa visão ordinária de ciência, esposada tanto pelo homem comum como por expressiva parcela dos próprios cientistas, compareciam igualmente nas concepções que os filósofos defendiam até a primeira metade de nosso século. A versão mais bem articulada dessa concepção é a doutrina filosófica conhecida como Positivismo Lógico, que teve seu apogeu nas décadas de 1920 e 1930. Por motivos que não cabe aqui examinar, essa posição filosófica exerceu entranhada influência sobre os cientistas, e essa influência perdura até nossos

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dias, a despeito daquela concepção haver sido abandonada há muito pelos filósofos.

Esses fatos são importantes em nossa análise das linhas de pesquisa que pretendem competir com o Espiritismo, pois elas começaram a surgir precisamente quando o Positivismo Lógico fornecia os parâmetros segundo os quais uma atividade genuinamente científica se desenvolveria. Ora, tais parâmetros sendo equivocados, como se percebeu depois, aquelas linhas de pesquisa nascentes, que alimentavam a pretensão à cientificidade, acabaram por assimilar uma visão de ciência irreal. Isso levou a que adotassem métodos inadequados aos fins a que se propuseram, bloqueando-lhes as possibilidades de contribuir significativamente para o avanço de nosso conhecimento no domínio do espírito.

Lamentavelmente, a adoção de uma concepção falha de ciência levou os pesquisadores da Parapsicologia e demais linhas de investigação que surgiram após ela a não somente empenharem infrutiferamente os seus esforços, como também a desprezarem, ou mesmo repelirem, as conquistas e métodos de uma legítima ciência do espírito, surgida ainda no século XIX, a saber, o Espiritismo.

Em trabalhos anteriores (ver Nota 1, acima) procuramos fornecer alguns detalhes dessa situação, que embasam as afirmações precedentes. Essa tarefa pressupõe, naturalmente, a comparação dos fundamentos, estrutura e métodos do Espiritismo com aqueles que as investigações recentes em Filosofia da Ciência mostraram caracterizar as disciplinas paradigmaticamente científicas, como a Física, a Química e a Biologia. Não há espaço para reproduzir aqui as análises que empreendemos naqueles trabalhos. Para fins de completude, porém, indicaremos a seguir, de forma simplificada, alguns de seus pontos principais.

Grosso modo, a visão comum de ciência envolve a assunção de que uma ciência inicia seu desenvolvimento com um período longo de coleta de dados experimentais (dados empíricos, na linguagem filosófica); nessa etapa não compareceriam hipóteses teóricas de nenhuma espécie. Uma vez de posse de um conjunto suficientemente grande e variado de dados, os cientistas aplicariam então certos métodos seguros e neutros para obter as teorias científicas, que seriam descrições objetivas da realidade investigada.

O exame cuidadoso da história da ciência e os argumentos filosóficos desenvolvidos pelos filósofos da ciência contemporâneos mostraram que essa caracterização da atividade científica não somente não corresponde ao que de fato ocorreu e continua ocorrendo com as ciências bem estabelecidas, como também pressupõe procedimentos impossíveis. Observação e teoria, experimento e hipótese nascem e se desenvolvem juntos, num complexo

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processo simbiótico de suporte recíproco. A acumulação prévia de dados neutros, ainda que fosse possível, seria inútil. Nenhum conjunto de dados leva de modo lógico a leis científicas a imaginação criadora do homem desempenha um papel essencial na gênese das teorias científicas.

A imagem de ciência a que os filósofos da ciência chegaram a partir das conquistas recentes indica que uma ciência autêntica consiste, simplificadamente, de um núcleo teórico principal, formado por hipóteses fundamentais. Esse núcleo é circundado por hipóteses auxiliares, que o complementam e efetuam sua conexão com os dados empíricos. Essa estrutura mais ou menos hierarquizada faz-se acompanhar de determinadas regras, nem sempre explícitas, que norteiam o seu desenvolvimento futuro. De um lado, há as regras "negativas", que estipulam que nesse desenvolvimento os princípios básicos do núcleo teórico devem, o quanto possível, ser mantidas inalteradas. Eventuais discrepâncias entre as previsões da teoria e as observações experimentais devem ser resolvidas por ajustes nas partes menos centrais da malha teórica, constituídas pelas hipóteses auxiliares; regras "positivas" sugerem ao cientista como, quando e onde essas correções e complementações devem ser efetuadas.

Ao contrário do que se supõe na visão comum de ciência, não há restrições sobre a natureza das leis de uma teoria científica, que podem inclusive ser de caráter predominantemente metafísico. A restrição fundamental é que a estrutura teórica como um todo forneça previsões empíricas corretas, ou seja dê conta dos fatos. O exame das teorias científicas maduras e dos padrões avaliativos adotados pelos cientistas indica ainda que algumas características devem necessariamente estar presentes em qualquer boa teoria científica. Inicialmente, ela deve ser consistente. Deve ser abrangente, explicando um grande número de fatos. Deve, por fim, apresentar as virtudes estéticas de unidade e simplicidade, ou seja, a explicação que fornecem dos diversos fenômenos deve decorrer de maneira natural e simples de um corpo de leis teóricas integrado e tão reduzido quanto possível. Há ainda o vínculo externo de que uma teoria não deve conflitar com as demais teorias científicas bem estabelecidas que tratam de domínios de fenômenos complementares (por exemplo, uma teoria biológica não deve pressupor leis químicas e físicas que contrariem as leis bem assentadas da Química e da Física).

2. O ESPIRITISMO COMO CIÊNCIA

A inspeção meticulosa e isenta das origens, estrutura e desenvolvimento do Espiritismo revela que ele possui todos esses requisitos de uma ciência genuína. Em artigo anterior ("A excelência metodológica do Espiritismo") procuramos mostrar, além disso, que Allan Kardec admiravelmente antecipou-se às conquistas recentes da Filosofia da Ciência, e compreendeu essa realidade. Sua visão de ciência, exposta explícita e implicitamente em seus

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escritos, corresponde à visão moderna e justa mencionada acima. Isso teve a conseqüência feliz de que, ao travar contato com uma nova ordem de fenômenos, Kardec empregou em sua investigação métodos e critérios corretos, o que possibilitou o surgimento de uma verdadeira ciência do espírito.

O corpo teórico fundamental do Espiritismo encontra-se delineado em O Livro dos Espíritos. O exame dessa obra revela sua consistência e seu alto grau de coesão, uma notável concatenação das diversas leis, a amplitude de seu escopo, e o perfeito casamento da teoria com os fatos. Ademais, ali estão implícitamente presentes as diretrizes que nortearam os desenvolvimentos ulteriores das investigações espíritas. Parte significativa desses desenvolvimentos foi, como se sabe, levada a cabo pelo próprio Kardec, e se acham exarados nas demais obras que escreveu. Consoante com a natureza de uma verdadeira ciência, o desenvolvimento experimental e teórico do Espiritismo prosssegue até hoje, pelos esforços de pesquisadores encarnados e desencarnados.

Contrariamente ao que alguns críticos mal informados acerca do Espiritismo e das teorias científicas contemporâneas alegam, o Espiritismo não conflita com qualquer uma das teorias científicas maduras, quer da Física, quer da Química ou da Biologia. É de crucial importância notar, como o fez Kardec,[2] que embora o Espiritismo seja uma ciência, ele não se confunde com as referidas ciências, do mesmo modo como elas não se confundem entre si. Os domínios de fenômenos por elas tratados não coincidem, sendo antes complementares.

A percepção dessa distinção evita uma série de julgamentos e posturas equivocados, que têm ameaçado até mesmo o próprio Movimento Espírita. Vêem-se, com efeito, pessoas que imaginam que a ciência espírita consiste em determinadas investigações envolvendo experimentos conduzidos com o auxílio de aparelhagens de uso nos laboratórios de Física, e dentro de referenciais teórico-conceituais emprestados à Física. Assume-se, assim, que é o uso desses aparelhos e o emprego de terminologia técnica (aliás quase sempre incompreendida por quem a usa dentro de tais contextos) que confere cientificidade a essas investigações.

Dada a relevância da elucidação dos sérios enganos envolvidos em semelhantes alegações, nesta Seção e na seguinte nos deteremos um pouco mais sobre elas.[3]

A observação mais importante é a de que o estabelecimento dos princípios básicos do Espiritismo prescinde completamente do uso de qualquer aparelho e do recurso a qualquer teoria física. O mais fundamental de tais princípios é o da existência do espírito, ou seja, da existência de algo no homem que é a sede do pensamento e dos sentimentos e sobrevive à morte corporal. Como

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enfatizou Kardec, a comprovação cabal desse princípio se dá através dos fenômenos a que denominou "de efeitos intelectuais", quais sejam a tiptologia, a psicofonia e a psicografia. Quem quer que reflita isentamente sobre fenômenos dessa ordem não terá dificuldade em reconhecer que atestam a existência do espírito de modo inequívoco as tentativas de "explicações" alternativas que se têm procurado oferecer surgirão como ridículas.

Nessa avaliação, é importante notar a diferença que existe entre esse princípio básico do Espiritismo e alguns dos princípios das teorias físicas e químicas contemporâneas, por exemplo. Neste último caso, o "grau teórico" (se assim nos podemos exprimir) é muito maior, ou, em outros termos, os princípios estão muito mais distantes do nível fenomenológico, ou seja, da observação empírica direta. Em tal caso, o caminho que vai da observação até o princípio teórico é bastante indireto e tortuoso, passando por uma série de teorias auxilires, necessárias, por exemplo, para tratar do funcionamento e interpretação dos dados dos aparelhos envolvidos. Nessas circunstâncias, a segurança com que os princípios podem ser asseridos fica evidentemente limitada; há em geral possibilidades plausíveis de explicações dos mesmo fenômenos através de princípios teóricos diferentes; a história da Física e da Química tem ilustrado a vulnerabilidade de suas teorias.

No caso do princípio espírita em questão (bem como de vários outros dos princípios básicos do Espiritismo), a situação é bastante diversa. Trata- se de um princípio pertencente à classe de princípios a que os filósofos denominam "fenomenológicos", que estão na base do edifício do conhecimento, dado o seu alto grau de certeza. Proposições dessa classe são, por exemplo, as de que o Sol existe, de que o fogo queima e a cicuta envenena, a de que determinado familiar veio nos visitar no dia tal e nos deixou uma caixa de bombons, etc. Nestes casos, embora explicações alternativas sejam em princípio possíveis,[4] elas são tão inverossímeis que não merecem o assentimento de nenhum ser racional. Notemos que a inferência espírita diante de um fenômeno de efeitos intelectuais não difere em nada das inferências que fazemos a partir dos fenômenos ordinários. Quando, por exempo, o carteiro traz à nossa casa um papel no qual lemos certas frases, não nos acudirá à cabeça a idéia de que elas não foram escritas por um determinado amigo, por exemplo, quando relatam fatos, contêm expressões e expressam pensamentos peculires e íntimos. Exatamente o mesmo se dá com os abundantes e variados casos de psicografia de que todos somos testemunha. Não constitui exagero, pois, afirmar-se que a constatação cuidadosa de uns poucos casos dessa espécie (como por exemplo os que nos têm oferecido a extraordinária mediunidade de Chico Xavier) é suficiente para eliminar qualquer dúvida.

Como se isso não bastasse, a base experimental do Espiritismo incorpora ainda muitos outros tipos de fenômenos, como a psicofonia, a xenoglossia, as materializações, os casos de vidência, a pneumatografia e a pneumatofonia,

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etc. Além desses fenômenos, que formam uma classe específica, a dos fenômenos espíritas, o Espiritismo apoia-se também, em virtude de oferecer-lhes explicações científicas, em uma multidão de fenômenos ordinários. Referimo-nos, por exemplo, às nossas inclinações e sentimentos, às peculiaridades de nosso relacionamento com as pessoas que nos cercam, aos acontecimentos marcantes de nossas vidas, aos distúrbios da personalidade, aos efeitos psicosomáticos, aos sonhos, à evolução das espécies e das civilizações, etc.

Entendemos que a desconsideração desse vasto corpo de evidências indiretas a favor do Espiritismo constitui omissão séria da parte de seus críticos. Com seu agudo senso científico, Kardec percebeu desde o início que o alcance do Espiritismo transcendia de muito os fenômenos mediúnicos e anímicos específicos que motivaram o seu surgimento. Referindo-se às suas impressões diante das realidades novas que se lhe iam descortinando através de suas cuidadosas observações e raciocínios, Kardec assim se expressou: "Logo compreendi a gravidade da exploração que ia empreender; entrevi naqueles fenômenos a chave do problema tão obscuro e tão controvertido do passado e do futuro da Humanidade, a solução do que eu havia procurado durante toda a minha vida; era, numa palavra, toda uma revolução nas idéias e nas crenças (...)".[5] "O estudo do Espiritismo é imenso", disse Kardec em outra passagem; "interessa a todas as questões da metafísica e da ordem social; é todo um mundo que se abre diante de nós." [6]

3. PSEUDO-CIÊNCIAS DO ESPÍRITO

Na Seção precedente iniciamos a enumeração dos métodos e procedimentos anti-científicos que caracterizam as linhas de pesquisa alternativas do espírito, indicando que a natureza de seu objeto de estudo é tal que o recurso a aparelhos e a métodos quantitativos em geral é dispensável e mesmo arrriscado, pelos enganos a que pode levar. Isto vale pelo menos quanto ao estabelecimento dos princípios fundamentais da ciência do espírito, concebendo-se que em um futuro distante o detalhamento de alguns pontos mais técnicos, como por exemplo os relativos às leis dos fluidos, possa requerer uma integração mais estreita com a física e a química mais refinadas de então.

Prosseguiremos agora nossa enumeração, começando por um tópico ligado ao que expusemos no final da Seção precedente. Referimo-nos à abrangência do Espiritismo. O escopo dessa ciência é incomparavelmente mais amplo do que o de todas as teorias alternativas. Uma inspeção destas últimas mostra que consideram apenas uns poucos fenômenos isolados, sem levar em consideração uma multidão de outros, igualmente relevantes.

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Esse desprezo de fatos importantes resulta essencialmente de duas fontes: 1) preconceitos e interesses diversos; e 2) falta de um corpo teórico que norteie a pesquisa experimental. Quanto ao primeiro fator, não há o que comentar. Quanto ao segundo, notemos que está intimamente ligado à falsa concepção de ciência adotada, que imagina ser possível se fazer ciência sem teoria.

Outra deficiência séria que apresentam esses sistemas não-espíritas é que mesmo para os grupos reduzidos de fenômenos que levam em conta, as explicações oferecidas pecam pela falta de unidade e organicidade, recorrendo a leis e princípios desconectados.

Além disso, tais explicações em geral falham em satisfazer um outro requisito fundamental de uma genuina explicação científica: a simplicidade. As explicações são em geral ainda mais inexplicáveis que os fatos que se propõem a explicar.

Encontramos ainda explicações puramente verbais, ou seja, que não apresentam qualquer conteúdo, limitando- se ao uso de termos técnicos, buscados nas diversas ciências ou criados a esmo, procurando-se com isso conferir ares científicos à suposta explicação. Muitas pessoas não familarizadas com a ciência deixam-se fascinar por tais artifícios, não percebendo que qualquer explicação satisfatória deve caracterizar-se pela clareza e inteligibilidade (como nos dá magnífico exemplo o Espiritismo) e que o recurso à linguagem técnica só é legítimo dentro do contexto teórico que lhe é próprio.

Outro tipo freqüente de deficiência que notamos nos sistemas que pretendem competir com o Espiritismo refere-se ao recurso a conceitos e teorias científicas obsoletos, ou o uso não-profissional das teorias contemporâneas. As ciências, principalmente a Física e a Química, passaram por transformações radicais em nosso século as teorias atuais envolvem conceitos extremamente abstratos, distantes da intuição do senso comum, além de técnicas matemáticas de grande complexidade. Em seus aspectos essenciais, essas teorias não são acessíveis ao leigo, que, quando instruído, em geral ainda tem para si a imagem do mundo fornecida pelas teorias do século passado. Os muitos livros de popularização da ciência via de regra não resolvem esse problema; mesmo quando são escritos por profissinais (o que é raro), inevitavelmente têm de recorrer a simplificações drásticas, que resultam em distorções sérias na imagem que oferecem das teorias expostas. Como resultado, a virtual totalidade das pessoas que têm se aventurado a estabelecer vínculos diretos entre os fenômenos espíritas e as teorias da Física cai, ou no recurso a teorias superadas, ou em confusões que mostram-se ridículas aos olhos dos cientistas com formação profissional. Essas pessoas acabam pois involuntariamente prestando um desserviço à causa da investigação científica do espírito.

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Mais um fator importante que entrava as linhas de pesquisa não-espíritas é o sistemático desprezo pelas contribuições anteriormente efetuadas por outros pesquisadores. Cada um quer começar tudo de novo, e criar seu próprio sistema. Se a dúvida equilibrada representa prudência, quando se torna irrestrita e irrefletida, aliando-se à presunção e ao orgulho, inviabiliza o avanço do conhecimento. Se nas ciências acadêmicas se tivesse adotado semelhante atitude, elas estariam ainda em seus primórdios.

Por fim, lembramos ainda que muitas das tentativas não-espíritas de estudo dos fenômenos espíritas fracassam por não reconhecer a influência de fatores morais em sua produção, influência essa que em em certos casos é determinante.

4. PERSPECTIVAS DA CIÊNCIA ESPÍRITA

Como vimos na Seção 1, uma ciência autêntica deve envolver um programa de pesquisa, que auxilie o seu progresso. Com a lucidez científica que lhe era peculiar, Allan Kardec apontou diretrizes seguras para o desenvolvimento do Espiritismo.

De um lado, temos suas análises que advertem contra os métodos e procedimentos anti-científicos que poderiam embaraçar a marcha do Espiritismo. Nas duas seções precedentes enumeramos alguns dos mais importantes deles; Kardec percorreu-os todos, e ainda outros, oferecendo sólida fundamentação às suas críticas.[7]

De outro lado, Kardec legou-nos investigações paradigmáticas sobre os tópicos mais fundamentais da ciência espírita, que serviram de modelo pra os pesquisadores que vieram após ele, e que devem continuar desempenhando essa tarefa nas pesquisas futuras.

Simplificadamente, poderíamos classificar assim as áreas principais de investigação espírita:

1. Evolução do espírito: o elemento espiritual dos seres dos reinos inferiores; origem dos espíritos humanos; encarnação e reencarnação pluralidade dos mundos habitados.

2. O mundo espiritual.3. Interação espírito-corpo: perispírito, efeitos psicossomáticos,

mediunidade.4. Implicações morais (uma área científica e filosófica): livre-arbítrio, lei

de causa e efeito.

Note-se que não icluímos o tópico "comprovação da existência do espírito". A razão é evidente: trata-se de uma questão já resolvida, na qual não devem as

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investigações estacionar. Foi uma etapa preliminar, e quem não a percorreu não pode, em boa lógica, pretender-se espírita, ou estar realizando pesquisas espíritas. É de lamentar que tal fato nem sempre seja percebido ou compreendido por pessoas que militam dentro das próprias fileiras espíritas. Os espíritas, para quem a existência do espírito é uma realidade insofismável, por a havermos constatado através de observações e argumentos racionais, devemos deixar àqueles que ainda não a reconheceram a tarefa de prová-la uma vez mais, pela maneira que bem entendam. Mas não devemos empenhar nossos esforços em uma investigação redundante, e que deporia contra as nossas próprias convicções.[8]

Três outros aspectos importantes no desenvolvimento do Espiritismo foram enfatizados por Kardec.

No item VII da Introdução de O Livro dos Espíritos, Kardec afirma que "o Espiritismo não é da alçada da ciência". Evidentemente, trata-se aqui das ciências acadêmicas, ou seja, da Física, da Química e da Biologia. O argumento para tal assertiva baseia-se nas peculiaridades do objeto de estudo e métodos do Espiritismo e das referidas ciências, assunto este tratado na Seção 2, acima. Vale a pena reproduzir aqui, por sua propriedade, o arrazoado que, no texto, antecede a assertiva em questão:

As ciências ordinárias assentam nas propriedades da matéria, que se pode experimentar e manipular livremente. Os fenômenos espíritas repousam na ação de inteligências dotadas de vontade própria e que nos provam a cada instante não se acharem subordinadas aos nossos caprichos. As observações não podem, portanto, ser feitas da mesma forma; requerem condições especiais e outro ponto de partida. Querer submetê- las aos processos comuns de investigação é estabelecer analogias que não existem. A ciência propriamente dita, é, pois, como ciência, incompetente para se pronunciar na questão do Espiritismo: não tem que se ocupar com isso, e qualquer que seja o seu julgamento, favorável ou não, nenhum peso poderá ter.

As relações entre o Espiritismo e as ciências ordinárias são, antes, de complementaridade, como também notou Kardec. No parágrafo 16 do Capítulo I de A Gênese, lemos a seguinte frase, ao final de uma extensa argumentação: "O Espiritismo e a ciência completam-se reciprocamente".

O segundo aspecto importante a ser notado liga-se parcialmente ao precedente: Kardec observa que não apenas existe uma relativa autonomia entre o Espiritismo e as ciências ordinárias como também os cientistas das academias não estão, pelo simples fato de serem cientistas, mais capacitados do que as demais pessoas para se pronunciar nas questões relativas ao Espiritismo. O assunto é abordado, entre outros lugares, em uma das respostas ao Céptico de O que é o Espiritismo (Cap. I, Segundo diálogo, seção "Oposição da ciência"). Vejamos estes trechos significativos:

Concordai, também, que ninguém pode ser bom juiz naquilo que está fora de sua competência. Se quiserdes edificar uma casa, confiareis esse trabalho a um músico? Se estiverdes enfermo, far-vos-eis tratar por um arquiteto? Se estais a braços com um processo, ides consultar um dançarino? Finalmente,

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quando se trata de uma questão de teologia, alguém irá pedir a solução a um químico ou a um astrônomo? Não cada um em sua especialidade. (...)

A ciência enganou-se quando quis experimentar os Espíritos como o faz com uma pilha voltaica; foi mal sucedida, como devia ser, porque agiu pressupondo uma analogia que não existe; e depois, sem ir mais longe, concluiu pela negação, juízo temerário que o tempo se encarrega de ir emendando diariamente, como já o fez com tantos outros. (...)

As corporações científicas não devem, nem jamais deverão pronunciar-se nesta questão ela está tão fora dos limites do seu domínio como a de decretar se Deus existe ou não é, pois, um erro tomá-las aqui por juiz.

Kardec lembra aqui que cada um é competente em sua especialidade, que alguém que haja se especializado no estudo de determinada ordem de fenômenos materiais (um físico ou um biólogo, por exemplo), não adquire, por esse simples fato, competência para se pronunciar sobre uma ordem de fenômenos completamente diferentes, a menos, obviamente, que essa pessoa tenha se dedicado séria e longamente ao seu estudo. Não devemos, pois, cair no erro freqüente hoje em dia de atribuir aos cientistas das academias uma superioridade que eles de fato não possuem na avaliação das pesquisas espíritas.

Por fim, Kardec tomou um extremo cuidado em preservar, e recomendar a preservação, da coerência e integridade da ciência espírita, pela não-intromissão em sua estrutura teórico-conceitual de elementos heterogêneos, oriundos de outros programas de pesquisa. Kardec dotou o Espiritismo de um arsenal conceitual-nomológico próprio, e qualquer desenvolvimento da teoria espírita deve fazer-se recorrendo-se aos seus elementos, ou, se algum acréscimo se fizer necessário, o elemento adicionado não pode conflitar com as leis básicas bem estabelecidas do Espiritismo. Notemos que precauções semelhantes são tomadas na evolução das ciências ordinárias. No caso do Espiritismo, é admirável que ao propor o referido corpo de conceitos e leis, Kardec teve a lucidez de não admitir elementos demasiadamente vulneráveis às transformações futuras das ciências. É assim que o Espiritismo é uma teoria fenomenológica, pelo menos em seus fundamentos. Kardec não se aventurou, por exemplo, a formular modelos para o perispírito, ou explicações técnicas para os fenômenos mediúnicos em termos de conceitos e princípios vulneráveis das ciências de seu tempo. Retrospectivamente, vemos agora que isso providencialmente preservou o Espiritismo das reviravoltas profundas ocorridas nas ciências, durante as primeiras décadas de nosso século. Espelhando-nos na atitude prudente de Kardec, não devemos, por nossa vez, procurar fazer o que ele não fez, e prematuramente associar o Espiritismo às teorias científicas contemporâneas. A progressividade do Espiritismo, uma de suas características essenciais, dado que é uma ciência que se apoia em fatos, não significa a absorção irrestrita de qualquer teoria que apareça. Essa advertência foi claramente exposta no parágrafo 55 do Capítulo I de A Gênese (grifamos):

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Entendendo com todos os ramos da economia social, aos quais dá o apoio das suas próprias descobertas, [o Espiritismo] assimilará sempre todas as doutrinas progressivas, de qualquer ordem que seja, desde que hajam atingido o estado de verdades práticas e abandonado o domínio da utopia, sem o que se suicidaria.

Não poderíamos encerrar estes apontamentos sem mencionar um ponto de crucial importância, sobre o qual Kardec não se cansava de insistir: O objetivo essencial do Espiritismo é tornar melhor o homem, convencendo- o, através dos fatos e da razão, de que somente o comportamento evangélico lhe assegurará um porvir feliz. E é nessa tarefa de esclarecimento que a ciência espírita é chamada a desempenhar a sua mais importante tarefa, conforme lemos nos comentários que Kardec tece às questões 147 e 148 de O Livro dos Espíritos:

[...] A missão do Espiritismo consiste precisamente em nos esclarecer acerca desse futuro, em fazer com que, até certo ponto, o toquemos com o dedo e o penetremos com o olhar, não mais pelo raciocínio somente, porém pelos fatos. Graças às comunicações espíritas, não se trata mais de uma simples suposição, de uma probabilidade sobre a qual cada um conjeture à vontade, que os poetas embelezem com suas ficções, ou cumulem de enganadoras imagens alegóricas. É a realidade que nos aparece, pois que são os próprios seres de além-túmulo que nos vêm descrever a situação em que se acham, relatar o que fazem, facultando-nos assistir, por assim dizer, a todas as peripécias da nova vida que lá vivem e mostrando-nos, por esse meio a sorte inevitável que nos está reservada, de acordo como os nossos méritos e deméritos. Haverá nisso alguma coisa de anti-religioso? Muito ao contrário, porquanto os incrédulos encontram aí a fé e os tíbios a renovação do fervor e da confiança. O Espiritismo é, pois, o mais potente auxiliar da religião. Se ele aí está, é porque Deus o permite, e o permite para que as nossas vacilantes esperanças se revigorem e para que sejamos reconduzidos à senda do bem pela perspectiva do futuro.

REFERÊNCIAS

BORGES DE SOUZA, J. "Pesquisas e métodos", Reformador, abril de 1986, pp. 99-101.

CHAGAS, A. P. "O que é a ciência?", Reformador, março de 1984, pp. 80-83 e 93-95.

-----------. "As provas científicas", Reformador, agosto de 1987, pp. 232-233.

CHIBENI, S. S. "Espiritismo e ciência", Reformador, maio de 1984, pp. 144-147 e 157-159.

-----------. "Os fundamentos da ética espírita", Reformador, junho de 1985, pp. 166-169.

-----------. "A excelência metodológica do Espiritismo", Reformador, novembro de 1988, pp. 328-333, e dezembro de 1988, pp. 373-378.

KARDEC, A. Le Livre des Esprits. Paris, Dervy-Livres, s.d.

----------. O Livro dos Espíritos. Trad. Guillon Ribeiro, 43ª ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s.d.

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----------. Qu'est-ce que le Spiritisme. Paris, Dervy-Livres, 1975.

----------. O que é o Espiritismo. S. trad., 25ª ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s.d.

----------. La Genèse, les Miracles et les Prédictions selon le Spiritisme. Paris, La Diffusion Scientifique, s.d.

----------. A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo. Trad. Guillon Ribeiro, 23ª ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s.d.

----------. Oeuvres Posthumes. Paris, Dervy-Livres, 1978.

----------. Obras Póstumas. Trad. Guillon Ribeiro, 18ª ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s.d.

Notas de Rodapé

1 Em nosso artigo "Espiritismo e ciência" abordamos de modo mais extenso o aspecto ciêntífico do Espiritismo, à luz da moderna Filosofia da Ciência. Retomamos o assunto no trabalho mais abrangente e menos tecnico "A excelência metodológica do Espiritismo", que contém também uma análise do aspecto religioso do Espiritismo. Em "Os fundamentos da ética espírita" examinamos com algum detalhe as implicações morais da ciência espírita. Para o aspecto científico do Espiritismo, recomendamos ainda a leitura dos artigos "O que é a ciência" e "As provas científicas", de Aécio Pereira Chagas, e "Pesquisas e métodos", de Juvanir Borges de Souza. As referências completas desses artigos, todos publicados em Reformador, encontram-se na lista bibliográfica, aposta no final deste artigo.

2 Para um tratamento desse ponto, ver a Seção 3 de nosso "A exelência metodológica do Espiritismo".

3 Para um tratamento mais extenso desse tópico, ver nossos artigos já referidos.

4 Por exemplo, o ponto luminoso que vemos diariamente no céu poderia ser uma alucinação coletiva, ou a visita do parente pode não ter passado de um sonho, e a caixa de bombons pode coincidentemente ter sido trazida por um promotor de vendas ousado que por acaso tinha uma chave que serviu em nossa porta.

5 Oeuvres Posthumes, item "A minha iniciação no Espiritismo". Nesta e nas demais citações de obras de Kardec, traduzimos diretamente a partir das edições francesas indicadas na lista de referências bibliográficas,

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aproveitando, em grande parte, as traduções publicadas pela Federação Espírita Brasileira.

6 Le Livre des Esprits, Introdução, Seção XIII.

7 Esses estudos de Kardec são comentados em nosso artigo "A excelência metodológica do Espiritismo", especialmente em sua seção 4.

8 Para esse ponto, ver também o artigo "As provas científicas", de Aécio P. Chagas.

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Algumas passagens em Kardec sobre a filosofia espírita (compiladas por Silvio Seno Chibeni)

I. O Livro dos Espíritos

Folha de rosto:

Filosofia Espiritualista

Introdução, XVII:

A razão nos diz que entre o homem e Deus outros elos necessariamente haverá, como disse aos astrônomos que, entre os mundos conhecidos, outros haveria, desconhecidos. Que filosofia já preencheu esta lacuna? O Espiritismo no-la mostra preenchida pelos seres de todas as ordens do mundo invisível e estes seres não são mais do que os Espíritos dos homens, nos diferentes graus que levam à perfeição. Tudo então se liga, tudo se encadeia, desde o alfa até o ômega.

Prolegômenos:

Este livro é o repositório de seus ensinos. Foi escrito por ordem e mediante ditado de Espíritos superiores, para estabelecer os fundamentos de uma filosofia racional, isenta dos preconceitos do espírito de sistema.

Conclusão:

(I): Pois bem! Sabei, vós que não credes senão no que pertence ao mundo material, que dessa mesa, que gira e vos faz sorrir desdenhosamente, saiu toda uma ciência, assim como a solução dos problemas que nenhuma filosofia pudera ainda resolver.

(V): Três períodos distintos apresenta o desenvolvimento dessas idéias: primeiro, o da curiosidade, que a singularidade dos fenômenos produzidos desperta; segundo, o do raciocínio e da filosofia; terceiro, o da aplicação e das conseqüências. O período da curiosidade passou; a curiosidade dura pouco. Uma vez satisfeita, muda de objeto. O mesmo não acontece com aquilo que se dirige à razão e evoca reflexões sérias. Começou o segundo período, o terceiro virá inevitavelmente. (...)

(VI): Mesmo quem não testemunhou nenhum fenômeno material relativo às manifestações dos Espíritos diz para si próprio: à parte esses fenômenos, há a filosofia, que me explica o que NENHUMA outra havia explicado. Nela encontro, por meio unicamente do raciocínio, uma solução racional para os problemas que no mais alto grau interessam ao meu futuro. Ela me dá calma, segurança, confiança; livra-me do tormento da incerteza. Ao lado de tudo isto, secundária se torna a questão dos fatos materiais.

(VII): O Espiritismo se apresenta sob três aspectos diferentes: o fato das manifestações, os princípios de filosofia e de moral que delas decorrem e a aplicação desses princípios. Daí, três classes, ou, antes, três graus de adeptos:

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Prefácio 2a ed.:

O ensino relativo às manifestações dos Espíritos, propriamente ditas, bem como aos médiuns, forma uma parte distinta da filosofia espírita, podendo constituir objeto de um estudo especial. (L. Médiuns)

222: Qual a filosofia ou a teosofia capaz de resolver estes problemas? É fora de dúvida que, ou as

almas são iguais ao nascerem, ou são desiguais. Se são iguais, por que, entre elas, tão grande diversidade de aptidões?

II. O Livro dos Médiuns

[7] Provai então que a existência dos Espíritos e suas manifestações são contrárias às leis da Natureza; que não é, nem pode ser uma destas leis. Acompanhai a Doutrina Espírita e vede se todos os elos, ligados uniformemente à cadeia, não apresentam todos os caracteres de uma lei admirável, que resolve tudo o que as filosofias até agora não puderam resolver. [13] Porém, até onde vai a crença do Espiritismo? perguntarão. Lede, observai e sabê-lo-eis. Só com o tempo e o estudo se adquire o conhecimento de qualquer ciência. Ora, o Espiritismo, que entende com as mais graves questões de filosofia, com todos os ramos da ordem social, que abrange tanto o homem físico quanto o homem moral, é, em si mesmo, uma ciência, uma filosofia, que já não podem ser aprendidas em algumas horas, como nenhuma outra ciência. [14] 7º A explicação dos fatos que o Espiritismo admite, de suas causas e conseqüências morais, forma toda uma ciência e toda uma filosofia, que reclamam estudo sério, perseverante e aprofundado. [18] Dissemos que o Espiritismo é toda uma ciência, toda uma filosofia. Quem, pois, seriamente queira conhecê-lo deve, como primeira condição, dispor-se a um estudo sério e persuadir-se de que ele não pode, como nenhuma outra ciência, ser aprendido a brincar. O Espiritismo, também já o dissemos, entende com todas as questões que interessam a Humanidade; tem imenso campo, e o que principalmente convém é encará-lo pelas suas conseqüências. [32] Temos notado sempre que os que crêem, antes de haver visto, apenas porque leram e compreenderam, longe de se conservarem superficiais, são, ao contrário, os que mais refletem. Dando maior atenção ao fundo do que à forma, vêem na parte filosófica o principal, considerando como acessório os fenômenos propriamente ditos. Declaram então que, mesmo quando estes fenômenos não existissem, ainda ficava uma filosofia que só ela resolve problemas até hoje insolúveis; que só ela apresenta a teoria mais racional do passado do homem e do seu futuro. Ora, como é natural, preferem eles uma doutrina que explica, às que não explicam, ou explicam mal. [35] 2º - O Livro dos Espíritos. Contém a doutrina completa, como a ditaram os próprios Espíritos, com toda a sua filosofia e todas as suas conseqüências morais. E a revelação do destino do homem, a iniciação no conhecimento da natureza dos Espíritos e nos mistérios da vida de além-túmulo. Quem o lê compreende que o Espiritismo

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objetiva um fim sério, que não constitui frívolo passatempo. [328] A instrução espírita não abrange apenas o ensinamento moral que os Espíritos dão, mas também o estudo dos fatos. Incumbe-lhe a teoria de todos os fenômenos, a pesquisa das causas, a comprovação do que é possível e do que não o é; em suma, a observação de tudo o que possa contribuir para o avanço da ciência. Ora, fora erro acreditar-se que os fatos se limitam aos fenômenos extraordinários; que só são dignos de atenção os que mais fortemente impressionam os sentidos. A cada passo, eles ressaltam das comunicações inteligentes e de forma a não merecerem desprezados por homens que se reúnem para estudar. Esses fatos, que seria impossível enumerar, surgem de um sem-número de circunstâncias fortuitas. Embora de menor relevo, nem por isso menos dignos são do mais alto interesse para o observador, que neles vai encontrar ou a confirmação de um princípio conhecido, ou a revelação de um princípio novo, que o faz penetrar um pouco mais nos mistérios do mundo invisível. Isso - também é filosofia. [cap. 31, item 18, Esp. São Luís] Zombaram das mesas girantes, nunca zombarão da filosofia, da sabedoria e da caridade que brilham nas comunicações sérias. Aquelas foram o vestíbulo da ciência; aí, todo aquele que entra tem que deixar seus prejuízos, como deixa a capa. [...] Eu não poderia condenar as manifestações físicas, pois que se elas se produzem, é com permissão de Deus e para um fim proveitoso. Dizendo que foram o vestíbulo da ciência, assino-lhes a categoria que verdadeiramente lhes compete e lhes comprovo a utilidade. Condeno tão-somente os que fazem disso objeto de divertimento e de curiosidade, sem tirarem o ensinamento que dai decorre. Elas são, para a filosofia do Espiritismo, o que a gramática é para a literatura, e quem haja chegado a certo grau de conhecimento numa ciência, já não perde o tempo em lhe repassar os elementos.

III. Evangelho Segundo o Espiritismo

[cap. 5, item 6] Que dizer, enfim, dessas crianças que morrem em tenra idade e da vida só conheceram sofrimentos? Problemas são esses que ainda nenhuma filosofia pôde resolver, anomalias que nenhuma religião pôde justificar e que seriam a negação da bondade, da justiça e da providência de Deus, se se verificasse a hipótese de ser criada a alma ao mesmo tempo que o corpo e de estar a sua sorte irrevogavelmente determinada após a permanência de alguns instantes na Terra.

IV O Céu e o Inferno

[1.1.13] Apresente-se-lhe, porém, um futuro sob condições lógicas, digno em tudo da grandeza, da justiça e da infinita bondade de Deus, e ele repudiará o materialismo e o panteísmo, cujo vácuo sente em seu foro intimo, e que só aceitara à falta de coisa melhor. O Espiritismo dá algo melhor; eis por que é acolhido pressurosamente por todos os atormentados da dúvida, os que não encontram nem nas crenças nem nas filosofias vulgares o que procuram. O Espiritismo tem por si a lógica do raciocínio e a sanção dos fatos, e é por isso que inutilmente o têm combatido. [2.2 Sra. Anais Gourdon] Nota - Sem esta explicação tão lógica, consentânea com a solicitude de Deus para com as criaturas, dificilmente se compreenderia o que à primeira vista parecerá anomalia. De fato, que pode haver de mais belo, poético e gracioso que a linguagem desta jovem educada entre rudes

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4operários? Dá-se o contrário muitas vezes: -Espíritos inferiores encarnam entre os mais adiantados homens, porém, com fito oposto. É visando o seu próprio adiantamento que Deus os põe em contacto com um meio esclarecido, e, às vezes, também como instrumento de provação desse mundo. Que outra filosofia pode resolver tais problemas? [2.3 Sr. Cardon] A Filosofia desviara-me, sem que eu desse por isto, da compreensão da grandeza do Eterno, que sabe distribuir a dor e a alegria para ensino da Humanidade.

V - A Gênese

[4.6] Por que então não se lhe [da Bíblia] ergueu mais cedo o véu? De um lado, por falta de luzes que só a Ciência e uma sã filosofia podiam fornecer e, de outro lado, por efeito do principio da imutabilidade absoluta da fé, conseqüência de um respeito ultracego à letra, e, assim, pelo temor de comprometer a estrutura das crenças, erguida sobre o sentido literal. [4.11-12] Mas a história do homem, considerado como ser espiritual, se prende a uma ordem especial de idéias, que não são do domínio da Ciência propriamente dita e das quais, por este motivo, não tem ela feito objeto de suas investigações. A Filosofia, a cujas atribuições pertence, de modo mais particular, esse gênero de estudos, apenas há formulado, sobre o ponto em questão, sistemas contraditórios, que vão desde a mais pura espiritualidade, até a negação do principio espiritual e mesmo de Deus, sem outras bases, afora as idéias pessoais de seus autores. Tem, pois, deixado sem decisão o assunto, por falta de verificação suficiente.

12. - Esta questão, no entanto, é a mais importante para o homem, por isso que envolve o problema do seu passado e do seu futuro. A do mundo material apenas indiretamente o afeta. O que lhe importa saber, antes de tudo, é donde ele veio e para onde vai, se já viveu e se ainda viverá, qual a sorte que lhe está reservada.

Sobre todos esses pontos, a Ciência se conserva muda. A Filosofia apenas emite opiniões que concluem em sentido diametralmente oposto, mas que, pelo menos, permitem se discuta, o que faz com que muitas pessoas se lhe coloquem do lado, de preferência a seguirem a religião, que não discute. [12.15] Toda a mitologia pagã, aliás, nada mais é, em realidade, do que um vasto quadro alegórico das diversas faces, boas e más, da Humanidade. Para quem lhe busca o espírito, é um curso completo da mais alta filosofia, como acontece com as modernas fábulas. O absurdo estava em tomarem a forma pelo fundo.

VI - Obras Póstumas

[pp. 86-7] Onde acaba o poder da alma sobre os corpos? Qual a parte dessa força inteligente nos fenômenos do Magnetismo? Qual a do organismo? Aí estão questões de muito interesse, questões graves para a Filosofia, como para a Medicina. ... Tínhamos, como se vê, grandes motivos para avançar que o estudo dos fenômenos magnéticos guarda fortes relações com a filosofia e a psicologia. [p. 157] O mundo caminhou a passos gigantescos desde os tempos históricos; os filósofos dos povos primitivos gradualmente se transformaram. As artes que se apóiam nas filosofias que lhes são a consagração idealizada, também tiveram que se modificar e transformar. É matematicamente certo

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dizer-se que, sem crença, as artes carecem de vitalidade e que toda transformação filosófica acarreta necessariamente uma transformação artística paralela. [pp. 211-12] Por que, em geral, se cuida tão pouco da vida futura? Trata-se, no entanto, de uma atualidade, pois que todos os dias milhares de homens partem para esse destino desconhecido. Tendo cada um de nós de partir por sua vez e podendo a hora da partida soar de um momento para outro, parece natural que todos se preocupem com o que sucederá. Por que não se dá isso? Precisamente porque é desconhecido o destino e porque, até ao presente, ninguém tinha meio de conhecê-lo. A Ciência, inexorável, o desalojou dos lugares onde o tinham limitado. Está ele perto? Está longe? Acha-se perdido no infinito? As filosofias de antanho nada respondem, porque nada sabem a respeito. Diz-se então: «Será o que for.» Indiferença. [p. 221] Forte como filosofia, o Espiritismo só teria que perder, neste século de raciocínio, se se transformasse em poder temporal. Não será ele, portanto, que fará as instituições do mundo regenerado; os homens é que as farão, sob o império das idéias de justiça, de caridade, de fraternidade e de solidariedade, mais bem compreendidas, graças ao Espiritismo. [p. 247] Quando aos Espíritos facetos sucederam os Espíritos sérios, moralizadores; quando o Espiritismo se tornou ciência, filosofia, as pessoas superficiais deixaram de achá-lo divertido; [p. 253] depois, digam o que disserem, ou façam o que fizerem, ninguém seria capaz de privar a doutrina do seu caráter distintivo, da sua filosofia racional e lógica, da sua moral consoladora e regeneradora. [p. 260] O Espiritismo é uma doutrina filosófica de efeitos religiosos, como qualquer filosofia espiritualista, pelo que forçosamente vai ter às bases fundamentais de todas as religiões: Deus, a alma e a vida futura. Mas, não é uma religião constituída, visto que não tem culto, nem rito, nem templos e que, entre seus adeptos, nenhum tomou, nem recebeu o título de sacerdote ou de sumo-sacerdote. Estes qualificativos são de pura invenção da crítica. [p. 269] Até ali, as sessões em casa do Sr. Baudin nenhum fim determinado tinham tido. Tentei lá obter a resolução dos problemas que me interessavam, do ponto de vista da Filosofia, da Psicologia e da natureza do mundo invisível.

VII – O que é o Espiritismo

[Preâmbulo] No terceiro capítulo, publicamos um resumo de “O Livro dos Espíritos”, com a solução, pela Doutrina Espírita, de certo número de problemas do mais alto interesse, de ordem psicológica, moral e filosófica, que diariamente são propostos, e aos quais nenhuma filosofia deu ainda resposta satisfatória.

Procurem resolvê-los por qualquer outra teoria, sem a chave que nos fornece o Espiritismo; comparem suas respostas com as dadas por este, e digam quais são as mais lógicas, quais as que melhor satisfazem à razão. [...]

O ESPIRITISMO É, AO MESMO TEMPO, UMA CIÊNCIA DE OBSERVAÇÃO E UMA DOUTRINA FILOSÓFICA. COMO CIÊNCIA PRÁTICA ELE CONSISTE NAS RELAÇÕES QUE SE ESTABELECEM ENTRE NÓS E OS ESPÍRITOS; COMO FILOSOFIA, COMPREENDE TODAS AS CONSEQÜÊNCIAS MORAIS QUE DIMANAM DESSAS MESMAS RELAÇÕES.

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[O cético, p. 65] O Espiritismo prende-se a todos os ramos da Filosofia, da Metafísica, da Psicologia e da Moral; é um campo imenso que não pode ser percorrido em algumas horas. [p. 105] Qualquer que seja o grau de veracidade desses fenômenos, como efeitos mediúnicos, eles produzirão bom resultado, por darem voga à idéia espírita. A controvérsia que se estabelece a respeito provoca em muitas pessoas um estudo mais aprofundado.

Não é certamente aí que se deve ir beber instruções sérias sobre o Espiritismo, nem sobre a filosofia da doutrina; porém, é um meio de chamar a atenção dos indiferentes e obrigar os recalcitrantes a falarem dele. [pp. 169-70] 53. As manifestações não são, pois, destinadas a servir aos interesses materiais; sua utilidade está nas conseqüências morais que delas dimanam; não tivessem, elas, porém, como resultado senão fazer conhecer uma nova lei da Natureza, demonstrar materialmente a existência da alma e sua imortalidade, e já isso seria muito, porque era largo caminho novo aberto à Filosofia. [p. 189, Cap. II, seção “Consequências do Espiritismo”] Nas lições de filosofia clássica, os professores ensinam a existência da alma e seus atributos, segundo as diversas escolas, mas sem apresentar provas materiais. Não parece estranho que, agora que chegaram essas provas, eles as repilam e classifiquem de superstições? Não será isso o mesmo que confessar a seus discípulos que eles ensinam a existência da alma, mas sem que tenham disso nenhuma prova? Quando um cientista emite uma hipótese, sobre um ponto de ciência, procura com empenho e acolhe com alegria tudo o que possa fazer dessa hipótese uma verdade. Como, pois, um professor de filosofia, cujo dever é provar a seus discípulos que eles têm uma alma, despreza os meios de lhes fornecer uma patente demonstração desse ponto?

VIII – Voyage Spirite en 1862

[p. 5] Un fait plus important encore peut-être que le nombre est ressorti de nos observations, c'est le point de vue sérieux sous lequel on envisage la doctrine ; partout on en recherche, nous pouvons dire avec avidité, le côté philosophique, moral et instructif [...]. [p. 6] Mais ce qui est caractéristique, c'est la diminution évidente des médiums à effets physiques, à mesure que se multiplient les médiums à communications intelligentes ; c'est que, comme l'ont dit les Esprits, la période de la curiosité est passée, et que nous sommes dans la seconde période qui est celle de la philosophie. La troisième, qui commencera avant peu, sera celle de l'application à la réforme de l'humanité. [p.8] Cette facilité à comprendre dénote un développement antérieur dans ce sens; il y aurait légèreté à l'accepter sur parole et en aveugle ; mais il n'en est pas ainsi de ceux qui ne l'adoptent qu'après avoir étudié et compris : ils voient par les yeux de l'intelligence ce que d'autres ne voient que par les yeux du corps. Cela prouve qu'ils attachent plus d'importance au fond qu'à la forme ; pour eux, la philosophie est le principal ; le fait même des manifestations est accessoire. Cette philosophie leur explique ce qu'aucune autre n'a pu leur expliquer ; elle

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satisfait leur raison par sa logique, comble en eux le vide du doute, et cela leur suffit ; c'est pourquoi ils la préfèrent à toute autre. [p. 20] C'est ce que je me suis efforcé de faire en montrant, dès le principe, le côté grave et sublime de cette science nouvelle ; en la faisant sortir de la voie purement expérimentale pour la faire entrer dans celle de la philosophie et de la morale [pp. 42-3] Il n'y avait donc, dans l'origine, que des Spirites, c'est-à-dire des croyants ; la philosophie et la morale ont ouvert à cette science un horizon nouveau, et créé des Spirites Pratiquants ; les uns sont restés en arrière, les autres sont allés en avant.

Plus la morale a été sublime, plus elle a fait ressortir les imperfections de ceux qui n'ont pas voulu la suivre, comme une lumière éclatante fait ressortir les ombres ; c'était un miroir : quelques-uns n'ont pas voulu s'y regarder ou, croyant s'y reconnaître, ont préféré jeter la pierre à qui le leur montrait. Telle est encore la cause de certaines animosités ; mais, je suis heureux de le dire, ce sont là des exceptions ; quelques petites noires sur un immense tableau et qui ne sauraient en altérer l'éclat. Elles appartiennent en grande partie à ce qu'on pourrait appeler les Spirites de première formation ; quant à ceux qui se sont formés depuis et se forment chaque jour, la grande majorité a accepté la doctrine précisément à cause de sa morale et de sa philosophie, c'est pourquoi ils s'efforcent de pratiquer. Prétendre qu'ils doivent tous être devenus parfaits, ce serait méconnaître la nature de l'humanité ; mais n'auraient-ils dépouillé que quelques parties du vieil homme, ce serait toujours un progrès dont il faut tenir compte ; ceux-là seuls sont inexcusables aux yeux de Dieu, qui, étant bien et dûment éclairés, n'en auraient pas profité comme ils le pouvaient ; à ceux-là, certes, il sera demandé un compte sévère dont ils pourront, ainsi que nous en avons de nombreux exemples, subir les conséquences dès ici-bas ; mais, à côté de ceux-là, il en est beaucoup aussi en qui il s'est opéré une véritable métamorphose ; qui ont trouvé dans cette croyance la force de vaincre des penchants depuis longtemps enracinés, de rompre avec de vieilles habitudes, de faire taire les ressentiments et les inimitiés, de rapprocher les distances sociales. On demande au Spiritisme des miracles : voilà ceux qu'il produit.

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Roteiro de estudo proposto por Silvio Seno Chibeni para o Encontro do IPEAK de abril de 2008.

Tema: “Espiritismo e religião”

“A causa primária do desenvolvimento da incredulidade reside, como muitas vezes dissemos, na insuficiência das crenças religiosas, em geral, para satisfazer a razão, e em seu princípio de imobilidade, que lhes proíbe de fazer qualquer concessão sobre seus dogmas, mesmo diante de evidências. Se, ao invés de ficarem para trás, tivessem acompanhado o movimento progressivo do espírito humano, mantendo-se sempre no nível da ciência, é certo que difeririam um pouco daquilo que foram no princípio (como um adulto difere da criança de berço), mas então a fé, ao invés de apagar-se, teria crescido com a razão, visto que constituiu uma necessidade para a Humanidade; não teriam aberto a porta para a incredulidade, que vem agora solapar o que delas restou; colhem o que semearam.”

Allan Kardec, “Uma profissão de fé materialista”, Revue Spirite, 1868, outubro, pp. 309-311.

* * *

Bibliografia básica:

1. Refutation d’un article de l’Univers - Revue Spirite, maio 1859, pp.129-138 e

2. Le Spiritisme est-il une religion? – Revue Spirite, dezembro 1868, pp. 353-362.

Estes dois textos trazem reflexões importantes para a compreensão da natureza do

Espiritismo e para os rumos do movimento espírita.

Outras considerações sobre essa polêmica desencadeada pelo artigo de l’Univers estão

em:

3. “Réponse à la replique de M. l’abbé Chesnel, dans l’Univers” – Revue, julho de 1859,

p. 91, e

4. Comentário final em um segundo artigo sobre outro caso que mereceu a atenção de

Kardec, o do Sr. Deschanel, que no Journal des Débats acusou o Espiritismo de ser materialista

– Revue, abril de 1861, p. 99 (ver março de 1861, pp. 65-75, para o artigo inicial sobre esse

caso).

Esse material todo foi aproveitado por Kardec na composição de porções centrais do

Diálogo com o Padre, no cap. 1 de O que é o Espiritismo. Esse diálogo deve ser relido, não

apenas para notar-se como Kardec trabalhava, aproveitando materiais da Revista, mas também

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porque a forma destilada da discussão contém nuances interessantes e aborda alguns pontos que

não foram suscitados no diálogo com o padre real. (Ver nota de rodapé n. 5, abaixo.)

