ética (cap 1) - dietrich bonhoeffer

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Aliança do povo de Israel no Antigo Testamento

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O A M O R DE DEUS E A D E C A D Ê N C I A DO M U N D O

O mundo dos conflitos

A noção do bem e do mal parece ser o alvo de toda reflexão ética 2 . A primeira tarefa da ética cristã consiste em suspender esse saber. Com esse ata­que às premissas das demais concepções éticas, ela está em posição tão solitá­ria, que cabe a pergunta se faz sentido falar em ética cristã. Se assim mesmo o fazemos, isso só pode significar que a ética cristã reivindica tematizar a origem de toda preocupação ética, pretendendo, como crítica a toda ética, ser a con­cepção ética única.

A ética cristã reconhece já na possibilidade da noção do bem e do mal o rompimento com a origem. O ser humano, em sua origem, só sabe de uma coisa: Deus. A outra pessoa, as coisas, a si mesmo ele só conhece na unidade de seu saber de Deus. Conhece tudo só em Deus e Deus em tudo. O saber do bem e do mal assinala a separação 3 já acontecida da origem.

No conhecimento do bem e do mal, o ser humano não se entende na realidade de sua determinação pela origem, mas sim em suas possibilidades próprias, ou seja, ser bom ou mau. Tem conhecimento de si ao lado de Deus, fora de Deus, e isso significa que só conhece a sí mesmo e não mais a Deus. Pois só pode saber de Deus se sabe unicamente dele. A noção do bem e do mal constitui, portanto, a separação de Deus. Do bem e do mal o ser humano só pode saber contra Deus.

O ser humano, todavia, não se livra de sua origem. Em vez de se saber na origem de Deus. deve entender agora a si próprio como origem. Compreen-dendo-se de acordo com suas possibilidades, ou seja, de ser bom ou mau, o ser humano entende-se como origem do bem e do mal. Eritis sicut deus. "Eis que o ser humano se tornou como um de nós, conhecedor do bem e do mal", diz Deus (Gn 3.22).

2 Se a ética moderna substitui os conceitos do bem e do mal por moral e imoral, ou por com valor e sem valor, ou - na filosofia existencial - por ser autêntico e inautêntico, isso não faz diferença para a questão aqui tratada.

3 Nota do tradutor: Entzweiung. no original. Esse termo, central na argumentação de Bonhoef-fer, designa literalmente o ato ou efeito de dividir em dois e será traduzido, dependendo do contexto, por "separação", "desunião", "dicotomia", "discordância", "cisão", "dissensão".

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A originária semelhança com Deus converteu-se em igualdade roubada. Enquanto o ser humano como imagem de Deus vive exclusivamente de sua origem em Deus, o ser humano que se tornou igual a Deus esqueceu sua ori­gem e se transformou em seu próprio criador e juiz. Ele quis ser agora por si mesmo o que Deus deu ao ser humano. Dádiva de Deus, porém, é, essencial­mente, dádiva de Deus. A origem constitui a dádiva. Com a origem, a dádiva se transforma. Na verdade, a dádiva consiste em sua origem. O ser humano como imagem de Deus vive da origem divina; o ser humano que se tornou igual a Deus vive de origem própria. Com o roubo da origem, o ser humano incorpo­rou um mistério divino - a Sagrada Escritura descreve esse processo como o comer da fruta proibida -, no qual ele perece. Sabe, agora, o que é bom e o que é mau. Não que tivesse enriquecido com isso o conhecimento que tinha até então com um novo saber; antes, a noção do bem e do mal resulta numa inver­são total do seu conhecimento, que até então era unicamente um conhecimento de Deus como sua origem. Sabendo do bem e do mal, sabe o que somente a origem. Deus, pode e deve saber. É só com extrema reserva que a própria Bíblia nos indica que Deus é o conhecedor do bem e do mal. É a primeira referência à predestinação, ao mistério de uma eterna desunião que tem sua origem no eternamente Uno, ao mistério de uma eterna escolha e eleição por aquele em quem não há escuridão, mas somente luz. Saber do bem e do mal significa compreender a si mesmo como origem do bem e do mal, como fonte de uma eterna escolha e eleição. Como isso é possível continua sendo o misté­rio daquele em quem não há dicotomia, porque ele mesmo é a única e eterna origem e a superação de toda dicotomia. O ser humano roubou de Deus esse mistério, ao pretender ser ele mesmo origem. Em vez de conhecer apenas o bondoso Deus e tudo nele, entende agora a si mesmo como fonte do bem e do mal; em vez de aceitar a escolha e eleição divinas, deseja escolher mesmo, ser origem da escolha; assim, de certa forma, traz c mistério da predestinação em si mesmo. Em vez de saber de si tão-somente na realidade de ser eleito e ama­do por Deus, tem que se entender na possibilidade de escolher, de ser origem do bem e do mal. Tomou-se como Deus, mas contra Deus. Eis o embuste da serpente. O ser humano sabe o que é bom e o que é mau; mas como ele não é a origem. como adquire esse saber unicamente na separação da origem, o bem e o mal que conhece não são o bem e mal de Deus, mas bem e mal contra Deus. É bem e mal de escolha própria contra a eterna eleição divina. O ser humano ornou-se igual a Deus como antideus.

Isso se manifesta no fato de o ser humano ciente do bem e do mal ter-se desvinculado definitivamente da vida, da vida eterna tal como emana da eleição de Deus. "Assim, para que não estenda a mão, e tome também da árvore da vida, coma, e viva eternamente!... e ele o expulsou e colocou os querubins diante do

jardim do Éden com a espada desnuda que golpeava, para guardar o caminho da árvore da vida" (Gn 3.22, 24). O ser humano que sabe do bem e do mal contra Deus, contra sua origem, sem Deus por escolha própria que se entende em suas

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possibilidades discordes, está separado da vida unificadora e conciliadora em Deus. está entregue à morte. O mistério que roubou de Deus o faz perecer.

O pudor

Em lugar de Deus, o ser humano enxerga a si mesmo. "E abriram-se-Ihes os olhos" (Gn 3.7). O ser humano reconhece-se em sua desunião em rela­ção a Deus e ao semelhante. Reconhece que está nu. Sem a proteção, sem a cobertura que Deus e o outro significam, ele sente-se exposto. Nasce o pudor. É a indestrutível lembrança do ser humano da sua separação da origem, é a dor decorrente dessa separação e o desejo impotente de desfazê-la. O ser humano envergonha-se porque perdeu algo que faz parte de sua essência original e de sua integridade. Tem vergonha de sua nudez. Tal qual no conto, a árvore emba­raça-se pela falta de seu adorno; o ser humano peja-se pela desaparecida uni­dade com Deus e os semelhantes. Vergonha e arrependimento geralmente es­tão trocados. O ser humano arrepende-se quando erra, sente vergonha porque lhe falta algo. A vergonha é mais original do que o arrependimento. O peculiar fato de baixarmos o olhar quando olhos estranhos nos encontram não é sinal de arrependimento por algum erro, é a vergonha que, sabendo-se vista, lembra-se de algo que agora lhe falta, da perdida integridade da vida, conscientizando-se da própria nudez. Aguentar o olhar estranho, como se exige, por exemplo, no juramento pessoal de fidelidade, tem algo de violento; no amor, que procura o olhar do outro, há algo de nostálgico. Em ambos os casos, é a dolorosa tentati­va de recuperar a unidade perdida através da superação interna da vergonha como sinal da separação, por consciente decisão ou apaixonada dedicação 4.

"E fizeram cintas para si." O pudor procura encobrimento para superar a cisão. O encobrimento, contudo, significa, ao mesmo tempo, a confirmação da separação havida e não pode curar o mal. O ser humano encobre-se, esconde-se dos semelhantes e de Deus. O encobrimento é necessário porque mantém viva a vergonha e, com isso, a lembrança da cisão com a origem; além disso, porque o ser humano, cindido como está, tem que suportar-se a si mesmo e viver na ocultação. Do contrário, cometeria traição contra si próprio. "Todo espírito profundo precisa de uma máscara" (Nietzsche). Essa máscara, porém,

4 HUXLEY. Aldous. Point Counter Point. 1928. p. 154: "Shame isn't spontaneous. [...] it's artificial, it's acquired. You can make people ashamed of anything. Agonizingly ashamed of wearing brown boots with a black coat, or speaking with the wrong sort of accent. [...] The Christians invented it. just as the tailors in Savjle Road invented the shame of wearing brown boots with a black coat [...]" .Quanto a isso convém dizer: 1. inibição, insegurança não deve ser confundida com vergonha. 2. Pudor pode manifestar-se também em coisas bem exteriores - isso varia de pessoa para pessoa de acordo com os princípios de caráter de cada um. Pudor pode surgir onde quer que a cisão humana seja vivenciada: por que, então, não no vestuário?

