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Rua Colônia, Qd-240C, Lt. 26-29, Chácara C2, Jardim Novo MundoCEP 74713-200, Goiânia, Goiás

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U N I V E R S I D A D E C AT Ó L I C A D E G O I Á S

Estudos, Goiânia, v. 35, n. 5, p. 781-979, set./out. 2008.

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Estudos: Revista da Universidade Católica de Goiás. v. 1, n. 1 (1973) __ Goiânia : Ed.da UCG, 1973 – .

Mensal

ISSN 0103-0876

CDU 001(05)“540.3”

Estudos – Vida e Saúde está indexada no Índice Bibliográfico Clase,Citas Latinoamericanas en Ciencias Sociales y Humanidades,

Universidad Nacional Autónoma del México.Publicação indexada em GeoDados: <http://www.geodados.uem.br>.

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Dr. Tocio SediyamaUniversidade Federal de Viçosa

Dr. Waldo Alejandro Ruben Lara CabezasUniversidade Federal de Uberlândia

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S U M Á R I O

Editorial.................................................................................787

ARTIGOS

As Perigosas Curvas PlaceboFrancisco Martins.................................................................793

Wittgenstein Psicólogo?Joselí Bastos da Costa..........................................................817

Entre a Rua e a Instituição: o olhar de criançase adolecentes que viviam nas ruasMarina Wanderley Vilar de Carvalho,Maria de Fátima de Souza Santos........................................825

La Representation Sociale de L’apprentissage Chez des Artisans du BatimentLucile Salesses.......................................................................847

Qualidade de Vida de Portadores de Hiv/AidsAssistidos por uma Organização de ApoioCynthia Marques Ferraz da Maia,Sebastião Benício da Costa Neto..........................................865

Moderno NarcisoLeandra CarrerDenise Teles Freire Campos..................................................887

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Sociabilidade Violenta: contemporaneidadee os novos processos sociaisSilvia Pereira Guimarães,Pedro Humberto Faria Campos............................................901

As Vivências de Prazer-Sofrimento em Trabalhadoresde uma Organização Certificada pela SA8000Kátia Barbosa Macedo, Elisabeth Zulmira Rossi,Ana Magnólia Mendes, Evanúzia Luzia de Oliveira,Vitor Barros Rego..................................................................915

Experiência com Atividades de Venda e Decodificaçãode Expressões FaciaisRaquel Santana Schiavon Sanchez,Francisco D. C. Mendes........................................................933

A Prioridade do Indivíduo nos Programas de DesenvolvimentoOrganizacional (D. O.)Saturnino Pesquero Ramón...................................................951

O Sofrimento Psíquico na Condição Obesae a Influência da CulturaThyago do Vale Rosa,Denise Teles Freire Campos..................................................968

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E D I T O R I A L

Recentemente fomos convidados a participar de umamesa-redonda, em um congresso organizado peloConselho Regional de Psicologia sobre as políticas

públicas e, particularmente, uma mesa de debates sobre a“saúde do trabalhador”. Na preparação nos deparamos comum texto de Cristophe Dejours, no qual ele fala da“banalização da injustiça” no trabalho. A reflexão não esta-va muito distante daquelas sobre a “banalização da injusti-ça” (Velho, 1996; Zaluar, 1996; Campos, Torres e Guimarães,2004) na sociedade brasileira. Vejam, pois, as característi-cas deste processo de “banalização” da injustiça, apontadaspor Dejours: o medo da incompetência, o fantasma de nãoser capaz, de não estar respondendo às exigências e pressões,por incompetência; a pressão para trabalhar mal, para nãodesenvolver a plenitude de suas competências; a absolutaausência de esperança de reconhecimento; e a racionaliza-ção das vivências no trabalho, com a respectiva negação dosofrimento que lhe é inerente. Vejamos por qual razão estasreflexões aparecem no presente editorial.

Depois de um relativo período de “suspensão”, aqui nosencontramos com mais um número especial da Revista Es-tudos, Vida e Saúde, dedicado a pesquisas em psicologiasocial e fronteiras. Para o bem da verdade, este número, as-sim como seus congêneres anteriores, foram produtos deesforços de construção de grupo. No mundo da pesquisacientífica e/ou acadêmica (como prefiram!) em Psicologia,

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já se encontra decretado, por artes e ofícios da Capes, CNPq,Anpepp (e demais instâncias e agências) o fim da figura do pes-quisador solitário. Os “cowboys solitários” são uma ficção quenão corresponde à realidade da produção do conhecimento naPsicologia: vivemos na era das “linhas de pesquisa”. Toda linhade pesquisa que se preze comporta objetos claramente recortados,uma certa tradição metodológica, um arcabouço de princípios efundamentos teóricos. Este é, ao mesmo tempo, um ideal e umaficção. Um ideal, posto que assim funcionam os grandes centrosde pesquisa no mundo: laboratórios, grupos de pesquisa, departa-mentos de pesquisa das indústrias e de órgãos governamentais etc.De outro lado, se olharmos o cenário nacional da Psicologia emsua totalidade, após longos anos de crise e penúria nas universida-des públicas (especialmente as federais) e de crise financeira, naúltima década, das universidades privadas, envoltas em um cons-tante questionamento sobre sua qualidade de ensino e seus inves-timentos na pesquisa e na pós-graduação, então a noção de “linhade pesquisa” parece mais ficção científica. Em maio de 2008,realizou-se em Natal o XII Simpósio de Pesquisa e IntercâmbioCientífico, organizado pela Associação Nacional de Pesquisado-res em Pós-Graduação de Psicologia (ANPEPP). Durante esteperíodo e no interior da reunião, dois eventos mostram a lógicaperversa da avaliação das publicações e dos programas de pós-graduação (que, no Brasil, constituem os nichos naturais das li-nhas de pesquisa) em psicologia. No primeiro deles, nossosrepresentantes de área (psicologia) junto à Capes reuniram-se comos editores de alguns dos principais periódicos para um anúncio:mudança de critérios para qualificação dos periódicos no Qualisda área. A justificativa apresentada pelo Conselho Técnico-Cien-tífico (CTC) da Capes parece simples: os critérios atuais não dis-criminam mais a qualidade dos periódicos de modo a permitir umaclassificação. Ou seja, busca-se um aperfeiçoamento dos critériospara alcançar a melhoria das publicações, atingindo um patamarde cientificidade mais rigoroso e permitindo uma classificação e“seleção”. Em toda evidência, as explicações e justificativas nãoescondem o fato constrangedor de que, segundo estimativas, ape-nas uma das revistas brasileiras atinge, hoje, pelos novos critéri-os, o chamado nível “A1” de qualidade. Estranha esta“racionalidade” que, em um dia considera do mais elevado nível

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uma publicação e, no dia seguinte, ela se encontra “desqualificada”.Isso se deve ao fato de que os critérios são mais formais que deessência (para não falar em “qualidade”) e que boa parte das re-vistas conseguiu em pouco espaço de tempo atender a estes crité-rios. Eles, portanto, – os critérios – perderam sua capacidade deproduzir uma classificação! Então, alteram-se os critérios, aindaformais, de tal modo a permitir sempre uma classificação, salva-guardando o esforco de seleção e hierarquia (e concorrência?). Oemprego de critérios formais foi e é importante para criar um dentreos parâmetros possíveis que sinalizem a evolução, o crescimentoda produção. Contudo, diante da impossibilidade prática de criarum sistema avaliativo que se dedique à análise da qualidade daprodução científica, tanto o sistema CAPES quanto as comissõese programas de pós-graduação das áreas se jogaram em uma cor-rida desenfreada pelo aumento da produção, lembrando cuidado-samente que, depois de feitas as filtragens, são somente os artigosem periódicos que contam como produção. Muitas questões ficamem aberto, como, por exemplo, a meta da CAPES de pelo menosum artigo por dissertação/tese ser legítima. No final de todos osmestrados, os novos mestres estão interessados em publicar, emseguir a carreira acadêmica (com o emprego em instituição deensino superior se tornando cada vez mais difícil!)? Por um acaso,nas finalidades de todos os mestrados acadêmicos, não está des-crita a missão ímpar de formar professores para o ensino superi-or? E, para muito mais além, toda dissertação defendidacorresponde a um trabalho de pesquisa de qualidade e original quejustifique uma publicação em periódicos? Alguns não sustentamque o mestrado é a “aplicação rigorosa do método”? Ou espera-seque o orientador finde por redigir o artigo?

De um lado, a política de pós-graduação empurra o mestrando,o pesquisador, o doutorando para a publicação obrigatória. Poroutro, esta mesma política utiliza critérios exclusivamente formais– e questionáveis – de classificação dos periódicos e opera a des-valorização de vários veículos. Em operação “complementar”, jáse encontram desvalorizados outros tipos de publicação: anais decongressos, capítulos ou livros etc. O quadro tem seus contornosfinalizados pelo imperativo da criação de revistas on line dos pro-gramas de pós-graduação. Todos os programas devem ter umarevista, independente de estarem maduros ou dispostos ou com

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recursos para tal. Obviamente a capacidade de produção de arti-gos qualificados não é suficiente para atender tamanha demanda.

Dupla pressão, dupla mensagem: publiquem, publiquema todo vapor; porém e doravante, poucos periódicos brasileirosserão avaliados e pontuados como publicações de alto valor. Odilema é a herança recebida por programas, líderes de grupos elinhas de pesquisa: como incentivar, fomentar, possibilitar quejovens iniciantes (alunos de Iniciação Científica, mestrandos edoutorandos) aprendam o desafio de publicar em periódicos, emum contexto tão seletivo quanto a dos veículos? O traço perversodeste sistema, que não é de fomento, é de pressão e seleção, mos-tra-se muito mais profundo...

O segundo momento na reunião da ANPEPP que nos interessadestacar foi o fórum de discussão sobre a produtividade. Coordena-ram o fórum os professores Emanoel Tourinho, atual representanteda área de Psicologia junto à Capes e Mary Jane P. Spink. Estaapresentou um inusitado material resultante de uma “pesquisa”qualitativa. Ela havia colocado para doze docentes-pesquisadoresuma instigante tarefa, solicitando a cada um deles (os critérios deseleção da “amostragem” foram: ser considerado muito produtivoou pouco produtivo, pelo atual sistema, e alguns “críticos ferrenhos”do sistema) que fizessem um texto a partir da provocação “como eu(o entrevistado) avalio a minha contribuição para o avanço da área”.

Além de testemunhos vivos, alguns emocionados, e reflexões,uma constatação geral: o trabalho de docência, de formação deprofessores, de agentes comunitários, de jovens pesquisadores, deformação de rede, de organização de núcleos ou laboratórios nãosão contabilizados pelo atual sistema de avaliação dos programas.Conseqüentemente também não são de grande valor na avaliaçãodos indivíduos docentes-pesquisadores. Deste modo, recaímos nodilema já posto, segundo o qual é preciso formar grupos e linhasque venham dar vida aos laboratórios, aos cursos e programas; éimpreterível expandir a capacidade de produzir respostas de im-pacto aos verdadeiros problemas de pesquisa. Produzir conheci-mento normalmente tem o mesmo sentido, para nosso métier, de“fazer pesquisa”, defender dissertações e teses, apresentar comu-nicações em congressos, publicar. Essas tarefas deveriam ter omesmo sentido, porém se tornaram distantes uma vez que o focose deslocou da atividade científica para a atividade institucional

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e a “cienciometria”. Reificação do produto, deslocamento eobliteração da essência, ou seja, do conhecimento.

Tornou-se prática corrente da Psicologia, em alguns meiosuniversitários, a replicação, ou mais exatamente, dizer a re-apli-cação de instrumentos, produzindo, de tal modo, para cada aplica-ção um artigo diferente. Há setores da Psicologia vivendo deestratégias competitivas, sem se perguntarem sobre a pertinênciados problemas requentados ou sobre a contribuição, de fato, des-ses grupos para o avanço de suas próprias áreas.

É justamente a face da Psicologia como ciência social que éposta em repouso em favor das “psicologias aplicativas” e umadesconcertante e abusiva naturalização dos fenômenos humanos.O campo da saúde mental é um exemplo claro: as discussões (en-tre psicólogos, entenda-se bem) sobre as políticas públicas e es-tratégias de inserção comunitária se querem isentas de toda equalquer psicopatologia e clínicas. Quanto mais próximos dasemiologia médica ou, no caso, próximos dos sintomas definidospelos médicos, mais ajustáveis as condutas medicamentosas, maisserão promovidas as “psicologias breves”. Talvez a expressão idealaqui seja “psicologias curtas”.

Em uma sociedade que promove a fetichização do sofrimen-to psíquico e uma fetichização da própria existência, por qual razãoo conhecimento (e seu derivativo que aqui nos interpela, a publi-cação) não se tornaria, também ele, um fetiche?

Um dos temas de pesquisa que está na ordem do dia é a cha-mada “subjetividade”. De fato, constitui-se um campo muito fru-tífero e marca, de algum modo, o retorno do sujeito, depois degrandes tentativas de naturalizar completamente o homem e de“economicizar” a sociedade. Contudo, é salutar lembrar que otermo solicita sempre uma precisão conceitual, dada sua possívelancoragem em diferentes teorias e abordagens na Psicologia. In-tuitivamente remete à identidade, termo que outrora ocupou umespaço similar. Para Boaventura Santos, o termo subjetividade éo equivalente pós-moderno da identidade e deve-se lembrar asmúltiplas circunstâncias pessoais e coletivas que a determinam.

É disto que trata este editorial da identidade de pesquisadore alguns de nossos dilemas em face da publicação e do mundo realdo nosso trabalho. Neste ponto acho que podemos retomar o pon-to de partida, com Dejours:

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O segundo princípio das novas formas de organização dotrabalho, de gestão e de direção das empresas é aindividualização e o apelo à concorrência generalizada en-tre as pessoas, entre as equipes e entre os serviços. [...] Oresultado destas práticas gerenciais é o isolamento de cadaindivíduo, a solidão e a desagregação do viver junto ou,melhor ainda, a desolação no sentido que Hanna Arendt dáao termo (1951), isto é, o desabamento do solo, e que cons-titui a razão pela qual os homens reconhecem entre si aquiloque têm em comum, aquilo que compartilham e que se encon-tra no alicerce da confiança dos homens uns nos outros(DEJOURS, 2004, p. 34).

ReferênciasCAMPOS, P. H. F. et al. Sistemas de representação e mediação simbólica da violênciana escola. Educação e Cultura Contemporânea, 1, v. 2, p. 192-216, 2004.

DEJOURS, C. Subjetividade, trabalho e ação. Revista Produção, v. 14, n. 3, p.27-34, 2004.

VELHO, G. Violência, reciprocidade e desigualdade: uma perspectivaantropológica. In: VELHO, G.; ALVITO, M. Cidadania e violência. Rio deJaneiro: Ed. da UFRJ/FGV, 1996. p. 10-24.

ZALUAR, A. A globalização do crime e os limites da explicação local. In: VELHO,G.; ALVIT O, M. Cidadania e violência. Rio de Janeiro: Ed. da UFRJ/FGV, 1996.

Prof. Dr. Pedro Humberto Faria CamposDoutor em Psicologia Social pela Université de Provence,

Docente do Doutorado em Psicologia da UCGe Editor deste número.

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Resumo: propõe-se, neste trabalho, uma análise crítica detrês curvas esquemáticas de melhoria em terapia(farmacológica, dessensibilização sistemática e o gráficoteórico de Wolberg acerca de melhoria em psicoterapia) emrelação à análise do Efeito Placebo. Pergunta-se, a partirda análise da literatura, se o Efeito Placebo, fazendo partedo efeito terapêutico geral, não estaria correlacionado como efeito terapêutico psíquico em toda e qualquer terapia.Entende-se que tanto o efeito Placebo quanto o efeitopsicoterapêutico estão presentes.

Palavras-chave: placebo, efeito placebo, processo terapêutico

Placebo é um fenômeno universal de toda e qualquerteoria da clínica, tal como a transferência, a resis-tência, a sugestão. Antes de a medicina e as demais

práticas terapêuticas adotarem o método científico, praticamen-te toda a história da medicina foi a história do Efeito Placebono capítulo que diz respeito à terapêutica. Ao longo do séculoXX, foi sendo instituída a utilização de grupos placebo paracontrolar e avaliar com maior acuidade não somente drogasque eram colocadas no mercado, mas também a prática clíni-ca. Esse esforço tem a proposição de ser estendido a outraspráticas e efeitos terapêuticos. Analisaremos três curvas de

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melhoria terapêutica com relação ao Efeito Placebo presente em trêsmodalidades diferentes de tratamento. O que é permanente é o fatode que o Efeito Placebo se realiza a despeito do tipo de tratamentorealizado, o que nos propiciará interrogar de antemão se o Placebonão é o próprio fundamento de toda e qualquer teoria geral de umaterapêutica clínica.

A Curva 1 – PSICOFARMACOLÓGICA: CLORIDRATO DESERTRALINA COMO EXEMPLO DAS LIMITAÇÕES DOTRATAMENTO ANTIDEPRESSIVO

Após a chamada década da mente e do cérebro, última década doséculo XX, eis que encontramos os limites que existem nas promes-sas de teorias de uma cura geral e irrestrita dos males humanos, sobperspectivas neurobiológicas e farmacológicas somente. Na era Prozacque vivemos, o Placebo, como convidado fiador da boa eficácia tera-pêutica, passou a ser uma exigência, logo que se queira colocar umadeterminada molécula como medicamento para o público consumi-dor. Os antidepressivos estão longe de liquidar totalmente o proble-ma das depressões maiores ou menores, contudo constituem umavanço substancial para minorar o sofrimento de muitos. Não obstante,sabe-se das limitações da eficácia terapêutica quando num espectrototal se constata que os antidepressivos fornecem uma taxa de melhoriaem torno de 65%, tal como vemos na curva apresentada em seguida.

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Figura 1: Comparação entre a Melhora Ocorrida em Um Grupo que RecebeuDroga e o Grupo que recebeu placebo.

Nota: o estudo ocorreu em seis semanasFonte: Figura presente de forma similar tanto na literatura sobre tratamento

antidepressivo quanto no sério trabalho de Keller (1998, p. 1664-1682).

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O exame atentivo do Grupo Placebo e do Efeito Placebo, du-rante todas as fases da pesquisa experimental acerca de drogas éessencial e até obrigatório nos Estados Unidos da América. As exi-gências da agência americana a este respeito (Food and DrugAdmnistration), no entanto, nem sempre tem sido seguida, mesmoem pesquisas que anotamos ainda recentemente. Por exemplo, nocampo dos antidepressivos nem sempre o grupo controle Placebo éconsiderado. Como determinar que o Efeito Placebo não está pre-sente em um remédio que será colocado no mercado? É salutarexaminar a questão do Placebo no domínio das depressões, reco-nhecida pela Organização Mundial de Saúde como uma das quatroprincipais doenças incapacitantes do mundo (MURRAY, 1997).

Com é conhecido que a recorrência da depressão maior oumelancolia é algo clássico, bom número de estudos farmacológicosse dedica a mostrar a eficácia preventiva dos antidepressivos. E,por incrível que pareça, por mais exigente que seja o design paraexcluir o Efeito Placebo, ainda assim ele parece amplamente pre-sente e, muitas vezes, mais efetivo do que se possa pensar. Em umarevisão de pesquisas com antidepressivos, feitas no meio ameri-cano, Kirsh (1998) credita quase todo o efeito dos antidepressivosao Placebo, chegando a apontar que pelo menos 50% do efeito demelhoria pode ser atribuído a ele. Igualmente, podemos perguntarpelo Nocebo (Placebo que causa efeito nocivo), potencial exis-tente em todo e qualquer tratamento e que se encontra abundante-mente listado nas bulas de remédios como efeitos secundáriosespecíficos de uma determinada molécula, mas que são tambémpotencialmente Nocebos, posto que não parecem existir aindacritérios distintivos entre o último e os efeitos deletérios da subs-tância propriamente dita. De toda maneira, parece existir umatendência para desconhecer, negar, ainda que de forma disfarçada,a potente influência tanto do Placebo quanto do Nocebo.

Assim, a título de exemplo, tomemos uma pesquisa (KELLERet al., 1998), largamente utilizada pela firma farmacêutica para avenda do seu produto, que visava determinar, através de estudorandomizado, duplo-cego, de grupos paralelos se o tratamento demanutenção com cloridrato de Sertralina pode prevenir de formaeficaz a recorrência da depressão no grupo de alto risco de pacien-tes que apresentam depressão maior crônica. Observe-se que o es-tudo é marcado pela questão da melhoria dos sintomas depressivos

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mediante a avaliação de escalas de depressão para apreciação damelhoria. Os resultados mostram que foi possível fazer umaprofilaxia significativamente maior contra as recorrências de depres-são do que com o Placebo (5 casos [6%] dos 77 indivíduos do grupoSertralina versus 19 casos de recaída [23%] dos 84 pacientes do grupoPlacebo, p=0,002 para os testes log-rank das distribuições do tem-po de recorrências). A apresentação dos resultados segue a idéia geralde avaliação acerca da Sertralina que visa examinar a melhoria dadepressão dentro deste grupo. Existe uma retórica que envolve aestatística e a avaliação. É acentuada, por exemplo, a profilaxia: nãorecair em depressão. Caso escrevamos os resultados de uma outraforma, acentuando os efeitos positivos alcançados, mostrando amelhoria também no grupo Placebo, não somente com dupla nega-ção que constitui o desenho da pesquisa: não sentir depressão e nãorecair em depressão, veremos outros aspectos. Assim, a asserçãoinsinuada de que a Sertralina foi melhor que o Placebo pode serbastante relativizada. Senão, examinemos: 74% dos pacientes nãotiveram recaída quando utilizaram Sertralina e 50% dos pacientesdo Grupo Placebo não tiveram recaídas. Note-se, 50% é um númerobruto significativo, ainda mais se considerado o custo quase zero doPlacebo e a aparente falta de efeitos secundários teratogênicos, viade regra já determinados por estudos em grupos animais. Outros-sim, há um pressuposto de que o efeito terapêutico do Placebo ten-de a ser inerte. Esta concepção cria graves dificuldades para otrabalho, pois vemos os autores se surpreender com sua propalada(mas errônea) falta de efeito terapêutico. Aparentemente, inexistequalificação do conceito de Nocebo. Falta também um grupo semtratamento, coisa impensável de um ponto de vista ético. Mesmoque encontrado na população em geral, esta mesma população es-tará cuidando de uma forma ou de outra das pessoas em depressãoe até dos potencialmente deprimidos. As psicoterapias, sejam elasreconhecidas ou não, averbadas por diplomas acadêmicos ou porpráticas populares e culturais, também são um outro fator que deve-ria ser controlado.

A honestidade dos autores e da revista, bem como qualquertendenciosidade voluntária e involuntária pode ser realmente com-provada quando nos comentários é criado no artigo um item intei-ro intitulado “Será que a Taxa de Recorrência de Depressão como Placebo foi incomumente baixa?”. Literalmente, existe quase

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uma confissão de desconhecimento da força Placebo, e uma inge-nuidade que fica patente caso apresentemos ao lado do resultadopositivo da Sertralina a potencialidade de complicações que exis-te com uma droga antidepressiva: com freqüência, significativa-mente maior em relação ao Placebo, ocorrem os seguintes sintomascomo boca seca, náuseas, diarréia, fezes amolecidas, disfunçãosexual masculina (principalmente retardo na ejaculação), tremor,tontura, insônia, sonolência, sudorese e dispepsia.

“O reaparecimento de depressão nos pacientes tratados comPlacebo foi aproximadamente duas vezes maior do que o observa-do nos pacientes tratados com Sertralina” [.....] (KELLER, et al.,1998, p. 1666). Vemos nesta afirmação uma qualificação imensapró-sertralina e desqualificatória do efeito Placebo. Mas, a impor-tância do Placebo é tão insofismável que os autores não resisteme dizem no mesmo artigo:

É provavelmente digno de nota que quase 50% de uma amos-tra de pacientes que entraram no estudo com uma média deaproximadamente dez anos de depressão maior, ou 25 anosde distimia, não tenham apresentado recorrências durante18 meses de tratamento com Placebo. As consultas repetidasdo estudo e a duração do contato com os profissionais de saúdemental em cada consulta podem ter contribuído para a taxade recorrências relativamente baixa no grupo Placebo, masé possível que a cronicidade, se agressivamente tratada comtratamento agudo e de continuação, seja simplesmente umfator de risco menos importante de recorrências anteriores(KELLER et al., 1998, p. 1671).

Para mitigar o efeito Placebo, os autores então dizem que arecorrência é sempre maior nos grupos de pacientes que recebe-ram Placebo (70-80%). Nada mais forte do que afirmar que, a longoprazo, o Placebo funciona muito bem entre 20 a 30% dos casos,chegando próximo da estatística clássica acerca do efeito positivodo Placebo. Novamente uma estratégia de apresentação,descontextualizando o Efeito Placebo da situação geral de trata-mento bem como dos eventuais benefícios que ele pode trazer. Estaé uma constante retórica no discurso farmacológico que não seinformou devidamente acerca do Placebo.

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Ao contrário de fazer uma crítica cega aos métodos de inves-tigação de melhoria de sintomas, estamos somente desejando umamelhoria da qualificação do que seria um Placebo e também doque seria tratar mais globalmente um paciente acometido de de-pressão. Isto obrigou os pesquisadores mais modernos sobre aeficácia de drogas antidepressivas a passar a controlar os chama-dos Placebos respondentes. São aplicadas aos dois grupos Placebodurante um certo período antes de iniciar o modelo típico. Eis queo Placebo se introduziu como algo extemporâneo, relacionado àreatividade prévia de certos sujeitos. Porém, é difícil encontrarcritérios para eliminar os Placebos respondentes dentro do grupoque contêm a substância em exame.

Uma manobra metodológica tem sido utilizada no designexperimental. Usar o Placebo antes para detectar e excluir os quesão Placebos sensíveis. Isso realmente melhora bastante a porcen-tagem de falsos positivos para a droga. Mas, de toda maneira, oEfeito Placebo continua funcionando. (Notar que a percentagem35% não é algo anódino). Existiria um potencial Placebo dentroda própria reação ao medicamento Sertralina, já que o GrupoPlacebo melhorou em torno de 35% enquanto a Sertralina conse-guiu índice em torno de 65%? Uma falsa questão poderia ser co-locada: ainda que seja uma boa droga, devem ser descontados 35%de Efeito Placebo dos 65% totais de melhoria da prescrição daSertralina, tornando-se os 30% “efetivos” da Sertralina, então, umefeito ainda bastante baixo comparado com remédios como insu-lina, curarizantes, morfina? Essa questão é fraudulenta, pois nãoexiste meio de verifica-la, já que o efeito farmacológico e Placeboimiscuem-se dentro do que chamamos medicamento. O uso deestatística mais diferenciada, por exemplo análise de correlação eregressão múltipla, não liquida a ocorrência do fenômeno, mes-mo quando encontramos p< 0,01. O pesquisador deve responderpelo viés do Grupo Placebo e do próprio Efeito Placebo do medi-camento que esteja presente no experimento. A segunda conseqü-ência para o design experimental continua sendo a falta de garantiade que o Placebo não continuaria agindo e a necessidade de for-mular uma teoria mais aprofundada de como se dão o efeito Placeboe os processos gerais de cura. Uma teoria da cura terapêutica tor-na-se aparentemente necessária e urgente ainda que seja para sus-tentar o projeto de controle das teorias experimentais.

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O mais inquietante para um caráter obsessivo que vise contro-lar em absoluto todas as variáveis é a sempre incerta presença daação Placebo ao longo do tempo. Agora ele não está atuando, masquem garante que doravante ele não passe a atuar? Doravante podeser também de forma intermitente, contínua, excepcionalmente umavez, ou senão... Ninguém pode dar garantias absolutas sobre o fu-turo e menos ainda sobre o resultado final de um tratamento qual-quer. E agora que o paciente sofreu uma pequena melhoria, será quea Natura medicatrix não está se ocupando de completar o restanteda melhoria? Acompanhar, então, uma melhoria súbita pode seressencial para o entendimento dos processos de cura entre os huma-nos. Também, examinar as mais diversas possibilidades que este-jam contribuindo direta ou indiretamente para melhoria, incluindoo Efeito Placebo, parece o mínimo que um clínico possa exigir dosprojetos experimentais. Isso implica não cair em falsas pressuposi-ções, tal como aquela que assevera que médicos, por conheceremmelhor os remédios, não são Placebos respondentes. Paradoxalmen-te, e contra uma certa racionalidade que nada tem a ver com a clí-nica efetiva, a pressuposição mostra que médicos podem ser bonsPlacebo respondentes. Diferentemente, a asserção de que as crian-ças são bons Placebo respondentes pode ser falsificada em outrasituação e em outro problema. Não podemos realmente exigir dosmédicos que, distribuindo saber para si mesmo e aos outros, securem por este meio. Eles precisam de objetos que os aliviem esalvem, ainda que Placebos. Saber e curar são verbos diferentes eperigosos de serem confundidos na clínica cotidiana. As criançassem conhecimento científico podem ser completamente intocáveispor este mesmo objeto Placebo. Mas, tanto em um caso comonoutro, em um ser bem informado ou num desinformado de tudo,eis que o Placebo pode (ou não) funcionar. Um princípio de incer-teza se instala.

É gritante, porém, no artigo citado, a desconsideração dofenômeno Placebo. Entendemos que a sua presença inequívoca,como um fenômeno até matematizável, obriga a repensar os pro-cessos de cura que estão presentes mais além da abordagem so-mente farmacológica de um substância. Logo que esta passa a serum medicamento com um nome, prescrito por uma especialistaautorizado, no caso o médico, outras variáveis resistentes no la-boratório experimental se fazem presentes.

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A Curva 2 – TÉCNICA TERAPÊUTICA E PLACEBO: OCASO DA DESSENSIBILIZAÇÃO SISTEMÁTICA E AFALTA DE GRUPO PLACEBO

Placebo e psicoterapia são dois temas essenciais para a clíni-ca psicológica. É importante trabalhar esses dois temas em con-junto, evitando atribuir pejorativamente o sinônimo charlatanismoà palavra Placebo. Este desprezo por um fenômeno inerente àprática clínica vem desde as origens da psicoterapia e da suaoficialização adquirida pela psicanálise principalmente. Placeboe sugestão se tornaram freqüentemente fenômenos rejeitados portoda e qualquer psicoterapia e ou técnica terapêutica oficial, emmaior ou menor medida. Para não parecer maçante e não dirigir aquestão somente do ponto de vista de teorias que não reivindicamfortemente pressupostos de cientificidade, visando também que-brar falsas ilusões cientificistas no campo da técnica terapêuticapsicológica, é suficiente analisarmos a dessensibilização sistemá-tica. Essa técnica, proposta com base em experimentação ampla-mente comprovada em laboratório (WOLPE, LAZARUS, 1996;WOLPE, 1969), divulgada em textos de psicoterapia nas últimastrês décadas como sendo altamente confiável, ao ser comparadapor procedimentos Placebo em anos posteriores (KAZDIN,WILCOXON, 1976; ZITRIN, KLEIN, WERNER, 1980), nãomostrou diferenças significativas no dia-a-dia da clínica, confor-me está resumido na Figura 2. A falta de controle da eficácia deuma técnica assumida como científica, posto que derivada da si-tuação experimental clássica, foi um engano que deve ser corrigi-do e que traz à tona a grande importância de uma teoria da clínicae do Efeito Placebo inerente a esta atividade.

O grande médico árabe Avicena já advertia que a cura se fazpor meio de palavras, ervas e faca. Pensamos que esta seqüênciasábia deve ser resguardada. Uma vez que remédios e cirurgias sãoraramente usados por psicólogos, entendemos que Avicena já ante-cipava o fato de que é possível curar por meio de palavras. Deparamo-nos de imediato com dois grandes fenômenos sistematicamentedescartados das apreciações na área de clínica psicológica que es-tão intimamente ligadas com os atos de fala: a sugestão e o Placebo.A sugestão tem sido trabalhada ao longo da história da psicanálisee da psicologia, de forma persistente. Já o Placebo foi tratado espe-

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cialmente por cientistas e clínicos relacionados com o positivismológico, mais do que pelas teorias psicológicas difundidas. Assim,tratar do Placebo nas suas relações com a psicoterapia abre pers-pectivas novas e únicas como fenômeno efetivo.

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Figura 3: Avaliação de Melhoria em Diversos Grupos de Psicoterapia Cognitivae Comportamental

Figura 2: Grupos x Interação dos Testes para os Valores da Escala de Aproximação

Examinemos, então, estudos sobre que tipos de fatores sãoresponsáveis pela efetividade (ou melhoria) psicoterapêutica.Alguns defendem que existem fatores comuns a qualquer tipo deterapia (os denominados fatores não-específicos), como expecta-

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tivas do paciente, crenças no ritual de cura e relação terapeuta-paciente, que são mais potentes para a promoção da melhora doque fatores específicos, como as técnicas de diferentes tipos deterapias (SHAPIRO, 1979; SRUPP, HADLEY, 1979). Outros es-tudos, porém, defendem que tratamentos específicos obtêm bene-fícios diferentes de acordo com a especificidade deles. Tais estudossão mais recentes e são feitos com base na construção de umaestratégia de pesquisa própria para o objeto de estudo, ou seja,bastante específica. Alguns deles mostram que diferentes tipos dedesordens sexuais requerem diferentes intervenções (MASTERS;JOHNSON, 1968) ou que técnicas comportamentais específicastêm sido efetivas no aumento da atividade social e na redução desintomas negativos em esquizofrênicos (MAY, 1968; HARTLAGE,1970). Frances, Sweeney and Clarkin (1985) criticaram reviewsdefensoras dessas duas visões extremistas. Tais autores nos lem-bram a dificuldade de fazer pesquisa em psicoterapia e afirmamque tanto fatores não específicos como específicos são importan-tes para a mudança na terapia. Encontrar resultados específicosdepende do uso de uma metodologia também específica, ou seja,que é própria para um determinado tratamento de um tipo de pa-ciente e que tem medidas específicas para ser avaliada. Logo, àmedida que isso for feito, será possível encontrar os efeitos espe-cíficos de fatores considerados como não específicos. Esses auto-res discutem, ao longo do artigo, formas de realizar estudos comuma maior capacidade de isolar efeitos específicos. Entendemosque este tipo de crítica é muito importante, mas revela uma crençana capacidade de um dia ser possível controlar todas as variáveis.Ao contrário, pensamos que uma teoria da clínica tomaria comoprincípio a impossibilidade de tudo controlar e principalmente deisolar experimentalmente todos os fenômenos. Fica desde já evi-dente que em bom número de procedimentos ditos experimentaisocorre uma desnaturação e violação da situação típica depsicoterapia.

Tradicionalmente, psicoterapias e Placebos são consideradoscomo pertencentes a dois tipos distintos de classes de tratamentos.As terapias têm sido pensadas como forma de tratamento commecanismos específicos, baseados em conceituação teórica, ao passoque os Placebos têm sido vistos como fatores comuns à maioria dasterapias, e portanto, menos específicos. Para esclarecer a natureza

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dos argumentos que dizem respeito ao uso de controle Placebo empesquisas de psicoterapia, é importante distinguir entre duas propo-sições do delineamento de pesquisa: a investigação do que é efeti-vamente terapêutico, e a investigação dos processos e mecanismosterapêuticos. Numerosos estudos têm achado tratamentos Placebotão efetivos como terapias supostamente baseadas em mecanismosespecíficos, como a dessensibilização sistemática (HOLROYD,1976; KIRSCH, HENRY, 1977; KIRSCH et al., 1983;MCREYNOLDS et al., 1973).

Para determinar o uso do tratamento Placebo em estudos depsicoterapia, estudos de revisão bibliográfica, de forma crítica, nosmostram-nos a presença do Efeito Placebo nas mais diversas situ-ações objetiváveis de psicoterapia (HORVATH, 1988). Os critériosde inclusão de terapia como Placebo foram: a condição ou grupoconsiderado pelos autores ou o tratamento Placebo ou a “atenção(cuidado)-Placebo” ou então como variáveis terapêuticas não-es-pecíficas. Um total de 39 estudos foi selecionado por incluir o usodo Grupo Placebo e foram categorizados em 6 tipos de grupos di-ferentes. Os grupos foram definidos como medicamento Placebo,Placebo teoricamente inerte, componente de controle Placebo, aten-ção Placebo, grupo de aconselhamento e discussão Placebo e tera-pias alternativas Placebo. O grupo de medicamento Placebo (20%da amostra), no qual foi usado o clássico uso de drogas inertes outratamentos físicos se baseia em mecanismos fisiológicos emborapossam ter efeitos que influenciem no tratamento (ALETKY,CARLIN, 1975; BARKELEY et al., 1984; CHAMPMAN,KNOWLES, 1964). Conseqüentemente, as variáveis Placebo po-dem não ser sempre semelhantemente distribuídas entre os gruposcontrastados. O grupo Placebo teoricamente inerte (18% da amos-tra) apresenta o ponto de vista de que a teoria pode ser testada. Nessesestudos os tratamentos e Placebos contêm poucos elementos espe-cíficos e métodos que possibilitem a fácil replicabilidade. Nempodem os Placebos ser considerados como formas alternativas detratamento. Esses Placebos continham componentes que estavampresentes também em tratamentos contrastados.

O grupo componentes de controle Placebo (18% da amos-tra), em contraste com o grupo de Placebo teoricamente inerte,que contém poucos e específicos elementos inertes, é comple-xo, com muitos elementos que podem ser terapeuticamente

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ativos. Nestes estudos eles incluíram relaxamento, discussãode problemas, sugestão de soluções, entre outros elementos.Este tipo de Placebo pode conter um número de elementos quepodem não ser terapeuticamente ativos, de acordo com a teoriapsicoterápica investigada, mas pode conceber funções em con-cordância com algumas terapias alternativas. De alguma ma-neira, o controle Placebo pode ser considerado como formaalternativa de psicoterapia e é, sem muita atenção, equiparadoà terapia e ao Placebo como elementos comuns. Estes estudosrepresentaram 44% da amostra e podem ser classificados em 3tipos. O primeiro refere-se à atenção Placebo (26% da amos-tra), nestes estudos de Steffen (1975) o grupo de tratamentocompromete-se em um feedback de relaxamento assistido, en-quanto o grupo controle Placebo se compromete em contem-plação. Embora a contemplação possa ser terapeuticamenteinerte, pode ter resultados semelhantes à medicação Placebo epode ser considerado como uma terapia alternativa. No grupode aconselhamento Placebo (5% da amostra), os sujeitos rece-biam grupo suporte. Nenhum tipo particular de grupoterapêutico foi utilizado. Os Placebos que formam terapiasalternativas (13% da amostra) podem freqüentemente incluirmúltiplos componentes. Em um estudo de dessensibilização deanimais fóbicos, choques e falsos feedbacks, as melhoras ocor-reram igualmente em grupos Placebo (LICK, 1975). Emboraeste tratamento possa ser teoricamente inerte, os autores admi-tem que o falso feedback pode ser considerado terapeuticamenteativo, por estar de acordo com algumas alternativas teoricamen-te legítimas. Já menos satisfatórias foram as condições não-específicas de controle que envolviam múltiplos componentesentre os quais estão a produção de desenhos na gestalt terapia,lócus de controle, análise transacional e exames de razõesintrapsíquicas entre outras (BANDER et al., 1975). Estes ele-mentos Placebo foram comparados com treinamento de papéis,uso de incentivos, entre outros. Condições Placebo nestas ca-tegorias são menos satisfatórias porque são formas ou contêmcomponentes legitimamente terapêuticos e porque não existeuma atenção da parte dos investigadores de equiparar a terapiae os grupos Placebo a elementos comuns. A título de resumoapresentamos os resultados gerais na Tabela 1.

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Tabela 1: Freqüência do Controle Placebo por Tipos

Pode ser notada, de imediato, a inexistência de trabalho quecontemple procedimentos terapêuticos que julgamos mais com-plexos, demorados, processuais. A classificação acima tem a ca-racterística geral de serem os elementos fenômenos atomizáveis.Com a ajuda de Wolberg (1972), poderíamos apontar que os tiposde investigação acerca do Efeito Placebo em terapia envolvemprincipalmente as terapias do tipo suporte e reeducativa. Terapiaschamadas por Wolberg de Reconstrutivas, em que é buscada areestruturação do sujeito, como em Psicanálise, Análise Existen-cial, Terapia Jungiana e em outras citadas no clássico americanode psicoterapia, estão virtualmente excluídas deste tipo de inves-tigação. Entendemos, assim, na breve investigação prévia, quetratamos Placebo e psicoterapia com a importância de tentarelucidar as relações do Placebo no processo de cura e piora emterapias do tipo reconstrutiva, em específico tomando a psicaná-lise freudiana como corpus discursivo maior a ser analisado.

A Curva 3 – TERAPIAS RECONSTRUTIVAS E EXCLUSÃODISCURSIVA DO PLACEBO

O tratado clássico acerca da técnica de Psicoterapia de LewisWolberg apresentou a grande qualidade de sublinhar a existência,no campo das psicoterapias, do chamado Efeito Placebo que eleacaba por chamar dúbiamente de influência Placebo. Antes de es-clarecermos esta dubiedade, entendemos ser necessário apresentaralguns dos principais pontos deste importante trabalho, asseguran-do desde já que a concepção de Wolberg não é modificada. Wolbergdizia que as pesquisas em psicoterapia ainda não alcançaram umgrau confiável quanto à aplicação de um controle experimental paraa análise da melhora psicoterapêutica. Entendemos que esta propo-sição geral continua de pé neste início de século XXI. Apesar disso,ele acreditava que já era possível, através de uma repleta literatura

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que traz resultados expressivos, comprovar a eficácia da psicoterapiae de suas contribuições para a melhora do paciente. Para tanto, jáentendia que toda a ajuda, aconselhamento e situação psicoterápicaabarcam elementos de cura automáticos, que são emanados durantea relação paciente-terapeuta. Incluem-se aí variáveis como influên-cia de Placebo, catarse emocional, relacionamento idealizado, su-gestão e dinâmica grupal, em um primeiro tempo, seguida de outrasvariáveis como Insight, Interpretação, Perlaboração em Processo,Experiências reaprendidas corretamente e Resolução da dependên-cia. Wolberg desenvolveu um gráfico que, apesar de não trazer dadosestatísticos, é muito interessante. Ele ilustra o curso das psicoterapiase as várias mudanças que podem ocorrer com o sujeito no sentidoda “melhora”. O gráfico comporta todas as variáveis citadas acima,conforme pode ser apreciado na Figura 4.