Todos esses textos estão disponíveis, no original francês, no site do Centre d’Études

Spirites Léon Denis: http://pagesperso-orange.fr/charles.kempf/

Traduzi os trechos mais relevantes dos artigos 1, 3 e 4, transcrevendo-os abaixo.

Uma tradução completa (aparentemente de Salvador Gentile) do primeiro texto está

disponível em: http://www.universoespirita.org.br/alemao/REV1/RESPOSTA.htm .

O segundo texto foi traduzido por Ismael Gomes Braga, e publicado no Reformador, em

outubro de 1949 e março de 1976. Esta tradução de boa qualidade foi digitalizada e

disponibilizada pelo Grupo de Estudos Espíritas da Unicamp:

http://www.geocities.com/athens/academy/8482/reformador/textos/194910religiao.htm

(Transcrevi, abaixo, alguns trechos importantes.)

*** O tema da religião espírita foi tratado em alguns de meus artigos (disponíveis no site do

Grupo de Estudos Espíritas da Unicamp: http://www.geocities.com/athens/academy/8482 :

• O Espiritismo em seu tríplice aspecto: científico, filosófico e religioso:

http://www.geocities.com/athens/academy/8482/artigos/tripliceaspecto.htm

• Questões sobre a natureza do Espiritismo. Parte III: A religião espírita:

http://www.geocities.com/ athens/academy/8482/artigos/quest/quest3.htm

• A excelência metodológica do Espiritismo, seção 5:

http://www.geocities.com/athens/academy/8482/exemet.html

*** Sugiro ainda, como reflexão sobre problemas do movimento espírita parcialmente ligados

ao assunto, o artigo recente “Campeonato da insensatez”, assinado por Vianna de Carvalho e

outros Espíritos espíritas, publicado no Reformador, outubro de 2006, e disponível em:

http://www.febnet.org.br/file/37/refout06.pdf

*** Dos muitos textos filosóficos sobre a religião, um dos mais importantes é The Natural

History of Religion, de David Hume, publicado em 1757. Há uma tradução recente para o

português, da autoria de Jaimir Conte. Os dados dessa tradução, incluindo uma sinopse do livro

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e a tábua dos capítulos, estão em: http://www.cfh.ufsc.br/~conte/txt-hume-hnr.html . Nessa

página há um link para uma edição do original inglês. Outra edição, em diversos formatos

digitais, pode ser encontrada em:

http://oll.libertyfund.org/index.php?option=com_staticxt&staticfile=show.php%3Ftitle=340&It

emid=28 . (No final, transcrevo alguns trechos sobre os quais gostaria de chamar especialmente

a atenção.)

O tradutor Jaimir Conte oferece a seguinte sinopse do livro: “Neste livro, o filósofo

escocês David Hume trata das origens e das causas que produzem o fenômeno da religião, dos

seus efeitos sobre a vida e a conduta humanas e das variações cíclicas entre o politeísmo e o

monoteísmo. Uma de suas preocupações é também chamar a atenção para os efeitos das

diferentes espécies de religião sobre a tolerância e a moralidade. Hume desenvolve uma

investigação sobre os princípios “naturais” que originam a crença religiosa, bem como um

estudo antropológico e histórico sobre os efeitos sociais da religião.”

Na orelha, Conte explica, corretamente, que “O natural do título decorre da demanda por

uma narrativa histórico-filosófica que não seja predeterminada pela idéia da existência de Deus,

e sim decorrente de uma perspectiva segundo a qual a crença é entendida como produto da

natureza humana.”

* * *

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Seleção de trechos diretamente relevantes para o presente estudo

1. Tradução e notas de trechos do primeiro artigo da Revue, “Refutation d’un article de

l’Univers” (maio 1859, pp.129-138):

Refutação de um artigo de l’Univers

Em seu número de 13 de abril passado, o jornal l’Univers traz um artigo do Sr. Abade

Chesnel, em que a questão do Espiritismo é longamente discutida. Nós o teríamos deixado

passar, como fizemos com tantos outros aos quais não ligamos nenhuma importância, se se

tratasse de uma dessas diatribes grosseiras que provam, pelo menos, que seus autores ignoram

da forma mais absoluta aquilo que atacam. Apraz-nos reconhecer que o artigo do Sr. Abade

Chesnel é redigido em um espírito bem diferente. Pela moderação e educação de sua linguagem

merece uma resposta, que se faz ainda mais necessária por conter um erro grave, capaz de dar

uma idéia muito falsa, quer do Espiritismo em geral, quer, mais particularmente, do caráter e

objetivo dos trabalhos da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas. Transcrevemos em

seguida o artigo em sua íntegra.

“Todos conhecem o Espiritismo do Sr. Cousin, essa filosofia que pretende, suavemente,

tomar o lugar da religião.1 Temos hoje, sob o mesmo título,2 um corpo de doutrinas reveladas,

1 Victor Cousin, filósofo espiritualista francês. Em Cobra, R. Q., FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA:

Resumos Biográficos, http://www.cobra.pages.nom.br/fc-cousin.html, afirma-se: “Filósofo, educador e

historiador francês, Victor Cousin nasceu em Paris em 28 de novembro de 1792 e faleceu em Canes em. 13 de

janeiro de 1867. Seu ecletismo sistemático, - a combinação de muitas filosofias diferentes -, fez dele o mais bem

conhecido pensador liberal de seu tempo. [...] Reintegrado em 1828 na Ecóle Normale, que fora reaberta em

1826, suas aulas de filosofia fizeram dele um escritor popular, sendo figura dominante na intelectualidade

francesa pelos 20 anos seguintes. [...] Além das aulas, e de seus encargos oficiais, Cousin escreveu

prolificamente. Cousin não desenvolveu um sistema filosófico próprio, mas ao contrário, construiu um sistema a

partir da obra dos outros. Conseguiu, porém, mudar a ênfase da filosofia francesa do materialismo para o

idealismo.” Para um artigo acadêmico sobre Cousin, ver “The ‘Two Cultures’ in Nineteenth-Century France:

Victor Cousin and Auguste Comte”, de W. M. Simon, Journal of the History of Ideas, Vol. 26, No. 1. (Jan. -

Mar., 1965), pp. 45-58. Disponível em: http://links.jstor.org/sici?sici=0022-

5037%28196501%2F03%2926%3A1%3C45%3AT%27CINF%3E2.0.CO%3B2-U (requer-se autorização de

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que aos poucos se vai completando, e um culto bem simples, é verdade, mas de maravilhosa

eficácia, visto que colocaria os devotos em comunicação real, sensível e quase permanente com

o mundo sobrenatural.

“Esse culto tem assembléias periódicas que se iniciam pela evocação de um santo

canonizado. [...]

“Daí segue-se que o espiritualismo3 é uma religião, pois nos coloca em relação íntima

com o infinito, e que absorve, por ampliação, o Cristianismo; que, de todas as formas religiosas

presentes ou passadas, é – como facilmente se admite – a mais elevada, pura e perfeita.

Ampliar o Cristianismo é, porém, tarefa difícil, que não se pode empreender sem derrubar as

barreiras dentro das quais ele se encerrou. Os racionalistas não respeitam nenhuma barreira; os

espiritualistas, sendo menos ardentes ou mais prudentes, só identificaram duas cujo

arrasamento lhes parece indispensável: a autoridade da Igreja Católica e o dogma da eternidade

das penas. [...]

“Como quer que seja, o espetáculo que nos apresentam hoje não passa de uma evolução

do magnetismo, que se esforça para se tornar uma religião.

“Sob a forma dogmática e polêmica que a nova religião assumiu com o Sr. Jean

Reynauld, ela incorreu na condenação do Concílio de Périgueux, cuja competência – todos se

lembrarão – foi contestada de forma grave pelo culpado.4

acesso à base JSTOR). Há várias referências a Cousin na Revue Spirite: 1863, novembro, pp. 325, 332-334;

1868, junho, p. 189 e outubro, p. 309. 2 Chesnel sistematicamente – e talvez intencionalmente – usa a palavra genérica ‘espiritualismo’ para se

referir ao Espiritismo. 3 Ou seja, Espiritismo; ver nota precedente. 4 Há numerosas referências a Reynaud na Revue: 1859, fevereiro, p. 51; 1862, agosto, p. 239; 1863,

agosto, pp. 229, 242, 255; 1864, julho, p. 222; 1869, dezembro, p. 375. O Catalogue raisonné des Ouvrages

pouvant servir à fonder une biblioteque spirite, elaborado por Kardec, contém referência a duas obras desse

autor, seguidas de breves comentários, que atribuem a ele a condição de “um dos precursores mais imediatos do

Espiritismo”, que teria “concebido a doutrina espírita por intuição”:

“Reynaud (Jean), membre de l’Institut. Terre et Ciel. – Edition in-12, 4 fr. (Epuisée). Edition in-8, 7 fr. ;

franco, 7 fr. 50 c. Paris, Furne. Jean Reynaud a été l’un des précurseurs les plus immédiats du Spiritisme ;

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“Sob a forma mística que assume hoje em Paris, ela merece ser estudada, ao menos como

um sinal dos tempos em que vivemos. O espiritualismo já amealhou um certo número de

homens, entre os quais vários são conhecidos por sua honorabilidade. Esse poder de sedução

que ele exerce para progredir, de forma lenta porém contínua, constatado por testemunhas

dignas de fé; as pretensões que apresenta; os problemas que suscita; o mal que pode fazer às

almas – eis motivos bastantes para chamar a atenção dos católicos. Evitemos atribuir à nova

seita mais importância do que realmente tem; mas para evitar o exagero, que tudo aumenta, não

caiamos, por outro lado, na mania de tudo diminuir. [...]”

Abade François Chesnel.

comme tant d’autres écrivains, il a conçu la doctrine spirite par intuition. Son ouvrage, un des plus remarquables

en ce genre, comme pensées et comme style, publié en 1854, l’a précédée de peu d’années ; s’il l’eût écrit

comme spirite, il aurait eu peu de choses à modifier dans ses idées. Sa théorie du passé et de l’avenir de l’homme

repose sur le principe de la réincarnation avec toutes ses conséquences morales. Le talent et la position de

l’auteur donnent à ses paroles une incontestable autorité.

“– Esprit de la Gaule. – 1 vol. in-8, 6 fr. ; franco, 6 fr. 50 c. Détails authentiques sur les moeurs des

Gaulois et les croyances druidiques. La philosophie des druides admettait le progrès indéfini par les existences

successives et les épreuves de la vie. (Revue spirite, avril 1858, page 95.)”

Kardec faz uma breve referência no último número que editou da Revue, abril de 1989, ao plano de

publicar esse Catálogo. Foi publicado depois da morte de Kardec, aparentemente como separata, pelos

responsáveis pela Librairie Spirite. A 2a edição, de agosto de 1869, está disponível em: http://pagesperso-

orange.fr/charles.kempf/Livres/catalogue.pdf .

Como se vê nas passagens que indiquei da Revue, depois de desencarnar Reynaud se comunicou na

Societé e comenta que em vida efetivamente defendeu os pontos principais do Espiritismo, sem disso se dar

conta. A comunicação dele foi aproveitada, como sabe, em O Céu e o Inferno, parte segunda, cap. II, como uma

das comunicações de Espíritos felizes.

Algumas informações sobre Reynaud podem se encontradas em: Philo19, base de dados reunindo obras

filosóficas em francês do século 19: http://www.textesrares.com/philo19/. Ali, a página sobre o autor começa

com esta informação resumida: “Polytechnicien. Dans le courant saint-simonien. Fondateur avec Pierre Leroux

de L’Encyclopédie nouvelle, tente de réconcilier la science et la théologie. Auteur de Terre et Ciel (1854).”

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Sr. Abade,

O artigo sobre o Espiritismo que publicastes em l’Univers contém vários erros que

importa retificar, e que provêm, sem nenhuma dúvida, de um estudo incompleto do assunto.

Para refutá-los todos seria preciso retomar, desde os fundamentos, todos os pontos da teoria,

bem como os que lhe servem de base. Não tenho nenhuma intenção de fazer isso aqui; limitar-

me-ei aos pontos principais. [...]

Além disso, Sr. Abade, minha intenção aqui não é fazer um curso de Espiritismo, nem

discutir se está ou não em erro. Bastaria, como disse antes, reportar-me aos inumeráveis fatos

que citei na Revue Spirite, bem como às explicações dadas a eles em minhas diversas

publicações. Chego, portanto, à parte de vosso artigo que me parece a mais séria.

Intitulais vosso artigo Uma nova religião em Paris. Supondo-se que tal fosse, de fato, o

verdadeiro caráter do Espiritismo, já haveria aí um primeiro erro, visto que ele está longe de se

circunscrever a Paris. [...] Depois, é ele uma religião? Fácil é demonstrar o contrário.

O Espiritismo funda-se na existência de um mundo invisível, formado por seres

incorpóreos que povoam o espaço, e que nada são senão as almas dos que viveram na Terra ou

em outros globos, nos quais deixaram seus envoltórios materiais. São esses os seres a que

demos – ou melhor, que se deram a si próprios – o nome de Espíritos. Tais seres, que

incessantemente nos circundam, exercem sobre os homens grande influência, sem que estes o

percebam. Desempenham papel muito ativo no mundo moral e, até certo ponto, no mundo

físico. O Espiritismo está, pois, na natureza, e num certo âmbito de idéias pode-se dizer que é

uma força, assim como a eletricidade ou a gravitação universal o são em outro.

O Espiritismo revela-nos o mundo dos seres invisíveis, do mesmo modo que o

microscópio nos revelou o dos seres infinitamente pequenos, de cuja existência não

suspeitávamos. Os fenômenos de que esse mundo invisível constitui a origem devem, pois, ter-

se produzido – e de fato se produziram – em todas as épocas; eis porque a história de todos os

povos os menciona. Ocorre apenas que, em sua ignorância, os homens atribuíram tais

fenômenos a causas mais ou menos hipotéticas, dando curso livre a sua imaginação, como

fizeram com todos os fenômenos cuja natureza lhes era imperfeitamente conhecida. O

Espiritismo, que passou a ser mais bem observado quando se disseminou, vem projetar luz

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sobre uma multidão de questões até então insolúveis, ou mal resolvidas. Seu verdadeiro caráter

é, pois, o de uma ciência,5 e não o de uma religião, como atesta o fato de que conta entre seus

adeptos homens de todas as crenças e que, nem por isso, renunciam a suas convicções:

católicos fervorosos, que não deixaram de praticar seu culto; protestantes de todas as seitas,

israelitas, muçulmanos, e até mesmo budistas e bramanistas. Nele há de tudo, menos

materialistas e ateus, pois suas idéias são incompatíveis com as observações espíritas. O

Espiritismo repousa, portanto, sobre princípios gerais, independentes de toda questão

dogmática. Tem, é verdade, como toda ciência filosófica, conseqüências morais. Essas

conseqüências vão no sentido do Cristianismo, visto que, de todas as doutrinas, o Cristianismo

é a mais esclarecida, a mais pura, sendo essa a razão pela qual os cristãos são, dentre os

profitentes de seitas religiosas, os mais aptos a compreender a verdadeira essência do

Espiritismo.6 Logo, o Espiritismo não é uma religião; se fosse, teria seu culto, seus templos e

seus ministros. É claro que cada um pode, a partir de suas opiniões, fazer uma religião, ou

5 Pode não ser coincidência que, o assunto da natureza real do Espiritismo tendo vindo à tona a partir do

artigo de Chesnel (abril de 1859), Kardec empenhou-se não apenas em oferecer esta réplica (maio), mas em

compor um livro inteiro dedicado ao assunto – O que é o Espiritismo? (julho de 1959, segundo informação que

consta na tradução da FEB) – livro este em que, como já notei, são aproveitados, para compor uma de suas

principais partes, os pontos suscitados pelo debate. Essa hipótese é reforçada pelo fato de que já no Preâmbulo

do livro Kardec oferece esta resposta direta e sublinhada à questão do título: “O Espiritismo é, ao mesmo tempo,

uma ciência de observação e uma doutrina filosófica. Como ciência prática ele consiste nas relações que se

estabelecem entre nós e os Espíritos; como filosofia, compreende todas as conseqüências morais que dimanam

dessas mesmas relações. Podemos defini-lo assim: O Espiritismo é uma ciência que trata da natureza,

origem e destino dos Espíritos, bem como de suas relações com o mundo corporal.” 6 A convergência da moral que decorre da ciência espírita com a moral cristã é tema recorrente nas obras

de Kardec. Já na primeira edição do Livro dos Espíritos, no antepenúltimo parágrafo da Introdução, Kardec nota:

“[...] é incontestável que no ensino dos espíritos superiores encontramos os preceitos de uma moral sublime que

não é outra senão o desenvolvimento e a explicação da do Cristo, e cujo efeito deve ser o de tornar os homens

melhores” (p. 27). Na segunda edição, definitiva, o ponto é exposto no item VI da Introdução. No corpo do livro,

é explorado, por exemplo, nos itens 619, 623, 625, 627, 632 e 876. Finalmente, na Conclusão ocupa um item

inteiro, o item VIII. Em A Gênese, é longamente discutido no importante cap. I, “Caráter da revelação espírita”;

ver, por exemplo, os §§ 56 e 62. E há um livro só sobre isso, é claro, o Evangelho segundo o Espiritismo.

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interpretar como queira as religiões conhecidas. Daí, porém, à constituição de uma nova Igreja

há uma grande distância, e creio que seria imprudente lançar essa idéia. Resumindo, o

Espiritismo ocupa-se da observação dos fatos, não das particularidades desta ou daquela

crença; ocupa-se da pesquisa as causas e explicações que esses fatos podem oferecer aos

fenômenos conhecidos, tanto de ordem moral como física. Ele não impõe um culto aos seus

partidários, assim como a astronomia não impõe o culto dos astros, ou a pirotecnia o do fogo. E

mais: do mesmo modo que o sabeísmo7 é a astronomia mal compreendida, o Espiritismo, mal

compreendido, foi, na Antigüidade, a fonte do politeísmo. Hoje, graças às luzes do

Cristianismo, podemos julgar tal assunto de maneira mais justa; ele nos adverte quanto a esses

sistemas errôneos, que são fruto da ignorância. E a própria religião pode buscar no Espiritismo

prova palpável de muitas verdades contestadas por certas pessoas. Eis porque, contrariamente

ao que se dá com a maioria das ciências filosóficas, um de seus efeitos é o de reconduzir às

idéias religiosas aqueles que se perderam em função de um ceticismo exagerado.8

7 Sabeísmo: seita judaico-cristã originária dos gnósticos e baseada na adoração dos astros. 8 Esse ponto crucial é retomado por Kardec em um dos textos mais precisos, e ao mesmo tempo

eloqüentes, de O Livro dos Espíritos, o comentário no final dos itens 147 e 148, sobre o papel do Espiritismo na

refutação do materialismo. Eis sua porção final: “Dizem que ninguém jamais voltou de lá [do além-túmulo] para

nos dar informações. É erro dizê-lo e a missão do Espiritismo consiste precisamente em nos esclarecer acerca

desse futuro, em fazer com que, até certo ponto, o toquemos com o dedo e o penetremos com o olhar, não mais

pelo raciocínio somente, porém, pelos fatos. Graças às comunicações espíritas, não se trata mais de uma simples

suposição, de uma probabilidade sobre a qual cada um conjeture à vontade, que os poetas embelezem com suas

ficções, ou cumulem de enganadoras imagens alegóricas. É a realidade que nos aparece, pois que são os próprios

seres de além-túmulo que nos vêm descrever a situação em que se acham, relatar o que fazem, facultando-nos

assistir, por assim dizer, a todas as peripécias da nova vida que lá vivem e mostrando-nos, por esse meio, a sorte

inevitável que nos está reservada, de acordo com os nossos méritos e deméritos. Haverá nisso alguma coisa de

anti-religioso? Muito ao contrário, porquanto os incrédulos encontram aí a fé e os tíbios a renovação do fervor e

da confiança. O Espiritismo é, pois, o mais potente auxiliar da religião. Se ele aí está, é porque Deus o permite e

o permite para que as nossas vacilantes esperanças se revigorem e para que sejamos reconduzidos à senda do

bem pela perspectiva do futuro.” (Ver também, a esse respeito, RS, fevereiro de 1862, pp. 34 ss: Réponse à

l’adresse des Spirites Lionnays à l’occasion de la nouvelle année.)

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A Sociedade de que falais define seu objetivo por seu próprio título: o nome Sociedade

Parisiense de Estudos Espíritas de modo nenhum se assemelha ao de uma seita. Tão pouco

caráter de seita tem ela, que o seu regulamento a proíbe de se ocupar de questões religiosas.9

Enquadra-se na categoria de sociedade científica, dado que, de fato, seu objetivo é estudar e

aprofundar todos os fenômenos que resultam das relações entre o mundo visível e o invisível.

Como toda sociedade, tem presidente, secretário e tesoureiro. Não convida o público para suas

seções.10 Nelas não se faz nenhum discurso ou qualquer outra coisa que tenha caráter de culto.

Conduz seus trabalhos com calma e recolhimento, porque, primeiro, isso é condição necessária

para as observações e, depois, porque conhece o respeito que se deve aos que não mais vivem

sobre a Terra. Chama-os em nome de Deus, pois acredita nele, em seu poder supremo,

reconhecendo que nada se faz sem sua permissão. Abre suas sessões com um apelo geral aos

Espíritos bons, porque, ciente de que há Espíritos bons e maus, cuida para que estes últimos

não venham se imiscuir de maneira fraudulenta nas comunicações que recebe, induzindo ao

erro. O que isso prova? Que não somos ateus. Mas isso não implica que sejamos religionários.

A pessoa que vos contou o que se faz entre nós poderia se ter convencido acerca desse ponto,

se tivesse seguido nossos trabalhos e sobretudo os tivesse julgado de forma menos leviana e,

talvez, com espírito menos prevenido e apaixonado. Os fatos protestam, pois, contra a

qualificação de nova seita que dais à Sociedade, por falta, sem dúvida, de um melhor

conhecimento a seu respeito.

Concluís vosso artigo chamando a atenção dos católicos para o mal que o Espiritismo

pode fazer às almas. Se as conseqüências do Espiritismo fossem a negação de Deus, da alma,

de sua individualidade após a morte, do livre-arbítrio do homem, das penas e recompensas

futuras, ele seria uma doutrina profundamente imoral. Mas, ao contrário, ele prova pelos fatos,

9 O Regulamento da Sociedade forma o cap. 30 do Livro dos Médiuns. O item referido por Kardec está no

primeiro parágrafo: “1º — A Sociedade tem por objeto o estudo de todos os fenômenos relativos às

manifestações espíritas e suas aplicações às ciências morais, físicas, históricas e psicológicas. São defesas nela as

questões políticas, de controvérsia religiosa e de economia social.” (Tradução de Guillon Ribeiro.) 10 Ver o Regulamento, especialmente o parágrafo 17: “[...] As sessões serão particulares ou gerais; nunca

serão públicas.” O Regulamento estipula regras estritas para a admissão ocasional de visitantes convidados.

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e não pelo raciocínio, as bases fundamentais da religião, cujo inimigo mais perigoso é o

materialismo. Faz mais: por suas conseqüências o Espiritismo ensina a suportar com resignação

as misérias desta vida; acalma o desespero; ensina os homens a se amarem como irmãos,

segundo os preceitos divinos de Jesus. Se soubésseis, como eu, quantos incrédulos

empedernidos reconduziu à crença; quantas vítimas arrancou ao suicídio, pela perspectiva do

destino reservado aos que abreviam a vida contra a vontade de Deus; quantos ódios aplacou e

quantos inimigos reconciliou! É isso que chamais fazer mal às almas? Não, não podeis pensar

assim, e quero crer que se conhecêsseis melhor o Espiritismo o julgaríeis de modo muito

diverso. A religião, direis, pode fazer tudo isso. Longe de mim contestá-lo. Acreditais, porém,

que teria sido melhor para aqueles que se mostraram rebeldes a ela permanecer na

incredulidade absoluta? Se o Espiritismo triunfou nesses casos, se tornou claro a essas pessoas

o que estava obscuro, se lhes tornou evidente o que era duvidoso, onde está o mal? Digo, de

minha parte, que ao invés de perder suas almas, ele as salvou.

Recebei, etc.

Allan Kardec.

* * *

2. Tradução de trechos do segundo artigo da Revue, julho de 1859, p. 91: “Réponse à la

replique de M. l’abbé Chesnel, dans l’Univers”:

Resposta à réplica do Sr. Abade Chesnel em l’Univers

O jornal l’Univers publicou, em seu número de 28 de maio último, nossa réplica ao artigo

do Sr. Abade Chesnel sobre o Espiritismo, trazendo em seguida uma tréplica. Este segundo

artigo reproduz todos os argumentos do primeiro, salvo a urbanidade das formas [...]; não

poderíamos respondê-lo senão repetindo o que já dissemos, coisa que nos parece

completamente inútil. O Sr. Abade Chesnel esforça-se sempre para provar que o Espiritismo é,

deve ser e não pode ser senão uma religião nova, porque dele decorre uma filosofia, e porque se

ocupa da constituição física e moral dos mundos. Por tal critério, todas as filosofias seriam

religiões. [...]

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Como já disse, o Espiritismo é alheio a todas as crenças dogmáticas, das quais não se

ocupa. Consideramo-lo tão-somente uma ciência filosófica que nos explica uma série de coisa

que não compreendemos e que, por isso mesmo, em vez de abafar em nós as idéias religiosas,

como certas filosofias, faz que brotem naqueles em quem não existem. Se quiserdes, porém, a

todo custo elevá-lo à condição de uma religião, sereis vós próprio quem o poreis numa via

nova. É o que compreendem perfeitamente bem certos eclesiásticos que, longe de forçar uma

cisão, esforçam-se por conciliar as coisas, em virtude deste raciocínio: se as manifestações do

mundo invisível ocorrem, não pode ser senão por vontade de Deus, não nos cabendo ir contra

sua vontade; a menos que se diga que algo acontece no mundo sem sua permissão – o que seria

uma impiedade. Se eu tivesse a honra de ser padre, usaria esse raciocínio em favor da religião,

fazendo dele uma arma contra a incredulidade, e dizendo aos materialistas e ateus: Pedis

provas? Aqui estão; é Deus que as envia.

* * *

3. Tradução de parte do comentário sobre o caso Chesnel, em artigo sobre o caso

Deschanel, Revue, abril de 1861, p. 99:

Ainda uma palavra sobre o Sr. Deschanel

Quando o Sr. Abade Chesnel publicou em l’Univers, em 1858 [sic], seu artigo sobre o

Espiritismo, forneceu da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas uma idéia igualmente falsa,

apresentando-a como uma seita religiosa que tem culto e padres. Tal alegação desnaturava

completamente seu objetivo e tendências, podendo enganar a opinião pública. Era tão mais

errada pelo fato de que o regulamento da Sociedade a proíbe de se ocupar de questões

religiosas; ora, não se conceberia uma sociedade religiosa que não pudesse tratar de religião.

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4. Trechos do artigo “Le Spiritisme est-il une religion?” Revue, dezembro 1868, pp. 353-

362. (Tradução de Ismael Gomes Braga, com alguns ajustes feitos por mim, SSC):

É o Espiritismo uma religião?

Assim, pela comunhão de pensamentos, os homens assistem-se mutuamente, e ao mesmo

tempo auxiliam os Espíritos e são ajudados por eles. Portanto, as relações do mundo visível

com o mundo invisível já não são individuais, são coletivas, e por isso mesmo mais poderosas

em proveito das massas bem como para o dos indivíduos; em uma palavra, ela estabelece a

solidariedade, que é a base da fraternidade. Cada um não trabalha somente para si, mas para

todos, e, trabalhando para todos, cada um recebe seu quinhão; é isso que o egoísta não

compreende .

[...]

Todas as reuniões religiosas, a qualquer culto que pertençam, são fundadas sobre a

comunhão de pensamentos; e com efeito é nas reuniões religiosas que ela deve e pode exercer

todo o seu poder, porque o alvo tem que ser o desprendimento do pensamento das estreitezas da

matéria. Infelizmente, a maior parte delas se desviou desse princípio, quando fez da religião

uma questão de forma. Disso resultou que cada um, fazendo consistir seu dever no cumprir as

formas, crê-se quite com Deus e com os homens, quando haja praticado a fórmula. Resulta

ainda que cada um vai aos lugares de reuniões religiosas com um pensamento pessoal, de seu

próprio interesse e o mais freqüentemente sem sentimento algum de fraternidade para com os

outros assistentes; fica isolado no meio da multidão, e não pensa no céu senão para si mesmo.

[...]

Dissemos que a verdadeira finalidade das assembléias religiosas deve ser a comunhão de

pensamentos; é que de fato a palavra religião quer dizer elo; uma religião, em sua acepção

ampla e verdadeira, é um elo que religa os homens em uma comunidade de sentimentos, de

princípios e de crenças; mais tarde, esse nome foi dado a esses mesmos princípios codificados e

formulados em dogmas ou artigos de fé.

[...]

O laço estabelecido por uma religião, seja qual for seu objetivo, é, portanto, um elo

essencialmente moral que religa os corações, que identifica os pensamentos, as aspirações, e

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não é somente o fato de compromissos materiais que se rompem à vontade, ou do cumprimento

de fórmulas que falam mais aos olhos do que ao espírito. O efeito desse elo moral é estabelecer

entre os que ele une, como conseqüência da comunidade de opiniões e de sentimentos, a

fraternidade e a solidariedade, a indulgência e a benevolência mútuas. É nesse sentido que se

diz também: a religião da amizade, a religião da família.

Se assim é, dirão, o Espiritismo então é uma religião? – Perfeitamente! sem dúvida; no

sentido filosófico, o Espiritismo é uma religião, e nós nos ufanamos disso, porque ele é a

doutrina que funda os laços de fraternidade e da comunhão de pensamentos, não sobre uma

simples convenção, mas sobre as mais sólidas bases: as próprias leis da Natureza.

Por que então declaramos que o Espiritismo não é uma religião? Porque só temos uma

palavra para exprimir duas idéias diferentes e que, na opinião geral, a palavra religião é

inseparável da idéia de culto; desperta exclusivamente uma idéia de forma, coisa que o

Espiritismo não tem. Se o Espiritismo se dissesse uma religião, o público só veria nele uma

nova edição, uma variante, se assim nos quisermos expressar, dos princípios absolutos em

matéria de fé, uma casta sacerdotal com seu cortejo de hierarquias, de cerimônias e de

privilégios; o público não o separaria das idéias de misticismo e dos abusos, contra os quais sua

opinião tem-se elevado tantas vezes.

Não possuindo nenhum dos caracteres de uma religião, na acepção usual da palavra, o

Espiritismo não poderia nem deveria ornar-se com um título sobre cujo valor inevitavelmente

se estabeleceria a incompreensão; eis porque ele se diz simplesmente: doutrina filosófica e

moral.

As reuniões espíritas podem, pois, realizar-se religiosamente, isto é, com o recolhimento e

o respeito que comporta a natureza austera dos assuntos de que nelas se tratam; podem mesmo

fazer-se, em ocasião oportuna, orações que, em vez de serem ditas em particular, são feitas em

comum, sem serem por isso o que se entende por assembléias religiosas. Não se julgue que isto

seja simples jogo de palavras; o matiz é perfeitamente claro, e a aparente confusão vem da falta

de uma palavra para cada idéia.

[...]

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Crer em um Deus todo poderoso, soberanamente justo e bom; crer na alma e na sua

imortalidade; na preexistência da alma como justificativa da presente existência; na pluralidade

das existências como meio de expiação, reparação e adiantamento intelectual e moral; na

perfectibilidade dos seres mais imperfeitos; na felicidade crescente com a perfeição; na

remuneração eqüitativa do bem e do mal, segundo o principio: a cada um segundo suas obras;

na igualdade da justiça para todos, sem exceções, favores nem privilégios para criatura alguma;

na duração da expiação limitada à da imperfeição; no livre arbítrio do homem, deixando-lhe a

escolha entre o bem e o mal; crer na continuidade das relações entre o mundo visível e o

mundo invisível; na solidariedade que liga todos os entes passados, presentes e futuros,

encarnados e desencarnados; considerar a vida terrestre como transitória e uma das fases da

vida do Espírito, que é eterna; aceitar corajosamente as provas, visto ser o futuro mais desejável

que o presente; praticar a caridade por pensamentos, palavras e obras, na mais ampla acepção

do vocábulo; esforçar-se cada dia por ser melhor do que na véspera, extirpando da alma alguma

imperfeição; submeter todas as suas crenças ao controle do livre exame e da razão, e nada

aceitar por uma fé cega; respeitar todas as crenças sinceras, por mais irracionais que nos

pareçam, e não violentar a consciência de ninguém; ver, enfim, nas descobertas da Ciência, a

revelação das leis da Natureza, que são as leis de Deus: eis o Credo, a religião do Espiritismo,

religião que pode conciliar-se com todos os cultos, isto é, com todas as maneiras de adorar a

Deus. Esse é o laço que deve unir todos os espíritas numa santa comunhão de pensamentos,

enquanto se espera que ele ligue todos os homens sob a bandeira da fraternidade universal.

* * *

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5. Tradução de trechos do livro La religion spirite: son dogme, sa morale et sa practique, da

autoria de I. Bertrand (Paris, Librairie Bloud et Barral, 1898; disponível no site da BNF):

(Esses trechos mostram que o “erro grave” sobre o caráter do Espiritismo que Kardec tentou

corrigir continuou sendo cometido no final do século, embora neste caso provavelmente por

má-fé.)

A religião espírita: Seu dogma, sua moral e suas práticas

Introdução:

Allan-Kardec, o patriarca do Espiritismo, não quis fazer, ou fez somente de passagem, um

estudo científico das manifestações espíritas.

Seu objetivo, como confessou diversas vezes, foi o de fundar uma religião nova, chamada

não a destruir, mas a explicar e completar a religião cristã.

Limitamo-nos, nesta brochura, a examinar, de forma tão breve quanto possível, o sistema

religioso do novato e mostrar suas contradições, incoerências e perigos.

Tais contradições e incoerências, numerosas demais para que possamos apontá-las todas,

dissimulam-se, ordinariamente, numa fraseologia na qual o verdadeiro e o falso se tocam, se

confundem e se imbricam da maneira a mais insidiosa.

[...]

Cap. II. A religião espírita:

Em 1857, o Espiritismo deu nascimento a uma nova seita religiosa.

[...]

As obras que ele (Allan-Kardec) publicou sobre o Espiritismo se caracterizam por uma

mistura, em doses desiguais, de devaneios místicos, de erros doutrinais emprestados à Reforma,

e de idéias católicas.

Por longos anos, seu ideal religioso foi o da unificação das crenças.

O Espiritismo, de que ouviu falar pela primeira vez em 1854, pareceu-lhe ser o meio de

atingir o objetivo que perseguia.

* * *

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Seleção de trechos do livro História Natural da Religião, de David Hume:

(Transcritos da edição eletrônica usada na The Online Library of Liberty.)

1. Seção VI: Origem do teísmo a partir do politeísmo:

“A little philosophy,” says my Lord Bacon, “makes men Atheists; a great deal reconciles them to religion.” For men, being taught by superstitious prejudices to lay the stress on a wrong place, when that fails them, and they discover, by a little reflexion, that this very regularity and uniformity is the strongest proof of design and of a supreme intelligence, they return to that belief which they had deserted; and they are now able to establish it on a firmer and more durable foundation.

2. Seção XI: [Comparação dessas religiões] com respeito à razão ou ao absurdo:

But where theism forms the fundamental principle of any popular religion, that tenet is so conformable to sound reason, that philosophy is apt to incorporate itself with such a system of theology. And if the other dogmas of that system be contained in a sacred book, such as the Alcoran, or be determined by any visible authority, like that of the Roman pontif, speculative reasoners naturally carry on their assent, and embrace a theory which has been instilled into them by their earliest education, and which also possesses some degree of consistence and uniformity. But as these appearances are sure, all of them, to prove deceitful, philosophy will soon find herself very unequally yoked with her new associate; and instead of regulating each principle, as they advance together, she is at every turn perverted to serve the purposes of superstition. For besides the unavoidable incoherences which must be reconciled and adjusted, one may safely affirm that all popular theology, especially the scholastic, has a kind of appetite for absurdity and contradiction. If that theology went not beyond reason and common sense, her doctrines would appear too easy and familiar. Amazement must of necessity be raised; mystery affected; darkness and obscurity sought after; and a foundation of merit afforded the devout votaries, who desire an opportunity of subduing their rebellious reason, by the belief of the most unintelligible sophisms.

Ecclesiastical history sufficiently confirms these reflexions. When a controversy is started, some people pretend always with certainty to foretell the issue. Whichever opinion, say they, is most contrary to plain sense is sure to prevail, even where the general interest of the system requires not that decision. Though the reproach of heresy may for some time be bandied about among the disputants, it always rests at last on the side of reason. Any one, it is pretended, that has but learning enough of this kind to know the definition of Arian, Pelagian, Erastian, Socinian, Sabellian, Eutychian, Nestorian, Monothelite, etc., not to mention Protestant, whose fate is yet uncertain, will be convinced of the truth of this observation. It is thus a system becomes more absurd in the end, merely from its being reasonable and philosophical in the beginning.

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To oppose the torrent of scholastic religion by such feeble maxims as these: that “it is impossible for the same to be and not to be”, that “the whole is greater than a part”, that “two and three make five”, is pretending to stop the ocean with a bull-rush. Will you set up profane reason against sacred mystery? No punishment is great enough for your impiety. And the same fires which were kindled for heretics will serve also for the destruction of philosophers.

3. Seção XIII: Concepções ímpias da natureza divina em ambos os tipos de religião:

Lucian1 observes that a young man who reads the history of the gods in Homer or Hesiod, and finds their factions, wars, injustice, incest, adultery, and other immoralities so highly celebrated, is much surprised afterwards, when he comes into the world, to observe that punishments are by law inflicted on the same actions which he had been taught to ascribe to superior beings. The contradiction is still perhaps stronger between the representations given us by some later religions and our natural ideas of generosity, lenity, impartiality, and justice; and in proportion to the multiplied terrors of these religions, the barbarous conceptions of the divinity are multiplied upon us.2 Nothing can preserve untainted the genuine principles of morals in our judgment of human conduct but the absolute necessity of these principles to the existence of society. If common conception can indulge princes in a system of ethics somewhat different from that which should regulate private persons, how much more those superior beings whose attributes, views, and nature are so totally unknown to us? Sunt superis sua jura.3 The gods have maxims of justice peculiar to themselves.

4. Seção XIV: Má influência das religiões populares sobre a moral:

Nay, if we should suppose, what seldom happens, that a popular religion were found, in which it was expressly declared that nothing but morality could gain the divine favor; if an order of priests were instituted to inculcate this opinion in daily sermons and with all the arts of persuasion; yet so inveterate are the people’s prejudices, that, for want of some other superstition, they would make the very attendance on these sermons the essentials of religion, rather than place them in virtue and good morals. [...]

For there is no man so stupid, as that, judging by his natural reason, he would not esteem virtue and honesty the most valuable qualities which any person could possess. Why not ascribe the same sentiment to his deity? Why not make all religion, or the chief part of it, to consist in these attainments? [...]

Perhaps the following account may be received as a true solution of the difficulty. The duties which a man performs as a friend or parent seem merely owing to his benefactor or children; nor can he be wanting to these duties without breaking through all the ties of nature and morality. A strong inclination may prompt him to the performance. A sentiment of order and moral beauty joins its force to these natural ties; and the whole man, if truly virtuous, is drawn to his duty without any effort or endeavour. Even with regard to the virtues which are more austere, and more founded on reflection, such as public spirit, filial duty, temperance, or

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integrity, the moral obligation, in our apprehension, removes all pretence to religious merit; and the virtuous conduct is deemed no more than what we owe to society and to ourselves. In all this a superstitious man finds nothing which he has properly performed for the sake of his deity, or which can peculiarly recommend him to the divine favor and protection. He considers not that the most genuine method of serving the divinity is by promoting the happiness of his creatures. He still looks out for some more immediate service of the supreme being, in order to allay those terrors with which he is haunted. And any practice recommended to him which either serves to no purpose in life, or offers the strongest violence to his natural inclinations, that practice he will the more readily embrace, on account of those very circumstances which should make him absolutely reject it. It seems the more purely religious because it proceeds from no mixture of any other motive or consideration. And if, for its sake, he sacrifices much of his ease and quiet, his claim of merit appears still to rise upon him in proportion to the zeal and devotion which he discovers. In restoring a loan or paying a debt his divinity is nowise beholden to him; because these acts of justice are what he was bound to perform, and what many would have performed were there no God in the universe. But if he fast a day, or give himself a sound whipping, this has a direct reference, in his opinion, to the service of God. No other motive could engage him to such austerities. By these distinguished marks of devotion he has now acquired the divine favor; and may expect, in recompense, protection and safety in this world and eternal happiness in the next. [...]

To which we may add that, even after the commission of crimes, there arise remorses and secret horrors, which give no rest to the mind, but make it have recourse to religious rites and ceremonies, as expiations of its offences. Whatever weakens or disorders the internal frame promotes the interests of superstition; and nothing is more destructive to them than a manly steady virtue, which either preserves us from disastrous, melancholy accidents, or teaches us to bear them. During such calm sunshine of the mind, these spectres of false divinity never make their appearance. On the other hand, while we abandon ourselves to the natural undisciplined suggestions of our timid and anxious hearts, every kind of barbarity is ascribed to the supreme Being, from the terrors with which we are agitated; and every kind of caprice, from the methods which we embrace in order to appease him. Barbarity, caprice; these qualities, however nominally disguised, we may universally observe, form the ruling character of the deity in popular religions. Even priests, instead of correcting these depraved ideas of mankind, have often been found ready to foster and encourage them. The more tremendous the divinity is represented, the more tame and submissive do men become to his ministers; and the more unaccountable the measures of acceptance required by him, the more necessary does it become to abandon our natural reason, and yield to their ghostly guidance and direction. Thus it may be allowed that the artifices of men aggravate our natural infirmities and follies of this kind, but never originally beget them. Their root strikes deeper into the mind, and springs from the essential and universal properties of human nature.

5. Seção XV: Corolário geral:

The universal propensity to believe in invisible, intelligent power, if not an original instinct, being at least a general attendant of human nature, may be considered as a kind of mark or

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stamp, which the divine workman has set upon his work; and nothing surely can more dignify mankind than to be thus selected from all the other parts of the creation, and to bear the image or impression of the universal Creator. But consult this image, as it appears in the popular religions of the world. How is the deity disfigured in our representations of him! What caprice, absurdity, and immorality are attributed to him! How much is he degraded even below the character which we should naturally, in common life, ascribe to a man of sense and virtue!

What a noble privilege is it of human reason to attain the knowledge of the supreme Being; and, from the visible works of nature, be enabled to infer so sublime a principle as its supreme Creator? But turn the reverse of the medal. Survey most nations and most ages. Examine the religious principles which have, in fact, prevailed in the world. You will scarcely be persuaded that they are other than sick men’s dreams; or perhaps will regard them more as the playsome whimsies of monkeys in human shape than the serious, positive, dogmatical asseverations of a being who dignifies himself with the name of rational.

Hear the verbal protestations of all men. Nothing they are so certain of as their religious tenets. Examine their lives. You will scarcely think that they repose the smallest confidence in them.

[...]

No theological absurdities so glaring as have not, sometimes, been embraced by men of the greatest and most cultivated understanding. No religious precepts so rigorous as have not been adopted by the most voluptuous and most abandoned of men.

[...]

What so pure as some of the morals included in some theological systems? What so corrupt as some of the practices to which these systems give rise?

[...]

The whole is a riddle, an enigma, an inexplicable mystery. Doubt, uncertainty, suspense of judgment, appear the only result of our most accurate scrutiny concerning this subject. But such is the frailty of human reason, and such the irresistible contagion of opinion, that even this deliberate doubt could scarcely be upheld, did we not enlarge our view, and, opposing one species of superstition to another, set them a quarrelling; while we ourselves, during their fury and contention, happily make our escape into the calm, though obscure, regions of philosophy.

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A Excelência Metodológica do Espiritismo

Silvio Seno Chibeni

Seções:

1. Introdução2. O Espiritismo é científico3. "O Espiritismo não é da alçada da ciência"4. As deficiências das chamadas "ciências psi"5. O Espiritismo é religioso

1. Introdução

O Espiritismo não pode considerar crítico sério senão aquele que tudo tenha visto, estudado e aprofundado com a paciência e a perseverança de um observador consciencioso; que do assunto saiba tanto quanto o adepto mais esclarecido; que haja, por conseguinte, haurido seus conhecimentos algures, que não nos romances da ciência; aquele a quem não se possa opor fato algum que lhe seja desconhecido, nenhum argumento de que já não tenha cogitado e cuja refutação faça, não por mera negação, mas por meio de outros argumentos mais peremptórios; aquele, finalmente, que possa indicar, para os fatos averiguados, causa mais lógica do que a que lhe aponta o Espiritismo. Tal crítico ainda está por aparecer.

Allan Kardec, Le Livre des Médiuns, § 14, n. 8. [nota 1]

Ao procurarmos aplicar esses critérios para a caracterização de um crítico legítimo do Espiritismo a cada um daquele que o têm pretendido ser durante os mais de cento e vinte anos que se passaram desde que Allan Kardec os enumerou, verificamos, facilmente e sem possibilidade de erro, que mesmo hoje tal crítico "ainda está para aparecer", em patente demonstração da excelência metodológica do Espiritismo, da solidez de seus fundamentos, de sua superioridade relativamente aos demais sistemas, doutrinas, teorias que com ele têm em comum o mesmo objeto de estudo, ou seja, a existência e a natureza do elemento espiritual.

Essa tese foi tão lucidamente defendida pelo próprio Kardec em várias de usas obras que acreditamos redundantes quaisquer argumentações posteriores. Nosso propósito aqui será, portanto, tão unicamente o de relembrar alguns dos aspectos já considerados pelo Codificador da Doutrina Espírita, comentando-

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os dentro do contexto de certas dificuldades encontradas por alguns espíritas quando da análise comparativa do Espiritismo com "sistemas" alternativos.

Não é inexpressivo o número de indivíduos e instituições ditos espíritas empenhados na busca de "novidades" que possam, segundo pensam, "atualizar" a Doutrina, dar-lhe "fundamentação científica", "harmonizá-la às conquistas da Ciência". Nesse sentido, procuram ressaltar e dar cobertura -inclusive através de periódicos espíritas, ciclos de palestras, etc - a pesquisadores das chamadas "ciências psi", notadamente aqueles detentores de títulos acadêmicos. Tentaremos, dentro das limitações de espaço de um artigo, mostrar que tais atitudes decorrem de uma injustificável inversão de valores, prejudicial tanto ao Movimento Espírita como ao próprio desenvolvimento da Doutrina e do conhecimento humano em geral.

2. O Espiritismo é científico

O Espiritismo é uma ciência que trata da natureza, origem e destino dos Espíritos, bem como de suas relações com o mundo corporal.

Allan Kardec, Qu'est-ce que le Spiritisme, Preâmbulo.

Evidentemente, o estatuto científico de uma teoria não pode ser decidido através da mera deliberação de se definir como uma "ciência". Esse atributo é inerente à natureza intrínseca da teoria, e não à denominação que se lhe dê.

A tarefa de determinar quais as características de uma teoria são necessárias e suficientes ao seu enquadramento na categoria de ciência cabe à sub-área da Filosofia intitulada Filosofia da Ciência. Essa disciplina, assim como outros ramos do saber, vem evoluindo constantemente. Em seu caso específico, progressos essenciais ocorreram no século XX, e , mais acentuadamente, a partir da década de 60. Os trabalhos de vários filósofos, entre os quais Karl Popper, Willard Quine, Thomas Kuhn, Paul Feyerabend e Imre Lakatos, evidenciaram graves problemas na concepção de ciência que prevaleceu durante séculos, e ainda hoje é muito freqüente encontrar-se entre os não filósofos.

A compreensão dessa visão "antiga" de ciência, de suas várias dificuldades, dos argumentos avançados por esses filósofos e das novas concepções que propuseram requer estudos especializados de muitos anos, não podendo pois ser avançada dentro de um artigo, por maior que seja sua extensão. Em trabalho anterior tivemos ocasião de tentar fornecer uma tosca idéia dessas questões. Procuraremos aqui relembrar algo do que ali foi exposto, a fim de dar substância à nossa presente argumentação. [nota 2]

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Muito simplificadamente, poderíamos dizer que pelo menos desde o surgimento da ciência moderna, por volta do século XVII, acreditava-se que a Ciência consistia na catalogação neutra de um grande número de "fatos", dos quais então resultariam, de maneira "espontânea", certa e infalível, as leis gerais que o regem; a reunião de tais leis constituiria então uma teoria científica.

Conforme mencionamos, essa visão "clássica" de ciência mostrou-se insustentável. Percebeu-se que a descrição, busca e classificação dos fatos necessariamente envolve pressuposições teóricas de um tipo ou de outro; que nenhuma lei teórica pode resultar lógica e infalivelmente de um conjunto de fatos, qualquer que ele seja; que uma teoria científica não é um simples amontoado de leis, sendo, antes, uma estrutura dinâmica complexa, na qual participam elementos de diversas naturezas, como resultados observacionais, hipóteses livremente concebidas, regras para o desenvolvimento futuro da teoria, decisões metodológicas, fragmentos de outras teorias etc.

Imre Lakatos sistematizou as novas idéias surgidas na Filosofia da Ciência, propondo que a atividade científica desenvolve-se em torno do que denominou "programa científico de pesquisa". [nota 3] Um tal programa de pesquisa consiste, em termos simplificados, de um "núcleo rígido" de hipóteses teóricas básicas, suplementado por um "cinturão protetor" de hipóteses auxiliares, que serve para ligar e ajustar o núcleo aos fenômenos de que a ciência trata. A cada programa ainda estão associadas duas "heurísticas", uma "negativa", que é a decisão metodológica de se manter inalteradas as hipóteses do núcleo, e outra "positiva", que é um conjunto de sugestões ou idéias de como mudar ou desenvolver o cinturão protetor de modo que o programa dê conta de novos fenômenos e explique os já conhecidos de maneira mais precisa. Um programa de pesquisa é dito "progressivo" caso leve sistematicamente à descoberta de novos fatos, que sejam por ele explicados; caso contrário, será dito "degenerante".

Tomando o exemplo de um dos mais bem sucedidos programas de pesquisa da Física, a Mecânica Newtoniana, vemos que possui um núcleo rígido formado pelas três leis newtonianas do movimento e pela lei da gravitação universal, que a heurística negativa do programa recomenda sejam mantidas inalteradas: eventuais discrepâncias com a experiência devem ser eliminadas através de ajustes nas hipóteses auxiliares do cinturão protetor. Esse processo ocorreu várias vezes durante o desenvolvimento do programa, como quando, no século XIX, se verificou que as previsões teóricas para a trajetória do planeta Urano conflitavam com os dados da observação astronômica; ao invés de imputar esse desvio a possível falsidade das leis do núcleo rígido, assumiu-se que deveria existir um corpo celeste desconhecido perturbando a trajetória do planeta; mais tarde, foi, de fato, observada a existência desse corpo, o planeta Netuno. Assim como nesse episódio, a conjunção das heurísticas negativa e

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positiva do programa newtoniano levou à inúmeros desenvolvimentos: novas teorias ópticas, novos aparelhos e técnicas de observação, criação de novos ramos da Matemática etc. A partir do início de nosso século, porém, o programa tornou-se degenerante, por motivos vários que não cabe expor aqui, vindo a ser substituído pelos programas das Teorias da Relatividade e da Mecânica Quântica.

Olhando agora para o Espiritismo, vemos que traz em si todas as características de um programa de pesquisa progressivo, sendo, portanto, genuinamente científico, segundo o critério lakatosiano.

Possui um núcleo rígido formado pelo princípio da existência de uma "inteligência suprema, causa primária de todas as coisas", dotada da suprema justiça e bondade; pela lei de causa e feito; pela imortalidade dos seres vivos; por sua evolução ilimitada; pela existência do livre arbítrio, a partir de determinado estágio evolutivo. Desse núcleo pode-se, com o auxílio da lógica ("raciocínio") e de assunções auxiliares, deduzir ("explicar") a infinidade de fenômenos de que trata o Espiritismo: os fenômenos mediúnicos e anímicos, a evolução dos seres, seus estados psicológicos, sua condição após a morte etc. Todos esses fato, analisados extensiva e objetivamente pelo Espiritismo, embasam e sancionam o corpo de seus princípios teóricos; este, a seu turno, concatena, torna inteligíveis, explica aqueles fatos.