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não é simples disfarce e trapaça para os outros; é sinal necessário da condição dicotômica dada, devendo por isso ser respeitada. Debaixo da máscara, conti­nua vivo o desejo pelo restabelecimento da unidade perdida. Onde esse desejo irrompe, como na união sexual, onde duas pessoas se tornam uma só carne (Gn 2.24), e na religião, onde o ser humano procura a sua unidade com Deus, onde, pois, se rasga o encobrimento, justamente ali o pudor cria sua mais profunda ocultação. Kant via no fato de se envergonhar, quando surpreendido em. ora­ção, um argumento contra a oração. Não entendeu que a oração, justamente por natureza, tem seu lugar no quarto fechado; não compreendeu o sentido fundamental do pudor para a existência humana.

Uma vez que a vergonha contém tanto o sim como o não à separação, o ser humano vive entre encobrimento e descobrimento, entre ocultar-se e reve­lar-se, entre solidão e comunhão. Por conseguinte, é precisamente na solidão -isto é, ao confirmar a cisão - que ele pode experimentar a comunhão - se bem que como comunhão cindida - de forma mais intensa do que na própria comu­nhão. No entanto, ambas têm que estar sempre presentes. Nem a mais profun­da comunhão pode destruir o mistério do ser humano desunido. Por isso mes­mo, articular em palavras o relacionamento mútuo e, com isso, revelar-se e pôr-se a descoberto perante si mesmo pode ser sentido como negação do pu­dor. A mais profunda alegria própria como a mais profunda tristeza própria não admitem o desnudamento em palavras. Da mesma forma, o pudor protege de toda exibição do relacionamento com Deus. Por fim, o ser humano também conserva em relação a si mesmo um último véu, guarda seu mistério perante si mesmo, negando-se. por exemplo, a tornar-se consciente de si em tudo aquilo que surge em seu interior.

Sob o manto do pudor está também tudo o que vem a ser e brota do desejo do ser humano de recuperar a unidade perdida 5 . O mistério do pudor cobre a capacidade criadora que lhe cabe na união dos desunidos, por ele mes­mo buscada. É a lembrança do roubo e da separação de Deus que se expressa nisso. Isso vale tanto para a gestação da vida humana como para o surgimento da obra de arte, da descoberta científica e de toda e qualquer obra criativa nascida da união do ser humano com o mundo das coisas. Só com a vida já nascida, com a obra completada, a alegria aberta e jubilosa rompe o mistério do pudor. Mas o mistério de sua gênese ela carrega consigo para sempre.

5 Nota do editor: Em carta escrita no presídio, de 26.11.1943, Bonhoeffer pergunta, após um ataque aéreo: "As pessoas daqui falam abertamente do medo que tiveram. Não sei bem o que pensar a respeito, pois em si o medo é algo de que o ser humano se envergonha. Tenho a impres­são de que dele só se poderia falar no confessionário. Caso contrário, facilmente pode haver nisso algo como falta de pudor. Nem por isso se precisa bancar o herói. Por outro lado. uma sinceridade ingênua pode desarmar; mas existe também uma sinceridade cínica, ímpia, que pode se extravasar tanto na bebedeira como na putaria, dando assim uma impressão caótica. Será que também o medo não pertence às coisas pudorosas, que deviam ser escondidas?".

A dialética entre encobrimento e descobrimento é apenas sintoma do pudor. Este não é superado por aquela, antes confirmado. A superação do pu­dor só pode acontecer onde a unidade primitiva for restabelecida, onde o ser humano for novamente revestido por Deus no outro ser humano, pela "habita­ção celestial", o tabernáculo de Deus (2Co 5.2ss). A superação do pudor só acontece ao suportar um ato de extremo envergonhamento, qual seja, a revela­ção do saber diante de Deus. "[...] para que te envergonhes, e nunca mais pos­sas abrir tua boca por causa de tua vergonha, quando eu te houver perdoado tudo quanto fizeste, diz o Senhor" (Ez 16.63). "[...] Farei isso [...] e tereis que vos envergonhar e ficar vermelhos de vergonha por causa de vossa maneira de ser" (Ez 36.32). O pudor só é vencido na humilhação pelo perdão do pecado, isto é, peio restabelecimento da comunhão com Deus e perante os semelhan­tes. Isso se concretiza na confissão perante Deus e os outros. O revestimento do ser humano com o perdão divino, com o "novo ser humano" que ele veste, com a comunidade de Deus, com a habitação celestial, está resumido na estro­fe: "O sangue e a justiça de Cristo são meu adorno e minha roupa de gaia" (Leipzig, 1638).

Pudor e consciência

Enquanto o pudor lembra o ser humano de sua desunião com Deus, a consciência é o sinal da desunião do ser humano consigo mesmo. A consciên­cia está mais distante da origem do que o pudor. Já pressupõe o cisma em relação a Deus e ao semelhante e sinaliza apenas a cisão consigo mesmo por parte do ser humano separado da origem. É a voz da vida apóstata, que deseja permanecer ao menos em unidade consigo mesma. É o chamado para a unida­de do ser humano consigo mesmo. Isso já se depreende do fato de a voz da consciência ter exclusivamente caráter de proibição: "Não deves... não deverias ter...". A consciência está tranquila quando a proibição não é transgredida. O que não está proibido é permitido. Diante da consciência, a vida divide-se em coisas permitidas e proibidas. Não há mandamento. A consciência não registra mais o fato de que o ser humano está em desunião com sua origem também naquilo que é permitido, que a consciência identifica com o bem. Decorre disso também que a consciência não abrange a vida toda, como o pudor, mas reage apenas a uma ação específica. É bem verdade que ela é impiedosa, vendo na prática do proibido a vida toda colocada em risco, isto é, a desunião consigo mesmo, e, ao tornar presentes coisas remotas, tomando essa desunião como irremediavelmente acontecida; não obstante, o parâmetro decisivo permanece a unidade consigo mesmo, que só corre perigo de caso em caso, na transgres­são do proibido. Entretanto, está fora do campo de percepção da consciência o fato de que essa própria unidade já pressupõe a cisão em relação a Deus e aos seres humanos; não percebe que, bem além da proibição transgredida, já a

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própria proibição, como voz da consciência, nasce da separação da origem. Consequentemente, a consciência não trata da relação do ser humano com Deus e com o semelhante, mas do relacionamento do ser humano consigo mesmo. Um relacionamento do ser humano consigo mesmo, desvinculado do relacionamento com Deus e com os semelhantes, só existe pela igualação do ser humano a Deus na separação.

A própria consciência inverte essa ordem. Ela faz o relacionamento com Deus e com os semelhantes surgir do relacionamento do ser humano consigo mesmo. Ela diz-se voz de Deus e norma do relacionamento com os outros. Logo, pelo relacionamento adequado consigo mesmo, o ser humano deve re­cuperar o relacionamento certo com Deus e os semelhantes. Essa inversão é a pretensão do ser humano que se fez igual a Deus em sua noção do bem e do mal. Ele próprio se tornou a origem do bem e do mal. Não nega o mal que nele existe, mas, na consciência, chama a si mesmo, que se tornou mau, de volta para a sua identidade autêntica e melhor, para o bem. Esse, que consiste na unidade do ser humano consigo mesmo, deve ser agora a fonte de todo bem. É o bem de Deus, o bem para o próximo. Trazendo em si o conhecimento do bem e do mal, o ser humano tornou-se juiz de Deus e dos seres humanos, como é o seu próprio juiz.