Pode ser percebido que nas fases iniciais ocorre uma melhoraimediata e abrupta, envolvendo tanto a remissão de sintomas quan-to mudanças no comportamento, decorrente de variáveis tipo influ-ência Placebo, catarse, idealização do terapeuta, sugestão e dinâmicagrupal. O gráfico ensina de forma excelente que as melhorias deinício de terapia são muito falaciosas, pois, se o tratamento é inter-rompido nessa fase, o que se observa são apenas resultados signifi-cativos quanto à remissão dos sintomas. Caso a terapia não sejainterrompida nessa 1ª fase, a continuação delafaz emergir então osprocessos de transferência e resistência, que acabam por reduzir amelhora sintomática e as mudanças comportamentais. Esse movi-mento corresponde à queda nas curvas do gráfico. Correspondetambém a uma qualificação da chamada influência placebo porqueestaria presente algo misturado com as outras variáveis citadas e, onosso ver, principalmente com o conceito e sugestão. Por fim, coma continuação da terapia e com o manejo da transferência, a resis-tência tende a diminuir, possibilitando novamente um aumento daremissão dos sintomas e das mudanças comportamentais, acompa-nhadas de uma significativa mudança de personalidade,correspondendo a subida gradual encontrada no gráfico.

Apesar do esquema anterior não elucidar dados estatísticos,Wolberg apresenta uma segunda tabela que pode mitigar a exigên-cia positiva de tratar de forma estatística os resultados de umapsicoterapia. Mostra a Tabela 2 uma estimativa de resultadosterapêuticos em diversas situações de ajuda.

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Figura 4: Representação das Curvas de Melhora e Tratamento Dentro de AlgunsModelos Psicoterápicos

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Tabela 2: Estimativa dos Resultados Terapêuticos em DiversasSituações de Ajuda

Notas: * Em caso de terapeutas não treinados por técnicas profundas, o quadroaproxima-se de 20%.** O mesmo resultado é obtido com consultores e terapeutas não habili-tados e despreparados.

A Tabela 2 traça uma comparação entre diversas situações deajuda terapêutica e o processo de melhora espontânea em relaçãoàs diversas possibilidades de mudança: remissão dos sintomas,mudanças de comportamento e personalidade. É interessante per-ceber a relevância dos resultados encontrados relativos às terapi-as efetivas em comparação com as outras formas de ajuda. Issodemonstra a importância e seriedade desses procedimentos, já que,quando é ineficaz, apresenta resultados menos expressivos do queos obtidos nas situações em que ocorre melhora espontânea.

Entendidos os termos dados numa vista panorâmica da curvadelineada por Wolberg, podemos nos voltar para o nosso objetoprincipal que trata de Placebo. Essa curva Placebo é mostrada comopresente tão somente no início. A sugestão e a catarse que a acom-panham são vistas como algo que não pode trazer cura permanen-te. Essas dimensões não estariam teoricamente presentes em outrasfases de uma terapia reconstrutiva bem conduzida e feita por umpsicoterapeuta treinado. Trata-se evidentemente de uma fantasiaapolínea de Wolberg. Placebo, sugestão, catarse bem como dinâ-mica grupal e aquisição de autoridade e desautorização do terapeutaocorrem ao longo de todo e qualquer processo de tratamento e,mais ainda, em psicoterapia.

Não sejamos porém demasiado exigentes com Wolberg eatenhamo-nos mais especificamente ao termo Placebo que foimagnificamente citado como presente em todas as psicoterapias,fato que por si só já mereceria o nosso reconhecimento. Wolberg

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cita o Placebo associado com a palavra influência. Sugestão einfluência são quase sinônimos, historicamente: o entendimentode Wolberg sobre Placebo é algo então mais alargado do que vi-mos na primeira curva farmacológica e mais alargado e positivado,ainda, como conceito, do que o conceito de placebo procedimen-to, tal como vimos nas curvas de dessensibilização sistemática. Otermo “influência” foi escolhido em detrimento, por exemplo, dotermo “efeito” que tem conotação menos relacionada com suges-tão, hipnose.

Assim, vemos poder existir um contínuo conceitual entresugestão e placebo, caso tentemos conceituar placebo e suas va-riações dependentes do investigador. Em um sentido estrito, oconceito “placebo” necessitaria da presença de uma substânciaadministrada como medicamento, mas que seria sem ação ou ina-tiva de um ponto de vista do mecanismo de ação farmacológico.Essa definição nos parece mais próxima das exigências dosfarmacologistas que pensam no Placebo como uma substância queserá introduzida no corpo, imitando uma outra que teria efeito. Ouseja, o Placebo tem materialidade, resistência, pertence à res ex-tensa, tal como pode notado na curva placebo número 1. Está assimbem próximo da situação experimental em que passou a ser ava-liado através do conceito de reação placebo “Um placebo usadocomo controle em estudos experimentais foi definido como umasubstância ou procedimento sem ação ou atividade específica paraa condição que está sendo avaliada” (SHERMAN ROSS;BUCKALEW, 1983, p. 458). Vemos na curva de dessensibilizaçãosistemática que não se trata mais somente de uma substância, masde um procedimento. O termo que passa a ser privilegiado não éreação, mas, sim, efeito placebo. A definição de Shapiro (1968)amplifica o espectro do que ele chama de placebo mais além deuma substância: passa a incluir procedimentos ou mesmo o termotratamento de forma ampla:

any therapy or component of treatment deliberately used forits nonspecific psychological or psycho physiological effector used for its presumed specific effect on the a patient,symptom, or illness though without specific activity for thecondition being treated (SHAPIRO, 1968, p. 659-95).

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Evidentemente vemos duas definições advindas de meios bemdiferentes. A primeira é uma definição advinda mais do contextoexperimental, e a outra, do contexto cultural e da clínica. Certa-mente Wolberg aceitaria a definição de Shapiro. Um exemplointeressante na literatura psicanalítica internacional, a ser segui-do, são os trabalhos de interligação da teoria psicanalítica clássi-ca de Shapiro e Shapiro (1997) entre Placebo e psicanálise e a deOllinheimo e Vuorinen (1999), que aceitam amplamente a defini-ção advinda mais do campo clínico através do termo efeito placebo.

A curva psicoterapêutica de Wolberg tem a qualidade dereconhecer o Placebo como parte de toda e qualquer psicoterapia.Implica, também, entender que psicoterapia não envolve somenteo uso da palavra. O mundo das psicoterapias envolve tambémmanipulações físicas, procedimentos, solicitação de produção desons (por exemplo, mantras), instrução que pode provocar relaxa-mento muscular, pressão moral, enfim todo um universo de práti-cas que promovem uma modificação na forma de reagir, processaro que as pessoas sentem, pensam, como se comportam, submeti-das a um código de ética profissional. Ao mesmo tempo, existe nacurva de Wolberg uma mistura entre Placebo e sugestão atravésdo uso do termo influência. A diferença entre Placebo e sugestãonão fica porém restrita às definições que demos antes, ela reper-cute mais além. Explicitemos: ainda que exista um elemento físi-co-material no placebo, que é introduzido na definição estrita, umapossível sugestão sempre pode estar presente. Uma repercussãoimportante é que as teorias experimentais de placebo (reaçãoplacebo) se utilizam, via de regra, de teorias do estímulo, tal comovemos na sua origem em Sherrington. Já as teorias de psicoterapiae de sugestão se utilizam amplamente de teorias do símbolo e desuas variações semânticas e são aparentadas tal como as teoriasdo signo e do significante, entre outros termos. O Placebo na cur-va de Wolberg está também situado entre as teorias do estímulo eas teorias do símbolo.

De igual maneira, verificamos que, na psicanálise clássicafreudiana, em especial nas leituras e trabalhos que realizamosacerca dos processos terapêuticos, o fenômeno Placebo parece seimiscuir sem diferenciação do resultado final do processo. Emoutras palavras, o efeito dito Placebo aparece como parte do pró-prio modo de fazer terapia ou senão, pura e simplesmente, não é

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considerado. É importante para nós, no aprofundamento das pes-quisas realizadas até o momento, esclarecer a questão do Placebodentro da teoria e prática psicanalítica como modelo para o enten-dimento dos processos de cura psicoterapêutica.

Parece-nos essencial fazer uma articulação, aquela já feita porFreud (1905, p. 306) quando falava da magia das palavras e quetemos estudado através das teorias dos atos de linguagem:

Agora, também começamos a compreender a ‘mágica’ daspalavras. As palavras são o mais importante meio pelo qualum homem busca influenciar outro; as palavras são um bommétodo de produzir mudanças mentais na pessoa a quem sãodirigidas. Nada mais existe de enigmático, portanto, na afir-mativa de que a mágica das palavras pode eliminar os sinto-mas de doenças, e especialmente daquelas que se fundam emestados mentais.

A interrogação sobre como a magia das palavras pode operarna cura do paciente, ou outras situações como esta, continua apa-rentemente sendo um dos cernes da psicoterapia e de nossa inves-tigação ao longo dos anos. Sendo mágicas, tal como um Placebo,as palavras certamente têm um vínculo com a melhoria (Placebo)ou com a piora (Nocebo). Platão (Fedro) pôde recorrer aos dife-rentes efeitos de sentido desse termo, seja o de “filtro”, “poçãomágica”, seja o de “remédio”, seja, ainda, o de “veneno. Quaispalavras pertencem a um efeito desta ordem? Tudo o que épsicoterapia é essencialmente Placebo? Um Placebo pode ter umefeito permanente? Esclarecer como essa magia se faz com baseno estudo da teoria psicanalítica nos parece de grande relevâncianão somente para a psicanálise, mas para qualquer terapia em geralque utilize a fala como elemento essencial”.

CONCLUSÃO

Temos uma proposição geral por detrás do questionamentoque fizemos sobre as três curvas placebo estudadas: Placebo, re-ação placebo, efeito placebo. Ainda que seja apreciado por umacurva de reação farmacológica, de efeito psicoterapêutico ou emuma curva de influência psicoterapêutica, necessita de uma teoria

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geral da clínica. Estudar as três curvas nos levou também a vis-lumbrar o capotamento de toda e qualquer avaliação sobre a efi-cácia e de teorias que se vangloriam de ser melhores que outras.O Placebo, com suas perigosas curvas, cria problemas para certe-zas e aparências em terapia. Parece com a burguesia que se van-gloria nos salões, enquanto a realidade de quem realmente faz ficarelegada segundo plano. O Placebo, ainda que tomado como ralé,emerge no mundo do fazer clínico como pertencente ao mundo detodos, mesmo de linhagens e pretensões diferentes.

Notas

1 Gráfico presente de forma similar tanto na literatura acerca de tratamentoantidepressivo quanto no sério trabalho de Keller, M. et alli ; “MaintenancePhase Efficacy of Sertraline for Chronic Depression – A randomized ControlledTrial” in The Journal of the American Medical Association, Novembro 18,1998 – Volume 280, Número 19, pp. 1665-1672.

2 Murray C. J.; Lopez, A. D.; “Global mortality, disability, and the contributionof risk factors: Global Burden of Disease Study” in Lancet, 349, pp. 1436 –1442, 1997.

3 Irving Kirsh; Guy Saoirstein; “Listening to Prozac but hearing Placebo: ametanalysis of antidepressant medication” in Prevention and treatement, 1,junho 1998.

4 Keller, M. et alli ; “Maintenance Phase Efficacy of Sertraline for ChronicDepression – A randomized Controlled Trial” in The Journal of the AmericanMedical Association, Novembro 18, 1998 – Volume 280, Número 19, pp.1665-1672.

5 Wolpe, J.; Lazarus, A.; Behavior Therapy Techniques. A Guide to the treatmentof Neurosis, Oxford, Pergamon Press, 1966.

6 Wolpe, J.; The Practice of Behavior Therapy, New York, Pergamon Press,1969.

7 Kazdin, A E.,Wilcoxon, L.A. “Systematic Desensitization and NonspecificTreatment Effects: A Methodological Evaluation. Psychol. Bull., 83:729-758,1976.

8 Zitrin, C. M., Klein, D.F., Woerner, M. G. Treatmente of Agoraphobia withGroup Exposure in Vivo and Imipramine. Arch. Gen. Psychiatry, 37: 63-72,1980.

9 Shapiro, A K. Placebo Effects in Medicine, Psychotherapy and Psychoanalysis,In Handbook of Psychotherapy and Behavior Change. Bergin, A.E., andGarfield, S.L., Eds John Wiley & Sons, New York, 1979.

10 Srupp, H.H., Hadley, S.W. Specific vs. Nonspecific Factors in Psychotherapy:A controlled of Outcome. Arch. Gen. Psychiatry, 36: 1125-36, 1979.

11 Masters, W. H., Johnson, V.E. Human Sexual Inadequacy. Little, Brown andCompany, Boston, 1970

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17 Kirsch, I., Tenne, H. Wickless, C. Saccone, a. J., & Cody, A. (1983). The roleof expectancy infear reduction. Behavior Therapy, 14, 520-533.

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20 Aletky, p. J., & Carlin, A. S. (1975). Sex differences and Placebo effects:Motivation as an intervening variable. Journal of Consulting and ClinicalPsychology, 43, 278.

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26 Wolberg, L. R.; The Techniques of Psychotherapy (1972), New York: Grunee Stralton.

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28 A. K. Shapiro; “Semantics of the placebo” in Psychiatric Quarterly, 42, pp.653-695, 1968.

29 Arthur K. Shapiro; Elaine Shapiro; The Powerful Placebo: From AncientPriest to Modern Physician, Baltimore, MD: The John Hopkins UniversityPress, 1997.

30 Ollinheimo, A.; Vuorinen R.; Metapsychology and the Suggestion Argument– A Reply to Grünbaum’s Critique of Psychoanalysis,Finland, Sarijärvi, 1999

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Abstract: Placebo Effect has been banished along the positivist historyof clinical investigations, either pharmacological, psychological orpsychotherapeutic investigations. In this paper, it is proposed a criticalanalysis of three schematic curves (pharmacological, systematicdessensibilisation and Wolberg’s theoretical graph aboutimprovements in psychotherapy), which show the improvements inpsychotherapy related to the analysis of the Placebo Effect. Byanalyzing the literatures, it is examined if the Placebo Effect, belongingto the general therapeutic effect, would be correlated to the psychicaltherapeutic effect of all and every therapy. It is understood that thePlacebo Effect and the Psychotherapeutic Effect are potentiallypresent. First, an example with Placebo Effect in treatments usinganti-depressives is examined. From the resulting 35% of PlaceboEffect, it is argued that it the Placebo Effect should not be unknownor rejected by the use of rhetorical maneuvers or disqualifications ofanti-depressive treatments. A second examined example is aboutsystematic dessensibilisation which has its therapeutic effect evaluatedby the use of comparison with the Placebo procedure. Literature ofthe last two decades shows that systematic dessensibilisation has notproven to be a better efficacy compared to “Placebodessensibilitation”. More than a profitless critic to this importanttechnique, this paper seeks to join the clinical field and to point outthe existence of common matters in all and every application ofpsychotherapy. A third graph curve, showing improvement inpsychotherapy by Wolberg (as either support, enlightenment orreconstructive), is examined. This wisely questions the presence ofPlacebo Effect in all and every therapeutic act, which enables us topoint out the need to enlighten the relationship between words and itsspecific therapeutic effect on future works.

Key words: placebo, placebo effect and therapeutic procedure

O presente trabalho contou com a ajuda do CNPq e pertence ao Grupo de Traba-lho da ANPEPP acerca de Psicopatologia e Psicanálise.

FRANCISCO MARTINSProfessor no Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília. Psicólogo.Psiquiatra. Psicanalista.

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Resumo: Wittgenstein critica a Psicologia de sua época,particularmente o mentalismo formulado numa perspectivaessencialista e o uso de uma linguagem fisicalista para des-crever a vida mental. Wittgenstein acentua o caráter socialda significação das vivências subjetivas, enfatizando a com-preensão da vida mental e da causalidade psíquica em fun-ção do contexto social e da cultura, influenciando arenovação crítica da Psicologia.

Palavras-chave: Wittgenstein e Psicologia, linguagem e Psi-cologia, linguagem e construtivismo social

udwig Wittgenstein encerra suas Investigações Filo-sóficas – principal texto de sua filosofia madura e quecaracteriza o segundo Wittgenstein – com uma obser-

vação desencantada e irônica sobre a Psicologia, afirmando que“Existem na Psicologia métodos experimentais e confusãoconceitual. (Como, noutro caso, confusão conceitual e métodosde demonstração.)” (WITTGENSTEIN, 1979). Na verdade,quase toda a sua obra está eivada de referências, sempre em tomcrítico, à Psicologia. Mas a que Psicologia, ou melhor dizendo,a quais Psicologias ele se refere e por que as critica?

JOSELÍ BASTOS DA COSTA

WITTGENSTEIN

PSICÓLOGO?

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Comecemos pela Segunda Questão para Depois Passarà Primeira

A principal estratégia do homem para lidar com o mundo érepresentá-lo por meio de um comportamento simbólico, a fala ede seu produto, as expressões lingüísticas. Mas o que faz os ho-mens entenderem-se sobre suas representações do mundo? Exis-tiria nos homens algum aspecto subjetivo anterior à linguagem quelhes permitiria validar o seu conhecimento do mundo ou este co-nhecimento resultaria de um acordo permanentemente renovadoentre eles quanto ao significado dos elementos usados para repre-sentar o mundo?

A própria questão, assim formulada, já traz em si as possibi-lidades de resposta. Numa perspectiva, o significado de uma pa-lavra é dado a partir de elementos concretos ou abstratos exterioresà linguagem, pertinentes ao mundo físico ou mental. As palavrassão então entendidas como definidas a partir de elementos queexistem independentemente da existência de expressões lingüís-ticas que os identifiquem. O significado é dado mediante o esta-belecimento de uma relação entre a palavra e um objeto oufenômeno qualquer, e a palavra seria uma “representação” desseobjeto ou fenômeno. Já numa outra perspectiva, não é possívelentender palavras a partir de sua relação com coisas e fenômenosdo mundo físico ou mental, uma vez que as palavras só podem serdefinidas em seu significado pela maneira como se faz uso delas,pelo modo como uma determinada comunidade lingüística as usa.

Ludwig Wittgenstein, em contraposição a seu TractatusLogico-philosophicus, que de certo modo se situava na primeiraposição, diz em suas Investigações Filosóficas que o significadode uma expressão lingüística não decorre de sua vinculação a umobjeto e sim do seu uso específico por uma comunidade lingüís-tica. Para ele, “… a significação de uma palavra é o seu uso nalinguagem”1. A linguagem é por ele concebida como uma institui-ção, um produto social2.

O texto Investigações Filosóficas é na realidade, em grandeparte, dedicado ao combate à compreensão da linguagem em ter-mos nominativos e de correspondência entre palavra e mundo. Alinguagem é nele concebida como um “jogo”, com suas regras efins evidentes nas combinações e efeitos das palavras. A atividade

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lingüística é apenas um tipo de atividade humana, relacionada comos outros tipos de atividades, num contexto determinado, sob certascondições físicas específicas e exercido em função das necessida-des humanas. O problema do significado das palavras é, então,expresso em termos de sua adequação como resposta num sistemade respostas integradas e em termos de suas funções na vida hu-mana (POLE, 1966).

Para analisar o modo como a linguagem funciona e seus sig-nificados, Wittgenstein desenvolveu o conceito de “jogos de lin-guagem”, que é definido pelos modos de uso das palavras; ele fazuso de exemplos simplificados de “jogos de linguagem”, mas estesjogos podem ser complexificados indefinidamente pela anexaçãode outros elementos3. Este conceito é aplicado a todo conjuntointegrado de usos de elementos lingüísticos que forme um com-plexo dentro do corpo de uma linguagem natural. Decorre daí quecada uso específico das palavras consiste num jogo de linguagemespecífico, e, desse modo, uma linguagem, natural não é mais queum nexo de “jogos de linguagem”. Fora dos jogos de linguagemas palavras não podem possuir significado (POLE, 1966).

É neste sentido que o uso de uma palavra define o seu signi-ficado. Enquanto articulação de jogos, a linguagem só pode serentendida como conjunto de regras estipuladas por convenções deuso que definem, delimitam e integram os seus diversos elemen-tos lingüísticos. Mas o uso a que Wittgenstein se refere não é o“uso fáctico” da palavra e, sim, o seu “uso correto”, entendido comoa concordância com as regras de uso da palavra estabelecidas epraticadas por uma comunidade lingüística4. Uma palavra podeser usada, de fato, de diversas maneiras incompatíveis mas ape-nas o seu uso correto, quando se cumprem certas condições deter-minadas, relativas à sua aplicação a uma ou outra situação de usoe a um ou outro objeto, é que permite uma delimitação adequadade seu significado.

A adequação da palavra a essas condições implica na obser-vância de uma série de elementos que delimitam o uso significa-tivo da palavra, quais sejam gestos, expressões faciais, ou mesmocircunstâncias de uso estabelecidas pela comunidade lingüística eadquiridas através do treino e da experiência, enfim, toda a lógicado modo como as palavras são usadas pela comunidade lingüísti-ca. Wittgenstein chama a essa lógica de “ palavras, expressão que

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se refere aos conjuntos de regras extralingüísticas, regras de usoda linguagem para propósitos não-lingüísticos, vinculados às ne-cessidades e à vida humana e expressas nos jogos de linguagem.Para ele é essa “gramática” das palavras que explicita a ligaçãoentre linguagem e realidade (HINTIKKA; HINTIKKA, 1994).

Wittgenstein admite um vínculo associativo entre a palavrae o objeto, dado no momento da ostensão enquanto técnica deensino da linguagem5 mas recusa o conceito de “definição os-tensiva” (entendido como uma conexão conceitual entre signifi-cado e objeto) e prefere o de “ensino ostensivo”6 (entendido comouma conexão conceitual entre significado e uso). As ligaçõesentre a linguagem e o mundo são assim constituídas num con-texto de uso convencionado da palavra por parte de uma comu-nidade lingüística7, com ênfase na sua “gramática”, expressaatravés dos “jogos de linguagem” os quais são adquiridos emfunção do treinamento8.

A questão que se coloca então é a rejeição de uma correspon-dência perfeita entre palavra e pensamento, entre signos e imagensmentais, entre linguagem e significados mentais. É nesse sentidoque Wittgenstein propõe substituir a pergunta “o que é o significa-do de uma palavra?” pela pergunta “o que é a explicação do signi-ficado de uma palavra?”, uma vez que assim se remete não à procurade um objeto ou imagem mental a ela correspondente mas sim àsregras que regulam o uso dessa palavra (WITTGENSTEIN, 1958).

Uma das conseqüências que se pode derivar das idéias deWittgenstein sobre a linguagem é a impossibilidade do uso deexpressões lingüísticas para representar experiências privadas evivências subjetivas. Não se pode supor uma linguagem “priva-da”, uma vez que linguagem é, por definição, um fenômeno denatureza “pública”. Do modo como ele o entende – o uso da co-munidade lingüística – não se pode falar de um “uso correto” daspalavras de uma linguagem “privada” e, conseqüentemente, umalinguagem privada não poderia ser chamada de linguagem.

Ora, o que é isso se não uma dura e radical crítica ao conceitode mente e ao mentalismo enquanto formulados numa perspectivaessencialista? Uma crítica à própria possibilidade de uma ciênciada mente e da vida mental, uma Psicologia, como entendida à suaépoca, uma ciência à procura das leis causais dos comportamentose sentimentos do homem nos processos e conteúdos da mente?

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Entretanto essa postura crítica de Wittgenstein em relação aomentalismo não pode ser entendida como uma concordância coma posição que, no âmbito da Psicologia de sua época, se propunhaantagonista das posições mentalistas, fenomenológicas eessencialistas, o behaviorismo, particularmente a vertente dobehaviorismo lógico.

O problema tratado por Wittgenstein em seus argumentossobre a linguagem privada não é, em absoluto, a existência da menteou das vivências interiores; ele não nega, em absoluto, a existên-cia de dados sensíveis e experiências interiores nem nega o cará-ter privado dessas experiências e dados. Ele nega, sim, apossibilidade de uso de uma linguagem privada através da qual sepossa fazer referência a vivências interiores e a dados sensíveis.Wittgenstein não nega em seu argumento sobre a linguagem pri-vada a existência da mente ou de fenômenos mentais, muito me-nos a possibilidade de uma linguagem que os descreva; suapreocupação é, a partir da negação da possibilidade lógica de umalinguagem fenomenológica, afirmar a impossibilidade de falardessas vivências e da mente usando uma linguagem fisicalista. Suafilosofia da linguagem não pode pois, em absoluto, ser considera-da behaviorista (ZILHÃO, 1993; HINTIKKA, HINTIKKA, 1994).

Ao tratar desse problema, Wittgenstein afirma o uso socialcomo possibilidade de significação no uso de uma linguagem quedescreva sensações ou vivências internas. Ele critica o modelo“objeto x designação” que pressupõe a representação direta deum elemento mental por um nome; para ele as relações entre avida mental e uma linguagem que a represente são mediadas porjogos de linguagem, o que lhes dá um caráter público e não pri-vado (HINTIKKA; HINTIKKA, 1994). Wittgenstein não nega aexistência das vivências privadas, mas acentua o caráterinterpessoal da significação dessas vivências; o significado deuma linguagem das sensações é construído através de um esque-ma interpessoal9.

O que Wittgenstein discute na verdade é a necessidade de umjogo de linguagem público para que se possa falar de sensações ede vida mental, o qual se constitui com base nas deduções de umalógica explicitada nas manifestações comportamentais e evidên-cias externas dessas experiências e vida mental. As manifestaçõespúblicas das vivências privadas, na medida em que compõem jogos

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de linguagem, permitem, por sua natureza social, significar essasvivências10 (HINTIKKA; HINTIKKA, 1994).

Mas a natureza pública de uma linguagem que expresse asexperiências internas e a vida mental não implica na impossibili-dade da natureza privada dessa vida mental, do mesmo modo quea necessidade de um esquema público para significar as sensaçõese vivências internas não implica na necessidade de que estas sen-sações e vivências sejam públicas e não privadas (HINTIKKA;HINTIKKA, 1994). Sendo assim, as relações entre as vivênciasprivadas e suas manifestações públicas não são contingentes e simlógicas, e a discussão da linguagem privada é uma discussão se-mântica e não epistemológica (HINTIKKA; HINTIKKA, 1994).

Do mesmo modo que critica uma linguagem fenomenológica,Wittgenstein também critica o uso de uma linguagem fisicalista paradescrever a vida mental, principal característica do behaviorismológico (ZILHÃO, 1993). Para ele, o behaviorismo lógico, do mes-mo modo que o mentalismo, não passa de confusão conceitual.

Entretanto, sua postura em relação às principais correntes dapsicologia de sua época foi não apenas crítica mas principalmenteinovadora. Ao desenvolver o argumento do fundamento público dalinguagem e da sua dependência social, abriu as portas para umanova compreensão da vida mental e da causalidade psíquica, reme-tendo-as ao contexto social e à cultura. Seu pensamento influencioua renovação crítica nas teorizações das vertentes cognitivistas daPsicologia, o redirecionamento conceitual na abordagembehaviorista, que hoje é majoritáriamente cognitivista, tendo aban-donado por completo os postulados do behaviorismo lógico; influ-enciou, principalmente, o surgimento de novas abordagens teóricascentradas no valor explicativo do contexto social e da cultura parao comportamento dos indivíduos, como é o caso do construtivismosocial (WILLIAMS, 1985; SCHATZKI, 1993; HOWIE, PETERS,1996; VAN DER MERWE, VOESTERMANS, 1995).

Poder-se-ia então afirmar que, mesmo que para seu aparentedesgosto, Wittgenstein é um dos fundadores da Psicologia con-temporânea.

Notas1 Wittgestein (1979), I, seção 43.2 Wittgestein (1979), I, seções 199, 202.

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3 Wittgestein (1979), I, seções 2, 8.4 Wittgestein (1979), I, seção 258.5 Wittgestein (1979), I, seção 6.6 Wittgestein (1979), I, seções 15, 26.7 Wittgestein (1979), I, seção 37.8 Wittgestein (1979), I, seções 197 a 199.9 Wittgestein (1979), I, seção 244.10 Wittgestein (1979), I, seção 244.

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Key words: Wittgenstein and Psychology, language andPsychology, language and social constructionist psychology

JOSELÍ BASTOS DA COSTADoutor em Psicologia Social. Docente do Programa de Pós-Graduação emPsicologia da UFPB.

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Resumo: realizou-se uma investigação com crianças e ado-lescentes que viviam nas ruas da cidade do Recife e que sãoatualmente assistidos por uma ONG de referência na cida-de. Investigaram-se as Representações Sociais desses jovensacerca da instituição, o que os motivou a sair das ruas, comoeles vêem o que lhes é oferecido e suas expectativas.

Palavras-chave: situação de rua, crianças, adolescentes,organizações não-governamentais, representação social

questão sobre crianças e adolescentes em situaçãode rua não é nova e tem sido objeto de estudo deinúmeras pesquisas no Brasil e em todo o mundo. A

maioria delas preocupa-se em conhecer essa população e érealizada no próprio contexto das ruas em que esses meninose meninas vivem. Esta pesquisa, no entanto, se realizou nocontexto de uma instituição que cuida desses jovens e procu-rou dar voz a elas, não se limitando a traçar o seu perfil.

Entende-se que a problemática das crianças e adolescen-tes que vivem nas ruas dos grandes centros urbanos pareceser típica de países subdesenvolvidos, resultante das imen-sas desigualdades sociais registradas nesses locais. Tendo em

MARINA WANDERLEY VILAR DE CARVALHOMARIA DE FÁTIMA DE SOUZA SANTOS

ENTRE A RUA

E A INSTITUIÇÃO:

O OLHAR DE CRIANÇAS

E ADOLESCENTES

QUE VIVIAM NAS RUAS

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vista essa realidade, observa-se nesses países um grande aumentono número de instituições (em sua maioria, não-governamentais)que se propõem a pesquisar e a cuidar dessas crianças. Mesmoassim, essa questão está longe do fim.

Em 1986 foi realizado em Brasília o I Encontro Nacional deMeninos e Meninas de Rua, no qual diversos jovens se reunirampara discutir a situação brasileira com base nos temas: educação,trabalho, família, violência, grupos de organização e saúde. Umaspecto significante deste Encontro foi a abertura para ouvir o queos próprios meninos e meninas pensavam sobre suas realidades1.

É nesse contexto que esta pesquisa se insere, procurando ouviras crianças e adolescentes que viviam nas ruas. Neste caso, bus-cou-se saber as relações com a instituição que os acolhe. Antes dediscorrer detalhadamente sobre os objetivos, é necessário tecer umhistórico sobre o panorama dessas crianças, bem como citar al-guns resultados de pesquisas anteriores.

De acordo com Ariès (1981), o Renascimento inaugura naEuropa a noção da separação entre o público e o privado. Até entãonão havia delimitação precisa entre esses dois espaços; a rua tam-bém fazia parte do contexto de socialização das crianças. Com oRenascimento, passou-se a valorizar mais o viver em casa e adesvalorizar o espaço da rua, o que contribuiu para a separaçãoentre os espaços público e privado, o estreitamento dos laços fa-miliares e a exclusão das pessoas que permaneciam nas ruas, tidascomo promíscuas. Aos poucos, a presença de crianças nas ruaspassa a ser motivo de assombro.

No Brasil, entre o final do século XIX e início do século XXaumenta a presença de crianças realizando diferentes tipos de ativi-dades na rua. Durante todo o período colonial brasileiro e ao longodo 1° e 2° Império, não havia no país instituição pública direcionadaà infância. Inicialmente, o cuidado com essas crianças era desem-penhado por instituições não-governamentais, como confrarias,irmandades e Santas Casas de Misericórdia. Em 1927,institucionaliza-se a obrigação do Estado nessa assistência, a partirda criação do Código de Menores. Essa responsabilidade do Estadose traduzia em um modelo de internato no qual se focalizavam asmedidas corretivas e adaptativas-repressivas. “Para essas criançase adolescentes, tal como para os loucos, a ordem era institucio-nalização, segregação, exclusão do contexto marginalizador, ainda

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que velada sob o nome de “educação modelar”, “re-socialização”,“reinserção social”. [...] Ordem embrulhada por uma política socialde controle ou, na melhor das hipóteses, de assistencialismo”(FERREIRA, 2001, p. 105). As questões ligadas à criança e aoadolescente eram, naquele momento, baseadas na “Doutrina daSituação Irregular”. É só a partir de 1990, quando entra em vigor oEstatuto da Criança e do Adolescente (Lei Federal 8.069/90), quese passa a conceber a criança e o adolescente como sujeitos de di-reito em condição peculiar de desenvolvimento. Rompe-se, então,com a Doutrina da Situação Irregular e adota-se a Doutrina da Pro-teção Integral.

Até a década de 1980, conforme a literatura consultada regis-tra, os estudos voltados para essa população – os “menores” –enxergavam-na apenas como um problema social, adjetivandoesses jovens como “abandonados”, “trombadinhas”, “delinqüen-tes”. É em 1979, Ano Internacional da Criança, instituído pelaONU, com a publicação de dois livros2, que a expressão “meninosde rua”3 passa a ter seu uso mais geral, recebendo destaque naci-onal e internacional – tanto a nomenclatura quanto esta situaçãono país. Neste contexto, ganha importância a atuação das organi-zações não-governamentais (ONGs) nacionais e internacionais eorganizações intergovernamentais, tais como Unicef e Unesco,realizando estudos e propondo projetos (ROSEMBERG, 1994;NEIVA-SILVA, KOLLER, 2002).

É a partir dos anos 1980, então, que os “meninos de rua”passam a ganhar maior visibilidade social.

À medida que um fenômeno novo adquire uma certa dimen-são e constância, passa a ser percebido com contornos muitomais largos do que o que eles têm na realidade. E se além domais ele encerra um elemento qualquer de risco ou ameaça,tomará no imaginário das pessoas proporções extraordiná-rias. É este precisamente o caso dos ‘meninos de rua’(MELLO, 1993, p. 58).

É também a partir desse momento que a tentativa de distin-guir de forma mais clara essa população ganha importância cen-tral nos debates sobre o tema. Para as Nações Unidas (1985), elase caracteriza por

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qualquer menina ou menino... para quem a rua (no sentidomais amplo da palavra, incluindo casas desabitadas, terre-nos baldios, etc.) tornou-se sua morada habitual e/ou fontede sobrevivência; e que não têm proteção, supervisão ouorientação adequada de um adulto responsável (MELLO,1993, p. 60).

Em um encontro em Bogotá, em 1989, realizado pela UNICEF,distinguem-se duas definições: meninos “de” rua e meninos “na”rua. Dessa forma, crianças e adolescentes até 18 anos que habitamem zonas urbanas, para os quais a rua se tornou seu local de mo-radia – substituindo a família, com o qual têm vínculos bastantedebilitados –, que estão expostos a situações de riscos e que seimpõem determinados serviços são os “meninos de rua”. Por ou-tro lado, crianças e adolescentes até 18 anos que passam grandeparte do dia nas ruas, desenvolvendo-se fora do núcleo familiar,mas que com ele mantêm seus vínculos, que realizam atividades(pequenos trabalhos, tais como venda de mercadorias ou distri-buição de propagandas) para garantir seu sustento e/ou da famíliae, que, muitas vezes, são explorados por adultos são os denomina-dos “meninos na rua” (GREGORI, [1990]; CAMPOS, DELPRETTE, DEL PRETTE, 2000; MELLO, 1999).

Essa distinção fez emergir uma discussão que chama a aten-ção para a complexidade da vida nas ruas, entendida de maneiramais dinâmica; não seria correto, portanto, estabelecer uma for-ma rígida de observar essa população, colocando as característi-cas acima citadas como estáveis. Assim, Rosemberg (1993) propõea utilização do termo “crianças em situação de rua”, enfatizandoa multiplicidade de formas de vivência nas ruas e a necessidade deenxergar cada caso em sua especificidade. O estar nas ruas cons-titui um fenômeno polissêmico, com distintas roupagens, de acor-do com sua inserção temporal e espacial, e diferenciando também“os tipos de indivíduos construídos por essa realidade, influenci-ando o processo e o conteúdo do desenvolvimento de suas carac-terísticas pessoais (modo de agir, pensar e sentir) e concepções demundo” (DEL PRETTE; DEL PRETTE (1995 apud CAMPOS,DEL PRETTE, DEL PRETTE, 2000).

Observa-se que, além da polissemia do universo das criançasem situação de rua, há também diferentes focalizações nos estu-

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dos realizados no Brasil sobre essa população. Partindo de pes-quisas de caráter mais sociodemográfico, nas quais o objetivoprincipal era a contagem dos jovens e a denúncia das condiçõesem que eles viviam, mais ênfase foi dada, a partir de então, aosaspectos psicossociais. Assim, muitas pesquisas atualmente evi-denciam todo o universo no qual essas crianças estão inseridas,enxergando-as como atores sociais.

Em Recife, o Centro Interuniversitário de Estudos da Améri-ca Latina, África e Ásia (CIELA) realizou três pesquisas sobre apopulação dos meninos em situação de rua (MELLO, 1993, 1999).Em 1991, foram contados 168 crianças e adolescentes que dormi-am ou se preparavam para dormir na rua; desses, 82,7% erammeninos e 17,3%, meninas. Já em 1993, um estudo mais elabora-do encontrou 219 pessoas (86,7% de meninos e 12,8% de meni-nas), e em 1999 foram contados 460 jovens no período diurno (96meninas) e 172 no noturno (51 meninas). Nos dois últimos estu-dos, procedeu-se a uma maior investigação sobre o universo des-ses meninos e meninas.

Em primeiro lugar, constatou-se nessas pesquisas o evidenteaumento do número de meninas vivendo nas ruas da cidade doRecife. Quanto aos motivos que levavam esses jovens a viver nesteespaço, foram citados os conflitos familiares, a miséria da famíliae o “gostar”; é interessante notar que 50% dessas crianças dormi-am em casa de vez em quando, e 41% disseram procurar a famíliaem determinadas situações, tais como doença ou prisão. Muitostambém falaram sobre o recebimento de convite por parte deamigos ou irmãos, além da violência física e psicológica da qualeram vítimas. Esses dados desmistificam a imagem feita pelas elitesurbanas brasileiras de que essas crianças vinham exclusivamentede famílias desestruturadas, sem responsabilidade, e que a ruptu-ra com a família era a única causa da ida para as ruas.

Outros dados colhidos em 1993 contribuem para adesconstrução de certos estigmas, tais como o estereótipo de queessa população é fruto essencialmente do êxodo rural. Verificou-se que 56,6% eram de Recife, 8,2% da Região Metropolitana doRecife, 16,7% da Zona da Mata, Agreste ou Sertão, e 10,5% vi-nham de outros Estados, incluindo São Paulo.

No que diz respeito à escolaridade, 71,3% já freqüentaram aescola; em contrapartida, 60,3% dos meninos e meninas não sabi-

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am ler. Sobre o envolvimento com drogas, 52 disseram não fazeruso; entre os outros, a maioria consome cola de sapateiro e maco-nha. Dos 219 jovens, 70 nunca foram presos e 41 relataram que oforam apenas uma vez. Quanto a suas estratégias de sobrevivên-cia, foram citados pequenos trabalhos, a prestação de serviço, opedir e o furto.

Na última pesquisa, foram realizados grupos focais, nos quaisos jovens foram sobre a possibilidade de voltar para casa. As res-postas se homogeneizaram de acordo com a faixa etária: enquantoos meninos entre 14 e 16 anos afirmaram não querer voltar, os quetinham entre 12 e 14 anos voltariam se os pais estivessem juntose trabalhando, e os mais novos (entre 8 e 12 anos) falaram sobrea necessidade de estarem nas ruas para trabalhar e realizar sonhos,tais como a reestruturação da família. É interessante ressaltar quea construção do discurso desses jovens se dava no pretérito im-perfeito, ou seja, numa ação não realizada: “queria”.

Para os meninos e meninas entrevistados em 1999, a rua eraapresentada por duas características antagônicas: a liberdade e aviolência. Esta última, atribuída aos outros, revela um grandeparadoxo em nossa sociedade. “Porque produtos da violência edela fazendo uso para sobreviver, os meninos em situação de ruanão se percebem como violentos, embora pratiquem a violência.Mas, como diz um deles, ‘que sou criança, isso é jeito de falar comcriança’?!” (MELLO, 1999, p. 45).

Os dados dessas e de outras pesquisas apontam para a neces-sidade de compreender a rua como contexto de socialização dascrianças e adolescentes que nela vivem. Observa-se que as crian-ças geralmente começam a trabalhar muito cedo, muitas vezes seenvolvendo em atividades não legalizadas; essa situação “faz comque ela, desde a sua mais tenra infância, seja inserida nessa terrade ninguém, na qual nenhuma instituição, às vezes nem mesmo afamília, se responsabiliza pela criança em situação de rua” (NEIVA-SILVA; KOLLER, 2002, p. 214).

Por outro lado, tais atividades possibilitam o desenvolvimen-to de valores relacionados a limites, regras, papéis sociais,autovalorização e identidade cidadã, garantindo, assim, sua con-dição de produtor em uma sociedade que valoriza o trabalho(NEIVA-SILVA; KOLLER, 2002). Essas considerações são im-portantes, visto que, como assinala Mello (1999), esses jovens são

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excluídos da sociedade de consumo, apesar de se integrarem àideologia de consumo.

Diante do exposto, a presente pesquisa teve o objetivo derealizar uma investigação com crianças e adolescentes que vivi-am nas ruas de Recife e que são atualmente assistidos pelo GrupoRuas e Praças, uma instituição de referência no atendimento a essapopulação. Dessa forma, visou-se investigar as representaçõesdesses jovens sobre a instituição, o que os motivou a sair das ruas,quais são suas expectativas, como eles vêem o que lhes é ofereci-do e as práticas realizadas pelos educadores. Esse trabalho sebaseou, portanto, no discurso dos próprios jovens.

Para alcançar esses objetivos, essa pesquisa se desenvolveuà luz da Teoria das Representações Sociais, proposta por SergeMoscovici (1961) que se dedica à inter-relação entre o indivíduoe o social, em uma investigação acerca do conhecimento do sensocomum.