Allan Kardec percebeu, em admirável antecipação às conquistas recentes da Filosofia da Ciência, a importância fundamental dessa "simbiose" entre fenômeno e teoria, e expendeu extensos comentários sobre ela em várias de suas obras. Os três capítulos iniciais da primeira parte de O Livro dos Médiuns, por exemplo, são uma obra prima de argumentação filosófica que, embora visando à elucidação de uma questão ligeiramente diferente, contém valiosos elementos relevantes ao assunto que estamos analisando. Comecemos por estas considerações do Parágrafo 19:

É crença geral que, para convencer, basta apresentar fatos. Esse, com efeito, parece o caminho mais lógico. Entretanto, mostra a experiência que nem sempre é o melhor, pois que a cada passo se encontram pessoas que os mais patentes fatos absolutamente não convenceram. A que se deve atribuir isso? É o que vamos tentar demonstrar.

No Parágrafo 29 Kardec volta ao ponto:

Podemos dizer que, para a maioria dos que não se preparam pelo raciocínio, os fenômenos materiais quase nenhum peso têm. Quanto mais extraordinários são esses fenômenos, quanto mais se afastam das leis conhecidas, maior oposição encontram e isto por uma razão muito simples: é que todos somos naturalmente a duvidar de uma coisa que não tem sanção racional. Cada um a considera de seu ponto de vista e a explica a seu modo [...].

Essa "sanção racional" é a que advém da explicação dos fatos através da teoria. No Parágrafo 34, após ressaltar a importância dos fatos na fundamentação da teoria, Kardec considera, por outro lado, que de dez

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pessoas novatas que assistam a uma sessão de experimentação espírita "nove sairão sem estar convencidas e algumas mais incrédulas do que antes, por não terem as experiências correspondido ao que esperavam". Prossegue então Kardec:

O inverso se dará com as que puderem compreender os fatos, mediante antecipado conhecimento teórico. Paras estas pessoas, a teoria constitui um meio de verificação, sem que coisa alguma as surpreenda, nem mesmo o insucesso, porque sabem em que condições os fenômenos se produzem e que não se lhes deve pedir o que não podem dar. Assim, pois, a inteligência prévia dos fatos não só as coloca em condições de se aperceberem de todas as anomalias, mas também de apreenderem um sem número de particularidades, de matizes, às vezes muito delicados, que escapam ao observador ignorante.

Considerações interessantes nesse mesmo sentido encontram-se também em O que é o Espiritismo. No diálogo com o Crítico (Cap. I, Primeiro Diálogo) Kardec pondera, em resposta à solicitação que este lhe faz de permissão para assistir a algumas experiências:

E julgais que isto vos baste para poder, ex professo, falar de Espiritismo? Como poderíeis compreender essas experiências e, ainda mais, julgá-las, quando não estudaste os princípios em que elas se baseiam? Como apreciaríeis o resultado, satisfatório ou não, de ensaios metalúrgicos, por exemplo, não conhecendo a fundo a metalurgia?

Mais adiante, no diálogo com o Céptico (Cap. I, Segundo Diálogo, seção "Elementos de convicção") Kardec coloca a questão em termos explícitos:

Há duas coisas no Espiritismo: a parte experimental das manifestações e a doutrina filosófica. Ora, eu sou todos os dias visitado por pessoas que ainda nada viram e crêem tão firmemente como eu, pelo só estudo que fizeram da parte filosófica; para elas o fenômeno das manifestações é acessório; o fundo é a doutrina, a ciência; eles a vêem tão grande, tão racional, que nela encontram tudo quanto possa satisfazer às suas aspirações interiores, à parte o fato das manifestações; do que concluem que, supondo não existissem as manifestações, a doutrina não deixaria de ser sempre a que melhor resolve uma multidão de problemas reputados insolúveis.

Quantos me disseram que essas idéias estavam em germe no seu cérebro, conquanto em estado de confusão. O Espiritismo veio coordená-las, dar-lhes corpo, e foi para eles como um raio de luz. É o que explica o número de adeptos que a simples leitura de O Livro dos Espíritos produziu. Acreditais que esse número seria o que é hoje, se nunca tivéssemos passado das mesas girantes e falantes ?

A primeira sentença que destacamos revela uma vez mais que Kardec localizava o caráter científico do Espiritismo na "doutrina", na sua "parte filosófica", que, no contexto de nossa análise, deve ser entendido como aquilo a que vimos denominando "teoria". Os fatos em si não constituem a ciência.

Nosso segundo destaque mostra que Kardec já entendia o papel da teoria como dando "corpo", ou seja, coesão, inteligibilidade, aos fenômenos, que é a tarefa que Lakatos atribui aos princípios teóricos do programa de pesquisa, notadamente os de seu núcleo rígido.

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No decorrer das próximas seções a tese da cientificidade do Espiritismo pela qual vimos argumentando receberá indiretamente mais elementos de comprovação.

3. "O Espiritismo não é da alçada da Ciência"

A frase que serve de título a esta seção foi extraída do Item VII da magnífica peça "Introdução ao Estudo da Doutrina Espírita", que Kardec fez figurar como introdução de O Livro dos Espíritos. Esse item trata especificamente da relações entre a Doutrina Espírita e a Ciência, devendo esta ser entendida aqui como o conjunto das ciências ordinárias, "oficiais", das academias, tal como a Física, a Química e a Biologia. [nota 4]

Apesar da clareza e da robustez argumentativa com que Allan Kardec abordou esse assunto, não somente nessa seção de O Livro dos Espíritos, mas também em outras de suas obras, especialmente em O que é o Espiritismo, O Livro dos Médiuns e A Gênese, Os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo, curiosamente observam-se ainda hoje muitos equívocos em sua apresentação, mesmo por parte de espíritas. Destarte, mais uma vez repetimos que não acrescentando nada ao que já disse o preclaro Codificador, mas apenas relembrando seus argumentos. [nota 5]

Começaremos notando que a afirmação de Kardec em consideração vem, no texto, precedida pela palavra portanto, o que mostra que, seguindo a regra que invariavelmente adotou, Kardec ofereceu um argumento à assertiva, que, dada a sua importância, não poderia ser postulada dogmaticamente.

Esse argumento encontra-se no próprio parágrafo que contém a assertiva em discussão:

As ciências ordinárias assentam nas propriedades da matéria, que se pode experimentar e manipular livremente; os fenômenos espíritas repousam na ação de inteligências dotadas de vontade própria e que nos provam a cada instante não se acharem subordinadas aos nossos caprichos. As observações não podem, portanto, ser feitas de mesma forma; requerem condições especiais e outro ponto de partida. Querer submetê-la aos processos comuns de investigações é estabelecer analogias que não existem. A Ciência, propriamente dita, é, pois, como ciência, incompetente para pronunciar na questão do Espiritismo: não tem que se ocupar com isso e qualquer que seja o seu julgamento, favorável ou não, nenhum peso poderá ter.

É admirável a simplicidade do argumento: o Espiritismo e a Ciência tratam de domínios diferentes de fenômenos: o primeiro dos relativos ao elemento espiritual, a segunda daqueles concernentes ao elemento material. Têm, portanto, métodos específicos e objetivos distintos, não cabendo, pois, julgamentos recíprocos.

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Notemos que não se pode confundir o fato de o Espiritismo ser uma ciência -o que procuramos mostrar na seção anterior - com a assunção falsa de que ele pertence ao domínio da Ciência (ou seja, da Física, da Química e da Biologia).

Um pouco adiante, Kardec enfatiza:

Repetimos mais uma vez que, se os fatos a que aludimos se houvessem reduzido ao movimento mecânico dos corpos, a indagação da causa física desse fenômeno caberia no domínio da Ciência; porém, desde que se trata de uma manifestação que se produz com exclusão das leis de Humanidade, ela escapa à competência da ciência material, visto não poder exprimir-se nem por algarismos, nem pela força mecânica.

Estudando domínios diferentes e complementares, "O Espiritismo e a Ciência se completam reciprocamente", conforme destacadamente exarou Kardec no Parágrafo 16 do Capítulo I de A Gênese.

Antes de prosseguirmos, vejamos como Kardec reapresenta o argumento em estudo em O que é Espiritismo. Ali, o assunto é tratado extensivamente. Na décima quinta resposta ao Crítico (Cap. I, Primeiro Diálogo), Kardec lembra uma vez que

os fenômenos espíritas diferem essencialmente dos das ciências exatas: não se produzem à vontade; é preciso que os colhamos de passagem; é observando muito e por muito tempo que se descobre uma porção de provas que escapam à primeira vista, sobretudo, quando não se está familiarizado com as condições em que se pode encontrá-las, e ainda mais quando se vem com o espírito prevenido.

E, na resposta seguinte, enfatiza:

Não se pode fazer um curso de Espiritismo experimental como se faz um de Física ou de Química, visto que nunca se é senhor de produzir os fenômenos espíritas à vontade, e que as inteligências que lhe são o agente fazem, muitas vezes, frustrarem-se todas as nossas previsões.

No diálogo com o Céptico (Cap. I, Segundo Diálogo, seção "Oposição da Ciência") Kardec enfoca outro aspecto da questão, igualmente já tratado no referido Item VII da Introdução de O Livro dos Espíritos. Estabelecida a independência da Ciência e do Espiritismo, resta ver se estariam os cientistas mais autorizados que as demais pessoas a se pronunciar sobre o Espiritismo. Tal questão é ainda atual, já que vemos muitos espíritas na posição em que Kardec situa o Céptico do diálogo: afligem-se por buscar o apoio dos cientistas. "Admito perfeitamente", diz o Céptico, "que eles não são infalíveis; mas não é menos verdade que, em virtude do seu saber, sua opinião vale alguma coisa, e que, se ela estivesse do vosso lado, daria grande peso ao vosso sistema".

A réplica de Kardec vem, como sempre, vazada no bom senso e na lógica:

Concordai, também, que ninguém pode ser bom juiz naquilo que está fora da sua competência.

Se quiserdes edificar uma casa, confiaríeis esse trabalho a um músico?

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Se estiverdes enfermo, far-vos-ei tratar por um arquiteto?

Quando estais a braços com um processo, ides consultar um dançarino?

Finalmente, quando se trata de uma questão de teologia, alguém irá pedir solução a um químico ou a um astrônomo?

Não, cada um em sua especialidade.

As ciências vulgares repousam sobre as propriedades da matéria, que se pode, à vontade, manipular.; os fenômenos que ela produz têm por agentes forças materiais.

Os do Espiritismo têm, como agentes, inteligências que possuem independência, livre-arbítrio e não estão sujeitas aos nossos caprichos; por isso eles escapam aos nossos processos de laboratório e aos nossos cálculos, e, desde então, ficam fora dos domínios da Ciência propriamente dita.

A Ciência enganou-se quando quis experimentar os Espíritos como o faz com uma pilha voltaica; foi mal sucedida, como devia ser, porque agiu pressupondo uma analogia que não existe; e depois, sem ir mais longe, concluiu pela negação, juízo temerário que o tempo se encarrega de ir emendando diariamente, como já fez com tantos outros [...].

As corporações científicas não devem, nem jamais deverão, pronunciar-se nesta questão; ela está tão fora dos limites do seu domínio como a de decretar se Deus existe ou não; é, pois, um erro tomá-las aqui por juiz.

Kardec mostrou que nem o estudo do Espiritismo cabe à Ciência, nem estão os cientistas em posição privilegiada para sobre ele opinar. Foi mesmo além: dada a freqüente distorção que o envolvimento com sua especialidade impões à sua maneira de apreciar as coisas, suas opiniões podem até mesmo estar mais sujeitas a equívocos. No referido item de O Livro dos Espíritos Kardec considera:

Aquele que se fez especialista prende todas as suas idéias à especialidade que adotou. Tirai-o daí e o vereis sempre desarrazoar, por querer submeter tudo ao mesmo cadinho: conseqüência da fraqueza humana.

Nada obsta, evidentemente, a que os cientistas se interessem, enquanto homens, pelo Espiritismo, e o estudem e avaliem nessa condição. Um pouco abaixo do trecho que acabamos de transcrever, Kardec pronuncia-se nesse sentido:

O Espiritismo é o resultado de uma convicção pessoal, que os cientistas, como indivíduos, podem adquirir, abstração feita de sua qualidade de cientistas [...].

Quando as crenças espíritas se houverem difundido, quando estiverem aceitas pelas massas humanas [...], com elas se dará com o que tem acontecido com todas as idéias novas que hão encontrado oposição: os cientistas se renderão à evidência. Lá chegarão, individualmente, pela força das coisas. Até então será intempestivo desviá-los de seus trabalhos especiais, para obrigá-los a se ocupar de um assunto estranho, que não lhes está nem nas atribuições, nem no programa. Enquanto isso não se verifica, os que, sem assunto prévio e aprofundado da matéria, se pronunciam pela negativa e escarnecem de quem não lhes subscrevem o conceito, esquecem que o mesmo se deu com a maior parte das grandes descobertas que fazem honra à Humanidade.

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Ainda um último aspecto está envolvido nas relações entre o Espiritismo e a Ciência: a necessidade que ele tem de não entrar em descompasso com o progresso científico.

O local clássico onde Kardec tratou desse ponto é o Parágrafo 55 do Capítulo I de A Gênese. Começa considerando que "apoiando-se em fatos [a revelação espírita] tem que ser, e não pode deixar de ser, essencialmente progressiva". Esse caráter essencial do Espiritismo resulta de sua natureza genuinamente científica: embora o núcleo de seus princípios básicos permaneça inalterado, complementações e ajustes nas assunções auxiliares do cinturão protetor o colocam sempre em concordância com as novas descobertas. É isso que se tem verificado ao longo da história do Espiritismo. O núcleo doutrinário fundamental contido em O Livro dos Espíritos foi, nas mãos equilibradas do próprio Kardec, desdobrado e ampliado nos estudos que resultaram nas demais obras da Codificação. Hoje em dia, a vasta literatura mediúnica legitimamente espírita ampliou, por exemplo, os informes sobre o mundo espiritual. E isso, repetimos, sem confronto com os princípios básicos.

No entanto, é preciso cautela no entendimento da progressividade do Espiritismo.

Primeiro, ela deve ocorrer de acordo com a heurística positiva do próprio programa espírita, sem recurso a elementos estranhos, venham de onde vierem, sob o risco de este perder sua consistência.

Depois, a harmonia com as conquistas da Ciência não deve ser buscada irrestritamente e a qualquer preço, visto estar ela, em suas proposições abstratas, constantemente sujeita a enganos e retificações. Kardec percebeu isso de maneira clara, mesmo tendo vivido antes das grandes revoluções científicas do início de nosso século. No item de O Livro dos Espíritos de que estamos tratando encontramos este trecho:

Desde que a Ciência sai da observação material dos fatos, para os apreciar e explicar, o campo está aberto às conjecturas [...]. Não vemos todos os dias as mais opostas opiniões serem alternadamente preconizadas e rejeitadas, ora repelidas como erros absurdos, para logo depois aparecerem proclamadas como verdades incontestáveis?

Aliás, é interessante notar que se Kardec não tivesse imprimido ao programa espírita a independência e autonomia que lhe imprimiu, ajustando-o, ao invés, de modo irrestrito agraves teorias científicas da época, ele teria, como conseqüência das aludidas revoluções, soçobrado irremediavelmente.

Aparentemente, os que em nossos dias advogam a tese do "ajuste à Ciência" ainda não se deram conta desse fato, nem perceberam que no referido parágrafo de A Gênese Kardec deixou clara uma ressalva vital, ao falar desse ajuste:

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Entendendo com todos os ramos da economia social, aos quais dá apoio das suas próprias descobertas, [o Espiritismo] assimilará sempre todas as doutrinas progressivas, de qualquer ordem que sejam, desde que hajam atingido o estado de verdades práticas e abandonado o domínio da utopia, sem o que ele suicidaria.

Notemos que o "suicídio" do Espiritismo adviria, segundo Kardec, não só de sua estagnação (aspecto esse sempre lembrado), mas também de sua assimilação de doutrinas que não hajam atingido o estado de "verdades práticas"(o que em geral passa despercebido, por ter ficado implícito no texto).

Agora é certo que não há nenhum princípio científico estável, nenhuma "verdade prática", que o Espiritismo não tenha ou assimilado, ou mesmo antecipado, sendo, portanto, improcedente os pruridos de reforma e atualização da Doutrina.

4. As deficiências das chamadas "ciências psi"

Todas as teorias que pretendem elucidar os fenômenos mediúnicos, alheias à Doutrina Espiritista, pecam pela sua insuficiência e falsidade.

Emmanuel

Essa assertiva de Emmanuel, que abre o Capítulo XIV do primeiro livro que nos legou por via mediúnica (Emmanuel, psicografado por Francisco Cândido Xavier.), há mais de cinqüenta anos, pode, a alguns, parecer demasiadamente forte. No entanto, assim como tudo o que nos tem dito o iluminado Espírito, decorre de uma análise isenta e racional dos fatos. As conquistas recentes da Filosofia da Ciência, ainda não alcançadas àquela época, evidenciam inequivocamente a correção desse juízo. É o que tentaremos resumidamente mostrar nesta seção.

A primeira linha de pesquisa não espírita dos fenômenos espíritas (anímicos e mediúnicos) que chegou a constituir uma "escola" foi a Metapsíquica, que se desenvolveu nas duas primeiras décadas desse século e culminou com a publicação em Paris em 1922 do clássico Traité de Métapsychique, de Charles Richet. Logo após, essa escola foi cedendo lugar à Parapsicologia, cujo pioneiro foi o norte-americano J. B. Rhine, que em 1937 publicou seu New Frontiers of the Mind. De lá para cá, sob a inspiração dessa disciplina, surgiram e continuam surgindo, em vertiginosa multiplicação, várias outras linhas de investigação dos chamados "fenômenos paranormais". Talvez não seja exagero afirmar que elas são quase tão numerosas quanto os pesquisadores, cada um com seu "sistema" próprio. Denominaremos aqui, por simplicidade, de ciências psi o conjunto de tais sistemas, muito embora, como veremos, não sejam ciências genuínas.

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Entre os traços comuns dessas disciplinas, destacaríamos a pretensão à cientificidade, a suposição de que aderem ao "método científico", o emprego de métodos quantitativos e de aparelhos, uma certa aversão a "teorias" etc.

Ocorre que à época do nascimento da Parapsicologia, ou seja, nas décadas de 20 e 30, a Filosofia da Ciência vivia o apogeu do Positivismo Lógico. Essa doutrina filosófica representou, por assim dizer, a tentativa suprema de articulação da visão clássica de ciência, que mencionamos anteriormente. Em que pese o empenho dos maiores filósofos da época, porém, tal programa malogrou de forma espetacular e definitiva, diante dos argumentos contra ele levantados, principalmente pelos filósofos que citamos na seção 2 (Reformador, novembro de 1988, págs. 328-331).

Apesar disso, tal foi a intensidade desse movimento filosófico, que exerceu uma influência sem precedentes sobre os cientistas, a qual sobreviveu ao seu fracasso, perdurando até nossos dias, com conseqüências funestas para a Ciência.

Inevitavelmente, a Parapsicologia, que nascia àquela época com pretensões à cientificidade, procurou seguir de forma estrita os cânones preconizados pelo Positivismo Lógico para a caracterização de uma ciência. (Esse fenômeno ocorreu também com a Sociologia e com a Psicologia, que também andavam à procura de cientificidade. A propósito, é significativo o fato de Rhine e outros pioneiros da Parapsicologia terem sido psicólogos.)

A conseqüência não poderia ser outra: essa nova disciplina carregou consigo, desde a sua concepção, as deficiências graves da visão lógico-positivista de ciência, vindo a adotar métodos incompatíveis com os fins a que se propõe, perseguindo um ideal de cientificidade completamente ilusório. E atrás dela vieram as demais, a despeito da louvável boa intenção da maioria de seus profitentes.

Para ilustrar essa situação, consideremos agora alguns exemplos concretos dos equívocos em que incorrem essas pretensas ciências.

a) Seguindo a velha "receita", procuram acumular fatos sobre fatos, sem o auxílio de um corpo teórico ordenador. Vimos acima quão inócuo e anti-científico é esse procedimento, e quão bem Kardec compreendeu tal realidade.

b) Quando explicações são dadas, são-no fragmentariamente, cada fato sendo "explicado" por uma hipótese isolada. Desse modo, mesmo se artificialmente agruparmos essas hipóteses, não formaremos senão um todo inconsistente, o que viola a própria Lógica. A moderna Filosofia nem mesmo considera explicações genuínas "explicações" isoladas de fatos.

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c) As explicações são, via de regra, ainda mais fantásticas do que os fatos a que se propõem explicar. Nas admiráveis refutações aos contraditores do Espiritismo contidas em várias de suas obras, notadamente em O que é o Espiritismo (Cap. I), O Livro dos Médiuns (Primeira Parte, Cap. IV), ,O Céu e o Inferno (Primeira Parte) e O Livro dos Espíritos (Introdução, Item XVI), Allan Kardec, com a agudeza de espírito que o caracterizava, já apontava esse tipo de problema. Na seção "Falsas explicações dos fenômenos", do primeiro desses livros, Kardec pergunta:

Como podem pretender dar conta dos fenômenos espíritas [através da hipótese da alucinação] sem serem antes capazes de explicar sua explicação?

E mais adiante acrescenta:

É realmente curioso observar os contraditores empenharem-se na busca de causas cem vezes mais extraordinárias e difíceis de compreender do que aquelas que lhes apresenta o Espiritismo.

Outro tipo de pseudo-explicação comumente encontrada são as explicações puramente nominais: carecem de qualquer substância, consistindo unicamente do emprego de fraseologia excêntrica na descrição dos fenômenos. Emmanuel profliga semelhante vício filosófico no parágrafo que segue imediatamente ao que abre esta seção:

Em vão, procura-se complicar a questão com termos rebuscados, apresentando-se as hipóteses mais descabidas e absurdas [...].

d) Quando "teorias" são fornecidas, não dão conta de todos os fatos. Aqui também Kardec já alertou (O Livro dos Médiuns, parágrafo 42):

O que caracteriza uma teoria verdadeira é poder dar razão de tudo. Se, porém, um só fato que seja a contradiz, é que ela é falsa, incompleta, ou por demais absoluta.

e) Muitos fatos relevantes simplesmente não são reconhecidos. Isso pode resultar: i de idéias preconcebidas, como no caso daquelas que negam a priori a possibilidade de sobrevivência do ser, e portanto não investigam uma vasta quantidade de fenômenos relativos a ela. (Esse problema atinge as raias do absurdo no horror que alguns investigadores têm pelos médiuns -exatamente o manancial mais abundante de fenômenos de que se dispõe!); ou ii. da falta de uma teoria que guie na busca e análise dos fatos. Vimos acima com Kardec quão longe está o Espiritismo de incorrer em semelhantes enganos.

f) Emprego de técnicas de investigação inadequadas. O caso típico e mais importante é o recurso ao "método quantitativo". Como se sabe, tal método constitui uma das maiores bandeiras da Parapsicologia e demais "ciências psi", que julgam assim estar seguindo os afortunados caminhos da Física e da Química. Ora, se indubitavelmente a análise das quantidades desempenha nessas ciências um papel importante (embora não exclusivo!), não se segue

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daí que deva ser igualmente frutífero no estudo de uma ordem de fenômenos completamente diferente. De fato, são, neste caso, de todo dispensáveis (para dizermos pouco). É até mesmo ridículo querer substituir a prova cabal fornecida por uma manifestação inteligente (como por exemplo uma carta que contém informações detalhadas de episódios e coisas desconhecidas) por medidas de desvios estatísticos em experimentos de identificação de cartas de baralho, ou similares. Não que estas últimas sejam irrelevantes; mas a evidência que podem dar é imensamente mais fraca e duvidosa do que a que resulta das manifestações inteligentes, e mesmo de efeitos físicos extraordinários produzidos através de um médium possante. (Parece estarmos aqui na situação de guerreiro que, dispondo de um moderno canhão, prefira servir-se de um tosco estilingue...)

Essa situação foi, como sempre, percebida e combatida por Allan Kardec, que não só enfatizou repetidamente a importância crucial e a superioridade dos fenômenos mediúnicos de efeitos inteligentes, como também explicitamente referiu-se à inadequação dos métodos quantitativos, conforme se observa nas citações que fizemos na seção 3, em especial neste trecho de O que é o Espiritismo (destacamos):

[Os fenômenos espíritas] têm, como agentes, inteligências que têm independência, livre-arbítrio e não estão sujeitas aos nossos caprichos; por isso eles escapam aos nossos processos de laboratório e aos nossos cálculos [...]. A Ciência enganou-se quando quis experimentar os Espíritos, como o faz com uma pilha voltaica; foi mal sucedida como devia ser, porque agiu pressupondo uma analogia que não existe.

Também no Item de O Livro dos Espíritos que vimos analisando Kardec alerta (destacamos):

[As manifestações espíritas] escapam à competência da ciência material, visto não poder expressar-se por algarismos, nem pela força mecânica.

g) Recurso desnecessário e perigoso a aparelhos sofisticados. Não obstante de inegável valor nas investigações da matéria, como mostram os notáveis avanços da Física e da Química, a prescindibilidade de aparelhos no estudo dos fenômenos espíritas ficou evidenciada pelas considerações expendidas no item anterior. Além disso, há mesmo riscos em sua utilização. Primeiro, tal utilização pode encobrir deficiências metodológicas profundas, produzindo uma ilusória impressão de rigor, de cientificidade. Depois, e mais importante, do ponto de vista epistemológico (ou seja, da teoria do conhecimento), as observações por meio de aparelhos ocupam um nível bem mais baixo na escala da confiabilidade do que aquelas que podem ser alcançadas de modo imediato. (Assim, uma das mais difundidas vertentes da Epistemologia chega mesmo a negar que entidades teóricas não diretamente observáveis possuam "referentes", ou seja, contrapartes reais.) A razão disso é simples: quando se utiliza um aparelho para fazer certa observação, o resultado da mesma pressuporá a validade das teorias envolvidas na construção e no

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funcionamento do aparelho, introduzindo-se, desse modo, mais elementos de incerteza.

Essas considerações epistemológicas explicam, por sinal, a grande estabilidade do núcleo de princípios fundamentais do Espiritismo, quando comparado aos das teorias científicas, pois repousam em fenômenos extremamente básicos do ponto de vista epistêmico, com o mesmo grau de certeza, quanto, por exemplo, as proposições de que temos agora uma folha de papel diante de nós, de que há nela algo escrito, de que nos achamos sentados etc. Medeia vasta distância conceitual entre proposições desse tipo e, por exemplo, aquelas sobre a estrutura dos átomos, dos buracos negros, sobre o mecanismo das mutações genéticas etc.

h) Referência a conceitos e teorias científicas obsoletos. A Física deste século introduziu, como já dissemos, alterações radicais em suas teorias, e conseguintemente em nossa visão do mundo. Conceitos que faziam parte da Física Clássica, como os de espaço e tempo absolutos, partículas, campos etc., foram ou totalmente abandonados, ou revistos profundamente, por não mais servirem às novas teorias, não dando conta dos fenômenos observados. Assim, é inacreditável que haja pesquisadores das "ciências psi" tentando elaborar "teorias" e "modelos" para o Espírito baseados em noções de partículas e campos, e ainda mais, com a pretensão de estarem seguindo a Ciência! Vemos aqui uma vez mais a lucidez de Kardec e dos Espíritos que o auxiliavam, ao não vincularem os princípios centrais do Espiritismo a nenhuma dessas noções. Assentaram-no, antes, em proposições básicas, "fenomenológicas", como dizem os filósofos, exatamente por serem estáveis.

i) Desprezo pelo passado: cada pesquisador em geral reinicia as investigações a partir do "nada", como se outros já não tivessem efetuado constatações dignas de confiança. Se a dúvida equilibrada representa prudência, quando se torna irrestrita e irrefletida, aliando-se à presunção e ao orgulho, inviabiliza o conhecimento. Se na Ciência se tivesse adotado semelhante atitude, não se teria saído de sua pré-história.

j) Ignorância da relevância dos fatores "morais" na produção de certos fenômenos. Kardec não tardou reconhecer, em seus estudos, a influências por vezes crucial de fatores ligados à harmonia de pensamento dos médiuns, experimentadores e assistentes, aos objetivos a que se propõem, à sua condição moral etc. O assunto é abordado, entre outros lugares, no Capítulo XXI de O Livro dos Médiuns, onde Kardec ressalta a "enorme influência do meio sobre a natureza das manifestações inteligentes" (parágrafo 233). Essa influência vem sendo também ilustrada e enfatizada na boa literatura mediúnica, que nos mostra em detalhe a complexidade do trabalho dos Espíritos na produção dos fenômenos. Assim, apenas para tomar um dos inúmeros exemplos, lembremos a descrição que André Luiz dá

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emMissionários da Luz (Cap. X) da profunda perturbação causada nos trabalhos de materialização a que presenciava pelo simples ingresso no recinto de um homem interiormente desequilibrado, e, depois, pelos pensamentos descontrolados dos participantes da reunião. Diante da surpresa, o Instrutor Alexandre elucida (destacamos):

Nestes fenômenos, André, os fatores morais constituem elementos decisivo de organização. Não estamos diante de mecanismos de menor esforço e, sim, ante manifestações sagradas da vida, em que não se pode prescindir dos elementos superiores e da sintonia vibratória.

Também Emmanuel expende considerações desse mesmo teor no Capítulo XIII de seu já citado livro Emmanuel (destacamos):

Não são poucos os estudiosos que procuram investigar os domínios da ciência psíquica, na sede de encontrar o lado verdadeiro da vida; porém, se muitas vezes acham apenas o malogro das suas expectativas , o soçobro dos seus ideais, é que se entregam a estudos arriscados sem preparação prévia para resolver tão altas questões, errando voluntariamente com espírito de criticismo, muitas vezes injustificável, já que não é filho do raciocínio acurado, profundo. O êxito no estudo de problemas tão transcendentais demanda a utilização de fatores morais, raramente encontrados; daí a improdutividade de entusiasmos e desejos que podem ser ardentes e sinceros.

5. O Espiritismo é religioso.

[...] o Espiritismo é, assim, uma religião ? Sim, sem dúvida, senhores: No sentido filosófico o Espiritismo é uma religião, e disso nos honramos, pois que é a doutrina que funda os laços da fraternidade e da comunhão de pensamentos não em uma simples convenção, mas sobre a mais sólida das bases: as próprias leis da Natureza.

Por que então declaramos que o Espiritismo não era uma religião ? Pela razão de que há apenas uma palavra para exprimir duas idéias diferentes, e que, segundo a opinião geral, o termo religião é inseparável da noção de culto, e evoca unicamente uma idéia de forma, com o que o Espiritismo não guarda qualquer relação. Se se tivesse proclamado uma religião, o público nele não veria senão uma nova edição, ou uma variante, se quisermos, dos princípios absolutos em matéria de fé, uma casta sacerdotal com seu cortejo de hierarquias, cerimônias e privilégios; não o distinguiria das idéias de misticismo e dos enganos contra os quais se está freqüentemente bem instruído.

Não apresentando nenhuma das características de uma religião, na acepção usual da palavra, o Espiritismo não poderia nem deveria ornar-se de um título sobre cujo significado inevitavelmente haveria mal-entendidos. Eis porque ele se diz simplesmente uma doutrina filosófica e moral.

Allan Kardec [nota 6]

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Do mesmo modo como tem havido falta de compreensão acerca do caráter científico do Espiritismo e de suas relações com as ciências, seu caráter religioso e suas relações com as religiões também têm constituído ponto de freqüentes confusões.

Assim como se pode mostrar ser o Espiritismo científico, embora não se inclua entre as ciências ordinárias, por estudar um domínio diverso de fenômenos, pode-se, conforme o fez o próprio Kardec, mostrar que o Espiritismo é religioso, embora não se confunda com as religiões ordinárias.

Se no estabelecimento da primeira dessas teses tivemos que identificar corretamente que características de uma teoria a tornam científica, temos, para justificar a segunda, que estabelecer critérios adequados para a classificação de uma doutrina no âmbito religioso.

Essa tarefa deve começar pela análise etimológica da palavra religião. Ela vem do Latim religione, derivado de religare, que naturalmente significa "religar", estando, neste caso, subentendido que "religação" é da criatura ao Criador.

Surge aqui a primeira diferença entre o Espiritismo e as religiões ordinárias.

Estas usualmente entendem por Deus um ser supremo, criador de tudo o que existe, porém com características notoriamente antropomórficas.

Já o Espiritismo define-o como "a inteligência suprema, causa primária de todas as coisas"(O Livro dos Espíritos, Questão n 1.), dando-lhe por atributos exclusivamente a eternidade, a imutabilidade, a imaterialidade, a unicidade, a onipotência e a soberana justiça e bondade (ibidem, Questão 13), o que evidentemente exclui qualquer caráter antropomórfico.

A segunda diferença fundamental está na maneira pela qual o Espiritismo entende que a religação entre a criatura e Deus pode e deve ser promovida.

Segundo as religiões ordinárias, ela se dá através do ajuste da criatura a certas regras morais (éticas) e/ou da satisfação de providências formais e externas de vária ordem, dependendo da religião: batismo, crisma, comunhão, confissão; participação em cultos, rituais, cerimônias; realização de determinados gestos; recitação de fórmulas e rezas; adoração de imagens e objetos diversos; promessas, penitências, jejuns; trazer em si as "marcas de Deus" etc.

Já o Espiritismo propõe que a religação da criatura ao Criador se faz exclusivamente pela adaptação de sua conduta a determinados preceitos morais, as medidas de ordem exterior sendo tidas não somente como supérfluas, como também de todo desaconselhadas e combatidas.

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A terceira diferença reside em quais são as regras morais em questão.

O Espiritismo toma-as como unicamente aquelas propostas por Jesus, e que se resumem no preceito do amor ao próximo.

Já as religiões ordinárias podem, dependendo do caso, incluir ou não as normativas evangélicas, ou incluí-las parcialmente, ou acrescentar-lhes outras, ou alterar-lhes a interpretação original etc.

Por fim, crucial diferença surge no modo pelo qual essas regras éticas são justificadas.

As religiões ordinárias "justificam" as normas morais que propõem recorrendo à autoridade desse ou daquele indivíduo ou instituição; são dogmas, portanto artigos de fé a serem aceitos sem exame.

Já o Espiritismo fundamenta o corpo de seus preceitos éticos no conhecimento que cientificamente alcança das conseqüências das ações humanas ao longo da existência ilimitada dos seres, conjugado à cláusula teleológica de que todos almejam a felicidade. Não há aqui lugar para dogmas e imposições, mas exclusivamente investigação livre e racional dos fatos. Aliás esse já era o modo pelo qual o Apóstolo Paulo entendia a moral, pois em sua primeira carta aos Coríntios (10:23) asseverou: "Todas as coisas são lícitas, mas nem todas convêm; todas são lícitas, porém nem todas edificam."

Em artigo anterior ("Os fundamentos da ética espírita"; ver Referência Bibliográficas.) expusemos com certa extensão esse processo de fundamentação da moral espírita. Dada a relevância do tema, recorreremos aqui a algumas citações de Kardec, a fim de ilustrar o ponto e deixar clara sua posição.

Nos comentários às Questões 147 e 148 de O Livro dos Espíritos, que tratam do materialismo, Kardec refere-se à hipótese da aniquilação do ser com a morte corporal:

Triste conseqüência, se fora real, porque então o bem e o mal não teriam objetivo, o homem estaria justificado em só pensar em si e em colocar acima de tudo a satisfação de seus prazeres materiais; os laços sociais se romperiam, e as mais santas afeições se quebrariam irremediavelmente.

Passemos agora à Questão 222 do mesmo livro, onde encontramos:

Ora, pois: se credes num futuro qualquer, certo não admitis que ele seja idêntico para todos, porquanto, de outro modo, qual a utilidade do bem ? Por que haveria o homem de constranger-se ? Por que deixaria de satisfazer a todas as suas paixões, a todos os seus desejos, ainda que à custa de outrem, uma vez que isso não lhe alteraria a condição futura ?

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No Item IV da Conclusão dessa obra Kardec é ainda mais explícito (destacamos):

O progresso da Humanidade tem seu princípio na aplicação da lei de justiça, de amor e de caridade. Tal lei se funda na certeza do futuro; tirai-lhe essa certeza e lhe tirareis a pedra fundamental. Dessa lei derivam todas as outras, porque ela encerra todas as condições da felicidade do homem.

No Item VIII Kardec reitera:

Razão, portanto, tivemos para dizer que o Espiritismo, com os fatos, matou o materialismo. Fosse este o único resultado por ele produzido e já muita gratidão lhe deveria a ordem social. Ele, porém, faz mais: mostra os inevitáveis efeitos do mal e, conseguintemente, a necessidade do bem.

O Capítulo I de A Gênese está repleto de considerações sobre essa fundamentação experimental-racional da ética espírita. Recomendamos vivamente a leitura, pelo menos, dos Parágrafos 31, 32, 35, 37, 42, 56 e 62. Do Parágrafo 37 extraímos esta assertiva (destacamos):

Tirai ao homem o espírito livre e independente, sobrevivente à matéria, e fareis dele uma simples máquina organizada, sem finalidade, nem responsabilidade [...].

No Parágrafo 42 encontramos:

Demais, se se considerar o poder moralizador do Espiritismo, pela finalidade que assina a todas as ações da vida, por tornar tangíveis as conseqüências do bem e do mal [...].

No Parágrafo 56 Kardec volta ao assunto, desta vez analisando as relações entre a moral evangélica e a espírita, que, conforme observamos, coincidem quanto às normas morais (destacamos):

O que o ensino dos Espíritos acrescenta à moral do Cristo é o conhecimento dos princípios que regem as relações entre os mortos e os vivos, princípios que completam as noções vagas que forneceu da alma, de sue passado e de sue futuro, e que dão por sanção à doutrina cristã as próprias leis da Natureza. Com o auxílio das novas luzes que o Espiritismo e os Espíritos espargem, o homem compreende a solidariedade que une todos os seres; a caridade e a fraternidade se tornam uma necessidade social; ele faz por convicção o que fazia unicamente por dever, e o faz melhor.

Encerrando essas notáveis citações de Kardec, que aliás poderiam estender-se ainda muito, adentrando, por exemplo, O Céu e o Inferno, obra inteiramente dedicada ao estudo teórico e experimental das conseqüências das ações humanas, voltamos ao comentário às Questões 147 e 148 de O Livro dos Espíritos, que fecha com chave de ouro estas nossas reflexões:

[...] a missão do Espiritismo consiste precisamente em nos esclarecer acerca desse futuro, em fazer com que, até certo ponto, o toquemos com o dedo e o penetremos com o olhar, não mais pelo raciocínio somente, porém, pelos fatos. Graças às comunicações espíritas, não se trata mais de uma simples suposição, de uma probabilidade sobre a qual cada um conjeture à vontade, que os poetas embelezem com suas ficções, ou cumulem de enganadoras imagens alegóricas. É a realidade que nos aparece, pois que são os próprios seres de além-túmulo que nos vêm descrever

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a situação em que se acham, relatar o que fazem, facultando-nos assistir, por assim dizer, a todasas peripécias da nova vida que lá vivem e mostrando-nos, por esse meio, a sorte inevitável que nos está reservada, de acordo com os nossos méritos e deméritos. Haverá nisso alguma coisa de anti-religioso? Muito ao contrário, porquanto os incrédulos encontram aí a fé e os tíbios a renovação do fervor e da confiança. O Espiritismo é, pois, o mais potente auxiliar da religião. Se ele aí está, é porque Deus o permite e o permite para que as nossas vacilantes esperanças se revigorem e para que sejamos reconduzidos à senda do bem pela perspectiva do futuro.

Notas [volta ao índice]

1. Em nossas citações das obras de Allan Kardec utilizamos os originais franceses, aproveitando amplamente as traduções editadas pela Federação Espírita Brasileira; ver Referências Bibliográficas, no final deste artigo. [volta]

2. "Espiritismo e Ciência. Esboço de uma análise do Espiritismo à luz da moderna Filosofia da Ciência"; ver Referências Bibliográficas. O leitor interessado em filosofia da ciência poderá consultar o livro de Alan Chalmers What is this thing called science, que é razoavelmente acessível e contém abundantes referências às fontes primárias. [volta]

3. Ver, por exemplo, seu famoso artigo "Falsification and the methodology of scientific reserch programmes", citado nas Referências Bibliográficas. [volta]

4. A inclusão da Psicologia e da Sociologia é problemática, já que não parecem, em sua atual fase de desenvolvimento, cumprir os requisitos mínimos de uma verdadeira ciência. Nós espíritas temos razões adicionais para essa dúvida, dado que tais disciplinas, pretendendo estudar o ser humano, ignoram precisamente o que lhe é mais essencial, ou seja, o Espírito. [volta]

5. Esse tema foi também lucidamente tratado em artigo recente de Juvanir Borges de Souza, "Pesquisas e Métodos", publicado no número de abril de 1986 deReformador, cuja leitura recomendamos vivamente. [volta]

6. "Le Spiritisme est-il une religion ?", Revue Spirite, 1868, p. 357. Transcrito em L'Obsession, pp. 279-92 (ver Referências Bibliográficas). Uma tradução desse artigo, por Ismael Gomes Braga, apareceu em Reformador, de março de 1976. Os destaques na citação acima são nossos. [volta]

Referências Bibliográficas

ANDRÉ LUIZ. Missionários da Luz. (Psicografia de Francisco Cândido Xavier.) 6a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s.d.

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BORGES DE SOUZA, J. "Pesquisas e Métodos", Reformador, abril de 1986, pp. 99-101.

CHALMERS, A. F. What is this thing called science? St. Lucia, University of Queensland Press, 1976.

CHIBENI, S. S. "Espiritismo e Ciência". Esboço de uma análise do Espiritismo à luz da moderna Filosofia da Ciência". Reformador, maio de 1984, pp. 144-7 e 157-9.

-----. "Os fundamentos da ética espírita". Reformador, junho de 1985, pp. 166-9.

EMMANUEL. Emmanuel. Dissertações mediúnicas sobre importantes questões que preocupam a Humanidade. (Psicografia de Francisco Cândido Xavier.) 5aed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s.d.

KARDEC, A. Le Livre des Esprits. Paris, Dervy-Livres, s.d. (O Livro dos Espíritos. Trad. de Guillon Ribeiro. 43a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s.d.)

-----. Qu'est-ce que le Spiritisme. Paris, Dervy-Livres, 1975. (O que é o Espiritismo. s. trad. 25a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s.d.)

-----. Le Livre des Médiums. Paris, Dervy-Livres, 1972. (O Livro dos Médiuns. Trad. Guillon Ribeiro, 46a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s.d.)

-----. La Genèse, les Miracle et les Prédictions selon le Spiritisme. Paris, La Diffusion Scientifique, s.d. (A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo. Trad. Guillon Ribeiro, 23a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s. d.)

-----. L'Obssession. Extraits textuels des Revues Spirites de 1858 a 1868. Farciennes, Bélgica, Éditions de l'Union Spirite, 1950.

LAKATOS, I. "Falsification and the methodology of scientific reserch programmes". In: LAKATOS, I. & Musgrave, A. eds. Criticism and the Growth of Knowledge. Cambridge, Cambridge University Press, 1970. pp. 91-195.

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AS PROVAS CIENTÍFICAS

Aécio Pereira Chagas

Certas pessoas, muitas vezes bem-intencionadas, buscam provas científicas referentes à imortalidade do Espírito, à comunicabilidade deste conosco, à reencarnação e sobre outros pontos fundamentais da Doutrina Espírita. Isso é muito salutar, mas o problema é que, entre essas pessoas, algumas passam toda a existência terrena procurando essas provas, ou melhor, atrás "da prova", e nunca a encontram apesar de terem tido contato com inúmeros fatos que a confirmam. Algumas assim agem por um ceticismo crônico, crentes de bem procederem cientificamente, pois acreditam (aqui elas não são céticas) que um "verdadeiro cientista não tem idéias preconcebidas". Acho que essas pessoas que passam o tempo todo atrás das provas e continuam insatisfeitas precisam ser informadas do que vem a ser uma "prova científica". É o que pretendemos mostrar.

Vamos utilizar-nos de um exemplo para ilustrar nossos pontos de vista. E o que escolhemos é a "teoria atômico-molecular", devido à nossa experiência como pesquisador no campo da Química. O que se segue é um diálogo imaginário (ou não tão imaginário assim) que tivemos com uma pessoa a princípio cética.

Inicialmente ela nos perguntou:

-- "Você acredita na existência de átomos e moléculas?"

-- "Não só acredito, mas sei que eles existem", respondi.

-- "Como você pode provar isso?"

-- "Não lhe posso oferecer nenhuma prova como aquelas apresentadas nos tribunais; inclusive nunca os vi, toquei ou mesmo os senti de alguma maneira, nas formas que penso que sejam. O que me faz saber que os átomos e as moléculas existem é um conjunto de evidências experimentais, um conjunto de provas. Nenhuma delas por si é suficiente par provar a existência dos átomos ou das moléculas. Vendo a coisa de outra maneira, todo esse conjunto de evidências experimentais ou de experimentos só pode ser explicado, entendido, racionalizado, por meio da admissão da existência dos átomos e moléculas, e essa miríade de experimentos é que constitui "a prova". Cada um dos experimentos, considerados separadamente, pode até ser explicado por outras hipóteses ou teorias, mas até hoje ninguém encontrou nenhuma outra alternativa que desse conta de todo o conjunto de experimentos considerados, a não ser a "teoria atômico-molecular". Um dado experimento pode ser explicado pela hipótese de que a matéria é contínua, alguns outros também,

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mas há muitos outros que não. Podemos até inventar hipóteses as mais estapafúrdias, mas com lógica e bom senso perceberemos que poderão dar conta apenas de alguns poucos fatos. Não vou citar aqui os experimentos; nas bibliotecas encontramos centenas e centenas de descrições deles.

"Ainda mais: como já sei que os átomos e as moléculas existem, como cientista não vou mais procurar provas de sua existência. Vou daí para afrente. Vou realizar experimentos nos quais a priori já considero existentes os átomos e moléculas, e os resultados têm sido até agora coerentes com isso. Assim procedem também os meus colegas cientistas do mundo todo."

Da mesma maneira que se faz a pergunta sobre os átomos e as moléculas, faz-se também com relação à existência dos Espíritos e a outros pontos que mencionamos no início deste artigo. A resposta que daríamos a essa pergunta seria a mesma dada sobre os átomos e as moléculas: "Não só acredito, mas sei que eles existem." -- "Como você pode provar isso?" -- "Não posso lhe oferecer nenhuma prova, como aquelas apresentadas num tribunal; inclusive nunca os vi, toquei ou mesmo os senti de alguma maneira, na forma que penso que tenham. O que me faz saber que os Espíritos existem é um conjunto de provas (...)." O leitor poderá continuar o diálogo, é só trocar 'átomos e moléculas' por 'Espíritos'. Alternativa para 'Espíritos' (como a hipótese da matéria contínua no lugar dos átomos)? É só procurar uma dessas muitas explicações "parapsicológicas" que há por aí (o inconsciente etc.).

Quanto aos novos experimentos, já há uma diferença: são poucos os que vão à frente, a maioria ainda está querendo "provar" que o Espírito existe.

Se as pessoas que buscam provas sobre esses pontos básicos da Doutrina Espírita, após examinarem todo esse conjunto de evidências que a própria Doutrina oferece, além de outras procedentes de fontes não espíritas, ainda quiserem "a prova", é porque continuam desinformadas sobre a atividade científica (ou não a aceitam) ou realmente não querem aceitar nada. Mas isso não acontece apenas com o Espiritismo. Com átomos e moléculas hoje em dia não se pode ser cético, mas com outras coisas... Há pouco ouvi: "(...) afinal de contas, a teoria da Evolução ainda não está cientificamente provada"...

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“A Pesquisa Científica do Espírito”

Silvio Seno Chibeni

Departamento de Filosofia - Unicampwww.unicamp.br/~chibeni

Grupo de Estudos Espíritas da Unicampwww.geeu.net.br

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© Silvio Seno Chibeni, 2010 2

fenômenos

coressonsformasmovimentoscalor e friosaboresodorespensamentosvontadesentimentos

explicações filosóficas

matéria

espírito

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© Silvio Seno Chibeni, 2010 3

Teorias filosóficas

• materialismosó há substâncias materiais

• idealismosó há substâncias espirituais

• dualismohá os dois tipos de substância

• ceticismonão podemos determinar isso

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© Silvio Seno Chibeni, 2010 4

Essa questão das “substâncias” é indecidível pela evidência empírica e

argumentos lógicos

Ver as críticas pioneiras de John Locke (séc. XVII) e David Hume (séc. XVIII)

• Chibeni: “Locke e o materialismo”, 2007, disponível no site www.unicamp.br/~chibeni

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© Silvio Seno Chibeni, 2010 5

Questão diferente :

O espírito (= ser pensante) sobrevive à morte do corpo?

Essa questão pode ser tratada cientificamente

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© Silvio Seno Chibeni, 2010 6

“If we compare the amount of research conducted on matters relating to life after death to that on any other subject, we must conclude that something is very wrong . It doesn’t take a philosophical genius to discover a genuine scandal in the public neglect of the death issue.”

Andreas Sommer

Human Nature, vol. 1, n. 1, 1999

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© Silvio Seno Chibeni, 2010 7

Deve-se distinguir entre:

• Estudar cientificamente a sobrevivência do espírito

de

• estudá-la dentro do referencial teórico e experimental das ciências naturais

Ver Chibeni, S. S. & Moreira-Almeida, A.:Investigando o desconhecido: filosofia da ciência e investigação de fenômenos “anômalos” na psiquiatria. Rev. Psiq. Clín.34, supl. 1, pp. 8-16, 2007.

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© Silvio Seno Chibeni, 2010 8

Adotar uma abordagem fenomenonológica:

Priorizar epistemicamente o que aparece (“fenômeno”)

Exs.: Termodinâmica e teoria da relatividade especial: estudam do comportamento térmico e mecânico dos corpos sem se ocupar de sua “constituição”

Isso não significa desprezar a teoria!

→ Locke e Hume: Defesa de uma abordagem fenomenológica do espírito

→ Chibeni, “A kind of mental geography: Remarks on Hume’s science of human nature”, 2007

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© Silvio Seno Chibeni, 2010 9

“Face” fenomenológica do espírito:

Investigar se isso permanece

→ Buscar padrões (patterns) inteligentes

Não importa o meio de sua manifestação

• pensamento• vontade • sentimentos

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© Silvio Seno Chibeni, 2010 10

Uma analogia:

Verificar a existência de uma pessoa “viva”

– carta

– e-mail

– mensagem morse

– telefonema

– visão direta com manifestação de pensamentos e sentimentos

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© Silvio Seno Chibeni, 2010 11

• Tanto o espírito do “vivo” como o do “morto” são, em si, inobserváveis sensorialmente

• Toda evidência de sua existência é indireta, mediante o padrão inteligente exibido por algum meio (comportamento corporal, símbolos diversos)

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© Silvio Seno Chibeni, 2010 12

George Berkeley A Treatise concerning the Principles of

Human Knowledge [1710], § 27

• A spirit is one simple, undivided, activebeing: as it perceives ideas, it is calledthe understanding, and as it produces orotherwise operates about them, it is called the will. Hence there can be no idea formed of a soul or spirit [...] Such is the nature of spirit [...], that it cannot beof it self perceived, but only by the effectswhich it produceth.

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© Silvio Seno Chibeni, 2010 13

idem, § 137

• From the opinion that spirits are to be known

after the manner of an idea or sensation, have

risen many absurd and heterodox tenets, and

much scepticism about the nature of the soul. It

is even probable, that this opinion may have

produced a doubt in some, whether they had any

soul at all distinct from their body, since upon

inquiry they could not find they had an idea of it.

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© Silvio Seno Chibeni, 2010 14

idem, § 145

• From what hath been said, it is plain that we cannot

know the existence of other spirits, otherwise than by

their operations, or the ideas by them excited in us. I

perceive several motions, changes, and

combinations of ideas, that inform me there are

certain particular agents like my self, which

accompany them, and concur in their production.

Hence the knowledge I have of other spirits is not

immediate, as is the knowledge of my ideas; but

depending on the intervention of ideas, by me

referred to agents or spirits distinct from myself, as

effects or concomitant signs.

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Portanto, os dois casos

(o do espírito da pessoa “viva” e o da “morta”)

são epistemologicamente idênticos

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© Silvio Seno Chibeni, 2010 16

Padrões não inteligentes podem, subsidiariamente, ser relevantes para a identificação da pessoa, mas apenas se contiverem informação altamente peculiar

(ex.: caligrafia, impressões digitais, seqüência de bases no DNA, etc.)