Sabendo do bem e do mal na separação da origem, o ser humano passa a refletir sobre si mesmo. Sua vida, agora, consiste na autocompreensão, como originalmente consistia em seu saber de Deus. O autoconhecimento tornou-se parâmetro e objetivo da vida. Isso também não muda ali onde o ser humano transcender os limites da própria identidade. Autoconhecimento é o interminá­vel esforço do ser humano de superar, mediante o pensamento, a desunião consigo mesmo, distinguindo-se incessantemente de si mesmo; é o interminá­vel esforço do ser humano de chegar à unidade consigo mesmo.

Todo conhecer baseia-se agora no autoconhecimento. A percepção ori­ginal de Deus, dos seres humanos e das coisas transformou-se em atentado 6

contra Deus, os seres humanos e as coisas. Agora tudo é arrastado para dentro do processo de desunião. Conhecer significa agora estabelecer o relaciona­mento consigo mesmo, significa reconhecer a si mesmo em tudo e tudo em si mesmo. Desta forma, tudo se divide para o ser humano separado de Deus: o ser e o dever, a vida e a lei, saber e fazer, ideia e realidade, razão e instinto, dever e desejo, opinião e proveito, o necessário e o opcional, o conquistado e o genial, o geral e o concreto, o individual e o coletivo; mas também verdade, justiça, beleza e amor se polarizam, bem como prazer e tédio, felicidade e sofrimento - poderíamos continuar prolongando essa lista, e o curso da história humana aumenta-a constantemente. Todas essas dicotomias são variações da dicotomia

Nota do tradutor: Bonhoeffer faz aqui um jogo de palavras com os termos Begreifen ("percep­ção") e Sichvergreifen ("atentado").

no saber do bem e do mal. "O ponto decisivo da experiência especificamente ética é sempre o conflito."7 Ora, no conflito invoca-se o juiz. Esse. no entanto, é o conhecimento do bem e do mal, é o ser humano.

O mundo da unidade reencontrada

Quem quer que leia o Novo Testamento, ainda que superficialmente, há de notar que aqui o mundo da divisão, do conflito, da problemática ética está praticamente ausente. Não a desintegração do ser humano em relação a Deus, ao semelhante, às coisas, a si mesmo, mas a unidade reencontrada, a reconcilia­ção é a base de onde se fala, tomou-se o "ponto decisivo da experiência espe­cificamente ética". A vida e a ação das pessoas não têm nada de problemático, penoso, sombrio, mas algo natural, alegre, certo, claro.

O fariseu

É no encontro de Jesus com o fariseu que o antigo e o novo ficam clara­mente evidentes. A compreensão correta desse encontro é da maior importân­cia para o entendimento do Evangelho todo. No caso do fariseu, não se trata de um fenômeno acidental da época, mas do ser humano que, em toda a sua vida, só deu importância ao conhecimento do bem e do mal, isto é, do ser humano da desunião como tal. Toda descrição distorcida dos fariseus elimina a seriedade e importância da disputa de Jesus com eles. O fariseu é o ser humano suma­mente digno de admiração, que coloca toda a sua vida sob o conhecimento do bem e do mal, que é um juiz rigoroso tanto de si mesmo quanto do próximo -para a honra de Deus, de quem, humildemente, recebe seu saber. Para o fariseu, cada momento da vida toma-se uma situação de conflito em que deve escolher entre o bem e o mal. Para não errar, sua atenção está concentrada, dia e noite, em refletir antecipadamente sobre a imensa quantidade de possíveis conflitos, em decidir a respeito e em determinar a própria escolha. Nessa tarefa, há inú­meras coisas a observar, a combater e a distinguir. Quanto mais precisas as distinções, tanto maior a probabilidade da decisão certa. A observação abrange a vida em toda a sua riqueza de situações; não se pretende bater com a cabeça na parede; situações especiais e de emergência têm tratamento especial; a serie­dade do conhecimento do bem e do mal não exclui bondade e generosidade; antes, são expressão dessa seriedade. Nada há além de irrefletida jactância, de

SPRANGER, Eduard. Lebensformen. Geisteswissenschaftliche Psychologie und Ethik der Persönlichkeit. 7. ed. Halle: Verlag von Max Niemeyer. 1927. p. 283. O conceito de conflito de Spranger. entretanto, é bem mais restritivo do que o nosso.

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Novo Testamento não consta uma pergunta sequer que pessoas tenham dirigi­do a Jesus e em que ele, para respondê-la, entrasse no mérito da alternativa humana implicada em cada pergunta. Cada resposta à pergunta de seus inimi­gos e de seus amigos deixa essa alternativa para trás de uma maneira que causa vergonha. Ele não quer ser invocado como árbitro em questões da vida; rejeita prender-se às alternativas humanas: "Homem, quem me constituiu juiz ou partidor entre vós?" (Lc 12.14).

Muitas vezes parece que Jesus nem entende o que as pessoas pergun­tam, tendo-se a impressão de que ele está respondendo a bem outra coisa do que foi perguntado. Parece que sua resposta não diz respeito à pergunta, mas inteiramente ao interlocutor. Ele fala a partir de uma liberdade total, não sujei­ta à lei das alternativas lógicas. Aos olhos dos fariseus, essa liberdade com que Jesus deixa todas as leis para trás tem que parecer uma destruição de toda ordem, de toda piedade e de toda fé. Para eles, Jesus é um niilista, uma pessoa que só conhece e respeita a sua própria lei; um egocêntrico, um blasfemador, porque derruba todas as diferenciações pelas quais os fariseus se empenham conscienciosamente; porque permite aos seus discípulos comerem das espigas do campo no sábado, embora com certeza não teriam morrido de fome; porque cura no sábado uma enferma que já estava doente há 18 anos e certamente poderia ter esperado mais um dia (para as emergências legítimas também o fariseu deixou espaço em seu sistema); porque Jesus se desvia de todas as perguntas claras que desejam comprometê-lo para sempre. Por outra, nada há em Jesus que denote a insegurança, a timidez de quem age arbitrariamente; sua liberdade dá a ele e aos seus em seu agir algo peculiarmente seguro, indiscutí­vel, brilhante, algo vencido e vencedor. A liberdade de Jesus não é a escolha arbitrária de uma entre incontáveis possibilidades; antes, consiste justamente na completa simplicidade de sua ação. para a qual nunca existem várias op­ções, conflitos e alternativas, mas sempre uma coisa só. Essa única coisa Jesus define como a vontade de Deus. Diz ele que praticar essa vontade é seu ali­mento. Essa vontade de Deus é a vida de Jesus. Ele vive e age não a partir do conhecimento do bem e do mal, mas a partir da vontade de Deus. Existe uma única vontade de Deus. Nela a origem está recuperada, nela se baseiam a liber­dade e a singeleza de toda ação.

Procuraremos evidenciar o novo que veio em Jesus na interpretação de

algumas das suas palavras. "Não julgueis, para que não sejais julgados" (Mt 7.1). Não se trata de

uma exortação à prudência e tolerância no juízo sobre o semelhante, que o fariseu, aliás, também conhecia; é, isto sim, a estocada no coração do ser hu­mano ciente do bem e do mal E a palavra daquele que fala a partir da unidade com Deus, daquele que não veio para julgar, mas para salvar (Jc 3.17). Para o ser humano da desunião, o bem consiste no julgar, cujo último parâmetro é o próprio ser humano. Ao saber do bem e do mal. o ser humano é essencialmente juiz. Como juiz, ele se iguala a Deus, com a diferença de cada veredicto que

soberba e de autoavaliaçâo negligente. Sabe-se perfeitamente dos próprios er­ros, do dever da humildade e da gratidão para com Deus. Não obstante, eviden­temente há diferenças entre o pecador e aquele que se esforça pelo bem, entre aquele que se torna transgressor da lei a partir de uma situação culposa e aque­le que o faz por necessidade, diferenças essas que de modo algum devem ser desconsideradas. Quem desprezar essas diferenças, quem não considerar tudo em cada uma das inúmeras situações de conflito, peca contra o conhecimento do bem e do mal.