A representação social “é uma forma de conhecimento, soci-almente elaborada e partilhada, com um objetivo prático, e quecontribui para a construção de uma realidade comum a um con-junto social” (JODELET, 2001, p. 22). Esse conhecimento tomaforma com base numa realidade social e é produzido no intercâm-bio das relações entre sujeito e objeto. Portanto, não existe repre-sentação sem objeto.

Dessa forma, é evidente que cada indivíduo reconstituirá arealidade de maneira diferente, criativa e autônoma e lhe atribuiráum significado, dependendo do seu sistema de valores, da suahistória pessoal e do contexto social no qual está inserido; as re-presentações integram, portanto, a pertença e a participação soci-al do sujeito (JODELET, 2001). Há toda uma lógica atrelada a essetipo de conhecimento, e seu estudo permite compreender a con-cepção dos indivíduos sobre o mundo e as relações sociais e, apartir daí, como essa visão os influencia no modo de agir peranteo mundo e o outro.

De acordo com Abric (2000), as representações sociais apre-sentam quatro funções essenciais: 1- “função de saber”. diz res-peito à possibilidade de compreender e explicar a realidade, assimcomo de definir o sistema de referência do indivíduo; 2- “funçãoidentitária”: revela a adaptação do indivíduo no campo social; 3-“função de orientação”: permite guiar as condutas de acordo com

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o que é aceitável em um determinado contexto social; 4- “funçãojustificadora”: intervém na avaliação da conduta, permitindo suajustificativa.

O processo de formação das representações pode ser compre-endido através da objetivação e da ancoragem. A primeira é aconcretização do que é abstrato, a transformação em objeto. Já asegunda constitui propriamente as representações e as tornaenraizadas, pois está ligada à incorporação do novo, à orientaçãodos comportamentos e à interpretação da realidade, à medida querevela o modo como os elementos expressam as relações sociais.

As representações sociais apresentam uma íntima relação comas práticas sociais. Sobre isso, Abric (1994) propõe a existênciade uma influência recíproca entre práticas e representações. Des-sa forma, é importante ressaltar que não é somente a submissão auma prática que irá influenciar na representação, é preciso reco-nhecer como suas e compartilhar tais práticas de acordo com osistema de normas e valores do indivíduo os quais, por sua vez,são constituintes das representações sociais.

Há situações nas quais as práticas sociais vão de encontro aosistema de normas e valores do indivíduo. Nesses casos, as práti-cas irão determinar as representações, à medida que os atoressociais buscarão meios de diminuir tal dissonância, elaborando –ou modificando – representações que estejam de acordo com aspráticas. Para Abric (1994, p. 230), na verdade “não se podedissociar a representação, o discurso e a prática”, sendo a relaçãoentre elas caracterizada como mutuamente engendrada.

Rouquette diverge de Abric quanto à qualidade das relaçõesentre representações e práticas sociais. Para ele, “convém tomaras representações como uma condição das práticas, e as práticascomo um agente de transformação das representações”(ROUQUETTE, 2000, p. 43). Segundo este autor, a influência dasrepresentações sobre as práticas se caracterizaria pela “condiçãode coerção variável” (p. 42), já que existe uma gama de possibi-lidades de escolhas de pensamentos e ações dispostas ao indiví-duo; dependendo das escolhas que ele realiza, ocorre umaidentificação, uma apropriação das representações e uma conse-qüente persuasão de que destas representações derivam seus atos.

Por outro lado, ainda segundo Rouquette (2000), as ações nãosão resultado de uma escolha forçada, mas as conseqüências das

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condutas acabam se impondo por pressões sociais, mais especifi-camente por instituições que obrigam o indivíduo a agir de umadeterminada maneira. Ocorre, desse modo, um redirecionamentoda representação “depois da ação, depois da experiência da reali-dade, depois do corte” (ROUQUETTE, 2000, p. 43), caracterizan-do a influência das práticas sobre as representações como“determinações objetivas” (p. 43). Nesta visão, “são as práticasque os sujeitos aceitam realizar na sua existência cotidiana quemodelam, determinam seu sistema de representação ou sua ideo-logia” (ABRIC, 1994, p. 219).

As representações sociais contribuem, portanto, para a cons-trução de uma visão consensual a respeito da realidade para umdeterminado grupo. Tal visão servirá de guia para as condutas e paraa transmissão através da comunicação, expressas nas práticas soci-ais. Entre essas práticas, podem-se destacar as práticas educativasque exercem um direcionamento para um comportamento conside-rado adequado aos valores e papéis sociais e, por outro lado, aextinção de comportamentos considerados inadequados.

No contexto da presente pesquisa, foi um dos objetos de es-tudo a representação social que os jovens têm das práticaseducativas realizadas pelos profissionais da instituição que osacolhe. Entende-se que a forma como eles representam essas prá-ticas, bem como a instituição como um todo, pode ter relação comas práticas dos próprios jovens.

O GRUPO RUAS E PRAÇAS

O Grupo Ruas e Praças é uma ONG que surgiu em 1987 coma intenção de trabalhar com crianças e adolescentes em situaçãode risco social. Desde 1990, o trabalho desse grupo se direcionoupara crianças e adolescentes em situação de rua, através de umprocesso educativo que visa a organização desses jovens, especi-almente no que diz respeito à luta por seus direitos, na perspectivade serem sujeitos de sua história, bem como agentes de mudançada sociedade. Atualmente, esta é uma das instituições de referên-cia na cidade do Recife no atendimento a esta população.

A linha de ação desse grupo consiste em um trabalho de edu-cação de rua com o qual eles propõem atividades lúdicas e cultu-rais no próprio ambiente em que os jovens vivem. A intenção é

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conhecer a história de vida de cada um deles. Com a sistematiza-ção destas atividades, iniciam-se os processos de encaminhamen-to, seja para a família, para a escola, para outros serviços públicos,seja para o Centro Educacional Vida Nova – Capim de Cheiro.

O Centro Educacional é um espaço rural de moradia que seassocia a um processo educativo mais intenso, com oficinas eassistência terapêutica, e que propicia a inclusão em uma escolapública. O encaminhamento a este sítio é feito de forma gradual:inicialmente os jovens devem participar de algumas reuniões nasede da instituição em Recife; em seguida, realizam algumas ex-perimentações durante dois dias e depois, durante cinco dias nosítio (denominados, respectivamente, de processo de dois e pro-cesso de cinco dias); por fim, eles passam a ser moradores do CentroEducacional.

Há, ainda, um importante trabalho sociofamiliar no qual seestimula a reintegração dos jovens às suas famílias. Junto a estas,são realizados grupos operativos de trocas de experiência, bemcomo são viabilizadas informações e encaminhamentos necessá-rios com o propósito de garantir seus direitos.

METODOLOGIA

SujeitosForam realizadas entrevistas com doze jovens entre sete e

dezesseis anos. Dez moradores eram do Centro Educacional VidaNova, em Capim de Cheiro-PB, e dois estavam inseridos no “pro-cesso de cinco dias”. Desses, 9 eram meninos e 3 meninas.

MaterialPapel ofício, lápis de cor, canetas hidrocor, giz de cera, pa-

péis 40 kg, lápis preto, borrachas, apontadores, câmera filmadora,fita 8mm, gravador e fitas K-7.

ProcedimentoInicialmente, foram acompanhados alguns trabalhos de edu-

cação na rua, a primeira etapa de atuação da ONG com crianças eadolescentes em situação de rua. Por três vezes a pesquisadoraesteve, junto com a equipe de educadores e assistentes sociais, noForte das Cinco Pontas, na cidade do Recife, onde vivem duas

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famílias. Nesses momentos, foram propostas atividades tais comofazer colares de miçanga, praticar jogos de tabuleiro, pular corda,tocar pandeiro, agogô.

Tendo em vista a época do ano (dezembro), algumas ativida-des cotidianas da ONG foram suspensas para a promoção de ava-liações nas quais participaram as crianças e os adolescentesresidentes no Recife, bem como os moradores do Centro Educa-cional Vida Nova. A pesquisadora participou de alguns dessesmomentos, com o objetivo de desenvolver uma familiaridade comos moradores do local e com os jovens e para conseguir, uma maiorconfiança com esses jovens. Houve também uma confraterniza-ção entre crianças e adolescentes, com a participação da maioriados profissionais da instituição, os voluntários, bem como comoutras pessoas, de alguma forma ligadas ao grupo. Nessa ocasião,ocorreram apresentações de dança, teatro e de percussão.

Após estes contatos, foram agendadas visitas ao Centro Educa-cional para propor a realização de algumas atividades, no intuito deinvestigar os objetivos da presente pesquisa. Na primeira visita, osmeninos e meninas foram divididos em dois grupos, de acordo comsuas idades, e pediu-se a eles que desenhassem como era sua vida antesde conhecer o Grupo Ruas e Praças. Posteriormente, cada um apre-sentava seu desenho aos demais. Com o grupo dos mais velhos, foipossível propor uma segunda etapa, para que eles representassem,juntos, em uma folha grande, a vida deles, hoje. Essa etapa não foifeita com os mais novos, porque eles já estavam cansados e bastantedispersos. Com a permissão de todos, essa visita foi filmada.

Finalmente, novas visitas foram programadas para a realiza-ção de entrevistas individuais, que tinham o intuito de esclareceralguns pontos do objetivo dessa pesquisa. Essas entrevistas foramrealizadas em dois dias – uma manhã, com os mais velhos, e umatarde, com os mais novos – e foram gravadas, com a permissão decada um, para posteriores transcrições, visando facilitar, assim, otrabalho de análise dos dados. Nesta visita, estavam também pre-sentes no sítio alguns jovens participantes do processo de cincodias; dois deles aceitaram ser entrevistados.

Análise dos DadosÉ importante destacar que somente as atividades realizadas

no Centro Educacional e propostas pela pesquisadora serão aqui

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analisadas. Os outros momentos, anteriormente descritos, servi-ram para um melhor conhecimento, por parte da pesquisadora,sobre o trabalho realizado pela instituição e, um pouco, sobre osjovens que seriam ouvidos. As observações resultantes dessa eta-pa preliminar constituem, portanto, auxílio para uma melhor com-preensão da realidade dos entrevistados.

A análise dos dados foi realizada com base no conteúdotemático. Foram analisados os conteúdos dos desenhos e das en-trevistas nas quais eles justificavam e explicavam o desenho.Optou-se, portanto, por uma disposição dos dados em função dostemas que emergiram das entrevistas e desenhos e que são rele-vantes para os objetivos da presente pesquisa.

APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

A CasaA produção gráfica dos 8 meninos e das 2 meninas moradores

do Centro Educacional Vida Nova, em resposta ao pedido de de-senhar como eram suas vidas antes de conhecer o sítio, revelouuma grande predominância da figura da casa. Em suas explica-ções, essa casa ora representava o lugar em que moravam em Recife– ou em que atualmente mora sua família – ora o sítio, onde elesestão morando. Apenas três meninos não desenharam uma casa:os dois mais novos fizeram uma Kombi em uma estrada, repre-sentando o caminho entre Recife e o sítio; o terceiro menino de-senhou vários prédios e casas juntos, além de uma rua com algumaspessoas que eram ele e seus amigos quando moravam nas ruas dacidade do Recife. Percebe-se, assim, que a casa constitui, para essesjovens, um lugar de referência.

Chama a atenção o fato de todas as casas estarem pintadas deforma bastante colorida. Apenas o desenho da cidade do Recifeficou em preto e branco. Compreendendo-se o desenho a partir deuma perspectiva projetiva, ou seja, entendendo-se que o desenhode uma casa é fruto da projeção do sujeito sobre um objeto, pode-se pensar no significado do colorido presente nesse objeto. SegundoVan Kolck (1981), o colorido representa a manifestação daafetividade, ou seja, os afetos, as emoções e os sentimentos po-dem ser demonstrados, através dos desenhos, pela utilização dascores. No caso desses jovens, a quem foi proposta a atividade, é

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possível pensar no resgate emocional, no retorno de um coloridoafetivo, proporcionado, provavelmente, pela saída deles da rua paraum lugar acolhedor, em que há trocas de afetos e no qual eles podemprojetar o seu futuro.

A RuaA representação da rua nos discursos dos jovens entrevista-

dos apresenta elementos aparentemente contraditórios. Por umlado, a rua é concebida em seus aspectos positivos: as brincadei-ras, a liberdade. Estes elementos justificam o ingresso e/ou amanutenção dos jovens na rua.

Por outro lado, a rua também é representada de forma bas-tante negativa: é ruim, violenta, perigosa, um lugar de ameaça,com brigas, drogas, onde não há perspectiva de futuro. Esses ele-mentos justificam o movimento de saída das ruas e são, portan-to, elementos preponderantes no discurso dos jovens quefreqüentam a instituição. Ao englobar elementos positivos enegativos do viver na rua, as representações sociais cumprem asua função justificadora possibilitando assim o processo demudança.

É bom porque a pessoa está brincando, está junto com oscolegas, assim, conversando, vai para um bocado de canto.O ruim é porque a pessoa apanha muito e dá-lhe também, etem drogas.

O cara só aprende negócio ruim, não muda de vida na rua. Ocara fica cheirando cola, dorme na rua, sente frio, pode ar-riscar de uma pessoa matar a gente, matar os outros. E a ruanão é bom. É melhor ficar em casa, mesmo, porque a rua éruim. A rua o cara não aprende nada.

A rua é ruim. Tem violência, tem morte, tem gente que quermudar, sair da rua, vai para casa, toma os conselhos da mãe;mas tem gente que quer ficar na pior, acha que a rua é melhordo que a casa da pessoa, mas não é não, a casa é melhor: temalimento na hora certa, tem estudo na hora certa, tem dormi-da, tem comida.

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A Ida para o SítioOs jovens assistidos pela ONG têm a característica diferen-

ciada de quererem sair das ruas e mudar de vida. Alguns sãomotivados a partir do contato com os educadores, ao passo queoutros já se apresentam a eles expressando sua vontade de conhe-cer o sítio. A instituição resgata essa autonomia: durante todo oprocesso para ser morador, eles têm liberdade de poder se colocar– tanto no que diz respeito aos seus desejos quanto sobre seus medos–, refletir e decidir permanecer.

[Conheci o Grupo] “através dos educadores que iam lá noRecife e falavam com a gente. Aí eu peguei e me interesseipara vir pra cá, para mudar de vida”.

A mulher do grupo mandou eu ir lá para eu vir no processode dois dias e eu fiquei vindo, eu aprendi vir. Eu fiquei e passeipara a moradia.

O SítioEm contraposição à rua, o sítio é representado exclusiva e

unanimemente de forma positiva, em especial por proporcionar o(re)encontro com a família, diversas aprendizagens (atividadesoferecidas, escola) e a construção, bem como o alcance de algunssonhos. Todos falam das modificações em sua vida ao deixaremas ruas e da conseqüente grande mudança ao saírem do sítio: vol-tar para casa, trabalhar, não voltar para as ruas, “ser alguém navida”. Esta mudança, contudo, não será agora, mas no momentoem que eles se sentirem preparados para esse retorno. Especifica-mente o estudo é colocado como o maior propulsor dessa mudan-ça, uma vez que, a partir dele, é possível trabalhar e reinserir-se nasociedade como uma “pessoa de bem”. Esses aspectos parecemencenar um amadurecimento reflexivo, fruto da ênfase dada pelainstituição às conversas e à participação do jovem em todo o pro-cesso de decisão.

Mais uma vez, reafirmando o que foi colocado a partir dosdesenhos, o sítio parece configurar-se como uma nova referênciade casa, por ser o lugar que os acolhe, que os faz sentir-se bem,que os ensina, que os prepara para a vida. O estar no sítio já sig-nifica diversas mudanças em relação à vida que eles levavam; além

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disso, dá a possibilidade de sonhar, de pensar no futuro, de recons-truir sua história de vida.

Tem a escola, tem passeios, a pessoa aprende a ter direito eaprende a viver também.

O que mudou na minha vida é que eu não estou na rua mais,usando drogas, não estou roubando, não estou apanhando,estou indo para o colégio, na rua eu não estava indo.

A reunião também é boa: explica ao cara quando o cara forembora para casa ter a consciência de boa, de ir para casa,de não voltar mais para a rua, deixar as drogas.

Porque eu quero estudar muito para ver se eu vou ser alguémna vida, né?!

Meu sonho é sair daqui, estudar, trabalhar e ajudar minhafamília.

Os EducadoresSobre a relação com os educadores, a maioria os avalia de

forma positiva, dando extrema importância ao trabalho dessesprofissionais. Há algumas desavenças pessoais, mas, de formageral, eles gostam da maneira como são tratados pelos educadorese do que eles fazem para todos. Os educadores tornam-se, assim,uma figura adulta de referência para esses jovens.

Gosto [dos educadores]. Porque se não fosse por eles eu ain-da estava na rua.

Eles dão uma força para a gente,está com a gente aqui, cui-dando da gente. Eu gosto deles. [...] Eles brincam com a gentede vez em quando, leva a gente para passeio, para Caporã.

A FamíliaParece existir uma grande importância dada à família, à

reinserção do jovem nesse ambiente. Isto é destacado tanto nomomento presente, nas possibilidades de visita, quanto no futuro,

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nos seus sonhos de voltar a morar em casa, e ajudar seus famili-ares. É certo que nem todos falaram sobre este assunto e algunsdisseram que determinados problemas familiares os atiraram paraa rua. Mesmo assim, é possível pensar que esse locus é de sumaimportância em sua vida, pois a relação simbólica com a famílianunca foi rompida. A família ideal (ou idealizada) parece se cons-tituir num valor moral que motiva o jovem em seu processo dereinserção social.

Ela está feliz porque eu estou aqui. [...] A minha mãe ficaalegre quando eu chego em casa, ela pergunta como eu toindo bem por aqui.

Quando a pessoa tiver preparada pra ir pra casa aí fica devez lá na casa da pessoa.

O DiscursoChama a atenção o modo como são construídos os dis-

cursos de alguns jovens entrevistados. A grande maioria das ques-tões colocadas pela entrevistadora foi direcionada a eles,especificamente para conhecer seus sentimentos. Contudo, algunsformulam suas respostas de modo impessoal, como pode ser vistonos exemplos que se seguem:

É diferente. A pessoa está na rua, a pessoa está usando dro-ga, a pessoa está doidão, vai perturbar, vai roubar, acaba oque: morte ou cadeia. Apanha na rua.

Eu quero ficar aqui... é melhor a pessoa ficar aqui do que narua.

Estes exemplos permitem algumas indagações interpretativasdesse tipo de discurso. Parece haver uma dificuldade em se colo-car ou, mais especificamente, em se colocar de maneira singular;o artifício utilizado é, pois, a impessoalidade, com a descrição deum grupo de pessoas que apresenta características semelhantes,mas do qual ele também faz (ou fez) parte. É preciso ressaltar queesta forma de construção de discurso parece ser bastante comumem nossa sociedade quando se fala de uma pessoa que representa

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as características específicas de um grupo, mas sem denominarquem é ela.

É possível também pensar, na perspectiva das diversas mu-danças pelas quais esses jovens estão passando, no processo dereconstrução de sua identidade. Mesclando a utilização do prono-me pessoal “eu” com sujeitos de conotação impessoal, eles pare-cem estar demonstrando uma fase de transição: afastando-se dasruas – e, portanto, não mais se identificando com um jovem emsituação de rua –, reconstruindo sua identidade, se pensando deforma diferente no futuro.

Há um caso particular de um adolescente que responde usan-do, na maioria das vezes, como sujeito “os outros”. Neste caso,parece ser mais nítida a dificuldade de se colocar, tendo em vistaque o grupo específico do qual ele fez ou faz parte é caracterizadocomo diferente, distante dele. Isto também contribui para reafir-mar que a identidade dele está em processo de reconstrução; podeser uma forma de ele se ver ou de ele se demonstrar para aentrevistadora (que, de alguma forma, é associada à instituição).

Me faz feliz. É melhor do que os outros tá na rua, é melhor osoutros estar aqui mesmo do que estar na rua.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

... A ponte não é de concreto, não é de ferro, não é de cimento,a ponte é até onde vai o seu pensamento.

A ponte não é para ir nem para voltar,a ponte é somente para atravessar,

caminhar sobre as águas desse momento...

(Lenine)

As crianças e adolescentes acompanhados nessa pesquisa sãouma pequena parcela de uma enorme população que parece pro-liferar a cada dia nos grandes centros urbanos brasileiros. Suashistórias refletem a realidade do país: pobreza, desigualdade,descaso, violência. Por outro lado, conhecê-los hoje, fora das ruase sonhando com seu futuro, demonstra a importância do trabalhode organizações não-governamentais nas mudanças sociais que sefazem necessárias.

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A participação de grupos não ligados ao Estado, que vêmmuitas vezes suprir atuações que caberiam ao governo, ganhoudestaque desde a década de 1980, rompendo com o modelo tradi-cional baseado na institucionalização e na segregação dos jovens.Hoje, com muitos frutos já colhidos, é notório o sucesso da atua-ção de algumas ONGs e a necessidade de sua continuação.

A vivência nas ruas é um fenômeno polissêmico que apresentadiferenças temporais, espaciais e individuais. Há, por um lado, umasingularidade construída com base nessa realidade; por outro lado,há aspectos grupais que refletem uma realidade comum, comparti-lhada. Dar voz a esses jovens constitui-se na possibilidade de conhe-cer suas realidades, suas histórias de vida, seus sonhos, no que dizrespeito aos planos individual e grupal. A presente pesquisa enfatizouos aspectos grupais, à luz da Teoria das Representações Sociais, bus-cando conhecer alguns pensamentos compartilhados pela populaçãode crianças e adolescentes que viviam em situação de rua.

Neste sentido, pode-se destacar a representação da rua comoum lugar ruim, perigoso e violento, porém espaço de liberdade,em contraposição à representação do sítio, que é percebido comoo lugar em que eles recebem afeto, ensino, ou seja, uma nova casa.É mister destacar que a população entrevistada se caracteriza comodiferenciada, já que optaram por sair da rua e buscar mudanças devida; são crianças e adolescentes que conheceram a realidade darua, mas hoje se encontram em uma diferente situação – por elesadjetivada como melhor. Entende-se, assim, que este é o olhar dequem já não está mais na rua e prefere a vida do sítio.

Mudança parece estar entre os pontos centrais a ser destaca-da com base nos discursos dos jovens entrevistados: de casa paraas ruas, das ruas para o sítio, do sítio para casa novamente, parauma vida melhor. A saída de casa parece ser a mudança mais brus-ca, ao passo que as outras ocorrem segundo um processo lento egradual. O modo como os jovens vivenciam e representam essasmudanças ecoa nos discursos auto-reflexivos quando eles falamda importância de perceber o momento adequado de passar a morarno sítio, bem como de sair deste de volta para casa. Esta capaci-dade autocrítica parece ter sido resgatada após o contato com ainstituição, fruto das diversas reuniões de que eles participam.

O estar no sítio também significa uma mudança de compor-tamento. As diversas situações de violência fazem da rua um

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ambiente hostil: nele os jovens devem lutar para sua sobrevivên-cia. O sítio apresenta-se como outra realidade, para a qual deter-minados comportamentos, especificamente os adquiridos na rua,devem ser modificados.

Há, ainda, certos aspectos que parecem ter sido resgatadoscom base na vivência desses processos de mudanças: a afetividade,percebida na relação dos jovens com os educadores e com a pes-quisadora e expressa na grande presença do colorido em seusdesenhos; a valorização do estar com a família, presente em seusdiscursos e refletida também nos desenhos; a possibilidade desonhar, de pensar o futuro de maneira positiva, fruto das diversasaprendizagens que foram a eles mostradas.

Também é possível refletir sobre o modo como os educado-res são representados pelos jovens: as práticas educativas são vistascomo bastante positivas e essenciais, pois aprendem e mudam deidéia. Esta representação parece estar sendo guia para o modo comoos jovens agem em relação aos educadores (com respeito, comadmiração, por exemplo) e em relação à ONG, de forma geral,(atribuindo-lhe uma grande parcela de responsabilidade por todasas mudanças que ocorreram em sua vida).

Nos diversos pontos específicos aqui ressaltados e quanto aum olhar mais global, a vivência de estar no sítio parece, assim,configurar-se como uma “ponte”. Mais do que no sentido físico,é uma ponte subjetiva. Nos aspectos mais concretos, é o estar seafastando das ruas e se aproximando de um retorno a sua casa, éo processo de mudança de determinados comportamentos; nosaspectos mais simbólicos, é o resgate paulatino da afetividade, éa via de acesso aos sonhos, é a possibilidade de se ver do outrolado, de uma outra forma.

Notas

1 Maiores informações sobre o resultado destas discussões, ver: Resultados...(1986, p. 67-80).

2 Meninos de rua e a marginalidade urbana em Belém (GONÇALVES, 1979)e Meninos da rua: valores, expectativas de menores marginalizados em SãoPaulo (FERREIRA, 1979).

3 O termo “criança de rua” foi introduzido pelo escritor Henry Mayhew, em1851.

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Abstract: since the 1980s, non-governamental and inter-governmental organisations have been intensifying the role they playin Brazil with the population living in the streets, aiming to knowthese people’s reality and to propose ways of dealing with theirsituation. This research worked with 12 chidren and teenagers, whoused to live in Recife’s streets. Now, they are been assisted by a NGO.Within a qualitative perspective, drawings and interviews were donein order to verify the Social Representation the group had on theInstitution which was assisting them. Besides this, the reasons theyhad to leave the streets and their expectations for the future.Considering their answers, stands out the representation of the streetas a bad and dangerous place in contrast to the place where theylive now: a place where they are cared for, where they study andlearn. In fact, a new home. This change seems to mean a bridge thatmakes them to leave the streets and to approach a new home. A wayto reach their dreams and to see themselves differently in the future.

Key words: streets, children, teenagers, non-governamentalorganisations, social representation

MARINA WANDERLEY VILAR DE CARVALHOMestranda em Psicologia n Universidade Federal Fluminense. Graduada emPsicologia pela UFPE. E-mail: [email protected]

MARIA DE FÁTIMA DE SOUZA SANTOSProfessora na graduação e Pós-Graduação em Psicologia da UFPE. Pesquisado-ra II do CNPq. E-mail: [email protected]

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Resumo: em um contexto de diminuição contínua do setorartesanal na França, constata-se que os artesãos recusamcada vez mais o emprego de aprendizes, o que pode gerar odesaparecimento da atividade. O trabalho buscou compre-ender o efeito da percepção de reversibilidade/ir reversibilidade na representação social da aprendizagemem artesãos. Os resultados mostram que a representaçãosocial do futuro exerce um efeito sobre a aprendizagem.

Palavras-chave: representação social da aprendizagem,artesãos, reversibilidade

e secteur artisanal français fait l’objet d’une nettedésaffection pour l’apprentissage. Ce constat est

inquiétant dans la mesure où l’artisanat ne peutperdurer qu’à la condition de conserver ce mode detransmission des savoirs. Les conséquences à long terme d’untel comportement sont donc gravissimes. En effet, une telleévolution conduira dans le meilleur des cas, à un remaniementen profondeur des caractéristiques économiques, sociales etpsychologiques de ce secteur et au pire, à une quasi disparition.

En conséquence, il paraît indispensable de se préoccuperdes raisons pour lesquelles les artisans refusent de plus en

LUCILE SALESSES

LA REPRESENTATION SOCIALE

DE L’APPRENTISSAGE 

CHEZ DES ARTISANS

DU BATIMENT

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plus de prendre des apprentis. Et plus précisément de s’interrogersur ce qui conduit des individus historiquement et personnellementattachés à un objet à s’en détacher.

Notre questionnement s’inscrit donc dans le cadre d’unearticulation entre identité sociale, pratiques sociales etreprésentations. En effet, l’apprentissage est une pratique fortementancrée dans l’identité sociale des artisans. Et l’on sait par ailleursque l’élaboration de l’identité sociale trouve sa source dans lesreprésentations sociales (ABRIC, 1994a). En conséquence de quoi,cette recherche se situe dans le champ d’étude des représentationssociales, et plus précisément dans le cadre de la théorie du noyaucentral initiée par Abric (1976) qui accorde une place privilégiéeà l’identification des croyances consensuelles constitutives dusystème central.

PROBLEMATIQUE

La théorie du noyau central énonce que les changements dereprésentation induisent des changements de comportements(ABRIC, 1976). Toutefois, dans certains cas, pour Abric (1994c,1994d, 1996, 1998b, 2001) et Flament (1994, 1996, 2003)lorsqu’en particulier, la situation est perçue comme irréversible,la conduite est susceptible de transformer une représentation.

Plus précisément, l’hypothèse d’Abric dans laquelle il affirmeque “dans les situations à forte contrainte – sociale ou matérielle–, les pratiques sociales et les représentations sont en interaction”et que “dans ces situations, la mise en œuvre de certaines prati-ques est susceptible d’entraîner des transformations complètes desreprésentations” (ABRIC, 1994c, p 234) semble susceptible ded’éclairer notre problématique.

En effet, les artisans évoluent dans un environnementsocio-économique mouvant, chaotique, difficile, connaissantde fréquentes transformations, mais surtout de plus en pluscontraignant. Aussi, il est vraisemblable que certains d’entreeux s’engagent dans des pratiques qui vont à l’encontre decelles que leur dicterait leur système de normes et de valeurs.On peut donc faire ici l’hypothèse, en accord avec Abric(1994c) que dans ce cas, les pratiques sont susceptibles dedéterminer les représentations.

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Il nous semble dès lors intéressant de vérifier l’éventualitéd’une possible relativisation de cette hypothèse si, comme l’écritAbric, en se référant aux travaux de Flament (1994), des acteursimpliqués dans une situation peuvent considérer qu’elle estréversible ou irréversible, avec pour conséquence un effet différentsur la modification de la représentation.

Selon Flament en effet, dans le cas d’une situation pressentiecomme réversible, les pratiques développées auront peu d’effetsur la représentation, en effet “la réversibilité perçue ralentira leprocessus de transformation de la représentation sociale, etnotamment interdira tout changement au niveau du noyau central”(FLAMENT, 1994, p. 52). Au contraire, lorsque la situation estperçue comme irréversible, les pratiques nouvelles sontsusceptibles d’induire un processus de rétablissement cognitif del’individu, se traduisant par une modification de système centralet générant ainsi une transformation de la représentation. En cesens, l’irréversibilité de la situation constituerait une conditionnécessaire à une modification de la structure représentationnelle.

Pour résumer, la réversibilité perçue ne devrait concerner quele système périphérique et entraîner un changement relativementsuperficiel de la représentation, alors que l’irréversibilité de lasituation engendrera une modification du système central de lareprésentation.

Dans le cadre de notre recherche, la situation sera considéréecomme irréversible par les sujets qui n’ont pas ou n’ont plusd’apprentis et qui souhaitent continuer à ne plus en prendre etcomme réversible par les individus des mêmes sous-échantillonset qui souhaitent en prendre à l’avenir.

Dès lors, on peut supposer que les artisans qui aujourd’huiforment des apprentis, ont une représentation: R1.

Ceux qui n’ont pas d’apprenti, ont eu des apprentis et envisagentd’en reprendre, devraient avoir une représentation: R’1 égale à R1dans la mesure où la situation est perçue par eux, comme réversible.

Ceux qui avaient des apprentis, qui n’en ont plus et quin’envisagent pas d’en reprendre, devraient avoir unereprésentation: R2 différente de R1 (effet de pratique perçuecomme irréversible).

Quant à ceux qui n’en ont jamais eu et qui n’envisagent pasd’en avoir, ils ont une représentation : R3 différente de R1 et R2,

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puisque quelle que soit leur intention, leur pratique de l’objet esttotalement différente de celle des autres.

Par ailleurs, en nous référant à des travaux (Mardellat, 1994)qui montrent que les artisans commercialement dynamiques ont unevision optimiste de l’avenir de leur métier alors que les artisans nondynamiques en ont une perception négative, nous posons qu’il exis-te vraisemblablement une relation du même ordre entre les artisansqui ont une pratique d’apprentissage et les autres. Plus précisément,nous faisons l’hypothèse, que la représentation de l’avenir du métiera de fortes chances d’être corrélée avec les pratiques en matière derecours ou non à l’apprentissage, dans la mesure où la nature mêmede l’apprentissage est un pari sur l’avenir.

En conséquence, on peut s’attendre à l’existence d’une relationentre les pratiques en matière d’apprentissage et le contenu du noyaucentral de la représentation des objets apprentissage et avenir et doncd’un lien étroit entre ces deux représentations sociales.

HYPOTHESES

Au regard des éléments précédents nous pouvons formulerles hypothèses suivantes.

Hypothèse 1 - Effet de PratiqueIl existe une relation entre le comportement relatif à l’objet

apprentissage et la représentation de cet objet. Celle-ci doit êtrecaractérisée par des différences de contenu du noyau central.

H 1- Plus précisément,• les artisans qui ont des apprentis et souhaitent continuer à

en prendre (population A1), perçoivent la situation commeirréversible,

• les artisans qui ont eu des apprentis, n’en ont plus et déclarentne plus en vouloir (population A2), perçoivent la situationcomme irréversible,

• A1 et A2 ont pour facteur commun : l’irréversibilité perçuede la situation, mais ils ont une pratique différente del’apprentissage,

• en conséquence, A1 et A2 devraient avoir une représentationdifférente des objets apprentissage et avenir

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H’ 1 - Corrélativement,• les artisans qui ont des apprentis et souhaitent continuer à

en prendre (population A1), perçoivent la situation commeirréversible,

• les artisans qui n’ont pas d’apprentis, en ont déjà eu etenvisagent d’en reprendre (population A3), perçoivent lasituation comme réversible,

• A1 a une pratique différente de celle de A3 , mais A3 a unepratique perçue comme provisoire,

• en conséquence, le noyau central de A3 ne devrait pas êtremodifié et A1 et A3 devraient avoir une représentationidentique des objets apprentissage et avenir.

Au regard de la théorie des représentations sociales, et comptetenu des différentes sous-populations, l’hypothèse 1 peut donc sedécliner en H1 et H’1, à savoir :

H1 : R (A1) # R (A2)H’1 : R (A1) = R (A3)

VariablesVariable indépendante : la pratique stabilisée en matière

d’apprentissage, avec trois modalités : populations A1 (ont desapprentis et souhaitent continuer à en prendre), A2 (ont eu desapprentis, n’en ont plus et déclarent ne plus en vouloir) et A3 (n’ontpas d’apprentis, en ont déjà eu et envisagent d’en reprendre).

Variable dépendante : le contenu du noyau central.

Mode de traitement de H1• Répartition des individus en deux sous-populations : A1 et

A2.• Etude du contenu du noyau central des représentations

sociales étudiées.Mode de traitement de H’1• Répartition des individus en deux sous-populations :A1 et

A3.• Etude du contenu du noyau central des représentations

sociales étudiées.

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Hypothèse 2 - Effet de réversibilité/irréversibilité perçueLorsque le renoncement à l’apprentissage est présenté comme

provisoire par les artisans, c’est-à-dire perçu comme réversible(populations A3), le noyau central devrait être modifié par rapportà une population qui, n’ayant plus recours à l’apprentissage, perçoitla situation comme irréversible (A2).

VariablesVariable indépendante : réversibilité/irréversibilité perçue de

la situation, à deux modalités : population A2 et A3.Variable dépendante : le contenu du noyau central.

Mode de traitement• Répartition des individus en deux sous-populations : A2

(irréversibilité perçue) et A3 (réversibilité perçue).• Etude du contenu du noyau central des représentations

sociales étudiées.• Comparaison des résultats entre A3 et A2.

POPULATION ET METHODE

Les résultats portent sur 360 questionnaires renseignés en faceà face par des artisans du bâtiment. Chaque sous-population estconstituée de 120 sujets. Les analyses ont été réalisées sur desdonnées recueillies à partir d’une question d’association sur lesmots inducteurs apprentissage et avenir. Plus précisément, nousavons procédé en tout premier lieu à une analyse prototypique etcatégorielle (VERGES, 1992, 1994, 1999 ; ABRIC, 1994b, 2003)des évocations. Cette technique a pour objectif d’étudier la façondont s’organisent des associations libres et partant de repérer leséléments susceptibles de relever du noyau ou de la périphérie. Lecorpus est analysé en recourant au croisement de la fréquenced’occurrence et du rang moyen de réponse permettant de définirune répartition par statut des éléments de la représentation. Untableau à quatre cases est produit, dans lequel chaque évocationest localisée dans un des quatre quadrants. Le premier quadrantconstitué des éléments ayant une forte fréquence et un rang moyend’apparition peu élevé (il s’agit de notions rapidement énoncéesdans le discours), correspond à la zone du noyau central. Dans la

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deuxième case (fréquence forte, rang lointain d’apparition dans lediscours), on trouve les éléments de première périphérie. La casetrois (fréquence faible, rang peu élevé) est composée d’élémentscontrastés (ABRIC, 2003) ou d’informations contradictoires(Vergès, 1994). Enfin, le quatrième quadrant (fréquence faible, ranglointain) constitue la deuxième périphérie. Cette méthode peut êtreappliquée sur le vocabulaire donné par les sujets sans aucunretraitement ou bien après avoir procédé à des regroupements encatégories sémantiques.

Les résultats présentés ici n’ont pas été retraités afin de nepas prendre le risque, inhérent à tout regroupement, d’interpréterles données de manière projective. Par ailleurs, pour la clarté denotre exposé, nous présentons ici uniquement les élémentsconstitutifs de la zone du noyau central.

RESULTATS

Représentation de L’apprentissage et Effet de Pratique (H1)

Le contenu du noyau central de la représentation del’apprentissage des artisans qui ont des apprentis et souhaitentcontinuer (A1)

Les mots qui appartiennent au noyau central sont définis parla fréquence - cités 24 fois et plus - et par le rang moyen d’apparition- rang moyen inférieur à 2.50 -.

Nous trouvons dans cette position un groupe de 4 mots.

IMPORTANCE liée au rang d’apparition GRANDERang < 2.50

Nombre total d’évocations: 375Moyenne générale (rangs): 3.12

Figure 1: Analyse des associations libres relatives au mot inducteurapprentissage, évoquées par les artisans qui ont des apprentis etsouhaitent continuer (A1), (N=120)

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La représentation de l’apprentissage est organisée autour d’unnoyau central constitué de quatre éléments principaux :

• le métier, évoqué par 57% de la population,• la formation, évoqué par 43% de la population,• les jeunes, évoqué par 48% de la population,• la transmission, évoqué par 38% de la population.

Le contenu du noyau central de la représentation del’apprentissage des artisans qui n’ont plus d’apprentis etn’envisagent pas d’en avoir (A2)

Les mots qui appartiennent au noyau central sont définis parla fréquence - cités 24 fois et plus - et par le rang moyen d’apparition- rang moyen inférieur à 2.50 -.

Nous trouvons dans cette position un groupe de 4 mots.

IMPORTANCE liée au rang d’apparition GRANDERang < 2.50

Nombre total d’évocations: 423Moyenne générale (rangs): 3.52

Figure 2: Analyse des associations libres relatives au mot inducteurapprentissage, évoquées par les artisans qui ont eu des apprentis maisn’en veulent définitivement plus (A2), (N=120)

La représentation de l’apprentissage est organisée autour d’unnoyau central constitué de quatre éléments principaux :

• apprendre, évoqué par 52% de la population,• transmission, évoqué par 43% de la population,• les jeunes, évoqué par 47% de la population,• formation, évoqué par 28% de la population.

L’analyse des évocations

Les résultats (cf. tableaux 1 & 2) donnent les informationssuivantes:

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• pour le groupe A1, les éléments : formation, jeunes, métieret transmission font partie de la zone centrale ;

• pour le groupe A2, on remarque que les éléments saillants sontles suivants : apprendre, transmission, jeunes et formation.

On constate donc une grande proximité entre A1 et A2,toutefois, le noyau central de A2 n’inclut pas le métier, ce qui nousparaît fondamental. En effet, cette absence signifie, d’une part quela notion d’insertion n’est pas liée à l’apprentissage chez lesartisans du groupe A2, d’autre part, que les éléments apprendre,transmission et jeunes, s’ils figurent bien dans le noyau central deA2, sont en quelque sorte, déconnectés du métier.

En conséquence, on peut dire que le contenu de la représentationde l’objet apprentissage du groupe A1 est sensiblement différent decelui de la représentation du groupe A2. En effet, la dimension insertionest relevée uniquement chez A1. L’hypothèse H1 est donc vérifiée.

Représentation de L’apprentissage et Effet de Pratique (H’1)

Le contenu du noyau central de la représentation del’apprentissage des artisans qui n’ont plus d’apprentis maissouhaitent en avoir (A3)

Les mots qui appartiennent au noyau central sont définis parla fréquence - cités 24 fois et plus - et par le rang moyen d’apparition- rang moyen inférieur à 2.50 -.

Nous trouvons dans cette position un groupe de 4 mots.

IMPORTANCE liée au rang d’apparition GRANDE

Rang < 2.50

Nombre total d’évocations: 343Moyenne générale (rangs): 2.86

Figure 3 : Analyse des associations libres relatives au mot inducteurapprentissage, évoquées par les artisans qui n’ont plus d’apprentismais souhaitent en reprendre (A3), (N=120)

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La représentation de l’apprentissage est organisée autour d’unnoyau central constitué de quatre éléments principaux :

• la transmission, évoqué par 51% de la population,• formation, évoqué par 35% de la population,• le métier, évoqué par 58% de la population,• les jeunes, évoqué par 38% de la population.

L’analyse des évocationsLes résultats montrent que les éléments contenus dans le noyau

central de la représentation des groupes A1 et A3 est strictementidentique (Figure 1,3).

En conclusion, l’hypothèse H’1 est totalement vérifiée pourla représentation sociale de l’apprentissage.

DiscussionOn remarque à la lecture des résultats ci-dessus, que tout se passe

comme si, malgré les problèmes occasionnés par l’apprentissage,les artisans du groupe A1, continuaient à prendre des apprentis, alorsqu’éventuellement, à cause de ces mêmes problèmes, les artisansdu groupe A2, refusent de continuer.

Plus précisément, les problèmes liés à l’apprentissage, touten étant présents pour A1, sont relativisés par l’engagement dansla transmission. Le déclencheur premier des artisans qui veulentcontinuer à prendre des apprentis, semble donc être extrêmementlié à l’idée de transmettre et de pérenniser le métier. Alors quepour A2, malgré la présence de la notion de transmission, lesproblèmes sont vécus comme trop forts pour être dépassés.