→ N.B.: Isso se refere estritamente à identificação do corpo, não do espírito (= ser pensante)

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© Silvio Seno Chibeni, 2010 17

• Logo, fenômenos materiais genéricos (movimentos, ruídos, marcas, etc.) não são significativos como evidência para a existência do espírito, se tomados isoladamente

• Idem, relativamente a fenômenos materiais altamente complexos (“registros” em aparelhos complexos, modificações fisiológicas diversas no

corpo humano, etc.), visto que tais fenômenos são em princípio explicáveis por múltiplas causas, e não apontam univocamente para a intervenção de um espírito

(→ Não subestimar o poder da ciência ordinária)

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© Silvio Seno Chibeni, 2010 18

Embaraços à investigação da sobrevivência - I

• Considerar a questão metafísica ou “sobrenatural”

• Considerar que o assunto já foi analisado e a conclusão foi negativa

• Considerar que o que há de importante sobre o espírito já é investigado pela psicologia, etc., dentro de um referencial materialista

• Considerar que esse referencial materialista foi “provado” pela ciência

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© Silvio Seno Chibeni, 2010 19

Embaraços à investigação da sobrevivência - II

• Tentar “detectar” o espírito por meios diretos

• Tentar “mensurar” o espírito

• Só considerar válida a evidência “reprodutível”

• Tratar o assunto de forma puramente experimental, sem preocupação com o desenvolvimento de uma teoria que explique os fatos

• Trabalhar com fragmentos teóricos (hipóteses isoladas)

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© Silvio Seno Chibeni, 2010 20

Embaraços à investigação da sobrevivência - III

• Adotar enfoque dogmático ou preconceituoso

• Misturar ou conivir com o misticismo

• Descuidar do rigor

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© Silvio Seno Chibeni, 2010 21

Allan Kardec - IReconhecimento do caráter metafísico da questão da natureza do

espírito. Independência do Espiritismo com relação a ela.

LE, comentário, # 28 (final da seção “espírito e matéria”):

“Um fato patente domina todas as hipóteses: vemos matéria destituída de inteligência e vemos um princípio inteligente que independe da matéria. A origem e a conexão dessas duas coisas nos são desconhecidas. Se promanam ou não de uma sófonte; se há pontos de contato necessários entre ambas; se a inteligência tem existência própria, ou se é uma propriedade, um efeito; se é mesmo, conforme à opinião de alguns, uma emanação da Divindade, ignoramos. Elas se nos aparecem como sendo distintas; daí o admitirmo-las como formando os dois princípios constitutivos do Universo.”

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© Silvio Seno Chibeni, 2010 22

Allan Kardec - II

(idem)LM, cap. “Dos sistemas”, # 50: “Sistema da alma material”

“Consiste apenas numa opinião particular sobre a natureza íntima da alma. ... Este sistema não infirma nenhum dos princípios fundamentais da doutrina espírita, pois que nada altera com relação ao destino da alma; as condições de sua felicidade futura são as mesmas. ... Como se vê, isto não leva a conseqüência alguma ... Semelhante opinião ... não constituiria uma cisão entre os espíritas, do mesmo modo que as duas teorias da emissão e das ondulações da luz não significam uma cisão entre os físicos.”

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Allan Kardec - III

Reconhecimento do papel essencial dos fenômenos intelectuais

LE, Introdução, # 4:

“Se os fenômenos com que nos estamos ocupando houvessem ficado restritos ao movimento dos objetos, teriam permanecido, como dissemos, no domínio das ciências físicas. Assim, entretanto, não sucedeu: estava-lhes reservado colocar-nos na pista de fatos de ordem singular. [Descobriu-se...] que a impulsão dada aos objetos não era apenas o resultado de uma força mecânica cega; que havia nesse movimento a intervenção de uma causa inteligente. Uma vez aberto, esse caminho conduziu a um campo totalmente novo de observações.”

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Allan Kardec - IVDistinção dos âmbitos e métodos específicos das ciências ordinárias e do

Espiritismo

LE, Introdução, # 7:

“As ciências ordinárias assentam nas propriedades da matéria, que se pode experimentar e manipular livremente; os fenômenos espíritas repousam na ação de inteligências dotadas de vontade própria e que nos provam a cada instante não se acharem subordinadas aos nossos caprichos. As observações não podem, portanto, ser feitas da mesma forma; requerem condições especiais e outro ponto de partida. Querer submetê-las aos processos comuns de investigação éestabelecer analogias que não existem. A Ciência, propriamente dita, é, pois, como ciência, incompetente para se pronunciar na questão do Espiritismo: não tem que se ocupar com isso e qualquer que seja o seu julgamento, favorável ou não, nenhum peso poderá ter.”

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© Silvio Seno Chibeni, 2010 25

Allan Kardec - VReconhecimento da primazia epistêmica do nível fenomenológico

A Gênese, Introdução, # 14:“Como meio de elaboração, o Espiritismo procede exatamente da mesma forma que as ciências positivas, aplicando o método experimental. Fatos novos se apresentam, que não podem ser explicados pelas leis conhecidas; ele os observa, compara, analisa e, remontando dos efeitos às causas, chega à lei que os rege; depois, deduz-lhes as conseqüências e busca as aplicações úteis. ... É, pois, rigorosamente exato dizer-se que o Espiritismo é uma ciência de observação e não produto da imaginação. As ciências só fizeram progressos importantes depois que seus estudos se basearam sobreo método experimental; até então, acreditou-se que esse método também só era aplicável à matéria, ao passo que o é também às coisas metafísicas.”

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© Silvio Seno Chibeni, 2010 26

Allan Kardec - VIImportância da teoria (ou “filosofia”) espírita. Seu caráter integrador; seu

papel heurístico.

LE, Introdução, # 17:

“A ciência espírita compreende duas partes: experimental uma, relativa às manifestações em geral, filosófica, outra, relativa às manifestações inteligentes. Aquele que apenas haja observado a primeira se acha na posição de quem não conhecesse a física senão por experiências recreativas, sem haver penetrado no âmago da ciência. A verdadeira doutrina espírita está no ensino que os Espíritos deram, e os conhecimentos que esse ensino comporta são por demais profundos e extensos para serem adquiridos de qualquer modo, quenão por um estudo sério e perseverante, feito no silêncio e no recolhimento; porque só dentro desta condição se pode observar um número infinito de fatos e nuanças que passam despercebidos ao observador superficial, e que permitem firmar opinião.”

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© Silvio Seno Chibeni, 2010 27

Allan Kardec - VIIIdem. Racionalidade; abrangência (ultrapassa o domínio dos

fenômenos especificamente espíritas)

O que é o Espiritismo, cap. I, Segundo Diálogo (“O Cético”), seção “Elementos de convicção” :

“Há duas coisas no Espiritismo: a parte experimental das manifestações e a doutrina filosófica. Ora, eu sou todos os dias visitado por pessoas que ainda nada viram e crêem tão firmemente como eu, pelo só estudo que fizeram da parte filosófica; para elas o fenômeno das manifestações é acessório; o fundo é a doutrina, a ciência; eles a vêem tão grande, tão racional, que nela encontram tudo quanto possa satisfazer às suas aspirações interiores, à parte o fato das manifestações; do que concluem que, supondo não existissem as manifestações, a doutrina não deixaria de ser sempre a que melhor resolve uma multidão de problemas reputados insolúveis.”

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© Silvio Seno Chibeni, 2010 28

Allan Kardec - VIII

Causas principais do ceticismo quanto ao Espiritismo

LE, Introdução, # 17:

“O ceticismo, no tocante à doutrina espírita, quando não resulta de uma oposição sistemática por interesse, origina-se quase sempre do conhecimento incompleto dos fatos, o que não obsta a que alguns dêem a questão por encerrada, como se a conhecessem a fundo.”

LM, cap. “Do método”, # 29:“Podemos dizer que, para a maioria dos que não se preparam pelo raciocínio, os fenômenos materiais quase nenhum peso têm. Quanto mais extraordinários são esses fenômenos, quanto mais se afastam das leis conhecidas, maior oposição encontram e isto por uma razão muito simples: é que todos somos naturalmente a duvidar de uma coisa que não tem sanção racional.”

(Nota: Todas essas citações de Kardec foram retiradas das traduções da Federação Espírita Brasileira, confrontadas com os originais franceses.)

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Fenômenos psico-físicos de natureza espiritual

Nubor Orlando Facure

A doutrina espírita contém em seus fundamentos uma série de informações que nos permitem identificar uma classe especial de fenômenos que sugerimos tratar-se de fenômenos “psico-físicos de natureza espiritual”. Correspondem ao processo de atuação da alma no corpo físico.

É muito fácil reconhecermos os fenômenos da realidade física e da esfera psicológica que fazem parte de toda nossa vida. Queremos, no entanto, pôr em destaque, uma outra classe de fenômenos que só a atuação do Espírito é capaz de explicar.

No mundo físico conhecemos a natureza da matéria e os processos que regem seu movimento e suas combinações.

No mundo psicológico identificamos os mecanismos inconscientes que impõem nossos comportamentos e aprisionam nossos desejos.

No domínio espiritual a literatura, especialmente de Kardec, André Luiz e Emmanuel, já nos indicaram mecanismos interessantes que atuam na interface corpo/alma.

O paradigma atual da Medicina, embora tenha esclarecido grande parte da anatomia e da fisiologia do organismo humano, não tem abrangência suficiente para perceber ou interpretar o complexo mecanismo de atuação do Espírito sobre o corpo. Essa será, possivelmente, a maior descoberta da Ciência.

Um modelo interessante para exemplificar a extensão dessa dificuldade é visto na glândula pineal. Conhecemos sua anatomia minúscula, sua relação com os ritmos biológicos, sua sensibilidade à luz, sua precária ligação com o cérebro, sua produção química modesta e sua expressão clínica pouco significativa.

É por isso que causaram surpresa os relatos que nos chegaram da espiritualidade, apontando expressivas atividades da glândula pineal, que ultrapassam o que até hoje fomos capazes de constatar com nossos estudos macro ou microscópicos.

Precisamos deixar claro que o que enxergamos “do lado de cá”, é apenas a expressão anátomo-funcional da glândula. Por não termos os instrumentos de acesso ao mundo espiritual, não sabemos como é que se processa sua atividade na interação cérebro/mente.

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Podemos identificar as células da pineal e sua microestrutura, registrarmos suas trocas metabólicas, identificarmos as secreções dos humores e a transmissão dos influxos nervosos. Entretanto, no domínio da atividade espiritual, os possíveis componentes e como atuam, são ainda indetectáveis pelos nossos instrumentos. Extrapolar nosso conhecimento “daqui para lá” ainda permanece no campo da metafísica.

Não seria prudente imaginarmos que “por aqui” poderemos um dia conhecer toda extensão desse fenômeno que chamamos de “psico-físico de natureza espiritual”. Pressupondo, de antemão, que “do lado de lá” a dinâmica espiritual do fenômeno é muito mais ampla e significativa do que nossa anatomia pode registrar.

Aprendemos com a doutrina espírita que existem três elementos fundamentais que direcionam a fisiologia dos processos orgânicos que nos condicionam a vida: o Espírito, o perispírito e os fluidos que intermedeiam a intercessão corpo/alma.

Parece-nos ser desnecessário anotar os detalhes já bem conhecidos dos três. Os livros básicos da Doutrina são suficientes. Nosso propósito será o de apontar alguns fenômenos que nos parecem ilustrativos para a apresentação da fisiologia metafísica que estamos interessados em estudar.

A fixação do pensamento A coesão da população celular Os Centros de força A corrente sangüínea e a energia vital A glândula pineal e sua fisiologia espiritual A ectoplasmia A respiração restauradora

Nossa sugestão é que fenômenos desse tipo sejam rotulados de “fenômenos espírito-somáticos” . Seu estudo abrange uma grade de fenômenos que pode nos levar conhecer leis gerais da fisiologia que integra o corpo à alma.

A fixação do pensamentoA neurofisiologia sugere que o pensamento é um processo contínuo

que se expressa na atividade dos neurônios do cérebro. Nossas idéias nascem a partir de estímulos externos que atingem os órgãos dos sentidos ou por

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mecanismos internos de percepção e memórias acumuladas no decorrer da vida.

O neurônio foi identificado como célula fundamental a partir do momento que técnicas de coloração permitiram o reconhecimento da sua estrutura. Quando Camillo Golgi em 1873 usou uma tintura de prata para corar o cérebro, foi possível perceber que alguns neurônios se impregnavam com essa coloração revelando o corpo celular e seus prolongamentos, inaugurando, a partir daí, uma revolução extraordinária no conhecimento do cérebro.

Nessa mesma época (final do século XIX), Franz Nissl, consegui corar os neurônios com o violeta de cresil, descobrindo no citoplasma o amontoado de uma substância de aparência “tigróide” que ficou conhecida como “corpúsculos de Nissl”. Os estudos atuais revelaram que esses corpúsculos correspondem a uma estrutura membranosa denominada Retículo Endoplasmático Rugoso que tem a função de construir proteínas dentro dos neurônios. Algumas dessas proteínas farão parte das membranas celulares e outras participarão de enzimas que atuam na produção de nurotransmissores.

A membrana que reveste os neurônios é formada por duas camadas de uma substância gordurosa fosfolipídica. Essa camada é impermeável, isolando o conteúdo interno dos neurônios dos fluidos extracelulares. Ela é, porém, interrompida por “portões” de proteínas que constroem os canais que permeabilizam as membranas. É através desses canais de constituição protéica que entram ou saem íons e substâncias que afetam a atividade dos neurônios (sódio, potássio, cálcio, neurotransmissores, tranqüilizantes, antidepressivos edrogas como a cocaína, para citar exemplos mais conhecidos) .

Por outro lado, as enzimas são indispensáveis para a produção dos neurotransmissores que realizam toda transmissão da informação entre os neurônios.

Pode-se depreender que os corpúsculos de Nissl, estando diretamente ligados a produção de proteínas, exercem um papel fundamental na fisiologia cerebral.

André Luiz, em psicografia de 1958 (Evolução em dois Mundos), destacou a importância dos corpúsculos de Nissl ensinando que aí a mente fixa seus propósitos transmitindo pelo pensamento as idéias que o Espírito projeta no cérebro. A partir das percepções dos sentidos, o Espírito renova suas idéias, projeta na rede de neurônios sua energia que resulta em pensamentos capazes de se adequarem no cérebro, produzindo nossos atos.

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Um neurônio, em constante atividade, vai expandindo suas sinapses fixando o aprendizado que a experiência vai lhe fornecendo. Em cada sinapse se ajustam os canais de transporte químico fundamentais a troca de informações entre os neurônios. Tanto esses canais, como os neurotransmissores, são construídos a partir de proteínas montadas, principalmente, dentro dos corpúsculos de Nissl. Portanto, afirmar que o Espírito exerce atuação direta nos corpúsculos de Nissl, como ensinou André Luiz, nos permite supor que é o Espírito que em última análise constrói o tipo de neurônios que estrutura o cérebro de cada um de nós.

A coesão da população celularO organismo humano é formado por mais de 300 trilhões de células em

constante renovação. Os diversos órgãos que o compõem, se estruturam em diferentes camadas de tecidos que reúnem células típicas e variadas. Temos em nosso corpo para mais de 250 tipos diferentes de células, incluindo os neurônios, as células da glia que sustentam o cérebro, os hepatócitos, as células musculares, as gordurosas, as epiteliais que revestem a pele e assim por diante.

A Ciência atribui ao programa impresso no genoma todo esse projeto de distribuição e organização do gigantesco universo celular que constrói nosso corpo. Falta-nos, entretanto, uma teoria adequada ao gigantismo dessa tarefa, já que, só de neurônios temos dezenas de tipos morfológicos, num total de 100 bilhões de células, exigindo conexões sinápticas que ultrapassam a trilhões de ligações absolutamente precisas. Precisamos lembrar que no útero materno o embrião constrói 250 mil neurônios por minuto. Torna-se uma tarefa espantosa para os poucos 33 mil genes que trazemos como patrimônio genético.

A doutrina espírita ensina que o molde que nos estrutura o corpo físico é função do perispírito que nos ajusta ao mundo espiritual. Estão nesse perispírito todos os traços que identificam nosso mundo mental. Entretanto, a feição física que aparentamos e os estigmas de doenças nos marcam não se reproduzem como uma cópia fotográfica fiel do nosso perispírito. As pessoas de aparência simples mas de Espírito nobre irradiam uma tessitura espiritual que se sobressai diante das imagens de beleza que a mídia costuma dar destaque, especialmente para o corpo feminino. A presença de deformidades físicas está ligada aos nossos méritos e necessidades, adequadas aos débitos pretéritos que acumulamos, mais do que a aparência do perispírito. Nem sempre os aleijões acompanharão o Espírito após a desencarnação.

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Allan Kardec sugere que o conhecimento do perispírito tem muito a colaborar com a Medicina para esclarecimento de nossas doenças. Mas recorremos de novo a André Luiz para nos surpreender com suas revelações. Ele ensina que pela atuação de nossa mente, mantemos coesas as trilhões de células que compõem o nosso corpo. Essa atividade dá às nossas atitudes uma responsabilidade enorme no compromisso que temos em zelar pelo nosso equilíbrio físico. Porém, as surpresas não param por aqui. André Luiz afirma que cada uma dessas células é um universo microscópico onde estagia o princípio inteligente, constituindo cada célula que abrigamos em nosso corpo uma unidade com individualidade própria, sobre as quais temos imensa responsabilidade de sustentar e conservar. São “almas” irmãs, que em estágio primitivo, percorrem conosco as lutas da vida física, emprestando ao Espírito humano a dádiva do seu metabolismo.

Os centros de forçaA cultura milenar do oriente registra em seus livros sagrados a

existência de centros de força, ou chacras, de localização constante no corpo espiritual de todos nós. Eles se localizam no cérebro e em plexos distribuídos pelo nosso corpo nas regiões da laringe, do estômago, do baço, do plexo celíaco relacionado com o trato digestivo e região genital.

São em número de dois no cérebro, o chacra cerebral localizado na região frontal e o chacra coronário nas regiões centrais do cérebro.

Os lobos frontais passaram por um processo extraordinário de expansão quando se iniciou a evolução do ser humano na Terra. O lobo frontal é a região que mais nos distingue do cérebro de um chimpanzé. Estão relacionados com nossos pensamentos abstratos, com nossa capacidade de classificar os objetos, de organizar nossos atos e programar nosso futuro. Sem o lobo frontal o homem se torna irresponsável, perde a capacidade de organizar as coisas num ambiente, deixa de se preocupar com os outros, pode se tornar jocoso e não percebe a gravidade da situação em que vive. É o lobo frontal o que mais nos torna humanos.

André Luiz nos diz que o chacra cerebral, de localização frontal, nos permite estar em união com as esferas mais altas que direcionam nossos destinos na Terra. Através da oração, projetando a súplica piedosa ou o agradecimento sincero, mantemos contato com os seres sublimes que nosorientam e protegem.

Na região coronária podemos apontar três níveis estratificados anatomicamente. O córtex, os núcleos da base e o diencéfalo. O córtex

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cerebral da região coronária se relaciona com a atividade motora que nos facilita os movimentos voluntários. Nos núcleos basais (tálamo, putamem, globo pálido e caudado) são organizados nossos movimentos automáticos, que nos permitem realizar a respiração, a deglutição, a mastigação e a marcha, para citar exemplos fáceis de compreendermos. E, finalmente, o diencéfalo reúne um agrupamento de células que desempenham papel importantíssimo no controle de nossas funções metabólicas, intimamente associadas a nossa sobrevivência. No hipotálamo, que compõe parte importante do diencéfalo, são produzidas dezenas de substâncias que controlam a atividade das nossas glândulas, funcionando como estimuladores da produção de hormônios na hipófise, na tireóide, na supra-renal, nos ovários e nos testículos entre tantas outras glândulas.

André Luiz ensina que no chacra coronário estão situadas as forças que mantém em equilíbrio a atividade dos trilhões de células que obedecem nosso comando mental, mantendo a forma e as funções do nosso corpo físico.

Os milhares de anos que nos separam do espiritualismo oriental não trouxeram maiores esclarecimentos à ciência médica, que não consegue identificar em seus fundamentos qualquer sinal da existência dos chacras. Mesmo assim, convém considerarmos alguma hipótese para tentarmos relacionar os chacras com a atividade cerebral. É clássico estudarmos o cérebro em seu aspectos modulares destacando as funções motoras, sensoriais, linguagem, memória, calculo, emoções entre tantos outros. Essas atividades são processadas por circuitos limitados a uma determinada área cerebral. Existe, porém, um outro arranjo funcional que a neurologia destaca como um conjunto de agrupamentos neurais que exercem sua ação de modo difuso, incluindo múltiplas vias neurais e suas áreas de repercussão. É o caso, por exemplo, dos sistemas de ativação ascendente que tem a propriedade de nos manter alertas ou em pleno sono.

De maneira simplificada, podemos considerar pelo menos três sistemas de atuação global, habitualmente rotulados de “sistemas modulatórios de projeção difusa”. O sistema hipotálamo-secretor, o sistema neurovegetativo e, o sistema de relação com neurotransmissores como o dopaminérgico, o seratoninérgico e o noradrenérgico, estando os três fortemente relacionados com transtornos mentais diversos. São eles que, nesse artigo, queremos sugerir, com hipótese, estarem relacionados com os chacras cerebral e coronário.

Considerando os chacras que se expressam no cérebro, podemos notar sua coincidência com os “sistemas de atuação difusa”. No chacra frontal,

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predomina o sistema dopaminérgico responsável pela expressão do pensamento abstrato e insersão na realidade física. Doenças como a epilepsia e as demências frontais levam a uma deteriorização da mente desses pacientes que se tornam completamente dissociados do mundo físico em que vivemos. Na região do chacra coronário, vimos o significado do controle endócrino realizado pelo eixo diencéfalo-hipofisário. Essa atividade glandular orquestrada é indispensável para a manutenção do nosso metabolismo, sem o qual a vida nos seria impossível.

A corrente sanguínea e a energia vital É muito fácil de se aceitar a idéia de que nossa vida está intimamente

ligada ao coração. Aristóteles afirmava que a Alma aí se localiza porque qualquer ferimento nele leva imediatamente à morte.

Nos dias de hoje, alunos do primário já aprendem que os batimentos do coração impulsionam o sangue pelas aterias, que depois se difundem pelos capilares e retorna pelas veias. Nesse retorno o sangue passa pelos pulmões de onde retira o oxigênio que a respiração fornece. Temos cerca de seis litros de sangue circulando pelo nosso corpo e mais ou menos vinte por cento dele vai para o cérebro. Enquanto entra pelas artérias e sai pelas veias, o sangue circula dentro do cérebro em exatos seis segundos.

Assim que ocorre a morte, as artérias do cadáver estão vazias, já que a última batida impulsiona todo sangue para as veias. Essa observação levou Galeno a sugerir que as artérias estariam sempre cheias de ar. Ele propunha, também, que circula junto com o sangue um elemento imaterial que denominou pneuma vital. Esse fluido nasce no coração, distribui-se pelo corpo e, se transforma no pneuma animal ao atingir o cérebro, nos permitindo perceber o mundo pelos sentidos e a reagir com os nossos movimentos aos seus estímulos. A idéia de um “espírito animal” produzindo nossos reflexos, foi também adotada por René Descartes e por Thomas Willians, tendo aceitação médica por muitos séculos. Para Willians, os corpúsculos do “espírito animal”, percorreriam os nervos para pôr em ação os nossos movimentos.

Nos dias de hoje, sabemos da importância da circulação sanguínea distribuindo por todo organismo não só o oxigênio que nos sustenta a vida mas um número insuspeitável de substâncias ligadas à manutenção do metabolismo celular e de todo sistema imunológico.

André Luiz nos traz conhecimentos novos nessa área também. Diz o conhecido Espírito que junto com a circulação sanguínea circula o “princípio

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vital” indispensável à sustentação da vida. Ensina Kardec que é o princípio vital quem dá vida à matéria orgânica. Cada um de nós o tem disponível enquanto encarnados, consumindo nossa cota com o decorrer dos anos. Ele procede do “fluido cósmico universal” que nos abastece conforme nossas atitudes nos compromissos da vida. A meditação, a prece e o impulso que nos predispõe a amar ao próximo, fornecem a substância e a renovação do princípio vital. Ele nos penetra pela respiração, o que nos faz lembrar um dos mais belos versos da Bíblia – E Deus fez o Homem do barro da Terra e soprou em suas narinas o sopro da vida.

Anaxágoras considerava que o ar era a substância primitiva de onde procede tudo que existe. A relação do ar com a vida sempre foi aceita em muitas culturas. Nos livros de Galeno, as expressões espíritos e pneumas (ar) são equivalentes.

Aprendemos com André Luiz que o princípio vital é absorvido pela respiração e percorre todo organismo acompanhando a circulação do sangue.

A Glândula Pineal e sua fisiologia espiritual

Essa glândula situada no meio do cérebro já é conhecida há mais de dois mil anos e, mesmo assim, o que sabemos sobre ela é tão pouco que, nos tratados clássicos da neurologia, ela ainda não despertou interesse para merecer mais que citações curtas de algumas linhas sobre o hormônio que ela secreta - a melatonina.

A pineal é o relógio biológico que sinaliza um dos momentos mais importantes da vida, o despontar da sexualidade. Por ocasião da adolescência a pineal reduz a produção da melatonina ocorrendo, a partir daí, o desenvolvimento dos órgãos externos ligados a atividade sexual.

Até hoje é possível de se perceber, em determinados animais, que a pineal pode se comportar funcionalmente como um terceiro olho. Nesses animais a pineal está situada acima do crânio funcionando a modo de um periscópio que exerce um papel de vigilância para o animal. Não se deve estranhar, portanto, a forte sensibilidade que a nossa pineal tem para com a luz. A entrada da luz, que atinge a pineal pelas fibras nervosas que nosso nervo óptico conduz, reduz a produção de melatonina. No ambiente escuro, aumenta acentuadamente a produção do hormônio. Todos sabemos que os ursos hibernam em cavernas durante meses de escuridão e, nessa ocasião, o aumento da melatonina produz o entorpecimento do seu interesse sexual, que depois volta a se revelar no alvorecer da primavera.

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O hormônio da pineal tem ligação direta com o depósito de melanina na nossa pele. Ele tem um efeito clareador diminuindo a pigmentação da pele. Isso justifica, por exemplo, a cor esbranquiçada dos bagres que vivem nas profundezas de águas escuras.

A melatonina tem sido utilizada como tranqüilizante produzindo relaxamento e sonolência. Foi experimentada também no tratamento de dores de cabeça e de epilepsia, mas em todos esses quadros o efeito da melatonina é muito pobre.

André Luiz, através de Chico Xavier, trouxe-nos informações inéditas e surpreendentes sobre o papel da pineal quando observada a partir do plano espiritual.

Sensível às irradiações eletromagnéticas, nossa pineal é sintonizador dos fenômenos de comunicação mental, mantendo-nos em permanente ligação com todos aqueles que compartilham conosco a mesma faixa de vibração.

Nos processos mediúnicos, a aproximação espiritual se vale da pineal para difundir sua mensagem até as diversas áreas cerebrais que ressoam sua transmissão.

Nas encarnações, que a misericórdia divina nos permitiu transitar pela Terra, nos enredamos em situações onde tivemos oportunidade de cultivar relações afetivas profundas, ao mesmo tempo em que fomentamos rivalidades e discórdias das mais variadas conseqüências. Como a Lei divina não exclui ninguém dos reajustes necessários, será através da pineal que iremos encontrar, mais cedo ou mais tarde, aqueles mesmos amores sinceros que nos incentivarão a progredir e os inimigos do passado que nos exigirão saldar as dívidas e os compromissos.

Entretanto, por mais que a anatomia cerebral possa nos revelar, não reconhecemos nas vias que emergem da pineal qualquer indicação dessa extraordinária participação da glândula em nossa vida mental. Como explicar, em vista disso, o que nos esclarece André Luiz? Pressuponho que será necessário conhecermos qual é o mecanismo de atuação do Espírito sobre o cérebro. Daí, nosso propósito de reunirmos esse conjunto de fenômenos que sugerimos sejam tratados de fenômenos “espírito-somático”.

No quadro dessa notória “fisiologia espiritual” que André Luiz dá destaque, creio que a chave para sua compreensão está na participação do chamado “fluido universal”, tão conhecido no meio espírita.

Ensinam os Espíritos que elaboraram a doutrina com Allan Kardec que os fluidos servem de veículos para a transmissão do pensamento. Derivado do

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fluido cósmico universal, ele inunda o Universo, nos envolvendo a todos, nos permitindo compartilhar do “Hálito Divino” que nos alimenta.

Na vida física, atuamos pelas vias nervosas que nos estrutura os neurônios, suas imensas redes de comunicação e sua extraordinária química que sintetiza e conjuga os neurotransmissores. Na dimensão espiritual estaremos usando esse elemento sutil, fluídico, que obedece a vontade que a mente direciona, permitindo-nos criar através da fisiologia espiritual uma dispersão muito mais ampla nos seus efeitos fisiológicos.

Quando Louis Pasteur, descortinou o imenso campo da microbiologia, esse conhecimento novo nos permitiu esclarecer a dinâmica da etiologia das doenças infecciosas. A descoberta do DNA abriu novas áreas para esclarecimento das chamadas doenças de origem genética. Entretanto, o estudo dos fluidos e suas propriedades poderá nos revelar uma nova fisiologia e, como conseqüência, as doenças que seus desvios provocam. A presença desses fluidos, está intimamente relacionada com nosso padrão de atividade mental. A literatura espírita é farta em afirmar que, todos nós, somos expressão da vida mental que nós mesmos escolhemos construir e refletimos em nossa aparência a composição fluídica que selecionamos.

Os desequilíbrios mentais, que a neurobiologia de hoje entende como decorrentes das alterações em neurotransmissores, com certeza, iniciam sua perturbação a partir dos fluidos que permitimos nossa mente projetar no cérebro, desviando a química que nos preside o equilíbrio do pensamento.

A EctoplasmiaA partir dos fenômenos das mesas girantes, a mediunidade

proporcionou aos pesquisadores do século XIX uma imensa variedade de manifestações físicas, entre elas a materializações de entidades espirituais. Nessa fenomenologia é mobilizada uma grande quantidade de ectoplasma permitindo o estudo da sua elaboração e constituição química. Todos os que estão presentes no ambiente da experimentação estarão doando uma cota maior ou menor de fluidos mas é do médium que sae, por todos seus poros e orifícios de excreção, o material mais ou menos denso que permitirá a presença das silhuetas que se corporificarão no ambiente onde o público aguarda.

No âmbito do estudo que estamos abordando, interessa anotar que o conteúdo bioquímico do ectoplasma procede na esfera física, do citoplasma das células do aparelho mediúnico. Em conjugação com os fluidos dos dois

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planos da vida é que o fenômeno adquire as propriedades de transição que permitem aos espíritos adentrarem a nossa dimensão.

A Respiração restauradoraO ar, como fonte insubstituível de vida, é percepção do senso comum a

qualquer de nós. O ato de respirar está intimamente ligado a nossa sobrevivência. Anaxágoras atribuía ao ar a origem de tudo. A Bíblia registra que recebemos a vida a partir do sopro de Deus. Nos textos de Galeno, como já notamos, as expressões espírito e pneuma (ar) eram equivalentes. Para ele o pneuma vital era absorvido pelos pulmões e circulava do coração até ao cérebro para nos manter vivos. Na cultura oriental os exercícios respiratórios têm indicação mais importante que a atividade muscular.

Um dos fundamentos da doutrina espírita é de que a vida decorre da presença do principio vital que vivifica a matéria orgânica dando-lhe a propriedades de reagir.

A atividade constante dos nossos órgãos se faz as custas desse princípio vital e seu esgotamento leva o corpo a morte. Por outro lado, nossa atividade mental nos permite absorver da espiritualidade os fluidos que agregam elementos para sustentação do principio vital. Mais atividade corresponde a mais vida, tanto do ponto de vista físico como espiritual.

André Luiz nos aponta em seus textos que a respiração é porta de entrada restauradora para a realimentação de nossas energias vitais

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ALGUMAS CONSIDERAÇÕES OPORTUNAS SOBRE A RELAÇÃO ESPIRITISMO-CIÊNCIA

Ademir L. Xavier Jr.

1- CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A nosso ver, têm ocorrido recentemente alguns abusos que se exteriorizam na forma de afirmações, que acreditamos um tanto descabidas, publicadas em diversos periódicos espíritas e obras diversas. Elas são todas concernentes ao contexto em que o Espiritismo pode ser (pretensamente) inserido no conjunto das ciências modernas. Tais abusos tentam, de uma maneira algo desesperada, não só estabelecer uma possível conexão entre o Espiritismo e as demais ciências ordinárias (principalmente a Biologia, Química e notadamente a Física) como também justificar a Doutrina Espírita diante de tais disciplinas. Nosso objetivo aqui é estabelecer as causas principais de tal movimento, apontando sua prescindibilidade e seu aspecto prejudicial ao Movimento Espírita.

O que move a tentativa acima mencionada de justificar a importância do Espiritismo via ciência, bem como sua possível interpretação científica diante de outras doutrinas científicas são, basicamente, a falta de compreensão do aspecto científico real do Espiritismo, a ignorância em relação ao verdadeiro significado da Ciência (como ela opera e se estabelece) e, de algum modo, um certo gosto por novidades, modernismos e fatos extraordinários.

O aspecto científico do Espiritismo anunciado por Kardec está, ao que parece, longe de ser compreendido em sua última expressão dentro do atual Movimento Espírita. Não compreendendo os ingredientes essenciais e suficientes que identificam uma doutrina como sendo genuinamente científica (ingredientes que o Espiritismo possui completamente), busca-se uma adequação da Doutrina Espírita dentro dos moldes do puro empirismo, ou de outra forma, lançando mão de argumentos em torno do indutivismo ingênuo. Há, de uma maneira ou de outra, um forte apelo ao senso comum. Para avaliarmos completamente o aspecto científico do Espiritismo é necessário o emprego da análise moderna da Filosofia, mais precisamente o ramo que estuda a teoria do conhecimento científico ou Epistemologia da Ciência. Não entraremos aqui nos detalhes dessa análise, aliás um tanto complexa, afirmamos apenas que tal estudo já pode ser encontrado, e indicamos ao leitor o lugar onde encontrá-lo (ver Chibeni 1988 e 1994).

Uma possível fonte de confusão entre a relação Espiritismo e as demais ciências é gerada, muitas vezes, pela falta de significado preciso para certas palavras. Os exemplos são muitos, um clássico é o da palavra energia. Há diversos significados ligados a essa palavra, e é necessário imenso cuidado em

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se especificar claramente tais significados. Na Física Clássica, por exemplo, ela designa uma qualidade inerente aos corpos materiais, que permanece latente até que certas condições sejam satisfeitas. Não é infreqüente o uso do termo energia por diversos autores espirituais, mas nesse caso, nenhuma tentativa de associação direta com o significado implicado pela Física pode ser inferido. Existem, entretanto, muitos autores (encarnados, é claro!) que parecem confundir, não poucas vezes, as duas acepções possíveis, sugerindo uma tradução da energia de que falam os Espíritos em termos da energia usada na Física, nossa velha conhecida.

De outras vezes, a precipitada justificativa científica do Espiritismo segue a freqüente moda de justificação científica feita em outras doutrinas, como por exemplo a Teosofia e doutrinas orientalistas (ver, por exemplo, Phillips 1980). Essa justificativa caracteriza-se por uma tentativa de inserção de certas idéias religiosas, na maioria das vezes de origem oriental, no contexto de recentíssimas descobertas ou modelos da Física contemporânea. É natural que haja pessoas que pensem ser necessário o mesmo procedimento com o Espiritismo. Não compreendem, entretanto, que a Doutrina Espírita já possui uma base científica própria, e que a natureza do fenômeno que ela estuda, bem como o estado atual de nosso conhecimento sobre a matéria não permitem uma conexão tão direta entre a Física, por exemplo, e o Espiritismo. Além disso, é necessário que se saiba que muitos dos modernos modelos da Física (como exemplo, o diversos modelos teóricos de interação entre partículas e campos no microcosmo) sofrem radicais revisões todos os dias. O Espiritismo, por sua vez, tem uma estrutura muito mais estável, porque repousa em fenômenos de caráter mais diretamente observável, sendo suas afirmações de muito maior confiança7. É certo que o Espiritismo guarda uma relação com as outras ciências, mas os fatos espíritas, por si sós, já asseguram uma especial independência de seu objeto de estudo com o das demais ciências materiais. Não obstante, essa independência foi muito bem identificada e analisada por Kardec em O que é o Espiritismo.

Dentro do Movimento Espírita, muitas vezes a anunciação de descobertas gerais das ciências materiais (como a Física, com seus novos modelos acerca do funcionamento do Universo) é feita, em geral, tendo por base obras de divulgação científica (ver Chagas 1995) que, a nosso ver, pecam por falta de precisão da discussão das idéias, sem contar com a dificuldade inerente de se expressarem conceitos altamente abstratos, muitas vezes (como, por exemplo, a unificação do espaço e do tempo em um contínuo quadri-dimensional, a dilatação do tempo, etc., da Teoria da Relatividade Restrita) em termos de uma linguagem mais acessível ao leigo. Isso implica, idealmente, a tentativa de fazer o não especialista compreender plenamente tais conceitos, tais quais são dentro da teoria em que estão inseridos. É bastante clara a impossibilidade de tal tentativa. Se desprezarmos os erros grosseiros de tradução que muitos textos de divulgação trazem, quando de origem estrangeira, concluímos que

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eles podem, no máximo, passar ao leitor não especialista uma idéia vaga de tais conceitos. Ora, assim sendo, uma importante questão seria: Que valor pode ter a tentativa de se relacionar conceitos e fundamentos das ciências ordinárias com fundamentos importas de Doutrina Espírita, quando tal intento é feito tão-só baseando-se em textos de propaganda científica? A precariedade de tradução, a dificuldade de expressão apropriada dos conceitos, bem como a transitoriedade das teorias que tais textos podem trazer são suficientes para termos uma idéias clara da resposta a essa questão.

Relacionada à dificuldade de entendimento do aspecto científico real do Espiritismo está a profunda falta de informação existente nos meios espíritas ( o que é, no nosso entender, bastante natural) e, por que não dizer, acadêmicos (o que já não parece tão natural assim), em torno do conceito de Ciência. Mais uma vez, um apelo à Epistemologia se faz necessário (ver Chibeni 1988 e 1994, Chalmers 1976). As implicações dessa ignorância são as eternas e mal fundamentadas críticas ao Espiritismo feitas por diversas escolas parapsicológicas e demais adeptos das denominadas "ciências psi" (Chibeni 1988). Esses rejeitam, explicitamente, a idéia do Espírito como causa envolvida em grande parte, se não em todos, dos posteriormente denominados "fenômenos paranormais". Assim agindo, queremos deixar claro ao leitor, tais escolas são levadas por uma idéia ultrapassada de Ciência, bem como por concepções obsoletas do método científico.

2 - UM EXEMPLO

Um exemplo um tanto exagerado das confusões com relação às questões expostas anteriormente pode ser encontrado no artigo "Matéria e antimatéria" (Reformador, abril 1994). O autor inicia dizendo que "a ciência terrestre chama de matéria tudo o que tem energia e massa, é sólido (...) ou fluídico (...) e ocupa lugar no espaço e no tempo". Essa afirmação, de caráter geral, confere à matéria determinadas propriedades como, por exemplo, massa, mas não pode ser usada para caracterizar certos tipos de matéria no universo. O ponto crítico está onde é afirmado:

"É de antimatéria o plano vital em que se movem os Espíritos desencarnados."

E, mais abaixo:

"É pela diferença de sinalização de carga elétrica dos elementos que formam o 'plano invisível' que, em condições normais, não o percebemos fisicamente."

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Em nenhum lugar dentro da bibliografia espírita, escrita por autores abalizados e de peso, podem ser encontradas ou sequer deduzidas tais afirmações. Muito ao contrário, das obras de Kardec tem-se claramente que o mundo espiritual constitui um universo paralelo, totalmente independente do material, tanto que, ainda que o mundo material perecesse, o espiritual continuaria existindo. Isso porque matéria e espírito são dois princípios independentes no universo com uma origem desconhecida. As questões 25, 26, 27, 84, 85 e 86 de O livro dos Espíritos, são suficientes para esclarecer quaisquer dúvidas. Vejamos, por exemplo, a questão 86:

"O mundo corporal poderia deixar de existir, ou nunca ter existido, sem que isso alterasse a essência d mundo espírita?

-- Decerto. Eles são independentes; contudo, é incessante a correlação entre ambos, porquanto um sobre o outro incessantemente reagem."

Por outro lado, o que a Física estabelece como certo com respeito à antimatéira torna absurdas as afirmações propostas acima relacionadas ao mundo espiritual. Conforme H. Alvén (1965), que foi ganhador do Prêmio Nobel em 1970, em "Propriedades da Antimatéria":

"A teoria de Dirac do elétron e a descoberta do pósitron criou a crença de que toda partícula possui sua correspondente antipartícula. Essa crença foi confirmada pela descoberta do antipróton. Todas as outras partículas parecem Ter também antipartículas. Disso se conclui que os "antiátomos" devem existir, e são semelhantes aos átomos ordinários, com núcleos formados de antiprótons e nêutrons envoltos por pósitrons. Tais antiátomos devem Ter as mesmas propriedades dos átomos ordinários. Eles devem formar compostos químicos similares aos compostos químicos ordinários, que emitem linhas espectrais a exatamente os mesmos comprimentos de onde dos átomos ordinários." (Grifo nosso.)

Assim sendo, as propriedades da antimatéria são as mesmas da matéria ordinária, ou, em outros termos, antimatéria é o nome dado a um tipo especial da matéria! Por outro lado, a existência da antimatéria foi confirmada experimentalmente 10, assim como a impossibilidade de coexistência simultânea de matéria e antimatéria. Essa é, também, a causa da inexistência natural de antimatéria em nosso mundo. Está claro, entretanto, que de nenhum lugar, nem do atual conhecimento da Física, nem da Doutrina Espírita, semelhantes afirmações podem ser inferidas.

3 - A NÃO NECESSIDADE E OS PERIGOS

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Do que foi exposto, é bastante óbvio que as tentativas de inserção do Espiritismo no contexto das modernas teorias científicas, bem como sua justificação diante da academia estabelecida, o que visa um tanto à sua valorização, são totalmente desnecessárias. De fato, elas são desnecessárias porque, tendo como objetivo de estudo algo que não se identifica como sendo a matéria ordinária, o Espiritismo consegue suficiente independência com relação às demais doutrinas científicas que estudam a matéria, para caracterizar-se como um ramo independente de conhecimento. Não só por isso, pelo caráter harmônico com que os princípios espíritas interagem entre si, fruto de sua boa fundamentação, pela maneira com que estão estabelecidos tais princípios e por suas bases experimentais, pode-se considerar a Doutrina Espírita como uma teoria genuinamente científica no sentido epistemológico moderno. Essa doutrina tem como objetivo o estudo do elemento espiritual, e não se confunde de nenhuma maneira com as demais ciências, embora guarde alguma relação com elas. Lembramos, também, que Allan Kardec jamais se atreveu a tentar interpretar os novos conceitos que descobriu de acordo com os conhecimentos científicos de sua época. Se o tivesse feito, não sabemos quais teriam sido as conseqüências, desastrosas com certeza, ao posterior desenvolvimento e expansão da Doutrina Espírita.

Os prejuízos de uma campanha indiscriminada que visa a ressaltar ou inferir precipitadamente semelhante relação podem ser facilmente previstos. Tais prejuízos podem não ser grandes para aqueles que já possuem um conhecimento considerável do corpo doutrinário espírita, mas o que dizer dos iniciante? Quantas confusões totalmente desnecessárias podem ser evitadas nas mente dos principiantes em Espiritismo se certas afirmações simplesmente não forem feitas? Acreditamos não serem poucas.

O verdadeiro trabalho espírita está no aprimoramento do espírito humano em sua bagagem moral, na sublimação dos instintos humanos, vertendo-os em valores divinos, em suma, no progresso moral do mundo. Para isso, sim, o estudo acurado e cauteloso é imprescindível. Também por isso, experimentações científicas detalhadas no campo espírita só podem ser feitas com a expressa colaboração do Plano Espiritual superior que, para isso, exige uma definitiva demonstração desses valores divinos em nós. (Ver No Mundo Maior, de André Luiz, p. 31.)

REFERÊNCIAS

1. Chibeni, S. S. "A excelência metodológica do Espiritismo", Reformador, novembro de 1988, pp. 328-333, e dezembro de 1988, pp. 373-378.

2. Chibeni, S. S. "O paradigma espírita", Reformador, junho de 1994, pp. 176-80.

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3. Phillips, S. M. Extra-Sensory perception of Quarks, Wheaton, Illinois, Theosophical Publishing House, 1980.

4. Kardec, A. O que é o Espiritismo, 36a ed., FEB.5. ------. O livro dos Espíritos, 75a ed. FEB.6. Chagas, A. P. "A Ciência confirma o Espiritismo?" Reformador, jul.

1995.7. Chalmers, A. F. What is this thing called science? St. Lucia, University

of Queensland Press, 1976.8. "Matéria e antimatéria", Reformador, abr. 1994.9. Alvén, H. "Antimatter and the Development of the Metagalaxy", Rev.

Modern Phys., vol. 37, p. 652, 1965.10.André Luiz, No Mundo Maior (psic. F. C. Xavier), 19a ed., FEB.

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A CONCEPÇÃO ESPÍRITA DE FATALIDADE

SILVIO E SILVIA SENO CHIBENI

1. Introdução {nota 1}

No capítulo "Da lei de liberdade" de O Livro dos Espíritos Allan Kardec analisou com lucidez diversas questões relativas à fatalidade, dedicando-lhes uma seção inteira. Neste artigo pretendemos expor brevemente a concepção espírita de fatalidade, estabelecida naquela seção e em obras complementares.

Ao iniciar qualquer estudo, é sempre conveniente ter clareza quanto ao significado preciso dos termos envolvidos. Consultando o dicionário, verificamos quefatalidade é a marca do que é fatal, a força que predispõe irrevogavelmente os acontecimentos, o destino. Fatal é aquilo que é certo, prescrito pelo destino, irrevogável, que necessariamente acontecerá, inevitável, decisivo, inadiável, funesto, nefasto.

As duas últimas acepções do adjetivo fatal indicam algo de caráter negativo. Na concepção vulgar, esse aspecto mistura-se às primeiras acepções, resultando daí a idéia de que a fatalidade é a ocorrência inevitável de alguma coisa ruim. Essa associação da predeterminação com algo trágico, nefasto, porém, não é necessária. Em um sentido geral, a noção de fatalidade é neutra quanto à natureza boa ou má dos acontecimentos. Ao inspecionarmos a seção sobre a fatalidade de O Livro dos Espíritos verificamos facilmente que é esta noção geral, neutra, que está sendo ali estudada; é, portanto, a que nos interessará neste trabalho também.

Como o próprio termo indica, dizer que um fato está predeterminado é afirmar que sua ocorrência é determinada de maneira certa pelo estado de coisas que a antecede. A noção de predeterminação pressupõe a existência de uma como que "amarração" entre os acontecimentos: uns levariam a outros infalivelmente.

Quando consideramos os acontecimentos do mundo de um modo geral, são concebíveis três possibilidades: 1) todos estariam predeterminados (determinismo); 2)nenhum estaria predeterminado (aleatoriedade); e, 3) apenas alguns estariam predeterminados. Conforme veremos, é esta última posição, intermediária entre os dois extremos, que é aceita pela ciência contemporânea e pelo Espiritismo.

Ao formular a pergunta 851 de O Livro dos Espíritos, que abre a seção sobre a fatalidade, Kardec esclarece que entende a fatalidade como a predeterminaçãocompleta dos acontecimentos. Ao longo da seção, são expostos os motivos pelos quais não pode existir a fatalidade nesse sentido

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extremo, de uma predeterminação de tudo quanto ocorre. São também indicadas as circunstâncias especiais em que pode haver um certo tipo de predeterminação dos acontecimentos. A compreensão satisfatória desses pontos requer a análise de vários conceitos filosóficos, como o de determinismo, o de livre-arbítrio, o de causalidade etc. É o que procuraremos fazer a seguir, de forma bastante simplificada.

2. Determinismo e livre-arbítrio

A tese filosófica do determinismo, discutida há milênios pelos filósofos, sustenta que tudo o que acontece está predeterminado, podendo em princípio ser previsto por quem possua conhecimento completo do mundo em um dado instante. O Universo seria comparável a uma imensa máquina em funcionamento automático e infalível.

No exame das questões relativas ao determinismo é de suma importância, quer do ponto de vista filosófico, quer espírita, distinguir os acontecimentos do âmbito exclusivo da matéria daqueles que envolvem seres de natureza espiritual.

Muitos filósofos e cientistas de épocas passadas sustentaram que a matéria comporta-se de forma completamente determinista. Com a criação da ciência moderna, nos séculos XVI e XVII, essa posição ganhou força, visto que as novas teorias mecânicas, que culminaram na monumental síntese newtoniana, incorporam o determinismo em suas equações fundamentais.

Com o ulterior desenvolvimento da ciência a crença no determinismo enraizou-se. No final do século XIX e início do século atual, a formulação do eletromagnetismo, da mecânica estatística e das teorias da relatividade dentro desse mesmo referencial conceitual foi freqüentemente interpretada como sua consolidação definitiva.

No entanto, essa visão de mundo suscitou dificuldades filosóficas de grande monta, quanto à sua compatibilização com o livre-arbítrio humano. Com efeito, a experiência psicológica da liberdade de nossos pensamentos e ações é algo indubitável. Mas essa experiência parece conflitar com o determinismo da matéria, qualquer que seja a concepção acerca da natureza humana. É interessante notar que, com seu senso filosófico apurado, Allan Kardec abre a referida seção sobre a fatalidade precisamente com uma questão sobre o conflito entre fatalidade plena e livre-arbítrio.

Na perspectiva materialista, tudo no homem seria matéria. Ele estaria, pois, sujeito ao mesmo determinismo que existe no movimento dos astros, na queda de uma pedra, no movimento de um relógio. Como conciliar isso com o fato de sentirmos, com toda a clareza de que é capaz o nosso entendimento, que

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levantamos ou abaixamos o braço, andamos para a esquerda ou a direita, dizemos isso ou aquilo, com inteira liberdade?

Dificuldade semelhante surge na visão dualista, segundo a qual o homem é um espírito ligado a um corpo. Se o corpo, que é matéria, tiver seus mínimos movimentos predeterminados, como poderá o espírito atuar livremente sobre ele, fazendo-o executar essa ou aquela ação?

Os esforços dos filófosos para solucionar o problema não alcançaram qualquer êxito. Felizmente, porém, ele tornou-se amplamente irrelevante com o advento da mecânica quântica, na década de 1920. Essa teoria descreve a estrutura íntima da matéria, e representa a mais abrangente, precisa e bem sucedida teoria científica de todos os tempos. Pois bem: ao contrário das demais teorias físicas, a mecânica quântica não prevê um comportamento totalmente determinista para a matéria. Além disso, sofisticados estudos teóricos e experimentais recentes indicaram que qualquer tentativa de reinstalar teorias deterministas na microfísica encontrará necessariamente dificuldades proibitivas.

Tais avanços da ciência parecem haver renovado o referencial conceitual no qual o problema do livre-arbítrio humano deve ser analisado. As perspectivas de se conceber o ser humano como um espírito livre que atua sobre um corpo material desbloquearam-se. Deve-se todavia notar que ainda quase nada foi feito nesse sentido nos círculos acadêmicos.{nota 2}

O Espiritismo, porém, há muito tempo estabeleceu essa concepção, por meio de suas investigações científicas dos fenômenos espíritas. Confirmou a visão dualista que situa o pensamento, a vontade e o sentimento do homem num espírito independente da matéria. Mostrou também que esse espírito antecede e sobrevive ao corpo. De acordo com os últimos avanços da ciência, o comando do corpo pelo espírito é perfeitamente compatível com as leis que regulam o comportamento da matéria, já que estas contemplam a existência de processos indeterministas no nível dos constituintes fundamentais dos corpos, como prótons, nêutrons, elétrons etc.

3. Fatalidade e relação de causa e efeito

Estudemos um pouco mais a questão da predeterminação dos acontecimentos do domínio exclusivo da matéria. Segundo a ciência contemporânea, muitos desses acontecimentos de fato são predeterminados. Os movimentos dos orbes celestes, a queda de uma maçã, a propagação de uma onda de rádio constituem exemplos típicos. Especificada a altura da qual a maçã cai, sua forma, a viscosidade do ar, a força gravitacional que sobre ela exerce a Terra etc., as leis da mecânica permitem em princípio o cálculo do tempo de queda e a velocidade que terá ao atingir o solo, entre outras coisas.

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Se quisermos, podemos caracterizar esses eventos previstos como efeitos, e a força gravitacional e as condições iniciais da maçã como causas. Dadas as causas, seguem-se os efeitos de modo certo. Isso faz ver que a fatalidade parcial que existe no mundo material está ligada à existência de certas relações causais.