Esses homens de olhar incorruptivelmente objetivo e desconfiado não podem se defrontar com o semelhante sem analisá-lo quanto a suas decisões nas situações de conflito da vida. Assim, eles precisam, não podem deixar de tentar arrastar também Jesus para os conflitos, as decisões, para ver como ele se sairia. É assim que tentam a Jesus. Basta ler o capítulo 22 do Evangelho de Mateus, com a questão do tributo, da ressurreição dos mortos, do supremo mandamento, e mais a história do bom samaritano (Lc 10.25) e a discussão sobre a santificação do sábado (Mt 12.11), para se ter a mais nítida impressão disso. O decisivo em todas essas polêmicas consiste no fato de Jesus não se deixar arrastar para nenhuma dessas decisões conflituosas. Com cada uma das suas respostas ele simplesmente se sobrepõe à situação conflituosa. Sempre que se trata de malícia consciente da parte dos fariseus, a resposta de Jesus consiste em desviar-se soberanamente da astuta armadilha, ao que, possivel­mente, não faltou um sorriso do lado dos fariseus. Mas nisso não reside o essencial. Assim como os fariseus não podem senão colocar Jesus diante de situações de conflito, da mesma forma Jesus não pode reagir de maneira dife­rente do que não aceitando essas situações. Assim como a pergunta e a tenta­ção da parte dos fariseus provêm da desunião do saber do bem e do mal, da mesma forma a réplica de Jesus emana da unidade com Deus, com a origem, da desunião já superada do ser humano com Deus. Os fariseus e Jesus falam de níveis completamente diferentes. Por isso acontece esse estranho desencontro de suas palavras, por isso as respostas de Jesus não se parecem, com respostas, mas com acusações suas aos fariseus, o que de fato são.

O que acontece entre Jesus e os fariseus é mera repetição daquela pri­meira tentação (Mt 4.1-11) na qual o diabo tentou prender Jesus em uma discordância [Zwiespalt] na palavra de Deus e que Jesus venceu a partir de sua unidade essencial com a palavra de Deus. Essa tentação, por sua vez, tem o seu prólogo na pergunta com que a serpente levou Adão e Eva à queda no paraíso: "É assim que Deus disse...?'". É a pergunta que contém em si toda a desunião, contra a qual o ser humano é impotente porque constitui sua essência; é a pergunta que só pode ser - não respondida, mas - superada do além da dissen­são. Por fim, todas essas tentações se repetem nas questões em que também nós sempre nos confrontamos com Jesus, em que nós, em situações de confli-to, o invocamos pedindo uma decisão, em que nós, portanto, tentamos envolvê-lo em

nossas questões, conflitos e dicotomias para cobrar-lhe uma solução. No

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profere atingir a ele mesmo. Ao atacar o ser humano como juiz, Jesus exige a conversão de todo o seu ser, expondo-o, justamente na extrema realização do seu bem, como ímpio, como pecador. Jesus exige a superação do conhecimen­to do bem c do mal, exige a unidade com Deus. O juízo sobre o semelhante sempre já pressupõe a desunião com ele, interpõe-se como impedimento à ação. O bem a que Jesus se refere consiste integralmente na ação, não no julga­mento. Julgar o próximo significa sempre uma demora na própria ação. Aque­le que julga nunca chega à ação, ou melhor, mesmo aquilo que tem a mostrar como ação - e isso pode ser muita coisa - é sempre só avaliação, juízo, crítica e acusação aos outros. O agir do fariseu é, manifestamente, um julgar do seme­lhante, pois procura a notoriedade do julgamento - mesmo que seja apenas perante o próprio eu -, pois quer ser visto, avaliado e reconhecido como bom -ainda que só perante o próprio eu. "Praticam todas as suas obras com o fim de serem vistos pelas pessoas" (Mt 23.5). O agir do fariseu é apenas uma determi­nada forma de expressão do seu conhecimento do bem e do mal e, consequen­temente, de sua desunião com o próximo e consigo mesmo. Por isso é o maior obstáculo para chegar à verdadeira ação que emana da unidade redescoberta do ser humano com os semelhantes e consigo mesmo. Por conseguinte, é neste sentido, baseado na existência dicotomizada - não no sentido de uma maldade consciente -, que a ação do fariseu, isto é, do ser humano que pratica o conhe­cimento do bem e do mal até as últimas consequências, é um fazer aparente, uma hipocrisia.

Dessa maneira, há realmente uma profunda contradição entre o discurso e a ação do fariseu. "Eles dizem e não fazem" (Mt 23.3). Não que os fariseus não fizessem nada, que fossem preguiçosos para boas obras. Bem ao contrário. No entanto, a sua ação não é ação autêntica, porque a ação destinada a superar a cisão do ser humano em. bem e mal não alcança esse objetivo e só aprofunda a cisão. Assim, para o fariseu, a prática do bem. que deveria sanar a desunião interna e a desunião com o semelhante, acaba agravando a desunião e levando à persistência na defecção da origem. O fato de que essa desunião daquele que julga os semelhantes se manifesta em procedimentos psicologicamente inteligí­veis - por exemplo, que uma pessoa séria descarrega seus instintos de vingança contra uma leviana, a quem no fundo inveja; ou que o próprio ponto fraco, quando observado no outro, leva a uma condenação especialmente severa; que, portanto, no campo da falsidade dissimulada, da revolta desesperada e da negli­gência resignada para com a própria fraqueza o espírito julgador produz flores particularmente venenosas - isso tudo não deve levar a uma errônea interpreta­rão da verdade básica: o julgar não nasce daqueles vícios e maldades do cora-ção humano, por profundas que sejam; ao contrário, o julgar é a raiz de todos esses fenômenos psicologicamente perceptíveis. O julgar, portanto, não está errado por brotar de motivações tão obscuras - assim entendia Nietzsche -, mas porque o próprio julgar é a defecção, por isso é mau e é por isso que produz maus frutos no coração humano. Tampouco há como negar que, anali-

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sando psicologicamente, podem ser descobertas motivações das mais nobres que norteiam aquele que julga. Isso, no entanto, não pode alterar a substância. "Julgar" não é um destacado vício e maldade do ser humano dicotomizado; é a sua essência, que se revela em seu discurso, no seu agir e sentir. Essa forma de conhecer o fariseu só é possível, entretanto, a partir da unidade já recuperada, ou seja, a partir de Jesus. O próprio fariseu só pode entender-se nas suas virtu­des e vícios, mas não em sua essência, em sua defecção da origem. A conver­são e transformação de toda a existência do fariseu só podem nascer do conhe­cimento superado do bem e do mal; só Jesus pode derrubar a autoridade do fariseu baseada na noção do bem e do mal. Na boca de Jesus, o "não julgueis" é o chamado daquele que é a reconciliação, dirigido ao ser humano cindido, é o chamado para a reconciliação.

Como há um fazer humano - ainda que ilegítimo - que é um julgar, assim há - para grande surpresa - também um julgar que é um legítimo -fazer do ser humano, vale dizer, um "julgar" que procede da unidade realizada com a origem, com Jesus Cristo. Há um "saber" que nasce do reconhecimento de Jesus Cristo como reconciliador. "O ser humano espiritual julga todas as coisas e não é julgado por ninguém" (ICo 2.15). "Vós possuis a unção que vem daquele que é santo e tudo sabeis" (1Jo 2.20). Esse julgar e esse saber provêm da unidade, não da cisão. Consequentemente, não produzem nova ci­são, e sim reconciliação. Assim como o juízo de Jesus Cristo consistia precisa­mente no fato de ele não ter vindo para julgar, mas para salvar - "O juízo é este: que a luz veio ao mundo" (Jo 3.19); cf. os versículos 17 e 18 -, da mesma forma os que em Cristo estão reconciliados com Deus e os seres humanos tudo julgarão justamente sem ser juízes, bem como tudo saberão como aqueles que não sabem do bem e do mal. O seu juízo consistirá em ajudar, confortar, levar ao caminho certo, admoestar e aconselhar fraternalmente (Gl 6; Mt 18.15ss), e, se preciso for, também na suspensão temporária da comunhão, mas de tal forma que o espírito seja salvo no dia do Senhor Jesus (ICo 5.5). Será um julgar da reconciliação, não da separação, um julgar através do não-julgar, um julgar como prática da reconciliação. Não mais sabendo do bem e do mal, e sim de Jesus como origem e reconciliação, o ser humano tudo saberá. Saben­do, pois, de Jesus, conhece e reconhece a eleição de Deus que lhe diz respeito: não está mais a escolher entre o bem e o mal, isto é, na dissensão, mas como eleito, que não pode mais escolher porque já escolheu ao estar na liberdade e unidade do fazer da vontade divina. Com isso, ele se encontra num saber novo, no qual o conhecimento do bem e do mal está superado. Encontra-se no conhe­cimento de Deus. mas não como quem se igualou a Deus. e sim como quem leva a imagem de Deus. Só conhece ainda "Jesus Cristo, o crucificado" (ICo 2.2), e nele tudo conhece. Como não-sabedor, tornou-se sabedor somente de Deus e, nele, de tudo. Quem conhece Deus em. sua revelação em Jesus Cristo, quem conhece o Deus crucificado e ressuscitado, conhece tudo o que há no céu, na terra e debaixo da terra. Ele conhece Deus como a suspensão de toda