On a donc, deux représentations (celle de A1 et celle de A2) quibien que différentes, sont extrêmement proches, ce qui signifie que lepoids ressenti des problèmes n’est pas le même dans les deux groupes.

Par ailleurs, les résultats obtenus montrent que les artisansqui ont eu des apprentis et envisagent d’en reprendre n’ont pasmodifié leur représentation de l’apprentissage par rapport à ceuxqui continuent cette pratique.

Représentation de L’avenir et Effet de Pratique (H1)

Le contenu de la représentation de l’avenir, des artisans quiont des apprentis et souhaitent continuer (A1)

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Les éléments qui appartiennent au noyau central sont définispar la fréquence - cités 24 fois et plus - et par le rang moyend’apparition - rang moyen inférieur à 2.50 -.

Nous trouvons dans cette position un groupe de 3 mots.

IMPORTANCE liée au rang d’apparition GRANDERang < 2.50

Nombre total d’évocations: 403Moyenne générale (rangs): 3.36

Figure 4: Analyse des associations libres relatives au mot inducteur avenir,évoquées par les artisans qui ont des apprentis et souhaitent continuer(A1), (N=120)

La représentation de l’avenir est organisée autour d’un noyaucentral constitué de trois éléments principaux :

• difficile, évoqué par 57% des personnes du groupe,• beau-métier, évoqué par 49% des personnes du groupe,• concurrence, évoqué par 38% des personnes du groupe.

Le contenu de la représentation de l’avenir des artisans quin’ont plus d’apprentis et n’envisagent pas d’en avoir (A2)

Les mots qui appartiennent au noyau central sont définis parla fréquence - cités 24 fois et plus - et par le rang moyen d’apparition- rang moyen inférieur à 2.50 – sont les suivants :

IMPORTANCE liée au rang d’apparition GRANDERang < 2.50

Nombre total d’évocations: 301Moyenne générale (rangs): 2.51

Figure 5 : Analyse des associations libres relatives au mot inducteur avenir,évoquées par les artisans qui ont eu des apprentis mais n’en veulentdéfinitivement plus (A2), (N=120)

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La représentation de l’avenir est organisée autour d’un noyaucentral constitué de trois éléments principaux:

• pas d’avenir, évoqué par 53%,• disparition, évoqué par 49%,• concurrence, évoqué par 47%.

L’analyse des évocationsLes résultats (cf. tableaux 4 & 5) révèlent que les éléments

saillants de la représentation de l’avenir du métier pour lesartisans qui ont des apprentis et veulent persister dans cette pra-tique (A1), sont totalement différents de ceux de la représentationdes artisans qui ont eu des apprentis mais ont décidé de ne plusen avoir (A2). En effet, alors que les premiers estiment que leurmétier est beau même s’il est difficile, les seconds pensent qu’ilsn’ont pas d’avenir. L’hypothèse H1 est donc à nouveau vérifiéepour l’objet avenir.

Représentation de L’avenir et Effet de Pratique (H’1)

Le contenu de la représentation de l’avenir, des artisans quin’ont plus d’apprentis mais souhaitent en avoir (A3)

Les mots qui appartiennent au noyau central sont définis parla fréquence - cités 24 fois et plus - et par le rang moyen d’apparition- rang moyen inférieur à 2.50 -.

Nous trouvons dans cette position un groupe de 3 mots.

IMPORTANCE liée au rang d’apparition GRANDERang < 2.50

Nombre total d’évocations: 305Moyenne générale (rangs): 2.54

Figure 6: Analyse des associations libres relatives au mot inducteur avenir,évoquées par les artisans qui n’ont plus d’apprentis mais souhaitenten reprendre (A3), (N=120)

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La représentation de l’avenir est organisée autour d’un noyaucentral constitué de trois éléments:

• difficile, évoqué par 52%,• vieux, évoqué par 53%,• beau métier, évoqué par 49%.

L’analyse des évocationsLes résultats (cf. tableaux 4 & 6) montrent une certaine

proximité entre les artisans du groupe A1 et A3. En effet, si poureux, l’avenir de leur métier est lié à la conjoncture, il n’est paspour autant en voie de disparition et il reste un beau métier. Onpeut donc avancer, même si l’idée que le métier est “ vieux ” n’estprésente que chez les artisans qui n’ont plus d’apprentis maissouhaitent en reprendre que l’hypothèse H’1 est quasiment vérifiéedans la mesure ou le groupe A1 est nettement plus proche du groupeA3 que du groupe A2.

Plus précisément, la lecture des résultats, on remarque que lenon avenir de l’artisanat est uniquement présent dans lareprésentation de l’avenir du métier des artisans qui n’ont plusd’apprentis et ont décidé de ne plus en avoir (irréversibilité). Ladimension “avenir négatif”, est par conséquent extrêmementdifférenciatrice.

De plus, ce résultat valide l’hypothèse d’une relation entre lareprésentation de l’avenir et le recours à l’apprentissage (H1).

D’autre part, à la lecture des résultats ci-dessus, on constateque tout se passe comme si, les artisans des trois groupes avaientune forte et même identité. Les uns, percevant celle-ci comme unfrein à leur évolution (A2), n’auraient pas recours à l’apprentissageet les autres (A1 et A3), moyennant quelques ajustements, ne laconsidérant pas comme un obstacle à leur avenir, prendraient alorsdes apprentis.

En effet, pour les artisans qui ont des apprentis et souhaitentpoursuivre dans cette voie, les résultats mettent en évidence uneforte identité, un degré élevé de confiance dans leur avenir, lareconnaissance de problèmes occasionnés par l’apprentissage,mais la certitude qu’il existe des solutions. Dans le même temps,les artisans appartenant à ce groupe (A1), semblent avoir uneconviction très forte que l’apprentissage est un moyen detransmission de leur savoir et de pérennisation du métier.

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En revanche, pour les artisans qui ont eu des apprentis maisn’en veulent plus, les problèmes sont perçus comme particulièrementlourds. De plus, pour eux, le métier n’a pas d’avenir et apprendre,former, transmettre à des jeunes n’a pas de raison d’être, car commenous l’avons vu supra, le métier est absent du noyau central de leurreprésentation de l’apprentissage.

Par conséquent, on a le sentiment à la lecture des résultats quela représentation de l’avenir est plus explicative des pratiques quela représentation de l’apprentissage. En effet, tout se passe commesi pour les artisans du groupe A2, leur identité était vouée àdisparaître, leur faisant voir l’avenir de manière négative, lesdissuadant par conséquent, de prendre des apprentis. Au contrairepour les sujets des groupes A1 et A3, leur propre identité apparaîtcomme un facteur de “ vie ”. En effet, ils sont convaincus qu’ ilsdoivent transmettre, ils croient en l’avenir, ils ont des problèmesmais ils ont le sentiment qu’il existe des solutions, ils prennentdonc des apprentis.

Représentation de L’apprentissage et Effet de Réversibilité/Irréversibilité (H2)

L’hypothèse H2 postule que A3 doit être différent de A2.Les résultats (cf. tableaux 2 & 3) montrent que les éléments

saillants de la représentation de l’apprentissage pour les artisansqui ont eu des apprentis et n’en veulent plus (A2), sont légèrementdifférents de ceux de la représentation des artisans qui ont eu desapprentis mais ont décidé d’en avoir à nouveau (A3). En effet, l’idéede métier est totalement absente des éléments saillants de lareprésentation du groupe A2. L’hypothèse H2 est donc vérifiée.

Représentation de L’avenir et Effet de Réversibilité/Irréversibilité (H2)

L’hypothèse H2 postule que A3 doit être différent de A2.Les résultats (cf. tableaux 5 & 6) indiquent que les éléments

saillants de la représentation de l’avenir du métier pour les artisansqui ont eu des apprentis et n’en veulent plus (A2), sont totalementdifférents de ceux de la représentation des artisans qui ont eu desapprentis et ont décidé d’en reprendre (A3). En effet, chez les

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premiers, l’idée que leur métier puisse disparaître est totalementabsente des éléments saillants de la représentation. L’hypothèseH2 est donc vérifiée.

Discussion Générale

A la lecture des résultats ci-dessus, il apparaît que les deuxhypothèses issues de la théorie des représentations sociales sontvérifiées. En effet, pour les deux représentations étudiées, à savoirl’apprentissage et l’avenir, l’effet de pratique postulé dansl’hypothèse H1 est vérifié.

Les artisans qui ont une pratique de l’apprentissage perçuecomme définitive (A1), ont une représentation différente des objetsétudiés, des artisans qui ont une pratique différente perçue elle aussicomme irréversible (A2). En effet, le contenu du noyau centraldes représentations de l’avenir et de l’apprentissage du groupe A1est différent de celui du groupe A2. On a donc bien un effet depratique dans le sens où ces deux sous-groupes ont une perceptionirréversible de la situation mais sur la base de pratiques différentes.

Par ailleurs, les artisans du sous-groupe A3 qui ont une pratiquedifférente de A1, mais perçue comme provisoire ont la mêmereprésentation des objets étudiés que celle du sous-groupe A1. Ici donc,l’effet de pratique est gommé par l’intention de modifier celle-ci.

D’autre part, l’effet de réversibilité versus irréversibilitépostulé dans l’hypothèse 2, est également vérifié pour les deuxobjets de représentation étudiés. En effet, le contenu du noyaucentral des représentations de l’apprentissage et de l’avenir, sontdifférents chez les artisans du sous-groupe A3 pour lequel lerenoncement à l’apprentissage est provisoire (réversibilité) et A2,pour lequel il est présenté comme définitif (irréversible). On ob-serve donc bien, que l’effet de réversibilité/irréversibilité postulédans l’hypothèse H2 est vérifié. En effet, les résultats montrentbien, et conformément à la théorie, que dans le cas d’une situationperçue comme réversible, les pratiques mises en oeuvre n’ont quepeu d’effet sur la représentation, alors que lorsque la situation estpressentie comme irréversible, les pratiques se traduisent par unemodification du noyau central.

Plus précisément encore, l’étude de la représentation del’avenir, met en évidence un effet de pratique et de réversibilité/

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irréversibilité perçue de la situation. En effet, pour les artisans quiont des apprentis et ont décidé de continuer à en avoir, leur métierest difficile et il y a de la concurrence mais c’est un beau métier etl’apprentissage est la meilleure solution pour le transmettre ; c’estde plus un devoir et une nécessité pour que l’artisanat survive. Pourles artisans qui n’ont plus d’apprentis et ne souhaitent plus en avoir,le métier n’a pas d’avenir et l’apprentissage représente donc unecontrainte, des tracasseries et un surcroît de travail. L’irréversibilitéperçue de la situation engendre donc une modification du systèmecentral des deux champs représentationnels, celui del’apprentissage et celui de l’avenir.

En résumé, l’effet de pratique est donc vérifié dans la mesureoù les artisans qui ont une pratique de l’apprentissage différentemais vécue comme irréversible, ont une représentation différentede l’apprentissage et de l’avenir du métier. En revanche, ceux quiont une pratique différente mais perçue comme provisoire, ont lamême représentation de l’avenir et de l’apprentissage.

De plus, l’effet de réversibilité versus irréversibilité estégalement validé, dans la mesure où le contenu du noyau centralde la représentation de l’avenir et de celle de l’apprentissage, sontdifférents chez les artisans qui disent renoncer définitivement àprendre des apprentis et chez ceux qui pensent n’y renoncer queprovisoirement.

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Abstract: in a context of permanent decrease of the artisanal sectorin France, it is verified that the artisans refuse even more the role

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of apprentice, this fact might lead to the evanishment of thesemétiers. The study aimed to understand the outcome of reversibility/ir reversibility perception in learning artisans´ socialrepresentation. The results indicate that social representations ofthe futures exerts an effect in learning’ social representation.

Key words: social representations, artisans, learning, reversibility

LUCILE SALESSESDocteur en Psychologie Sociale, enseignante à l’Université de la Méditerranée -Aix-en-Provence, France et membre permanent du Laboratoire de psychologiesociale de l’Université de Provence - Aix-en-Provence, France

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Resumo: esta pesquisa tem com objetivo identificar, des-crever e analisar a Qualidade de Vida (QV) dos portadores deHIV/Aids, no centro-oeste brasileiro. Trata-se de um estudotransversal, quantitativo, qualitativo e exploratório, realiza-do na Casa de Apoio ao Doente de Aids (CADA). Foram apli-cados o WHOQOL-100 da Organização Mundial de Saúde,uma entrevista semi-estruturada e uma ficha sociodemográficae clínica. O método de coping mais utilizado foi o de fuga ouevitamento. Percebeu-se a presença de sinais de depressão,de discriminação, de fantasias relacionadas a perdas e decomportamento social restrito. Essas perdas foram ameniza-das pelo apoio recebido pelo CADA. Sugere-se às casas deapoio o desenvolvimento de oficinas terapêuticas e de produ-ção, para ampliar a auto-estima, a capacidade para o traba-lho, o nível de autonomia e a QV dos portadores de HIV/Aids.

Palavras-chave: qualidade de vida, HIV/Aids, suporte social

ada vez mais se reconhece uma tendência em váriospaíses, inclusive nos em desenvolvimento, de umamudança no perfil de morbi-mortalidade, que indica o

aumento da prevalência das doenças crônico-degenerativas. Osavanços no tratamento e as possibilidades efetivas de controle

CYNTHIA MARQUES FERRAZ DA MAIASEBASTIÃO BENÍCIO DA COSTA NETO

QUALIDADE DE VIDA

DE PORTADORES DE HIV/AIDS

ASSISTIDOS POR UMA

ORGANIZAÇÃO DE APOIO

C

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dessas enfermidades têm acarretado o aumento da sobrevida daspessoas acometidas por esses agravos (SEIDL; ZANNON, 2004).

As doenças crônicas são a principal causa de incapacidade, amaior razão para a demanda de serviços de saúde e respondem porparte considerável dos gastos efetuados no setor da saúde. Porexemplo, analisando os gastos em saúde efetuados pelas organi-zações administradoras de saúde norte-americanas, os portadoresde doenças crônicas, embora correspondessem a cerca de 20% dosclientes, consumiam 80% dos recursos (ALMEIDA et al. 2002).

O acesso ao sistema de saúde e fatores psicossociais compõemuma equação que pode estar associada à percepção de risco e à buscade assistência em saúde. Assim, faz-se necessário o estudo das en-fermidades crônicas e, principalmente, das condições psicológicasdos portadores dessas enfermidades, sendo a Aids uma das maispresentes no mundo atual (BAYÉS, 1995; CANINI et al., 2004).

São tantas as adversidades que um portador de HIV/Aids podeencontrar ao longo da evolução de sua doença que fatalmente estarásujeito a alterações significativas na forma que utiliza o sistemade saúde pública ou entidades sociais de apoio e em sua qualidadede vida. Assim, torna-se importante o conhecimento dos aspectosrelacionados às diversas dimensões de vida do portador do HIV/Aids, de forma que isto possa, posteriormente, subsidiar as inter-venções da equipe de saúde e de profissionais que sustentam asatividades das Organizações Não-Governamentais (ONG’s).

Segundo periodização de Galvão (2000), entre 1985 e 1991,foram criadas as primeiras organizações dedicadas exclusivamenteà Aids. Esta fase consolidou um padrão de intervenção da socie-dade civil, que foi responsável, em boa medida, pela história dadoença no Brasil. Entre 1985 e 1989, foram criadas três organiza-ções paradigmáticas das ações que se multiplicam nos anos se-guintes: Gapa, Abia e Pela Vidda.

Parece não haver dúvida de que, no caso da epidemia de Aids,as ONG’s desempenharam papel importante para o desenvolvi-mento de políticas de prevenção e assistência. Assim, a presençaacentuada da sociedade civil no contexto das respostas à epide-mia contribuiu decisivamente para a construção do que algunsanalistas chamam a especificidade da história da Aids brasileira(DANIEL, PARKER, 1990; GALVÃO, 2000). Também fica cla-ro que essa participação se deu, em grande medida, dentro do

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paradigma típico das organizações não-governamentais e das ca-racterísticas de especialização, competência técnica,profissionalização da militância, tendência à proliferação de ini-ciativas e de articulações internacionais.

Fica evidente a contribuição do surgimento das ONG’s paraa construção da história da Aids, pois elas intervêm para que ocor-ra a diminuição da contaminação e uma melhora significativa naqualidade de vida dos portadores dessa enfermidade.

O conceito de qualidade de vida é um termo utilizado, aomenos, em duas vertentes: na linguagem cotidiana, por pessoas dapopulação em geral, e no contexto da pesquisa científica. Na áreada saúde, o interesse pelo conceito de qualidade de vida vem dosanos 1970. Assim, informações sobre qualidade de vida têm sidoincluídas como indicadores da avaliação do impacto e da eficáciade tratamentos em portadores de várias enfermidades, até emportadores de HIV/Aids.Durante a última década, os instrumen-tos de medida de qualidade de vida evoluíram muito. A maioriadeles surgiu em decorrência da reformulação de instrumentosanteriores, reelaborados com base mais no ponto de vista dos in-vestigadores do que das características da população a ser avali-ada (COSTA NETO, 2002).

Os estudos da qualidade de vida em pacientes portadores deHIV/Aids têm utilizado instrumentos genéricos ou elaborados paraavaliar outras doenças crônicas, como, por exemplo, o câncer(GALVÃO et al., 2004). Para esses autores, os instrumentos queforam adaptados para HIV/Aids não observam questões impor-tantes específicas, relacionadas a essa enfermidade, como o dra-ma social, a sexualidade e o relacionamento interpessoal.

Nos estudos dos aspectos específicos das condições de vidade pessoas enfermas, a multidimensionalidade sugere que Quali-dade de Vida não se restringe somente ao que ocorre no estado docorpo ou nos bens materiais (STEPKE apud por COSTA NETO;ARAÚJO, 2003). Esse é, portanto, um conceito que incorporatambém as relações com outras pessoas, a intimidade da fantasia,a forma de vida da comunidade e as crenças religiosas.

Nas últimas décadas, o termo Qualidade de Vida (QV) temsido muito utilizado em vários contextos. Quase todos os autoresconcordam em afirmar que este termo apareceu na década de 1970e teve sua expansão através dos anos de 1980, envolvido por con-

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ceitos tais como os de bem-estar, saúde e felicidade. Contudo, paraSeild e Zannon (2004), o termo qualidade de vida surgiu pelaprimeira vez na literatura médica na década de 1930.

De acordo com Grau (1998), desde a década de 1980, o termoQV vem sendo cada vez mais utilizado, tornando-se objetivo daatenção médica, pois o avanço da medicina vem permitindo umaumento considerável na sobrevida de pacientes com enfermida-des crônicas.

Para a Organização Mundial de Saúde (OMS) (1998), a QVpode ser definida em função da maneira como o indivíduo perce-be o lugar que ocupa na sua cultura e no sistema de valores em quevive, assim como em relação a seus objetivos, expectativas, crité-rios e preocupações. A qualidade de vida deve basear-se em umaampla série de critérios e não somente em um aspecto.

Para Cianciarullo (2002), a QV é definida como um constructomultidimensional, caracterizando-se pela abstração, significadosdiferenciados por contextos e condições muito específicas. Den-tre as dimensões que dão significado a QV, é possível destacar bem-estar físico, capacidade funcional, estado emocional, interaçãosocial, realização e desenvolvimento pessoal.

Segundo Elliott et al. (2002), vários estudos têm demonstra-do os efeitos da infecção pelo HIV nos relatos de QV e a ocorrên-cia de uma significativa melhora nesses relatos com efetiva terapiaanti-retroviral. Um sintoma que é muito observado, conjuntamen-te com a infecção pelo HIV, é a depressão; então, segundo estesmesmos autores, o efetivo manejo da depressão é importante parauma maior aderência dos portadores à terapia anti-retroviral.

Em outro estudo, Cruz (2005) buscou caracterizar as estraté-gias de enfrentamento (coping), o apoio social e a QV das famí-lias que vivem com HIV/Aids, em Campo Grande – Mato Grossodo Sul. Participaram do estudo 50 famílias. Foram aplicados oquestionário de características sociodemográficas, a Escala deCoping de Billings e Moos, o questionário de avaliação do ApoioSocial e o Medical Outcomes Study 36-Item Short-Form HealthSurvey (SF-36), a fim de verificarem o perfil sociodemográficodas famílias participantes e de relacionar a capacidade deenfrentamento e o apoio social recebido com a QV percebida pelosentrevistados. Os resultados obtidos mostraram que o método decoping mais utilizado pelas famílias e/ou portadores foi o cognitivo

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(64%), com foco no problema (30%); porém, 62% não utilizavamnenhuma categoria de coping específica. Os participantes consi-deraram importante o apoio material (50%) e o emocional (44%),mas utilizaram muito o apoio material, proveniente do governo eda igreja, e o emocional, por meio das relações interpessoais. Osparticipantes da investigação perceberam uma QV melhor quan-do relacionada aos aspectos sociais, capacidade funcional, saúdemental, estado geral de saúde e vitalidade, e uma QV inferior comrelação à dor, aos aspectos emocionais e aspectos físicos. Nãohouve diferença significativa na QV percebida, considerando-seas estratégias de coping e o apoio social recebido.

Considerando-se a limitação de estudos sobre QV de porta-dores de HIV/Aids assistidos por ONG’s, na Região Centro-Oes-te, buscou-se desenvolver a presente investigação questionando-se:como têm os portadores de HIV/Aids avaliado sua QV relaciona-da à saúde? Que dimensões de QV mais têm sido alteradas? Queestratégias de enfrentamento psicológico mais têm sido utilizadas?

Desta forma, estabeleceu-se como objetivo geral do estudoanalisar a qualidade de vida dos portadores de HIV/Aids atendi-dos por uma organização não-governamental de apoio, no Cen-tro-Oeste brasileiro.

Os objetivos específicos são descrever e analisar: as dimen-sões da qualidade de vida do portador de HIV/Aids (física, psico-lógica, nível de independência, relações sociais e ambientais, easpectos espirituais/religião e crenças pessoais), considerando-seos aspectos sociodemográficos e clínicos; as categorias temáticasindicadoras da qualidade de vida dos portadores de HIV/Aids; eas estratégias de enfrentamento psicológico adotadas entre porta-dores de HIV/Aids.

MÉTODO

ASPECTOS ÉTICOS DA INVESTIGAÇÃO: comprometidocom a Resolução MS 196/96, o projeto foi aprovado no Comitê deÉtica em Pesquisa Médica, Humana e Animal do Hospital dasClínicas da Universidade Federal de Goiás (CEPMHA/HC/UFG),com autorização da coordenação da Casa de Apoio ao Doente deAids (CADA) para sua realização. O estudo foi realizado entrefevereiro e junho de 2005.

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CARACTERIZAÇAO DA PESQUISA: Transversal, quali-tativa, quantitativa e exploratória.

LOCAL DO ESTUDO: Casa de Apoio ao Doente de Aids(CADA), em Aparecida de Goiânia – Goiás. Trata-se de uma en-tidade não-governamental e sem fins lucrativos.

PARTICIPANTES: 18 portadores de HIV/Aids, de ambos ossexos, com idade entre 18 e 60 anos atendidos pelo CADA; 77,8%são do interior de Goiás e 22,2% naturais de outros estados. Ma-terial: foram utilizados 18 protocolos de fichas de identificaçãopessoal e clínica; 36 exemplares do Termo de Consentimento Livree Esclarecido; 18 exemplares do questionário de qualidade de vidada Organização Mundial de Saúde – WHOQOL 100; Roteiro deEntrevista Semi-Estruturada.

ESCOLHA DOS INSTRUMENTOS: O WHOQOL 100 foivalidado para o Brasil (Fleck et al., 1999; Fleck, 2000) e avalia asdimensões: física, psicológica, nível de independência, relaçõessociais e ambientais, aspectos espirituais e religião e crenças pes-soais; o Roteiro de Entrevista Semi-estruturada foi construído combase na revisão da literatura internacional sobre QV e HIV/Aidse na experiência clínica com enfermos crônicos.

PROCEDIMENTO: Concomitante com a aprovação do pro-jeto no CEPMHA/HC/UFG, foi realizado um contato pessoal coma direção do CADA que autorizou a coleta de dados. Os pacientesque chegavam ao CADA, para se alojar, recebiam informaçõessobre a pesquisa e eram convidados a participar da investigação.Uma vez que a pessoa concordava, era assinado o Termo de Con-sentimento Livre e Esclarecido e, de acordo com a disponibilida-de do(a) participante, iniciava-se a entrevista para a coleta de dados.Caso não houvesse disponibilidade, era marcado outro encontro.No início da entrevista, foram colhidos os dados sociodemográficose foi aplicado o WHOQOL 100 e, ainda no mesmo encontro, oRoteiro de Entrevista Semi-estruturada de Qualidade de Vida.Apesar de estar previsto, não se observou o suporte psicológicoao longo da coleta de dados.

RESULTADOS

Quanto aos dados sociodemográficos, na Tabela 1 observa-se o predomínio do sexo masculino (61%), idade entre 35 e 45 anos

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(45%), solteiros (56%), com ensino fundamental (72,3%), católi-cos (56%) e com renda familiar de 1 a 3 salários mínimos (50%).Cerca de 44% dos participantes tinham um segundo portador deHIV/Aids na família. A grande maioria (83%) era procedente domeio urbano.

Tabela 1:Dados SocioDemográficos dos Portadores de HIV/Aids(N=18), Submetidos à Avaliação da Qualidade de Vida

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Na Tabela 2 encontram-se os dados clínicos, segundo os quais27,8% dos participantes têm HIV, e 72,2% têm Aids, sendo quedestes 69% têm doenças oportunistas. Os dados obtidos mais re-levantes foram os seguintes: 83,3% fazem tratamento anti-retroviral e 72,2% não têm acompanhamento multiprofissional.

Tabela 2:Dados Clínicos dos Portadores de HIV/Aids (N=18),Submetidos à Avaliação da Qualidade de Vida

Quanto aos dados qualitativos, as entrevistas, obtidas por meiode um roteiro semi-estruturado, que também abarcou dados decoping, foram transcritas literalmente e submetidas à análise deconteúdo, segundo a técnica de Bardin (1994). A análise das cate-gorias temáticas passou pela revisão de dois juízes pesquisadoresde qualidade de vida e treinados na técnica de Análise de Conteúdo.

Os dados qualitativos foram organizados em sete categoriastemáticas (Tabela 3). Dentre essas, pode ser destacada a categoriaPercepção do Estado da Saúde Geral, da Forma de Contaminaçãoe do Prognóstico, que teve como subcategoria mais significativaa Percepção Insatisfatória do Estado de Saúde Geral no momentoatual, com 9,2%. Outras categorias relevantes foram: EfeitosColaterais dos Medicamentos (8,0%) e Adesão ao TratamentoMédico (8%). Ressalte-se que nessa categoria foram somados oscomportamentos de adesão e os de não-adesão; o comportamentode adesão representou 4,9%, e a não-adesão, 3,1%.

Das subcategorias relacionadas aos Aspectos Psicológicos(Tabela 3), destaca-se a Percepção do Próprio Temperamento(8,0%). Em relação à categoria Estratégias Psicológicas deEnfrentamento, a subcategoria mais significativa foi a Fuga ouEsquiva (5,0%). Na categoria Vida Profissional, a subcategoriaque se destacou foi Perda do Status Profissional (5,5%).

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Tabela 3:Freqüência das Categorias e Sub-Categorias Temáticasde Qualidade de Vida de Portadores de HIV/Aids(N=18)

Os dados relativos ao WHOQOL-100 foram analisados por meiode estatística descritiva (média e desvio padrão) das dimensões deQualidade de Vida e da freqüência das variáveis sociodemográficas

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e clínicas (sexo, idade, escolaridade, estado civil, religião, renda fa-miliar, dependentes, existência de outro portador na família, proce-dência, estado clínico médico objetivo, tratamento clínico atual eacompanhamento multiprofissional atual).

Tabela 4: Média e Desvio Padrão das Facetas e Domínios doWHOQOL-100, Obtidos junto a Portadores de HIV/Aids (N=18)

Como pode ser observado na Tabela 4, são apresentadas asmédias e os desvios padrão de cada uma das facetas e dos domí-nios avaliados pelo WHOQOL-100. Observa-se que, para o cál-culo das médias, foram consideradas as questões invertidas.

Desta forma, conforme a Tabela 4, observa-se que entre asfacetas indicadoras de qualidade de vida, 63% apresentaram-se

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acima da média (estado de saúde, otimismo em relação à vida,concentração, outras), 29% abaixo da média (sono, satisfação coma rede de suporte social, lazer, outras) e 8% na média (capacidadepara o trabalho e ambiente físico), considerando-se a escala de 1a 5 pontos. Segundo Fleck et al. (1999), a cada pontocorresponderia a manutenção de cerca de 20% em qualidade devida, ou seja, o ponto 1 da escala corresponde a 0% de qualidadede vida, e o ponto 5, a 100% na qualidade de vida, considerando-se o item específico avaliado.

Quanto aos domínios (Tabela 4), todos se encontram acimada média, destacando-se o da Espiritualidade/Religiosidade eCrenças que chega à média de 4,2.

DISCUSSÃO

Não há como negar que portar o HIV/Aids tem um impactosobre a percepção da qualidade de vida (QV). Ainda que pese ofato da qualidade de sua avaliação estar relacionada às proprieda-des dos instrumentos – portanto, urgindo a necessidade de esco-lha de instrumentos de avaliação que sejam robustos em suaspropriedades psicométricas e/ou em conteúdos que possam abar-car as principais áreas já apontadas pela literatura internacionalsobre o assunto –, é preciso considerar, também, as característicaspróprias da enfermidade, que envolvem um conjunto de fatoresadversos que pressupõem alguma perda e convivência com adver-sidades. Outro fator relevante é a avaliação da QV sendo realiza-da pelo próprio indivíduo, pois é ele quem vivencia suaenfermidade e as adversidades dela decorrentes. Esse fato demons-tra, de acordo com Grau (1998), que a QV envolve aspectos sub-jetivos e objetivos pertencentes ao indivíduo e experienciados demaneiras diferentes por cada um.

Características sociodemográficas, que se destacam pela di-ferença de gênero, pauperização, pouca instrução educacional epouca compreensão de questões afins ao binômio saúde-doença,entre outras, podem compor um cenário desprivilegiado que seagrava na presença do diagnóstico de HIV e/ou Aids. Especifica-mente, nesta investigação, observou-se uma realidadesociodemográfica e de condições de saúde que causou impactonegativo na percepção da qualidade de vida dos participantes.

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Em relação ao sexo dos participantes da amostra, 61,1% erammasculinos e 38,9%, femininos. Esses dados estão em acordo coma epidemiologia do HIV/Aids brasileira (BRASIL, 2005). Consi-derando que quase 40% da amostra é do sexo feminino e que essasmulheres são é carentes de recursos financeiros, além de possuirempouca escolaridade, esse dado pode demonstrar falta de informa-ção delas em relação à prevenção do HIV/Aids e em relação às co-morbidades. Observou-se que a maioria dos relatos nas entrevistasdemonstrou dificuldade das mulheres para discutir com o parcei-ro o uso do preservativo.

Com relação à idade, a maioria dos participantes encontra-va–se na faixa etária de 35 a 45 anos, fato que corrobora os dadosnacionais (BRASIL, 2003) em que os casos de Aids, no sexomasculino, diagnosticados entre 1980 e 2003, totalizam 220.783,em todas as faixas etárias; a idade mais acometida é a de 25 a 49anos e nessa faixa predominam os homens com 79% dos casos.

Essa constatação demonstra que o HIV/Aids está acometen-do uma parcela muito jovem da população, dado que se converteem preocupação, diante da disponibilidade de informações, porser essa faixa etária, entre 35 a 45 anos, a sexualmente mais ativa.Considerando-se uma média de dez anos para a manifestação dosprimeiros sintomas do HIV/Aids, em razão do período de latênciada doença, é de supor que a maioria dos participantes tenha sidocontaminada pelo HIV na fase de adolescência e/ou no início dafase adulta. Essa situação alerta para a necessidade de prevençãoprimária, ou seja, para uma maior divulgação de informações e deelaboração de programas de prevenção voltados para os adoles-centes que estão iniciando a vida sexual.

Em relação ao estado civil, percebe-se que a maioria dosparticipantes relata viver sozinha (55,6%). Esse dado sugere umafragilidade do suporte social, fato que pode estar relacionado como estudo de Dias (1993). A autora relata que o diagnóstico de HIV+provoca a eclosão de conflitos internos muito profundos e anteri-ores e que agora, além de toda a carga de angústia que mobilizampor si só, são expostos e carregados de julgamentos, de valoriza-ções públicas, sociais e morais. O paciente se depara com umasituação de discriminação, com tendência a se isolar.

O estudo feito por Cruz (2005) mostrou que a família deixoude ser aquele núcleo constituído unicamente por casamento for-

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mal; as unidades familiares são diversificadas quanto a sua for-mação. No que se refere aos dados dos portadores entrevistadosnesta investigação, percebe-se que, na maioria das vezes, os sujei-tos constituem-se como família, ainda que nem sempre com situ-ação formalizada (registrada). Nesse aspecto, observa-se, também,que um portador é o suporte social do outro (44,4%), fato que podeacarretar uma aproximação do suporte social, pela identificação,por viverem a mesma condição clínica e, em outros casos, peladificuldade econômica.

Com relação à escolaridade, a incidência de Aids vem aumen-tando tanto em homens quanto em mulheres com até oito anos deestudo (BRASIL, 2003; FONSECA et al., 2000). A investigaçãomostra que os participantes, na porcentagem de 55,6%, tiveramescola até a oitava série. O estudo realizado por Cruz (2005)mostrou também que a epidemia segue em direção de segmentosmenos favorecidos desfavorecidos da população. O baixo níveleducacional dos participantes, ligado à carência econômica, podegerar um cenário de dificuldades por eles percebido. Suas adver-sidades no meio social são inúmeras: não conseguem trabalho e,quando o têm, muitas vezes se sentem discriminados, por seremportadores do HIV/Aids.

Todos os participantes desta investigação ainda, confessaramalguma crença religiosa que pode ter existido independente dadoença. Assim, sugere-se que a religião é uma variável importan-te para a definição de qualidade de vida das pessoas em geral. Aindaque haja uma nítida definição do campo de ação dos psicólogos dasaúde em relação ao trabalho com a população portadora de doen-ças crônico-degenerativas, cada vez mais se espera que haja, porparte daqueles profissionais, uma maior reflexão sobre o papel daespiritualidade de cada um (nas suas diversas expressões), relaci-onada à percepção de uma vida mais ou menos saudável e mais oumenos com sentido.

Em muitos relatos, a religião se mostrou como uma forma deenfrentamento da realidade que auxilia de maneira satisfatória naredução de ansiedade. Muitos participantes relatam que, após acontaminação, ficaram mais religiosos, demonstrando a utiliza-ção do coping religioso.

Quanto à renda familiar, a maioria dos participantes (cerca de80%) vive com menos de três salários mínimos. Considerando que

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mais da metade dos portadores mantém um ou mais dependentesque vivem da mesma renda e considerando que 44,4% dos parti-cipantes têm um segundo portador de HIV/Aids na família, su-põe-se supor que estas pessoas necessitem de um fortalecimentona sua rede de suporte social, que pode ser realizado pelas casasde apoio, que atuam na prevenção e no controle da infecção peloHIV/Aids. Mas o que se percebe, atualmente, é que muitas casasde apoio têm dificuldades de atuar na prevenção do HIV/Aids, poisas pessoas que as procuram, na maioria dos casos, já se encontraminfectadas. Essas casas acabam atuando, sobretudo, para contro-lar a infecção, com a divulgação de informações aos portadoresdo HIV, dando-lhes apoio material, social e emocional.

Neste estudo, percebeu-se a importante função desempenha-da por essas casas na melhoria da qualidade de vida dos portado-res. Para muitos, as ONG’s representam o único suporte social,material e emocional. Servem como elemento de apoio mais ade-quado. Esse fator pode, ao longo do tempo, minimizar as circuns-tâncias indesejáveis para viver mais e melhor e pode levar a umamelhoria na qualidade de vida.

Finalmente, no que se refere aos dados sociodemográficos,observa-se que 83,3% dos participantes vieram do meio urbano,e 16,7%, do meio rural. A porcentagem representativa do meiourbano é de portadores procedentes de cidades do interior do es-tado e até mesmo de outros estados, o que corrobora o fenômenoda interiorização e da “ruralização” da epidemia, já descrita naliteratura.

É relevante ressaltar que os participantes, por serem prove-nientes do interior do estado e da zona rural, têm dificuldades derealizar um acompanhamento multiprofissional adequado. Mui-tos deles não fazem uso de uma dieta adequada, pela carênciaeconômica, e, ainda, não fazem uso de preservativos nas rela-ções sexuais, aumentando, assim, a vulnerabilidade orgânica etransmitindo o HIV para outros. Assim, para compensar em par-te, a falta de um acompanhamento multiprofissional no local deorigem, eles podem ter nas casas de apoio um suporte para su-prir tal necessidade.

Em relação à estratégia de enfrentamento, os resultados dapesquisa demonstraram que a mais utilizada pelos participantesfoi a da fuga ou esquiva (5,0%), seguida do coping comportamental

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(2,5%), omissão de informações a terceiros (2,5%), otimismoirrealista (1,2%), resolução de problemas (1,2%), coping religio-so (0,6%), focalização no positivo (1,2%) e controle de emoções(0,6%). De acordo com esses dados, pode-se afirmar que os par-ticipantes utilizam mais de uma estratégia de enfrentamento, o queimpossibilita classificá-los em uma só categoria. Tal fato tambémsugere uma plasticidade no uso das estratégias diante de cadamomento de estresse ao longo do desenvolvimento da doença e/ou da assistência de saúde.

Segundo Billings e Moos (1981), o coping de evitamentorefere-se às tentativas de evitar um confronto ativo com o proble-ma ou, ainda, de reduzir indiretamente a tensão emocional comatitudes comportamentais benéficas. Então, percebe-se que osparticipantes da pesquisa preferem não pensar que estão doentes,como forma de reduzir o estresse.

As formas de estresse se devem à percepção do portador deHIV/Aids de possíveis discriminações. Por meio dos relatos apre-sentados em relação a (alo)discriminação (5,5%), percebe-se queos participantes, para evitar esse tipo de preconceito, preferem nãocomentar sua condição atual de saúde com terceiros. Eles contro-lam informações relativas à sua condição, estabelecendo critériospara que elas não sejam socializadas.

Os portadores que utilizam o coping de evitamento podemtransmitir o HIV para outras pessoas, pois eles preferem não pen-sar que estão infectados. Eles preferem substituir esse pensamen-to ou se esquivar de situações que lembrem as adversidades daenfermidade. Com isso, não realizam a prevenção terciária, ou seja,podem difundir a epidemia, transmitir o HIV para outros, e au-mentar até a vulnerabilidade do próprio organismo, quando temrelações sexuais com outros portadores.

A maioria dos participantes percebeu o estado de saúde geral,a forma de contaminação e o prognóstico atual como insatisfa-tórios. Apesar das apreciações negativas dos efeitos colateraisdos medicamentos sobre o domínio físico, percebe-se tambémque os portadores relatam que, depois da terapia anti-retroviral,houve uma melhora significativa neste mesmo domínio, atingin-do, com isso, a outros. Supõe-se, assim, que a QV estava condi-cionada por outros domínios o que, possivelmente, amenizou apercepção geral de perdas.

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A adesão ao tratamento médico não é influenciada necessari-amente, pelo estado de saúde geral e pelos efeitos colaterais. Pelaanálise realizada, observou-se que os participantes nem sempreobservam e alteram, por conta própria, as prescrições relativas tantoao uso de medicações e/ou dietas, quanto aos hábitos de vida, numaatitude de sujeito mais intra-ativo do que passivo.

Percebeu-se, ainda, que os participantes que avaliavam a as-sistência médica e social como positiva apresentavam uma maioradesão ao tratamento indicado. Pode-se dizer, também, que a ade-são ao tratamento médico é influenciada pelas suas conseqüênci-as, ou seja, se a terapia anti-retroviral apresenta resultadossatisfatórios, melhorando assim a QV, a adesão acontece de umaforma satisfatória. Quando a terapia anti-retroviral provoca efei-tos adversos, a tendência é não aderir ao tratamento ou não aderira ele de maneira satisfatória.

Sentimentos de depressão podem ser associados à quantida-de de dependentes que o portador de HIV/Aids possui. Esse fatodeve-se à carência financeira apresentada pela amostra. Os parti-cipantes têm dificuldades para sustentar seus filhos, além de apre-sentarem preocupações constantes com o estado de saúde e como prognóstico da doença. A incerteza do prognóstico pode levar aintensas preocupações com o cuidado dos dependentes. Por outrolado, quando esse portador sente que recebe serviços de saúde dequalidade, demonstra maior tranqüilidade e confiança quanto aobem-estar geral de um familiar, que, muitas vezes, é também por-tador do HIV/Aids, ocorrendo uma avaliação positiva da QV.

Os participantes que apresentam relatos de otimismo em re-lação a sua enfermidade avaliam a QV de forma positiva. Perce-bem o estado de saúde de forma satisfatória, apresentam estratégiasde enfrentamento adaptativas e um nível de independência maiorem relação aos outros. De acordo com Moreno-Jiménez et al.(2005), as pessoas otimistas desenvolvem mais habilidades deenfrentamento do que as pessimistas, influenciando, assim, amelhora no estado de saúde. O estado de saúde é percebido demaneira satisfatória quando o otimismo faz parte da condiçãopsicológica do indivíduo.

Outro conteúdo expresso ao longo da entrevista foi a discri-minação, que pode estar relacionada à categoria de perda do statusprofissional. A relação entre a discriminação e a perda do status

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profissional pode ser analisada pela ocupação profissional; per-cebe-se que os participantes, antes da contaminação, possuíamocupação profissional e, após a contaminação, a natureza do tra-balho se modificou, passando para atividades que exigem me-nos esforços e pouca exposição social. Essa constatação vemconfirmar a posição de Dias (1993), segundo a qual a sociedadesempre lidou com as doenças contagiosas num modelo de exclu-são e isolamento.

De uma forma geral, os dados qualitativos mostram que a QVdeste grupo de portadores de HIV/Aids é mediada por aspectosfísicos, na maioria tratada como insatisfatórios, e aspectos psico-lógicos. Nestes, em geral, percebe-se a presença de indicadoresde sentimentos de depressão, de fantasias relacionadas a perdas ede comportamento social restrito.