Conforme apontamos na seção anterior, a física contemporânea reconhece que, mesmo no âmbito puramente material, há processos indeterministas, que não seguem esse padrão de previsibilidade estrita. Nesses casos, as noções de causa e efeito continuam aplicáveis, embora em sentido ampliado: as causas não determinam os efeitos individualmente, mas apenas as probabilidades de sua ocorrência.

Ao considerarmos os eventos em que participam seres humanos, fatores novos intervêm, devido à presença do elemento espiritual dotado de livre-arbítrio. Esses eventos em geral também não são passíveis de uma descrição determinista.

Todavia, enquanto encarnados estamos em associação estreita com a matéria, sendo possível que o encadeamento estrito de alguns eventos materiais nos afete de modo direto ou indireto. Por exemplo, vários processos físicos, químicos e biológicos do corpo humano são, em boa aproximação, deterministas. A passagem de uma corrente elétrica intensa através do corpo provoca choques; a ingestão de determinada porção de uma substância venenosa causa a morte; doses apropriadas de radiação gama destroem tumores, enquanto que doses muito elevadas os ocasionam; a transpiração resfria a pele; e assim por diante.

Desse modo, na medida em que participamos do mundo material há certos acontecimentos que se podem dizer predeterminados em nossas vidas. O que os predetermina, porém, são leis físicas, químicas, biológicas, na presença de certas causas.

É indispensável observar que muitas dessas causas decorrem, a seu turno, de ações que livremente praticamos. No caso da ingestão do veneno, por exemplo, pode-se dizer que a pessoa fatalmente morrerá. A predeterminação da morte, todavia, é condicionada à prévia ingestão da substância tóxica, o que em geral depende da livre decisão de alguém. A morte não está predeterminada em termos absolutos: se o veneno não for ingerido, ou se for administrado um antídoto eficaz, ela não advirá.

Tudo isso é do escopo das ciências acadêmicas. O Espiritismo complementa-as de forma substancial, fornecendo o conhecimento de inúmeros e importantes outrosvínculos causais entre os acontecimentos. Por sua própria concepção, tais ciências restringem sua análise ao aspecto material do ser

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humano. Não podem, assim, acompanhar os efeitos das ações humanas além da morte corporal, nem identificar causas e efeitos de natureza espiritual, presentes, por exemplo, em fenômenos mediúnicos, obsessivos e anímicos. Foi a ciência espírita que, pioneiramente, adentrou esse estudo utilizando-se de metodologia racional-experimental.{nota 3}

É nesse sentido que muitos autores espíritas costumam referir-se à chamada lei de causa e efeito, ou de ação e reação, que regula as ocorrências da vida, em um sentido amplo, englobando os eventos referentes ao ser espiritual. A lei de causalidade restrita ao domínio da matéria, que as ciências ordinárias estudam, pode ser entendida como caso especial dessa lei mais ampla.

4. Livre-arbítrio e relação de causa e efeito

Cada evento tem uma causa, em geral bastante complexa, envolvendo múltiplos eventos anteriores, próximos ou remotos no espaço e no tempo. Todos esses fatores têm de estar presentes para que o acontecimento se verifique. Voltando ao exemplo da maçã, para ela cair em tantos segundos e com tal velocidade uma série de condições têm de ser satisfeitas: força de atração, desprendimento da macieira, ar com uma certa viscosidade etc. É o conjunto dessas condições que, mais apropriadamente, se deve entender como a causa da queda, embora nas situações ordinárias se fixe a atenção em apenas algumas delas, por conveniência ou dificuldade de conhecê-las todas. A pergunta "Por que a maçã caiu desse modo?" pede a especificação de uma causa. Dependendo do interesse, a resposta enfocará um determinado componente da causa total: um dirá que foi porque a Terra a atraiu; outro, que foi porque se soltou do galho; outro ainda porque ventou forte, todos podendo estar certos.

Os acontecimentos de que diretamente participamos são passíveis de análise semelhante, ou seja, podemos investigar suas causas gerais ou particulares. Meu dedo se queimou porque o encostei numa uma panela quente; meu ritmo cardíaco aumentou agora porque acabo de correr; fiquei sonolento esta tarde porque me alimentei excessivamente no almoço. Nessas respostas, apenas os fatores mais salientes das causas foram apontados. As causas são, nesses casos, mais ou menos próximas no tempo, e dependem de escolhas que livremente fizemos: pegar a panela sem luvas, correr ao invés de andar, comer demais.

O Espiritismo mostra-nos que se as causas dos acontecimentos mais importantes de nossas vidas, felizes ou dolorosos, não puderem ser localizadas na vida presente, certamente existirão em passado anterior ao nosso renascimento. Os efeitos de nossos atos, conformes ou contrários à lei que vela pela harmonia do Universo, podem ser imediatos ou ocorrer em futuro

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mais ou menos distante. É isso, incidentalmente, que possibilita entender muitas das disparidades nas condições físicas, sociais etc., dos seres humanos dentro do quadro da justiça divina. Cada pessoa encontra-se num contexto parcialmente determinado pelo conjunto de suas ações desta vida, das vidas anteriores e dos períodos na erraticidade, sempre levadas em conta suas necessidades expiatórias, provacionais e de aprendizado de um modo geral.

A possibilidade de interferirmos no curso dos acontecimentos, agravando ou atenuando os efeitos ruins, promovendo ou embaraçando os efeitos bons, encontra-se claramente expressa na questão 860 de O Livro dos Espíritos, que agora transcrevemos em parte: {nota 4}

Pode o homem, pela sua vontade e por seus atos, fazer que se não dêem acontecimentos que deveriam verificar-se e reciprocamente?

"Pode-o, se essa aparente mudança na ordem dos acontecimentos tiver cabimento na seqüência da vida que ele escolheu. [...]"

Todas as nossas ações, por insignificantes que sejam, fazem-se acompanhar de certos efeitos, que se vão superpondo uns aos outros. Em cada momento, vivemos em meio a esse conjunto de efeitos. A importância prática de adquirirmos conhecimento acerca das leis que regem a matéria e o espírito reside em que, sabendo melhor quais serão os efeitos daquilo que fizermos, poderemos agir de modo a criar situações que nos aproximem da felicidade. Somos, por assim dizer, os construtores de nossos próprios destinos.

5. Programação da existência corporal

Boa parte das questões que formam a seção sobre a fatalidade de O Livro dos Espíritos referem-se direta ou indiretamente à questão da programação da existência corporal. Essa programação enquadra-se no princípio geral que estamos analisando. Na medida em que o ser amadurece espiritualmente, tornando-se mais consciente, poderá avaliar por si próprio as principais ações praticadas e, no estado de erraticidade, planificar certos aspectos de sua futura encarnação, freqüentemente auxiliado por Espíritos amigos. Assim é que, por exemplo, seu corpo, seu meio social, os componentes de seu grupo familiar poderão, em certa medida, ser objeto de escolha, com vistas às suas necessidades evolutivas.

Levando porém em conta que entre a época da programação e a da ocorrência programada os seres envolvidos continuarão agindo, criando novos efeitos que se juntarão aos anteriores, o fato poderá ser parcialmente alterado. Conforme assinala Allan Kardec no item 872, os detalhes dos acontecimentos dependem de circunstâncias que o próprio homem encarnado cria pelos seus atos.

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Na resposta à questão 861 encontramos uma importante distinção, quanto à fatalidade, entre os acontecimentos materiais e os de ordem moral (espiritual):

"Demais, sempre confundis duas coisas muito distintas: os sucessos materiais da vida e os atos da vida moral. Se há, às vezes, fatalidade, é nos acontecimentos materiais cuja causa reside fora de vós e que independem da vossa vontade. Quanto aos atos da vida moral, esses emanam sempre do próprio homem que, por conseguinte, tem sempre a liberdade de escolher. No tocante, pois, a esses atos, nunca há fatalidade."

Podemos entender melhor esse ponto se considerarmos o fato, anteriormente apontado, de que somente a matéria, por ser inanimada e passiva, pode estar sujeita a um preordenamento preciso. Já os nossos atos, estes subordinam-se em cada instante à nossa vontade livre. Assim, um corpo malformado ou perfeito, uma doença grave ou sua cura, uma queda mortal, poderão ser fatais, no sentido mais estrito do termo. Mas um assassinato, uma difamação, uma reconciliação, uma doação caritativa nunca serão fatais. Note-se que isso vale para todas as partes envolvidas, mesmo as que ocupam a posição de vítimas. Ninguém pode renascer para ser alvo de difamação ou assassinato, porque isso exigiria que alguém renascesse para difamar ou assassinar, o que é claramente absurdo.

É por isso que a resposta da questão 851 adverte que a fatalidade só pode existir com relação às provas físicas (como certas doenças e acidentes que se não conseguem evitar), nunca porém com relação às provas morais (como as traições, os desgostos com o comportamento de entes queridos, as humilhações).

6. Previsão do futuro

O problema controverso da previsão do futuro também se elucida quando se compreendem corretamente as leis que correlacionam os eventos de nossas vidas. O futuro será, em princípio, previsível somente na medida em que se tenha acesso completo e seguro às causas dos eventos, e as leis que os correlacionem forem de tipo determinista. Dissemos em princípio porque, mesmo conhecendo completamente as causas e sendo as leis deterministas, faz-se ainda mister efetuar as deduções dos efeitos, o que em geral está fora de nossa capacidade prática.

Ora, no que toca aos acontecimentos não-triviais das vidas dos homens, ordinariamente nenhuma dessas três condições é satisfeita. Não conhecemos a totalidade das causas; não há encadeamento determinista dos eventos (devido à presença do livre-arbítrio); e, mesmo que houvesse, não seríamos efetivamente capazes de deduzir os efeitos das causas, dada a complexidade extrema das situações típicas.

Disso se conclui que, a não ser em condições muito especiais e limitadas, dentro do domínio exclusivamente material, o futuro é indeterminado e

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imprevisível. (Para maiores detalhes sobre esse assunto, consulte-se Chagas 1996.)

7. Aspectos morais

Com o esclarecimento racional fornecido pelo Espiritismo, as questões da fatalidade e do destino perdem o caráter místico com que freqüentemente são revestidas. Nada do que nos sucede é questão de sorte ou azar. Vemos que são quiméricas as idéias de que ocorrências de nossas vidas são influenciadas pelos astros, pelos nomes, pelos números e outros fatores externos semelhantes, que não encontram lugar na lei de causa e efeito e na justiça divina.

O mal que nos acontece, acontece na hora certa, na medida certa, porém como conseqüência de ações más livremente praticadas, nesta vida ou em vidas anteriores. Igualmente, as situações felizes que vivemos não são obra de puro acaso, mas foram preparadas por nós mesmos quando agimos de acordo com as recomendações evangélicas, ou seja, quando fazemos o bem.

Não há um destino transcendente, que nos arraste em seu turbilhão, independentemente do que sejamos ou façamos.{nota 5} O destino que existe é aquele que nós mesmos construímos, e que podemos ir modificando a cada momento, no quadro das leis naturais que regem o mundo. Esse ponto é expresso de forma muito feliz por Emmanuel no capítulo "Fatalidade e livre-arbítrio" do livro Nascer e Renascer, do qual destacamos os seguintes trechos:

É por isso que fatalidade e livre-arbítrio coexistem nos mínimos ângulos de nossa jornada planetária.

Geramos causas de dor ou alegria, de saúde ou enfermidade em vários momentos de nossa vida.

O mapa de regeneração volta conosco ao mundo, consoante as responsabilidades por nós mesmos assumidas no pretérito remoto e próximo; contudo o modo pelo qual nos desvencilhamos dos efeitos de nossas próprias obras facilita ou dificulta a nossa marcha redentora na estrada que o mundo oferece.

Importa notar ainda que as leis naturais, ou divinas, têm por objetivo último o bem da criatura. É fácil perceber, por exemplo, que as dores físicas conseqüentes a algumas de nossas ações visam à preservação de nosso corpo. Assim, se não sentíssemos dor ao tocar um objeto quente, não o soltaríamos imediatamente, resultando daí lesões graves em nossa mão. De igual modo, as dores morais, e mesmo certas dores físicas sem causa imediata, objetivam à nossa educação espiritual. Ajudam-nos a ver que, com nossas ações, interferimos indebitamente na harmonia do Universo, violando as leis de amor que nos devem guiar o comportamento frente aos homens e demais seres da criação.

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Consideremos um exemplo: uma pessoa resolve embriagar-se e, nesse estado, põe-se a dirigir um veículo. Em seu percurso, atropela um pedestre, ferindo-o gravemente. O motorista contrai, nesse instante, um débito para com a lei divina, que lhe será causa de sofrimentos futuros. Cedo ou tarde enfrentará as conseqüências dolorosas de seu ato, tendo ainda que reparar o mal causado ao seu próximo. Mas como Deus não é apenas a suprema justiça, mas também a suprema bondade, o devedor não precisará pagar sua dívida com a mesma "moeda"; poderá, por vontade própria, resolver saldá-la com amor. Eis porque o apóstolo afirmou: "O amor cobre a multidão de pecados" (I Pedro 4: 8), contrapondo-se ao ditado de que "quem com ferro fere, com ferro será ferido".

Para o pedestre, a ocorrência possivelmente representará o efeito de uma dívida anteriormente contraída, de um erro cometido no passado próximo ou distante. Terá sido uma forma bastante dura de aprender e resgatar, determinada pelas necessidades do seu caso particular. Em outros casos, o aprendizado e a expiação de erros semelhantes podem ser alcançados por processos mais brandos, menos dolorosos.

A lei pode ser flexibilizada, porque seu objetivo é sempre educar, nunca punir. Se a criatura já aprendeu a lição, reparou seu erro e está exercendo o amor, não mais precisa continuar sofrendo. Sobre esse ponto, é oportuna a leitura da seção "Código penal da vida futura", do capítulo 7 da primeira parte de O Céu e o Inferno, de Allan Kardec. Vejamos estes trechos:

16o. O arrependimento é o primeiro passo para a melhora; mas só isso não basta, sendo ainda precisas a expiação e a reparação.

Arrependimento, expiação e reparação são as três condições necessárias para apagar os traços de uma falta e suas conseqüências.

O arrependimento suaviza as dores da expiação, ao dar esperança e preparar os caminhos da reabilitação. Contudo, somente a reparação pode anular o efeito, destruindo a causa; o perdão seria uma graça, e não uma anulação.

17o. O arrependimento pode ocorrer em qualquer parte e em qualquer momento; se tardar, o culpado sofrerá por mais tempo.

A expiação consiste nos sofrimentos físicos e morais, que são a conseqüência da falta cometida, verificando-se quer já na vida presente, quer após a morte, na vida espiritual, ou ainda numa nova existência corporal, até que os traços da falta sejam apagados.

A reparação consiste em fazer o bem a quem se haja feito o mal. [...]

A possibilidade do abrandamento das conseqüências dolorosas de nossas ações pelos esforços que façamos nesse sentido é ilustrada em conhecido episódio narrado por Hilário Silva no livro A Vida Escreve (cap. 20, "O merecimento"):

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Saturnino Pereira sofre um acidente na fábrica onde trabalha, vindo a perder o polegar direito. Seus colegas e amigos comentam a injustiça da ocorrência, dada a grande dedicação de Saturnino ao bem de todos. Comparecendo à reunião mediúnica em que colabora regularmente, um benfeitor espiritual espontaneamente lhe esclarece que, em existência anterior, foi poderoso sitiante que, num momento de crueldade, puniu barbaramente um pobre escravo, moendo-lhe o braço direito no engenho. Com o despertar de sua consciência, atrozes remorsos torturaram-no no além-túmulo. Deliberou então impor-se rigoroso aprendizado, programando um acidente para a futura encarnação, no qual perderia o braço. No entanto, sua renovação para o bem, testemunhada por suas ações, possibilitou que o acidente apenas lhe ocasionasse a perda de um dedo.

Notas

1. Algumas idéias deste texto foram motivadas por palestra proferida por José Carlos Angelo Cintra no âmbito da II Semana Espírita da Unicamp, promovida pelo Grupo de Estudos Espíritas da Unicamp, em

outubro de 1995. [volta]

2. Algumas propostas têm-se difundido nos círculos leigos, misturando referências esparsas à física contemporânea com idéias religiosas, místicas etc. No entanto, uma análise autorizada e isenta revela que são prematuras e pouco rigorosas. O que estamos afirmando no texto não deve ser entendido como uma aprovação, ou mesmo um incentivo a trabalhos dessa natureza. Estamos apenas salientando que a visão da matéria fornecida pela ciência de hoje não representa mais um obstáculo à concepção espírita do homem como um ser dotado de livre-arbítrio. Sobre esse ponto, ver os artigos Xavier Jr. 1995, Chagas 1995 e

Chibeni 1984. [volta]

3. Sobre a ciência espírita e suas relações com a ciência acadêmica, consultem-se Borges de Souza 1986, Chagas 1984, 1987 e 1994, Chibeni 1988, 1991 e 1994, bem como os trabalhos citados na nota

2. [volta]

4. Nesta e demais citações de obras de Allan Kardec, utilizamos os textos originais, aproveitando em

grande parte as traduções publicadas pela Federação Espírita Brasileira. [volta]

5. Diante de certas ocorrências trágicas, é comum ouvir-se dizer que "tinham que acontecer", que "estavam escritas". Essa opinião, que o Espiritismo mostra incorreta quando generalizada, é analisada de

forma interessante em Simonetti 1996. [volta]

Referências

BORGES DE SOUZA, J. "Pesquisas e métodos", Reformador, abril de 1986, pp. 99-101.

CHAGAS, A. P. "O que é a ciência", Reformador, março de 1984, pp. 80-83 e 93-95.

-----. "As provas científicas", Reformador, agosto de 1987, pp. 232-33.

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-----. "A Ciência confirma o Espiritismo?" Reformador, julho de 1995, pp. 208-11.

-----. "O Espiritismo na Academia?" Revista Internacional de Espiritismo, fevereiro de 1994, pp. 20-22 e março de 1994, p. 41-43.

-----. Sobre a previsão do futuro. Revista Internacional de Espiritismo, maio de 1996, pp. 124-25.

CHIBENI, S.S. "Espiritismo e ciência", Reformador, maio de 1984, pp. 144-47 e 157-59.

-----. "A excelência metodológica do Espiritismo", Reformador, novembro de 1988, pp. 328-33, e dezembro de 1988, pp. 373-78.

-----. "Ciência espírita", Revista Internacional de Espiritismo, março de 1991, pp. 45-52.

-----. "O paradigma espírita", Reformador, junho de 1994, pp. 176-80.

EMMANUEL. "Fatalidade e livre-arbítrio" (Psicografia de F. C. Xavier.). In: Nascer e Renascer. São Bernardo do Campo, GEEM, 1982.

KARDEC, A. Le Livre des Esprits. Paris, Dervy-Livres, s.d. (dépôt légal 1985). O Livro dos Espíritos. Trad. Guillon Ribeiro, 64a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s.d.

-----.Le Ciel et l'Enfer. Farciennes, Editions de l'Union Spirite, 1951. O Céu e o Inferno. Trad. Manuel Quintão, 28a ed., Rio de Janeiro, Federação Espíria Brasileira, s.d.

SILVA, H. A Vida Escreve. (Psicografia de F. C. Xavier e Waldo Vieira.) 5a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, 1960.

SIMONETTI, R. "Tinha que acontecer?", Reformador, maio de 1996, pp. 138-39.

XAVIER JR., A. L. "Algumas considerações oportunas sobre a relação Espiritismo-Ciência", Reformador, agosto de 1995, pp. 244-46.

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(Artigo publicado em Reformador, abril de 1998, pp. 112-15 e 125-7.)

AS PAIXÕES: UMA BREVE ANÁLISE

FILOSÓFICA E ESPÍRITA 1

SILVIO SENO CHIBENI

Resumo:

Neste trabalho desenvolve-se um estudo das paixões da alma com base na seção intitulada “Paixões” do capítulo “Da perfeição moral” de O Livro dos Espíritos, bem como em tópicos da obra de René Descartes As Paixões da Alma.

1. Introdução

Abrindo a seção sobre as paixões de O Livro dos Espíritos, Allan Kardec pergunta: 2

907. Será intrinsecamente mau o princípio originário das paixões, embora esteja na Natureza?

Antes de analisarmos a resposta dos Espíritos, detenhamo-nos um pouco sobre a própria questão.

O primeiro ponto a ser notado é que Kardec indaga acerca do princípio originário das paixões, e não delas próprias, ou seja, procura esclarecimento sobre a origem, a fonte de onde promanam as paixões.

A segunda observação importante é que há, na pergunta, uma afirmação categórica: esse princípio do qual provêm as paixões está na Natureza, isto é, faz parte da ordem natural das coisas.

Ora, o conceito ordinário de paixão, adotado pelo homem comum, traz consigo uma conotação negativa evidente: associa-se paixão a desequilíbrio, tumulto emocional ou desvios patológicos do sentimento, sendo mesmo freqüente ouvir-se frases como ‘Isto não é amor, é paixão’, ou ‘Fulano está cego de paixão’.

A questão proposta por Kardec motiva-se exatamente pelo conflito entre essa acepção vulgar do termo ‘paixão’ e a análise filosófica das paixões (de que trataremos na seção seguinte), que indica serem elas provenientes de causas naturais. Considerando que tudo aquilo que pertence à ordem natural obedece a uma sabedoria e a uma bondade supremas, tendo, em outras palavras, sido instituído por Deus, como poderia essa fonte sábia e boa levar, em última instância, a sentimentos intrinsecamente maus?

Vejamos o que respondem os Espíritos:

1 Gostaria de agradecer a Márcio Corrêa, Cosme Massi e Matthieu Tubino pelos comentários feitos a versões preliminares deste trabalho. 2 Nesta e demais citações do Livro dos Espíritos utilizamos o texto original, aproveitando em grande parte a tradução de Guillon Ribeiro, publicada pela Federação Espírita Brasileira.

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2

“Não, a paixão está no excesso de que se acresceu a vontade, visto que o princípio que lhe dá origem foi posto no homem para o bem, tanto que as paixões podem levá-lo à realização de grandes coisas. O abuso que delas se faz é que causa o mal.”

A resposta corrobora, portanto, aquilo que está implícito na afirmação de Kardec: o princípio originário das paixões é bom, tendo sido “posto no homem para o bem”. O mal que vulgarmente se associa às paixões é o resultado de uma distorção do sentimento original. Do contexto é justo depreender que essa distorção corre por conta do livre arbítrio humano na condução de seus sentimentos, não podendo ser imputada à fonte natural e neutra de onde provêm.

Na questão seguinte, de número 908, Kardec indaga como se pode “determinar o limite onde as paixões deixam de ser boas para se tornarem más”, obtendo esta resposta:

“As paixões são como um corcel, que só tem utilidade quando governado e que se torna perigoso desde que passe a governar. Uma paixão se torna perigosa a partir do momento em que deixais de poder governá-la e que dá em resultado um prejuízo qualquer para vós mesmos, ou para outrem.”

Vemos, pois, que o limite natural das paixões se estabelece com base em dois critérios: 1) a capacidade de seu controle; e, 2) os males que possam causar a terceiros ou àquele próprio que as vivencia.

2. A natureza das paixões

Inegavelmente, dada a ordinária carga negativa associada ao conceito de paixão, a afirmativa de Kardec e dos Espíritos de que a fonte original das paixões é boa tende a causar estranheza na maioria das pessoas. Por tal motivo julgamos importante fazer uma incursão, ainda que breve e simplificada, nos domínios da filosofia, que tem as paixões como um de seus temas mais discutidos. Os fundamentos dessa afirmativa serão, desse modo, elucidados.

Como ocorre com boa parte dos vocábulos das línguas naturais, a palavra ‘paixão’ comporta diversos significados. Na acepção popular em nossos dias, ela designa certos sentimentos fortes, exacerbados, tumultuados, que em geral se associam à afeição votada a pessoas e mesmo a coisas e atividades: ‘Matou-se por paixão’, ‘É apaixonado por carros’, ‘Tem paixão pelo futebol’.

Do ponto de vista filosófico, porém, o termo ‘paixão’ possui significados mais amplos e neutros quanto ao bem e ao mal. Em seu significado etimológico, paixão se contrapõe a ação. Isso fica mais claro nas línguas inglesa e francesa, em que esses vocábulos, passion e action, estão mais próximos de sua origem latina. Ação atuar, agir; paixão sofrer a ação, recebê-la passivamente.

Nesse sentido básico, e hoje em dia em desuso, poder-se-ia dizer que ação e paixão são como as faces de uma mesma moeda. Sempre que algo age, alguma outra coisa sofre paixão. Eu bato na mesa ação; a mesa recebe a pancada paixão. O mesmo fenômeno que para mim é ação, para a mesa é paixão.

Aqui estamos interessados não em coisas em geral, mas no ser humano, que pode, ele também, agir e sofrer paixão. Nesse caso, porém, o conceito de paixão se tornará mais específico, como veremos.

Na visão de homem estabelecida pelo Espiritismo, ele é um ser dual, composto de corpo (matéria) e alma (espírito). Embora remonte à Antigüidade, essa visão dualista tornou-se

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proeminente na filosofia a partir da contribuição de René Descartes (1596-1650). Um dos maiores filósofos e cientistas de todos os tempos, Descartes foi o principal responsável pela inauguração da filosofia moderna, renovando amplamente as teorias e conceitos filosóficos anteriores. Esteve ainda entre os criadores da ciência moderna, ao lado de Galileo e Newton, Boyle e Huygens, entre outros.

Em sua doutrina, o sábio francês dissociou da alma a função de mantenedora da vida orgânica, tomando-a unicamente como o ser pensante, independente da matéria. Uma análise cuidadosa revela muitos pontos comuns entre as visões espírita e cartesiana do homem. Não podemos adentrar esse vasto e difícil assunto neste pequeno texto. Iremos apenas destacar alguns elementos mais diretamente ligados à questão das paixões. O último livro de Descartes publicado durante sua vida trata especificamente das paixões, intitulando-se justamente As Paixões da Alma (Les Passions de l’Âme, 1649). Essa obra exerceu grande influência no futuro das discussões filosóficas acerca das paixões, só sendo rivalizado, no século seguinte, pelas obras do grande filósofo escocês David Hume (1711-1776), escritas dentro de perspectiva filosófica bastante diversa.

Dadas as grandes transformações por que passou a física em nosso século, não é possível expressar em linguagem ordinária como a ciência contemporânea caracteriza a matéria. Na concepção cartesiana, que prevaleceu e influenciou profundamente toda a ciência por quase trezentos anos, matéria é a substância extensa, com forma e movimento, que preenche todo o universo e atua exclusivamente por forças mecânicas de contato. No nível dos objetos com que lidamos enquanto homens comuns, podemos pensar na matéria aproximadamente ao longo dessas linhas, mas apenas para fixar idéias, conscientes de que essas noções não mais bastam às novas teorias físicas.

Quanto ao espírito, para Descartes ele era, como já indicamos, a substância pensante, a sede do pensamento, da vontade e dos sentimentos. Ao contrário de sua concepção de matéria, essa idéia de espírito mostra-se perfeitamente adaptável ao que conhecemos hoje, não mais pelas ciências acadêmicas, que por sua natureza não se ocupam com isso, mas pela ciência espírita, inaugurada por Allan Kardec.3

Podemos, para os nossos propósitos aqui, considerar a alma ou espírito como tendo três “ faculdades” (termo de Descartes):

1) vontade;

2) pensamento;

3) percepção.

A vontade se exerce quando a alma quer algo; o pensamento, quando ela raciocina, duvida, compara, abstrai etc. Pensamento e vontade assim definidos são, por assim dizer, as “dimensões” ativas da alma. A percepção seria, por outro lado, sua dimensão passiva. Isso fica mais claro quando enumeramos as formas gerais dessa percepção:

a) sensações dos corpos (formas, solidez, cores, sons etc.);

b) percepções das operações da própria alma (percepção de que está raciocinando, duvidando, querendo, imaginando, sentindo etc.); e

3 Sobre a ciência espírita, ver nossos artigos “O paradigma espírita” e “A excelência metodológica do Espiritismo”, bem como as referências neles contidas.

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c) sentimentos (amor, ódio, tristeza, alegria etc.)

Em um sentido filosófico um pouco mais específico do que aquele já apontado, ligado à etimologia do termo ‘paixão’, todos esses três tipos de percepção poderiam ser ditos (e o são por Descartes) paixões da alma, porque ao contrário dos atos volitivos e intelectuais, acontecem passivamente à alma quando ela se encontra em determinadas situações. Quando o corpo a que está associada tem seus sentidos despertos e em bom funcionamento, postos em contato com uma vela acesa, por exemplo, a alma sentirá, quer queira, quer não, uma certa forma, uma certa luz, uma certo calor (sensações). Quando a alma se auto-examina, ou, em linguagem filosófica, reflete, introspecta, não pode deixar de perceber que está raciocinando, ou duvidando, ou querendo algo, se de fato estiver (percepções das operações da alma). Por fim, diante de um gesto amigo ou de um carinho, sentirá a alma o amor; diante de uma ofensa, poderá sentir ódio ou mágoa; recebendo uma boa notícia, perceberá sua alegria, e assim por diante (sentimentos).

Chegamos, finalmente, ao ponto pretendido. Em seu sentido filosófico mais estrito a palavra ‘paixão’ denota exatamente esta última modalidade de percepções da alma: sentimentos como o amor e o ódio, a alegria e a tristeza, a admiração e o desejo.

Descartes considerava que as seis paixões que acabamos de enumerar eram básicas, enquanto que as demais, tais como o orgulho e a humildade, a veneração e o desdém, a esperança e o desespero, o medo e a coragem, a vergonha e a cólera, o remorso e a piedade seriam derivadas das paixões fundamentais por combinações e variações.

Não haveria espaço para explicar ou reproduzir aqui a complexa teoria cartesiana das paixões. Tampouco nos deteremos sobre a interessante análise que faz de cada paixão em particular, análise que ocupa boa parte do livro As Paixões da Alma. Ressaltaremos, entretanto, alguns pontos que podem contribuir para a nossa compreensão da natureza desses sentimentos.

No referido livro, assim como em outras obras, Descartes elabora detalhada teoria fisiológica que, embora hoje em dia possa parecer tosca e quimérica em muitos aspectos, representou um trabalho pioneiro, exercendo significativa influência no posterior desenvolvimento da ciência biológica.

A teoria cartesiana descrevia o corpo humano, como aliás todo universo material, em termos de um conjunto incrivelmente complexo de corpúsculos que agem sob leis mecânicas, leis que o próprio Descartes havia deduzido de pressupostos racionalistas na obra Os Princípios da Filosofia, de 1644. Ele foi um dos primeiros cientistas a reconhecer a teoria da circulação do sangue, proposta por William Harvey no início do século XVII. Descartes mantinha (de forma não totalmente original) que no sangue havia certos corpúsculos materiais extremamente pequenos e móveis, chamados espíritos animais. Não obstante o nome, não se tratava de modo algum de espíritos no sentido de seres inteligentes, mas de matéria pura e simples. Essas partículas diminutas eram como que “filtradas” nos “poros” do cérebro, passando a percorrer os nervos. O fluxo dos espíritos animais no sistema nervoso é a chave para explicar, na teoria cartesiana, fenômenos fisiológicos e psico-fisiológicos fundamentais, como o funcionamento dos sentidos, as motricidades voluntária e involuntária, e as próprias paixões da alma. Embora as paixões sejam percepções da alma, tinham, segundo essa teoria, uma contraparte fisiológica essencial. Infelizmente não poderemos fornecer detalhes aqui.

Abrimos um parêntese para mencionar um aspecto da teoria psico-fisiológica de Descartes que chama a atenção de pesquisadores espíritas: o papel central atribuído à glândula pineal, ou epífise,

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situada na base do cérebro. Até bem recentemente, a ciência acadêmica considerava que essa glândula não exercia nenhuma função relevante no homem adulto, julgando, pois, errônea a teoria de Descartes. No entanto, descobertas recentes vêm levando uma revisão dessa posição; a pineal parece ter determinante influência no controle de outras glândulas importantes, e portanto em toda a economia orgânica. Décadas antes que se começasse a perceber isso nos círculos oficiais, o cientista espírita desencarnado André Luiz recuperou e desenvolveu os elementos aproveitáveis da teoria cartesiana. Ambos, Descartes e André Luiz, atribuem à pineal o papel mais importante na ligação alma-corpo; seria, nas palavras do primeiro deles, como que a “principal sede da alma”, o lugar do mundo orgânico onde a alma “exerce imediatamente suas funções” (As Paixões da Alma, § 32).

Voltando à análise do conceito restrito de paixão, enfatizemos que ele preserva o elemento essencial da noção abrangente: a passividade. Amor, ódio, alegria, tristeza e demais paixões são algo que “se apodera” de nós de forma involuntária: pelo menos na sua gênese imediata não temos nenhuma participação voluntária. Embora Descartes não se tenha servido desta expressão, poderíamos dizer, simplificadamente, que para ele as paixões eram o resultado de uma espécie de automatismo psico-fisiológico. Na esfera fisiológica, esse automatismo envolvia, de forma essencial, o fluxo dos espíritos animais e sua interação com a pineal; na mente, manifestava-se como as percepções de amor, ódio etc., que cada homem sabe o que são por experiência direta.

Desnecessário notar que a ciência contemporânea não mais utiliza a noção de espíritos animais. No entanto, temos aqui mais um caso típico da história da ciência em que, embora rejeitados pela evolução da ciência, conceitos e teorias do passado aparecem ainda, embora bastante modificados, refinados e complementados, nas teorias mais recentes. A idéia geral de que algo percorre os nervos, trazendo as informações sensoriais para o encéfalo e conduzindo para os órgãos motores os impulsos nele originados mostrou-se fecunda e sustentável, estando presente na teorias científicas contemporâneas, que descrevem esse algo em termos de correntes elétricas.

Também a associação das paixões a um certo automatismo pode ser mantida até hoje. Estendendo de maneira profunda e segura a investigação do ser humano, o Espiritismo modificou e complementou a descrição desse automatismo, que deixa de estar centrado na estrutura fisiológica, residindo antes no próprio espírito, em sua existência que antecede e sucede à do corpo denso, com possíveis influências também do seu envoltório perispiritual. Assim é que se constata por observação direta que os Espíritos desencarnados continuam tendo sentimentos aparentemente semelhantes às nossas paixões. Isso indica que a causa imediata das paixões não se pode reduzir a processos referentes ao corpo denso, como achava Descartes. O fato de que diante de determinados estímulos externos ou internos a alma é automaticamente objeto daqueles sentimentos que chamamos paixões deve-se a uma faculdade inerente à própria alma, que tem uma razão de ser providencial, conforme vimos na introdução deste trabalho. (Retomaremos esse tópico mais adiante.)

Detenhamo-nos agora sobre as causas mediatas ou primeiras das paixões. Estas eram por Descartes classificadas em três grupos (As Paixões da Alma, § 51):

i) os objetos dos sentidos: alguém escuta uma boa notícia e sente alegria; vê uma criança sendo maltratada e sente indignação ou cólera; cheira fumaça e sente medo de incêndio;

ii) as ações da alma: alguém pensa em suas qualidades e sente orgulho ou humildade; duvida da sinceridade de um amigo e sente tristeza; imagina os efeitos de uma tragédia e sente pena dos envolvidos;

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iii) o “temperamento do corpo” e as “impressões que se encontram fortuitamente no cérebro”. São desse tipo, por exemplo, as paixões que temos “quando nos sentimos tristes ou alegres sem que possamos dizer o motivo”.

Este último item enseja aos pesquisadores espíritas outra oportunidade de complementar o que afirmou Descartes. Pelas investigações científicas dos fenômenos espíritas, conhecemos inúmeros fatos e leis da realidade espiritual que o filósofo aparentemente ignorava. É indubitável que alterações diversas do corpo, especialmente do sistema nervoso, podem de fato fazer surgir sentimentos ou paixões na alma. No entanto, sabemos que em muitas ocasiões em que não encontramos sua causa última naquilo que explicitamente observamos, quer no mundo exterior e em nossos corpos, quer em nossa alma, podem dever-se a fatores espirituais, tais como as vivências no mundo espiritual durante o sono, as influências obsessivas e telepáticas de um modo geral, ou a emersão parcial de nosso pretérito remoto.

3. O controle das paixões

Chegamos agora a um ponto saliente do estudo das paixões, enfatizado na seção de O Livro dos Espíritos que estamos analisando, e que recebeu também grande atenção da parte de Descartes: a questão de seu controle, domínio ou governo. Dada a própria conceituação de paixão, ou seja, de algo que acontece involuntariamente em nossa alma, uma impressão preliminar poderia ser a de que as paixões escapam, por sua própria natureza, a toda possibilidade de controle voluntário. No entanto, o assunto é complexo, e exige exame mais detido. Comecemos transcrevendo o item 909 de O Livro dos Espíritos:

909. Poderia sempre o homem, pelos seus esforços, vencer as suas más inclinações?

“Sim, e, por vezes, fazendo esforços pequenos. O que lhe falta é a vontade. Ah! quão poucos dentre vós fazem esforços!”

Embora não se fale aqui explicitamente em paixões, está claro a partir do contexto que as referidas “más inclinações” estão associadas ao desvirtuamento dos sentimentos naturais que estão na origem das paixões. Temos, por exemplo, uma tendência que parece natural, maior ou menor conforme a pessoa, de sentir orgulho quando nos elogiam, mágoa quando nos ofendem, inveja quando vemos alguém possuir aquilo que queríamos para nós próprios. Nos itens 910 e 911 a referência às paixões se torna explícita. No primeiro deles assevera-se que os bons Espíritos podem nos auxiliar a vencer as más paixões, pois que “é essa a missão deles.” O segundo vai agora transcrito em sua íntegra:

911. Não haverá paixões tão vivas e irresistíveis, que a vontade seja impotente para dominá-las?

“Há muitas pessoas que dizem: Quero, mas a vontade só lhes está nos lábios. Querem, porém muito satisfeitas ficam que não seja como “querem”. Quando o homem crê que não pode vencer as suas paixões, é que seu Espírito se compraz nelas, em conseqüência de sua inferioridade. Compreende a sua natureza espiritual aquele que as procura reprimir. Vencê-las é, para ele, uma vitória do Espírito sobre a matéria.”

Repare-se que nessas passagens o conceito de paixão está sendo restringido ao seu uso mais ordinário, de algo com conotação negativa, que requer controle ou superação. Isso não implica que devamos dissociá-lo de sua significação filosófica original, esboçada na seção precedente. Tudo o

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que nela foi visto aplica-se também aqui, onde se trata de paixões particulares, aquelas que redundam em um mal qualquer para algo ou alguém.

Feitas essas ressalvas, retomemos o cerne desses três quesitos de O Livro dos Espíritos. Neles se afirma resolutamente que as paixões negativas podem ser controladas pela vontade. Como fica então a conclusão a que havíamos chegado pela análise filosófica de que as paixões são aparentemente incontroláveis? Veremos agora que esse é um conflito apenas aparente, que se dissolve diante de um exame mais acurado. Descartes empreendeu ele próprio esse exame, e podemos aproveitá-lo quase que integralmente aqui, com as necessárias simplificações. Esses estudos de grande beleza e profundidade encontram-se principalmente nos parágrafos 44 a 50, e 137 a 148 de As Paixões da Alma.

Iniciemos pelo parágrafo 46. Quando sofremos uma paixão qualquer, embora seu afloramento seja espontâneo, involuntário, dado o automatismo que opera em nós, podemos, por nossa vontade,

não consentir em seus efeitos e reter muitos dos movimentos aos quais ela dispõe o corpo. Por exemplo, se a cólera faz levantar a mão para bater, a vontade pode comumente retê-la; se o medo incita as pernas a fugir, a vontade pode detê-las, e assim por diante. 4

Eis, portanto, uma constatação simples, porém altamente relevante para o controle das paixões: sustar os seus efeitos maléficos sobre as coisas e pessoas. Isso está em nosso poder, desde que tenhamos vontade firme e discernimento moral para reconhecer quais os efeitos bons e quais os ruins. (Abordaremos o assunto do senso moral na próxima seção.)

No entanto, ainda que exercida eficazmente essa limitação das manifestações externas das más paixões resta o fato de que elas continuam existindo enquanto fenômenos de nosso mundo íntimo, ou seja, os sentimentos continuam presentes em nossa alma, prejudicando-nos a paz interior. O que fazer agora?

Descartes enfatiza que a vontade não tem o poder de excitar ou suprimir diretamente as paixões (§ 45). Um pouco de reflexão leva-nos a concordar com ele. Bastará ao orgulhoso simplesmente querer ser humilde? De alguma coisa adiantará ao que está triste dizer para si próprio: ‘Ficarei alegre agora’? Vencerá alguém a mágoa simplesmente desejando alijar-se dela? Parece que não; falta algo além da vontade.

O que seria esse algo não se explicita na seção em exame de O Livro dos Espíritos. A resposta está implícita no conjunto da obra e suas complementações. Um dos méritos do texto de Descartes é justamente o de enfocar o problema de forma quase explícita. (Dissemos quase porque o que exporemos a seguir é fruto de uma elaboração de várias observações e asserções de Descartes.)

O filósofo francês afirma, notemos bem, que não temos controle direto sobre as paixões. Isso não significa que não possamos controlá-las indiretamente, mediante certos artifícios. Consideremos uma útil analogia de que Descartes lança mão no parágrafo 44. Constitui fato patente que há certos movimentos corporais sobre os quais a vontade é incapaz de atuar diretamente, como a abertura ou fechamento das pupilas: ninguém as abre ou fecha voluntariamente. No entanto, podemos facilmente fazê-las se fechar ou abrir indiretamente, voltando nossos olhos para uma região mais clara ou outra mais escura. Sobre os movimentos dos olhos, pálpebras e face temos pleno controle e, explorando o

4 Nesta e demais citações desse livro utilizamos o original francês, aproveitando, quando possível, a tradução brasileira indicada na lista bibliográfica.

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automatismo fisiológico, logramos controlar a abertura das pupilas de forma indireta. As paixões, diz Descartes (§ 45), podem, de forma análoga, ser excitadas ou suprimidas indiretamente

pela representação das coisas que costumam estar unidas às paixões que queremos ter, e que são contrárias às que queremos rejeitar. Assim, para excitarmos em nós a coragem e suprimirmos o medo, não basta ter a vontade de fazê-lo, mas é preciso aplicar-nos a considerar as razões, os objetos ou os exemplos que persuadem de que o perigo não é grande; de que há sempre mais segurança na defesa do que na fuga; de que teremos a glória e a alegria de havermos vencido, ao passo que não poderemos esperar da fuga senão o pesar e a vergonha de termos fugido, e coisas semelhantes.

Como no caso da abertura das pupilas, podemos estudar o automatismo das paixões e colocá-lo a nosso serviço. O exemplo dado por Descartes refere-se à paixão do medo. Tentemos ver como seria no caso da mágoa. Diante de uma ofensa, pode acontecer de ficarmos magoados, quer queiramos ou não. Reconhecendo porém os malefícios desse sentimento, aplicamo-nos em combatê-lo. Para tanto, temos que nos “representar” coisas que sabemos estar unidas ao perdão e que são contrárias à mágoa. Podemos, por exemplo, ponderar que o ofensor é uma pessoa infeliz; que não teve ainda a glória de ascender a um patamar comportamental melhor; que pode ter agido sob o peso de problemas que desconhecemos; que pode não ter encontrado na infância pais devotados e bons que lhe ensinassem a virtude por palavras e atos; que ele colherá frutos amargos de sua ação; que, de nosso lado, havemos de possuir em nosso passado fatores que determinaram a necessidade ou conveniência de enfrentarmos semelhante provação. Examinando as obras espíritas voltadas à orientação moral, é fácil encontrar muitas considerações desse teor. Os bons autores espíritas sabem que a melhoria moral da criatura não é uma questão de prescrições, de proibições, mas de esclarecimento e de substituição de hábitos.

Falamos em hábitos e isso nos conduz a outro tópico da análise cartesiana. Quando recorremos à noção de automatismo para explicar o mecanismo das paixões devemos esclarecer mais sua natureza, se é permanente e inalterável ou não. Pois bem: Descartes sustentava que esse automatismo das paixões (embora, repitamos, não tenha usado essa expressão) podia ser alterado. Essa possibilidade era por ele entendida em termos das associações de pensamentos e movimentos corporais com os fluxos dos espíritos animais. Ele assumia que a Natureza determinava essas associações, mas que podíamos até certo ponto alterá-las “por hábito” (§ 50). Lembra, por comparação, que mesmo os animais podem ter suas reações naturais parcialmente alteradas por condicionamento (como diríamos hoje). O cão, que por uma disposição natural é levado a correr na direção da perdiz para apanhá-la, pode ser treinado para deter-se quando a vê, esperando pelo caçador. E conclui (§ 50):

Ora, essas coisas são úteis de saber para nos encorajar a aprender a regrar nossas paixões. Pois dado que se pode, com um pouco de engenho, mudar os movimentos do cérebro nos animais desprovidos de razão, é evidente que se pode fazê-lo melhor ainda nos homens, e que mesmo aqueles que possuem as almas mais fracas poderiam adquirir um império bem absoluto sobre todas as suas paixões, se empregassem bastante engenho em domá-las e conduzi-las.

Deve estar claro que o “engenho” ou habilidade a que se refere Descartes é precisamente a aludida técnica de a alma “representar” para si as coisas que tendam a diminuir as paixões que quer combater e a incrementar as que lhes são contrárias. Desse modo, novas associações mentais se estabelecem (para ele seriam associações psico-fisiológicas), e as más paixões se vão amainando, até voltarem à sua condição natural e primitiva, incapaz de produzir males. A cólera, por exemplo, iria

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se transmudando em mágoa, e esta depois se reduziria à mera desaprovação, ao mero desagrado, natural e decorrente do próprio senso moral, de que não se pode nem deve abdicar.

4. As paixões e a moral

Até aqui tentamos analisar as paixões dos pontos de vista fisiológico, psicológico e anímico. Utilizamos as noções de paixões boas e más, de efeitos bons e maus, de malefícios e benefícios sem questionar a distinção do bem e do mal. É evidente que para aplicarmo-nos ao controle de nossas paixões é preciso antes saber distinguir o bem do mal. Isso cabe à área da filosofia denominada moral ou ética. Descartes e a maior parte dos grandes filósofos atribuíram grande importância ao estudo da moral, procurando determinar o critério do bem e do mal e os fundamentos nos quais se apóie. Não podemos adentrar esse assunto aqui. Iremos nos ater unicamente a alguns aspectos das relações entre as paixões e a moral, tratados em As Paixões da Alma.

No parágrafo 47, Descartes fornece uma explicação para o fenômeno psicológico do conflito entre aquilo que a alma quer e o que sente como paixão.5 Não se trata, diz Descartes, de um combate entre a “parte inferior” e a “parte superior” da alma, conforme se costuma imaginar. A alma é una, não se concebe que tenha partes. A explicação do fato liga-se àquilo que, em adaptação da terminologia cartesiana, vimos denominando automatismo das paixões. Não desceremos aos detalhes dessa complexa explicação. Notemos apenas que é fácil entender o referido conflito quando se nota que a alma responde às situações, no nível das paixões, segundo reflexos parcialmente incondicionados e parcialmente condicionados, conforme vimos anteriormente. No plano intelectual e moral, porém, essas mesmas situações passam por exames via de regra conscientes e deliberados, podendo daí resultar serem apreendidas de modo diverso. Quando tratamos do controle das paixões estava implícito esse descompasso entre senso moral e paixões, pois o controle só é percebido como necessário quando as paixões não se harmonizam com aquilo que se julga ser correto ou bom.

O parágrafo 48 aborda a questão do esforço que a alma faz para superar esse conflito íntimo. Inspecionemos na íntegra esse interessante parágrafo (os destaques são nossos):

Ora, é pelo desfecho desses combates que cada qual pode conhecer a força ou a fraqueza de sua alma. Pois aqueles cuja vontade pode, naturalmente, com maior facilidade, vencer as paixões e sustar os movimentos do corpo que os acompanham têm, sem dúvida, as almas mais fortes. Há, porém, os que não podem comprovar a própria força porque nunca levam a combate sua vontade juntamente com suas próprias armas, mas apenas com as que lhes fornecem algumas paixões para resistir a algumas outras. O que denomino próprias armas da vontade são os juízos firmes e determinados sobre o conhecimento do bem e do mal, consoante os quais ela resolveu conduzir as ações de sua vida. E as almas mais fracas são aquelas cuja vontade não se decide assim a seguir certos juízos, deixando-se arrastar continuamente pelas paixões presentes, que, sendo muitas vezes contrárias umas às outras, puxam-na sucessivamente cada uma para o seu lado e, fazendo-a combater contra si mesma, colocam-na no estado mais deplorável possível. Assim, por exemplo, quando o medo representa a morte como um extremo mal, que só pode ser evitado pela fuga [do perigo], e a ambição, de outro lado, representa a infâmia dessa fuga como um mal pior que a morte, essas duas paixões agitam diversamente a vontade, que, obedecendo ora a uma, ora a outra, se opõe continuamente a si própria, tornando assim a alma escrava e infeliz.

A “força” da alma é definida com referência à sua vontade. As pessoas de vontade fraca deixam-se simplesmente levar pelas paixões, tão amiúde contrárias umas às outras, do que resulta o

5 Essa tensão já havia aliás sido comentada, em termos diversos, por Paulo no capítulo 7 da Epístola aos Romanos.

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mais deplorável estado de alma. No entanto, só a vontade forte não basta; é necessária a utilização das “armas” da vontade, que são “juízos firmes e determinados sobre o conhecimento do bem e do mal”. Ou seja, a alma precisa saber distinguir de forma segura o bem do mal. Tem de possuir critérios morais sólidos, caso contrário poderá aplicar sua vontade sobre alvos errados, dando combate a paixões boas ou cultivando paixões más, como acontece, por exemplo, com quem alega que a humildade não se coaduna com a dignidade humana, ou que o ciúme é necessário ao amor.

No parágrafo seguinte (49), Descartes observa que “há pouquíssimos homens tão fracos e irresolutos que nada queiram senão o que suas paixões lhes ditam”. Isso, porém, não é tudo:

Há, entretanto, grande diferença entre as resoluções que procedem de alguma falsa opinião e as que se apóiam tão-somente no conhecimento da verdade, visto que se seguirmos estas últimas estaremos certos de não ter jamais do que nos lamentar nem arrepender, ao passo que o teremos sempre, se seguirmos as primeiras, quando lhes descobrimos o erro.

O conhecimento moral é, pois, de capital importância para que a alma alcance o equilíbrio interior, pela indispensável iluminação do processo de controle das paixões. E nesse particular o Espiritismo tem contribuições de alta relevância para fazer. De modo pioneiro na história do pensamento, forneceu à moral um embasamento seguro e objetivo, a partir da análise racional dos fatos da vida humana, vistos de uma perspectiva muito ampliada e detalhada com relação àquelas do materialismo ou das religiões dogmáticas. À luz do conhecimento espírita, o critério do bem e do mal, do certo e do errado, dos deveres e direitos, não é mais uma questão de gosto, de prescrições, de cultura ou de época, nem se funda “em algumas paixões pelas quais a vontade se deixou anteriormente vencer ou seduzir” (ibid., § 49). Resulta, antes, do exame objetivo das conseqüências de nossas ações, com vistas à aproximação gradual da felicidade.6

Para exemplificar o raciocínio, consideremos as paixões do amor e do ódio, da humildade e do orgulho, da piedade e da dureza, da esperança e do desespero, da coragem e do medo. Se perguntarmos quais delas devem ser cultivadas e quais reprimidas, a resposta pressuporá um certo critério moral. Evidentemente existe na humanidade terrena, em seu presente estado evolutivo, uma multiplicidade de critérios morais, capazes de levar a diferentes classificações das paixões enumeradas. Há quem julgue, por exemplo, que a humildade rebaixa a criatura; que a piedade é apanágio das almas frágeis; que a desesperança é a postura correta diante da triste situação do mundo e da natureza humana...

Com sua ética objetiva, o Espiritismo pode pôr termo a tais disparidades de opinião, indicando claramente quais as paixões e atitudes que melhor conduzem o homem à almejada felicidade, concebida em termos amplos e perenes. Na lista que demos, por exemplo, são as primeiras paixões de cada par, nunca as segundas, aquelas que devemos permitir que vicejem em nossas almas.