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dissensão, de todo julgar e condenar, como aquele que ama e vive. O saber dos fariseus era morto e estéril; o saber de Jesus e dos que estão unidos a ele é vivo e frutífero; o saber dos fariseus é dissolvente, o novo saber é redentor e reconciliador; o saber dos fariseus é a destruição de toda ação autêntica, o saber de Jesus e dos seus consiste apenas na ação.

"Tu, porém, ao dares esmola, ignore a tua esquerda o que faz a tua direi­ta, para que a tua esmola fique em. secreto" (Mt 6.3ss). Também o fariseu sabia que não devia vangloriar-se de sua esmola e que por todo bem que praticava devia gratidão a Deus. Se Jesus quisesse dizer apenas isso, sua palavra teria sido supérflua. Acontece que Jesus justamente não quis manifestar esse pensa­mento razoável e piedoso, mas uma coisa bem diferente, exatamente o contrá­rio. O fariseu que. pelo bem. que praticava, oferecia sua gratidão a Deus (Lc 18) ainda era aquele que vivia no conhecimento do bem e do mal, que proferia seu próprio julgamento e então, é verdade, agradecia a Deus por essa capacida­de. O fariseu sabe do bem que fez. Com sua palavra, Jesus não atinge a jactân­cia e o autoelogio de quem fez algum bem. Mas, mais uma vez, vai ao coração do ser humano que vive na dissensão. Ele proíbe a quem faz o bem saber desse bem. O novo saber a respeito da reconciliação efetuada em Jesus, da suspensão da dissensão, elimina completamente o saber próprio do próprio bem. O saber sobre Jesus esgota-se completamente na ação, sem reflexão sobre si mesmo. Agora, o bem próprio fica oculto ao ser humano. Não só que o ser humano não tenha que ser mais juiz do bem que faz, não, já não deve nem querer sabê-la; mais ainda, não deve sabê-la, não o sabe mais. Tão inquestionável, se tornou sua ação, ele está tão dedicado e absorto em sua ação, sua ação está tão longe de ser uma opção entre muitas, sendo a única, o que importa, a vontade de Deus, que o saber nem pode mais se interpor como obstáculo, que aqui literal­mente não se pode perder tempo que detivesse a ação, a questionasse e julgas­se. O julgamento permanece oculto, não só perante os semelhantes, mas tam­bém diante do tribunal do próprio saber. Está bem. claro: sabendo acerca de Jesus, o ser humano não pode mais saber do seu próprio bem; sabendo do seu próprio bem, não poderá mais saber de Jesus. O ser humano não pode viver, ao mesmo tempo, na reconciliação e na desunião, na liberdade e sob a lei, na simplicidade e na discordância. Aqui não há transição ou degraus, mas somen­te uma ou outra. No entanto, como ao ser humano é impossível suspender e superar o saber de seu próprio bem por força própria - a não ser que se engane a si mesmo, confundindo a metódica repressão desse saber com sua suspensão -, essa palavra de Jesus a respeito da mão direita que não deve saber o que a esquerda faz, portanto, do caráter oculto do próprio bem, significa o chama­mento para sair da dicotomia, da defecção, do saber do bem e do mal, para a reconciliação, para a unidade, para a origem, para a nova vida, que está somen­te em Jesus. É o chamado libertador para a simplicidade, para a conversão; é o chamado que suspende até o velho saber da defecção e concede o novo saber a respeito de Jesus, o saber que é totalmente absorvido pela prática da vontade

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de Deus. Quão profundamente essa palavra calou em sua comunidade eviden­cia-se do fato de, onde quer que se fale do dar nas admoestações apostólicas, encontrarmos o acréscimo de que deve acontecer "em simplicidade" (Rm 12.8; 2Co 8.2; 9.11,13 e semelhantes). A recordação da palavra do sermão do monte é flagrante. Contudo, também o próprio Deus dá "simplesmente" (Tg 1.5) a quem lhe pede sem pensamentos conflitantes (méden diakrinomenos). O "ho­mem com as duas almas", porém, o aner ãipsychos, o antípoda do símplice, não pode esperar que receba dádivas de Deus (Tg 1.7). Mas quem recebe com simplicidade há de dar com simplicidade.

Na parábola do juízo final (Mt 25.3 Iss), o que afirmamos recebe sua complementação e conclusão. Quando Jesus efetuar o julgamento, os seus não saberão que lhe deram de comer, de beber, que o vestiram e visitaram. Não conhecerão o próprio bem; Jesus o revelará a eles. Então terá chegado o tempo para o qual aqui na terra não havia tempo, o tempo que revelará o oculto e dará a recompensa publicamente, o tempo do veredicto e do juízo. Mas então tam­bém todo avaliar, saber e julgar estarão do lado de Deus e de Jesus Cristo, e nós seremos os que se admiram e recebem. Essa mensagem de poder receber o bem unicamente do saber, do julgamento e da mão de Jesus deve ser incompreen­sível e desprezível para o fariseu que achava poder antecipar e preparar o juízo final no juízo objetivo e sério de si mesmo.

A suspensão do saber do bem e do mal realizada em Jesus, bem como tudo o que se disse a respeito de liberdade e simplicidade estariam totalmente equivocados onde os concebêssemos como fatores psicologicamente constatáveis, onde se voltasse a refletir sobre sua ocorrência em si mesmo ou em outras pessoas. Sob o aspecto psicológico é realmente impossível que a mão direita não saiba o que a esquerda faz, que a simplicidade faça sempre só a única coisa, sem saber cie alternativas. A causa disso é que a própria análise psicológica sempre se encontra sob a lei da cisão. A psicologia nunca poderá descobrir, portanto, a simplicidade, a liberdade e a ação visadas por Jesus; ela sempre descobrirá atrás da suposta simplicidade, liberdade e ausência de refle­xão uma última reflexão, um último cativeiro, uma última cisão. Entretanto, com isso não se atinge aquilo que Jesus queria dizer. Aquele que no discipula­do de Jesus se tornou símplice e livre pode ser, sob o prisma psicológico, uma pessoa de complicada reflexão, assim como, por outro lado, existe uma simpli­cidade psíquica que nada tem a ver com a simplicidade de uma vida reconcilia­da com Deus. Assim, a Bíblia fala de um justificado e necessário perguntar pela vontade de Deus e de uma igualmente justificada e necessária autoavaliação, sem, contudo, incorrer em contradição com o fato de que, para os que vivem na suspensão do saber a respeito do bem e do mal, não há mais escolha entre múltiplas alternativas; existe sempre só o fato da eleição para a símplice práti­ca da una vontade divina, não mais podendo haver para o seguidor de Jesus noção do próprio bem.