Percebe-se, também, um comprometimento significativo naQV da amostra, em razão das dificuldades econômicas e sociaisque influenciaram outros domínios da QV. Os aspectos físicos e onível de independência foram influenciados pela falta de recursosdisponíveis para suprir necessidades básicas (alimentação, meiosde transporte, lazer e outros), enquanto, os aspectos psicológicossofreram influência das adversidades encontradas no manejo coma enfermidade, de se sentirem impotentes, sem condições adequa-das para ter uma vida com conforto. Um domínio que amenizou oimpacto negativo das carências enfrentadas pela amostra foi o dareligiosidade, que se mostrou muito presente na maioria dos rela-tos. Os dados do WHOQOL-100 também revelam a perda expres-siva de QV nos domínios estudados.

Com base nos escores do WHOQOL 100, conforme sugeremos dados da Tabela 4, sobretudo quando se atém aos Domínios deQV, houve, pelo menos, 20% de perda mínima em importantes di-mensões da vida, e em geral, os domínios Físico, Psicológico, Nívelde Independência/dependência, Relações Sociais e Meio Ambienteapresentaram perdas similares, mas eles não sugeriram necessaria-mente o comprometimento ou a inviabilidade da vida dos avalia-dos. Por outro lado, o menor impacto pôde ser constatado no Domínioda Espiritualidade, da Religiosidade e das Crenças.

A literatura (GRAU, 1998; COSTA NETO, 2002; COSTANETO, ARAÚJO, 2003), desde os anos de 1970, tem destacadoa presença dos denominados “mediadores de qualidade de vida”,

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ou seja, fatores, circunstâncias ou processos que, quando pre-sentes e dependendo de sua característica, podem amenizar oimpacto de uma adversidade, na percepção de cada um, sobre aprópria qualidade de vida. Assim, por exemplo, no grupo estu-dado (N=18), mesmo que a satisfação com a Rede de SuporteSocial quase tenha atingido a média (M=2,7; DP=1,09), supõe-se que o Otimismo em Relação à Vida (M=3,3; DP=0,98) e a Auto-Estima (M=3,8; DP=0,81) ou outros fatores podem indicar aexistência de estratégias de enfrentamento psicológicoadaptativas. Tal presença, possivelmente, minimiza o impactode uma insatisfação com o suporte social, e este domínio é apon-tado pela literatura como importante.

Quanto ao papel das ONG’s, reconhece-se que é polêmica aquestão do paternalismo institucional e que, talvez, só com o de-correr dos anos, se poderá ter uma apreciação correta desse im-pacto. Por outro lado, em diversas realidades, muitas vezes, osuporte social familiar de um portador de HIV/Aids estará enfra-quecido, conforme também foi demonstrado nos estudos de Cruz(2005). Sendo assim, supõe-se que, ainda que se busque aumentarníveis de consciência entre a população atingida pelo HIV/Aids,a realidade impõe necessidades que justificam a presença e a aju-da das ONG’s e de outros movimentos sociais e/ou religiososorganizados.

CONCLUSÃO

É preciso evidenciar que os resultados encontrados não per-mitem generalizar sobre a qualidade de vida de todos os porta-dores de HIV/Aids atendidos por instituições não-governamentais de ajuda. Ainda que a metodologia escolhidatenha sido a da triangulação metodológica, ou seja, a combina-ção de instrumentos qualitativo e quantitativo, o número limita-do de participantes requer parcimônia em qualquer exercício degeneralização.

Este estudo pode ser classificado como transversal. Nestesentido, é necessário observar que a qualidade de vida dos parti-cipantes pode estar relacionada a tantos fatores e os dados colhi-dos não representam necessariamente,aquilo que é mais constantee regular na vida dos portadores de HIV/Aids estudados. Em ou-

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tros termos, é possível que, numa segunda avaliação, haja mudan-ça do perfil do grupo investigado. Contudo, há de se recordar oque Grau (1998) apreciou sobre a instabilidade natural doconstructo da qualidade de vida: ao longo da evolução de umapatologia, seu portador poderá experienciar distintas percepçõesde sua própria qualidade de vida, o que comprova sua condição,mais processual e menos de produto.

Em relação aos instrumentos utilizados nesta investigação,destaca-se que eles conseguiram atender aos objetivos propostoscom algumas ressalvas. O WHOQOL-100 proporcionou resulta-dos significativos, referentes aos domínios da QV dos participan-tes, mas a extensão sua dificultou sua aplicação, em função,também, da debilidade orgânica de alguns participantes que nãoconseguiram completar todo instrumento no mesmo encontro. Poroutro lado, a entrevista semi-estruturada conseguiu fornecer da-dos qualitativos suficientes para a formatação de um quadroindicativo da percepção de cada sujeito, de sua própria qualidadede vida.

Com base neste estudo, sugere-se às equipes de assistênciaao portador de HIV/Aids a criação de um espaço para oficinasterapêuticas, nas quais os portadores e familiares possam discutire refletir sobre suas dificuldades e experiências com o preconcei-to, a sexualidade e suas limitações, a morte e a própria qualidadede suas vidas. Supõe-se que isto seja importante para promovera auto-estima, o otimismo em relação à capacidade laboral e o nívelde autonomia do sujeito.

Com a adoção de estratégias sistematizadas e planejadas,podem ocorrer modificações no suposto paternalismo das casasde apoio, que podem ser transformadas em casas de apoio social,emocional e político.

Sugere-se, também, que novos estudos de desenhos longitu-dinais sejam realizados, para que se possa avaliar a QV dos par-ticipantes por um espaço maior de tempo, descrevendo eentendendo as mudanças da avaliação pessoal que cada um fazacerca das dimensões que qualificam sua própria vida. Colocar osujeito-enfermo no centro dessa discussão e valorizar o conheci-mento que produz ao apreciar sua própria qualidade de vida é, decerta forma, redimensionar a sua condição de sujeito pensante,autodeterminado e intra-ativo.

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Abstract: the objectives of this research were to identify, to describeand to analyze the Quality of Life (QoL) of persons living with HIV/AIDS, at the Brazilian center-west. It is an exploratory qualitativeand quantitative cross-sectional study, which was carried at theCasa de Apoio ao Doente de AIDS (CADA). Participants answered

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the Whoqol-100 questionnaire from the World HealthOrganization, a semi-structured interview and a social-demographic and clinical information sheet. The sample consistedof 18 persons, with predominance of males, age 35 to 45 year old,family income of one to three minimum wages, and schooling untilthe second year of junior high. The method of coping most usedwas escape or avoidance. It was perceived the presence of storiesindicating depression; discrimination; fantasies related to lossesand restricted social behavior. These losses had been minimizedby the support received from CADA. The data from the Whoqol-100 showed that there was a 20% minimum loss of importantdomains in the quality of life, however the domain of the spiritualitysuffered the lesser impact. It is suggested that the support housesshould develop therapeutical and production workshops, todevelop self-esteem, the capacity for professional work, the levelof autonomy and the QoL of the persons living with HIV/AIDS.

Key words: quality of life, HIV/AIDS, social support

SEBASTIÃO BENÍCIO DA COSTA NETOPós-doutor em Psicologia pela UFRGS. Professor nos Programas de Graduaçãoe Pós-Graduação da Universidade Católica de Goiás (UCG). Psicólogo Clínico-Hospitalar do HC/UFG. E-mail: [email protected]

CYNTHIA MARQUES FERRAZ DA MAIAMestre em Psicologia pela (UCG). Psicóloga Clínico-Hospitalar. E-mail:[email protected]

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Resumo: a modernidade traz algumas características emudanças na dimensão social que contribuem para a cons-trução de uma nova subjetividade psíquica do indivíduo. Afinalidade do presente estudo é tentar analisar o processode ser sujeito na modernidade. Com esse intuito iremos pro-por uma reflexão sobre algumas idéias a respeito de civili-zação, da modernidade e da construção do psiquismo.

Palavras-chave: subjetividade, psicanálise, modernidade,mal-estar

egundo Freud (1930, p. 125), “A civilização constituium processo a serviço de Eros, cujo propósito é combinar indivíduos humanos isolados, depois famílias e,

depois ainda, raças, povos e nações numa única grande uni-dade humana”. Observam-se os esforços dos homens para seelevar de sua condição animal e instintiva, construindo, paraisso, projetos civilizatórios nos quais o espírito gregário se-ria o mediador das relações humanas.

No entanto, existe um preço para construir uma civiliza-ção. Segundo as idéias de Freud (1927), a civilização é umprocesso que ocorre pela repressão dos desejos, dos instin-tos. Muitos esforços foram e ainda estão sendo utilizados nointuito de conter os instintos humanos, especialmente os

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agressivos, para que esse projeto possa se edificar. O elementocivilizatório é a repressão do desejo. Para consegui-lo, o homemabre mão dos ideais individuais e abraça os ideais coletivos. Estaé a base de uma civilização.

Reportando-nos aos aspectos da civilização moderna, demaneira geral, assistimos a um verdadeiro regresso na construçãodos ideais gregários, genéricos, coletivos. Observa-se que os im-pulsos, ao invés de reprimidos (condição necessária para a cons-tituição da civilização) estão sendo estimulados. O cenário atualnos mostra um contexto que contribui para o desenvolvimento deindivíduos caracterizados como narcísicos, visto que há grandeinvestimento e valorização do eu, do individualismo.

Juntamente com esta questão, outras se apresentam, comofazer do corpo, do prazer e do sexo objetos de troca, exploraçãoe controle, transformando-os em mercadorias para o consumo.Segundo Roudinesco (2003, p. 9), “o sexo nunca foi tão estudado,codificado, medicalizado, exibido, avaliado”. Nossa época dedi-ca extremo interesse a diferentes formas de pornografia.

A modernidade se configura como uma sociedade do espetá-culo, marcada pela solidão, pelo isolamento físico e emocional.Estas características contribuem para a estruturação de um sujeitoimaturo, que adere à lógica do mercado consumidor e não suportaas pressões de consumir objetos para ser o que se fantasia ser. Adificuldade em estabelecer e perceber os limites torna-se umamodalidade de se relacionar com o mundo. O sujeito acaba por setornar dependente e carente, até mesmo desamparado, e possui suasubjetividade sustentada pelo outro, o que o fragiliza diante derejeições e da falta.

Vivemos uma economia, o capitalismo, que procura cada vezmais reduzir o homem a uma mercadoria. Possui um grande “lema”que permeia todo o sistema: obter lucros. O interesse gira em tor-no de aumentar o número de consumidores, produzir necessida-des e fazer dinheiro. Para isso, a grande massa de trabalhadoresfoi educada para se comportar como seres humanos que vivem emum mundo de produção maciça, em uma cultura do consumo. Apublicidade, a mídia, os meios de comunicação, enfim a indústriacultural se tornou o grande aliado nessa empreitada.

A indústria cultural sustenta uma promessa para todos osindivíduos de que pode satisfazer a todas as necessidades e prega

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que o prazer, a felicidade e a completude podem ser alcançadas.Para isso, ela apresenta à massa consumidora mercadorias e mo-delos que devem ser adquiridos, pois somente assim se pode obtera plena felicidade.

A todo o momento, a cultura do consumo cria o desejo napopulação de melhores coisas, ataca ideologias baseada no adia-mento das gratificações, promove as identificações com celebri-dades, estrelas e o ódio pelo “rebanho” comum, tornando cada vezmais difícil aceitar a banalidade da existência cotidiana.

A propaganda tornou insuportável o fracasso e a perda. Deacordo com Lasch, publica-se a capacidade de uma mercadoriapara conferir prestígio, prosperidade e bem-estar. Estimula o con-sumo como resposta à solidão, fadiga, ao vazio, às insatisfaçõesetc. A mídia

lisonjeia e exalta a juventude, na esperança de elevar o pes-soal jovem ao status de consumidores desenvolvidos por di-reito próprio. Cada qual com um telefone, um aparelho detelevisão e um aparelho de som em seu próprio quarto(LASCH, 1983, p. 104).

Segundo o mesmo autor, “a publicidade joga sedutoramentecom o mal-estar da civilização industrial” (LASCH, 1983, p. 103).Para entender esta idéia, reporta-se aos escritos de Freud (1930)nos quais ele nos diz sobre o mal-estar da civilização, ou seja, pormais que o indivíduo se esforce ele nunca conseguirá alcançar acompletude , a plena felicidade. A condição humana é ser incom-pleta; a condição da sociedade é ser incompleta. O ser humanodeve tentar ser feliz na incompletude, porque o mal-estar não irádesaparecer. Seria perder a ilusão de felicidade plena e negociarcom a realidade.

A razão pela qual a publicidade joga sedutoramente com omal-estar da civilização se configura na apresentação de merca-dorias que carregam a promessa de felicidade, de completude, apartir do momento em que o indivíduo as consome. Seria um pa-liativo ilusório que fornece ao ego a realização de primitivos de-sejos de onipotência, com grande nível de fruição narcísica.

Observa-se que, atualmente, as pessoas não conseguem abrirmão da ilusão narcísica de que possam ser completas, de que o

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outro seja projeção de seu desejo. Vivemos um momento de in-tensa presença da questão narcísica, no qual seus mecanismosfuncionam muito bem e são valorizados pela sociedade. SegundoLasch (1983, p. 76),

as condições sociais predominantes tendem a fazer afloraros traços narcisistas presentes, em vários graus, em todosnós. Estas condições também transformaram a família que,por sua vez, modela a estrutura subjacente da personali-dade.

Para melhor compreender a questão narcísica do psiquismo ecomo a modernidade alimenta suas ilusões, reportar-nos-emos àpsicanálise para balizar a discussão.

Iniciando com Freud (1914), ele postula a existência de umnarcisismo primário em todos, bem como sua progressão para onarcisismo secundário, sendo que não se pode afirmar a presençadeste último em todas as pessoas. O narcisismo primário caracte-riza-se como o primeiro modo de satisfação da libido, sendo esteauto-erótico, ou seja, os objetos investidos pelas pulsões são aspróprias partes do corpo. A posição dos pais também é muitoimportante nesta análise. De acordo com Freud, o amor dos paispelos filhos equivale a seu narcisismo recém-renascido. Os paisdelegam aos filhos todas as perfeições, projetando neles todos osseus sonhos, ocultando e esquecendo todas as deficiências. A cri-ança terá mais divertimentos que seus pais; a doença, a morte, afrustração não farão parte de sua vida. “Sua majestade o Bebê”(FREUD, 1914, p. 98) caracteriza como o narcisismo primáriorepresenta “uma espécie de onipotência que se cria no encontroentre o narcisismo nascente do bebê e o narcisismo renascente dospais” (NASIO, 1995, p. 49).

A progressão para o narcisismo secundário ocorre quando oinvestimento libidinal retorna para o eu, abandonando a modali-dade auto-erótica. Isso se processa quando a criança é confronta-da com um ideal que se formou fora dela, que também possui todaa perfeição de valor. Aos poucos, o filho percebe que a mãe buscaoutras pessoas que deseja fora dele. Neste momento se instala aferida do narcisismo primário, pois a criança percebe que ela nãoé tudo para a mãe. Segundo Nasio (1995, p. 51),

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a partir daí, o objetivo consistirá em fazer-se amar pelo ou-tro, em agradá-lo para reconquistar seu amor; mas isso sópode ser feito através da satisfação de certas exigências, asdo ideal do eu.

De acordo com Freud (1914), o ideal do eu, ou ideal do ego,é o substituto do narcisismo primário perdido, no qual ele era seupróprio ideal. O ideal do ego impõe condições à satisfação da li-bido por meio de objetos. Possui uma importância na compreen-são do aspecto social do sujeito, pois carrega não só o ideal familiar,mas o da sociedade, da cultura, da nação. A não realização desseideal mobiliza sentimentos de frustração, culpa e temor de perdero amor dos pais, sendo que estes serão, progressivamente, substi-tuídos por outras pessoas.

Para Freud, o desenvolvimento do eu consiste na entrada doindivíduo no narcisismo secundário, o que ocorre, principalmen-te, pelo complexo de castração. A partir de então, só será possívelexperimentar-se através do outro. Instala-se o reconhecimento deuma incompletude que desperta o desejo de recuperar a perfeiçãonarcísica. De acordo com Nasio (1995, p. 55),

o narcisismo secundário se define como o investimentolibidinal da imagem do eu, sendo essa imagem constituídapelas identificações do eu com as imagens dos objetos,

Na teoria psicanalítica, o conceito de castração refere-se a umaexperiência psíquica inconsciente decisiva para a construção daidentidade sexual do indivíduo. Esta experiência é constantemen-te renovada ao longo da vida. Pellegrino diz que a castração marcao segundo nascimento humano, ou seja, introduz a criança nouniverso do simbólico, na sociedade dos homens. Segundo Nasio(1995, p.13), a castração é colocada em jogo no trabalho analíti-co, no sentido de reativar, na vida adulta, essa experiência queatravessamos na infância e “admitir com dor que os limites do corposão mais estreitos do que os limites do desejo”. A criança é capazde assumir sua falta e produzir seu próprio limite. Segundo Freud(1924, p. 196), “as catexias de objeto são abandonadas e substitu-ídas por identificações. A autoridade do pai ou dos pais é introjetadano ego e aí forma o núcleo do superego”.

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Para Lacan, o que fundamenta o complexo de castração é aseparação entre mãe e criança. Seria interessante reportar as eta-pas de estruturação edípica, segundo este mesmo autor, que seestende dos 6 aos 18 meses de vida.

A primeira etapa configura-se no estágio do espelho, no qualo bebê encontra-se fusionado com a mãe. Nesta fusão, a criançaacredita ser aquilo que a mãe lhe transmite, como se o seu olharfosse o espelho da criança. Ela se identifica com algo que ela ain-da não é. Em relação ao investimento libidinal, o bebê investe estaenergia no outro (mãe ou substituta) e esta volta para ele de formanarcísica, como se suprisse todas as necessidades.

Em um determinado momento, o bebê se dá conta de que ooutro investe sua energia em outros pontos anunciando sua falha,sua busca em outro lugar da satisfação do que lhe falta. Este ob-jeto “completo” não é perfeito, ele desvia seu desejo para outrolugar que não o próprio bebê. A partir desta percepção, o bebê tentase identificar com esse ponto. O bebê busca, então, ocupar o lugardo desejo da mãe, o falo materno, se identificando com o mesmo.Nas palavras de Lacan (1958, p. 271), “se o desejo da mãe é o falo,a criança quer ser o falo para satisfazê-la”. Estes acontecimentoscaracterizam a segunda etapa da estruturação edípica.

Dessa forma, a imagem do outro, perfeito e completo, é perdi-da para sempre. Vale ressaltar que a base da castração é a perda dooutro perfeito. É o corte do vínculo narcísico entre a mãe e o bebê.

Na terceira etapa, o bebê é frustrado em sua tentativa de seidentificar com o falo materno pela percepção de que o pai é quemocupa este lugar. O pai entra na relação representando a lei. Dessaforma, a castração incide não somente na criança, mas também namãe. A mãe é castrada na crença de ter o falo (filho), evitando autilização do filho como uma extensão narcisística dela própria, eo filho é castrado na crença de ser o falo. A aceitação da castração,ou seja, a perda do paraíso simbiótico, constitui o ingresso no tri-ângulo edípico. Para Zimerman (1999, p. 400), a castração “re-presenta o grande desafio às ilusões narcisistas que foram forjadasno registro imaginário da etapa do espelho”, e estas podem seratenuadas ou modificadas, dependendo da situação.

Com a imposição da lei, o indivíduo se instaura como sujeitoem falta. Esta falta é insuportável, existindo uma única maneirade suportá-la: simbolizando, ou seja, buscando símbolos substitu-

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tos, significantes que representem o falo. Pela simbolização, quais-quer objetos podem ser equivalentes. De acordo com Nasio, “é naproporção de uma certa renúncia ao falo que o sujeito entra emposse da pluralidade de objetos que caracterizam o mundo huma-no”. (1995, p. 41).

Pode-se perceber como a castração constitui o núcleoestruturante da subjetividade, pois desencadeia um processo emque o indivíduo se percebe imperfeito, incompleto, que precisa dooutro, ou seja, busca no outro aquilo que lhe falta. Para ser sujeito,o indivíduo tem que se reconhecer em falta.

De acordo com Zimerman (1999, p. 404), “é necessário quemorra Narciso para que ele possa se transformar em Édipo”. Doisfatores são essenciais nessa transformação: a presença de um paiforte que se interponha na díade e promova a castração, e a capa-cidade da criança em poder discriminar e separar-se do objeto,adquirindo autonomia e reconhecendo o terceiro real, o pai, narelação. “Assim, a criança sai da díade fusional e confusionalprópria do narcisismo e ingressa num socialismo, representado pelotriângulo edípico” (ZIMERMAN, 1999, p.404). Toda situaçãoedípica, independente da forma como se estruture, terá como sub-sídio a posição narcisíca.

O enrijecimento da posição narcisista ocorre quando o eixorelacional do indivíduo estiver completamente fusionado e bemdistante da triangulação. Nestes casos, pode-se perceber algumascaracterísticas, segundo Zimerman (1999), tais como: condiçãode indiferenciação; estado de ilusão em busca de uma completude;escolha de pessoas reforçadoras da ilusão narcisista; negação dasdiferenças e busca de fetiches.

A condição de indiferenciação caracterizaria o estado em queo indivíduo continuaria fixado ou regredido na etapa fusional, nãoexistindo a diferenciação com o outro. Nesta fase, o bebê acreditaque todas as respostas de sua mãe são obras de seu desejo e provasua onipotência. O sofrimento decorrente do reconhecimento daincompletude faz com que o indivíduo crie e mantenha uma estru-tura ilusória de onipotência. Sempre estão em busca de algo ou dealguém que confirme esta ilusão, que endossem seu ego ideal. Anegação é utilizada tanto para negar as diferenças entre ele e osdemais, como em relação a todos os aspectos que afrontem suailusória completude.

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E por fim, para fugir da ferida narcísica, o indivíduo tentaencontrar valores e atributos que preencham os vazios dessa ima-ginária completude. Pode-se perceber que as mercadorias se tor-nam fetiches. Pela propriedade de coisas e pessoas, o indivíduotenta se sentir completo.

Quando os referidos valores e atributos ficam supervalorizados,eles exercem a função de fazer o sujeito parecer ser aquilo que,de fato, ele ainda não é e, portanto, nesses casos, esse tipo devalores constituem-se como fetiches, os quais o sujeito vaiprocurar em si próprio (sob a forma de beleza, inteligência,riqueza, prestígio ou poder) ou fora dele, em uma outra pes-soa, em uma instituição, em uma ideologia, em uma outrapaixão (ZIMERMAN, 1999, p.160).

Observa-se a importância de uma evolução “normal” de Nar-ciso a Édipo, pois, somente assim, o solo estará fértil para que sepossa desenvolver um sujeito que possua as bases necessárias paraa estruturação de uma personalidade balizada pela triangulação esocialização. Também se pode perceber como defasagens nosperíodos inicias, especialmente relacionada ao complexo de cas-tração, prejudicam o desenvolvimento dessa subjetividade, con-tribuindo para a estagnação na posição narcisista.

Diante dessa reflexão, ao analisarmos a cultura vigente namodernidade, constatamos que suas características contribuem, emuito, para a estagnação dita anteriormente. Concomitantementea este cenário, ocorreram mudanças significativas no âmbito fa-miliar. Desde as lutas femininas pela emancipação e direitos damulher, o mercado de trabalho configurou-se em uma de suasconquistas. Atualmente, pais e mães disputam este mercado. Noentanto, com esta conquista, uma lacuna se abre: quem vai se ocuparda educação dos filhos? Muitos apareceram para ocupar essa fun-ção. Surgem vários especialistas, alguns graduados cientificamen-te, outros sob a forma de babás eletrônicas: televisão, vídeo-gamee computador, a escola e demais agentes de instrução de massas.

Muitos pais não conseguem mais criar os filhos sem o auxíliodesses especialistas. Para não repetir os “erros” de seus própriospais, os pais modernos repudiaram as práticas úteis do passado eabraçaram as “verdades” dos especialistas como se fossem leis.

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Tudo o que se refere ao passado, como atitudes e valores, é tidocomo ultrapassado.

Tudo isso contribui para confirmar a impotência dos pais emeducar seus filhos. Vivemos uma desvalorização da paternidade.

O colapso da autoridade parental reflete o colapso de anti-gos controles de impulso e a mudança de uma sociedade naqual os valores do superego estavam em ascensão, para umasociedade na qual se dava cada vez mais reconhecimento aosvalores do id (LASCH, 1983, p. 219).

As mudanças na vida familiar são inseparáveis do desenvol-vimento da indústria moderna. A configuração econômica tira decasa não só o pai, mas também a mãe e diminui o papel que elesrepresentam na vida do filho. Cada vez mais, o trabalho exige queas pessoas disponham de tempo integral, o que acaba por subtrairo tempo da família e dos filhos.

Torna-se cada vez mais difícil para os filhos estruturar iden-tificações consistentes com aqueles que são responsáveis pelo seudesenvolvimento, caracterizando um grande distanciamentoafetivo. Em contrapartida, modelos fortes, presentes e sedutores,ocuparam o lugar dos pais e, conseqüentemente, das identifica-ções: os produtos da indústria cultural. Os filhos buscam um idealde ego e figuras de autoridade fora da família. Buscam identidadenas roupas, carros, viagens, objetos e em várias mercadorias queprometem fazer, de quem as adquire, um ser especial. No entanto,como esta promessa é falsa, sempre os jovens consomem mais emais, na esperança de modelos diferentes e mais avançados seremmais eficazes na ilusão de completude. Isto porque o indivíduonarcísico não suporta a ausência de promessas.

Na sociedade moderna do consumo e do espetáculo,visualizamos pais ausentes, não apenas fisicamente, mas em es-pecial afetivamente, em busca de “melhores condições de vida”para sua família. Talvez, grande parte desse ideal venha da mídia,“ter coisas para ser feliz”. Os modelos de identificação da criançatornam-se as babás eletrônicas que, como vimos anteriormente,transmitem também o ter para ser. A falta de referência é tão gran-de que a criança admite como realidade tudo o que a indústriacultural transmite. Segundo Lasch (1986, p. 75).

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a nossa cultura cerca a criança com um imaginário, procura portodas as formas poupar-lhe a experiência do fracasso ou dahumilhação. Parte da idéia de que é possível ser o que se querser; promete sucesso e recompensa com um mínimo de esforço.

Todas estas transformações contribuíram para a criação de umnovo tipo de indivíduo social, que não se configura nas neurosesclássicas, em que o impulso infantil é reprimido pela autoridadepatriarcal. Pelo contrário, o impulso é estimulado. De acordo comLasch (1983), o que a histeria e as neuroses obsessivas foram paraFreud, as desordens narcísicas são para os atuais analistas. Isto,porque toda sociedade reproduz sua cultura. A socialização reali-zada pela família, pela escola e por outros agentes atua na perso-nalidade de modo que esta se sujeite as normas sociais.

E neste contexto, pode-se imaginar como se desenvolvem osComplexos de Castração e Complexo de Édipo? O que se podeperceber é uma construção de fortes traços narcísicos em um pro-cesso psíquico de entrada no Complexo de Édipo, mas de não-aceitação da castração. Podemos falar de um Narcisismo Objetal,no qual o indivíduo é faltoso, mas extremamente relutante emreconhecer sua falta. A criança cresce acreditando ainda nas ilu-sões narcísicas, crendo ser aquilo que a mãe (e também substitu-tas eletrônicas) lhe transmite como sendo ela, caracterizando umarelação fusional.

A criança desenvolve-se deixando de perceber a falha no obje-to, não há o rompimento do vínculo narcísico mãe-bebê. Não existeuma presença suficientemente forte do pai, que não se interpõe nadíade para executar a castração. A criança não tem a capacidade depoder discriminar e separar-se do objeto, até porque a mãe tambémnão possui esta capacidade. Os pais alimentam o sentimento decompletude e onipotência dos filhos compensando, com atitudesfacilitadoras, suas ausências. Gratificam constantemente para nãoentrar em conflito com as demandas afetivas dos filhos. As babáseletrônicas transmitem às crianças uma imagem que retrata que tudoelas podem; o prazer tem que ser imediato, deve-se ter (mercadori-as) para ser (especial, poderoso, onipotente), cultivando a necessi-dade de ser uma celebridade, mas para isso existem vários requisitosque, vejam só, encontram-se todos no mercado! Basta adquiri-los!Percebe-se que tudo é coisificado.

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O outro entra nessa história apenas como um veículo de satis-fação. O narcisista depende do outro para validar sua auto-estima.Não consegue viver sem uma audiência que o admire. Nutrem fan-tasias de onipotência e uma forte crença em seu direito de exploraros outros e de ser gratificado. “O narcisista não consegue identifi-car-se com alguém sem ver o outro como uma extensão de si mes-mo, sem obliterar a identidade do outro” (LASCH, 1983, p. 117).

A cena contemporânea nos oferece novas formas de subjeti-vidade. Pode-se falar do narcisismo como fenômeno social. “Onarcisismo significa uma perda da individualidade e não a auto-afirmação; refere-se a um eu ameaçado com a desintegração e porum sentido de vazio interior” (LASCH, 1986, p. 47).

Referido sempre a seu próprio umbigo e sem poder enxergarum palmo além do próprio nariz, o sujeito da cultura do es-petáculo encara o outro apenas como um objeto para seuusufruto, o sujeito vive permanentemente em um registroespecular, em que o que lhe interessa é o engrandecimentogrotesco da própria imagem. O outro lhe serve apenas comoinstrumento para o incremento da auto-imagem, podendo sereliminado como um objeto quando não mais servir para essafunção abjeta (BIRMAN, 2001, p. 25).

Ainda de acordo com este autor,

saquear o outro, naquilo que este tem de essencial einalienável, se transforma quase no credo nosso de cada dia.A eliminação do outro, se este resiste e faz obstáculo ao gozodo sujeito, nos dias atuais se impõe como uma banalidade(BIRMAN, 2001, p. 25).

Os pais não ensinam a criança a ser genérico, mas a ser indi-vidual. Defender valores coletivos é coisa do passado.

A partir de toda a exposição, pode-se compreender a razãopela qual a aderência à barbárie passou a ser algo rotineiro e apa-rentemente “normal”. A ausência de referência interna de umafigura de autoridade abre espaço para a barbárie.

As individualidades foram transformadas em objetos descartáveis.A modernidade silencia a alteridade e a intersubjetividade. Deixar de

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ser indivíduo e tornar-se sujeito... algo que está fora de moda no presen-te momento ...

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Abstract: the modernity brings some features and changes in thesocial dimension to contributing for the construction of a newpsychological subjectivity of the individual. The purpose of thisstudy is to analyze the process of being subject in the modernity.Finally we will propose a reflection on some ideas aboutcivilization, of modernity and the construction of the psyche.

Key words: subjectivity, psychoanalysis, modernity, malaise

LEANDRA CARRERPsicóloga e Mestra em Psicologia pela Universidade Católica de Goiás (UCG).

DENISE TELES FREIRE CAMPOSDoutora em Psicopatologia Clínica pela Universidade de Provence, França.Professora do Programa de Pós-graduação em Psicologia na UCG.

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Resumo: o trabalho discute as várias facetas e concep-ções da violência como fenômeno, abordando os temas dabanalização da violência, do espaço do sujeito face à vio-lência, do excesso do irracional e de sua inserção nas dinâ-micas de poder. Em particular o trabalho interroga anaturalização da violência na sociedade brasileira e a emer-gência de uma norma social que a valoriza, associada aprocessos de sociabilidade violenta.

Palavras-chave: representações sociais, violência,banalização, norma social

violência configura-se na atualidade como um pro-blema social grave cuja complexidade constitui umdesafio para estudiosos preocupados em aprofundar

as discussões e teorizações sobre este tema. Em suas múltiplasformas de manifestação, a violência tornou-se um fenômenopresente em diferentes situações da sociedade brasileira, ocu-pa um lugar significativo na vida cotidiana das pessoas e con-traria as expectativas de civilidade e solidariedade.

Sem dúvida alguma, a violência é um fenômeno com-plexo e difícil de equacionar, tornando-se quase impossívelapontar uma origem única diante da multiplicidade de moti-

SILVIA PEREIRA GUIMARÃESPEDRO HUMBERTO FARIA CAMPOS

SOCIABILIDADE VIOLENTA:

CONTEMPORANEIDADE

E OS NOVOS PROCESSOS

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vos e formas como ele se manifesta. Antes disso, a gravidade e aurgência das situações brasileira e mundial indicam que essa ge-neralização da violência é sintomática. Ela se caracteriza comoum tipo de linguagem, que é a expressão dos conflitos de poder,da cultura individualista, da subjetividade instrumental, e do so-frimento psíquico e social experimentado pelas sociedades oci-dentais modernas (PEREIRA et al., 2000).

Diante disso nota-se a necessidade de lançar um olhar críticosobre a violência, percebendo-a para além da esteticização e na-turalização que a acompanha, reconhecendo-a como tal, despidade quaisquer atributos que a desconfigurem. Trata-se da tentativade fugir de análises massificadas pelos dados estatísticos e buscarcompreender os fatores que permeiam a configuração adquiridapelo fenômeno da violência na atualidade.

Apesar do grande destaque adquirido no final do último sécu-lo, a violência não pode ser considerada uma problemática recenteou presente em contextos isolados. Trata-se de um fenômeno recor-rente e sistemático, com origem em tempos remotos, cujas primei-ras manifestações documentadas no Brasil remetem à época colonial,a partir do genocídio indígena e da escravidão, e que vem assumin-do configurações específicas conforme o período histórico. Pode-se dizer que, de uma forma geral, a violência tem acompanhado odesenvolvimento das sociedades e a história da humanidade.

Em suas múltiplas formas de manifestação, a violência deveser compreendida sempre como um fenômeno social (CAMPOS,TORRES, GUIMARÃES, 2004; MOSER, 1991; VELHO, 2000).Ela existe num determinado contexto e se efetiva na relação como outro. Trata-se de uma “interação” entre indivíduos situados emuma dada estrutura social que ocupam papéis sociais e orientadospor valores que definem e modelam as possibilidades dessainteração. Daí parte a perspectiva de análise da violência enquan-to dado cultural e societário, cujas manifestações variam de acor-do com o contexto sociocultural e são dotadas de valores complexose diversificados. Apesar das dificuldades de delimitação conceitual,parece consensual entre os pesquisadores (MICHAUD, 2001;VELHO, 2000; WIEVIORKA, 1997) a concepção de violênciacomo fenômeno multifacetado que assume formas e sentidos va-riados, em conformidade com o momento histórico e a cultura emque ele é produzido.

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Em suas reflexões sobre a violência, Tavares dos Santos (2004)busca compreendê-la nos diferentes conjuntos relacionais, toman-do-a como “um ato de excesso, qualitativamente distinto, que severifica no exercício de cada relação de poder presente nas rela-ções sociais”. A força, a coerção e o dano são percebidos comoformas de violência enquanto ato de excesso presente tanto nasestratégias de dominação do poder soberano quanto nas redes demicropoder entre grupos sociais.

A violência não se encontra necessariamente articulada como uso de instrumentos de força bruta e não há uma fronteira quedesassocie a violência física, a qual se impõe pelo excesso de forçacorporal ou armada, e a violência simbólica, a qual exclui e domi-na por meio da linguagem. Desse modo, a violência pode ser con-siderada

[...] como um dispositivo de excesso de poder, uma práticadisciplinar que produz um dano social, atuando em um dia-grama espaço-temporal, a qual se instaura com uma justifi-cativa racional, desde a prescrição de estigmas até a exclusão,efetiva ou simbólica. Essa relação de excesso de poder con-figura, entretanto, uma relação social inegociável porqueatinge, no limite, a condição de sobrevivência, material ousimbólica, daqueles que são atingidos pelo agente da violên-cia (TAVARES DOS SANTOS et al., 1998, apud ZALUAR;LEAL, 2001, p. 148).

A noção de violência cobre, portanto, uma vasta gama deeventos e fenômenos nos quais o ato violento é a expressão daimposição das necessidades, expectativas e vontades de um atorsocial sobre as necessidades, expectativas e vontades de outro ator.Nesse sentido, diversos autores (TAVARES DOS SANTOS, 1999;2004; SAWAIA, 2004; VELHO, 2000; WIERVIORKA, 1997;ZALUAR; LEAL, 2001) reconhecem a violência como a expres-são de um conflito no interior de uma dinâmica de poder.

Considerando a configuração própria adquirida pela violên-cia nas sociedades ocidentais contemporâneas, alguns aspectos têmmerecido destaque entre os pesquisadores desta temática, dentreos quais pode-se destacar a banalização da violência e o grandeenvolvimento de jovens.

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Com a atual mudança cultural e as transformações do sistemade valores e das relações sociais, observa-se que as tensões soci-ais que, anteriormente, apresentavam desfechos em que tendiama predominar acordos e negociações, atualmente, encontram naviolência física ou verbal uma tendência predominante. Essa ten-dência à banalização da violência tem merecido a atenção de di-versos autores (CAMPOS, TORRES, GUIMARÃES, 2004;DIMENSTEIN, 1995; VELHO, 2000; ZALUAR, 2000) queenfatizam a existência de uma disposição cultural de considerarfenômenos de violência explícita (atos agressivos) como, além defreqüentes, “comuns”, “naturais”, “corriqueiros”, “banais”, des-tituindo a violência do lugar da excepcionalidade para exigi-la umamarca do cotidiano.

A idéia de que só a força resolve os conflitos tem se genera-lizado no nível cotidiano a ponto de verificarmos uma rotinizaçãoda violência física. A noção de banalização da violência diz res-peito a essa legitimação do uso da agressão (física ou simbólica)como forma de regulação/resolução de conflitos de interesses, sejaentre pessoas ou grupos. Um reflexo desta disposição pode serobservado tanto nos jornais televisivos, que mostram assassina-tos e brutalidades por motivos cada vez mais banais e que não maischocam os telespectadores, como também nos discursos do coti-diano em que agressões consideradas “leves” não são caracteriza-das como violências.

Essa percepção denuncia uma outra face da banalização daviolência. Trata-se de uma tendência verificada especialmente emestudos com adolescentes (CAMPOS; GUIMARÃES, 2003), emque o reconhecimento da violência acontece somente nas situa-ções marcadas pela existência da violência física, ou seja, umaassimilação da noção ou representação da violência ao ato agres-sivo e, prioritariamente, ao ato agressivo resultante em morte.

A tendência à banalização tem merecido grande destaque nosestudos sobre a representação social da violência. Uma natura-lização e normatização do fenômeno são apontadas por estudosespecíficos sobre a violência doméstica dirigida contra mulhe-res (SANTOS, 2004), contra crianças (GONÇALVES, 2003),sobre a violência envolvendo gangues (ABRAMOVAY et al.,2004) e sobre a violência nas escolas (ABRAMOVAY; RUA,2002). Diante destas informações, sugere-se que uma represen-

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tação social da violência como forma “natural” de solucionarconflitos encontra-se presente nos mais diversos segmentos dasociedade.

Pode-se notar que o fenômeno da violência apresenta diver-sas faces e estas acompanham a dinâmica social em questão. Emfunção disso, há uma grande variedade de abordagens e concep-ções que buscam contemplar a violência, cada uma com sua quotade contribuição e com limites mais ou menos abrangentes, contu-do, sua compreensão depende de um olhar voltado para aspectossociohistórico-culturais que permeiam o fenômeno.

Um aspecto interessante acerca dos atuais estudos sobre aviolência refere-se a um dado comum entre todos eles: o valornegativo da violência. É possível notar que a tomada da violênciacomo objeto de valor positivo, quando inscrito na lógica marxistacomo objeto legítimo e essencial da luta de classes, tem sido pro-gressivamente abandonada no espaço intelectual e político. Noinício do século, uma violência purificadora e libertadora do pro-letariado foi festejada por Sorel (1992), para quem ela desempe-nha um papel criativo fundamental capaz de possibilitar umafragilização da burguesia e a criação de um novo tipo de socieda-de. Se antes a violência podia ser justificada, compreendida,teorizada ou sustentada dentro de uma tradição revolucionária,anarquista ou marxista-leninista, como instrumento de luta e deresposta aos abusos e atrocidades cometidas pelo poder ditatorialou autoritário (WIEVIORKA, 1997), atualmente “o fenômeno énecessariamente a marca do que é preciso recusar, e o consenso émuito grande” (SOREL, 1992, p. 8).

A violência (especialmente a política), antes detentora de umsentido, com o enfraquecimento político dos ideais marxistas passaa ser condenada antes e independentemente de uma tentativa deapreender sua lógica. Questionando essa visão, Gonçalves (2003)critica a apreensão da violência como mero ato destrutivo e aconcebe como ato de produção de sentido. Assim a violência

[...] equivaleria a um discurso por intermédio do qual, emalgrado a validade dos meios que usa, produz ou ao menosvisa produzir uma transformação sobre o meio em que seinscreve, ou mesmo uma recuperação da continuidade rom-pida nas sociedades complexas (GONÇALVES, 2003, p.50).

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Segundo a autora, os sentidos da violência não se esgotam narepresentação dominante de valoração negativa. Essa restrição desentido à irracionalidade e ao ato de destruição pouco contribui paraa compreensão do fenômeno e para tentativas de gerenciamento,servindo apenas como justificativa para a exclusão de seus autores.Assim, apresenta-se de fundamental importância buscar compre-ender as demandas que motivam os atos violentos e que alimentamnovas formas de manifestação.

Na tentativa de melhor compreender a presença da violên-cia no contexto atual, torna-se necessário lançar um olhar crí-tico sobre a contemporaneidade. Trata-se de abordar asmudanças no estilo de vida, na organização política, econômi-ca, social e cultural vivenciadas pelas sociedades ocidentais,buscando compreender como se dá a inscrição do fenômeno daviolência neste contexto. Assim, a partir de uma exploração daorganização da sociedade capitalista diante das transformaçõesrecentes, pode-se compreender o “lugar” da violência na reali-dade cotidiana.

Em suas reflexões acerca da contemporaneidade, Giddens(1991) afirma que a sensação de estarmos vivendo um período detransição, um período que ultrapassa a já conhecida modernidade,surge a partir das várias “descontinuidades” que marcam a histó-ria da humanidade. O grande diferencial no atual momento histó-rico seria a extensibilidade (no sentido de estabelecer formas deinterconexão social que cobrem o globo) e a intencionalidade (nosentido de provocar alterações nas mais íntimas e pessoais carac-terísticas da existência cotidiana) das transformações.