Ao mesmo tempo em que nos esclarece acerca do bem e do mal, o Espiritismo fornece os meios para podermos executar o controle das “más inclinações”, ao longo das linhas sugeridas por Descartes. Na seção anterior, exemplificamos esse processo no caso da mágoa. Procedendo de modo semelhante com as demais paixões, elas serão reconduzidas ao seu estado de pureza original, conforme se expressa nas questões 907 e 908 de O Livro dos Espíritos. Nos judiciosos comentários que as seguem, Kardec afirma que as paixões “são alavancas que decuplicam as forças do homem e o auxiliam na execução dos desígnios da Providência”. A finalidade boa das paixões é destacada em

6 Para uma análise sucinta desse ponto ver nosso artigo “Os fundamentos da ética espírita”.

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termos equivalentes por Descartes no parágrafo 52 de As Paixões da Alma: “o emprego de todas as paixões consiste apenas no fato de disporem a alma a querer coisas que a Natureza dita serem úteis a nós, e a persistir nessa vontade, assim como a mesma agitação dos espíritos [animais] que costuma causá-las dispõe o corpo aos movimentos que servem à execução dessas coisas”. (Ver também os parágrafos 137 e 138.)

Detenhamo-nos ainda um pouco sobre esse tópico. À primeira vista, é fácil reconhecer que o amor, a coragem e alegria, por exemplo, provêm de princípios bons e concorrem para o nosso bem. No entanto, mesmo essas paixões boas podem ser mal conduzidas e desvirtuadas, levando, respectivamente, ao ciúme, à temeridade e ao estouvamento.

Por outro lado, não é imediata a identificação de origens boas e providenciais das quais paixões como a cólera ou o orgulho possam provir. Descartes, Kardec e os Espíritos que com ele colaboraram nos asseguram que os há, todavia. Ensaiemos uma busca.

A cólera é o sentimento violento de desagrado e revolta que costuma surgir de ofensas físicas ou morais graves, não raro desaguando em ações retaliatórias variadas. Examinando o caso, percebemos que a face moralmente insustentável da cólera é a vingança, bem como o tumulto interior a que arroja. Entretanto, em suas origens podemos localizar algo bom: a desaprovação da agressão. Ora, tal desaprovação deflui naturalmente do senso moral, da faculdade de discernir o certo do errado, de que não podemos abdicar sem retroceder ao estágio da animalidade. O perdão que a ética espírita e cristã recomenda de modo algum significa a aprovação moral das ofensas.

O orgulho, por sua vez, é o sentimento de superioridade em relação aos semelhantes, capaz de induzir-nos a desprezá-los e até mesmo a subjugá-los, quando temos poder para tanto. Embora patentemente injustificável frente ao conhecimento espírita, remontando aos seus princípios talvez possamos identificar algo como a confiança nas próprias potencialidades. Sentimento benéfico, essa auto-confiança é indispensável para que não nos amolentemos, não descreiamos de nosso aprimoramento físico, intelectual, artístico e moral. É somente quando, por excesso, ultrapassa seus limites naturais, que ela se transmuda em orgulho pernicioso.

5. Na direção do Infinito

Não poderíamos concluir este pequeno trabalho sem mencionar que no final da terceira parte de seu livro Descartes apresenta brevemente um outro aspecto das percepções da alma, complementar ao das paixões, tais quais as entendia. Vimos que para ele estas últimas tinham sempre uma “contraparte” orgânica. Sugerimos, por nossa vez, que esse aspecto talvez não seja central nas paixões, que parecem antes ser inerentes à própria alma.

De qualquer modo, dentro do referencial que elaborou, Descartes também notou que há percepções da alma que radicam nela própria, ou, em suas palavras, “emoções interiores que são excitadas na alma apenas pela própria alma” (§ 147; grifamos). Um dos exemplos que dá é a “alegria intelectual” que sentimos quando lemos um romance ou assistimos a uma peça teatral em que as situações excitam em nós diversas paixões, como a alegria, a tristeza, o ódio, o amor, trazendo-nos todas uma espécie de prazer de ordem superior.

Vejamos estas belas passagens do parágrafo 148, em que Descartes desenvolve o tema:

Ora, visto que essas emoções interiores nos tocam mais de perto e têm, por conseguinte, muito mais poder sobre nós do que as paixões que se encontram com elas, e das quais diferem, é certo que, contanto que a alma

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tenha sempre do que se contentar em seu íntimo, todas as perturbações que vêm de outras partes não dispõem de poder algum para prejudicá-la. Servem, antes, para lhe aumentar a alegria, pelo fato de, vendo que não pode ser por elas ofendido, conhecer com isso a sua própria perfeição. E, para que a nossa alma tenha assim do que estar contente, precisa apenas seguir estritamente a virtude. Pois quem quer que haja vivido de tal maneira que sua consciência não possa censurá-lo de alguma vez ter deixado de fazer todas as coisas que julgou serem as melhores (que é o que chamo aqui seguir a virtude), recebe daí uma satisfação tão poderosa para torná-lo feliz que os mais violentos esforços da paixão nunca têm poder suficiente para perturbar a tranqüilidade de sua alma.

Descartes aponta, assim, uma espécie de sublimação dos sentimentos, na direção da alegria perene e sem mácula que resulta tão-somente da prática da virtude. Essa a alegria que viveremos um dia, quando, pelos nossos esforços, lograrmos alcançar a excelsa condição de Espíritos puros.

Referências

CHIBENI, S.S. “Os fundamentos da ética espírita”, Reformador, junho de 1985, pp. 166-9.

. “A excelência metodológica do Espiritismo”, Reformador, novembro de 1988, pp. 328-33, e dezembro de 1988, pp. 373-78.

. “O paradigma espírita”, Reformador, junho de 1994, pp. 176-80. DESCARTES, R. Les Passions de l’Âme. In: Adam, C. e Tannery, P. (eds.) Oeuvres de Descartes.

Tomo XI, pp. 291-497. Paris, Vrin, 1967. (As Paixões da Alma. Trad. J. Guinsburg e Bento Prado Jr. In: Descartes - Obra Escolhida, pp. 295-404. São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1973.)

KARDEC, A. Le Livre des Esprits. Paris, Dervy-Livres, s.d. (dépôt légal 1985). (O Livro dos Espíritos. Trad. Guillon Ribeiro, 64a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s.d.)

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Texto publicado em Mundo Espírita, julho 2003, caderno especial.

Ser Espírita Silvio Seno Chibeni

“Pois que vos dizeis espíritas, sede-o.”Simeão1

Resumo: O que é ser espírita? Raras vezes essa questão é colocada, embora o qualificativo espírita seja amplamente usado. Neste trabalho examina-se como Allan Kardec abordou a questão, em diversas de suas obras. Procura-se salientar a relevância das considerações de Kardec para as reflexões que cada um de nós deve fazer acerca de sua condição de espírita.

1. O Livro dos Espíritos

Nesta primeira seção centralizaremos a análise no tratamento dado por Kardec à questão do que é ser espírita na obra fundamental do Espiritismo, O Livro dos Espíritos. Como se observa pela leitura do primeiro parágrafo da Introdução, o termo espírita, foi, como vários outros, inventado por Kardec com o objetivo específico de conferir clareza terminológica à nova área que estava sendo criada. A palavra espírita foi inicialmente introduzida como adjetivo, para qualificar diversos substantivos, como doutrina, filosofia, fenômeno, etc. Assim, as expressões doutrina espírita, filosofia espírita, fenômenos espíritas e outras aparecem já na primeira edição, de 1857.

No presente trabalho estaremos interessados primordialmente na aplicação desse adjetivo a pessoas: homem espírita, mulher espírita, criança espírita, etc. Desse uso do adjetivo deriva, por omissão do substantivo, o substantivo ‘espírita’, que aparece em frases como: ‘Espíritas! amai-vos, este o primeiro ensinamento; instruí-vos, este o segundo’, ‘os bons espíritas’, etc. Trata-se de um fenômeno lingüístico comum; outros casos semelhantes seriam, por exemplo, os substantivos jovem, louco, criminoso, e uma infinidade de outros.

É interessante observar que em O Livro dos Espíritos o termo espírita ainda não aparece como substantivo, ou como adjetivo aplicado a pessoas. Todavia, na segunda edição, de 1860 (o texto definitivo que usamos até hoje), Kardec efetivamente considerou a questão que nos ocupa, embora numa formulação diferente. Ele o fez no item 7 da conclusão. (Na primeira edição não havia conclusão, mas apenas um curto Epílogo.) Vejamos o trecho relevante:

O Espiritismo se apresenta sob três aspectos diferentes: o fato das manifestações, os princípios de filosofia e de moral que delas decorrem e a aplicação desses princípios. Daí, três classes, ou, antes, três graus de adeptos: 1o os que crêem nas manifestações e se limitam a comprová-las; para esses, o Espiritismo é uma ciência experimental; 2o os que 1 O Evangelho segundo o Espiritismo, cap. 10, item 14, “Perdão das ofensas”.

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lhe percebem as conseqüências morais; 3o os que praticam ou se esforçam por praticar essa moral. (O Livro dos Espíritos, conclusão, item 7.)

Nota-se aqui que a referência aos “adeptos” equivale a uma referência aos “espíritas”, no sentido substantivado que o termo adquiriria depois. Observa-se também que a distinção das três “classes” ou “graus” de adeptos ou de espíritas é feita a partir da distinção de três “aspectos” do Espiritismo. Hoje em dia é comum falar-se nos três aspectos do Espiritismo como sendo o científico, o filosófico e o religioso, ou moral. A distinção que Kardec traça aqui não coincide exatamente com essa distinção contemporânea. 2

O primeiro aspecto que ele aponta, “o fato das manifestações”, consiste simplesmente dos fatos, ou fenômenos, espíritas, como os movimentos de objetos, os ruídos, a tiptologia, a vidência, a psicografia, etc. Embora tais fenômenos sejam de importância capital, por seu papel histórico no surgimento do Espiritismo e por constituírem sua base experimental, eles por si sós não constituem a ciência espírita. Nenhuma ciência, aliás, consiste unicamente de um simples relato de fenômenos. Outro ingrediente essencial de qualquer ciência é a teoria, ou seja, o conjunto de leis ou princípios que regulam os fenômenos. Ora, na classificação traçada nesse item da conclusão tais princípios já integram o segundo aspecto. Deve-se lembrar que, seguindo a forma de expressão da época, Kardec muitas vezes se refere à teoria espírita, mesmo em sua dimensão científica, como filosofia. Assim, quando fala aqui nos “princípios de filosofia” certamente inclui os princípios genuinamente científicos do Espiritismo. O segundo aspecto do Espiritismo indicado por Kardec nessa passagem é, pois, o seu aspecto teórico, numa acepção ampla do termo, que inclui tanto a ciência propriamente dita como a filosofia.

O terceiro aspecto, a “aplicação” dos princípios espíritas, remete ao plano prático, ao plano de nossas ações. Naturalmente, essa aplicação dos princípios espíritas só faz sentido para uma classe especial deles, justamente os princípios morais. Os outros, de cunho mais propriamente científico, não podem evidentemente ser objeto de “aplicação” em nossas ações, mas unicamente na análise intelectual que façamos dos fenômenos espíritas e de outros fenômenos relevantes para o Espiritismo. A moral, ou ética, é a área da filosofia que se ocupa do estudo das ações humanas: os critérios do certo e do errado, do bem e do mal, dos direitos e deveres. Portanto, nesta e nas demais passagens que examinaremos adiante a aplicação ou prática do Espiritismo deve ser entendida como a prática de seus princípios morais.

Traçada essa distinção entre os três aspectos do Espiritismo, fica naturalmente indicada uma distinção entre os adeptos do Espiritismo. Numa primeira classe estão aqueles que simplesmente reconhecem que os fenômenos espíritas são reais, e não uma fraude, ou uma ilusão. A segunda classe é formada por aqueles que, além dos fenômenos, reconhecem os princípios que os regem e os que deles decorrem, por análise filosófica, incluindo-se aí os princípios morais. Na terceira classe, por fim, estão aqueles que percebem a excelência desses princípios morais e os tomam como diretrizes de sua própria conduta, ou pelo menos se esforçam por adaptá-la a eles.

Kardec observa que essas classes também podem ser consideradas “graus”, na medida em que a aceitação dos três aspectos do Espiritismo pode ser feita um por vez, na ordem indicada. Como veremos nas seções 2 e 4, a distinção das três classes de

2 Para uma análise desta última distinção, ver nosso artigo intitulado “O Espiritismo em seu tríplice aspecto: científico, filosófico e religioso”, cuja referência é dada no final.

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espíritas reaparecerá de forma explícita, com pequenas variações de expressão, em O Livro dos Médiuns e em Viagem Espírita em 1862.

2. O Livro dos Médiuns, O Céu e o Inferno, e O que é o Espiritismo

O capítulo 3 da primeira parte de O Livro dos Médiuns, intitulado “Do método”, é de grande relevância para o nosso tema. O método a que o título se refere é, por um lado, o método de proceder na apresentação do Espiritismo aos não-espíritas e, por outro, o método geral de estudo do Espiritismo. Kardec mostra aqui toda a sua sensibilidade didática, pois o modo de divulgar e abordar o Espiritismo, assim como qualquer outra disciplina de igual complexidade, deverá levar em conta a pessoa ou grupo de pessoas a quem nos estamos dirigimos.

No parágrafo 19 e seguintes Kardec mostra em detalhes por que é falsa a “crença geral que, para convencer, basta apresentar fatos”. Sua análise ressalta, entre outros pontos, a importância de se dispor de uma teoria bem elaborada, capaz de dar inteligibilidade aos fatos. É justamente nesse ponto que o Espiritismo se mostra muito superior a outras abordagens de investigação dos fenômenos anímicos e mediúnicos. Um exame geral dessa questão foi empreendido por nós no artigo “A excelência metodológica do Espiritismo” (ver Referências Bibliográficas), no qual analisamos não somente esse capítulo de O Livro dos Médiuns mas também trechos importantes do primeiro capítulo de O que é o Espiritismo. Deste último livro, destacamos aqui apenas esta passagem do diálogo com o cético (segundo diálogo, seção “Elementos de convicção”):

Há duas coisas no Espiritismo: a parte experimental das manifestações e a doutrina filosófica. Ora, eu sou todos os dias visitado por pessoas que ainda nada viram e crêem tão firmemente como eu, pelo só estudo que fizeram da parte filosófica; para elas o fenômeno das manifestações é acessório; o fundo é a doutrina, a ciência; eles a vêem tão grande, tão racional, que nela encontram tudo quanto possa satisfazer às suas aspirações interiores, à parte o fato das manifestações; do que concluem que, supondo não existissem as manifestações, a doutrina não deixaria de ser sempre a que melhor resolve uma multidão de problemas reputados insolúveis.

Quantos me disseram que essas idéias estavam em germe no seu cérebro, conquanto em estado de confusão. O Espiritismo veio coordená-las, dar-lhes corpo, e foi para eles como um raio de luz. É o que explica o número de adeptos que a simples leitura de O Livro dos Espíritos produziu. Acreditais que esse número seria o que é hoje, se nunca tivéssemos passado das mesas girantes e falantes?

Vemos, pois, que Kardec localizava o caráter científico do Espiritismo na “doutrina”, na sua “parte filosófica”, que, no contexto de nossa análise, deve ser entendida como aquilo a que vimos denominando “teoria”. Os fatos em si não constituem a ciência, conforme já salientamos na seção anterior. Daí a importância de se tomar o Espiritismo no seu conjunto, fenômenos e teoria, sem o que ficaria mutilado. Embora seja possível haver, e de fato haja, “adeptos” que param no primeiro “grau”, no mero reconhecimento da realidade dos fenômenos, essa atitude não é racional ou científica.

Antes de prosseguir, devemos ainda esclarecer a noção de crença, a que o presente estudo fará referências tantas vezes. Crença, no sentido filosófico, não é o

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processo vulgarmente entendido como tal, que envolve algum tipo de sentimento místico ou religioso. É um dos ingredientes básicos de qualquer conhecimento. Na Grécia antiga, onde nasceu a filosofia, os filósofos já deram grande importância ao estudo do assunto. Uma das análises mais influentes foi a de Platão, que propôs que para que um sujeito S saiba alguma coisa P, três requisitos devem ser cumpridos: 1. S deve acreditar em P; 2. P deve ser verdade; e 3. S deve ter evidência para a verdade de P. A crença é, pois, o primeiro ingrediente do conhecimento.

É de fundamental importância reconhecer que a crença, nesse sentido filosófico próprio, é algo involuntário: não está em nosso poder crer ou deixar de crer numa determinada coisa. A crença “ocorre” em nós quando estamos diante de certas circunstâncias, por um tipo de “automatismo” cognitivo. O máximo que podemos fazer é voluntariamente buscar circunstâncias que esclareçam o ponto em questão, o que poderá então determinar a crença, ou descrença, dependendo do caso. Isso remete, pois, ao terceiro requisito da definição platônica de conhecimento: a evidência.

Tudo isso mostra quão insensata é a posição comum, de que a crença é algo que se prescreva, que se ordene, que se delibere fazer. Se a pessoa não estiver diante da evidência relevante, ninguém, nem mesmo ela própria, poderá fazê-la crer ou não crer nisso ou naquilo. Conhecedor desse ponto importante, Kardec sempre enfatizou que o Espiritismo, em particular, jamais poderia ser imposto. A crença em seus fenômenos e princípios só pode ser o resultado da exposição ao corpo de evidência apropriado. Ademais, como vimos nas passagens transcritas, Kardec sabia que o fornecimento de evidência parcial, exclusivamente experimental, em geral é ineficaz até mesmo para produzir crença na realidade dos fenômenos. O Espiritismo tem de ser apresentado, e considerado, em seu conjunto, fenômenos e princípios científicos e filosóficos, para que possibilite a formação de crença sólida e fundamentada.

Passemos agora ao parágrafo 28 de O Livro dos Médiuns, onde reaparece a distinção das três classes de espíritas esboçada na conclusão de O Livro dos Espíritos. Antes de apresentá-la, Kardec destaca a existência de duas classes por assim dizer “intermediárias” entre a dos opositores (amplamente examinada na parte precedente do capítulo) e a dos adeptos “que se convenceram por um estudo direto”: a dos incertos (parágrafo 26) e a dos espíritas sem o saberem (parágrafo 27). Os primeiros são aqueles que, em geral espiritualistas, têm uma “vaga intuição das idéias espíritas”, mas sem a coordenação e precisão que lhes confere o Espiritismo. Quando este lhe é apresentado, “é como um raio de luz: a claridade que dissipa o nevoeiro”; acolhem-no então pressurosamente.

Quanto à curiosa classe dos que, no fundo, são espíritas, mas disso não se dão conta, é formada pelos que “sem jamais terem ouvido tratar da doutrina espírita, possuem o sentimento inato dos grandes princípios que dela decorrem, e esse sentimento se reflete em algumas passagens de seus escritos e de seus discursos, a ponto de suporem, os que os ouvem, que eles são completamente iniciados.” Kardec nota que a distinção entre essa classe e a precedente é tênue, esta podendo ser considerada uma variante daquela. Talvez o que distinga a segunda seja um maior grau de coordenação e clareza das idéias. Nota ainda que há numerosos exemplos de indivíduos dessa classe entre os escritores profanos e sagrados, poetas, oradores, moralistas e filósofos, antigos e modernos. Um exemplo interessante está relatado na segunda parte da obra O Céu e o Inferno. No capítulo 2, dedicado às comunicações dos Espíritos felizes, há o caso de

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Jean Reynaud, que em sua última encarnação levou vida virtuosa. Dentre as questões que lhe foram propostas destacamos esta:

P. – Em vida professáveis o Espiritismo?

R. – Há uma grande diferença entre professar e praticar. Muita gente professa uma doutrina sem praticá-la; pois bem, eu praticava mas não professava [o Espiritismo]. Assim como cristão é todo homem que segue as leis do Cristo, mesmo sem conhecê-lo, assim também podemos ser espíritas, acreditando na imortalidade da alma, nas reencarnações, no progresso incessante, nas provações terrenas, abluções necessárias ao melhoramento. Acreditando em tudo isso, eu era, portanto, espírita. Compreendi a erraticidade, laço intermediário das reencarnações e purgatório no qual o Espírito culposo se despoja das vestes impuras para revestir nova toga, e onde o Espírito em evolução tece cuidadosamente essa toga que há de carregar no intuito de conservá-la pura. Compreendi tudo isso, e, sem professar, continuei a praticar.

A resposta do Espírito chama a atenção para um ponto central na análise da questão do que é ser espírita. É a aceitação dos princípios básicos do Espiritismo que deve delinear a condição de espírita (quando se vai, é claro, além do rudimentar primeiro “grau” de adesão). Sendo uma disciplina científica e filosófica viva, dinâmica, o Espiritismo tem, e não pode deixar de ter, áreas de fronteira, onde as idéias ainda estão em elaboração e os princípios em fase de teste. Isso não compromete, no entanto, os princípios fundamentais, que constituem o núcleo teórico espírita, já devidamente assentado. Jean Reynaud, como muitos outros, reconhecia esse núcleo como verdadeiro, embora não o tivesse estudado diretamente nas fontes espíritas. Depois, no mundo espiritual, compreendeu que, por essa razão, era espírita, embora sem o saber, ou seja, sem haver explicitamente aplicado a si essa denominação. Além disso, não se contentou em ficar no segundo “grau”: incorporou em sua conduta a moral decorrente desses princípios fundamentais. Era, pois, um espírita pleno, da terceira classe.

Esse ponto remete a um comentário de Kardec no capítulo 4 de O Livro dos Médiuns, “Dos sistemas”. No parágrafo 50 examina o chamado “sistema da alma material”. Embora sua aparência discrepante, na verdade o sistema “não infirma qualquer dos princípios fundamentais da Doutrina Espírita”. Não nos cabe aprofundar aqui a discussão técnica desse tópico. O que nos interessa mais é a exemplificação que fornece da distinção entre o núcleo e a periferia da teoria espírita. O tópico em questão é periférico, e eventuais divergências quanto a ele não devem ser razão para a divisão entre os espíritas:

Semelhante opinião, restrita, aliás, mesmo que se achasse mais generalizada, não constituiria uma cisão entre os espíritas, do mesmo modo que as duas teorias da emissão e das ondulações da luz não significam uma cisão entre os físicos. Os que se decidissem a formar grupo à parte, por uma questão tão pueril, provariam, só com isso, que ligam mais importância ao acessório do que ao principal e que se acham compelidos à desunião por Espíritos que não podem ser bons, visto que os bons Espíritos jamais insuflam a acrimônia, nem a cizânia. Daí o concitarmos todos os verdadeiros espíritas a se manterem em guarda contra tais sugestões, e a não darem a certos pormenores mais importância do que merecem; o essencial é o fundo.

Temos, pois, aqui uma eloqüente lição, relevante mesmo em nossos dias, quando já não se discute tanto o sistema da alma material, mas outros pontos secundários, que são confundidos com os essenciais, prejudicando o desenvolvimento normal do

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Espiritismo, e além disso gerando dissensões e rancores inteiramente contrários aos princípios morais do próprio Espiritismo.

Vejamos, por fim, o parágrafo 28 do mesmo livro, onde aparece uma classificação dos que “se convenceram por um estudo direto”:

1º Os que crêem pura e simplesmente nas manifestações. Para eles, o Espiritismo é apenas uma ciência de observação, uma série de fatos mais ou menos curiosos. Chamar-lhes-emos espíritas experimentadores.

2º Os que no Espiritismo vêem mais do que fatos; compreendem-lhe a parte filosófica; admiram a moral daí decorrente, mas não a praticam. Insignificante ou nula é a influência que lhes exerce nos caracteres. Em nada alteram seus hábitos e não se privariam de um só gozo que fosse. O avarento continua a sê-lo, o orgulhoso se conserva cheio de si, o invejoso e o cioso sempre hostis. Consideram a caridade cristã apenas uma bela máxima. São os espíritas imperfeitos.

3º Os que não se contentam com admirar a moral espírita, que a praticam e lhe aceitam todas as conseqüências. Convencidos de que a existência terrena é uma prova passageira, tratam de aproveitar os seus breves instantes para avançar pela senda do progresso, única que os pode elevar na hierarquia do mundo dos Espíritos, esforçando-se por fazer o bem e coibir seus maus pendores. As relações com eles sempre oferecem segurança, porque a convicção que nutrem os preserva de pensarem em praticar o mal. A caridade é, em tudo, a regra de proceder a que obedecem. São os verdadeiros espíritas, ou melhor, os espíritas cristãos.

Trata-se, pois, da mesma distinção apresentada no item 7 da conclusão de O Livro dos Espíritos. O que há de novo aqui são apenas as denominações que Kardec propõe: espíritas experimentadores (ocupam-se só da parte experimental ou fenomênica), espíritas imperfeitos (aceitam os princípios, mas não os aproveitam para melhorar sua conduta), e espíritas verdadeiros, ou cristãos (põem em prática, ou se esforçam por praticar a moral espírita-cristã). Embora não possuindo nada de absoluto, essas denominações são bastante apropriadas, e foram repetidas por Kardec em outras obras, como veremos nas seções seguintes.

Ainda no parágrafo 28 de O Livro dos Médiuns Kardec apresenta uma última classe, a dos espíritas exaltados. Trata-se de um caso aberrante, que mesmo hoje continua existindo, e que por isso merece ser anotado aqui.

A espécie humana seria perfeita, se sempre tomasse o lado bom das coisas. Em tudo, o exagero é prejudicial. Em Espiritismo, infunde confiança demasiado cega e freqüentemente pueril, no tocante ao mundo invisível, e leva a aceitar-se, com extrema facilidade e sem verificação, aquilo cujo absurdo, ou impossibilidade a reflexão e o exame demonstrariam. O entusiasmo, porém, não reflete, deslumbra. Esta espécie de adeptos é mais nociva do que útil à causa do Espiritismo [...].

Tiramos daqui outra lição importante: a de não deixar que um entusiasmo exagerado nos faça perder de vista a metodologia eminentemente racional empregada por Kardec no estabelecimento das bases do Espiritismo, e que deve estar sempre presente ao longo do seu desenvolvimento.

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3. O Evangelho segundo o Espiritismo

O capítulo 17 de O Evangelho segundo o Espiritismo traz, em seu item 4, um importante texto de Kardec sobre o assunto que nos ocupa aqui, intitulado “Os bons espíritas”. Esse texto dá seqüência ao anterior, “O homem de bem”, em que Kardec apresenta a impressionante enumeração das qualidades que distinguem o homem de bem; essa enumeração aproveita e estende a que é feita no item 918 de O Livro dos Espíritos. O texto sobre os bons espíritas inicia justamente salientando que

Bem compreendido, mas sobretudo bem sentido, o Espiritismo leva aos resultados acima expostos, que caracterizam o verdadeiro espírita, como o cristão verdadeiro, pois que um o mesmo é que outro. O Espiritismo não institui nenhuma nova moral; apenas facilita aos homens a inteligência e a prática da do Cristo, facultando fé inabalável e esclarecida aos que duvidam ou vacilam.

É essa coincidência dos preceitos morais espíritas com os preceitos morais cristãos que justifica a denominação espíritas cristãos, que, como vimos, aparece no parágrafo 28 de O Livro dos Médiuns, e será depois retomada em Viagem Espírita em 1862 (como veremos na próxima seção). Deve-se, porém, notar que Kardec não preconiza que se use sempre essa expressão – ou qualquer outra, aliás –, em substituição a espírita, simplesmente. Ele a utilizou no contexto especial da análise das diferentes posturas dos homens diante do Espiritismo. Seria impróprio tentar usá-la irrestritamente, como às vezes de fato se faz no movimento espírita, na tentativa talvez de diferençar os espíritas dos adeptos de outras vertentes espiritualistas ou mediunistas.

Prossigamos, porém, no texto do Evangelho. Nos parágrafos que seguem o que acaba de ser transcrito Kardec dirige-se à questão de por que, afinal, há pessoas que ficam no primeiro ou segundo “graus” da adesão espírita, sem ir adiante. Vejamos como a questão é formulada e respondida, no que respeita ao estacionamento na primeira classe:

Muitos, entretanto, dos que acreditam nos fatos das manifestações não lhes apreendem as conseqüências, nem o alcance moral, ou, se os apreendem, não os aplicam a si mesmos. A que atribuir isso? A alguma falta de clareza da doutrina? Não, pois que ela não contém alegorias nem figuras que possam dar lugar a falsas interpretações. A clareza é da sua essência mesma e é donde lhe vem a força, porque a faz ir direito à inteligência. Nada tem de misteriosa e seus iniciados não se acham de posse de qualquer segredo, oculto ao vulgo.

Será então necessária, para compreendê-la, uma inteligência fora do comum? Não, tanto que há homens de notória capacidade que não a compreendem, ao passo que inteligências vulgares, moços mesmo, apenas saídos da adolescência, lhes apreendem, com admirável precisão, os mais delicados matizes. Provém isso de que a parte por assim dizer material da ciência somente requer olhos que observem, enquanto a parte essencial exige um certo grau de sensibilidade, a que se pode chamar maturidade do senso moral, maturidade que independe da idade e do grau de instrução, porque é peculiar ao desenvolvimento, em sentido especial, do Espírito encarnado.

O problema não é, pois, nenhuma falta de clareza da teoria espírita. Kardec, aliás, teve sempre uma preocupação extrema com esse aspecto; seus textos são, indubitavelmente, os mais claros, objetivos e precisos textos espíritas já escritos. Também não é que a teoria espírita seja difícil, intricada, como geralmente são as ciências e sistemas filosóficos acadêmicos; nos seus traços fundamentais ela é bastante

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acessível à inteligência de um ser humano comum. A verdadeira razão pela qual alguns se limitam a observar e comprovar os fenômenos é a deficiência de uma sensibilidade especial, a que Kardec chama de senso moral, uma faculdade do ser humano que lhe possibilita ir longe na exploração das implicações filosóficas de um conjunto de fatos ou idéias. Como as palavras finais de Kardec sugerem, tal faculdade não se adquire de uma hora para outra, requerendo um longo período de amadurecimento, que certamente se estende por inúmeras encarnações.

No parágrafo seguinte Kardec explica por que algumas pessoas podem estacionar na segunda classe, não se preocupando em aplicar as máximas morais espíritas à sua própria conduta:

Nalguns, ainda muito tenazes são os laços da matéria para permitirem que o Espírito se desprenda das coisas da Terra; a névoa que os envolve tira-lhes a visão do infinito, donde resulta não romperem facilmente com os seus pendores nem com seus hábitos, não percebendo haja qualquer coisa melhor do que aquilo de que são dotados. Têm a crença nos Espíritos como um simples fato, mas que nada ou bem pouco lhes modifica as tendências instintivas. [...] Esses são os espíritas imperfeitos, alguns dos quais ficam a meio caminho ou se afastam de seus irmãos em crença, porque recuam ante a obrigação de se reformarem, ou então guardam as suas simpatias para os que lhes compartilham das fraquezas ou das prevenções. Contudo, a aceitação do princípio da doutrina é um primeiro passo que lhes tornará mais fácil o segundo, noutra existência.

Finalmente, os que se dispõem superar os traços indesejáveis de seu caráter são os que passam à condição de verdadeiros espíritas:

Aquele que pode ser, com razão, qualificado de espírita verdadeiro e sincero, se acha em grau superior de adiantamento moral. O espírito, que nele domina de modo mais completo a matéria, dá-lhe uma percepção mais clara do futuro; os princípios da doutrina lhe fazem vibrar fibras que nos outros se conservam inertes. Em suma: é tocado no coração, pelo que inabalável se lhe torna a fé. Um é qual músico que alguns acordes bastam para comover, ao passo que outro apenas ouve sons. Reconhece-se o verdadeiro espírita pela sua transformação moral e pelos esforços que emprega para domar suas inclinações más. Enquanto um se contenta com o seu horizonte limitado, outro, que apreende alguma coisa de melhor, se esforça por desligar-se dele e sempre o consegue, se tem firme a vontade.

Note-se a referência à dimensão não puramente intelectual da questão, com a bela imagem do ser “tocado no coração”. É o sentimento profundo das leis divinas, inscritas na consciência, agora mobilizado para nos colocar na rota de nosso crescimento espiritual.

Nos comentários de Kardec à parábola do semeador, que integram o mesmo capítulo de O Evangelho segundo o Espiritismo que estamos considerando, encontramos outra referência interessante à condição de espírita. Após notar que a parábola “exprime perfeitamente os matizes existentes na maneira de serem utilizados os ensinos do Evangelho”, Kardec acrescenta:

Não menos justa aplicação encontra ela nas diferentes categorias espíritas. Não se acham simbolizados nela os que apenas atentam nos fenômenos materiais e nenhuma conseqüência tiram deles, porque neles mais não vêem do que fatos curiosos? Os que apenas se preocupam com o lado brilhante das comunicações dos Espíritos, pelas quais só se interessam quando lhes satisfazem à imaginação, e que, depois de as terem ouvido, se conservam tão frios e indiferentes quanto eram? Os que reconhecem muito bons os

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conselhos e os admiram, mas para serem aplicados aos outros e não a si próprios? Aqueles, finalmente, para os quais essas instruções são como a semente que cai em terra boa e dá frutos?

4. Obras Póstumas e Viagem Espírita em 1862

Nos livros analisados nas seções precedentes, notamos que, ao caracterizar os verdadeiros espíritas, Kardec tem o cuidado de não incluir a perfeição moral, nem a reforma moral instantânea, mas o esforço perseverante de aperfeiçoar-se. No texto do Evangelho há, como vimos, um arrazoado sobre as causas de nossa dificuldade em promover essa reforma, dificuldade que, nos casos mais graves, pode temporariamente reter-nos na classe dos espíritas imperfeitos. Em alguns ensaios da primeira parte de Obras Póstumas esse assunto é retomado de forma mais extensa. Como cada um de nós experimenta, com maior ou menor freqüência e intensidade, a inércia que tende a nos manter moralmente como estamos, vale a pena meditar sobre as lúcidas considerações de Kardec nesses ensaios.

Uma primeira referência ao assunto é feita no importante texto intitulado “O egoísmo e o orgulho”. Vejamos sua parte final:

O Espiritismo é, sem contradita, o mais poderoso elemento de moralização, porque mina pela base o egoísmo e o orgulho, facultando um ponto de apoio à moral. Há feito milagres de conversão; é certo que ainda são apenas curas individuais e não raro parciais. O que, porém, ele há produzido com relação a indivíduos constitui penhor do que produzirá um dia sobre as massas. Não lhe é possível arrancar de um só golpe as ervas daninhas. Ele dá a fé e a fé é a boa semente, mas mister se faz que ela tenha tempo de germinar e de frutificar, razão por que nem todos os espíritas já são perfeitos.

Na seqüência do ensaio Kardec aborda um tema que lhe é muito caro: a importância da educação moral das crianças, como o meio mais eficaz para corrigir as tendência viciosas que se enraizaram no Espírito.

A outra passagem de Obras Póstumas sobre o aperfeiçoamento moral dos espíritas está no ensaio “Os desertores”. Como indica o título, o ensaio trata daqueles que, dentro do movimento espírita, cultivam discórdias e ciúmes, levantam questões irritantes, propõem cisões, ou tomam-se de entusiasmo irrefletido e danoso. De forma bastante significativa, Kardec chama-os de espíritas de contrabando, já que adentraram o meio espírita sem a devida “chancela” moral. Pois bem: depois de alertar-nos quanto a esse caso, Kardec prossegue:

Se passarmos à categoria dos espíritas propriamente ditos, ainda aí depararemos com certas fraquezas humanas, das quais a doutrina não triunfa imediatamente. As mais difíceis de vencer-se são o egoísmo e o orgulho, as duas paixões fundamentais do homem. Entre os adeptos convictos, não há deserções, na lídima acepção do termo, visto como aquele que desertasse, por motivo de interesse ou qualquer outro, nunca teria sido sinceramente espírita; pode, entretanto, haver desfalecimentos [...].

Todos os outros são espíritas que em verdade merecem esse qualificativo. Aceitam por si mesmos todas as conseqüências da doutrina e são reconhecíveis pelos esforços que empregam por melhorar-se. Sem desprezarem, além dos limites do razoável, os interesses materiais, estes são, para eles, o acessório e não o principal; não consideram a vida

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terrena senão como travessia mais ou menos penosa; estão certos de que do emprego útil ou inútil que lhe derem depende o futuro; têm por mesquinhos os gozos que ela proporciona, em face do objetivo esplêndido que entrevêem no além; não se intimidam com os obstáculos com que topem no caminho; vêem nas vicissitudes e decepções provas que não lhes causam desânimo, porque sabem que o repouso será o prêmio do trabalho. Daí vem que não se verificam entre eles deserções, nem desfalecimentos.

Na famosa viagem que Kardec fez ao sul da França em 1862, diversas questões sobre o Espiritismo e o movimento espírita lhe foram formuladas. Uma delas é relevante para o ponto que estamos considerando. Trata-se da questão que na obra Viagem Espírita em 1862 recebeu o número 2:

P. – Não seria desejável que os espíritas tivessem uma palavra de ordem, um sinal qualquer para se reconhecerem ao se avistarem?

R. – Os espíritas não formam nem uma sociedade secreta, nem uma afiliação, não devendo, pois, possuir nenhum sinal secreto de reconhecimento. Nada ensinam ou praticam que não possa ser conhecido de todos, não tendo, por conseguinte, nada a ocultar. Um sinal, uma palavra de ordem, poderia, além disso, ser apropriada por falsos irmãos, de nada vos adiantando.

Tendes uma palavra de ordem compreendida em todos os cantos do mundo: a caridade. Tal palavra é fácil de ser pronunciada; mas a verdadeira caridade não pode ser falsificada. Pela prática da verdadeira caridade sempre reconhecereis um irmão, ainda que não seja espírita. Deveis estender-lhe a mão, mesmo que não partilhe vossas crenças, pois não deixará por isso de ser benevolente e tolerante.

A resposta de Kardec aponta, pois, diversas inconveniências na introdução de uma palavra de ordem formal ou um sinal exterior qualquer. A “solução” apontada por Kardec para a identificação dos verdadeiros espíritas é usarmos como critério a assimilação, por parte do adepto, do preceito moral da caridade. Como sabemos, esse preceito sintetiza a moral espírita-cristã, de modo que quem o põe em prática, ou ao menos se preocupa incessantemente em praticá-lo, exibe, por isso mesmo, os traços essenciais de um verdadeiro espírita (além, é claro, da aceitação racional dos princípios fundamentais da teoria científico-filosófica do Espiritismo). Ademais, o comportamento marcado pela caridade não é passível de falsificação: quem imitasse o comportamento cristão o tempo todo, sem nunca dele se desviar, já seria, de fato, um verdadeiro cristão.

Para encerrar este trabalho, vejamos alguns outros trechos de Viagem Espírita em 1862 que retomam a classificação dos espíritas em três grupos, e comentam de forma eloqüente o assunto da reforma moral dos espíritas. Abrindo a obra estão as “Impressões gerais” da viagem, o relato sucinto das observações mais significativas feitas por Kardec no contato com o movimento espírita nascente. Destacamos, da p. 11 da edição francesa corrente, o seguinte trecho:

Crer já é muito, sem dúvida; mas só a crença não basta, se não conduz a resultados. Infelizmente, há muitos nessa condição: para eles o Espiritismo é apenas um fato, uma bela teoria, uma letra morta, que nada lhes altera no caráter, nem nos hábitos. Ao lado, porém, dos espíritas que simplesmente crêem ou são simpáticos à idéia, há os espíritas de coração. Somos feliz de haver encontrado muitos deles; vimos transformações que se poderia dizer milagrosas; coletamos exemplos admiráveis de zelo, abnegação e devotamento, de caridade verdadeiramente evangélica, que poderíamos apropriadamente chamar de belas marcas do Espiritismo.

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Notemos, além dos aspectos que já estavam presentes nas citações das outras obras, a expressiva frase “espíritas de coração”, que tão bem destaca essa sensibilização do íntimo do verdadeiro espírita, quando percebe a excelência dos princípios morais espíritas. É essa sensibilização que desperta a vontade e promove “transformações que se poderia dizer milagrosas” no comportamento das pessoas.

Em sua viagem Kardec proferiu também discurso extremamente substancial, dividido em três partes, nas cidades de Lyon e Bordeaux. Na primeira parte aborda, entre outras questões, a de que havia pessoas que se diziam espíritas e mesmo assim se colocavam como seus inimigos. Para explicar tal anomalia recorre novamente à classificação dos espíritas em três grupos. Como o texto apresenta detalhes novos, e um desenvolvimento importante, vale a pena ser transcrito (pp. 25-7):

O que pode, porém, parecer surpreendente é que eu tenha adversários até entre os partidários do Espiritismo. É aqui que uma explicação se faz necessária.

Entre os que adotam as idéias espíritas há, como sabeis, três categorias bem distintas:1. Os que crêem pura e simplesmente nos fenômenos das manifestações, sem deles

deduzir nenhuma conseqüência moral;2. Os que vêem o lado moral, aplicando-o porém aos outros, e não a si próprios;3. Os que aceitam para si mesmos todas as conseqüências da doutrina, cuja moral

aplicam ou se esforçam por aplicar. Como vós também sabeis, estes são os verdadeiros espíritas, ou espíritas cristãos.

Essa distinção é importante, por explicar diversas anomalias aparentes; sem ela seria difícil entender a conduta de certas pessoas. O que diz a moral espírita? Amai-vos uns aos outros; perdoai vossos inimigos; retribuí o mal com o bem; não alimenteis ódio, rancor, animosidade, inveja ou ciúme; sede severos convosco mesmos e indulgentes com os outros. Tais devem ser os sentimentos de um verdadeiro espírita, daquele que, antes da forma, vê o fundo; que coloca o espírito acima da matéria. Poderá ter inimigos, mas não será inimigo de ninguém, pois que a ninguém considera tal, nem, muito menos, a ninguém procura fazer mal. [...] O Espiritismo tem por divisa: Fora da caridade não há salvação; igualmente verdadeiro é dizer: Fora da caridade não há verdadeiros espíritas. Concito-vos a inscreverem doravante esta dupla máxima em vossa bandeira, pois resume, a um só tempo, o objetivo do Espiritismo e o dever que ele impõe.

Dentre tantos aspectos interessantes dessa passagem, destacamos dois: a incompatibilidade da condição verdadeiro espírita com o cultivo sistemático de defeitos morais graves – no caso em foco, tomar pessoas por inimigas; e a dupla “divisa” proposta para o Espiritismo: Fora da caridade não há salvação, nem verdadeiros espíritas.

Na terceira parte do discurso proferido em Lyon e Bordeaux encontramos estas eloqüentes palavras (pp. 57-8):

No princípio das manifestações espíritas, muitos as aceitaram sem lhes prever as conseqüências; a maioria não viu nelas senão efeitos mais ou menos curiosos. Quando, porém, surgiu daí uma moral severa, com deveres rigorosos a cumprir, muitos não sentiram forças de a praticar, de amoldar-se a ela; não tiveram a coragem do devotamento, da abnegação, da humildade; neles, a natureza corporal sobrepujou a espiritual; puderam crer, mas recuaram diante da execução. Não havia, pois, na origem, senão espíritas, ou seja, crentes. Depois, a filosofia e a moral abriram a essa ciência um horizonte novo, criando os espíritas praticantes. Os primeiros ficaram na retaguarda, os outros seguiram adiante.

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Quanto aos espíritas que se formaram depois da estruturação do Espiritismo, Kardec comenta, no parágrafo seguinte, que

a grande maioria aceitou a doutrina precisamente por causa de sua moral e de sua filosofia; eis por que se esforçam por praticá-la. Pretender que devessem todos tornar-se perfeitos seria ignorar a natureza do ser humano. Ainda, porém, que se tenham despojado apenas de algumas partes do homem velho, já será um progresso a ser levado em conta. Só não encontram desculpas aos olhos de Deus aqueles que, estando devidamente esclarecidos, não se aproveitem disso como poderiam. Ser-lhes-ão pedidas contas severas, e, como mostram inúmeros exemplos, poderão sofrer as conseqüências disso já nesta vida. Ao lado desses, porém, há também muitos em quem uma verdadeira metamorfose operou-se, que encontraram nessa crença a força para vencer pendores de há muito enraizados, para romper com velhos hábitos, para fazer calar ressentimentos e inimizades, para encurtar as separações sociais. Pedem milagres ao Espiritismo: aí estão os que ele produz. (pp. 58-9)

Que nós, que estudamos o Espiritismo e reconhecemos plenamente a sua excelência enquanto ciência e filosofia, possamos aproveitá-lo integralmente, para que também em nós se opere essa sublime “metamorfose”, esse “milagre” da superação de nossas milenares imperfeições morais, rumo à edificação do homem novo, do verdadeiro cristão, do verdadeiro espírita. 3

Referências bibliográficas:

CHIBENI, S. S. “A excelência metodológica do Espiritismo”, Reformador, novembro de 1988, pp. 328-333, e dezembro de 1988, pp. 373-378. (Reproduzido em Mundo Espírita, novembro de 1999, encarte especial. Também disponível no site do Grupo de Estudos Espíritas da Unicamp: http://www.geocities.com/Athens/Academy/8482 . (A partir de 2009: www.geeu.net.br .)

–––. “O Espiritismo em seu tríplice aspecto: científico, filosófico e religioso”, 2003, disponível em http://www.geocities.com/Athens/Academy/8482 ). (A partir de 2009: www.geeu.net.br .)

KARDEC, A. Le Livre des Esprits. Reprodução fotomecânica da 1a ed. francesa. 1a ed, bilíngüe, trad. e ed. Canuto Abreu. São Paulo, Companhia Editora Ismael, 1957.

–––. Le Livre des Esprits. Reprodução fotomecânica da 2a ed. francesa, com adendos do Autor. 1a. ed., Rio, Federação Espírita Brasileira, 1998.

–––. O Livro dos Espíritos. Trad. de Guillon Ribeiro. 43a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s.d.

–––. Revue Spirite. (Coleção da Federação Espírita do Paraná.) Versões digitais, em imagem, de todos os volumes disponíveis em www.ipeak.com.br .

–––. Qu'est-ce que le Spiritisme. Paris, Dervy-Livres, 1975.

–––. O que é o Espiritismo. (s. trad.) 25a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s.d.

3 Gostaríamos de agradecer a Terezinha Colle a leitura atenta de uma versão preliminar deste trabalho, e diversos comentários que levaram ao seu aperfeiçoamento.

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–––. Le Livre des Médiums. Paris, Dervy-Livres, 1972.

–––. O Livro dos Médiuns. Trad. Guillon Ribeiro, 59a ed., revista, Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s.d.

–––. Voyage Spirite en 1862. Paris, Vermet, 1988. Uma cópia digital da primeira edição está disponível, a partir de 2011, em www.ipeak.com.br .

–––. L’Évangile selon le Spiritisme. (Reprodução fotográfica da 3a edição francesa.) 1a

ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, 1979.

–––. O Evangelho segundo o Espiritismo. Trad. Guillon Ribeiro. 113a ed., Rio, FEB.

–––. Le Ciel et l’Enfer. Farciennes, Editions de l’Union Spirite, 1951.

–––. O Céu e o Inferno. Trad. de Manuel Quintão. 28ª edição, Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s.d.

–––. Oeuvres Posthumes. (Ed. André Dumas.) Paris, Dervy-Livres, 1978. Também na edição original de Leymarie, em texto eletrônico, Centre d'Études Spirites Léon Denis: http://perso.wanadoo.fr/charles.kempf/

–––. Obras Póstumas. Trad. Guillon Ribeiro, 18a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s.d.

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Sinopse dos principais fatos referentesàs origens do Espiritismo

SILVIO SENO CHIBENI [1]

1. Introdução

Neste trabalho procuraremos reunir alguns dados importantes da história do Espiritismo, especialmente os referentes a Allan Kardec e ao Espiritismo nascente. Nossa fonte básica será a obra Allan Kardec, em três volumes, da autoria de Zêus Wantuil e Francisco Thiesen, dada a público pela Federação Espírita Brasileira em 1979/80. Qualquer estudioso do Espiritismo reconhecerá prontamente que ela representa o mais completo e rigoroso estudo já publicado sobre a vida e a obra de Kardec. Os volumes 2 e 3 contêm ainda análises e comentários de grande justeza e profundidade sobre muitos tópicos referentes à Doutrina e ao movimento espíritas.

Os três volumes dessa obra apresentam uma massa de informações bastante densa. Dispõem de índices e antroponímicos e analíticos, mas não remissivos. Nos dois últimos volumes, os capítulos são de amplas proporções, contendo muitas seções. Os autores optaram, com razões ponderáveis, por não fazer uma apresentação cronológica dos fatos. Tudo isso torna um tanto difícil a localização rápida de determinados assuntos. Por tais motivos, julgamos útil compilar aqui, de forma mais simples e direta, alguns dos acontecimentos mais importantes. Fomos motivados por nossa experiência pessoal, de muitas vezes querermos citar datas e lugares precisos e não conseguirmos encontrar de pronto as referências. Também pode ser de alguma utilidade dispor de um painel sucinto dos fatos, que permita sua visualização global.

Naturalmente, sabemos que o que mais importa não são os nomes, as datas e os lugares, mas a sua significação histórica, científica e filosófica. O pesquisador cuidadoso não poderá dispensar a respeitável obra de Thiesen e Wantuil. Também deve-se lembrar que a segunda parte das Obras Póstumas de Allan Kardec consiste de textos de enorme relevância para a história do Espiritismo, repletos, como não poderia deixar de ser, de preciosas considerações doutrinárias. O mesmo vale para os volumes da Revue Spirite editados por Kardec.

Há algumas outras fontes sobre o Espiritismo e sua história, que podem ser consultadas, embora nem de longe se aproximem, em abrangência e precisão, da que nos legaram Thiesen e Wantuil. Entre elas encontram-se:

Moreil, André. La vie et l’Œuvre d’Allan Kardec. Paris, Vermet, sem data.[2]

Sausse, Henri. Biographie d’Allan Kardec. 4a ed., Paris, Éditions Jean Meyer, 1927. A Federação Espírita Brasileira faz figurar uma tradução dessa biografia em sua edição de O que é o Espiritismo, sem indicação do tradutor.[3]

Para facilidade de referência, adotaremos as seguintes abreviaturas:

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AK I, AK II e AK III respectivamente volumes I, II e III da obra Allan Kardec.

OP Obras Póstumas

Revue Revue Spirite

SPES Société Parisienne des Études Spirites

FEB Federação Espírita Brasileira

Os números que aparecerão diante desses símbolos referem-se a páginas das obras, salvo indicação em contrário. Utilizamos a 1a edição de Allan Kardec e a 18aedição da tradução febiana de Obras Póstumas, traduzida por Guillon Ribeiro (o texto em francês, em versão fiel à edição original de Leymarie, está hoje disponível na Internet, na “página” do Centre d'Études Spirites Léon Denis (http://perso.wanadoo.fr/charles.kempf/).

2. Hippolyte-Léon Denizard Rivail

1804 - (3/10) - Nascimento de Hippolyte-Léon Denizard Rivail, o futuro Allan Kardec, em Lyon, a segunda maior cidade francesa depois de Paris. Seus pais foram Jean-Baptiste Antoine Rivail, homem de leis, e Jeanne Louise Duhamel, residentes à Rue Sale, 76; essa casa foi demolida ainda em meados do século XIX. (AK I 29)

1815 - Rivail segue para o Instituto de Johann Heinrich Pestalozzi para continuar seus estudos. O Instituto ficava na cidade de Yverdon, Suíça, e funcionava em regime de internato. Os alunos recebiam ali educação integral esmerada, segundo inovador método pedagógico do famoso professor, baseado na convicção de que o amor é o eterno fundamento da educação. (AK I caps. 2 a 11 e 15)

1822 - Rivail deixa Yverdon e instala-se em Paris. Não há segurança completa sobre essa data. Sabe-se que em janeiro de 1823 já residia à Rue de la Harpe, 117. Confirma-se também que pelo menos de 1828 a 1831 morou na Rue de Vaugirard, 65. (AK I , caps. 12, 21 e p. 184)

1824 - Rivail publica o seu primeiro livro didático, o Cours pratique et théorique d’arithmétique, concebido segundo o método pestalozziano. Foi publicado em Paris na Imprimerie de Pillet Ainé, Rue Christine, 5. (AK I caps. 14 e 16)

1825 - Rivail abre sua primeira escola, a École de Premier Degrée. (AK I cap. 18)

1826 - Rivail funda a Institution Rivail, instituto técnico, sito à Rue de Sèvres, 35; funcionou até 1834. Neste mesmo local existiria depois o Lycée Polymathique, dirigido também por Rivail, até 1850, quando foi cedido a A. Pilotet. A partir dessa data o Prof. Rivail não mais exerceria atividades didáticas. (AK I cap. 19 e pp. 131, 145 e 146)

1828 - Rivail dá a público o “Plan proposé pour l’amélioration de l’éducation publique”, sugerindo diretrizes para a educação pública, à venda com o autor e com Dentu (que mais tarde publicaria diversas obras espíritas de Kardec; ver AK I cap. 21 e p. 184).