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O examinar

"Transformai-vos pela renovação de vossa mente, para que examineis qual seja a vontade de Deus" (Rm 12.2). "E também faço esta oração: que o vosso amor aumente mais e mais no conhecimento e em toda capacidade de percepção, para que possais examinar as diversas situações (o que é o correto em cada caso)" (Fp 1.9s; cf. Rm 2.18). "Aqui como os filhos da luz - examinan­do o que é agradável ao Senhor" (Ef 5.9ss). Aqui a ideia de que o conhecimen­to simples da vontade de Deus devesse acontecer na forma de intuição, de exclusão de todo raciocínio, abraçando ingenuamente o primeiro pensamento ou sentimento que se ofereça, recebe radical correção. Trata-se do mal-enten­dido psicológico da simplicidade da nova vida que surgiu em Jesus. Não há garantia nenhuma de que a vontade de Deus se imponha ao coração humano com a evidência de sua exclusividade, que ela seja óbvia e se identifique com o que o coração acha. A vontade de Deus pode estar profundamente oculta sob muitas possibilidades que se oferecem. Sempre de novo deverá ser examinado qual é a vontade de Deus. porque ela também não é um sistema de regras prefixadas, mas cada vez nova e diferente nas diferentes situações da vida. Coração, raciocínio, observação e experiência devem ser conjugadas para esse exame. Ele é tão sério justamente porque já não se trata mais do próprio saber a respeito do bem e do mal, mas da vontade viva de Deus, justamente porque já não está sob nosso controle, mas depende exclusivamente da graça de Deus que reconheçamos a sua vontade, graça que se renova e quer se renovar todos OS dias. Nem a voz do coração, nem alguma inspiração, tampouco algum prin­cípio de validade universal podem ainda ser confundidos com a vontade de Deus, que se revela sempre nova somente a quem sempre procede ao exame.

Como acontece esse examinar "qual seja a vontade de Deus"? Decisiva é aqui a clara pressuposição de que esse discernir só existe a partir de uma "metamorfose", de uma completa mudança interna da forma anterior, a partir de uma "renovação" da mente (Rm 12.2), a partir de uma postura como filhos la luz (Ef 5.9). Nessa metamorfose só pode tratar-se da superação da forma do ser humano caído: Adão, e da conformação com a forma do novo ser humano: Cristo. Isso se deduz claramente do uso desses conceitos em outras passagens bíblicas. A nova forma, por força da qual somente é possível discernir a vonta-e de Deus, deixou atrás e abaixo de si o ser humano que conquistou a noção o bem e do mal na separação de Deus. É a figura do filho de Deus que vive em unidade com a vontade do Pai na conformação com o único e verdadeiro filho e Deus. É exatamente a mesma coisa que Paulo aborda na citada passagem de filipenses, na qual designa o viver e aumentar no amor como a pressuposição o examinar, pois viver e crescer no amor significa viver na reconciliação e unidade com Deus e os semelhantes, significa viver a vida de Jesus Cristo. Não se pode, portanto, discernir simplesmente a partir de si mesmo qual é a vonta-s de Deus, com base no próprio saber do bem e do mal; pelo contrário, so-

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mente o pode a pessoa da qual foi tirado todo saber próprio a respeito do bem e do mal e que por isso desiste de saber por si mesma a vontade de Deus, que já vive na unidade da vontade de Deus porque a vontade de Deus já se concreti­zou nela. Examinar qual é a vontade de Deus só é viável a partir do saber da vontade de Deus em Jesus Cristo. Somente com base em Jesus Cristo, somente no âmbito determinado por Jesus Cristo, somente "em" Jesus Cristo pode-se discernir qual é a vontade de Deus.

O que então significa o examinar? Por que é necessário? Essa pergunta, por mais que pareça logicamente consequente, já foi mal formulada. Devido ao fato de o saber acerca de Jesus Cristo, a metamorfose, a renovação, o amor ou como quer que se possa chamá-lo, ser algo dinâmici e não algo dado, fixo, possuído de uma vez para sempre, todo dia se renova a pergunta: como perma­neço (e sou conservado), hoje e aqui e nesta situação, nessa nova vida com Deus e Jesus Cristo? Exatamente essa pergunta é o sentido do exame de qual é a vontade de Deus. Em outras palavras: porque o saber a respeito de Jesus Cristo inclui o nâo-saber a respeito do próprio bem e mal, porque a noção de Jesus Cristo remete o ser humano inteiramente a Jesus Cristo, surge aqui um discernimento diariamente novo e autêntico, que se caracteriza justamente pela exclusão de todas as outras fontes cie saber a respeito da vontade de Deus. Esse examinar nasce do saber-se guardado, sustentado e guiado pela vontade de Deus, do saber acerca da graciosa unidade, já concedida, com a vontade de Deus, e procura robustecer esse saber dia após dia na vida concreta. Por conse­guinte, não é um examinar altivo, nem desalentado, mas humilde e confiante, um discernir em liberdade para a palavra de Deus sempre nova, na simplicida­de da palavra de Deus sempre una. E um examinar que não questiona mais a unidade recuperada em Jesus com a origem; antes, a pressupõe e, não obstante, deve obtê-la sempre de novo.

Sob essa pressuposição, no entanto, deve-se examinar realmente qual é a vontade de Deus, o que é certo em dada situação, o que agrada a Deus, pois vida e ação devem ser concretas. Inteligência, capacidade de discernimento, percep­ção atenta dos fatos entram em intensa ação. Nisso, a oração a tudo abrangerá e penetrará. Experiências feitas se manifestarão para corrigir ou advertir. De modo nenhum se há de confiar em intuições imediatas ou esperar por elas, com o que nos exporíamos por demais facilmente ao autoengano. Tendo em vista a causa que está em jogo, há de imperar um elevado espírito de sobriedade. Serão avalia­das as possibilidades e as consequências. Em se tratando de discernir qual é a vontade de Deus, será dinamizado, portanto, todo o aparato das forças humanas. Mas, em tudo isso, não haverá espaço para o tormento de estar diante de confli­tos insolúveis, nem para a presunção de poder resolver todos os conflitos, tampouco para a entusiástica expectativa e afirmação de inspiração direta. Have­rá a fé de que Deus com certeza revelará a sua vontade a quem humildemente o pedir. Então, após todo sério examinar, haverá também a liberdade para real decisão e, nela, a confiança de que, através de tal examinar, Deus mesmo, não o

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ser humano, impõe a sua vontade. A ansiedade quanto à correção do que se fez não se converterá nem em desesperado apego ao próprio bem nem na segurança do saber a respeito do bem e do mal, mas estará suprimida no saber a respeito de Jesus Cristo, que exerce o juízo gracioso; deixará o próprio bem oculto no saber e na graça do juiz até o tempo oportuno.

Assim como a unidade com a vontade de Deus não elimina o exame do que venha a ser a vontade de Deus no momento, antes a exige, da mesma forma, ao lado da palavra de Jesus de não deixar que a mão esquerda saiba o que a direita faz, está a advertência de Paulo de examinar-se a si mesmo em relação à fé e à ação. "Examinai-vos a vós mesmos se realmente estais na fé; provai-vos a vós mesmos. Ou não reconheceis que Jesus Cristo está em vós?" (2Co 13.5; cf. Gl 6.4). A simplicidade do desconhecimento do próprio bem, porque a pessoa, completamente absorta na ação, só olha para Jesus Cristo, não significa leviandade, falta de autoconsideração. Não existe apenas um autoexame farisaico, mas também um cristão, isto é, um autoexame que não visa ao próprio saber a respeito do bem e do mal e sua concretização na vida prática, mas que renova diariamente a percepção de que "Jesus Cristo está em nós". Para o cristão, não há outra forma de examinar-se a não ser com base nessa possibilidade, decisiva para ele, de Jesus ter entrado em sua vida, mais: de Jesus viver por ele e nele, e isso de tal maneira, que Jesus Cristo ocupe nele exatamente o espaço até agora preenchido pelo próprio saber acerca do bem e do mal. Autoexame cristão só existe sob a pressuposição de que Jesus Cristo está em nós. E, ao declinarmos esse nome por completo, fica claro que não se trata de algum neutro, mas da própria pessoa histórica de Jesus. No autoexame dos cristãos, o olhar não se desvia de Jesus Cristo para o próprio eu; antes pelo contrário, fica preso em Jesus Cristo. Sob essa pressuposição da presença e ação de Jesus em nós, de ele nos pertencer, pode e deve surgir a pergunta se e como nós lhe pertencemos, nele cremos e a ele obedecemos na vida cotidiana. A resposta a essa questão, entretanto, não pode mais ser dada por nós mesmos; pela essência da causa, a resposta só pode ser dada por Jesus Cristo mesmo. Não é esse ou aquele sinal de eficiência e fidelidade de nossa parte que pode responder à questão de nosso autoexame, pois nós não dispomos mais de ne­nhum parâmetro pelo qual nos pudéssemos julgar; nosso único critério é o próprio Jesus Cristo vivo. O autoexame, portanto, constará sempre da integral entrega ao juízo de Jesus Cristo, não tirando as próprias conclusões, mas dei­xando-as nas mãos daquele de quem sabemos e reconhecemos que está em nós. Esse processo de autoexame, porém, não é supérfluo, porque Jesus Cristo realmente está e deseja estar em nós, sendo que esse estar em nós de Jesus Cristo não se processa simplesmente de forma mecânica, antes se realiza e se comprova sempre de novo justamente em tal autoexame. "Nem eu tampouco julgo a mim mesmo. Porque de nada me argúi a consciência; contudo, nem por isso me dou por justificado, pois quem me julga é o Senhor" (ICo 4.3. 4). Tal qual a vontade de Deus, por ser precisamente a vontade do Deus vivo, sempre