Assim, a realidade que vivenciamos hoje resulta de um pro-cesso de transformação socioeconômico-político-social das soci-edades capitalistas ocidentais, que deixou marcas profundas nasvidas cotidianas dos indivíduos. As modificações experimentadaspelas sociedades contemporâneas, marcadas pela expansão daeconomia de mercado, pela incorporação do conhecimento cien-tífico e tecnológico à produção industrial, pelos acordos deintegração econômica supranacionais e regionais, pelo crescimentoda imigração, pelo florescimento de uma cultura de massa etc.devem ser consideradas como um processo complexo que atua demaneira contraditória, produzindo conflitos e disfunções, e queincide tanto sobre os sistemas sociais em grande escala como tam-

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bém sobre contextos locais e dos grupos situados em diferentesregiões do planeta (TAVARES DOS SANTOS, 1999).

Fazendo uma explanação de como as grandes transformaçõesdo mundo contemporâneo têm marcado o campo da subjetividadehumana, Birman nos fala do mal-estar na atualidade. As promessasdo início da modernização embutidas na ideologia do progresso eda razão cientificista não foram cumpridas e o sujeito contemporâ-neo “não consegue mais acreditar, como anteriormente, que podetransformar a si mesmo e ao mundo com seu desejo, de maneira apoder reinventar a si mesmo e a ordem social” (BIRMAN, 1999, p.82). Trata-se de um sujeito tomado pelo desamparo advindo daprópria estrutura de organização da sociedade.

No contexto contemporâneo, a ideologia individualista, oimediatismo e o projeto de vida hedonista ganharam espaço. Aospoucos, com o enfraquecimento da tradicional família burgue-sa, os indivíduos passaram a buscar fora do ambiente familiar osreferenciais necessários para a definição do bom e do mau, docerto e do errado. Houve, assim, uma conversão da família bur-guesa às ideologias do bem-estar do corpo, do sexo e dopsiquismo, típicas das sociedades de consumo. Na visão de Costa(2003, p. 157), “é como se o “penso, logo existo” tivesse sidosubstituído pelo “gozo, logo sou”.

Um traço marcante a ser observado é a forma pela qual seestrutura a vida mental do sujeito moderno, particularmente no queconcerne às formas de construção da subjetividade em que eu seencontra situado em posição privilegiada. Segundo Birman, oautocentramento do sujeito atingiu limiares impressionantes eespetaculares, se comparado com a história do mundo ocidental.Para o autor, o autocentramento se apresenta inicialmente sob aforma da estetização da existência. Trata-se de uma exaltaçãogloriosa do próprio eu, baseada principalmente na aparência, demodo que o sujeito vale aquilo que parece ser.

O autocentramento pode ser considerado o traço fundamen-tal da chamada cultura do narcisismo. Utilizando o narcisismocomo metáfora da condição humana, Lasch afirma que existemconexões entre o tipo de personalidade narcisista e certos padrõescaracterísticos da cultura contemporânea, tais como “o temor in-tenso da velhice e da morte, o senso de tempo alterado, o fascíniopela celebridade, o medo da competição, o declínio do espírito

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lúdico, as relações deterioradas entre homens e mulheres”(LASCH, 1983, p. 57).

O autor afirma que a construção da organização social vigen-te exigiu novas formas de personalidade, novos modos de socia-lização e novos modos de organizar a experiência. Diante disso, opadrão narcisista de personalidade, ao mesmo tempo que é incen-tivado pelos atuais padrões sociais, parece representar também amelhor maneira de lutar em igualdade de condições com as ten-sões e ansiedades da vida moderna. Trata-se de uma busca da fe-licidade através de estratégias narcísicas de sobrevivência quereproduzem os piores aspectos da crise geral da cultura ocidental.

Em um artigo sobre a violência urbana, Costa busca explorara relação existente entre o modo de vida da sociedade e Estadocontemporâneo e a violência no contexto cotidiano. A autora ob-serva a prevalência de atos violentos desarticulados de conexãocom as lutas de interesses mais amplos (lutas de classe, de interes-se social), o aumento no número de homicídios e crimes violentospraticados não por pobres ou excluídos, mas por pessoas de clas-ses mais abastadas e a grande incidência de atos violentos promo-vidos pelos diversos tipos de gangues e amotinados, aparentementedesprovidos de motivação etc. A partir disso, surgem inúmerosquestionamentos acerca dos elementos motivadores desses novostipos de articulações da violência, os quais encontram respostasno modo de organização da sociedade moderna.

Segundo Costa (1999), essa violência, percebida como gra-tuita, praticada pelo simples prazer da violência, encontra respal-do no atual modo de vida das sociedades capitalistas, na ideologiado lucro fácil e da busca da satisfação imediata do desejo de con-sumir. Assim, a não-aceitação de limites para a satisfação de qual-quer tipo de prazer e o desejo de consumir levam a condutas que,em última instância, visam à destruição do outro. Trata-se de umareal possibilidade de eliminação do outro se este resiste e fazobstáculo ao gozo do sujeito.

Obviamente a tentativa de desvelamento da “ideologia” ca-pitalista vigente nas sociedades ocidentais não deve intencionaruma explicação completa das causas da violência no Brasil, umavez que existem inúmeras particularidades e fragmentações locaisque são determinantes na emergência do fenômeno. Todavia, énecessário atentar-se à sutileza e à força dos argumentos do capi-

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talismo moderno, tão entranhados em nossa sociedade que muitasvezes se tornam imperceptíveis.

Reconhecendo a importância da mídia na contemporaneidadee que, atrás dela, se produz visibilidade e se constroem os sentidosde algumas práticas culturais, Pereira et al. destacam o modo comoa violência se apresenta enquanto produto cultural em circulaçãono sistema midiático.

Ao ser estilizada, na sua absorção pelos meios de comunica-ção, a violência representada passa por um processo de tradu-ção que favorece e estimula seu consumo por um público maisamplo. Este procedimento se apóia no poder de fascinação daviolência, que é potencializado por sua espetacularização,podendo alterar os sentidos iniciais das manifestações, bemcomo tornar os indivíduos menos sensíveis às diferentes rea-lidades expostas (PEREIRA et al., 2000, p. 18).

Assim, o episódio violento da vida real cotidiana transforma-se em um espetáculo produzido pelos meios de comunicação emmassa. O fenômeno da violência é, portanto, transformado em umproduto com grande poder de venda no mercado da informação eem objeto de consumo, que passa a fazer parte do dia-a-dia degrande parte da população, mesmo daqueles que nunca tiveramexperiência de contato direto com o objeto (PORTO, 2002).

Obviamente, não se trata de tentar estabelecer uma relaçãodireta simplista entre a mídia e a violência. Contudo, na concep-ção de Porto (2002), se a mídia não pode ser responsabilizada peloaumento da violência ela é, sem dúvida, um meio que favorece efortalece sociabilidades estruturadas na e pela violência. Não sãoraras as oportunidades em que a violência, é apresentada comoum comportamento valorizado e tratada como um recurso cujautilização passa a ser uma questão de eficácia, oportunidade, afir-mação de identidade, explosão de raiva, frustração, entre outraspossibilidades. Nesse sentido, o excesso na difusão de manifesta-ções de violência na mídia, por um lado, contribui para umaestigmatização de agentes e grupos envolvidos em tais práticas,reforçando um quadro de exclusão social e, por outro lado, legi-tima a instauração de modelos de sociabilidade e de construçõesidentitárias pautadas pela violência.

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Afirmando que as transformações verificadas na contempora-neidade têm produzido uma nova morfologia dos processos soci-ais, Tavares dos Santos (1999; 2004) sugere que uma nova formade sociabilidade está se desenhando no contexto moderno, defini-da por estilos violentos de sociabilidade, que invertem as expec-tativas do processo civilizatório.

As relações de sociabilidade passam por uma nova mutação,mediante processos simultâneos de integração comunitária ede fragmentação social, de massificação e de individualização,de ocidentalização e de desterritorialização. Como efeito dosprocessos de exclusão social e econômica, inserem-se as prá-ticas de violência como norma social particular de amplosgrupos da sociedade, presentes em múltiplas dimensões daviolência social e política contemporânea (TAVARES DOSSANTOS, 1999, p. 20).

Assim, na visão do autor, afigura-se nas sociedades do séculoXXI o fenômeno da violência difusa, cujas raízes se localizam nosprocessos de fragmentação social. Nesse sentido, as instituiçõessocializadoras, tais como a família, a escola, a religião, as fábricasetc., estariam vivendo um processo de crise e desinstitucionali-zação. Se antes as relações de sociabilidade construídas nessas ins-tituições eram marcadas prioritariamente pela afetividade e pelasolidariedade, hoje reaparecem como preferencialmenteconflitivas, como demonstram, por exemplo, os fenômenos daviolência doméstica e da violência na escola.

A violência difusa seria, portanto, um novo modelo de soci-abilidade verificado na atualidade e que perpassaria os diferentescontextos de interação social. Ao que parece, as mudanças nocenário mundial promoveram a fragmentação social e a fragilizaçãodos laços sociais, o incremento de processos de exclusão e a“desfiliação” de algumas categorias, tais como a juventude. Fo-ram esses processos que possibilitaram a emergência do que seriaum novo modo de interação social em que a conflitualidade en-contraria espaço privilegiado.

Esboçando a noção de sociabilidade violenta, com base numaanálise da natureza e do sentido da radical transformação de qua-lidade das relações sociais e das práticas de criminosos comuns,

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Silva (2004) diz que os padrões de sociabilidade convencionais,regulados no âmbito do Estado, em determinados contextos e sobcertas condições, perdem a validade e são substituídos por umcomplexo de práticas estruturadas na relação de forças.

Segundo o autor, a representação da violência urbana temcomo característica central a expressão de uma ordem social, istoé, um complexo orgânico de práticas, mais do que um conjunto decomportamentos isolados. Ao considerar a existência desse mo-delo de ordem social, o autor sugere que o uso da força comoprincípio de regulação das relações sociais convive com o modelode sociabilidade regulada pelo Estado. Assim, “não há luta, masconvivência de referências, conscientes ou pelo menos claramen-te ‘monitoradas’, a códigos normativos distintos e igualmentelegitimados, que implicam a adoção de cursos de ação divergen-tes” (SILVA, 2004, p. 73). Nesse sentido, os atores sociais articu-lam suas práticas cotidianas com essa dupla inserção: comoparticipantes da ordem estatal e, paralelamente, da sociabilidadeviolenta.

Buscar uma apreensão da violência com base nos novos pro-cessos sociais que se configuram na atualidade não é uma tarefasimples. A noção de sociabilidade violenta tenta captar a naturezae o sentido da radical transformação na qualidade das relaçõessociais como uma possibilidade de compreensão da violênciaenquanto questão social global. Assim, trata-se de uma perspecti-va que não pretende respostas conclusivas, mas que fornece umcaminho de reflexão com base nas formas de organização socialdas relações de força.

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Abstract: the present work discusses many conceptions aboutviolence, arguing the phenomenon like an excess in powerrelations. It had the objective to study the social representation ofthe violence and the symbolic management. The notion ofbanalization is analyzed. Finally, this paper points to therecognition of the social value of force and to the existence of amodel of violent sociability.

Key words: social representations, violence, banalization, socialnorms

O presente texto constitui parte da dissertação de mestrado do primeiro autor,orientado pelo segundo e contou com o apoio financeiro da Capes.

SILVIA PEREIRA GUIMARÃESMestra em Psicologia pela Universidade Católica de Goiás (UCG). Professorada Universidade Federal de Goiás. Psicóloga.

PEDRO HUMBERTO FARIA CAMPOSDoutor em Psicologia Social pela Université de Provence. Docente do Doutora-do em Psicologia da UCG.

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Resumo: o artigo apresenta uma pesquisa realizada num hotelcertificado pela SA8000. A pesquisa objetivou descrever asvivências de prazer-sofrimento dos trabalhadores. A base te-órica utilizada foi a abordagem da psicodinâmica do traba-lho. Participaram da pesquisa oitenta trabalhadores,escolhidos aleatoriamente, que responderam a Escala Indi-cadores de Prazer e Sofrimento no Trabalho (EIPST), de Men-des (1999). Os dados da escala foram submetidos a análisesestatísticas descritivas, com o SPSS 10.0. Também foram ana-lisados documentos relativos ao programa de Responsabili-dade Social, utilizando-se a análise de conteúdo. A análisedocumental revela tratamento diferenciado em relação ao con-trato de trabalho, falta de envolvimento pessoal, falta de par-ticipação da cúpula nos projetos e corte no investimento. Essaslimitações comprometeram os resultados.

Palavras-chave: organizações, responsabilidade social, pra-zer-sofrimento no trabalho

onforme Schommer (2000), proliferam publicações,debates, reportagens, prêmios e entidades dedicadasà promoção do investimento das organizações na área

social. Termos como filantropia, cidadania empresarial, éti-ca e responsabilidade social nos negócios, passaram a fazerparte do discurso empresarial brasileiro. Há aqueles que, de-

KÁTIA BARBOSA MACEDOELISABETH ZULMIRA ROSSIANA MAGNÓLIA MENDESEVANÚZIA LUZIA DE OLIVEIRAVITOR BARROS REGO

AS VIVÊNCIAS

DE PRAZER-SOFRIMENTO

EM TRABALHADORES

DE UMA ORGANIZAÇÃO

CERTIFICADA PELA SA8000

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fendem que, pagando impostos e obedecendo às leis, as organiza-ções cumprem suficientemente sua função social, devendo dedi-car-se a suas atividades fins. Outros entendem que a organizaçãotem responsabilidade com seu entorno.

De acordo com Borger (2001), o debate sobre responsabili-dade social empresarial pode ser considerado quase tão antigoquanto as próprias noções de organização e tem assumido aspec-tos diferentes. Em seus primórdios, a própria instalação de umagrande empresa numa determinada localidade já era consideradauma ação que trazia, em seu bojo, o cumprimento de uma respon-sabilidade social,

Nesse sentido, os movimentos sindicais e trabalhistas, noséculo XX, ganharam vulto e passaram praticamente a definir ascondições de trabalho. Aspectos da influência da atividade indus-trial passaram a ser questionados, como o cuidado com o meioambiente em que a indústria atua, os benefícios trabalhistas que aorganização se dispõe a conceder espontaneamente de modo amelhorar a qualidade de vida de seus trabalhadores, eventuaisapoios que a organização se disponha a dar a projetos locais, demodo a contribuir para a educação, saúde etc.

Nos anos de 1990, houve uma maior participação de autoresabordando a responsabilidade social, pois nessa década apresen-tou-se a discussão sobre as questões éticas e morais nas organiza-ções, o que contribuiu de modo significativo para a definição dopapel das organizações. Entre as novas concepções, pode-se citara idéia de que a atuação das organizações orientadas para a Res-ponsabilidade Social Empresarial não implica que a gestãoorganizacional abandone os seus objetivos econômicos e deixe deatender aos interesses de seus proprietários e acionistas. A gestãodas organizações é responsável pelos efeitos de suas operações eatividades na sociedade.

Em 1998, na Holanda, o Conselho Empresarial Mundial parao Desenvolvimento Sustentável (WBCSD) lançou a base do con-ceito de responsabilidade social corporativa:

responsabilidade social corporativa é o comprometimentopermanente dos empresários de adotar um comportamentoético e contribuir para o desenvolvimento econômico, melho-rando simultaneamente a qualidade de vida de seus empre-

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gados e de suas famílias, da comunidade local e da socieda-de como um todo (ALMEIDA,1999, p. A-2).

Vários autores concordam com alguns aspectos do conceito deresponsabilidade social. Entre eles podem-se citar Froes e Mello(1999), Grajew (2000), Morales e Orchis (2001), Kanitz (2000) eRizzi (2001). Para eles, responsabilidade social empresarial é umarelação ética e socialmente responsável da organização em todas assuas ações, suas políticas, suas práticas e suas relações. Isso signi-fica responsabilidade social da organização com a comunidade, ostrabalhadores, os fornecedores, o meio ambiente, o governo, o po-der público, os consumidores, o mercado e os acionistas; é umafilosofia de gestão das organizações. Assim, pode-se entender comoética da responsabilidade social a capacidade de avaliar conseqü-ências para a sociedade, referente aos atos e decisões que são toma-das visando a objetivos e metas próprios das organizações.

Para Froes (1999), existem dois tipos de responsabilidadesocial. A primeira focaliza o público interno da organização, seustrabalhadores e seus dependentes. O objetivo é motivá-los paraum desempenho ótimo, criar um ambiente agradável de trabalhoe contribuir para o seu bem-estar. Com isso, a organização ganhaa sua dedicação, o seu empenho, a sua lealdade e, por decorrência,há aumento dos ganhos com a produtividade. A outra, responsabi-lidade social externa, tem como foco a comunidade mais próximada organização ou o local onde ela está situada. Atuando nas duasfrentes, as organizações exercem a sua cidadania empresarial eadquirem o status de ‘empresa-cidadã’.

Para o Instituto Ethos, e também Fritzen (1999), Froes e Neto(1999), os valores e princípios éticos formam a base da cultura deuma organização, orientando suas normas e procedimentos e fun-damentando sua missão social. A ação social deve gerar benefí-cios para a sociedade, propiciar a realização profissional dostrabalhadores, promover benefícios para os parceiros e para o meioambiente e gerar retorno para os investidores. Dentre os indicado-res de responsabilidade social, tem-se:

• Auto-regulação de normas e procedimentos das organiza-ções, visando compromissos éticos e fortalecimento dacultura organizacional.

• Relações transparentes com a sociedade, com diálogo com

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partes interessadas (stakeholders), com a concorrência e adivulgação do balanço social.

• Relações com o público interno visando investir no desen-volvimento pessoal e profissional de seus trabalhadores,bem como na melhoria das condições de trabalho e noestreitamento de suas relações com os trabalhadores, deven-do ainda estar atenta para o respeito às culturas locais. Orelacionamento entre organização e sociedade deve incluirparticipação, boas relações com sindicatos, gestãoparticipativa, participação nos resultados e bonificação,respeito ao indivíduo com compromisso com o futuro dascrianças e valorização da diversidade, respeito ao trabalha-dor , tendo postura diferenciada frente a demissões, com-promisso com o desenvolvimento profissional e aempregabilidade, cuidado com saúde, segurança e condi-ções de trabalho e preparação para aposentadoria.

• Em relação ao meio ambiente, deve incluir umgerenciamento do impacto ambiental, minimização deentradas e saídas de materiais na organização, responsabi-lidade sobre o ciclo de vida dos produtos e serviços, res-ponsabilidade frente às gerações futuras comcomprometimento da organização com a causa ambiental eeducação ambiental.

• Em relação aos fornecedores, critérios para sua seleçãodevem excluir trabalho infantil na cadeia produtiva, rela-ções com trabalhadores terceirizados , apoio ao desenvol-vimento dos fornecedores.

• Em relação aos clientes e consumidores, ter uma política demarketing e comunicação, prestar excelência no atendimen-to, e conhecer e divulgar os danos potenciais dos produtose serviços.

• Em relação à comunidade, deve gerenciar o impacto daorganização junto à comunidade, além de desenvolver re-lações éticas e participativas com outras organizações atu-antes na comunidade;

• Em relação à filantropia e investimentos sociais, desenvol-ver mecanismos de apoio a projetos sociais, estratégias deatuação na área social, trabalho voluntário, reconhecimen-to e apoio ao trabalho voluntário dos trabalhadores.

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• Em relação ao governo e à sociedade, ter transparênciapolítica no que se refere a contribuições para campanhaspolíticas e se posicionar contra corrupção e propina, alémde buscar uma liderança e influência social ética por meioda participação em projetos sociais governamentais.

Segundo Borger (2001), as normas BS 8000 e a SA 80900 quecertificam, respectivamente, as organizações que dão garantias adequa-das para a segurança e a saúde do trabalhador e as que respeitam osdireitos humanos e trabalhistas surgiram recentemente e, também, jásão apontadas como fortes indicadores de Responsabilidade Social.

A norma SA8000 foi desenvolvida com base nos princípiosda Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU e dosdiversos convênios da Organização Internacional do Trabalho(OIT). Seus principais indicadores de avaliação do desempenhosocial das organizações são os seguintes: erradicação do trabalhoinfantil; redução do constrangimento no trabalho; promoção desaúde e segurança, liberdade de associação e direito à negociaçãocoletiva; combate à discriminação; implantação de jornada detrabalho, remuneração e administração justa dos recursos. O pro-cesso de certificação social tem como objetivo avaliar três áreasdistintas: o processo produtivo, as relações com a comunidade eas relações com os trabalhadores e seus dependentes.

Uma outra certificação que, apesar de estar ligada à gestãoambiental, também pode ser considerada de responsabilidadesocial, já que a organização investe recursos e desenvolve açõesque visem preservar o meio ambiente, o que gera melhoria e reduzimpactos e cujos beneficiários são todos os da comunidade, é aISO14000, que existe no Brasil desde 1996 e que até julho de 2000149 empresas já tinham recebido.

É importante enfatizar que o fato de uma organização estarcertificada significa que se ocupa dos problemas e desenvolve umconjunto de medidas para solucioná-los, adotando programas degestão ambiental e ações de responsabilidade social, como formade prevenção dos problemas. Ainda assim, é de esperar que a or-ganização regida pelos princípios da responsabilidade social (oque se formaliza pelo recebimento das certificações necessárias)faça um investimento no bem-estar e qualidade de vida dos seustrabalhadores.

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Tal investimento pode se converter num contexto de trabalhofavorável à realização profissional e à liberdade, bem como aevitação do desgaste e da insegurança. Desse modo, pretende-secom essa pesquisa o estudo das vivências de prazer e de sofrimen-to de trabalhadores inseridos em uma organização certificada comosocialmente responsável.

Para fundamentar teoricamente as vivências de prazer-sofri-mento, são considerados os estudos realizados à luz do referencialda psicodinâmica do trabalho, com base em Dejours (2001;1994;1992), e Mendes (2004).

Para os autores acima, o trabalho promove a saúde e a doença– sendo o prazer e o sofrimento indicadores do processo de saúdeou adoecimento. O trabalho causa no corpo e nas relações com aspessoas qualidades de bem ou de mal – características que semanifestam por meio da realização e liberdade ou pela desvalori-zação e desgaste no trabalho. Eles consideram que o trabalho pro-voca um sofrimento que não é patológico, mas é um sinal de alerta– a dor avisa sobre as doenças ocupacionais; ela pode ser masca-rada e/ou ressignificada por meio de estratégias de mediação. Porfim, afirmam ser as vivências de prazer e de sofrimento resultadosde uma intersubjetividade, que é a construção do sentido compar-tilhado dado ao trabalho em função das inter-relações, na maiorparte das vezes marcada por contradições entre desejos e necessi-dades do trabalhador e as condições de organização e relações detrabalho particulares em determinado contexto de produção de bensou serviços, no qual eles estão inseridos.

Entende-se por contexto de produção de bens e serviços, olocus material, organizacional e social onde a dinâmica do traba-lho acontece, no qual se encontram diferentes sujeitos envolvidosem um processo de interação, implicando uma dinâmica própriacomo lugar de produção de significações psíquicas e de constru-ção de relações sociais.

Para Dejours (2001; 1992) e Ferreira e Mendes (2003), osofrimento é definido como uma vivência, às vezes inconsciente,individual e/ou compartilhada por um grupo de trabalhadores, deexperiências dolorosas, como a angústia, medo e insegurança,provenientes de conflitos e de contradições originados do confrontoentre desejo e necessidades do trabalhador e as características docontexto de produção. O prazer é uma vivência individual e/ou

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compartilhada por um grupo de trabalhadores de experiências degratificação provenientes da satisfação dos desejos e de necessi-dades do trabalhador, quando da mediação bem sucedida dos con-flitos e contradições gerados em determinado contexto deprodução.

Quando o sofrimento é vivenciado, ele é freqüentementeenfrentado. Tal enfrentamento ocorre quando os trabalhadoresconstroem estratégias de mediação, que podem ser do tipo defen-sivas, individuais e coletivas, que levam à eufemização da percep-ção da realidade que os faz sofrer, e de mobilização coletiva, queleva à ressignificação do sofrimento pela transformação do con-texto de produção em uma fonte de prazer.

De acordo com Dejours (2001; 1992), as estratégias defensi-vas são mecanismos individuais ou compartilhados, utilizadospelos trabalhadores, de negação ou racionalização dos riscos, dosperigos e dos conflitos presentes no trabalho que lhes causamsofrimento. A negação é expressa pela negação do próprio sofri-mento e do sofrimento alheio.

A racionalização é representada pela evitação e eufemizaçãoda angústia, do medo e da insegurança vivenciados no trabalho.Ela se manifesta pela utilização de justificativas racionais diantedas situações desconfortáveis, dolorosas que podem gerar risco,acelerar ritmo, altos índices de desempenho e produtividade.

Ainda para Dejours (2001; 1992), as estratégias demobilização coletiva são modos de agir em conjunto dos trabalha-dores que atuam sobre a percepção da realidade para suaeufemização. Para tanto, utilizam o espaço público de discussãoe a cooperação, visando ressignificar o sofrimento, gerir as con-tradições, diminuir o custo humano negativo do trabalho e trans-formar o contexto de produção para obtenção de prazer.

Assim sendo, com base nos pressupostos teóricos aqui abor-dados, será feita a análise e a leitura dos dados obtidos na pesqui-sa sobre as vivências de prazer-sofrimento em uma organizaçãocertificada como socialmente responsável.

DELINEAMENTO METODOLÓGICO DA PESQUISA

Na data da coleta de dados, que aconteceu no período denovembro de 2003 a fevereiro de 2004, a organização já havia

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recebido as certificações de ISO9001, ISO14000 e SA8000 e atu-ava na área de hotelaria, com sede no interior do Estado de Goiás.

A organização contava com 1683 trabalhadores no seu qua-dro, divididos em quatro grupos: 413 terceiros, 144 cooperados,23 estagiários e 1103 associados. Os terceiros são prestadores deserviços, autônomos; os cooperados possuem vínculos com umacooperativa; os estagiários são os estudantes universitários quedesenvolvem trabalhos com fins acadêmicos e os associados sãoos funcionários1.

Participaram do estudo uma ‘amostra’ aleatória composta poroitenta trabalhadores (questionários devolvidos) do total de 1.103contratados da empresa, com as seguintes característicassociodemográficas.

Dos sujeitos, 45%, do sexo masculino e 55% do sexo femini-no; 25% dos participantes tinha idade até 26 anos, 56% tinhamidade ente 27 a 33 anos, 13% tinham idade entre 34 e 40 anos e,finalmente, 6%, idade superior a 41 anos. No que se refere aoEstado Civil, 19% dos participantes eram casados, 75% eramsolteiros e 6% eram divorciados. No que se refere à escolaridade,6% tinham o primeiro grau completo; 56% tinham o segundo graucompleto e 37%, o curso superior completo. Quanto ao nível hi-erárquico, 6% ocupavam o cargo de gerência; 25%, o cargo deanalistas; 44%, a maioria dos entrevistados, se encontravam nafunção administrativa que inclui recepção, portaria e atendente e,por fim, 25%, em função operacional.

Como instrumentos para coleta de dados, utilizou-se a análi-se de documentos organizacionais e a escala de Indicadores dePrazer-Sofrimento no Trabalho (EIPST), validada por Mendes(2003). Na escala, o prazer é representado pelos fatores realiza-ção e liberdade. O fator realização é definido como sentimento degratificação, orgulho e identificação com um trabalho que atendeàs necessidades profissionais. O fator liberdade é definido comosentimento de estar livre para pensar, organizar e falar sobre otrabalho; o sofrimento apresenta como indicadores os fatoresdesgaste e desvalorização. O desgaste é definido como sentimen-to de que o trabalho causa estresse, sobrecarga, tensão emocional,cansaço, ansiedade, desânimo e frustração. A desvalorização é osentimento de incompetência diante das pressões para atender asexigências de desempenho e produtividade.

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Os participantes responderam à EIPST em situações coleti-vas, em local adequado; não foi cronometrado o tempo utilizadopara o preenchimento. Todos os procedimentos éticos foram to-mados para resguardar a identificação dos participantes.

Após a aplicação, a escala foi submetida a análises estatísti-cas descritivas o obtiveram-se desse processo metodológico asmédias e o desvio padrão para cada um dos fatores da EIPST uti-lizando o software estatístico SPSS 10.0.

RESULTADOS

De acordo com o Manual de Integração, a organização ini-ciou o processo de certificações em dezembro de 1996. Em de-zembro de 1998, a organização recebeu a certificação ISO 9002.Em setembro de 2000, recebeu a certificação ISO 14000. Em maiode 2003, a organização foi recertificada pela ISO9002 e pelaISO14000. Em dezembro de 2003, a organização foi certificadapela SA 8000, que é uma certificação de Responsabilidade Social.De acordo com um dos gestores do programa, a CIA é a primeiraempresa de hotelaria e turismo do mundo a possuir as trêscertificações.

O departamento diretamente responsável pela gestãoambiental foi implantado em 1996. O Departamento de Gestão dePlanejamento e Processos, quando na data desta coleta de dados,estava diretamente ligado ao comitê executivo e contava comquinze pessoas.

De acordo com os relatórios dos Gestores, a implantação doprograma foi uma iniciativa da alta administração e surgiu docomitê executivo. Os relatórios foram feitos por uma consultoriaterceirizada que, ao realizar o projeto básico ambiental, realizouum levantamento dos impactos. Com base nos impactos aponta-dos no projeto, a organização deveria tomar as devidas providên-cias para que tal impacto não tornasse negativo ou prejudicial aomeio ambiente.

De acordo com as informações colhidas, toda a CIA era cer-tificada pela ISO 9001/2000, ISO 14 000 e SA 8000. O órgãocertificador foi o BVQI. A opção por este órgão se deu por elepossuir um contrato com o grupo BVQI. “A CIA tem um contratocom a BVQI segundo o qual todas as empresas do grupo seriam

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certificadas por elas, o que torna uma negociação mais flexível”SG2. “A empresa optou por esse órgão pela credibilidade etradição.”SG1

De acordo com relatórios do programa, a manutenção do SGIera realizada pela engenheira ambiental, e não existia uma perio-dicidade definida, podendo ocorrer também após análise crítica,realizada pela alta administração.

Em janeiro de 2004, o Departamento Gestão de Planejamen-to e Processos (GPP) foi desativado. A partir de então, a coorde-nadora do GPP foi transferida para a gerência de hotelaria.

Os resultados da escala (tabela 1) indicam que havia umavivência moderada de ‘prazer-sofrimento’, visto que não havia umadiferença marcante entre as médias dos 4 fatores da Escala: gra-tificação (M=3,88), liberdade (M=3,46), desgaste (M=2,8l) einsegurança (M=2,41).

Tabela 1:Escores Médios e Desvio Padrão (DP) da Escala deIndicadores de Prazer-Sofrimento

De acordo com os estudos teóricos já descritos e levando-seem consideração a Escala Likert, quando os resultados se apresen-tam moderados nos quatro fatores, sugere-se que há estratégias deenfrentamento do sofrimento pelos trabalhadores. Em razão desseresultado moderado das médias, foi feita uma análise item por itemdos fatores em que se escolheram os dois indicadores com as mai-ores pontuações e os dois com as menores pontuações (tabela 2).

Como se pode perceber, os índices de gratificação foram osmaiores obtidos. Por se tratar de uma organização socialmenteresponsável, a gratificação de seus trabalhadores deve ser tida comoum objetivo a ser atingido. No entanto, o que se percebe é que osmaiores indicadores de gratificação estão relacionados à profis-são em si mesma (M=4,42) e (M=4,35). Os indicadores menores

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estão direcionados às relações com chefias e colegas. Cabe, aqui,uma maior investigação sobre a gratificação advinda dessa rela-ção com as chefias (M=3,26) – a menor média dos indicadores –visto que é um dos itens estudados quando se titular uma organi-zação socialmente responsável. Seria esta gratificação decorrentede benefícios oferecidos pela organização, tais como plano desaúde, vale-refeição, vale-transporte, políticas de gestão de Re-cursos Humanos, programas de desenvolvimento pessoal e pro-fissional, participação nos lucros e outros?

Tabela 2:Médias e Desvio Padrão (DP) dos indicadores de cadafator da EIPST.

No que se refere à liberdade no ambiente de trabalho, a maiormédia está relacionada à opinião dos trabalhadores sobre o traba-lho que executam. Porém, no que diz respeito à organização dotrabalho, há uma certa dificuldade para o uso do estilo pessoal.Isso pode estar relacionado a uma certa rigidez da organização,em que o trabalhador apenas cumpre regras e normas. Uma outraobservação a acrescentar nessa análise está relacionada à pontu-

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ação relativamente alta dos indicadores de desgaste no trabalho,representados pelas médias dos itens cansaço (M= 3,37) e traba-lho desgastante (M=3,21).

A análise dos documentos referentes às certificações, manu-ais, relatórios e avaliações dos gerentes dos programas indicoualguns dados que devem ser salientados: em apenas quatro anosde existência, o departamento responsável por gerenciar todos osprogramas para implantação e certificação obteve as trêscertificações, tempo relativamente curto para mudanças tão pro-fundas como as exigidas para as certificações; houve relatos dafalta de envolvimento pessoal dos membros da diretoria e corte noinvestimento financeiro para os referidos projetos. A equipe res-ponsável pela certificação tinha prazos exatos, poucas pessoastreinadas e pouca verba. Diante dessa realidade, os gestores doprojeto delimitaram a participação de alguns funcionários nosprogramas e limitaram a divulgação dos projetos entre os funcio-nários. Percebe-se que todos esses ajustes comprometeram o re-sultado final do trabalho.

DISCUSSÃO

Como ficou evidenciado nas análises estatísticas, as médiasapresentam pontuação moderada, indicando que os trabalhadorestinham vivências de prazer e de sofrimento no trabalho, sugerindoa existência do uso de estratégias de enfrentamento – de defesa oude mobilização coletiva – dos conflitos e das contradições entreas necessidades e desejos desses trabalhadores e o contexto detrabalho. Assim sendo, essas defesas eram eficazes e evitavam osurgimento de doenças relacionadas ao trabalho.

Em razão das especificidades das tarefas executadas – servi-ços de hotelaria – os trabalhadores seguiam uma prescrição rígidadas tarefas, evidenciando uma organização de trabalho rígida.Percebe-se isso pela alta pontuação do fator desgaste (M=3,37).Porém, as ações e os investimentos no desenvolvimento do bem-estar dos trabalhadores certamente atenuavam a rigidez dos ele-mentos prescritos na organização do trabalho.

Esses resultados também se explicam por se tratar de umaorganização certificada como “socialmente responsável”, o quepressupõe comprometimento permanente com a qualidade de vida

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de seus trabalhadores, como também investimento em ações quebeneficiem a comunidade local e a sociedade como um todo. In-vestimento em ambiente saudável que, além de promover umacomunicação transparente, assegura a sinergia com seus parcei-ros e a satisfação dos trabalhadores e clientes externos.

Porém, uma contradição está posta. Os resultados da análisedocumental permitem a descrição e discussão de alguns aspectosimportantes que complementam os resultados quantitativos. Deacordo com esses documentos, ficam evidenciados diferentes re-lações de trabalho em relação ao contrato de trabalho, acesso aosbenefícios, participação em treinamentos e eventos. Assim, nemtodos os trabalhadores eram contratados pelo regime da CLT, nemtodos recebiam treinamento, nem todos tinham acesso a treina-mentos, benefícios nem mesmo recebiam informações acerca dosprogramas desenvolvidos pela organização.

O resultado do estudo documental e o resultado quantitativoindicam uma contradição. Embora a empresa em estudo tivesse ascertificações SA8000 e ISO14000 (cujos indicadores preconizamque a organização certificada cuida da redução do constrangimentodo trabalho, combate a discriminação, promove a saúde e a segu-rança, promove liberdade de direitos, viabiliza a implantação deuma jornada justa de trabalho e de remuneração), os resultadosapontam para uma precarização do trabalho.

Nesse sentido, os resultados quantitativos revelaram que ofator “desgaste”, o indicador “meu trabalho é cansativo”, recebeua maior pontuação.(M - 3,37). No fator “insegurança” os indica-dores referentes a ‘meu trabalho me causa ansiedade’ recebeupontuação (M-2,78) e “sinto-me inseguro quando não correspondoàs expectativas da empresa” ́ (M-2,65). Essas pontuações tambémconfirmaram a análise documental em relação ao tratamento dife-renciado e à precarização do trabalho.

Outra consideração importante diz respeito às certificações.Para uma organização receber certificações – seja a ISO9000,ISO14000 ou a SA8000 – ela deve demonstrar para um avaliadorexterno e habilitado, pertencente a um órgão certificador compe-tente, que foi capaz de desenvolver os manuais, ou seja, aplicar asnormas que constam dos manuais. Assim, deve ficar comprovadoque ela desenvolveu ações que denotavam seu investimento emações sociais, que deveriam enfocar o público interno e o externo.

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Geralmente, as ações voltadas para o público interno se refle-tem em políticas de pessoal que promovem qualidade de vida notrabalho, priorizam benefícios que se estendem aos trabalhadorese seus dependentes. Espera-se que haja uma política de pessoalformalmente descrita e divulgada a todos os envolvidos com aorganização.

Pode-se afirmar que na empresa pesquisada há uma distânciaentre o que está prescrito no manual de certificação e o que é pra-ticado. Se os resultados dos indicadores de prazer no trabalhoestavam em um grau moderado, indicava que os empregados es-tavam fazendo uso de estratégias de enfrentamento do sofrimentono trabalho. Desse modo, como eeram as ações para o estabeleci-mento da qualidade de vida no trabalho? Se os trabalhadores ti-nham seu trabalho precarizado em razão da sazonalidade do hotel,como fica a responsabilidade social no que tange ao público inter-no e externo? Essa é realmente uma empresa cidadã?

Embora tenha sido encontrada referência expressa nos ma-nuais a uma política que privilegiasse a relação com os trabalha-dores, que deveria ser pautada na transparência, ética e promoçãode qualidade de vida no trabalho e responsabilidade social, perce-beu-se que isso não ocorria na prática. O próprio fato de os traba-lhadores estarem separados em quatro grupos com contrato detrabalho deixa claro o tratamento desigual dispensado a cada gru-po. Apesar de haver nos manuais referências expressas à divulga-ção, participação e envolvimento dos trabalhadores e disseminaçãode informações sobre gestão ambiental, qualidade, qualidade devida e responsabilidade social, percebe-se que, na prática, foramdesenvolvidas poucas ações de divulgação, e houve poucos even-tos, com escopo reduzido, o que não permitiu o acesso da maioriados trabalhadores. A própria divulgação e envolvimento dos tra-balhadores no programa e sua pouca adesão e participação refor-çam o caráter parcial em que as ações desenvolvidas deram acessopara os trabalhadores participarem.

Apesar de haver nos manuais políticas de desenvolvimentode ações para a promoção de responsabilidade social voltadas tantopara o público interno quanto para o externo, percebe-se que fo-ram realizadas apenas algumas palestras, e foi iniciada a coletaseletiva de lixo, por um período curto, imediatamente antes dasvisitas dos avaliadores externos dos órgãos certificadores.

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Assim, percebe-se um caráter instrumental da organização aobuscar as certificações, provavelmente, muito mais por causa deum caráter ligado ao marketing institucional do que por um realcomprometimento da diretoria e envolvimento dos trabalhadorescom a responsabilidade social.

CONCLUSÃO

Após a apresentação e discussão da pesquisa realizada, ficaevidente que o fato de uma organização possuir certificações dequalidade, de responsabilidade social ou de gestão ambiental nãosignifica necessariamente que seus trabalhadores tenham maisvivências de prazer que de sofrimento no trabalho. Há uma distân-cia entre o que os manuais prevêem e as práticas cotidianas.

Esperava-se que uma organização certificada pela SA8000investisse periodicamente em ações que beneficiassem, conjunta-mente, o público interno, os trabalhadores e o público externo, osclientes fornecedores e a comunidade. Essa expectativa não foiverificada pelas práticas, pois, apesar da organização possuir tan-tas certificações, há indicações de vivências de sofrimento nostrabalhadores, e talvez isso se deva ao caráter instrumental que aorganização fazia das certificações para criação e divulgação deuma imagem institucional que, não necessariamente, condiz coma realidade de seu cotidiano, mas que seguramente influencia emseus resultados financeiros.

Diante desses achados, é conveniente que novos estudos se-jam realizados para que se possa aprofundar e encontrar um sen-tido para esse fenômeno.

Nota

1 Cf. Manual de Integração, p. 7 e 8.

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Abstract: this article presents a research into a hotel certified bySA8000. It is aimed to describe workers’ pleasure-sufferingexperiences according to the psychodynamic theory on work, basedon Dejours’ and Mendes’ works. 80 workers had participated in theresearch, and the Scale of Pleasure and Suffering Indicators at theWork and documental analysis were undertaken. They were submitted,respectively, to descriptive statistical and qualitative analyses. Thedocumental analysis reveals treatment differentiated in relation tolabor agreement, there was not personnel involvement, participationby the directors and the finantial support to improve the process.

Key words: organizations, social responsiveness, pleasure-suffering experiences in work

KÁTIA BARBOSA MACEDODoutora em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.Mestre em Educação pela Universidade Federal de Goiás. Especialista em psi-cologia pela Universidade Católica de Goiás 9UCG). Especialista em Dinámicade Grupos pela Universidad de Comillas-Espanha. Master em Psicología Apli-cada a las Organizaciones pela EAE-Barcelona. Graduada em Psicologia. Pes-quisadora e professora na UCG. E-mail: [email protected]

ANA MAGNÓLIA MENDESDoutora em Psicologia pela Universidade de Brasília (UnB). Professora no De-partamento de Psicologia Social e do Trabalho da Universidade de Brasília.Pesquisadora do CNPq. Psicóloga. E-mail: [email protected]

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EVANÚZIA LUZIA DE OLIVEIRAMestre em Psicologia Social pela UCG. Pós-graduada em Gestão de Pessoas eOrganizações, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Graduada em Psico-logia pela UCG. Professora na UCG. Analista de Recursos Humanos, em umadistribuidora.