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1831 - Aparece, da autoria de Rivail, a Grammaire Française Classique sur un nouveau plan. (AK I cap. 22)

1832 - Casa-se com Amélie-Gabrielle Boudet (1795-1883), que seria sua dedicada companheira e apoio de todos os momentos, até a sua desencarnação. Conhecida mais tarde entre os espíritas como “Madame Allan Kardec”, Amélie-Gabrielle era professora e colaborou com o esposo em suas atividades didáticas. Não tiveram filhos, conforme explicitamente se lê na Revue Spirite de 1862. (AK I cap. 20, III 45)

Rivail e sua esposa foram pessoas dignas, de moralidade inatacável, dedicando-se integralmente aos ideais superiores da cultura, da educação, do bem. Lutaram a favor das causas da liberdade de ensino e da educação para meninas. Rivail ministrou por muitos anos cursos gratuitos para crianças pobres. Além de mestre, foi sempre amigo dos alunos. (AK I cap. 23 a 29)

Do ponto de vista material, o casal Rivail levou vida simples, não raro enfrentando dificuldades econômicas. Na fase espírita, seus parcos recursos seriam empregados na publicação das obras iniciais e em outras despesas referentes ao Espiritismo. Nos anos de maiores limitações, Rivail complementou sua receita com empregos temporários modestos, como o de guarda-livros. (AK I cap. 33)

Há referências seguras de cerca de 21 textos publicados pelo Prof. Rivail, entre livros didáticos e opúsculos diversos referentes à educação. (AK I cap. 37)

Rivail possuía sólida erudição, conhecendo bastante bem as diversas ciências, a filosofia e as artes. Traduziu, preferencialmente, obras alemãs para o francês, e vice-versa. Foi membro de diversas academias culturais, possuindo vários diplomas. (AK I caps. 22, 30, 35)

Contrariamente ao que afirmou Henri Sausse, e alguns mantém até hoje, Rivail não foi médico (AK I cap. 31). Também não há evidência de que tenha sido maçon, sendo mais razoável assumir que não o foi (AK I cap. 32).

3. Das observações iniciais à primeira edição de O Livro dos Espíritos

1848 - Início dos famosos fenômenos espíritas que envolveram a família Fox, em Hydesville (EUA). A 28 de março verificam-se as primeiras manifestações físicas; três dias após, estabeleceu-se a primeira comunicação tiptológica. Em poucos anos, fenômenos semelhantes passaram a chamar a atenção pública, não somente nos Estados Unidos, mas também na Europa. Foi a fase das chamadas “mesas girantes”. (AK II 49-60; ver também As Mesas Girantes e o Espiritismo, de Zêus Wantuil, publicado pela FEB.)

1854 - Rivail é informado pelo Sr. Fortier, magnetisador seu conhecido, acerca da ocorrência dos fenômenos das mesas girantes. Embora estranhando-os, não os julgou impossíveis, já que poderiam ter alguma causa física ainda não bem determinada. No entanto, algum tempo depois esse mesmo Sr. Fortier lhe disse que as mesas também “falavam”, isto é, davam sinais de inteligência. A reação agora foi cética: “Só acreditarei quando o vir e quando me provarem que uma mesa tem cérebro para pensar, nervos para sentir e que possa tornar-se sonâmbula.” (OP 265; AK II 62)

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1855 - No início desse ano, o Sr. Carlotti lhe faz longo relato dos singulares fenômenos. Embora Rivail o conhecesse havia 25 anos, mais uma vez expressa reservas, dado o temperamento exaltado do amigo, tão em oposição ao seu. (OP 266; AK II 124)

1855 - Em maio, Rivail vai, em companhia de Fortier, à casa da Sra. Roger, sonâmbula, onde conhece o Sr. Pâtier e a Sra. Plainemaison. Este lhe fala dos fenômenos, mas com seriedade e frieza, o que o predispõe, finalmente, a observar os fatos. (OP 266)

1855 - Assim foi que, ainda em maio, a convite de Pâtier, Rivail assiste a algumas experiências na casa da Sra. Plainemaison, sita à Rue Grange-Batelière, 18. Rivail impressiona-se com os fenômenos, declarando que se verificavam em condições “que não deixavam lugar para qualquer dúvida. [...] Minhas idéias estavam longe de precisar-se, mas havia ali um fato que necessariamente decorria de uma causa. Eu entrevia naquelas aparentes futilidades [...] qualquer coisa de sério, como que a revelação de uma nova lei, que tomei a mim estudar a fundo.”(OP 267; AK II 64)

1855 - Numa dessas reuniões, conhece a família Baudin, então residente à Rue Rochechouart (a partir de 1856 iria para a Rue Lamartine; ver AK II 64). Convidado pelo Sr. Baudin, passou a freqüentar assiduamente as sessões semanais que se realizavam em sua casa. Os médiuns eram as filhas do casal, Caroline e Julie, que no início escreviam com o auxílio de uma cestinha.[4] De numerosas e frívolas que eram, sob a influência de Rivail as reuniões passaram a reservadas e sérias, dedicadas à pesquisa racional e metódica do novo domínio. “Compreendi, antes de tudo, a gravidade da exploração que ia empreender; percebi, naqueles fenômenos, a chave do problema tão obscuro e tão controverso do passado e do futuro da Humanidade [...]. Era, em suma, toda uma revolução nas idéias e nas crenças; fazia-se mister, portanto, andar com a maior circunspeção, e não levianamente; ser positivista e não idealista, para não me deixar iludir” (OP 267-68; AK II 64). Rivail submetia aos Espíritos séries de questões visando a elucidar problemas relativos à filosofia, à psicologia e à natureza do mundo invisível. Um grupo de intelectuais encarregou-o de analisar e joeirar cerca de 50 cadernos com comunicações espirituais diversas. (AK II 71, 68 e 125)

1856 - Nesse ano passou a freqüentar também as reuniões espíritas da casa do Sr. Roustan, na Rue Tiquetonne, 14. O médium era a Srta. Japhet, sonâmbula. As anotações de Rivail, provenientes em grande parte das comunicações obtidas pelas Srtas. Baudin, tomaram as proporções de um livro, embora se saiba que por volta de abril ainda não estava claro para ele que deveria ser um dia publicado (OP 276). Depois que isso se tornou evidente, foi por intermédio da Srta. Japhet que os Espíritos auxiliaram Rivail a fazer uma revisão completa do texto já elaborado. Era O Livro dos Espíritos. (OP 270, 276 e 277; AK II 72)

1856 - A 30 de abril, pela mediunidade da Srta. Japhet, Rivail tem a primeira notícia de sua missão, em linguagem bastante alegórica. Outras se seguiram, de cunho mais positivo. O conjunto dessas comunicações e, principalmente, os comentários de Rivail indicando sua reação, constituem leitura obrigatória para todo espírita, por sua beleza e elevada significação. (OP 277-87; AK II 69 e 72)

1857 - No início desse ano o texto manuscrito de O Livro dos Espíritos está concluído; o editor, E. Dentu, envia-o à Imprimerie de Beau, em Saint-Germain-en-Laye, que dista 23 km de Paris, a oeste (AK II 73 e 75). As despesas correm inteiramente por conta de Rivail (AK II 257). O casal Rivail residia então à Rue des Martyrs, 8, no

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segundo andar, nos fundos do pátio, onde estava pelo menos desde março de 1856 (OP 273).

1857 - A 18 de abril, vem à luz a primeira edição de O Livro dos Espíritos (Le livre des Esprits). Contendo os princípios da doutrina espírita sobre a natureza dos Espíritos, sua manifestação e suas relações com os homens; as leis morais, a vida presente, a vida futura e o porvir da humanidade; escrito sob o ditado e publicado por ordem de Espíritos Superiores por Allan Kardec. Paris, E. Dentu, livreiro, Palais Royal, Galerie d’Orléans, 13.[5]

Essa primeira edição contém 501 questões, distribuídas em 3 partes (176 pp.). Afora a tábua dos capítulos, há um útil índice remissivo (“Table alphabétique”). Não há conclusões; apenas um Epílogo, de menos de uma página. As notas de Rivail, em número de 17, vêm todas no final, ocupando 12 páginas. Ao longo de toda a primeira parte (“Livre premier. Doctrine spirite.”) adota-se uma forma de exposição dupla: na coluna da esquerda, perguntas e respostas; na da direita, o texto corrido equivalente. É nesta obra que Rivail adota o pseudônimo de Allan Kardec, nome que teria tido em antiga encarnação entre os druidas, sacerdotes do povo celta, que ocupou a Gália, a Grã-Bretanha e a Irlanda (AK II 74-80). No Epílogo, anuncia-se para breve a publicação de um suplemento, contendo novos ensinos. No entanto, Kardec acaba desistindo da idéia, elaborando, em seu lugar, uma segunda edição “inteiramente refundida e consideravel-mente aumentada”, que viria a público em março de 1860 (ver seção 6 deste nosso trabalho). Em 1957 Canuto Abreu publicou edição bilíngüe da primeira edição de O Livro dos Espíritos, sob o título O Primeiro Livro dos Espíritos (São Paulo, Companhia Editora Ismael).

4. A Revue Spirite

1858 - A 1o de janeiro Kardec lança o primeiro número da Revue Spirite (Revista Espírita), jornal de estudos psicológicos. Contendo o relato das manifestações materiais ou inteligentes dos Espíritos, aparições, evocações, etc., assim como todas as notícias relativas ao Espiritismo. O ensino dos Espíritos sobre as coisas do mundo visível e do mundo invisível; sobre as ciências, a moral, a imortalidade da alma, a natureza do homem e seu porvir. A história do Espiritismo na Antigüidade; suas relações com o magnetismo e o sonambulismo; a explicação das lendas e crenças populares, da mitologia de todos os povos, etc. Paris; bureau à Rue des Martyrs, 8.

O primeiro número, com 36 páginas, foi impresso na Imprimerie de Beau, em Saint-Germain-en-Laye, a mesma que já imprimira O Livro dos Espíritos; as despesas, como no caso desse livro, também ficaram por conta e risco de Kardec (AK III 21-33; II 76). A Revue era de periodicidade mensal e durante a vida de Kardec funcionou em sua própria residência, ou seja:

1o /1/1858 - Rue des Martyrs, 8.

15/7/1860 - Passage Ste.-Anne (Rue Ste.-Anne, 59).

1/4/1869 - Nessa data estava programada a transferência dos Escritórios e do Expediente para a Librairie Spirite, Rue de Lille, 7, que também sediaria provisoriamente a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas; a Redação iria para a Villa Ségur (Av. de Ségur, 39), casa de propriedade de Kardec pelo menos desde

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1860, para a qual se mudaria com a dedicada esposa. (AK III 21-24, 35-37, 118-19; II, pp. 24-25). Kardec desencarnou na véspera.

Era Kardec quem redigia integralmente a revista e cuidava de toda sua correspondência e expedição, trabalho hercúleo suficiente para consumir todo o tempo de uma pessoa ordinária. E isso era apenas uma parte de seus trabalhos, havendo ainda os livros, a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, as centenas de visitantes anuais, as viagens...[6]

A Revue Spirite constitui rico manancial doutrinário, pouco explorado pelos espíritas. Os originais franceses, necessários para pesquisas cuidadosas, são raríssimos em todo o mundo. Em feliz iniciativa, motivada pela comemoração do 140o aniversário da fundação da Revue, o Centre d'Études Spirites Léon Denis, de Thann, França, está inserindo o precioso material em seu “site” na Internet (http://perso.wanadoo.fr/charles.kempf/), à razão de um fascículo por mês.

Kardec discorre sobre a idéia da criação da Revue em OP 293-94. Em suas própria palavras, ela tornou-se-lhe “poderoso auxiliar” na elaboração da doutrina e na implantação do movimento espírita (AK III 22; OP 294).

A partir da declaração de propósitos do primeiro número da Revista e do exame dos volumes escritos por Kardec (ver também AK III 21-33; II 24-25), podem-se identificar os seus objetivos principais, entre os quais destacam-se:

1. Manter o público atualizado quanto à evolução da ciência espírita;

2. Alertá-lo acerca dos excessos de credulidade e ceticismo;

3. Servir de meio de comunicação entre as pessoas que compreendem a doutrina “sob seu verdadeiro ponto de vista moral”;

4. Veicular relatos de fenômenos espíritas, psicológicos e antropológicos que contribuam para a elucidação da natureza espiritual do ser humano;

5. Fazer a “apreciação racional” desses fenômenos e examinar-lhes as conseqüências;

6. Publicar e analisar criticamente produções mediúnicas selecionadas, obtidas na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas ou enviadas por correspondentes;

7. Sondar a opinião dos homens e Espíritos sobre princípios em elaboração;

8. Examinar, à luz do Espiritismo, as crenças, lendas e tradições referentes aos Espíritos;

9. Comentar artigos de jornais, obras literárias, filosóficas e científicas à luz do Espiritismo.

Kardec editou a Revue até o número de abril de 1869, inclusive. Após a morte de Kardec (31/3/69) ela continuou sendo publicada, graças ao idealismo da Senhora Allan Kardec, de Pierre-Gaëtan Leymarie e de Jean Meyer, principalmente (AK III 153-57; Reformador, 09/1990, p. 286). A partir de 1913, aditou-se ao título da revista o artigo ‘la’ (‘a’), a qual ficou, desde então ‘La Revue Spirite’ (AK III 32 e 47).

Em lamentável decisão, a publicação foi extinta em 1976 por André Dumas, junto com a Union Spirite Française,[7] para dar lugar a Renaître 2000 e a Union des Sociétés Francophones pour l’Investigation Psychique et l’Étude de la Survivance (USFIPES),

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ambas de cunho não-espírita. Sob a lúcida e firme direção de Francisco Thiesen, a FEB envidou esforços para salvá-la em 1977, não obtendo sucesso (AK III 45-57). Felizmente, em 11 de maio de 1989 a Union Spirite Française et Francophone, com sede em Tours, conseguiu judicialmente recuperar o título, retomando a publicação da Revue, com periodicidade trimestral.[8]

5. A Société Parisienne des Études Spirites

1857 - Por volta de outubro desse ano iniciaram-se reuniões espíritas na residência do casal Allan Kardec, à Rue des Martyrs, 8. Aconteciam às terças-feiras à noite e o médium principal era a Srta. Ermance Dufaux. Com o número crescente de freqüentadores, fez-se indispensável encontrar um local mais amplo. A solução encontrada foi alugar uma sala, cotizando-se as despesas entre as pessoas. (OP 294-95; AK III 34)

1858 - A 1o de abril é fundada legalmente a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, ou, em francês, Société Parisienne des Études Spirites (SPES), cujo título Kardec freqüentemente abreviava para ‘Societé Spirite de Paris’, ‘Societé des Études Spirites’, ou mesmo ‘Societé de Paris’.

Foi nas reuniões semanais da Société que boa parte das atividades mediúnicas e de estudo supervisionadas por Kardec se desenvolveram. As portas da SPES não eram abertas ao público, conquanto houvesse “reuniões gerais” em que visitantes apresentados por membros da Société podiam ser admitidos; essas reuniões se alternavam, semanalmente, com as “reuniões particulares”, às quais somente os sócios tinham acesso. Isso se compreende perfeitamente, dados os objetivos das reuniões, ligados essencialmente à pesquisa teórica e experimental dos fenômenos. A Société era, assim como a Revue, um terreno de elaboração da doutrina espírita. (OP 294-95; AK III 34-44; II 36-37)

Durante a vida de Kardec, a SPES esteve em três endereços (OP 295; AK III 35-37 e 118):

1o /4/1858 - Galerie de Valois, 35, no Palais Royal. As reuniões eram às terças-feiras. O Palais Royal é importante edifício histórico situado ao lado do Louvre. Foi construído pelo Cardeal Richelieu no século XVII. Suas elegantes galerias externas, que circundam o jardim (Galeries Montpensier, de Beujolais e de Valois), foram mandadas construir por Louis-Philippe d’Orléans, na segunda metade do século seguinte. Na Galerie d’Orléans (do séc. XIX) ficavam as livrarias de Dentu (no 13) e Ledoyen (no 31), que editaram várias das obras espíritas de Kardec (ver adiante).

1o /4/1859 - Galerie Montpensier, 12, no Palais Royal (num salão do restaurante Douix). Nesse local SPES reunia-se às sextas-feiras.

20/4/1860 - Passage Ste.-Anne (Rue Ste.-Anne, 59). Nesse mesmo endereço, a partir de 15 de julho, passa a residir Kardec, que levou consigo a Revue Spirite. Embora nessa época já possuísse a casa da tranqüila Villa Ségur, Allan Kardec viu-se na contingência de se alojar nesse apartamento com a abnegada esposa, dividindo espaço com a Revue e a SPES, para economizar seu minguado tempo.

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1/4/1869 - Estava programada para essa data a transferência provisória da Société para a Librairie Spirite, Rue de Lille, 7. Com a desencarnação de Kardec, a transferência ainda se verifica, mas a SPES não se sustenta por muito tempo.

6. As outras obras importantes de Allan Kardec

Fornecemos a seguir alguns dados sobre as principais obras de Allan Kardec (além de O Livro dos Espíritos, de que já tratamos; para uma lista possivelmente completa, ver AK III 15, 18 e 19). Algumas das informações referentes a dias e meses das publicações foram colhidas nas edições da FEB. Quanto às edições em francês atuais, indicamos as que pessoalmente possuímos; em alguns casos, há nas livrarias outras edições.[9] Abreviaremos os dados referentes aos editores originais segundo estas convenções (note-se que várias das obras saíram por mais de um editor):

Dentu E. Dentu, Libraire. Palais Royal, Galerie d’Orléans, 13.

Ledoyen Ledoyen, Libraire. Palais Royal, Galerie d’Orléans, 31.

Didier Didier et Cie., Libraires-Éditeurs. Quai des Augustins, 35.[10]

1858 - Instrução Prática sobre as Manifestações Espíritas (Instruction pratique sur les manifestations spirites). Contendo a exposição completa das condições necessárias para se comunicar com os Espíritos, e os meios de se desenvolver a faculdade mediadora nos médiuns. Paris, bureau da Revue Spirite, Rue des Martyrs, 8; Dentu; Ledoyen.

Com a publicação de O Livro dos Médiuns, em 1861, Kardec deixou de imprimir a Instrução (152 pp.), à época já esgotada, considerando-a superada, quanto à abrangência, pela nova obra. O livro é, porém, de significativo valor histórico; hoje está novamente disponível em francês (Paris, La Diffusion Scientifique) e em português, em tradução de Cairbar Schutel (in: Iniciação Espírita, 6a ed., São Paulo, Edicel, 1977; foi também publicado pela Casa Editora O Clarim, de Matão, em 1987).

1859 - O que é o Espiritismo (Qu’est-ce que le Spiritisme). Introdução ao conhecimento do mundo invisível pelas manifestações dos Espíritos, contendo o resumo dos princípios da doutrina espírita e respostas às principais objeções.[11] Ledoyen. [100 pp.]

Edição francesa corrente: Paris, Dervy-Livres. Tradução brasileira recomendada: Rio, FEB (não se indica o tradutor).

1860 - (março) - Segunda edição de O Livro dos Espíritos. Contendo os princípios da doutrina Espírita sobre a imortalidade da alma, a natureza dos Espíritos e suas relações com os homens; as leis morais, a vida presente, a vida futura e o porvir da humanidade. Segundo o ensino dado pelos Espíritos Superiores com o auxílio de diversos médiuns, recolhidos e ordenados por Allan Kardec. Segunda edição, inteiramente refundida e consideravelmente aumentada. Didier; Ledoyen.

Acima do título, aparece agora a frase “Filosofia espiritualista”. Essa nova edição, que se tornou definitiva, tem 1019 questões, distribuídas em quatro partes. É acrescentada a Conclusão, mas o índice alfabético infelizmente não mais existe. A forma de exposição dupla não aparece em nenhuma das partes. As notas vêm agora logo

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após as respostas dos Espíritos, sendo muitíssimo mais numerosas; é fácil ver que muitas delas provêm do texto corrido da primeira parte da primeira edição.[12]

1861 - (15 de janeiro) - O Livro dos Médiuns (Le livre des médiums), ou guia dos médiuns e dos evocadores. Contendo o ensino especial dos Espíritos sobre a teoria de todos os gêneros de manifestações, os meios de se comunicar com o mundo invisível, o desenvolvimento da mediunidade, as dificuldades e os escolhos com que se pode deparar na prática do Espiritismo. Para fazer seqüência ao Livro dos Espíritos. Didier; Ledoyen. [498 + iv pp.; AK III 173]

1861 - Segunda edição de O Livro dos Médiuns. Revista e corrigida com o concurso dos Espíritos, e acrescida de grande número de instruções novas. Didier; Ledoyen. [510 + viii pp.]

Edição francesa corrente: Paris, Dervy-Livres. Edição brasileira recomendada: FEB, tradução de Guillon Ribeiro, inteiramente revista a partir da 59ª edição.

1862 - (fevereiro) - O Espiritismo na sua expressão mais simples (Le Spiritisme à sa plus simple expression). Exposição sumária do ensino dos Espíritos e de suas manifestações. Ledoyen. [36 pp.]

Em 1994 esse opúsculo foi recentemente reeditado pelo Centre d’Études Spirites Allan Kardec, de Paris. Existem várias traduções para o vernáculo, sendo hoje disponíveis as de Dafne R. Nascimento, publicada pela Federação Espírita do Estado de São Paulo em 1984, e a de Joaquim da Silva Sampaio Lobo (in:Iniciação Espírita, 6a ed., São Paulo, Edicel, 1977).[13]

1862 - Viagem Espírita em 1862 (Voyage spirite en 1862). Contendo: 1. As observações sobre o estado do Espiritismo; 2. As instruções dadas por Allan Kardec nos diferentes grupos; 3. As instruções sobre a formação dos grupos e das sociedades, e um modelo de regulamento para o uso deles e delas. Ledoyen. [64 pp.]

Esse livro é atualmente publicado em Paris pela Éditions Vermet; no Brasil, em Matão, pela Casa Editora O Clarim, em tradução de Wallace Leal Rodrigues. Nenhuma dessas edições trazem dizeres após o título; tomamo-los de AK III 18.[14] Afora as mencionadas instruções e regulamento, o corpo da obra consiste de três discursos proferidos por Kardec aos espíritas de Lyon e Bordeaux em sua famosa viagem.

1864 - (abril) - Imitação do Evangelho segundo o Espiritismo (Imitation de l’Évangile selon le Spiritisme). Contendo a explicação das máximas morais do Cristo, sua concordância com o Espiritismo e sua aplicação às diversas posições da vida. Por Allan Kardec, autor do Livro dos Espíritos. Fé inabalável só o é a que pode encarar frente a frente a razão, em todas as épocas da Humanidade. Paris, os editores do Livro dos Espíritos; Ledoyen, Dentu, Fréd. Henri, livreiros, no Palais Royal, e no escritório da Revue Spirite, Rue e Passage Sainte-Anne, 59.

Essa obra, impressa na Imprimerie de P.-A. Bourdier et Cie, Rue Mazarine, 30, possui 444 + xxxvi páginas. É precursora de O Evangelho segundo o Espiritismo. No entanto, é de grande valor histórico, sendo essa a razão pela qual em 1979 a FEB reeditou-a em reprodução fotográfica. Não temos notícia de outras edições recentes, nem de traduções. Naturalmente, ‘imitação’ aqui não se deve entender no sentido hoje popular, de ‘cópia’, mas no de ‘prática’ (ver as anotações de Hermínio Miranda à edição febiana para esclarecimentos adicionais).

1865 - (1o de agosto) - O Céu e o Inferno, ou a Justiça Divina segundo o Espiritismo (Le ciel et l’enfer, ou la justice divine selon le Spiritisme). Contendo o

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exame comparado das doutrinas sobre a passagem da vida corporal à vida espiritual, as penas e recompensas futuras, os anjos e os demônios, as penas eternas, etc.; seguido de numerosos exemplos acerca da situação real da alma durante e depois da morte. “Por mim mesmo juro, disse o Senhor Deus, que não quero a morte do ímpio, senão que ele se converta, que deixe o mau caminho e que viva.” (Ezequiel, 33:11). Paris; os editores de O Livro dos Espíritos, Librairie Spirite.

Em nossos dias, está disponível edição belga da Éditions de l’Union Spirite. A tradução da FEB é, neste caso, de Manuel Quintão. (AK III 108 faz menção à “21a edição, revista, 1974, FEB.”)

1866 - O Evangelho segundo o Espiritismo (L’Évangile selon le Spiritisme).

Os dizeres da página de rosto são idênticos aos de Imitation, exceto pela data e pela frase “Terceira edição, revista, corrigida e modificada”. Segundo se infere do que é dito no prefácio de Thiesen à edição febiana de Imitation (página 15, não numerada), a segunda edição, de 1865, seria apenas outra tiragem da edição princeps. No entanto, em AK III 18 está escrito: “Da 2a ed. 1865 em diante, essa obra tomou novo título...”, querendo-se com isso dizer que já na 2a edição o título fora mudado para O Evangelho segundo o Espiritismo, tal como consta na coluna 322 do tomo II do Catalogue Général des livres imprimés de la Bibliothèque Nationale (Auteurs), Paris, Imprimerie Nationale, MDCCCXCIX, edição essa assim catalogada na referida Biblioteca: R 39901. Na Revue de 1865, meses antes do lançamento da 3a edição, já se fazia referência, em artigos, a O Evangelho segundo o Espiritismo, certamente da 2aedição.[15]

De qualquer modo, é a terceira edição que se tornou definitiva, servindo de base para as edições posteriores em francês e nos vários idiomas em que foi traduzida. Também devido à sua raridade e seu valor histórico, a FEB lançou, em 1979, uma reprodução fotográfica dessa edição. Na França, é hoje em dia publicada por La Diffusion Scientifique. Em português, a tradução clássica recomendada é a de Guillon Ribeiro (FEB), inteiramente revista a partir da 104aedição.

1868 - (6 de janeiro) - A Gênese, os milagres e as predições segundo o Espiritismo (La genèse, les miracles et les prédictions selon le Spiritisme). Paris, Librairie Internationale.

Esse foi o último livro publicado por Kardec. Pode ser encontrado hoje em edição da La Diffusion Scientifique, de Paris. A corrente edição da FEB foi traduzida por Guillon Ribeiro, da 5a edição francesa, “revista, corrigida e aumentada”.

1890 - Obras Póstumas (Œuvres Posthumes). Paris, Société de Librairie Spirite. [450 pp.]

Organizado e editado por Pierre-Gaëtan Leymarie, esse livro reúne importantes textos de Kardec, quer de caráter teórico, sobre diversos assuntos, quer sobre fatos relativos às atividades espíritas do mestre. Em AK III 19 lê-se que uma segunda edição veio a lume ainda no mesmo ano de 1890. Guillon Ribeiro traduziu o livro para a FEB, a partir da primeira edição francesa. Hoje está disponível, em francês, a edição parisiense da Dervy-Livres, em que, no entanto, as matérias foram rearranjadas e renomeadas relativamente à edição original de Leymarie. Um aprofundado estudo sobre a história dessa obra pode ser lido no artigo “No centenário de Obras Póstumas”, de Zêus Wantuil, estampado em Reformador de janeiro de 1990, pp. 3 e 4.

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Consoante o objeto deste nosso trabalho, a lista que acaba de ser dada menciona somente os textos mais importantes, dando, a seu respeito, apenas algumas informações básicas. O volume III da obra Allan Kardec é de consulta obrigatória para o estudioso que queira acercar-se da fonte mais extensa e segura de dados sobre o conjunto da produção de Kardec.

7. A partida de Allan Kardec e alguns acontecimentos posteriores

1869 - (31 de março) - Desencarna subitamente Allan Kardec, enquanto atende a um caixeiro de livraria, no seu apartamento da Rue Ste.-Anne, muito provavelmente vitimado pela ruptura de um aneurisma de aorta (AK III 110, 116 e 119). No dia seguinte, deveria desocupar esse imóvel, indo para a casa da Villa Ségur; os escritórios da Revue iriam para a Rue de Lille, 7 (onde funcionava a Librairie Spirite), que sediaria também a SPES.

O corpo foi sepultado ao meio-dia de 2 de abril, no cemitério de Montmartre. Estima-se que mais de mil pessoas acompanharam o cortejo, que seguiu pelas ruas de Grammont, Laffitte, Notre-Dame-de-Lorette, Fontaine e pelo Boulevard de Clichy. À beira da sepultura, Camille Flammarion, astrônomo e médium da SPES, pronunciou o seu importante discurso, que a FEB fez figurar na sua edição de Obras Póstumas. Na primeira reunião da SPES após esse fato, os membros presentes lançaram a idéia de se levantar um monumento ao mestre, que logo recebeu adesão de espíritas de muitas cidades. Foi assim que se fez construir o famoso dólmen do cemitério Père-Lachaise, para onde os restos mortais de Kardec foram transladados a 29 de março de 1870.

1870 - (31 de março) - Inaugura-se o monumento druida do Père-Lachaise. Esse famoso cemitério é considerado museu, tendo sido ali sepultados inúmeros dos grandes vultos franceses e mesmo de outros países. O de Kardec é o túmulo mais visitado e o mais florido de todos.[16]

Quando de sua inauguração, o dólmen não registrava a célebre frase “Nascer, morrer, renascer ainda e progredir continuamente, tal é a lei”, que foi insculpida ainda em 1870. Ao contrário do que muitas vezes se afirma, essa frase não se deve textualmente ao próprio Kardec, não obstante represente corretamente o pensamento espírita (AK III 118-152).

1871 - ( junho) - Pierre-Gaëtan Leymarie assume a gerência da Revue e da Librairie Spirite (AK III 157).

1875 - Vêm à público as primeiras edições brasileiras de livros de Kardec (excetuando-se o já citado opúsculo O Espiritismo na sua Expressão mais simples, publicado em São Paulo em 1862; ver nota no 10, acima): O Livro dos Espíritos, O Livro dos Médiuns e O Céu e o Inferno, traduzidos pelo Dr. Joaquim Carlos Travassos. No ano seguinte, 1876, também apareceria, pelo mesmo tradutor, O Evangelho Segundo o Espiritismo. O Editor dessas obras foi B. L. Garnier, do Rio de Janeiro. (AK III 175-80)

1883 - (21 de janeiro) - Desencarna Madame Allan Kardec. Dois dias após seu corpo é sepultado junto ao do esposo, no Père-Lachaise, saindo o féretro de sua casa na Villa Ségur. Amélie-Gabrielle Boudet nascera em 1795, a 23 de novembro, e não a 21, como se insculpiu no túmulo. (AK III 158-60)

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1883 - (21 de janeiro) - Fundação, por Augusto Elias da Silva, da revista Reformador.

1884 - (2 de janeiro) - Fundação da Federação Espírita Brasileira, também por Augusto Elias da Silva, à qual Reformador passa a pertencer.

1898 - A Revue muda-se da Rue du Sommerard, 12 para a Rue St.-Jacques, 42, onde permaneceu por um bom tempo; no local existe hoje a Librairie Leymarie, que pertenceu a Pierre-Gaëtan Leymarie. (AK III 226-27)

1923 - Jean Meyer funda a Maison des Spirites, na Rue Copernic, 8 (AK I 172; cf. porém AK III 203 ). Continha arquivos importantes que foram destruídos pelos nazistas. Sediou a Éditions Jean Meyer (B.P.S), que publicou muitas das obras clássicas do Espiritismo, bem como a Revue, de 1923 a 1971, quando morreu Hubert Forestier (AK III 227).

8. Relação dos endereços:

Fornecemos abaixo uma relação dos principais endereços ligados ao Espiritismo na França, destinada a facilitar visitas e a localização em mapas:

1) Rue Sale, 76 (Lyon) - Local onde nasceu Rivail.

2) Rue de la Harpe, 117 - Rivail estava nesse endereço em janeiro de 1823.

3) Rue Vaugirard, 65 - Rivail esteve nesse endereço pelo menos de 1828 a 1831.

4) Rue Christine, 5 - Imprimerie de Pilet-Ainé, que em 1824 publicou o primeiro livro de Rivail.

5) Rue de Sèvres, 35 - Institution Rivail, de 1826 a 1834; Lycée Polymathique, até 1850.

6) Rue Grange-Batelière, 18 - Casa da Sra. Plainemaison, onde Rivail fez as primeiras observações, em maio de 1855.

7) Rue Rochechouart - Família Baudin, 1855. Aqui começaram as pesquisas sistemáticas de Rivail.

8) Rue Lamartine - Novo endereço dos Baudin, a partir de 1856. Grande parte do trabalho inicial de Kardec desenvolve-se nesse local.

9) Rue Tiquetonne, 14 - Casa do Sr. Roustan. Com a médium Srta. Japhet, Rivail realizou aí importantes trabalhos, como a revisão de O Livro dos Espíritos.

10)Rue des Martyrs, 8 (segundo andar, ao fundo do pátio) - Residência de Rivail pelo menos desde março de 1856, ficando até 14/7/1860. Em outubro de 1857, começaram aí as reuniões de estudo que dariam origem à SPES. No local foi lançada 1a edição de O Livro dos Espíritos (18/4/57) e a Revue Spirite (1/1/58).

11)Saint-Germain-en-Laye (23 km oeste de Paris) - Imprimerie de Beau, que imprimiu a 1a ed. de O Livro dos Espíritos e a Revue Spirite.

12)Galerie d’Orléans, 13 (Palais Royal) - Dentu, editor da 1a edição de O Livro dos Espíritos, da Instrução Prática, da Imitação e de O Evangelho.

13)Galerie d’Orléans, 31 (Palais Royal) - Ledoyen, editor da 2a ed. de O Livro dos Espíritos, da Instrução, de O Livro dos Médiuns, de O Espiritismo em sua expressão

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mais simples, da Viagem Espírita, da Imitação, de O Evangelho e de O Céu e o Inferno.

14)Galerie de Valois, 35 (Palais Royal) - primeiro endereço da SPES, a partir de 1/4/58 (reuniões às terças-feiras)

15)Galerie de Montpensier, 12 (Palais Royal; restaurante Douix) - segundo endereço da SPES, a partir de 1/4/59.

16)Quai des Augustins, 35 - Didier et Cie, editor da 2a edição de O Livro dos Espíritos, de O Livro dos Médiuns e de O Céu e o Inferno.

17)Rue Mazarine, 30 - Imprimerie de P.-A. Bourdier et Cie, que imprimiu L’Imitation de l’Évangile, em abril de 1864.

18)Passage Sainte-Anne (Rue Sainte-Anne, 59) - SPES, a partir de 20/4/60; domicílio de Kardec e Revue Spirite, a partir de 15/7/60;

19)Villa Ségur (Av. de Ségur, 39) - casa de propriedade de Kardec pelo menos desde 1860, para a qual se mudaria definitivamente em 1/4/1869. O casal por vezes usava a casa para recepcionar visitas e para realizar trabalhos que exigiam recolhimento. Amélie-Gabrielle ficou nela até sua morte, em 1883. Era desejo de Kardec que a casa se transformasse, quando não mais estivessem encarnados ele e a esposa, em abrigo para espíritas desvalidos.

20)Rue de Lille, 7 - Revue e SPES depois da morte de Kardec (31/3/69); aí já funcionava a Librairie Spirite.

21)Rue du Sommerard, 12 - Sediou a Revue por breve período, de 1897 (quando foi liquidada a Librairie Spirite ) a 1898 (AK III 202, 227 e 262).

22)Rue Saint-Jacques, 42 - Librairie Leymarie, que abrigou a Revue de 1898 até 1923 (AK III 227); existe ainda hoje como livraria espiritualista.

23)Rue Copernic, 8 - Maison des Spirites, fundada em 1923 por Jean Meyer (AK I 172), funcionou até a década de 1970.

24)Rue Jean-Jacques Rousseau, 15 - Union Spirite Française, fundada em 1919 por Jean Meyer e Gabriel Delanne; substituída em 1976 pela U.S.F.I.P.E.S.

25)Rue du Docteur Fournier, 1, 37000 Tours - Union Spirite Française et Francophone, que atualmente publica La Revue Spirite.

26)Rue de Flandre, 131, Résidence Île de France, bâtiment E1, 75019 Paris, tel.: (01)42090869- Centre d’Études Spirites Allan Kardec (em funcionamento).

27)Cemitério de Montmartre (região norte de Paris) - Sepultamento de Kardec a 2/4/69.

28)Cemitério do Père-Lachaise (região leste de Paris) - Sepultura definitiva de Kardec, a partir de 29/3/70; o dólmen é inaugurado dois dias depois.

[1] Gostaríamos de expressar nosso agradecimento a Zêus Wantuil, que leu com excepcional cuidado uma versão preliminar deste trabalho, contribuindo, com sua experiência e erudição, para que diversas falhas de conteúdo e de forma fossem eliminadas. Forneceu-nos ainda algumas informações históricas bastante relevantes, que não pudéramos haver obtido de outra forma; as principais delas são explicitamente indicadas nos locais pertinentes do texto.

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[2] Na p. 79 do vol. I da obra Allan Kardec, encontra-se estampada a página de rosto de uma edição parisiense de 1961 do livro de Moreil, da editora Sperar. Em sua introdução a esse vol. I, Thiesen se refere, à p. 26, a uma tradução para o vernáculo, de Miguel Maillet, publicada sem data em São Paulo pela Edicel. Zêus Wantuil gentilmente informou-nos que tal tradução brasileira teve sua impressão concluída em junho de 1966.[3] A primeira edição dessa biografia data de 1896 e aparecia traduzida na coletânea O Principiante Espírita, que a FEB publicava no passado; a quarta edição foi prefaciada por Léon Denis (ver Allan Kardec, vol. I, pp. 200, 198 e 29; vol. II, p. 15). Há referências a uma “nouvelle édition”, de 1910, com prefácio de Gabriel Delanne (ver ibid., vol III, p. 117 e vol II, p. 15).[4] Em Obras Póstumas, p. 271, há uma comunicação atribuída à mediunidade da Senhora (“Mme” ) Baudin; teria sido uma falha tipográfica, ou ela também era médium? Embora na página 267 Kardec diga que os médiuns eram “as duas senhoritas Baudin”, nas comunicações mediúnicas transcritas nunca especifica qual serviu de médium, escrevendo simplesmente “MlleBaudin”. Na Revue Spirite de 1858 (ver AK II 64-65) Kardec refere-se explicitamente a uma série de comuncações transmitidas por Caroline, notando, incidentalmente, que “mais tarde o médium se serviu da psicografia direta”. Em OP 271 Kardec relata que em fins de 1857 ambas se casaram e a família se dispersou, ficando implícito que não pôde mais contar com sua mediunidade. Em seus controversos comentários à edição bilíngüe da primeira edição de O Livro dos Espíritos (p. viii), Canuto Abreu avança que Caroline e a irmã tinham, em agosto de 1855, 16 e 14 anos, respectivamente, e que a mais velha era o médium principal; não pudemos confirmar essas informações em fontes independentes.[5] Esses dizeres que se seguem ao título são os que constam da página de rosto da obra (ver fac-símile à p. 75 de AK II). Observações semelhantes valem para os demais livros de Kardec mencionados nas seções seguintes.[6] Em 1866 sofreu séria crise de saúde, conseqüente à sobrecarga de trabalho e de preocupações, sendo assistido pelo Dr. Demeure, que o advertiu quanto aos limites das forças corporais. Por insistência desse Espírito, Kardec passou a contar, para a correspondência comum e a parte mais material das tarefas, com a ajuda de um secretário, o Sr. A. Desliens, médium e membro da SPES ( AK III 111, 286, 301, 302 e 42). Com a desencarnação do mestre em março de 1869, Desliens ficou como secretário-gerente da Revue, até junho de 1871 (AK III 157, 136).[7] A Union Spirite Française foi fundada por Jean Meyer e Gabriel Delanne em 1919, não tendo relação direta com a antiga SPES, que encerrou suas atividades ainda no século passado, bem pouco tempo após a morte de Kardec. (AK II 16 e 17; III 156)[8] Notícia veiculada em Reformador, abril e maio de 1990, pp. 128 e 130, respectivamente; ver também La Revue Spirite, janeiro de 1997 (no 30), p. 7. Assinaturas podem ser feitas escrevendo-se para o endereço da USFF: 1, Rue du Docteur Fournier, 37000 Tours, France. A USFF pode também ser contactada por e-mail ([email protected]), tendo recentemente inaugurado sua “página” na Internet (http://www.creaweb.fr/union-spirite). Além de editar La Revue Spirite, a Union, promove o intercâmbio entre os grupos espíritas da França (pouco mais de uma dezena, a maioria de criação recente), e tem representado o movimento espírita francês no plano internacional. Segundo se depreende de artigo da autoria de Affonso Soares publicado em Reformador de novembro de 1986 (p. 341), a USFF teria sido fundada em fins de 1985, junto com uma publicação oficial, a Revue des Spirites. No entanto, no número de junho de 1989 do periódico febiano, o mesmo autor diz que a fundação da Union ocorreu em 1987; este dado parece dever-se a um lapso. Neste artigo mais recente assevera-se ainda que a publicação trimestral se chama La Nouvelle Revue Spirite. Desse modo, antes de conseguir recuperar o título ‘La Revue Spirite’ o valoroso grupo espírita de Tours teria dado dois outros nomes à sua revista.[9] No “site” da Federação Espírita Brasileira na Internet (http://www.febrasil.org.br) estão disponíveis diversas obras de Kardec, em francês, português, inglês e espanhol. Alguns outros originais franceses podem ser encontrados no “site” do Centre d'Études Spirites Léon Denis (http://perso.wanadoo.fr/charles.kempf/). No primeiro desses endereços também está a Livraria Virtual da FEB, com seu rico acervo de obras. Destacamos ainda que as exemplares traduções febianas das obras de Kardec foram recentemente lançadas em CD-ROM, que pode ser adquirido escrevendo-se para a FEB ou para [email protected] .[10] Pierre-Paul Didier foi um dos mais dedicados colaboradores de Kardec, membro fundador da SPES, tendo nela atuado como médium (AK III 377, 79, 323 e 82); desencarnou em 2/12/1865, mas como Espírito continuou diretamente envolvido nas atividades de Kardec (ibid. 85, 92, 289).

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[11] Não vimos a primeira edição; nas edições a que tivemos acesso, há divergência quanto ao texto que segue ao título. O que traduzimos consta da edição atual da Dervy. Nas notícias da segunda edição de O Livro dos Espíritos (ver fac-simile no Reformador de abril de 1989, p. 105) está do seguinte modo: “Introduction à la connaissance du monde invisible ou des Esprits, contenant les principes fondamentaux de la doctrine spirite et la réponse à quelques objections préjudicielles.” O que se encontra em AK III 15 corresponde aproximadamente a esse texto.[12] Constatou-se, em época relativamente recente (ver Reformador, abril de 1989, pp. 104-107), que Kardec anexou à segunda edição algumas notas e erratas, destinadas a complementar e corrigir o texto. Pôde-se também verificar que na oitava edição elas ainda apareciam; não se sabe a partir de qual edição deixaram de figurar, nem por que Kardec não conseguiu inserir as correções e acréscimos refundindo o texto. Lamentavelmente, nem as edições francesas atuais nem as traduções para o vernáculo incorporam ou sequer mencionam as modificações, que o próprio Kardec considerava imprescindíveis. Parece-nos de suma importância que esse material venha a público de forma completa, e que seja incorporado às novas edições.[13] Em AK III 18, 176 e 353-54 informa-se acerca de três traduções antigas: uma por Alexandre Canu, colaborador da SPES, “que se achava à venda com J.P. Aillaud, Monlon e C..., em Lisboa, Rio de Janeiro e em Paris (1862); outra publicada em São Paulo, sem indicação de tradutor, pela Typographia Litteraria (1866); e finalmente outra da FEB, traduzida e anotada por Guillon Ribeiro (não se menciona a data da primeira edição, dizendo-se apenas que ainda há nos arquivos exemplares de 1921 e 1933).[14] Zêus Wantuil gentilmente confirmou-nos que são os que constam na edição original da obra.[15] As substanciais informações desse parágrafo foram-nos comunicadas por Zêus Wantuil, a quem agradecemos.[16] Destaca-se esse ponto no próprio mapa do cemitério. Na madrugada 2 de julho de 1989 o túmulo sofreu um atentado a bomba, que o danificou parcialmente, sendo posteriormente restaurado pela Prefeitura de Paris. (Reformador, julho de 1989, p. 194, e setembro de 1990, p. 284.)

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(Texto publicado em Mundo Espírita, 69 (1441), p. 5, fev./2002.)

Resenha: Le Livre des Esprits

Silvio Seno Chibeni

Em agosto de 1998, a Federação Espírita Brasileira (FEB) publicou obra de significativo valor

histórico: o original francês da segunda edição de Le Livre des Esprits (O Livro dos Espíritos), dado a

público no início de 1860. Como todos sabem, foi esta a edição que se tornou definitiva, tendo quase o

dobro da extensão da primeira edição, de 1857. O que a publicação traz de novo é o fato ser a

reprodução fotomecânica da edição original, a partir de precioso exemplar existente na biblioteca da

FEB. Temos, pois, o texto tal como saiu das mãos de Kardec (ou quase; ver adiante). Isso permite

conferir eventuais falhas de impressão nas edições atuais. De fato, já pudemos constatar, por exemplo,

algumas pequenas trocas de letras e falhas de pontuação na edição francesa corrente, da Dervy-Livres

(Paris, s.d., dépôt légal 1985; essa edição aparentemente coincide com a que a FEB digitalizou e

tornou disponível em seu site, embora no texto eletrônico conste “Éditions de l’Union Spirite

Kardeciste Belge, 1954”). Além disso, a nova publicação mostra exatamente a estética do texto

original, com a sóbria e criteriosa escolha de tipos, espaçamento, etc. que caracterizava as obras de

Kardec.

Infelizmente, a edição é limitada, não se encontrando à venda. Para o bem das pesquisas espíritas,

esperamos vivamente que os editores tornem o importante volume disponível para qualquer

interessado. Seria também desejável que a eventual reedição futura do livro apresentasse melhor padrão

gráfico. Pelo menos o exemplar que temos às mãos (que nos foi gentilmente cedido pela FEB) tem

diversas páginas com letras relativamente esmaecidas e, de um modo geral, falta nitidez em quase todo

o livro. Na sugerida reedição, poderiam ser utilizados os mesmos critérios e métodos técnicos

empregados nas excelentes reproduções do Imitation de l’Évangile selon le Spiritisme (1979), do

próprio Evangile selon le Spiritisme (1979), do Procès des Spirites (1975) e do Répertoire du

Spiritisme (1974). Esperamos, por fim, que a reprodução do Livre des Esprits represente a retomada

dessas felizes iniciativas da FEB, tão necessárias para enriquecer o material bibliográfico espírita, e que

novas obras de valor histórico sejam igualmente objeto de publicação.

Colaboraram nessa nova edição do Livro dos Espíritos o Conselho Espírita Internacional

(coordenação), o Instituto de Difusão Espírita (impressão) e a União Espírita Francesa e Francófona. A

esta última coube a realização de pesquisas na Biblioteca Nacional da França, para averiguar possíveis

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alterações nas edições que se seguiram à segunda. Foram de fato encontradas diversas mudanças,

conforme indica a Nota Explicativa dos editores. Passamos agora a indicar e comentar brevemente os

itens dessa nota, reservando para outros artigos a serem publicados por este periódico a consideração

detalhada de cada um deles, assim como de outros tópicos relacionados a essa edição.

1) Uma “Nota” aos Prolegômenos, que foi depois retirada, a partir da 10a edição, de 1863. Na

edição da FEB a nota foi reproduzida no local em que originalmente estava, ou seja, no final dos

Prolegômenos.

2) Uma “Errata”, de uma página de extensão. Ela apareceu apenas na 5a edição, de 1861, após a

última página. Dela, apenas um item, a supressão de duas palavras no final da resposta à questão 586,

foi incorporado às edições posteriores. Na edição da FEB a errata foi reproduzida na posição original.

3) Pequenos acréscimos e modificações, em sete pontos, no texto da 13a edição, de 1865, que

foram incorporados às edições subseqüentes. A edição da FEB incorpora essas sete alterações no

próprio texto, sem nenhuma indicação local; a Nota Explicativa menciona as mudanças, mas em dois

casos as informações dadas não permitem saber exatamente o que foi alterado, mencionando-se apenas,

genericamente, “modificações” ou “acréscimos” nas linhas tais e tais. Isso desaponta o pesquisador

espírita. O problema poderá, no entanto, ser facilmente corrigido na futura reedição, que esperamos

ver, fornecendo-se, na Nota Explicativa ou em um apêndice, as indicações completas e precisas. Seria

preferível que as alterações não fossem incorporadas ao texto, com atualmente. Afinal, trata-se de

reprodução fotográfica do exemplar da segunda edição, e nela tais alterações não figuravam. Teríamos,

então, um texto histórico puro, tal qual era vendido no Quai des Augustins ou no Palais Royal em 1860.

Como saiu, o texto nem é este texto estritamente histórico, pois incorpora sem aviso preciso as

alterações de 1865, nem é o texto ideal que, aparentemente, Kardec gostaria de ter visto, pois não

incorpora, por razões gráficas, os itens da Errata de 1861, com exceção da supressão das duas palavras

no item 586.

Ademais, quanto a este último ponto, temos de reconhecer que provavelmente nunca saberemos

ao certo o que seria esse texto ideal: Por que a Nota aos Prolegômenos foi, afinal, retirada? Por que a

Errata só apareceu na 5a edição? Por que, dela, somente um item mínimo foi incorporado às edições

subseqüentes, quando a existência das outras alterações mostra claramente que Kardec teve a

oportunidade de incorporar todos? Estudos históricos poderão, talvez, nos dar bases para alguma

suposição acerca disso tudo, mas a rigor nunca saberemos.

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A página de rosto da segunda edição de

O Livro dos Espíritos

Silvio Seno Chibeni

Página de rosto, ou folha de rosto, é a página inicial de um livro, onde devem

aparecer as informações básicas sobre a obra: o título e subtítulo, nome completo do autor,

tradutor (se houver), edição, local de publicação, editora e ano de publicação. As

convenções acadêmicas atuais estabelecem também que no verso dessa página sejam

registradas informações mais detalhadas, como a data da primeira edição, o título original,

o copyright e o ISBN (International Standard Book Number), além de dados para

indexação e catalogação bibliográfica.

Atualmente, há muito pouca preocupação no meio espírita com essas normas, sendo

freqüente que nas obras espíritas não se forneçam vários desses dados importantes,

dificultando trabalhos de pesquisa mais refinados. Allan Kardec, porém, sempre cuidou

com bastante zelo do aspecto formal de seus livros. Além de conterem todas as informações

bibliográficas básicas, suas páginas de rosto apresentavam um aspecto gráfico sóbrio e

claro. Vale a pena, pois, reproduzirmos abaixo (mantendo, aproximadamente, os tipos e

espaçamentos do original) a página de rosto da 2a edição de O Livro dos Espíritos, de 1860,

edição esta que estamos comentando nesta série de artigos (ver resenha em Mundo Espírita,

... de ...).

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PHILOSOPHIE SPIRITUALISTE ––––––––

LE LIVRE

DES ESPRITS

CONTENANT

LES PRINCIPES DE LA DOCTRINE SPIRITE

SUR L’IMMORTALITÉ DE L’ÂME, LA NATURE DES ESPRITS ET LEUR RAPPORTS AVEC LES HOMMES; LES LOIS MORALES, LA VIE PRÉSENTE, LA VIE

FUTURE ET L’AVENIR DE L’HUMANITÉ

Selon l’enseignement donné par les Esprits supérieurs à 1’aide de divers médiums

RECUEILLIS ET MIS EN ORDRE

PAR ALLAN KARDEC

–––––––– SECONDE EDITION

Entièrement refondue et considérablement augmentée

PARIS

DIDIER ET Cie, LIBRAIRES-ÉDITEURS

35, QUAI DES AUGUSTINS LEDOYEN, Libraire, Galérie d’Orléans, 31

AU PALAIS-ROYAL

1860 Réserve de tous droits.

Faremos agora a alguns comentários acerca do conteúdo dessa página, indicando

todas as alterações com relação à página de rosto da 1a edição, de 1857.

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1. Filosofia espiritualista. Essa frase não constava da 1a edição. No primeiro

parágrafo da Introdução de ambas as edições, no entanto, Kardec forneceu esclarecimentos

preliminares básicos sobre a natureza da disciplina que o livro estava inaugurando: o

Espiritismo. O termo ‘Espiritismo’ é um neologismo criado por Kardec exatamente para

distinguir a nova disciplina da doutrina geral do espiritualismo, cujas origens remontam a

épocas imemoriais. O Espiritismo é uma forma especial e bem delimitada de espiritualismo.

A frase inicial da página de rosto indica, num par de palavras, que a obra insere-se no

escopo do espiritualismo.

A palavra filosofia, por outro lado, indica a metodologia da nova disciplina.