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de novo deve ser discernida, e nesse discernimento se impõe, assim Jesus Cris­to está totalmente em nós exatamente pelo fato de nós nos autoexaminarmos nele sempre de novo. O exame da vontade de Deus é, de certo modo, parte da própria vontade de Deus da mesma forma como o autoexame do cristão é parte da vontade de Jesus Cristo em nós.

Não se suspende ou atrapalha com isso, de modo algum, a nova unidade com a vontade de Deus e a simplicidade da ação. Para compreender isso temos que esclarecer ainda o que significa propriamente "fazer" na acepção do Evan­gelho.

O fazer

Está claro que a única postura adequada do ser humano perante Deus é a prática de sua vontade. O sermão do monte aí está para que seja praticado (Mt 7.24ss). É no fazer, apenas, que se consuma a submissão à vontade de Deus. No cumprimento da vontade de Deus, o ser humano desiste de todo direito próprio, de toda autojustificação. No cumprimento, ele se entrega hu­mildemente ao bondoso juiz. Se a Sagrada Escritura tanto insiste no fazer é porque deseja cortar toda autojustificação humana perante Deus que queira basear-se no próprio saber a respeito do bem e do mal. Ela não admite, pois, que ao lado da ação de Deus seja colocada a ação do próprio ser humano -ainda que como agradecimento, como sacrifício -, mas integra o ser humano completamente na ação de Deus e, ao mesmo tempo, submete o ser humano ao fazer divino. Os fariseus não erraram ao apontar, com todo o vigor, para a necessidade da ação, mas no fato de eles próprios não chegarem ao fazer. "Eles não fazem o que ensinam." Se a Escritura exige a ação, ela com isso não reme­te o ser humano à sua própria capacidade, mas ao próprio Jesus Cristo. "Sem mim nada podeis fazer" (Jo 15.5). Essa sentença deve ser entendida ao pé da letra. Não há fazer sem Jesus Cristo. As múltiplas coisas que de resto tem a aparência de ação, todos os inúmeros afazeres são, aos olhos de Jesus, como se nada fora feito. Não há outra palavra da Escritura que testemunhe de forma mais exclusiva o atrelamento da ação a Jesus Cristo do que essa palavra de Jesus. Por nenhuma outra coisa, também, poder-se-á distinguir com maior cla­reza a ação autêntica do fazer aparente.

Com essas nossas delimitações, a ação pretendida pela Escritura é pro­tegida contra mal-entendidos e se toma reconhecível em seu caráter peculiar.

O julgamento está em. inconciliável confronto com o fazer. "Aquele que acusa seu irmão, ou julga a seu irmão, acusa a lei e julga a lei; ora, se julgas a lei, não és observador da lei, mas juiz" (Tg 4.11). Há duas posturas diante da lei: julgar e fazer; ambos se excluem reciprocamente. O que julga entende a lei como parâmetro que usa contra os outros e entende a si mesmo como respon­sável pela imposição da lei; com isso, aquele que julga coloca-se acima da lei.

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Esquece que "um só é o que faz as leis e é juiz, aquele que pode salvar e destruir". Quem, com base em seu conhecimento da lei, acusa e julga seu ir­mão, na verdade acusa e julga a própria lei, pois desconfia que não tenha a força da palavra viva de Deus para impor-se e fazer valer a si mesma. Ao se arvorar em legislador e juiz, revoga a lei de Deus. Surge, assim, a incurável cisão entre saber e fazer. Aquele que, por conta de seu conhecimento da lei, se fez juiz do irmão e finalmente também da lei. nunca mais chega ao cumpri­mento da lei, por mais coisas que aparentemente faça. O "praticante da lei" - à diferença do juiz - submete-se à lei. Ela nunca se torna o parâmetro que pudes­se usar contra o irmão. Nunca ela se lhe apresenta de outra forma do que para conclamá-lo à ação pessoal. Também diante do irmão que errou o "praticante da lei" só tem urna única possibilidade de fazer valer a lei, qual seja, o cumpri­mento próprio. É através disso que a lei é honrada, posta em vigor e reconheci­da como palavra viva de Deus que se impõe por força própria, dispensando ajuda humana. Portanto, não é assim, também, que o praticante da lei se con­tentasse com sua própria prática, invocando a Deus, com um olhar de soslaio, como juiz do irmão pecador, o qual ele mesmo - lamentavelmente - não deve julgar. Trata-se aqui, realmente, sem soslaio algum, da única postura adequada face à lei de Deus, qual seja, o cumprimento da lei; e somente nessa orientação exclusiva para o cumprimento próprio da lei, sem. segundas intenções, se con­fere à lei seu direito e seu poder, que hão de comprovar-se também no irmão. Não resta, pois, uma última possibilidade de juízo ao lado ou através do cum­primento; antes, o cumprimento é e será a única e exclusiva postura diante da lei de Deus; qualquer outra coisa corromperia o cumprimento totalmente, trans­formando-o em aparência, em hipocrisia.

O cumprimento pressupõe, evidentemente, que se ouça a lei. Mas essa formulação já é duvidosa, na medida em que, por ela, poderia ser diferenciado e separado o ouvir como pressuposição do cumprir qual consequência. Onde, porém, o ouvir se torna independente em relação ao cumprir, adquirindo qual­quer direito próprio, o cumprimento já está desfeito. O praticante da lei por certo deve ser também um ouvinte, mas de tal modo apenas, que o ouvinte seja, ao mesmo tempo, o praticante (Tg 1.22). Um ouvir que não se convertes­se, no mesmo instante, em fazer transforma-se naquele "saber" do qual nasce o julgar e, assim, a dissolução de todo fazer. Se aquilo que se ouve se incorpora àquele "saber", ao invés de transformar-se em ação, já está - por paradoxal que possa parecer - "esquecido" (Tg 1.25). Ainda que seja preservado no saber por muito tempo, seja meditado e tratado, está esquecido no que concerne à sua essência, qual seja, como algo que aponta inteiramente para a ação. O ouvinte da Palavra que não é, ao mesmo tempo, seu praticante, acaba necessariamente enganando a si mesmo (Tg 1.22). Ao julgar-se na posse da Palavra por causa do saber, já a perdeu de novo, porque supõe que se possa tê-la. ainda que, por um instante apenas, de outra forma do que no cumprimento. A polêmica de Tiago contra o ouvinte da Palavra corresponde exatamente à polêmica de Jesus

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contra os fariseus. Não que o diligente ouvinte da Palavra, de quem se trata aqui. não fizesse múltiplas coisas, assim como, aliás, o fariseu certamente não era preguiçoso no fazer; mas esse fazer que, em relação ao ouvir, se constitui em coisa segunda, mediada por um saber, que se acrescenta como autônoma ao ouvir - que, por si e em si, já é algo -. é um fazer aparente, é autoengano, é, nas palavras de Jesus, hipocrisia. Trata-se de autoengano porque aquele que está na ação aparente se entende realmente como quem está na ação autêntica e deve. portanto, rechaçar decididamente a acusação de hipocrisia. A presente contraposição de ouvinte e praticante da Palavra recebe errônea interpretação psicológica sempre que for apresentada como contraposição entre pensamento e vontade, teoria e prática. Também o fariseu sabia que a Palavra de Deus reclama não só o pensamento, mas também a vontade, não só a teoria, mas também, a prática: de acordo com isso exercitava tanto a vontade como a inte­ligência na obediência à Palavra. Não eram a inteligência e a vontade que se cindiam no fariseu, mas precisamente o ouvir e o fazer. Para o ouvinte da Palavra, que concede autonomia ao ouvir, vale a palavra: "O praticante será bem-aventurado em seu fazer" (Tg 1.25). Praticante, em tudo isso, é aquele que simplesmente não conhece outra postura diante da Palavra de Deus ouvida do que o cumprimento, que permanece rigorosamente orientado para a própria Palavra, sem dela haurir um saber pelo qual se torna juiz do irmão, de si mes­mo e, finalmente, também da própria Palavra de Deus.