ELISABETH ZULMIRA ROSSIDoutoranda em Psicologia na UnB. Mestre em Psicologia pela UCG. Graduadaem Pedagogia. Professora na Universidade Estadual de Goiás. E-mail:[email protected]

VITOR BARROS REGOGraduando em psicologia na UnB. E-mail: [email protected]

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Resumo: este estudo é uma investigação sobre a influência dacomunicação não-verbal para a eficiência de vender, atravésde uma análise da facilidade com que diferentes sujeitos per-cebem/reconhecem expressões faciais de emoções universais.Participaram deste experimento 15 vendedores de empresavarejista e de serviço e 100 alunos do curso de graduação emadministração de uma universidade em Goiânia (GO). Foiaplicado um questionário e o teste Lendo Faces de Ekman(2003), que consiste em 14 fotos do rosto de um mesmo sujeitocom as expressões de emoções faciais de tristeza, nojo, ale-gria, raiva, medo e desdenho. Não foi confirmada a hipótesede que quanto mais se sabe interpretar as expressões faciaisde emoção, mais sucesso se tem em resultados de vendas, comoé dito na literatura, embora todos os vendedores tendam a fazeruso da interpretação da comunicação não-verbal nas suasatividades diárias, como ficou demonstrado na pesquisa.

Palavras-chave: vendas, comunicação não-verbal, expressãofacial

ser humano é um animal com imenso poder de co-municação. Além da linguagem simbólica, restrita ànossa espécie, utilizamos também uma forma bas-

tante antiga de interagir com outros membros de nossa espé-

RAQUEL SANTANA SCHIAVON SANCHEZFRANCISCO D. C. MENDES

EXPERIÊNCIA COM

ATIVIDADES DE VENDA

E DECODIFICAÇÃO

DE EXPRESSÕES FACIAIS

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cie: a comunicação não-verbal. Nosso repertório de sinais não-verbais é bastante extenso e flexível quando comparado à maioriados outros animais e pode envolver diferentes canais: o visual(posturas, movimentos, expressões), o auditivo (timbre e tom devoz, entonações), o químico (cheiros e sabores) e o tátil (toques,abraços, agressões físicas) (MENDES; CARDOSO, no prelo).

Embora a linguagem simbólica seja ímpar em seu potencialde informação (PINKER, 2002), os sinais não-verbais parecemfundamentais para a comunicação eficiente entre humanos.Birdwhistell (1970) concluiu, através de filmes de interaçõeshumanas rodados em câmara lenta, que a comunicação humana sepassa em grande parte “abaixo da consciência”, em que a relevân-cia das palavras é apenas indireta. Estudos mais recentes (revisa-dos em Knapp et al., 1999) demonstram que as relaçõesinterpessoais são influenciadas simultaneamente por diversoscanais de comunicação não-verbais. Desta forma, os sinais não-verbais de comunicação são utilizados para compreender o queestá sendo comunicado em qualquer interação social, seja elamediada ou não por comportamentos verbais (CORAZE, 1982).

A face humana é extremamente complexa em termos de suaestrutura e número de elementos, pode apresentar um númeroconsiderável de configurações através de movimentos muscula-res (DAVIS, 1979), e talvez represente a parte de nosso corpo maisusada durante a comunicação (ROSENTHAL et al., 1978; KNAP,HALL, 1999; EKMAN, 2003). As pessoas utilizam a face parafacilitar e inibir as reações nas interações sociais; para abrir e fecharcanais de comunicação; para complementar ou qualificar respos-tas verbais/ou não-verbais e para substituir o discurso. A face podetambém incitar comentários do ouvinte, ou demonstrar empatiana forma de mimetismo (DAVIS, 1979). No caso dos sinais rápi-dos, como as expressões faciais, o tônus facial, o tamanho da pupilae a posição da cabeça, a face pode também informar sobre o esta-do emocional do emissor, sobre seus comportamentos futuros e,indiretamente, sobre as condições ambientais que geraram essasemoções (KRAUT, 1982).

A relação entre sinais rápidos e estado emocional do emissorfoi sugerida por Charles Darwin, em seu estudo pioneiro sobreexpressões das emoções em humanos e animais (DARWIN, 2000).Para Darwin, o reconhecimento do estado emocional de outros

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indivíduos seria uma habilidade adaptativa, necessária para asinterações entre membros da mesma espécie. Desta forma, huma-nos teriam herdado de seus ancestrais e compartilhariam entre sium repertório básico de expressões de emoções relacionadas àsobrevivência e reprodução dentro de grupos sociais. Suas con-clusões foram baseadas em observações próprias de primatas ca-tivos numa série de relatórios sobre como pessoas em diferentespartes do mundo expressam suas emoções.

As considerações e métodos de Darwin só foram retomados nasegunda metade do século passado. Vários trabalhos demonstraramque algumas expressões faciais são universalmente produzidas edecodificadas como emoções a elas subjacentes (BERENBAUM,ROTTER, 1992; EKMAN, FRIESEN, 1975; EKMAN, FRIESEN,ELLSWORTH,1982; GASPAR, 1989; IZARD, 1971). Para Ekman(1984), as emoções transmitidas pelas expressões universais seri-am “emoções básicas”, cuja expressão não precisa ser aprendida, eque estão presentes em todas as culturas humanas (medo, raiva,tristeza, nojo, alegria e surpresa, desdenho). Os movimentos mus-culares da face, associados a estas emoções, são comuns a todas aspessoas, independente de sexo, idade ou etnia. Um Programa FacialInato governaria a configuração das contrações dos 52 músculos dorosto humano de acordo com a emoção experimentada (DAVIS,1979). Esse programa inato explicaria não apenas a universalidadedas expressões em diferentes culturas, mas também o porquê de asencontrarmos tanto em pessoas cegas de nascimento como nas queenxergam (OTTA, 1993).

Emoções básicas puras são incomuns – geralmente experimen-tamos misturas de emoções, como, por exemplo, raiva e surpresa aover algo inesperado que nos desagrada. Para lidar com a flexibilida-de das expressões, Ekman e Friesen (1979) desenvolveram, com baseem estudos anatômicos e observação direta, um Sistema deCodificação da Ação Facial (SCAF) ou Facial Action Coding System(FACS). Os pesquisadores estudaram as faces de pessoas que havi-am aprendido a controlar músculos específicos e relataram quemovimentos um observador podia distinguir com certeza. Por con-seguinte, um observador treinado pode identificar quais músculosespecíficos estão se mexendo (EKMAN; ROSENBERG, 2005). Àsvezes, uma unidade de ação move mais de um músculo, se aquelesmúsculos sempre funcionam em série ou se um observador não

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consegue ver diferenças em pequenas mudanças de um subconjuntode músculos. No total, sete músculos diferentes podem influenciaruma região da face. O FACS permite aos pesquisadores da emoçãoclassificar um rosto quando está expressando uma ou mais emoções(por meio da reunião dos juízos observadores) e então descrever,objetivamente, o que a face “representa”.

O caráter inato e universal das expressões faciais das emo-ções básicas não significa que a comunicação não-verbal não possaser modificada pela experiência. Por exemplo, algumas emoções,como nojo e surpresa, são emitidas desde cedo no desenvolvimentodo indivíduo, mas são mais difíceis de serem decodificadas porcrianças de 8 anos de idade do que outras emoções (MARKHAN;ADAMS, 1992). Borke (1973) demonstrou que crianças de 3 anosde idade reconhecem mais facilmente alegria e tristeza do que medoe raiva. Além disso, misturas de emoções são mais difíceis dedecodificar por crianças e adultos do que emoções puras, e, tal-vez, sua decodificação seja mais susceptível ao treino. Finalmen-te, o comportamento “inato” de expressar emoções é influenciadopor “Regras Demonstrativas” que definem, em cada cultura, quaisexpressões são adequadas a quais situações (DAVIS, 1979).

Pouco se sabe sobre a inter-relação entre fatores inatos e pro-cessos de aprendizagem da comunicação não-verbal. Por exem-plo, vários autores (ALPER, 1991; MESQUITA, 1997; HOLLEY,2002; EKMAN, 2004) dizem que a experiência e treinamento emcomunicação não-verbal são fatores fundamentais para o sucessode profissionais que interagem com pessoas no seu dia-a-dia, comovendedores, advogados, políticos, policiais e terapeutas. No livroDecifrar Pessoas uma das consultoras de júri mais respeitada dosEstados Unidos, Dimitrius e Mazzarella (2000), diz que a percep-ção da face pode ser melhorada com treino e com a experiênciavivida no dia-a-dia das pessoas. Ela utiliza suas habilidades paraanalisar o comportamento não-verbal das pessoas, com previsãodas atitudes dos jurados, advogados, testemunhas e juizes.

Entre as atividades humanas mais antigas e que envolvemfreqüentes interações face a face estão as atividades de vendas novarejo. O comércio livre permeia e influencia as atividadessocioeconômicas desde a antiguidade (GATAZI, 1985) e ocupaatualmente um grande número de profissionais. Segundo Kotler eKeller (2006), aproximadamente 12% dos norte-americanos tra-

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balham com vendas ou ocupações relacionadas, mobilizando maisde 1 trilhão de dólares a cada ano.

Nos cursos para vendedores e na literatura mais recente so-bre vendas e treinamento para vendedores (COBRA, 1997; MES-QUITA, 1997; FURTRELL, 2003; URBANIAK, 2005; KOTLER,KELLER, 2006), comumente se aborda a importância da comuni-cação não-verbal, especialmente das expressões faciais, para osucesso profissional dos vendedores. Saber se expressar e saberdecodificar corretamente os sinais não-verbais emitidos porprospects ajudaria, desta forma, não só o vendedor a efetuar ven-das e, conseqüentemente, sua empresa, como também ajudaria ovendedor a atender às demandas e necessidades dos compradores(FURTRELL, 2003).

A relação entre comunicação e sucesso profissional tambémé sugerida por psicólogos. Ekman (2003) desenvolveu um méto-do de ensino baseado em fotos da face, demonstrando como testa,sobrancelha, olhos, nariz, bochechas, boca e queixo “reagem” adiferentes emoções. Este método, denominado Facial AffectScoring Technique (FAST), é utilizado para treinar as pessoas eprofissionais, como vendedores, policiais, e advogados, a reco-nhecer melhor as expressões de emoções faciais e, assim, ajudá-los no sucesso das suas tarefas diárias (DAVIS, 1979).

Apesar da relevância socioeconômica das atividades de ven-da e da aparente influência da comunicação não-verbal na efici-ência das vendas, poucos estudos trazem dados empíricos sobreesta relação. Ekman (2003) prevê que em poucos anos algumasrespostas fundamentais sobre o estudo da comunicação não-ver-bal estarão disponíveis. Mesmo assim, assume-se que ela exista,ainda que não se saiba ao certo quais aspectos da comunicaçãoestão relacionados à eficiência de venda, e quais destes aspectosseriam mais passíveis de treinamento. Por exemplo, alguns auto-res enfatizam a importância da emissão de sinais não-verbaisadequados, incluindo a aparência, vestuário, aspectos físicos ecarisma (OKUMA, 1990). Outros apontam como fundamental acapacidade de decodificar os sinais emitidos pelos compradores ede não apenas ouvir o cliente, mas também de “sentir” e interpre-tar suas necessidades (COBRA, 1997; FURTRELL, 2003).

Neste trabalho, abordamos de forma empírica duas perguntasespecíficas sobre a relação entre experiência em atividades de ven-

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da e capacidade de decodificar expressões faciais: as constantesinterações face a face tornam os vendedores melhores no reconhe-cimento das expressões de emoções da face humana do que outrossujeitos não vendedores? A capacidade de decodificar bem as ex-pressões de emoções da face de outros indivíduos está correlacionadacom o desempenho do vendedor, ou seja, bons reconhecedores deexpressões de emoções faciais costumam vender mais?

MÉTODOS

Coleta dos DadosA coleta de dados foi conduzida na cidade de Goiânia, com

dois conjuntos de sujeitos: 15 vendedores de produtos e serviçose 100 estudantes universitários matriculados em um curso deAdministração. Trinta e três destes alunos não possuíam nenhu-ma experiência em vendas; os demais 67 estudantes relataramexperiências variadas em vendas.

Todos os sujeitos responderam, em questionário impresso,perguntas sobre sexo, idade, e sua experiência prévia com vendas,medida de forma categórica (até 6 meses; de 6 meses a 1 ano; de1 a 2 anos; de 2 a 4 anos; 4 a 6 anos; com mais de 6 anos) . No casodos vendedores, o questionário também continha itens sobre o graude importância que atribuem a aspectos da comunicação não-ver-bal dos compradores (aparência geral, as expressões do rosto, osgestos, o tom e timbre de voz, o vestuário e a distância física queo comprador mantém do vendedor). A importância atribuída a cadaitem foi medida de forma ordinal (1 para nunca se aplica; 5 parasempre se aplica). A eficiência de cada vendedor foi medida pordados pertinentes a valores de vendas individuais por trimestre,obtidos na administração da empresa.

Após o preenchimento do questionário, os vendedores pro-fissionais e os alunos de administração foram submetidos ao testeLendo Faces, desenvolvido por Ekman (2003). O teste consiste naapresentação de 14 fotos de uma mesma mulher expressandoemoções básicas (Figura 1): duas fotos para tristeza, duas fotospara nojo, uma foto para alegria, cinco fotos para raiva, três fotospara medo e uma foto que demonstrava expressão de desdenho.

Conforme recomendações de Ekman (2003), cada sujeito re-cebia uma folha de papel pautado com linhas numeradas de 1 a 14.

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Na parte de cima do papel, as seguintes palavras estavam escritas:raiva, medo, tristeza, nojo, desdenho, surpresa e alegria. Estas eramas possíveis escolhas para as expressões em cada uma das 14 fotosapresentadas. A face mostrada na foto tinha que ser do mesmo ta-manho que o real. Para isto, cada foto era posicionada a 60cm dedistância dos olhos do sujeito, garantindo ao entrevistado a mesmamargem de distância na sua retina como se uma outra pessoa esti-vesse sentada na sua frente. Cada foto era apresentada por um tem-po médio aproximado de 2 segundos e seguida de um período emque o sujeito podia decidir quais das 7 palavras escritas no topo dapágina melhor correspondia à expressão daquela foto.

É importante reconhecer que a comunicação não-verbal en-volve muito mais do que expressões faciais de emoções básicaspuras ou mistas. Apesar disto, o instrumento desenhado por Ekman(2003) nos pareceu adequado por três motivos. Primeiro, porqueé um instrumento testado e validado em pesquisas com outrossujeitos. Segundo, a leitura correta de expressões universais sãomais susceptíveis ao treino do que sua emissão. Finalmente, nosparece razoável considerar que bons decodificadores de sinais não-verbais como um todo também sejam bons decodificadores destessinais faciais mais básicos e específicos.

Figura 1: Teste de PercepçãoNota: Exemplo das fotos utilizadas no teste de percepção com os sujeitos dapesquisa com expressões de (da direita para a esquerda): raiva, medo, raiva,desdenho.Fonte: Ekman (2003)

Análise dos DadosTécnicas exploratórias foram inicialmente usadas para descre-

ver a amostra e analisar a distribuição das variáveis de controle (sexoe idade) nos 3 grupos de estudo (vendedores, alunos com experiên-

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cia em vendas, alunos sem experiência) e sua possível influência navariável de interesse (“número de acertos” durante o teste de reco-nhecimento de faces). Verificamos ainda, através de testes nãoparamétricos de associação (Qui-quadrado), se as proporções deacertos relativos a diferentes expressões diferiram nos 3 grupos, entresujeitos do sexo masculino e feminino e entre sujeitos de diferentesfaixas etárias. No caso referente à faixa etária, retiramos da análiseos dois sujeitos que não declararam sua idade.

Os resultados da análise exploratória (ver abaixo) permitiramtestar a hipótese de que os três grupos apresentariam diferentescapacidades de decodificação das expressões universais, ou seja,diferentes médias na variável “número de acertos”, sem termosque considerar os efeitos das variáveis de controle. O teste deKolmogorov-Smirnov foi usado para medir a aderência da distri-buição dos números de acertos e a distribuição normal. Apesar dapouca aderência no caso de alunos com experiência (Z=1,373;p=0,046), as distribuições dos valores de “ número de acertos” nogrupo de vendedores (Z=0,865; p=0,443) e no grupo de alunos semexperiência (Z=0,866; p=0,441) não mostraram diferenças signi-ficativas em relação à distribuição normal. Por este motivo, opta-mos pelo uso do teste paramétrico de análise de variância (Anova– SPSS v. 13.0).

Para testar a hipótese de que uma capacidade de decodificaçãodas faces auxilia o vendedor a ser mais eficiente, efetuamos umaanálise não paramétrica de correlação entre as variáveis “volumede vendas” e “número de acertos” para o grupo de vendedores(n=15). Realizamos também uma análise de regressão múltipla,com o volume de vendas de cada vendedor como variável depen-dente e 4 variáveis ordinais como variáveis independentes: “nú-mero de acertos” na decodificação das expressões, “conhecimentodos produtos” à venda, “grau de ambição” do vendedor, e seu“tempo de experiência” em atividades de venda. Todos os paresde variáveis independentes apresentaram correlação fraca e nãosignificativa entre si, o que permitiu uma análise das contribui-ções individuais de cada variável independente, inclusive o “nú-mero de acertos”, na variância do volume de vendas (método“enter” no procedimento de regressão múltipla do SPSS).

Finalmente, avaliamos a relação entre o “volume de vendas”e o reparo do vendedor nos diferentes tipos de comunicação não-

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verbal do comprador. Para isso, realizamos testes não paramétricosde correlação entre a variável contínua do volume de vendas e asvariáveis ordinais medidas no questionário: aparência geral docomprador, expressões do rosto, gestos, tom e timbre de voz, ves-tuário, distância do vendedor.

RESULTADOS

Análise ExploratóriaA tabela 1 resume a distribuição de sujeitos de diferentes sexo

e idade nos 3 grupos que compuseram nossa amostra (sujeitos). Ogrupo composto por vendedores apresentou mais sujeitos do sexomasculino (73,33%) do que o grupo de alunos com experiência(42,42%), e o grupo de alunos sem experiência (43,28%). Apesarda alta porcentagem de vendedores homens poder representar umviés no caso de vendedores, a distribuição de sujeitos masculinose femininos não apresentou diferença significativa entre os 3 gru-pos (x2= 4,824; gl= 12; p= 0,567) e foi bastante semelhante entreos dois grupos de alunos.

A distribuição de sujeitos de diferentes faixas etárias foi ain-da mais homogênea entre os 3 grupos, aproximando-se do acaso(x2= 3,648; gl=12; p= 0,98). Por exemplo, sujeitos entre 18 e 25anos de idade representaram 60,0% de toda a amostra e 60,0%,58,21% e 63,64% de cada grupo de sujeitos. As maiores diferen-ças foram encontradas nos sujeitos de 26 a 35 anos, com predomi-nância maior entre os vendedores (33,33% contra 26,86% e 24,24%de alunos com e sem experiência respectivamente), e nos sujeitosde 36 a 45 anos, mais predominantes entre os alunos com experi-ência em atividades de venda (13,43% contra 6,67% e 3,03% devendedores e alunos sem experiência).

Os sujeitos de diferentes sexos (x2=2,853; gl=12; p=0,98)e de diferentes faixas etárias (x2= 3,532; gl=24; p=0,97) apre-sentaram proporções semelhantes de acertos nos 6 tipos de ex-pressões. Estas semelhanças permanecem quando indivíduos desexo e idade iguais são comparados entre si em função do grupoaos quais pertencem (vendedor, aluno com e sem experiência).Todas as subdivisões da amostra geraram distribuições extrema-mente semelhantes nos tipos de acertos. No geral, as expressõesfaciais mais facilmente reconhecidas pelos sujeitos foram as de

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alegria e tristeza, e as menos reconhecidas foram as de nojo edesdenho.

Tabela 1:Distribuição dos Sujeitos dos Três Grupos de Estudoem Relação às Variáveis de Controle Sexo e Idade

Diferenças Entre GruposOs resultados acima justificam o teste da hipótese de que

vendedores seriam melhores decodificadores de expressões, sema utilização das variáveis sexo e idade como controle (covariáveis).O resultado da Anova univariada não indicou diferenças signifi-cativas entre os 3 grupos (F=1,037; gl=2; p=0,358), ou seja, nãopodemos descartar as hipóteses como nulas de que vendedores nãosão melhores decodificadores do que não-vendedores, e de quealunos com experiência em atividades de vendas não seriam me-lhores do que aqueles sem esta experiência. Além disso, os resul-tados mostraram uma direção diferente na relação entre a variávelindependente e a variável dependente, ou seja, o grupo de vende-dores foi aquele com pior desempenho no teste de Ekman, segui-do dos alunos com experiência de vendas; alunos sem experiênciade vendas obtiveram o melhor desempenho entre os 3 grupos (i.e.,número máximo e médio de acertos; Tabela 2).

Tabela 2:Resultados da Análise Descritiva da Variável ‘Númerode Acertos’ nos Três Grupos de Estudo

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Volume de Vendas, Número de Acertos e Atençãoà Comunicação Não-Verbal

O resultado da Anova indicou, portanto, que os sujeitos ven-dedores não apresentaram maior eficiência na decodificação dasexpressões faciais do que os demais sujeitos. Por outro lado, tantoo número de acertos como o volume trimestral de vendas dossujeitos vendedores variou consideravelmente. Poder-se-ía argu-mentar que nossa amostra teve, inadvertidamente, a tendência detestar vendedores ineficientes na tarefa de decodificar faces, masque ainda assim haveria uma relação entre a capacidade dedecodificação das expressões e a eficiência nas vendas. Esta hi-pótese também não foi confirmada. O teste não-paramétrico deSpearman revelou uma correlação fraca e não significativa entreas duas variáveis para nossa amostra. Além disso, a direção darelação foi inversa à esperada (rho= -0,222; p= 0,213), indicandoque os vendedores com maior volume de vendas tenderam a apre-sentar menos acertos na decodificação de faces do que os queapresentaram menor volume de vendas.

A equação da regressão múltipla (0,911 + 1,918 * tempo deexperiência + 1,781 * conhecimento dos produtos + 0,788 * am-bição – 0,427 * número de acertos), utilizando o método “enter”,mostrou que nenhuma variável sozinha explicou de forma signi-ficativa a variância na variável dependente “volume de vendas”(F= 1,947; gl=4; p= 0,179). Apesar disto, juntas as 4 variáveisexplicaram 43,80 % da variância. A variável “número de acertos”no teste das fotografias foi a que menos contribuiu no modelo,explicando menos do que 2% da variância do volume de vendas(R2= 0,019). Em contraposição, “tempo de experiência em ven-das”, “conhecimento do produto”, e “grau de ambição” relatadopelo vendedor explicaram juntas mais de 40% da variância total(R2= 0,194, 0,141 e 0,080 respectivamente). Em outras palavras,pelo menos em nossa amostra, a capacidade de decodificar expres-sões faciais universais foi bem menos relevante para o sucesso dovendedor do que outras qualidades suas.

Finalmente, a eficiência nas vendas poderia estar sendo in-fluenciada por outros tipos de comunicação não-verbal e não ape-nas pela decodificação de expressões faciais universais. Mais umavez nossos dados apontam o contrário. A tabela 3 mostra o resul-

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tado das correlações entre volume de vendas e a importância dadapelo vendedor aos diferentes aspectos da comunicação não-ver-bal do comprador. Nenhum coeficiente de correlação deu suporteà hipótese de trabalho, e a maioria deles apresentou correlaçõesnegativas: quanto mais importância o vendedor atribuiu ao quesi-to, menor seu volume de vendas. Curiosamente, “expressões dorosto” foi o aspecto que apresentou o maior coeficiente negativode correlação com o volume de vendas do vendedor (rho = -0,200).

Tabela 3:Coeficientes de Correlação Não Paramétrica entre pVolume de Vendas Trimestral e o Grau de AtençãoRelatada por Cada Vendedor para Diferentes Aspectosda Comunicação Não-Verbal do Comprador

CONCLUSÃO E DISCUSSÃO

Os resultados apresentados acima não demonstraram uma rela-ção positiva entre a capacidade de decodificar sinais não-verbais e aexperiência com atividades de vendas. Na verdade, os dados indica-ram uma relação negativa entre estas variáveis. Embora esta relação

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tenha sido fraca e não significativa, os sujeitos vendedores foram osque obtiveram pior desempenho no teste “lendo faces” de Ekman(2003). Entre os sujeitos não-vendedores (alunos), aqueles que nãorelataram nenhuma experiência em atividades de vendas apresenta-ram em média um melhor desempenho que aqueles com experiência.

A relação negativa persistiu quando analisamos o grupo desujeitos vendedores separadamente. Entre estes sujeitos, encon-tramos uma correlação negativa entre o volume de vendas trimes-tral e o desempenho no teste “lendo faces”, e entre o volume devendas e o grau de atenção relatado nos diferentes aspectos dacomunicação não-verbal do comprador. Finalmente, a análise deregressão logística indicou que outros atributos do vendedor, como,por exemplo, o tempo de experiência em atividades de venda, seuconhecimento dos produtos vendidos e seu grau de ambição po-dem ser mais relevantes para seu sucesso do que sua capacidadede decodificar expressões universais de emoções.

Os resultados encontrados não parecem ser artefato de umaamostra mal distribuída ou da inadequação do instrumento (testede Ekman) para os sujeitos brasileiros. A faixa etária e o sexo dossujeitos foram distribuídos de forma similar entre os 3 grupos deestudo. Segundo Ekman, em média, das 14 fotos das expressõesfaciais de emoção, as pessoas acertam 5 fotos e, se bem treinadas,passam a acertar 10 fotos em média. Nossos sujeitos tiveram umdesempenho inferior aos 5 acertos, em média, indicado por Ekman.Por outro lado, a distribuição de acertos por sexo, idade e grupode pesquisa foram consistentes entre si e com o esperado, com baseem trabalhos prévios: maior porcentagem de acertos para alegriae tristeza, menor para nojo e desdenho (WALDEN; FIELD, 1982).

Apesar da consistência dos resultados, precisa-se de cautelapara interpretá-los. A literatura, os cursos sobre vendas e as publi-cações científicas indicam uma relação entre comunicação não-verbal e sucesso profissional que parece bastante razoável do pontode vista lógico. Há até trabalhos que corroboram de certa formaesta relação. Por exemplo, Peterson (2005) realizou uma pesquisacom estudantes de um curso de vendas e trabalhou o desenvolvi-mento de uma linguagem não-verbal mais adequada para o aten-dimento do cliente. Os vendedores que foram treinados nestapostura não-verbal mais assertiva obtiveram um resultado melhornas vendas do que os que não receberam treinamento.

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Além disso, “comunicação não-verbal” é um termo bastanteamplo cuja complexidade é muitas vezes subestimada. Emcontraposição à linguagem simbólica, ícone da capacidadecognitiva humana, a comunicação não-verbal foi por muito tempoconsiderada um exemplo de comportamentos mais simples queherdamos de nossos ancestrais e mediada por processosmotivacionais mais simples e inflexíveis (SNOWDON, 2004;MENDES, CARDOSO, no prelo). Talvez por isso pensa-se nelacomo algo menos complexo e diversificado do que ela realmenteé. Estudos com humanos (ver revisão em KNAPP; HALL,1999)e com animais (PARTAN; MARLER, 2005) mostram que a co-municação não-verbal muitas vezes envolve múltipos interagentesque emitem simultaneamente vários sinais oriundos de diferentescanais. Ou seja, nem mesmo no caso de insetos e outrosinvertebrados (HEBETS; PAPAJ, 2005), a emissão e decodificaçãode sinais é uma tarefa simples e unidimensional.

Quando se pensa na comunicação entre comprador e vende-dor, necessariamente se pensa em um processo bastante dinâmicoe complexo. Tanto comprador(es) como vendedor(es) emitem si-multaneamente uma série de sinais visuais e sonoros e, menosfreqüentemente, sinais táteis e químicos, e o fazem enquanto con-versam. É bastante razoável acreditar que bons comunicadores te-nham sucesso não só para vender produtos como também pararealizar compras de forma satisfatória. Esta relação pode se dar demuitas formas distintas, e não há embasamento empírico para asinúmeras considerações a respeito. Que tipos de sinais emitidos pelosvendedores aumentam suas chances de vender: Que sinais do com-prador o ajudam a efetuar uma compra satisfatória e que sinais,quando bem decodificados, auxiliam o vendedor a melhorar suaestratégia de venda? A decodificação destes sinais é feita de formamulticanal? Quanto e como o conteúdo semântico da fala altera aeficiência da comunicação não-verbal? Como e quanto se podeaprender a ser um bom comunicador não-verbal? Perguntas comoestas são essenciais, mas carecem de mais dados quantitativos.

O termo “eficiência do vendedor” (volume trimestral de ven-das, por exemplo) talvez seja mais facilmente operacionalizado doque “comunicação não-verbal”, mas é certamente uma variávelinfluenciada por inúmeros fatores, como, por exemplo, o tipo deproduto vendido, a localização do estabelecimento, o momento da

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economia local, entre outros. Tentamos eliminar o efeito de algunsdesses fatores ao comparar vendedores dos mesmos produtos de umúnico estabelecimento. Esta restrição e a necessidade de dados sobreo volume de vendas de cada sujeito ilustram a dificuldade de obten-ção de amostras grandes de vendedores. Mesmo assim, é difícilavaliar o quanto variáveis intervenientes podem alterar o desempe-nho de um número relativamente reduzido de vendedores (n=15).Pesquisas como as de Peterson (2005), com desenho experimentalentre sujeitos (testes pareados), parecem de grande valia.

Resumindo, por mais lógica e simples que pareça, a relação entrecomunicação não-verbal e as atividades profissionais que envolveminterações sociais freqüentes pode ser bem mais ampla ediversificada. Estudos empíricos com hipóteses mais precisas so-bre como aspectos específicos da comunicação e da atividade pro-fissional se influenciam mutuamente são extremamente importantes.No caso das atividades profissionais de vendas, dados empíricos maisespecíficos podem embasar estratégias que beneficiem tanto ven-dedores como comparadores (FURTRELL, 2003). Nossos resulta-dos indicam que a capacidade de decodificar expressões faciaisuniversais tem pouco a ver com a experiência em atividades devendas, e que esta capacidade não contribui de forma significativapara a eficiência do vendedor. Por outro lado, decodificar expres-sões faciais universais é apenas um aspecto bastante específico daface humana, que é apenas um dos muitos veículos da comunicaçãovisual, que é um de 4 canais de um fenômeno bastante complexo:a comunicação não-verbal humana. Entender de forma mais empíricaessas relações tem relevância prática para empresas e profissionaisde vendas. Ao tratar de um comportamento humano com históriafilogenética bastante antiga, estudos sobre sinais não-verbais sãotambém ótimos objetos para o estudo de como a experiência de vidae regras socioculturais influenciam pré-disposições inatas e, por-tanto, a flexibilidade comportamental humana.

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Abstract: this study investigates the influence of non-verbalcommunication on the efficiency of salespersons, through an analysisof how well different subjects can perceive/recognize universal facialexpressions of emotions. Our subjects were 15 salespeople employedby a retail and service company and 100 graduate business studentsof a university in Goiânia. A questionnaire and the ‘reading faces’test (Ekman (2003) were applied to each subject. The test consistsof 14 photographs of the face of a same person with facial expressionsof sadness, disgust, happiness, anger, fear and disdain. Thehypthesis, that the more one knows how to interpret emotional facialexpressions, the more successful persons are in their sales results(as presented in the literature), was not confirmed, although it wasdemonstrated in the study that all the salespeople tend to make useof non-verbal communication in their daily activities.

Key words: sale, nonverbal communication, facial expression

RAQUEL SANTANA SCHIAVON SANCHEZMestre em Psicologia pela Universidade Católica de Goiás (UCG). Especialistaem Comércio Exterior pela UNIP. Graduada em Administração pela UCG. Pro-fessora na graduação e pós-graduação na Universidade Salgado de Oliveira, noSenai e na Faculdade Ávila.

FRANCISCO D.C. MENDESDoutor em Psicologia Experimental pela USP. Graduado em Antropologia Físi-ca pela San Diego State University. Professor Titular da UCG. Pesquisador eorientador de trabalhos sobre Etologia e Psicologia Evolucionista no Programade Pós-graduação em Psicologia da UCG.

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Resumo: este artigo apresenta a fundamentação filosófico-psicológica da dimensão humana da tecnologia que susten-ta a moderna Teoria das Relações Humanas nos programasde Desenvolvimento Organizacional (DO), a partir da dé-cada dos 1930, e que supera e enriquece a clássica Teoriada Administração Científica, com seus postulados apenaspragmático-econômico-produtivos. Nessa perspectiva, des-taca o trabalho dos professores brasileiros: Fela Moscovicie Idalberto Chiavenato.

Palavras-chave: desenvolvimento organizacional, relaçõeshumanas, tecnologia, razão instrumental, abordagemholística

Pagarei mais pela habilidade de lidarcom pessoas do que por qualquer outra

no mundo. (John D. Rockefeller )

partir da década de 1930 e graças a obras como Thehuman problems of an industrial civilization (1933),de Elton Mayo, e Management and the worker (1939),

de Fritz J. Roethlisberger e W. Dickson, publicadas pela Uni-versidade de Harvard, cuja temática é o impactodespersonalizador da organização industrial, calcada no dese-

SATURNINO PESQUERO RAMÓN

A PRIORIDADE DO INDIVÍDUO

NOS PROGRAMAS

DE DESENVOLVIMENTO

ORGANIZACIONAL (D. O.)

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nho da Administração Científica de Taylor, Gilbreth e Gantt, surgea necessidade de superar esse modelo organizacional e substituí-lopor outro que vise, nas organizações empresariais, não apenas o de-senvolvimento tecnológico, no seu aspecto produtivo, senão tam-bém o desenvolvimento humano, que o próprio desenvolvimentotecnológico exige e propicia (HERSEY/BLANCHARD, 1986). Defato, essa teoria organizacional clássica do início do século XX temcomo ponto de partida uma concepção do ser humano apenasutilitarista e materialista.Nela, permeia a concepção do chamadoHomo oeconomicus, para o qual as únicas motivações e aspiraçõesexistenciais seriam as da ganância e do consumo, ilustradas pelaexpressão “the struggle for gold” (a luta pelo ouro) dos que cultuamo mítico rei Midas.Tal abordagem alicerça-se, fundamentalmente,em dois princípios básicos: primeiro, o do controle da tarefa; se-gundo, o da procura do método produtivo mais econômico e funci-onal, visando o máximo de lucro para enriquecimento de todos eassim criar uma sociedade de produção e consumo. Nesse modeloorganizacional, os funcionários são tratados apenas como recursosde produção e valorizados pelas aptidões e habilidades que possu-em para o exercício de uma determinada função. A dimensão pes-soal do indivíduo com suas necessidades de auto-realização humanasão postas de lado. O filme Tempos modernos de Charles Chapliné uma paródia mordaz a este modelo de civilização industrial, querobotiza o ser humano. Outros filmes, também famosos, em que atemática da relação homem-técnica é explorada (Doze homens sempiedade, de Sidney Lumet; Cidadão Kane,de Orson Welles, eGerminal, de Claude Berri) ilustram a importância do tema.

Os psicólogos citados, junto com outros, como, por exemplo,Lewin não se limitaram a constatar apenas os efeitos negativosdesse modelo mecanicista, racionalista e desumanizador da teoriaorganizacional, inventada pelos engenheiros da referida Teoria daAdministração Científica.No campo da prática, como ilustração,é de todos conhecida a eficácia da técnica da Análise e Campo deForças de Lewin para alcançar, em qualquer tipo de organização,uma “verdadeira integração”dos objetivos, no caso, produtivos daempresa e dos objetivos pessoais dos subordinados (HERSEY/BLANCHARD, 1986, p.144).

Esse novo modelo organizacional almeja substituir a concep-ção do Homo oeconomicus pela do Homo socialis, cuja motiva-

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ções básicas não são apenas a ganância, merecida pelo trabalhosuado, a satisfação de suas necessidades de consumo, senão tam-bém as oriundas do imperativo da própria auto-realização huma-no-existencial, principalmente, na situação do trabalho, queconsome a maior e melhor parte da sua vida e lhe possibilita de-senvolver as capacidades de relacionamento interpessoais e cria-tivas. Por esse motivo, os defensores da Teoria das RelaçõesHumanas norteiam todo seu esforço teórico e prático a partir des-ses dois objetivos básicos: alcançar que o homem seja um agentecriativo no processo produtivo e não apenas uma peça na engre-nagem da máquina empresarial; cultivar, com todos os meios detreinamento possivel e de organização laboral, seu desenvolvimen-to interpessoal e intrapessoal, tendo em vistas sua saúde física emental, assim como seu ajustamento e realização pessoal e social.

Por outro lado, essa nova teoria organizacional, de caráterhumanista, visa resgatar a verdadeira função da tecnologia a ser-viço do homem e não a de uma tecnologia que o suplanta e escra-viza e pode, até, destruí-lo. O problema de como o homem lidacom o poder da tecnologia que ele mesmo cria mostra-se com maiorcrudeza em nosso tempo depois dos resultados nefastos das duasúltimas guerras mundiais, quando os avanços tecnológicos servi-ram grandes parcelas da humanidade e ameaçam aniquilá-la. Hojequestiona-se a velha concepção dos pensadores ilustrados quecolocaram no pedestal a técnica como motor do desenvolvimentoda humanidade sem apontar os riscos de tal endeusamento.

A resposta dada a esse problema pela teoria das RelaçõesHumanas parte do pressuposto antropológico milenar de que ohomem é um ser dotado da chamada razão instrumental, facul-dade que lhe possibilita criar ferramentas (tecnologia) e símbo-los (a linguagem como instrumento de comunicação e interaçãosociais), e, de posse de tais recursos,o homem pode ter domíniode si mesmo e da Natureza. Conforme a moderna tesewygotskiana sobre o desenvolvimento humano, a atividade quedesenvolve os processos mentais superiores “é uma atividademediada socialmente significativa”, cuja fonte de mediaçãopodem ser “uma ferramente material, um sistema de símbolosou a conduta de outro homem” (KOZULIN, 1994, p. 115). Sobe-ja sublinhar que todos esses “mediadores” pertencem ao reinoda citada razão instrumental humana.

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Para entender melhor o alcance dos pressupostos filosófico-antropológicos subjacentes à Teoria das Relações Humanas e seusprogramas de Desenvolvimento Organizacional (DO), faz-se ne-cessário mostrar o caminho aberto pelo pensamento de algunsfilósofos sobre dois temas complementares entre si: a faculdadecriativo-teconológica como traço constitutivo e distintivo da es-pécie humana e o caráter humanizador ou subjetivante do exercí-cio dessa mesma polifacetada faculdade.

Na Antigüidade, dois pensadores sobressaem-se: Platão eAristóteles. O primeiro, numa perspectiva mitológica originária quetranspassa os limites do tempo, sustenta a tese de que a especificidadedo ser humano reside nesta ímpar dupla faculdade humana: a inte-ligência somada à capacidade técnica que dela deriva. Ambos ospoderes foram roubados por Prometeu no ateliê dos deuses, Hefestoe Atená, unidos eternamente pelas energias intelectuais e artísticasou tecnológicas que encarnam (BRANDÃO, 1987).

De Hefesto, o deus coxo e considerado o ferreiro e ourivesdivino, foi roubado o fogo, que personifica seu amor-paixão pelomister técnico, a philotekhnia. De Atená foi roubada a inteligên-cia ou saber criativo, a philosophia.

Eis uma síntese de como Platão, num dos trechos do diálogo:Protágoras ou dos sofistas, ao estilo do Gênesis bíblico, relata omito da criação do homem e seus singulares atributos. Os deuses,depois da Criação, encomendaram a Epimeteu que provesse a cadauma das espécies animais das qualidades necessárias para sua so-brevivência. Assim: “deu a uns a força sem velocidade, a outros,velocidade sem força”, dotando a todos dos meios necessários parapoder sobreviver. Prometeu veio examinar o trabalho de seu irmãoe ficou surpreso ao constatar que ele tinha esquecido alguma coisa:o homem – ao contrário de todas as outras espécies criadas, devida-mente equipadas para sobreviver – “estava nu, sem calçado nem vestenem armas”. Então, Prometeu, sem saber o que fazer para salvar ohomem dessa situação, decidiu-se por “roubar a sabedoria artística[ou tecnológica] de Hefesto e Atená e, ao mesmo tempo, o fogo –suposto que sem fogo era impossível que essa sabedoria fosse ad-quirida por alguém ou que fosse útil para qualquer serviço”. Feitoisso, entregou o fruto de seu roubo ao homem que assim passou a ter“posse das artes [tecnologias,recursos] úteis para a vida” (PLATÃO,1990, p.168).

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Por sua vez, Aristóteles, numa perspectiva epistemológica, aorefletir sobre os modos de saber humanos, associa o sabertecnológico (tékhne) ao saber da ciência (epistéme), junto com osaber da prudência ou eticidade ( frónesis). Dessa forma, alcançaas duas dimensões do saber técnologico: inteligente-criativo e éticohumanizador. Na Metafísica explica o caráter inteligente-criativodo saber tecnológico. Em sua explanação, parte desse axiomabásico: “O homem chega ao saber da ciência e da tecnologia atra-vés da experiência (empeiria) (ARISTÓTELES, 1990, p. 4, 481a).

Zubiri (1980) resume a doutrina aristotélica sobre as caracte-rísticas do saber tecnológico com estas proposições: o sabertecnológico é superior ao saber merante empírico, suposto queconhece as causas dos fenômenos; o saber empírico é apenas par-ticular enquanto o saber tecnológico é universal; o sabertecnológico é comunicável ou transmisível; o saber tecnológicopressupõe um conhecimento (sophos) dos fenômenos que se tra-duz em obras criativas [poéticas] e não apenas repetitivas.

Na Ética Nicomáquea, Aritóteles explica o caráter ético ouhumanizador do saber tecnológico à luz de sua doutrina sobre osaber da prudência ou eticidade (frónesis) que deve acompanhá-lo sempre e ditar-lhe sua verdadeira finalidade. A esse respeito,didático, partindo do exemplo de Péricles (o deus grego que per-sonifica os atributos de uma sociedade – polis – ideal) e de “outraspessoas do mesmo gênero que souberam determinar aquilo que évantajoso para elas mesmas e para os homens em geral”, explicaque a finalidade da tecnologia não se reduz à da produção.Ela deveter como objetivo primordial o bem do homem e da socidade. Assimele se expressa: “Faz-se necessário, dessa maneira, que a prudên-cia (frónesis) seja uma disposição [conduta ética] acompanhadade razão verdadeira [sábia inteligência] dirigida à ação e comreferência a distinguir aquilo que é bom ou nocivo para o homem”(ARISTÓTELES, 1991, p. 407, 1140b).