Contrariamente ao que se entende popularmente por esse termo, e mesmo contrariamente a

um sentido mais especializado que assumiu contemporaneamente no meio acadêmico, por

filosofia entendia-se, à época, qualquer disciplina que abordasse de forma sistemática e

racional uma área do saber. Esse significado remonta à Antigüidade. Para os Gregos, que

conceberam tal enfoque racional e criaram o termo, filosofia era o amor do conhecimento,

em suas múltiplas áreas. O que hoje chamamos ciência era, por exemplo, parte da filosofia.

No tempo de Kardec esse sentido original da palavra ainda prevalecia, e foi geralmente

empregado por Kardec em suas obras. Assim, ao dizer que o Espiritismo era uma filosofia,

não estava excluindo seu caráter científico, muito pelo contrário. Além disso, como a ética

ou moral é uma das áreas da filosofia – e isso até hoje –, aquela designação também não

excluía o aspecto moral do Espiritismo.

2. Quanto ao título do livro, procura refletir o fato de terem sido os Espíritos a fonte

de onde se originou o Espiritismo, primeiro pela produção de fenômenos que mostraram a

existência deles, e depois pelas informações detalhadas que forneceram sobre sua natureza.

Elaboradas por Kardec, tais informações vieram a constituir o corpo de princípios básicos

da filosofia espírita. Sendo o livro, como se afirma nos Prolegômenos, o “repositório” do

ensino dos Espíritos, a denominação de O Livro dos Espíritos era inteiramente apropriada,

mesmo que ele não tenha sido fornecido pronto pelos Espíritos.

3. A afirmação de que o livro “contém os princípios da doutrina espírita” é

igualmente justa. Embora não tenha, nem pretenda ter, um caráter final, fechado, dada a

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progressividade do novo ramo do saber, o livro certamente contém os seus “princípios”, ou

seja, os fundamentos teóricos sobre os quais deve assentar todo o desenvolvimento ulterior

da disciplina. O reconhecimento da existência desses princípios, e o seu emprego efetivo

nas pesquisas ulteriores é de suma importância, segundo as análises filosóficas

contemporâneas. É exatamente o que ocorre com as ciências acadêmicas maduras. (Veja-se,

a respeito, nossos artigos “A excelência metodológica do Espiritismo” e “O paradigma

espírita”, cujas referências bibliográficas são fornecidas no final.)

4. Vem, em seguida, a indicação sumária dos tópicos acerca dos quais versam esses

princípios: “a imortalidade da alma, a natureza dos Espíritos e suas relações com os

homens, as leis morais, a vida presente, a vida futura e o porvir da humanidade”. Essa

enumeração é bastante fiel ao que de fato existe na obra. É interessante observar que o

primeiro item da lista, a imortalidade da alma, foi introduzido na 2a edição. Não se trata, na

verdade, da indicação de uma expansão do escopo da obra, mas simplesmente da

explicitação do segundo item. O esclarecimento espírita da natureza dos Espíritos evidencia

que são nada mais nada menos do que as almas dos homens, e que estas são imortais.

Kardec certamente julgou conveniente explicitar isso já na página inicial do livro.

5. “Segundo o ensino dado pelos Espíritos superiores, com o auxílio de diversos

médiuns, recolhidos e organizados por Allan Kardec”. Essa frase indica sucintamente a

fonte da doutrina espírita (os Espíritos, no sentido explicado no item 2, acima), o modo

específico da obtenção das informações deles provenientes (as comunicações mediúnicas),

e o papel que coube a Kardec. Fica, assim, claro o caráter geral da obra. Aparentemente,

Kardec estimou que havia lugar para alguma confusão na frase equivalente da 1a edição,

que era: “Escrito sob o ditado e publicado por ordem de espíritos superiores”. A

compreensão correta pressupõe certa familiaridade com a área, e isso naturalmente não

podia ser assumido. A expressão “escrito sob o ditado” poderia dar a impressão de que a

obra foi dada pronta – o que está muito longe da realidade. Vale a pena transcrever, acerca

desse ponto, o item 13 do capítulo 1 de A Gênese, capítulo em que Kardec faz uma lúcida

análise do caráter do Espiritismo:

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Por sua natureza, a revelação espírita tem duplo caráter: participa ao mesmo tempo da revelação divina e da revelação científica. Participa da primeira, porque foi providencial o seu aparecimento e não o resultado da iniciativa, nem de um desígnio premeditado do homem; porque os pontos fundamentais da doutrina provêm do ensino que deram os Espíritos encarregados por Deus de esclarecer os homens acerca de coisas que eles ignoravam, que não podiam aprender por si mesmos e que lhes importa conhecer, hoje que estão aptos a compreendê-las. Participa da segunda, por não ser esse ensino privilégio de indivíduo algum, mas ministrado a todos do mesmo modo; por não serem os que o transmitem e os que o recebem seres passivos, dispensados do trabalho da observação e da pesquisa, por não renunciarem ao raciocínio e ao livre-arbítrio; porque não lhes é interdito exame, mas, ao contrário, recomendado; enfim, porque a doutrina não foi ditada completa, nem imposta à crença cega; porque é deduzida, pelo trabalho do homem, a observação dos fatos que os Espíritos lhe põem sob os olhos e das instruções que lhe dão, instruções que ele estuda, comenta, compara, a fim de tirar ele próprio as ilações e aplicações. Numa palavra, o que caracteriza a revelação espírita é o ser divina a sua origem e da iniciativa dos Espíritos, sendo a sua elaboração fruto do trabalho do homem.

Por outro lado, a expressão “e publicado por ordem de espíritos superiores” poderia

sugerir uma relação de comando entre os Espíritos e Kardec, e talvez a subserviência deste

– o que também de modo algum corresponde à realidade. No texto introdutório da segunda

parte das Obras Póstumas Kardec salienta:

Um dos primeiros resultados que colhi das minhas observações foi que os Espíritos, nada mais sendo do que as almas dos homens, não possuíam nem a plena sabedoria, nem a ciência integral; que o saber de que dispunham se circunscrevia ao grau, que haviam alcançado, de adiantamento, e que a opinião deles só tinha o valor de uma opinião pessoal. Reconhecida desde o princípio, esta verdade me preservou do grave escolho de crer na infalibilidade dos Espíritos e me impediu de formular teorias prematuras, tendo por base o que fora dito por um ou alguns deles.

(...) Vi logo que cada Espírito, em virtude da sua posição pessoal e de seus conhecimentos, me desvendava uma face daquele mundo, do mesmo modo que se chega a conhecer o estado de um país, interrogando habitantes seus de todas as classes, não podendo um só, individualmente, informar-nos de tudo. Compete ao observador formar o conjunto, por meio dos documentos colhidos de diferentes lados, colecionados, coordenados e comparados uns com outros. Conduzi-me, pois, com os Espíritos, como houvera feito com homens. Para mim, eles foram, do menor ao maior, meios de me informar e não reveladores predestinados.

Tais as disposições com que empreendi meus estudos e neles prossegui sempre. Observar, comparar e julgar, essa a regra que constantemente segui.

A frase “escrito por ordem e sob ditado de Espíritos superiores” aparece nos

Prolegômenos, em ambas as edições, mas ao encontrá-la o leitor já terá passado pela

Introdução, e disporá de esclarecimentos mais extensos nos parágrafos adjacentes. Para

figurar na folha de rosto a nova frase da 2a edição é mais apropriada, por ser mais precisa e

menos propensa a confusões.

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6. Em seguida, a página de rosto informa que se trata de uma “segunda edição,

inteiramente refeita e consideravelmente aumentada”. Esse dado é importante. Primeiro,

por prevenir o leitor de que é uma obra revista; depois, por indicar o dinamismo do projeto

kardequiano: a busca constante de aperfeiçoamento.

7. Por fim, temos os dados da edição: o local de publicação, os editores, a data e a

reserva de direitos. Quanto aos editores, houve uma mudança com relação à primeira

edição. Aquela fora publicada por E. Dentu, libraire, Palais Royal, Galérie d’Orléans, 13.

Dentu havia, por sinal, sido o editor de pelo menos uma das obras pedagógicas de Kardec,

ou melhor, Rivail: o Plan Proposé pour l’Amélioration de l’Éducation Publique, de 1828

(ver fac-símile da página de rosto em Textos Pedagógicos, obra editada por D. Incontri, que

traz a tradução desse Plano e de mais um texto de Rivail). Dentu ainda aparece como co-

editor da Instruction Practique sur les Manifestations Spirites, de 1858, do Imitation de

l’Évangile selon le Spiritisme, de 1864, e do Évangile selon le Spiritisme, de 1866. Didier e

Ledoyen foram editores ou co-editores de quase todos os livros espíritas de Kardec,

geralmente de forma conjunta, como no presente caso. Pierre-Paul Didier foi um dos mais

dedicados colaboradores de Kardec, membro fundador da Société Parisienne des Études

Spirites, tendo nela atuado como médium (ver Allan Kardec, de Z. Wantuil e F. Thiesen,

vol. III, pp. 82, 377, 79 e 323); desencarnou em 2/12/1865, mas continuou, como Espírito,

diretamente envolvido nas atividades de Kardec (ibid., pp. 85, 92, 289).

8. Na página que faz face à folha de rosto há ainda alguns dados interessantes:

a) Há, no início, uma lista das “Obras do mesmo autor”: Qu’est-ce que le Spiritisme?

(1859), Instruction Practique sur les Manifestations Spirites (1858) e a Revue Spirite

(lançada em 1858). Ao título das duas primeiras obras seguem os dizeres das respectivas

páginas de rosto, o formato e o preço. No caso da Revue, indica-se o subtítulo, “Revista de

estudos psicológicos”, e a existência no final do livro de um “prospecto detalhado” sobre o

periódico. Possivelmente tratava-se de um folheto avulso, que não foi reproduzido na

edição histórica que estamos analisando nesta série de artigos.

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b) Vem, depois, o anúncio de uma obra “no prelo, a sair em abril de 1860”, cujo título

seria Le Spiritisme Expérimental (O Espiritismo Experimental). Os detalhes que seguem a

esse título são, com pequenas diferenças, os mesmos que figuram na página de rosto de O

Livro dos Médiuns, inclusive a frase “para dar seqüência ao Livro dos Espíritos”. É, pois,

seguro assumir que se tratava realmente do Livro dos Médiuns, e que Kardec mudou o

título na última hora! Note-se, a propósito, que a frase Espiritismo experimental aparece no

topo da página de rosto do Livro dos Médiuns, apropriadamente indicando a natureza da

obra. Segundo informação dada na edição corrente da tradução do Livro dos Médiuns

editada pela FEB, o livro saiu em Paris em 15/1/1861, o que mostra a ocorrência de um

atraso, relativamente às expectativas de Kardec por ocasião da redação do anúncio. (No

próximo artigo desta série veremos que Kardec repete essencialmente o mesmo anúncio no

Prefácio.)

c) Por fim, há uma nota dizendo que “as pessoas que queiram se comunicar com o

autor do Livro dos Espíritos, e que não saibam o seu endereço, podem lhe enviar suas cartas

... por intermédio do Sr. Ledoyen, livreiro, depositário de todas as suas obras ...”. Com o

crescimento do projeto espírita, Kardec deve ter julgado conveniente desvincular o seu

endereço pessoal daquele dos editores dos livros. Aparentemente, porém, a tentativa não foi

muito longe: assim como anteriormente com a Instruction Practique, nas páginas de rosto

do Imitation e do Évangile o endereço de Kardec voltaria a aparecer. E no caso da Revue

nunca houve indicação de nenhum editor, mas apenas o endereço de seus escritórios, que

sempre ficaram na residência de Kardec (rue des Martyrs até meados de 1860, e depois

passage Ste.-Anne, que desde abril abrigava também a Societé). Isso mostra o

extraordinário empenho de Kardec com o projeto do Espiritismo. Lembramos, a propósito,

que todas as despesas e riscos da edição pioneira de O Livro dos Espíritos e da Revue foram

inteiramente arcados por Kardec (ver a obra Allan Kardec, vol. II, pp. 76 e 257, e vol. III p.

22).

d) No pé da página está o impressor da obra (não confundir com o editor): P.-A.

Bourdier et Cie., rue Mazarine, 30, Paris. A informação é repetida na última página do livro

(onde costuma figurar em qualquer obra). Essa gráfica não é a mesma da 1a edição,

impressa na Imprimerie de Beau, em Saint-Germain-en-Laye.

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Referências:

CHIBENI, S. S. “A excelência metodológica do Espiritismo”, Reformador, novembro de

1988, p. 328-333, e dezembro de 1988, p. 373-378. (Reproduzido em Mundo

Espírita, n. 1384, novembro de 1999.)

––. “O paradigma espírita”, Reformador, junho de 1994, p. 176-80. (Também disponível,

junto com a referência anterior, no site do Grupo de Estudos Espíritas da Unicamp:

http://www.geocities.com/Athens/Academy/8482 .)

KARDEC, A. Le Livre des Esprits. Reprodução fotomecânica da 2a ed. francesa, com

adendos do Autor. 1a. ed., Rio, Federação Espírita Brasileira, 1998.

––––. Le Livre des Esprits. Reprodução fotomecânica da 1a ed. francesa. 1a ed, bilíngüe,

trad. e ed. Canuto Abreu. São Paulo, Companhia Editora Ismael, 1957.

––––. Revue Spirite. Texto eletrônico, Centre d'Études Spirites Léon Denis,

http://perso.wanadoo.fr/charles.kempf/

––––. A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo. Trad. Guillon Ribeiro.

23a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s. d.

––––. Obras Póstumas. Trad. Guillon Ribeiro. 18a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita

Brasileira, s.d.

INCONTRI, D. (ed.) Textos Pedagógicos. 2a ed. Bragança Paulista, Comenius, 1999.

WANTUIL, Z. & THIESEN, F. Allan Kardec, 3 vols. 1a ed., Rio, Federação Espírita

Brasileira, 1979/80.

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O prefácio de Kardec à segunda edição francesa de

O Livro dos Espíritos

Silvio Seno Chibeni

Em 1860, foi publicada a segunda edição de O Livro dos Espíritos, “inteiramente

refundida e consideravelmente aumentada”, conforme anuncia sua página de rosto.

Contém, como se sabe, de 1019 itens, distribuídos em quatro partes, enquanto que a

anterior, de 1857, tinha apenas 501, em três partes.

Kardec escreveu uma nota, ou prefácio, explicando as razões e critérios da nova

edição. Incompreensivelmente, esse prefácio não é atualmente reimpresso nas edições

brasileiras ou francesas, com a exceção da edição de Le Livre des Esprits publicada em

reprodução fotomecânica pela Federação Espírita Brasileira em 1998. (Para uma resenha,

ver Mundo Espírita, ... de ..., pp. ... .) Por seu valor histórico e elucidativo da natureza da

obra, reproduzimo-lo em seguida, traduzido para o português:

NOTA

SOBRE ESTA NOVA EDIÇÃO Anunciamos, na primeira edição desta obra, a publicação futura de uma parte

suplementar. Seria composta de todas as questões que não encontraram lugar naquela edição, ou que circunstâncias ulteriores e novos estudos tivessem originado. Como, porém, são todas relativas a uma ou outra das partes nela já tratadas, das quais são o desenvolvimento, sua publicação isolada não teria feito nenhuma seqüência. Preferimos, assim, esperar a reimpressão do livro, para fundir tudo num mesmo conjunto. É o que agora fazemos. Aproveitamos para conferir à distribuição das matérias uma ordem bem mais metódica, ao mesmo tempo que suprimimos tudo o que estava repetido. Esta reimpressão pode, pois, ser considerada uma obra nova, embora os princípios não tenham sofrido nenhuma alteração, com um pequeno número de exceções, que são antes complementos e esclarecimentos do que verdadeiras modificações. A coerência dos princípios expostos, não obstante a diversidade das fontes em que os buscamos, representa fato importante para o estabelecimento da ciência espírita. Nossa correspondência mostra que comunicações idênticas em todos os pontos, ao menos quanto ao fundo, foram obtidas em diferentes localidades, e isso mesmo antes da publicação de nosso livro. Ele veio confirmá-las e dar-lhes corpo regular. A história, por sua vez, prova que a maioria desses princípios

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foram proferidos pelos mais eminentes homens dos tempos antigos e modernos, trazendo-lhes, assim, a sua sanção.

O ensino relativo às manifestações dos Espíritos, propriamente ditas, bem como aos médiuns, forma uma parte distinta da filosofia espírita, podendo constituir objeto de um estudo especial. Havendo recebido desenvolvimentos bastante expressivos em conseqüência da experiência adquirida, acreditamos ser nosso dever fazer dele um volume separado, contendo as respostas dadas a todas as questões concernentes às manifestações e aos médiuns, além de numerosos comentários sobre o Espiritismo prático. Essa obra será a continuação ou complemento do LIVRO DOS ESPÍRITOS. 1

1 No prelo.

Daremos agora algumas informações complementares, tecendo alguns comentários

sobre as afirmações de Kardec nesse prefácio, seguindo a ordem em que são feitas.

1. O anúncio de “uma parte suplementar”, a que Kardec se refere, apareceu no final

do Epílogo da 1a edição (p. 158). Esse epílogo contém apenas três parágrafos, ocupando

uma página. O primeiro, sobre as causas do ceticismo quanto à doutrina espírita, foi

aproveitado integralmente na 2a edição, figurando no início da seção 17 da Introdução. O

segundo, sobre a natureza da ciência espírita e sobre o objetivo central do livro, teve igual

destino, formando o segundo parágrafo daquela seção, porém com o acréscimo de algumas

frases e a supressão de outra. O terceiro parágrafo é o seguinte:

O ensino dos espíritos prossegue, atualmente, acerca de diversas partes cuja publicação adiaram, para que tenham tempo de as elaborar e completar. A próxima publicação que dará seqüência aos três livros [partes] desta primeira obra conterá, entre outras coisas, os meios práticos pelos quais o homem pode neutralizar o egoísmo, fonte da maioria dos males que afligem a sociedade. Tal assunto toca todas as questões referentes à sua posição no mundo e ao seu porvir terrestre.

Vem, por fim, uma nota:

Nota. – Essa segunda parte será publicada por encomenda, sendo remetida às pessoas que se houverem inscrito para tal fim, por meio de solicitação escrita (grátis, sem qualquer pagamento antecipado).

Antes de comentarmos o conteúdo desses textos, atentemos num detalhe: a

publicação sob encomenda da parte suplementar. Isso não deve causar estranheza, se

lembrarmos que a publicação inicial do Livro dos Espíritos correu inteiramente por conta

de Kardec, ou seja, os custos de composição, impressão e distribuição foram cobertos por

seus limitados recursos financeiros. Não havia, é claro, nenhuma certeza de retorno, dado o

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caráter incomum da obra e os preconceitos vigentes. Ao estabelecer o esquema de

encomenda (ou “assinatura” – souscription) para a publicação suplementar, Kardec deve,

com toda probabilidade, ter sido movido pela prudência, evitando lançar-se num

empreendimento incerto e talvez demasiadamente pesado para a sua modesta posição. Com

as encomendas, poderia estimar com mais segurança a tiragem a ser feita, evitando

eventuais desperdícios.

Mas como vemos pela afirmação que abre o prefácio, esse projeto não foi

implementado, tendo sido substituído por outro melhor. É, pois, incorreta a interpretação de

Canuto Abreu, expressa em nota ao pé das páginas 158 e 159 de sua edição bilíngüe da 1a

edição de O Livro dos Espíritos, de que o anunciado suplemento seria o opúsculo Instrução

Prática sobre as Manifestações Espíritas (Instruction Pratique sur les Manifestations

Spirites, Paris, bureau da Revue Spirite, Rue des Martyrs, 8; Dentu; Ledoyen; 152 pp.), que

veio a público em 1858. Além de não ser compatível com o que diz Kardec, essa

interpretação não subsiste ao exame do conteúdo do opúsculo: ele não se dirige à questão

do controle do egoísmo, nem de sua relação com as posições presente e futura do homem.

Trata, sim, como o próprio título indica, da questão das manifestações espíritas. Com a

publicação de O Livro dos Médiuns, em 1861, Kardec deixou de imprimir o opúsculo, à

época já esgotado, considerando-o superado, quanto à abrangência e organização, pela nova

obra.

O que veio, então, a ser do material que teria formado o suplemento? O próprio

Kardec esclarece: ele foi incorporado à nova edição do Livro dos Espíritos. De fato, vemos

que na 2a edição o assunto do egoísmo recebeu atenção mais ampla e sistemática. Na 1a ele

havia ocupado diversos itens no capítulo “Da perfeição moral do homem”. Mas esse

capítulo integrava a parte “Das esperanças e consolações” (que era a terceira e última parte

do livro), e não a parte “Das leis morais” (que era a segunda parte). Na 2a edição o capítulo

foi deslocado para esta parte moral, onde se insere mais naturalmente. Além desse

rearranjo, o capítulo ganhou novos e importantes itens específicos sobre o egoísmo, como

os de número 917 a 919, com as expressivas contribuições de Fénélon, Santo Agostinho e

do próprio Kardec. Note-se, em particular, que as frases do Epílogo que expressam a

preocupação de Kardec com os “meios práticos” de combate ao egoísmo refletem-se de

forma muito próxima nas questões formuladas nesses itens.

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Além disso, o estudo das condições presente e futura do homem, a que também se

refere Kardec no anúncio do suplemento, foi claramente ampliado e tornado mais metódico.

Mesmo com a exclusão do capítulo sobre a perfeição moral, a parte sobre as esperanças e

consolações foi bastante estendida, embora passando a consistir, na 2a edição (onde é a

quarta parte), de apenas dois capítulos, “Penas e gozos terrestres” e “Penas e gozos

futuros”, que correspondem aos anteriores “Ventura e desventura na Terra” e “Penas e

recompensas futuras”.

2. O segundo ponto do prefácio, a incorporação de novos estudos e a melhor

distribuição das matérias, fica bem exemplificada pelo que acabamos de apontar. Uma

apreciação completa da magnitude e êxito dessas alterações só pode ser alcançada pela

análise comparativa detalhada das duas edições, o que não podemos, evidentemente, fazer

aqui. Queremos apenas salientar que ao entregar-se a tão delicada e trabalhosa tarefa – qual

a de praticamente refazer o livro inteiro – Kardec deu-nos dois importantes exemplos: o da

humildade e o do zelo incessante pela qualidade de tudo o que dava a público. A reflexão

sobre esses exemplos, e sobretudo a sua imitação, traria benefícios evidentes ao estado

atual da produção bibliográfica espírita e do movimento espírita em geral.

3. Quanto à supressão de “tudo o que estava repetido”, evidentemente não se refere a

qualquer descuido na redação do texto original. Kardec tinha estilo conciso, e sempre

esteve muito atento a esse tipo de falha. Trata-se da eliminação da forma de apresentação

dupla, em diálogo, na coluna da esquerda, e em texto corrido, na da direita. Na 1a edição

esse formato era adotado apenas na primeira parte da obra. Foi agora abandonado, porque

se estendido ao livro todo tornaria suas dimensões impraticáveis.

4. O próximo item do prefácio que merece destaque refere-se à constante atenção de

Kardec às investigações situadas fora de sua esfera direta de ação. É bem conhecida a

extensão de sua correspondência, que em alguns anos tornou-se humanamente impossível

de manter-se em dia (ver Allan Kardec, de Z. Wantuil e F. Thiesen, vol. III, p. 111). É

também notório o seu interesse pelas fontes não espíritas, a começar pelas obras clássicas

de todas as áreas e épocas, e incluindo o acompanhamento da imprensa leiga em diversos

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países. Essas fontes constituíram para Kardec motivo de inumeráveis estudos,

especialmente na Revue Spirite (veja-se o artigo inicial da Revue, janeiro de 1858). Embora,

como veremos em artigo futuro, a correspondência referente ao Espiritismo não tenha

desempenhado um papel tão extenso quanto às vezes se supõe na produção inicial de

Kardec, ela gradualmente adquiriu maior importância. Aqui Kardec chama a atenção para o

fato singular de que nessa correspondência podia-se isolar um núcleo comum de idéias

básicas, fato relevante para o estabelecimento da ciência espírita. Nota, por fim, que

eminentes pensadores de todas as épocas e áreas do saber esposaram diversos dos

princípios dessa ciência, embora – podemos acrescentar – de forma fragmentária e menos

rigorosa do que no Espiritismo (cf. itens 145, 581 e 623-628 de O Livro dos Espíritos). A

história dá, assim, uma espécie de sanção àqueles princípios.

5. Por fim, o último parágrafo do prefácio indica outra área em que as pesquisas

evoluíam com particular rapidez: as manifestações espíritas. Poucos sabem hoje que a 1a

edição continha, em sua primeira parte, um capítulo intitulado justamente “Manifestações

dos espíritos”. Dada, porém, a extensão do material que se acumulava sobre esse assunto,

Kardec percebe a necessidade de uma nova publicação, específica para ele; não seria viável

a ampliação ulterior do Livro dos Espíritos. A obra que Kardec anuncia estar no prelo é,

pois, O Livro dos Médiuns, cuja primeira edição é de 1861. Analisando o referido capítulo,

vemos que pode ser considerado o embrião desse novo livro.

Referências:

KARDEC, A. Le Livre des Esprits. Reprodução fotomecânica da 2a ed. francesa, com

adendos do Autor. 1a. ed., Rio, Federação Espírita Brasileira, 1998.

––––. Le Livre des Esprits. Reprodução fotomecânica da 1a ed. francesa. 1a ed, bilíngüe,

trad. e ed. Canuto Abreu. São Paulo, Companhia Editora Ismael, 1957.

––––. Revue Spirite. Reprodução em imagem digitalizada a partir da coleção da Federação

Espírita do Paraná. Também disponível, em texto eletrônico, no site do Centre

d'Études Spirites Léon Denis http://perso.wanadoo.fr/charles.kempf/

––––. Instruction pratique sur les manifestations spirites. Paris, La Diffusion Scientifique,

1986.

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6

––––. Instrução Prática sobre as Manifestações Espíritas. Trad. Cairbar Schutel. In:

Iniciação Espírita, 6a ed., São Paulo, Edicel, 1977. Também: Matão, Casa Editora O

Clarim, 1987.

WANTUIL, Z. & THIESEN, F. Allan Kardec, 3 vols. 1a ed., Rio, Federação Espírita

Brasileira, 1979/80.

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A Nota aos Prolegômenos de O Livro dos Espíritos

Silvio Seno Chibeni

Neste artigo analisaremos “Nota” aos Prolegômenos da segunda edição francesa de Le Livre des

Esprits (ver resenha em Mundo Espírita, ... de ..., pp. ...). Tal nota foi depois retirada, aparentemente

sem justificação explícita, a partir da 10a edição, de 1863. A análise será feita em confronto com a nota

semelhante que existia na primeira edição, de 1857.

Forneceremos, inicialmente, as traduções dos textos das duas versões da nota, reproduzindo no

final do artigo os originais franceses, para conferência.

[1a edição]

Nota. – Os princípios contidos neste livro resultam, seja das respostas dadas pelos espíritos às questões diretas que lhes foram propostas, seja das instruções que espontaneamente deram acerca dos assuntos que ele abrange. O material foi organizado de maneira a formar um conjunto regular e metódico, e só foi entregue ao público depois de ter sido cuidadosamente revisto várias vezes, e corrigido pelos próprios espíritos.

A primeira coluna contém as questões propostas, seguidas das respostas textuais. A segunda encerra o enunciado da doutrina em forma corrida. São, na verdade, duas redações, em formas diferentes, acerca de um mesmo assunto: uma tem a vantagem de apresentar como que a fisionomia dos diálogos com os espíritos; a outra, a de permitir uma leitura seguida.

Se bem que o assunto tratado em cada coluna seja o mesmo, freqüentemente elas encerram, tanto uma como a outra, pensamentos especiais que, quando não são o resultado de questões diretas, nem por isso deixam de ser o fruto das instruções dadas pelos espíritos, pois nenhum pensamento há no livro que não seja a expressão do deles.

[2a edição]

Nota. – Os princípios contidos neste livro resultam, seja das respostas dadas pelos Espíritos às questões diretas que lhes foram propostas em diversas ocasiões e por meio de um grande número de médiuns, seja das instruções que espontaneamente deram a nós ou a outras pessoas, acerca dos assuntos que ele abrange. O material foi organizado de maneira a formar um conjunto regular e metódico, e só foi entregue ao público depois de ter sido cuidadosamente revisto várias vezes, e corrigido pelos próprios Espíritos. Também esta segunda edição foi objeto de novo e minucioso exame da parte deles.

O que vem entre aspas, após as questões, são as respostas textuais dadas pelos Espíritos. O que está em caracteres menores, ou de outro modo destacado, consiste das observações ou desdobramentos acrescentados pelo Autor, que passaram igualmente pelo controle dos Espíritos.

Observemos, inicialmente, o detalhe da grafia da palavra ‘espírito’: na segunda edição passou a ser

com inicial maiúscula. Na língua francesa o uso de iniciais maiúsculas é mais restrito do que em

português, e no presente caso não se justificaria senão pela intenção de Kardec de diferençar as

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“individualidades dos seres extracorpóreos” – Espíritos – do “elemento inteligente universal” – espírito

–, conforme adverte explicitamente a nota após o item 76 da segunda edição. Essa importante distinção,

não assinalada na primeira edição, é rigorosamente marcada por esse recurso ao longo de toda a edição

de 1860. Temos aqui um belo exemplo da preocupação de Kardec com as nuances de pensamento e sua

correta expressão escrita.

Outro ponto diz respeito à forma de apresentação do texto. Por interessantes que fossem as razões

apontadas por Kardec na nota de 1857 para apresentar o assunto em dois formatos, diálogo e texto

corrido, avaliou depois que seriam secundárias, relativamente a outras, entre as quais certamente se

incluem a uniformização e a concisão. Na primeira edição a exposição dupla era usada unicamente na

primeira das três partes que formavam o livro. Ademais, é evidente que esse formato duplica a extensão

total do texto; se fosse seguido em todo o livro, e ainda mais com as grandes complementações da

segunda edição, resultaria em um volume de dimensões impraticáveis. Prevaleceu aqui o senso estético

e prático de Kardec, tão evidente na composição de suas obras.

Uma terceira observação refere-se ao cuidado que Kardec teve de submeter o texto, em suas duas

edições, a acuradas verificações pelos Espíritos. Não que isso indicasse qualquer limitação de sua

imensa capacidade analítica e independência intelectual; mas, dado que a obra explora um território

quase que inteiramente novo, eram-lhe indispensáveis as informações colhidas dos Espíritos –

testemunhas e participantes diretos da realidade espiritual, cuja investigação constitui o cerne da nova

disciplina. Fazia-se, pois, mister, não assimilar relatos que se baseassem em observações parciais,

sendo por isso que o controle amplo das informações se mostrou indispensável.

A referência explícita, na nota da segunda edição – que, lembramos, deixou de ser impressa a partir

da 10a edição –, a esse controle mostra quão infundada é a posição de Canuto Abreu, expressa na

introdução de sua edição bilíngüe da primeira edição do Livro dos Espíritos, de desqualificação relativa

da segunda edição, por conta de um suposto menor controle por parte dos Espíritos. (Para um exame

crítico mais extenso dessa posição, veja-se a obra Allan Kardec, de Francisco Thiesen e Zêus Wantuil,

vol. 2, cap. 1, seção 11.)

A comparação das duas versões da Nota revela outros aspectos importantes – talvez mais

importantes ainda – relativos à elaboração do livro e, em particular, ao papel desempenhado por

Kardec. Vemos que os dois primeiros períodos dos primeiros parágrafos das notas correspondem-se

quase que integralmente: a diferença está no acréscimo, no meio do primeiro período, da frase “em

diversas ocasiões e por meio de um grande número de médiuns”, e depois “a nós ou a outras pessoas”.

Deve-se comparar essas afirmações gerais com a descrição específica, feita por Kardec em outros

lugares, do modo de elaboração do texto de O Livro dos Espíritos. No primeiro número da Revue

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Spirite (janeiro de 1858) há uma matéria sobre o livro. Após advertir que, por sua lentidão, a tiptologia

nunca foi por ele empregada nos trabalhos referentes ao livro, Kardec diz: “tudo foi obtido pela escrita

e por intermédio de vários (plusieurs) médiuns psicógrafos. Nós mesmos preparamos as questões e

organizamos o conjunto da obra; as respostas são textualmente as que foram dadas pelos Espíritos; a

maior parte foi escrita sob nossos olhos. Outras foram extraídas de comunicações enviadas por

correspondentes, ou que coletamos onde quer que tenhamos tido a ocasião de realizar estudos”. No

parágrafo seguinte Kardec acrescenta: “Os primeiros médiuns que ajudaram em nosso trabalho foram

as senhoritas B*** [Baudin], cuja boa vontade jamais faltou: o livro foi escrito quase que inteiramente

por meio delas...” (os itálicos são nossos).

Na seção inicial da segunda parte de Obras Póstumas, Kardec comenta que quando o trabalho

alcançou as dimensões de um livro pensou em “submetê-lo ao exame de outros Espíritos, com o auxílio

de diferentes médiuns”. No entanto, ao começar a fazer isso, levando os pontos às reuniões do senhor

Roustan, nas quais atuava a médium sonâmbula senhorita Japhet, os próprios Espíritos disseram que

preferiam empreender a delicada revisão em seções privativas com a médium, isto é, sem assistência.

No referido artigo da Revue, Kardec afirma, a propósito da revisão, que “essa parte essencial do

trabalho foi feita com o concurso da senhorita Japhet”, ressaltando sua nobreza de caráter e infatigável

dedicação à tarefa.

Aquela seção de Obras Póstumas contém ainda outras informações relevantes para o assunto de que

estamos tratando. Uma delas é que as senhoritas Baudin se casaram já no final de 1857 e que, em

conseqüência, as reuniões na casa do senhor Baudin cessaram. Mais importante do que isso é o que

lemos um pouco antes: “Não me contentei, entretanto, com essa verificação [pela senhorita Japhet]; os

Espíritos assim mo haviam recomendado. Tendo-me as circunstâncias posto em relação com outros

médiuns, sempre que se apresentava a ocasião eu a aproveitava para propor algumas das questões que

me pareciam as mais espinhosas. Foi assim que mais de dez médiuns prestaram concurso a esse

trabalho. Da comparação e da fusão de todas as respostas, coordenadas [coordonnées], classificadas e

muitas vezes remodeladas [remaniées] no silêncio da meditação, foi que elaborei a primeira edição de

O Livro dos Espíritos...” (os destaques são nossos).

Todas essas passagens, bem como os textos integrais dos quais foram extraídas, ressaltam, primeiro,

que o Livro dos Espíritos não surgiu, como às vezes ingenuamente se assume, de uma grande massa de

respostas vindas de inumeráveis pontos. Embora, como Kardec assinala, ele tenha aproveitado algumas

comunicações que lhe foram enviadas, o grosso do livro, em sua primeira edição, foi fruto de um

trabalho sistemático concebido por ele e desenvolvido com a ajuda mediúnica das duas irmãs Baudin, e

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depois da senhorita Japhet, para a revisão. Somente quanto a alguns pontos mais delicados é que julgou

prudente conferir as opiniões com o auxílio de outros poucos médiuns.

Afora as declarações específicas de Kardec, as circunstâncias históricas também indicam a

necessidade de não se tomar à letra a frase da Nota aos Prolegômenos da segunda edição que motivou

estes comentários. Por mais extensas que se tenham tornado as relações de Kardec, como resultado da

publicação de seus livros e, especialmente, da Revue, está claro que na curta fase de elaboração do

Livro dos Espíritos, em sua primeira e, talvez, segunda edição, simplesmente não havia uma extensa

rede de colaboradores, e muito menos de colaboradores perfeitamente sintonizados com um projeto de

tal complexidade.

Em segundo lugar, as citações que fizemos mostram que é igualmente ingênuo assumir que a

contribuição pessoal de Kardec se limitou a compilar a suposta massa de respostas, organizando-a em

forma de livro. A denominação comum de ‘codificador’ parece embutir, ou ao menos favorecer essa

interpretação insustentável; deveria, pois, ser evitada (e não só por tal motivo). O estudo atento das

declarações de Kardec sobre seu papel e, sobretudo, a reflexão madura sobre o conjunto de sua

produção, não deixa dúvida quanto à centralidade de sua contribuição no estabelecimento das bases do

Espiritismo. Ela não se limitou nem mesmo à reescrita de parte das respostas, a que ele explicitamente

alude, e que se torna evidente pelo confronto do material da Revue com o texto da segunda edição. A

concepção e condução de todo o programa de pesquisa espírita, em seus múltiplos desdobramentos,

bem como a lucidez e precisão superiores de seus próprios textos, indicam de forma inconteste que

Kardec não foi mero auxiliar dos Espíritos – exceção feita, é claro, ao Cristo, coordenador geral dos

destinos da humanidade terrena –, mas, ao contrário, estes é que eram seus auxiliares; eles mesmos,

aliás, reconheceram esse papel em diversas ocasiões. Justifica-se, pois, a asserção de Francisco

Thiesen, de que Kardec foi o “co-autor” do Livro dos Espíritos (Allan Kardec, vol. 2, p. 85); mas talvez

possamos mesmo ir um pouco além disso. (Sobre a envergadura da contribuição de Kardec, ver nosso

artigo “Por que Allan Kardec?”, citado na lista de referências, no final.)

Diante disso tudo, não parece inteiramente improvável que a nota aos Prolegômenos tenha sido mais

tarde retirada não por mero lapso editorial, mas por potencialmente favorecer interpretações incorretas.

Ademais, o que ela tem de essencial já é dito em termos adequados nos próprios Prolegômenos e na

nota de rodapé do item 1 do próprio livro.

Apêndice: Originais franceses das notas.

[1a ed.] Nota. – Les principes contenus dans ce livre résultent, soi des réponses faites par les esprits aux questions directes qui leur ont été proposées, soi des instructions données par eux spontanément sur les matières qu’il renferme. Le tout a été coordonné de manière à présenter un ensemble régulier et

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méthodique, et n’a été livré à la publicité qu’après avoir été soigneusement revu à plusieurs reprises et corrigé par les esprits eux-mêmes.

La première colonne contient les questions proposées suivies des réponses textuelles. La seconde renferme l’énoncé de la doctrine sous une forme courante. Ce sont à proprement parler deux rédactions sur un même sujet sous deux formes differentes: l’une a l’avantage de présenter en quelque sorte la physionomie des entretiens spirites, l’autre de permetre une lecture suivie.

Bien que le sujet traité dans chaque colonne soit le même, elles renferment souvent l’une et l’autre des pensées spécialles qui, lorsqu’elles ne sont pas le résultat de questions directes, n’en sont pas moins le produit des instructions données par les esprits, car il n’en est aucune qui ne soit l’expression de leur pensée.

[2a ed.] Nota. – Les principes contenus dans ce livre résultent, soi des réponses faites par les Esprits aux questions directes qui leur ont été proposées à diverses époques et par l’entremise d’un grand nombre de médiums, soi des instructions données par eux spontanément à nous ou à d’autres personnes sur les matières qu’il renferme. Le tout a été coordonné de manière à présenter un ensemble régulier et méthodique, et n’a été livré à la publicité qu’après avoir été soigneusement revu à plusieurs reprises et corrigé par les Esprits eux-mêmes. Cette seconde édition a pareillement été de leur part l’objet d’un nouvel et minutieux examen.

Ce qui est entre guillemets à la suite des questions est la réponse textuelle donnée par les Esprits. Ce qui est marqué par un autre caractère, ou désigné d’une manière spéciale à cet effet, comprend les remarques ou developpments ajoutés par l’auteur, et qui ont également subi le contrôle des Esprits.

Referências:

CHIBENI, S. S. “Por que Allan Kardec?” Reformador, abril 1986, p. 102-3. (Também disponível no

site do Grupo de Estudos Espíritas da Unicamp:

http://www.geocities.com/Athens/Academy/8482 .)

KARDEC, A. Le Livre des Esprits. Reprodução fotomecânica da 2a ed. francesa, com adendos do

Autor. 1a. ed., Rio, Federação Espírita Brasileira, 1998.

––––. Le Livre des Esprits. Reprodução fotomecânica da 1a ed. francesa. 1a ed, bilíngüe, trad. e ed.

Canuto Abreu. São Paulo, Companhia Editora Ismael, 1957.

––––. Revue Spirite. Texto eletrônico, Centre d'Études Spirites Léon Denis:

http://perso.wanadoo.fr/charles.kempf/

––––. Oeuvres Posthumes. (Ed. André Dumas.) Paris, Dervy-Livres, 1978. Também na edição original

de Leymarie, em texto eletrônico, Centre d'Études Spirites Léon Denis:

http://perso.wanadoo.fr/charles.kempf/

––––. Obras Póstumas. Trad. Guillon Ribeiro. 18a ed., Rio, Federação Espírita Brasileira, 1944.

WANTUIL, Z. & THIESEN, F. Allan Kardec, 3 vols. 1a ed., Rio, Federação Espírita Brasileira,

1979/80.

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A Errata do Livro dos Espíritos

Silvio Seno Chibeni

Conforme registra a edição histórica de Le Livre des Esprits publicada pela FEB em

1998 (ver resenha em Mundo Espírita, fevereiro de 2002, p. 5), a 5a edição francesa, de

1861, trazia uma errata, com extensão de uma página. A errata apareceu somente nessa

edição; na edição da FEB a errata foi reproduzida na posição original, no final da obra. Por

sua importância histórica, daremos em seguida sua tradução integral. Os números de página

referem-se à edição francesa (o exame comparado da errata com o texto da 2a edição,

reproduzido fotograficamente pela FEB, indica que a 5a edição manteve a paginação da 2a).

Para facilitar a localização em outras edições, damos, quando necessário, o item ou sub-

item, entre colchetes. Teceremos depois alguns comentários sobre as alterações indicadas

por Kardec.

ERRATA

Página 73, no final da nota [n° 165], acrescentar: Na morte natural, a perturbação começa antes da cessação da vida orgânica, perdendo o Espírito toda consciência de si no momento da morte. Segue-se daí que ele jamais testemunha o último suspiro. As convulsões da agonia são efeitos nervosos que quase nunca o afetam. Dizemos quase, porque em certos casos tais sofrimentos lhe podem ser impostos como expiação.

Página 109, n° 226, no final da nota, acrescentar: Entre os Espíritos não encarnados, alguns há que têm missões a cumprir e ocupações ativas, gozando de relativa felicidade, enquanto que outros vagueiam na incerteza. São estes últimos os errantes, na verdadeira acepção do termo, constituindo, de fato, aquilo que se designa pela expressão almas a penar. Os primeiros nem sempre se consideram errantes, pois fazem uma distinção entre a sua situação e a dos outros (1015).

Página 137, n° 285 [a], acrescentar: Quando necessário, podem igualmente se reconhecerem pela aparência que tinham quando vivos. Ao Espírito recém-chegado, e ainda pouco familiarizado com seu novo estado, os Espíritos que o vêm receber apresentam-se sob uma forma que lhe permite reconhecê-los.

Página 191, n° 437, acrescentar: ver o n° 257, “Ensaio teórico da sensação nos Espíritos”.

Página 210, n° 479, acrescentar: ver o Livro dos Médiuns, cap. “Da Obsessão”.

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Página 252, linha 2 [n° 586, final da resposta], suprimir: e intuitiva.

Dessa errata, apenas o último item foi incorporado às edições posteriores, embora

somente a partir da 10a edição. Apresenta-se aqui uma série de dúvidas de natureza

histórica, cujo esclarecimento requer dados não disponíveis. Mesmo assim é útil enumerá-

las, analisando-as como pudermos, para que saibamos doravante o que fazer com a errata

em nossos estudos espíritas.

Por que a errata apareceu somente na 5a edição? Por que, com a apontada exceção,

não foi incorporada ao texto das edições subseqüentes? Pode ser que razões econômicas

tenham se anteposto a isso, pois com o sistema de impressão da época qualquer alteração

que exigisse repaginação implicaria refazer todo o texto daquele ponto em diante.

Inspecionando graficamente o original, no entanto, nota-se que isso ocorreria apenas com

os itens 226 e 285, as demais alterações sendo incorporáveis sem repaginação. Se uma

alteração foi incorporada, por que não as outras três? Pode-se supor que aqui Kardec levou

em conta a natureza das alterações: a do item 586 é imperiosa, pois configura um erro –

certamente um lapso, e não alguma falha de observação ou raciocínio –, enquanto que as

demais são em certa medida opcionais.

Essa suposição é bem plausível no caso dos itens 437 e 479, que são meras indicações

de referências cruzadas. Quanto à outra mudança que não requereria repaginação, a do item

165, trata-se de um esclarecimento bastante útil acerca do processo de desencarnação. Teria

Kardec julgado que ainda faltava apoio mais sólido ao que afirmou na errata? De qualquer

forma, à luz do que sabemos hoje não parece haver falhas nas afirmações feitas.

São igualmente interessantes as alterações referentes aos itens 226 e 285, cuja

incorporação no texto apresentaria dificuldades gráficas. A última complementa de forma

muito relevante a resposta inicial, um tanto obscura, referente ao modo de reconhecimento

dos Espíritos. Essa complementação foi corroborada plenamente pelos estudos espíritas

ulteriores, especialmente pelos relatos mediúnicos detalhados de que dispomos hoje, como

os de André Luiz, Philomeno de Miranda, Yvonne Pereira, etc.

Finalmente, quanto ao item 226, nota-se que Kardec procurou, na errata, restabelecer

o sentido próprio da expressão Espírito errante. Ora, com o desaparecimento da errata e a

não incorporação dessa correção às edições subseqüentes, esse objetivo acabou não sendo

alcançado. Cristalizou-se em toda a literatura espírita o significado que Kardec reconheceu

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como impróprio, segundo o qual Espírito errante é sinônimo de Espírito desencarnado,

independentemente de sua condição.

Tentemos agora, para concluir, avaliar a errata de forma geral, para nortear nossos

estudos daqui para diante, e sugerir diretrizes aos editores da obra fundamental do

Espiritismo.

É inegável que o único erro propriamente dito é o do item 586, que foi corrigido por

Kardec, embora tardiamente. Dele estão isentas as edições correntes em francês, português,

inglês e esperanto a que tivemos acesso; devem, pois, ter se baseado em edições posteriores

à 10a.

As referências cruzadas, do penúltimo e antepenúltimo item da errata, são

evidentemente úteis, devendo pois ser incorporadas às novas edições. O mesmo vale, com

mais forte razão, para os esclarecimentos sobre a perturbação espiritual conseqüente à

desencarnação e sobre a aparência dos Espíritos desencarnados.

Quanto ao adjetivo errante, é claro que a reversão do uso corrente no meio espírita é

difícil, quando não impossível, ao menos a curto prazo. Isso não impede, porém, que a

observação de Kardec seja inserida nas edições futuras. Além disso, seria interessante que

os escritores e expositores espíritas levassem em conta esse ponto, o que gradualmente

induziria ao restabelecimento do sentido etimológico do termo.

Resta a questão editorial: as novas edições devem reproduzir a errata no final ou

incorporar as alterações ao longo do próprio texto? Não temos dúvida de que a segunda

opção é preferível. Primeiro, a errata está disponível para os pesquisadores em sua versão

original, na edição histórica da FEB. Depois, e mais importante, o leitor espírita médio de

hoje certamente terá mais facilidade para perceber as mudanças se elas estiverem no

próprio texto. É claro que neste caso deve haver notas de rodapé indicando precisamente

cada alteração, com uma referência histórica geral à errata numa introdução ou apêndice do

editor.

A descoberta e publicação da errata foi uma contribuição relevante para os estudos

referentes ao Livro dos Espíritos, e portanto ao Espiritismo de um modo geral, não

devendo, por isso, ficar confinada ao restrito círculo daqueles que puderam ler o importante

volume editado pela FEB.

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Os acréscimos e modificações na 13a edição francesa do Livro dos Espíritos

Silvio Seno Chibeni

Em 1865, saiu a 13a edição francesa de Le Livre des Esprits. Segundo registra a

“Nota explicativa” da reprodução da 2a edição publicada pela FEB em 1998 (ver resenha

em Mundo Espírita, fevereiro de 2002, p. 5), Kardec introduziu no texto diversos

“acréscimos e modificações”. Ao contrário do que aconteceu com a Errata da 5a edição (ver

Mundo Espírita, ... de 2002, p....), essas alterações se incorporaram definitivamente à obra.

Estão presentes nas edições correntes em francês, português, inglês e esperanto que

pudemos consultar, o que evidencia que elas se basearam em alguma edição posterior à 12a.

(Aliás, quase nenhuma tradução de textos espíritas indica precisamente o original utilizado

– um indício, dentre muitos outros, da falta de rigor editorial.)

O objetivo deste artigo é traduzir e comentar o trecho da “Note explicative” referente

aos acréscimos e modificações. Na Nota, esse trecho forma um único parágrafo; as

alterações são numeradas por letras. Para clareza de exposição, apresentaremos os itens em

parágrafos separados, mantendo porém a numeração original. Como as referências são

feitas pelas páginas e linhas da edição francesa, forneceremos entre colchetes e em itálicos

informações que facilitem a localização em outras edições.

A) página 20: modificação da redação das linhas 5, 6 e 7 [período final do comentário de Kardec à questão 51];

B) página 59: indicação do Livro dos Médiuns na nota que segue a resposta à questão 137;

C) página 60: indicação do parágrafo II na nota de rodapé [no final do comentário de Kardec à questão 139];

D) página 107: modificação da redação e acréscimos a partir da linha 4 [item 222, sexto parágrafo do fim para o começo (essa contagem varia de tradução para tradução), a partir da expressão “Outro, no entanto, ela apresenta ...” (na tradução de Guillon Ribeiro, FEB)];

E) página 252: supressão, conforme a “Errata” mencionada acima [final da resposta à questão 586];

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F) páginas 263/264: acréscimo no comentário de Allan Kardec a partir do 2o parágrafo (O ponto inicial ...) [questão 613; note-se que na tradução de Guillon Ribeiro este ficou sendo o 3o parágrafo do comentário de Kardec];

G) página 377: modificação do 1o sub-título, de “Questões morais diversas” para “As virtudes e os vícios” [título da primeira seção do último capítulo da 3a parte];

H) página 384: correção na redação da resposta à questão 911, de “eles” para “elas” [note-se que na elegante e correta tradução de Guillon o pronome ficou elíptico; refere-se às formas verbais “Querem” e “ficam”].

Conforme fizemos notar em nossa resenha da edição histórica de Le Livre des Esprits

publicada pela FEB, o admirável esforço empreendido pela Union Spirite Française et

Francophone, que se responsabilizou pelas pesquisas bibliográficas nas edições guardadas

na Biblioteca Nacional da França, ficou parcialmente comprometido, no que tange ao

tópico que estamos analisando no presente artigo, pela falta de precisão em alguns dos itens

dessa lista de “acréscimos e modificações”. Examinemos a lista:

Itens B, G e H: estão inteiramente claros.

Item E: dada a reprodução da Errata no final da edição, a alteração feita aqui também

pode ser determinada com precisão (ver artigo em Mundo Espírita, ... de 2002, p. ...).

Item C: há aqui uma pequena ambigüidade: Kardec terá acrescentado a nota de

rodapé inteira ou apenas, em seu final, o símbolo “§ II” ?

Item F: também aqui há alguma margem para dúvida: o “acréscimo” refere-se a todo

o texto do comentário, a partir do ponto indicado, ou houve um acréscimo dentro dele? (A

frase francesa “ajout dans le commentaire d’Allan Kardec à partir...” não deixa isso

totalmente claro.)

Item A: aqui a falta de informação é grave: o que precisamente foi modificado?

Item D: novamente, ficamos sem saber o que foi modificado e acrescentado no texto

de quase uma página, a partir do ponto indicado.

Evidentemente, quem realizou as pesquisas nas edições francesas tinha todas as

informações necessárias para sanar as ambigüidades e pontos obscuros que apontamos. É

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lamentável que elas não tenham sido fornecidas na Nota explicativa aposta no início da

edição da FEB. Mas a falha poderá ser facilmente reparada em futura reedição.

Como também já sugerimos na resenha, o rigor editorial recomendaria que todas as

alterações feitas na 13a edição (ou em qualquer outra) não fossem incorporadas ao texto

histórico que a FEB, o CEI, a USFF e o IDE em boa hora deram a público. Este deveria ser

a reprodução exata do texto da 2a edição francesa, tal qual saiu em Paris em 1860, e de que

a FEB guarda precioso exemplar. Todas as alterações ulteriores feitas por Kardec deveriam

estar registradas, de forma precisa e completa, em notas ou apêndices preparados pelos

editores. Aguardamos, pois, que num futuro breve isso seja feito, em benefício das

pesquisas espíritas, e no sentido da implantação no meio espírita de uma tradição de

tratamento cuidadoso de textos como a que existe na área acadêmica.