Na época contemporânea, desponta a figura do pensador MartinHeidegger, que, numa perspectiva ético-existencial, reflete sobre ossignificados da tecnologia. Seu pensamento, a esse respeito, estáexposto, principalmente, nos ensaios: Construir, Habitar, Pensar”(1951); ...Poeticamente o Homem Habita... (1951); A Questão daTécnica (1953); Ciência e Pensamento (1953), reunidos entre ou-tros, na obra Ensaios e conferências (2001). Nos dois primeiros

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ensaios, Heidegger expõe as proposições básicas de sua reflexãosobre estes três temas correlatos: ciência, técnica e arte. Como pon-to de partida, tece um comentário hermenêutico acerca destas pala-vras extraídas de um poema tardio de Holderlin (apud HEIDEGGER,2001, p. 168): “Cheio de méritos, mas poeticamente, o homem habitaesta terra”. Esse pensamento gravita ao redor de um postulado éti-co-existencial básico: “somente em sendo capazes de habitar(wohnen) [no sentido de tornar-nos humanos, pela condição do ser-aí sobre a terra] é que podemos construir (bauen) [ou seja, usar atecnologia]” (HEIDEGGER, 2001, p. 139). Ou, dito em outraspalavras: ao homem somente é permitido desenvolver e exercitarsua faculdade da razão instrumental no caso de usá-la para seu pró-prio desenvolvimento humano e, o de toda a Humanidade, passan-do ela a ser, dessa forma, a principal ferramenta para cumprir seudesígnio divino de ser co-autor na finalização da obra da Criação doUniverso.

Mas, afinal, pergunta-se Heidegger (2001. p. 125): “o que éhabitar? e em que medida pertence ao habitar um construir?”. Àprimeira pergunta responde que nós, os humanos, de fato habita-mos a Terra somente quando

resguardamos e respeitamos e estamos inseridos ativamentena estrutura inteira ou holística do Universo, chamada peloautor de ‘quadratura’ por abranger as quatro regiões onde ohomem se auto-realiza ou auto-individualiza criativamente,pelas experiências propiciadas pela relação com essas regi-ões. São elas: a Terra, o espaço sideral, a divindade e aintersubjetividade. Lacônico explica: ‘Salvando a Terra,acolhendo o céu, aguardando os deuses, conduzindo os mor-tais, é assim que acontece propriamente um habitar’(HEIDEGGER, 2001, p.130).

À segunda questão, sobre como o ato do autêntico habitarcondiciona um construir humano, responde com o exemplo daconstrução de uma casa componesa na Floresta Negra, que, se-gundo ele, cumpriria todos os requisitos de uma construção hu-mana determinada pelo imperativo do habitar humano propugnado.Nela, pois, é resguardada a inteireza da “quadratura”, antes men-cionada. Vejamos: construída, na encosta da montanha, serve de

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abrigo para melhor cultivar a terra; deixar à vontade o calor dosol, a força dos vendavais e das chuvas celestes; há ainda, “atrásda mesa comensal” um espaço sagrado para o oratório; não faltatampouco o espaço para vários quartos que prefiguram o respeitoao outro nas “suas várias idades de uma vida, no curso do tempo”(HEIDEGGER, 2001 p. 139).

O autor conclui suas reflexões sobre o sentido datecnologia a serviço da humanização e da obra inacabada da Cri-ação, com o exemplo do com o problema premente, endêmico ecrônico da falta de moradia dos chamados “sem teto”. Explica queo problema de não ter moradia material, em termos humanos, seria,de certo modo, menos grave do que o problema da falta de cons-ciência do “saber habitar” a Terra e, a partir daí, descobrir a faltade uma tecnologia que crie moradias “habitáveis”no sentido exis-tencial exposto. Escreve:

A crise propriamente dita de habitação é, além disso, maisantiga do que as guerras mundiais e as destruições, maisantiga também do que o crescimento populacional na Terrae a situação do trabalhador industrial. A crise propriamentedita do habitar consiste em que os mortais precisam semprede novo buscar a essência do habitar, consiste em que osmortais devem primeiro aprender a habitar (HEIDEGGER,2001, p. 140).

Todas essas considerações preliminares antropológico-filo-sóficas, como foi anunciado, têm a finalidade de fundamentar emelhor explicar a dimensão humanista que norteia os programasde mudança ou Desenvolvimento Organizacional (D.O.) objetodo presente estudo. Vale dizer: tem como objetivo destacar a im-portância dada ao desenvolvimento global do indivíduo nas cons-tantes mudanças organizacionais que se fazem necessárias e seoperam em todas as instituições e, dessa forma, poder acompa-nhar as rápidas transformações que acontecem no meio científi-co, tecnológico, econômico, social, ético etc... Essastransformações caracterizam a vitalidade da história hodierna Opensamento de alguns profissionais dessa área traduzem, em al-guma medida, os postulados antropológico-psicológicos acimaanalisados, conforme ilustram os tópicos desenvolvidos a seguir.

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AS POTENCIALIDADES DO HOMEM QUE FAZ EFAZ-SE NA ORGANIZAÇÃO DO MUNDO LABORAL ESOCIOCULTURAL

No prefácio da obra intitulada O Indivíduo na organização:dimensões esquecidas, publicada no Brasil em 1996, que recebeuo prêmio François-Albert Angers, instituído em 1991 pela HECMontreal, seu organizador, Chanlat (1996, p. 17), explica:

Tomando a iniciativa, em outubro de 1990, de criar na Écoledes Hautes Études Commerciales de Montréal (H. E. C.) oGroupe Humanisme et Gestion, desejei institucionalizar práti-cas de pesquisa, ensino e desenvolvimento internacional quetivessem como denominador comum preocupações humanistase interesse em fazer contrapeso à hegemonia de valores exclu-sivamente econômicos no domínio da gestão de negócios.

A obra pretende preencher uma lacuna existente no corpo dasteorias “heterogêneas e mesmo heteróclitas”

que estudam ocomportamento organizacional, deixando delado os mais recentes conhecimentos das ciências humanas bá-sicas (AUDET; MAOUIN, 1986; DÉRY, 1988; WHITLEY, 1984)[...] – Com esse objetivo seus autores tratam dessas dimensõeshumanas esquecidas –: a dimensão cognitiva e a da lingua-gem, a dimensão espaço-temporal, a dimensão psíquica eafetiva, a dimensão simbólica, a dimensão da alteridade, adimensão psicopatológica (CHANLAT, 1996, p. 23).

Nessa perspectiva teórica, propugna uma teoria antropológi-ca das organizações que resgate o poder humanizador da tecnologia, como exercício da razão intrumental humana, em cinco níveis ouordens de atuação:

• O individual: nesse âmbito, tem-se operado uma mudançade mentalidade, no sentido de que o homem já não é vistocomo massacrado pelo coletivo e pelo trabalho e sim como“um indivíduo que participa da construção e destruição darealidade, de uma pessoa que é ao mesmo tempo sujeito emato e um ator de sua historicidade”, parafraseando estas

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palavras de Coulon (1997, p. 45), na sua obraL’Ethnométhologie :

Um membro não é apenas uma pessoa que respira e pensa, éuma pessoa dotada de um conjunto de procedimentos, de mé-todos, de atividades, de vivências [ os da razão instrumental]que a torna capaz de inventar dispositivos de adaptação paradar sentido ao mundo que a cerca (CHANLAT, 1996, p. 35-6).

• O interacional: trata-se da região da alteridade. As atividadesnesse campo são determinadas pelo postulado básico de ohomem construir e consubstanciar sua identidade e subjeti-vidade com base na relação com o outro. A esse respeito, fazsuas as palavras de Lain (apud CHANLAT, 1996, p. 36):

Toda identidade requer a existência de um outro; de algumoutro com uma relação graças à qual se atualiza a identida-de de si próprio. Nessa área, conforme sintetiza, citando osprincipais teóricos implicados, distinguem-se três categori-as ou formas de relações interpessoais: a da relação socialbásica, chamada de relação face a face ou self / outro,objetode estudo, principalmente da psicologia social (HARRÉ,1979; FISCHER, 1987); da microssociologia (GOFFMAN,1973, 1974 e 1988); da etnometodologia (GARFINLEK,1967; COULON, 1987); a da relação ego-massa e que deuorigem a sociologia (LE BOM, 1963; MOSCOVICI, 1981);a da relação grupo-grupo, sendo objeto de estudo, de modoparticular, da sociologia (ROCHER, 1968; JAVEAU, 1976);e, finalmente, a da antropologia social (EVANS-PRITCHARD, 1969) .

• O organizacional: trata-se do âmbito social ou de trabalhoem que o homem exercita a razão instrumental. Esse qua-dro social de referência pode ser dividido nesses doissubsistemas: o estrutural e material e o simbólico. O pri-meiro remete as “condições ecogeográficas, os meios ma-teriais para assegurar a função de produção de bens ou deserviços”. Já o segundo subsistema “remete ao universo dasrepresentações individuais e coletivas que dão sentido às

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ações, interpretam, organizam e legitimam as atividades eas relações que os homens e mulheres mantêm entre si”(CHANLAT, 1996, p. 40).

• O societário: é o nível da sociedade e da cultura em que cadaindivíduo se desenvolve humanamente conforme a tesevigostskiana inicialmente exposta. Esse conceito está cla-ramente sintetizado em Chanlat (1996, p. 42): “O nível dasociedade engloba , penetra e irriga o universo dos indiví-duos , das interações e da organização, pois a sociedade ésentido, domínio e condição do sentido. Todo ser humanoé de fato o socializado de determinado meio”.

É no universo da cultura material e espiritual – assimilado peloindivíduo e, dialeticamente, enriquecido por esse mesmo indivíduo,conforme a capacidade criativa – que a razão instrumental humanarevela-se dona e depositária de todos os logros histórico-culturais,que caracterizam e diferenciam cada povo da Terra e guarda seussilenciados poderes geradores infindáveis para novas conquistas.

• O mundial: nunca foi tão atual a previsão/constatação deMcLuhan sobre o mundo tornar-se, cada vez mais, “umaaldeia global” e, em consequência, o homem tornar-se umcidadão do mundo. Chanlat (1996, p. 43-4), partindo dessaconstatação de que “em algum momento de sua história, todasociedade se insere em uma rede de relações econômicas,sociais, políticas e culturais mais ampla”, explica que essamúltipla ampliação de fronteiras, nas sociedades hodiernas,tem três características próprias que a distinguem da confi-gurada em outras épocas. A primeira diz respeito àabrangência, hoje global e não apenas regional. A segundarefere-se à lógica econômica dessa mundialização: hoje ocapitalismo clássico é substituído pelo capitalismo financei-ro. A terceira relaciona-se ao surgimento, após a SegundaGuerra Mundial, de organizações supranacionais, tais comoONU, UNESCO, FMI etc, cuja finalidade manifesta seria atentativa de construção de uma nova ordem internacional.

Chanlat (1996, p. 44), como conclusão de sua proposta danecessidade de uma antropologia das organizações para melhor

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entender a dinâmica do indivíduo que as faz e faz-se nelas, es-creve:

Os cinco níveis que mencionamos estão em constanteinteração. O indivíduo constrói-se em sua relação com o outro,mais frequentemente em um quadro de relações organizadas,na relação que ele mantém com a sociedade e que essa últi-ma mantém com outras sociedades.

O MODELO HOLÍSTICO DE DESENVOLVIMENTOHUMANO E ORGANIZACIONAL

No Brasil, como exemplo de aplicação no campo do Desenvol-vimento organizacional dos postulados filosófico-antropológicosaqui apresentado, cabe destacar a obra da professora da FundaçãoGetúlio Vargas, do Rio de Janeiro, Fela Moscovici, com mais de 30anos dedicados a escrever, pesquisar e ensinar sobre o desenvolvi-mento educacional, pessoal, interpessoal e organizacional. Entre seusnumerosos escritos, alguns publicados no estrangeiro, destacam-seestas duas obras: Desenvolvimento interpessoal-treinamento emgrupo (1975) e Renascença organizacional: a revalorização dohomem frente à tecnologia para o sucesso da nova empresa (1996).Esta última, cuja perspectiva existencial é o desenvolvimento hu-mano integral está voltada para a finalidade prático-profissional deformar executivos que dirigem empresas, uma vez que

a figura principal e decisiva na transformaçãoorganizacional, é o gerente, em qualquer nível, como liderde grupos funcionais e, portanto, elemento multiplicador deinfluências mutantes na cultura da organização(MOSCOVICI, 1996, p. 103).

A autora preconiza as vantagens do modelo holístico de de-senvolvimento gerencial, argumentando que este “abre um espa-ço promissor para recuperar a dimensão humana na organizaçãotecnológica e valorizar o homem além das máquinas”(MOSCOVICI, 1996, p. 103).

De um lado, essa obra é uma reflexão crítica sobre o alcancedo problema da relação homem-tecnologia, com base na vivência

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da autora em seu campo de atuação profissional: desenvolvimen-to humano nas organizações empresariais. A trilha de seu pensar,constrói-se de forma intuitiva e, diria, graças à lei junguiana dasincronicidade. De fato, a autora não cita Heidegger,em seu estu-do; no entanto, segue os passos do pensamento do filósofo ale-mão. Este, como já foi comentado, com a metáfora holderlinianado “habitar poeticamente a Terra”, afirma que o problema de conci-liar, de forma potencializadora e criativa, o homem e a tecnologiasomente existem no caso de o homem não ter consciência do sen-tido de “habitar” (aspecto humano) sem o qual lhe é vetado ou torna-se nefasto seu “construir”(tecnologia). Quando isso acontece,faz-se necessário que o homem “aprenda a habitar”, resguardan-do, assim, as quatro regiões que compõem a inteireza da“quadratura” holística, em que ele está existencialmente inseridoe se auto-realiza como co-autor da obra inacabada de Criação. Porsua vez, Moscovici, partindo do fato histórico, desolante epreocupante de uma tecnologia que desumaniza, pergunta-se: como“resgatar o humano na tecnologia?” e a seguir responde que asolução também consiste em aderir às exigências do modeloholístico. Ou seja, tal como é preconizado no modelo da“quadratura” do habitar heideggeriano, cabe aos humanos “resga-tar o equilíbrio perdido da sua relação com a natureza [terra]; como cosmo [céus]; recuperar a relação autêntica dos homens entre si,do homem com seu semelhante [alteridade] (MOSCOVICI, 1996,p. 2). Completa a “quadratura heideggeriana” de seu paradigmaholístico, ao preconizar, no final de seu escrito, a necessidadehumana de explorar “experiências místicas [deuses] que fazemparte da vida, de forma espontânea ou provocada, conforme dis-ponibilidade, motivação e orientação valorativa da pessoa”(MOSCOVICI, 1996, p. 102).

De outro lado, a obra analisada constitui uma proposta de de-senvolvimento organizacional com base nas duas iniciativas: desen-volver holisticamente todas as potencialidades do homem no mundoorganizacional produtivo e implantar a organização holográfica. Àluz do novo paradigma epistemológico de caráter inclusivo, dinâ-mico não-mecanicista, propugnado pela física quântica, do sabermilenar das religiões orientais, do pensar filosófico existencial e danova psicologia da intersubjetividade, sua autora tece sugestões paraimplantação e execução das duas propostas assinaladas.

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Sobre a importância, urgência e viabilidade da implantação deum modelo holístico de desenvolvimento humano nas empresas,escreve: “Um desempenho efetivo num ambiente crescentementecomplexo e competitivo requer do gerente o uso de todos os seusrecursos, energias e talentos. O amplo espectro dos recursos dohomem inclui os de ordem física, mental, emocional e espiritual”.E, a propósito dessa inovadora abordagem, assinala que ela “estácomençando a ser aplicada em algumas empresas pró-ativas, emprogramas heterodoxos de Desenvolvimento Interpessoal eGerencial” (MOSCOVICI, 1996, p. 100).

E, a respeito do que deve ser entendido por uma organizaçãoholográfica, esclarece:

Cabe afirmar que a organização holográfica não é um mode-lo de estrutura organizacional na acepção técnica de teoriaadministrativa. Ela é muito mais uma concepção filosóficade funcionamento humano em integração natural [...] é umavisão metafísica, um panorama de possibilidades e esperan-ças, não um conjunto de regras (MOSCOVICI, 1996, p, 118).

O FATOR HUMANO E A TECNOLOGIA COMODETERMINANTES DA AUTO-RENOVAÇÃOORGANIZACIONAL

Idalberto Chiavenato, autor de mais de 20 livros, a maioriapublicada em espanhol, é figura de destaque nacional e internacionalna área de administração geral e de recursos humanos. Sobre o temade que trata o presente estudo, cabe destacar a edição compacta desua obra Recursos humanos (1998). Segundo Chiavenato, impõe-seuma perspectiva pragmático-competitiva, exigida pelas circunstân-cias de uma globalização dos negócios protegida sob a êgide daspalavras de ordem: “produtividade, qualidade e competitividade”. Emface disso, propugna a necessidade de um modelo organizacional quepriorize o social ou humano e o tecnológico como determinantesbásicos de renovação e atualização. Nesse modelo ,

as pessoas deixam de ser o problema das organizações paraser a solução de seu problema. As pessoas deixam de ser o

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desafio para tornar-se a vantagem competitiva das organi-zações que sabem lidar com elas. As pessoas deixam de sero recurso organizacional mais importante para se tornar oprincipal parceiro no negócio (CHIAVENATO, 1998, p. 15).

De acordo com Chiavenato (1998, p. 40), nesse modelo, asdemandas tecnológicas das

exigências de tarefa, ambiente físico, equipamento disponívelexigem uma organização tecnológica (equipamentos e arran-jos de processos) assim como uma organização de trabalho (en-volvendo aqueles que desenvolvem as tarefas necessárias).

Vale dizer: sob o prisma filosófico- antropológico exposto,isso significa que o exercício da razão instrumental humana nãose realiza apenas na construção de máquinas para controle danatureza física, mas também na construção de processos e estru-turas organizacionais que racionalizem e potencializem o mundoda produção, tornando-as mais eficientes e humanas. Como exem-plo assinala (CHIAVENATO, 1998, p, 39) o

modelo sociotécnico de Tavistock, idealizado, inicialmentepor psicólogos e sociólogos do Instituto de Tavistock, deLondres, que, segundo seus criadores teria esse postuladobásico: ‘Toda organização consiste em uma combinação ad-ministrada de tecnologias e pessoas, de tal forma que ambosos lados se achem em inter-relação recíproca’.

No mesmo trecho assinala, todavia, que tal modelo está cons-tituído por estes três subsistemas básicos:

• o sistema técnico ou de tarefas, que inclui o fluxo de traba-lho, a tecnologia envolvida, os papeis requeridos pela tare-fa e outras variáveis tecnológicas.

• o sistema gerencial, ou administrativo que inclui a estrutu-ra organizacional, as políticas, os procedimentos e as regras,o sistema de recompensas e punições, as maneiras pelasquais as decisões são tomadas e outros elementos projetadospara facilitar os processos administrativos.

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• o sistema social ou humano, que é relacionado com a cul-tura organizacional, com os valores e as normas e com a sa-tisfação das necessidades pessoais; também incluídos nosistema social estão a organização informal, o nívelmotivacional dos membros e suas atitudes individuais.

Essa nova filosofia, que defende um uso humanizador e cri-ativo da tecnologia, está cada vez mais subjacente aos programasde Desenvolvimento Organizacional das empresas produtivas etambém presente nas outras modalidades de organização huma-na. Pelos exemplos expostos, não resta dúvida que há lugar aindapara que se torne uma realidade a utopia holderliniana/heideggeriana: “Cheio de méritos, mas poeticamente/ o homemhabita esta Terra”.

Referências

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HEIDEGGER, M. Ensaios e conferências. Tradução de Leão E. et alii.Petrópolis: Vozes. 2002. (Original publicado em 1954).

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ZUBIRI, X. Cinco lecciones de filosofia. Madrid: Alianza, 1980.

Abstract‘: what is being attempted in this article es to explain thepsychological and philosophical basis concernig human

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dimensions of the technology that sustains the modern Theory ofHuman Ralations in the Programs of Organizational Development( from the 1930 p. on) which enriches and exceeds the classicalTheory of Cientific Administration and its, only, pragmatic,economic and productive goals. On this matter, in Brasil, one pointto the work of the professors: Fela Moscovici and IdalbertoChiavenato.

Key words: organizational development, human relations,technology, thecnical intellect, holistic approach

SATURNINO PESQUERO RAMÓNDoutor em Filosofia pela Universidade das Illes Baleares.

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Resumo: à inserção da condição obesa no contextosociocultural. Em nossa cultura a condição obesa é tidacomo uma espécie de “contra-indicação social”, sobretu-do na forma da discriminação e legitimação do julgamen-to social. Cada vez mais as mulheres acreditam ter defeitosno próprio corpo, queixa que começa como uma insatisfa-ção e pode caminhar para um distúrbio mais grave. Mes-mo com o avanço das técnicas cirúrgicas gástricas, cadavez mais eficientes, há importantes mudanças do ponto devista psicológico nesses pacientes. A cirurgia bariátricaimplica mudanças na relação do sujeito com seu corpo ecom os outros. As possíveis conseqüências insatisfatóriaspodem ser apreciadas de forma bem diferente pelos paci-entes, pois se trata de uma construção sobre o seu bem-estare não de uma constatação técnica de sucesso ou fracasso.Tarefa angustiante e difícil de conciliação com si mesmo;impossível se condicionada à mudança física, mas oportu-na ao sujeito se ele constatar seus investimentos, seus de-sejos. Que se trate de uma via simbólica, limitada, mas nãomenos admissível para ele se questionar, se se confrontarcom sua falta, portanto, com sua própria história.

Palavras-chave: sofrimento psíquico, condição obesa, cirur-gia bariátrica, discriminação e julgamento social

THYAGO DO VALE ROSADENISE TELES FREIRE CAMPOS

O SOFRIMENTO PSÍQUICO

NA CONDIÇÃO OBESA

E A INFLUÊNCIA

DA CULTURA

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Meu corpo não é meu corpo,é ilusão de outro ser.

Sabe a arte de esconder-see de tal modo sagaz

que a mim de mim ele oculta.

(Carlos Drummond de Andrade)

ara além do alarme internacional, o objetivo do presente tra-balho é produzir uma reflexão sobre o sofrimento psíquicoquanto à inserção da “condição obesa” no contexto

sociocultural.A definição da obesidade é algo muito recente. Há cerca de

trinta anos o fenômeno se alastrou por todo o planeta e conseqüen-temente ganhou atenção médica. Há pouco mais de dez anos pas-sou a ser encarado como o ‘grande desafio nutricional’ do séculoXXI. Contudo, sabemos que o atual interesse pelo fenômeno sedeve muito mais aos gastos elevados com a saúde nos países, es-pecialmente à associação da obesidade com as chamadas “doen-ças do peso”, do que a uma atitude humanitária por parte dasautoridades.

A sua prevalência tem aumentado e esses números a aproxi-mam de uma verdadeira pandemia (WHO, 2002) – ou, talvez, seriao caso dizer, de uma “globesidade”, como indica Philip James,presidente da Força Tarefa Internacional para o Estudo e Comba-te de Obesidade (FTIO). Dessa forma faz-se necessário compre-ender quais fatores estão levando ao aumento do excesso de pesono mundo, bem como colocar em foco as vivências sociais e seuimpacto nas estruturas psíquicas e no próprio corpo dos sujeitos.

A condição obesa impõe severos prejuízos às pessoas. Do pon-to de vista relacional, há importantes aspectos comportamentais esociais envolvidos na dificuldade em perder peso e mantê-lo (CAS-TRO, MAIA, CHAVES, 2005). A presença de fatores emocionaise culturais no tratamento afeta a motivação do paciente, e seu fra-casso gera uma grande frustração. Assim as atuais práticas clínicase os diferentes tipos de controle do peso podem contribuir para osofrimento das pessoas obesas (RIBEIRO; ZORZETTO, 2004).Especialmente, quando da ineficiência dos regimes e dietas (porexemplo, o “efeito sanfona”) e pela não-participação dos familiaresdurante o tratamento. Não é por acaso que entre as pessoas obesasé comum uma intensa peregrinação aos mais variados especialistas

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(gastroenterologistas, endocrinologistas, nutricionistas, psicólogosetc.), e esse estado de coisas pode se constituir como um símbolo dofracasso e da inadequação dessas pessoas.

O papel da cultura também é ressaltado, sobretudo na formada discriminação e da legitimação do julgamento social que hácontra as pessoas obesas. Cada vez mais as mulheres acreditamter “defeitos” no próprio corpo, queixa que começa como umainsatisfação e pode caminhar para um distúrbio mais grave. O riscomaior é que essa impressão de inadequação ganha agora um res-paldo sociocultural. Especialmente entre os jovens, a queixa dedescontentamento com o físico é geral, como aponta Almeida etal. (2002). Nesse sentido, a cultura é um reforçador dessa insatis-fação com o corpo, alimentada no último século pela exposiçãocontínua aos padrões de beleza estampados em jornais, revistas eprogramas de televisão, ou mesmo em anúncios de medicamentose cosméticos.

Dito isso, a atual situação aponta para a importância de seestudar os aspectos psicológicos referentes à obesidade, o seuimpacto no tratamento e sua relação com o os contextos sociaismúltiplos – família, amigos, escola, comunidade etc – a fim deminimizar o impacto abusivo e nocivo do julgamento social e dotratamento dispensado às pessoas obesas.

SOFRIMENTO PSÍQUICO E “CONDIÇÃO OBESA”

O atual fenômeno da obesidade, intensamente divulgado eestudado, parece indicar que o fato de estar acima do peso ideal,ou seja, “a condição obesa” da pessoa, produz um intenso impac-to na subjetividade. Ou seja, o diagnóstico de obesidade (sobretu-do, as pessoas com obesidade mórbida) pode gerar muitosofrimento e importantes impedimentos sociais. Evidentementeque a questão não repousa sobre o diagnóstico, mas como as pes-soas e a sociedade em geral lidam com o que optamos por chamaraqui de “condição obesa”.

A obesidade mórbida é reconhecida como uma condição clíni-ca segura para recomendação cirúrgica (SEGAL; FANDIÑO, 2002),principalmente por sua associação às diversas comorbidades(COUTINHO, 1998; HALPERN, 1998; HALPERN, MANCINI,1999; 2000; 2002; PAIVA, SILVA, 1994) tais como as doenças

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cardiovasculares, endócrinas, infertilidade, doençasgastrointestinais, osteartrites, infecções e relacionada ao surgimentode tumores. Em razão da associação com outras enfermidades, aschamadas “doenças do peso” impõem severos prejuízos à saúde daspessoas. O Nurse’s Health Study (NHS), juntamente com a AmericanCancer Society´s Cancer Preventrion Study (ACSCPS) (PERES,2005), indicam que altos valores de IMC estão relacionados a umataxa elevada de mortes por todas as causas, principalmente em re-lação às doenças cardiovasculares. De acordo com o estudo, issotambém pode ser verificado na correlação negativa entre a expec-tativa de vida em adultos e a obesidade.

De maneira geral, a chamada obesidade de grandes propor-ções gera uma piora da qualidade de vida, com maior risco de mortee freqüentemente está associada ao recorrente fracasso dos trata-mentos mais conservadores baseados nas dietas, nos medicamen-tos, na própria psicoterapia e nos exercícios físicos.

Mesmo com o avanço das técnicas cirúrgicas gástricas, cadavez mais eficientes e com efeitos indesejáveis mais toleráveis(GARRIDO JR., 2000), há importantes mudanças do ponto de vistapsicológico nesses pacientes. Essa condição impõe uma exigên-cia ao sujeito, implica mudanças na relação com seu corpo e narelação dos outros com o paciente. As possíveis conseqüênciasinsatisfatórias de uma cirurgia de redução de estômago podem serapreciadas de forma bem diferente pelos pacientes, o que é umgrande inconveniente, pois se trata de uma construção pelos su-jeitos sobre o seu “bem-estar” e não uma “constatação técnica” de“sucesso” ou “fracasso”.

Reconhece-se a gravidade e a urgência de cuidados intensi-vos com os pacientes que apresentam obesidade grau III (obesida-de mórbida). A cirurgia é uma importante proposta de tratamento,pode se constituir como a única forma de manter a pessoa viva,contudo, deve-se ter a cautela e atenção quanto às complicaçõesclínicas e ao possível aumento da psicopatologia antes e no pós-operatório. Como apontam Fandiño et al. (2004), observa-se umaumento da psicopatologia em pacientes gravemente obesos queprocuram tratamento para emagrecer, apresentando-se principal-mente na forma dos transtornos de humor e dos transtornos docomportamento alimentar. E hoje se sabe que há um importanteaumento dos transtornos depressivos nas pessoas obesas que re-

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correram à cirurgia de redução do estômago (Fandiño et al., 2004).Esse fato parece estar associado aos comportamentos adictos, taiscomo o abuso do álcool e drogas (SARGENTIM, 2005), o queindica a necessidade de uma avaliação mais criteriosa einterdisciplinar em pacientes obesos que buscam a cirurgia deredução do estômago.

Nesse sentido, os estudos médicos têm um papel importantena definição e compreensão do estudo da obesidade. Apesar de aOMS dizer que o atual incremento do excesso de peso no planetase deve fundamentalmente às mudanças socioambientais, tais comoos hábitos alimentares e o aumento da inatividade física (que levaao balanço energético positivo), a obesidade não pode ser explicadapor uma única visão.

Como apontam Almeida e Ferreira (2005), a prevalência einterpretação da obesidade no mundo têm variado ao longo dotempo, em razão de valores culturais e científicos presentes emcada sociedade. Segundo os autores, a obesidade praticamenteinexistiu nas sociedades antigas, sendo um fenômeno raro em razãoda intensa atividade física e da escassez de alimentos que acom-panharam os seres humanos durante muitos séculos. Mas, para seusurgimento, os autores argumentam que a própria seleção naturalse encarregou disso, selecionando indivíduos com mecanismosorgânicos de estocagem de nutrientes e de energia mais adaptadosque os outros. Aliado a isso, as profundas mudanças nos hábitosde vida, inauguradas com a Revolução Industrial, parecem tercontribuído para o incremento da obesidade no mundo.

Em geral a sua etiologia e história natural parecem indicaruma pluralidade de fenômenos envolvidos cada qual com seu pesoespecífico (UEHARA; MARIOSA, 2005). O sobrepeso e a obe-sidade podem se iniciar em qualquer idade, com importantes di-ferenças entre os sexos e a condição socioeconômica. Nas criançascom baixo peso, no nascimento, ou muito pequenas estão maissujeitas a desenvolver o excesso de peso e suas conseqüentescomorbidades em comparação com as crianças que nasceram como peso normal. A amamentação também parece um fator impor-tante. Crianças que não foram amamentadas ou que foram ama-mentadas por um curto período de tempo apresentam um maiorrisco de sobrepeso e obesidade do que crianças que foram ama-mentadas. E, ainda, crianças que apresentam excesso de peso em

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idades mais avançadas da infância, após os três anos de idade, porexemplo, tendem a manter essa condição, ao contrário das crian-ças que apresentam excesso de peso antes dos três anos de idade.Com relação à adolescência, a maioria dos casos tende a se man-ter na idade adulta. De forma geral, segundo os autores, osurgimento da obesidade na infância e adolescência é um grandepreditor de obesidade na fase adulta.

As diferenças em relação ao sexo, de acordo com Uehara eMariosa (2005), parecem sofrer forte influência dos fatoressocioeconômicos. Por exemplo, a gravidez (como um evento exis-tencial importante), os contraceptivos (apesar de não haver dadosclínicos relevantes) e a menopausa (as mudanças hormonais) pa-recem estar associados ao surgimento da obesidade feminina naidade adulta. Em relação aos homens, o principal fator para o in-cremento do excesso de peso parece estar associado aos hábitosde vida, já que eram ativos na adolescência e se tornaram maissedentários na fase adulta.

Um outro fator importante se refere à relação entre obesida-de, trabalho e escolaridade (MONTEIRO, CONDE, CASTRO,2003; UEHARA, MARIOSA, 2005). Até 1989, a obesidade eraproporcional ao nível de escolaridade, quanto maior o nível deescolaridade maior o risco de obesidade. Segundo dados da Pes-quisa Nacional sobre Saúde e Nutrição (PNSN) realizada peloInstituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 1997 asituação mudou muito no Brasil (Monteiro, CONDE, CASTRO,2003). Seguindo uma tendência comum, principalmente nos paí-ses da América Latina, o aumento da obesidade apresentou umarelação inversamente proporcional ao nível de escolaridade. Ouseja, atualmente a população com baixa escolaridade e com umacondição socioeconômica menos favorável está mais sujeita aoexcesso de peso que a população mais abastada economicamentee com maior escolaridade.

As mulheres que estão desempregadas, por exemplo, formamum grupo mais propenso ao excesso de peso (FERREIRA; MA-GALHÃES, 2005). O impacto da obesidade na população femini-na e de baixa renda no Brasil é notório. Dos 6,8 milhões de obesosno Brasil levantados pelo PNSN, 70% eram de mulheres pobres.Ao contrário, mulheres que ocupam cargos de destaque no traba-lho apresentam menor risco de obesidade. Já nos homens, de acordo

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com Filho (2005), nos desempregados ou em situaçãosocioeconômica menos favorável, o efeito é inverso, embora osdados do Third National Health and Nutrition Examination SurveyData (NHANES III/ 1989-1994), publicado no Centers for DiseaseControl and Prevention (CDC) (1996), mostrem que o estilo devida e o tipo de dieta nutricional, baseada num balanço energéticopositivo, sejam os principais responsáveis para o surgimento doexcesso de peso.

De modo geral, os estudos apontam para três característicasimportantes do predomínio da obesidade: a correlação entre oestrato socioeconômico e a obesidade; as populações urbanasapresentam um maior risco de excesso de peso em relação à popu-lação rural; uma prevalência da obesidade em minorias étnicas,em razão dos chamados hábitos de vida modernos e do balançoenergético positivo (ALMEIDA; FERREIRA, 2005).

OBESIDADE E CONTEXTO SOCIOCULTURAL

Ainda que seja quase evidente o impacto das mudanças doshábitos de vida e do comportamento alimentar no incremento daobesidade no planeta, o aumento da prevalência de sintomas psi-cológicos, tais como os sintomas depressivos, ansiosos e do com-portamento alimentar, não é algo evidente. Constitui mesmo umagrande polêmica. Esses sintomas parecem estar relacionados como forte julgamento social enfrentado pelos obesos (FELIPPE etal. 2004), já que são alvos de preconceito e discriminação (SEGAL;FANDIÑO, 2002), sobretudo com a constatação da influência dosmeios de comunicação de massa, que dão destaque ao assunto. Asua divulgação na mídia torna-se um problema porque a questãodo excesso de peso passou a ser tratada como algo a ser combati-do, uma espécie de “mal moderno”. Essa atitude quase engajadae intensa do controle do peso e da estética parece reforçar aindamais o consumo de produtos alimentícios para o emagrecimentoe para o controle do peso, bem como a valorização de um determi-nado padrão estético-cultural (Felippe et al., 2004).

De certa forma a dinâmica social e familiar, da história ínti-ma, particular, dá contornos próprios e específicos à obesidade.Em nossa cultura, a obesidade é tida como uma espécie de “con-tra-indicação” social. A mídia, por exemplo, tem um papel impor-

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tante na apresentação e discussão do assunto. Contudo ela pareceter uma posição ambivalente, pois ela pode estar contribuindo parafomentar uma mudança nos hábitos alimentares de crianças e jo-vens, quando da intensa propagação do “estilo de vida moderno”e dos alimentos fast-food, instaurando uma nova “cultura alimen-tar” (ALMEIDA, NASCIMENTO; QUAIOTI, 2002). E, ainda, aênfase no estereótipo de um ‘corpo ideal’, na idéia de um corpoperfeito que se aproxima cada vez mais de um modelo esguio eesbelto, na maioria dos casos, reforça a discriminação e o sofri-mento das pessoas que não se ajustam a esses padrões (FELLIPEet al., 2004; SERRA, SANTOS, 2003).

Os meios de comunicação e a atual ordem social reforçam aidéia segunda a qual a obesidade se tornou algo vulgar. De certaforma, ser gordo hoje é algo grosseiro. Interessante lembrar que oradical da palavra grosso é Grossu, em latim, que significa degrande diâmetro, de volume importante, corpulento.

Socialmente, a obesidade é condição de discriminação, e nesseponto estamos falando de uma discriminação explícita, aberta. Écomum nas entrevistas com pacientes obesos (ROSA, 2007) orelato de ofensas e injúrias sobre sua condição física. Parece quea “condição obesa” dessas pessoas é utilizada para o ataque morale pessoal. Essa atitude discriminatória é ainda mais “pesada”,sobretudo quando realizada pelos entes queridos. Alguns estudosindicam que a obesidade se tornou um elemento de exclusão so-cial (GOULART, 2005). Isso pode ser evidenciado pelo aumentoda obesidade em mulheres de nível socioeconômico mais baixoem áreas urbanas.

Assim, para o estudo da subjetividade de pessoas obesas,devemos levar em conta as vivências sociais e seu impacto naconstituição do sujeito. Apesar de se tratar de um problema físico,de excesso de gordura corporal, não deixa de ser um fenômenomultivariado, com significativa participação de fatores psíquicose sociais. Sua explicação, sua definição, não é algo simples, mes-mo que seja multifacetado, pois a possibilidade de encontrar umsinal, uma causa plausível, nem sempre é possível.

De certa forma, podemos dizer que a expressão do corpo, aexpressão das formas corporais, é a expressão de si mesmo. Nessesentido, a obesidade não pode ser reduzida a um sintoma, seja deuma disfunção genética, seja de maus hábitos alimentares ou do

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estilo de vida contemporâneo. Mas se constitui um sinal aindamaior, ‘sinal do mundo interno e privado da própria pessoa quefaz do seu corpo um lugar privilegiado para expressão de seu ser’.Daí a dimensão subjetiva implicada no fenômeno da obesidade.

Em nossa sociedade, a relação da pessoa com seu corpoganhou uma importância nunca antes vista. Muito mais que aexpressão de uma identidade social, da expressão de um modo devida, o corpo agora é a própria pessoa, é a expressão psíquica dosujeito. Nesse sentido, há uma mudança no estatuto do corpo, ocorpo ganhou em importância, mas, também, tornou-se mais vul-nerável, mais ameaçado, seja pela discriminação sofrida, seja pelosofrimento advindo da relação dos sujeitos com seus corpos, sen-tidos como “inadequados”.

Com base nessas considerações, a obesidade se tornou umaverdadeira ‘enfermidade social’ (ALMEIDA, NASCIMENTO;QUAIOTI, 2002). Sem dúvida, as vivências sociais produzem umimpacto na constituição do sujeito. Nesse sentido, a cirurgia apa-rece no contexto como um ganho, como uma mudança de vida.Um corte, uma ruptura radical, um salto para uma outra vida, comoapresentado nas entrevistas com pacientes que se submeteram àcirurgia de redução do estômago (ROSA, 2007). Os sujeitos bus-cam mesmo construir uma nova história. Não se trata, como nocaso da doença, de um sujeito doente que clama ao seu médicoque lhe restitua o estado de saúde anterior, mas de um pedido, deum desejo de promover um novo “estado de coisas”, uma novavida, em alguns casos, uma nova identidade.

Contudo, nada disso impede que uma tal mudança fracasseou tenha resultados insuficientes, pois a modificação corporal tãoesperada não garante uma “vida nova”. Eis uma tarefa árdua e difícilno tratamento de pessoas obesas, ou seja, ‘mobilizar os desejosque agem nos sujeitos e que esperam por serem elaborados en-quanto fala’, enquanto representação. O novo expediente impos-to pela mudança corporal revela o drama em que essas mulheresse encontram e, com efeito, o regime de que falam não é físico,mas o de suas vidas, na forma de reger suas vidas, na “maneira deviver” e construir suas próprias histórias.

Tarefa angustiante e sobre-humana, delegada ao outro (seja omédico, o psicólogo, ou seja, ao discurso perito) para que faça umareconstrução de sua história pessoal, para que mude a vida e que,

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nesse caso, seja da forma mais radical, que seja um verdadeiro“corte em sua história”. É bem verdade que se trata de uma tenta-tiva, repetitiva de “conciliação” frustrada consigo mesmo, impos-sível se condicionada à mudança física, mas oportuna ao sujeitose ele constatar seus investimentos, seus desejos. Que se trate deuma via simbólica, limitada, mas não menos admissível para elese questionar, se confrontar com sua falta, portanto, com sua pró-pria história.

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Abstract: the aim of the present paper is to produce a reflexionabout the psychic suffering to insertion of the obese condition inthe sociocultural context. In our culture the obese condition isconsidered as a specie of “social contra indication”, mainly inthe discriminationform and legitimation of the social judgment.More and more women believe about imperfection in their ownbody, complaint that starts as a unsatifaction and can evolve toa more serious disturbance. In spite of the progress of the gastricsurgery technics, even more efficient, there are important changesof the psychologic point of viewin these patients. The bariatricsugery implies changes in the relation with his/her body and witheach others and the possible unsatisfactory consequences canbe appreciated in a very different way, by patients, because refersto a construction about their well being and nor about a technicconfirmation about success or failure. Anguishing and difficultof conciliation task with himself/herself; impossible ifconditioned to the physics change but opportune to the subjectif he verifies his investments, his desires that deal with a symbolicvia, limited, but not less admissible to him to make questions,confront with his fault, therefore, with his own history.

Key words: psychic suffering, obese condition, bariatric surgery,discrimination and social judgment

Este artigo é uma versão sintetizada da dissertação de mestradoe está inserido dentro do Programa de Pós-graduação StrictoSensu em Psicologia da Universidade Católica de Goiás e con-

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tou com a orientação e colaboração da professora Dra. DeniseTeles Freire Campos.

THYAGO DO VALE ROSAMestre em Psicologia pela Universidade Católica de Goiás. Docente da Univer-sidade Católica de Goiás.

DENISE TELES FREIRE CAMPOSDoutora em Psicopatologia pela Université Aix-en-Provence – França. Docentedo Programa de Pós-graduação Stricto Sensu em Psicologia da UniversidadeCatólica de Goiás.

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Rouded Blur. Risuku13, 2006Imagem da Capa

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