O que foi tratado aqui fica bem claro pela palavra de Jesus a Maria e Marta, ainda que pareça dizer exatamente o contrário (Lc 10.38ss). Maria está sentada aos pés de Jesus e ouve, enquanto Marta "estava muito ocupada para servi-lo". Marta pede a Jesus que lembre a irmã que ao ouvir deve associar-se o fazer: "Manda que ela venha me ajudar". Jesus lhe respondeu: "Marta, tu estás preocupada e atarefada com tantas coisas, mas apenas uma é necessária. Maria escolheu a boa parte, e esta não lhe será tirada". Aqui Jesus com toda a clareza dá razão ao ouvinte diante do praticante. Bem-aventurado é o pratican­te em seu fazer, diz Tiago; bem-aventurados são os que ouvem a Palavra de Deus e a guardam, diz Jesus; ambos dizem o mesmo. Pois tão pouco como se poderá separar o ouvir do fazer, o fazer poderá ter autonomia diante do ouvir. A bem-aventurança do praticante inclui o ouvir, da mesma forma como a bem-aventurança do ouvinte inclui o fazer. Uma coisa é necessária - não ouvir ou fazer, mas ambos em um só, isto é, estar e permanecer na unidade com Jesus Cristo e orientado para ele. receber dele palavra e ação; não se tornar acusador ou juiz do irmão ou mesmo - como Marta - de Jesus Cristo, nem com base no ouvir nem com base no fazer; pelo contrário: tanto no ouvir como no fazer, confiar tudo a Jesus Cristo, viver dele, de sua graça e de seu bondoso juízo, que realizará a seu tempo. Na bem-aventurança, tanto na do que ouve como na do que age. é bendito aquele que foi libertado da desunião do próprio saber acerca do bem e do mal para a unidade com Jesus Cristo. Perante Jesus não valem nem o fazer em si, a agitação de Marta, nem o ouvir em si. Há um aparente

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fazer, assim como há um aparente ouvir. Não temos condições de examinar se o nosso fazer e ouvir são autênticos ou aparentes; a decisão sobre isso aconte­cerá à medida que entregarmos ou não esse exame unicamente ao saber e ao juízo de Jesus.

O conceito bíblico de ação fica mais claro ainda em duas outras deli­mitações. "Nem todo o que me diz: Senhor. Senhor! entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos céus" (Mt 7.21). Há, portanto, uma profissão de fé em Jesus Cristo - numa época, aliás, em que isso não é nada chique, antes implica, possivelmente, sofrimento e per­seguição - que Jesus rejeita porque está em contradição com o cumprimento da vontade de Deus. Não se deve pensar, também aqui, sem mais, em hipo­crisia consciente, que encobre a má ação com palavras piedosas; essa confis­são pode vir muito bem de coração pessoalmente sincero. Pode ser que a essa corajosa confissão esteja ligada uma ação igualmente corajosa e dedicada. Essa confissão e ação podem ser a consequência tirada com muito caráter, do que se reconheceu como bom e pelo que se está decidido a lutar. Mesmo assim, Jesus rejeitará essa confissão e ação exatamente porque provêm do próprio saber do ser humano a respeito do bem e do mal. É que aqui se realiza, no fundo, em surpreendente semelhança exterior com a vontade de Deus, a vontade do ser humano em desunião com Deus. Por conseguinte, a vontade de Deus justamente não é cumprida. Por isso, também, de nada vale mais aqui invocar a ação - "Em teu nome não fizemos muitos milagres?" (Mt 7.22), mesmo não ali onde se pensou tê-lo feito em nome de Cristo. Erraríamos, mais uma vez, supondo que com essa ação ou nela também ha­veria ainda maldade humana de toda espécie, pelo que essa ação se tornaria abominável. Não; precisamente ali onde nasce das motivações mais puras, onde leva aos atos mais piedosos e altruístas, é especialmente grande o peri­go de que se trate da ímpia antítese à vontade de Deus. criada a partir do saber próprio a respeito do bem e do mal. e da desunião com Deus, mas de indistinguível semelhança com a vontade de Deus. É um obscuro enigma que isso seja possível, que haja uma sincera profissão de fé em Cristo e um discipulado com todas as consequências que precisam ser rejeitados por Je­sus com as palavras: "Nunca vos conheci. Apartai-vos de mim, todos os que praticais a iniquidade" (Mt 7.23), é ura enigma que tem sua origem na rouba­da igualdade do ser humano com Deus, mas é, ao mesmo tempo, um fato com que Jesus e Paulo contaram.

O amor

"Ainda que eu tenha o dom de profetizar e conheça todos os mistérios e toda a ciência; ainda que eu tenha tamanha fé a ponto de transportar montes, se não tiver amor, nada serei. E ainda que eu distribua todos os meus bens entre os

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pobres, e ainda que entregue o meu próprio corpo para ser queimado, se não tiver amor, nada disso me aproveitará" (ICo 13.2s). Aqui se diz a palavra-chave na qual se distinguem o ser humano na dissensão e o ser humano na origem: o amor. Há um conhecimento de Cristo, uma poderosa fé em Cristo, há uma mentalidade e dedicação de amor até a morte - sem amor. É isso aí. Sem esse "amor" tudo se desfaz e é reprovável: dentro desse amor tudo está unido e é agradável a Deus. O que é esse amor?

Depois de tudo que vimos até agora, excluem-se aqui todas as defini­ções que desejam entender a essência do amor como postura humana, men­talidade, entrega, sacrifício, vontade de comunhão, sentimento, fraternidade, serviço e ação. Tudo isso, sem exceção, pode haver sem "amor", como acaba­mos de ouvir. Tudo o que estamos acostumados a chamar de amor, o que vive nas profundezas da alma e na ação visível, até aquilo que brota do coração piedoso em termos de fraterno serviço ao próximo, pode estar sem "amor", e isso não porque em todo comportamento humano continua havendo um resto de egoísmo que obscurece completamente o amor, e sim porque amor é algo completamente diferente do que aqui se entende. Amor não é, também, a relação pessoal direta, a compreensão dos aspectos pessoais, do individual em contraste com a lei da objetividade, da ordem impessoal. Além de se separar aqui "pessoal" e "objetivo" de forma abstrata e não-bíblica, o amor torna-se aqui um comportamento humano e, pior ainda, apenas parcial. O amor seria, então, um ethos superior de ordem pessoal, que entra como complementação e aperfeiçoamento ao lado do ethos inferior relativo a ques­tões de ordem e objetividade. Corresponderia a isso, por exemplo, a criação de um conflito entre amor e verdade, de tal modo que se sobreponha o amor como algo pessoal à verdade como algo impessoal. Com isso se estaria em flagrante contradição com a palavra de Paulo no sentido de que o amor se regozija com a verdade (ICo 13.6). O amor justamente não conhece o confli­to pelo qual se gostaria de defini-lo: antes, é de sua essência estar além de toda dicotomia. Lutero, com sua ciara visão bíblica, chama o amor que fere ou neutraliza a verdade de "amor maldito", ainda que se apresente na mais piedosa roupagem. Um amor que abrange tão-somente o âmbito das relações pessoais, capitulando diante do aspecto objetivo, nunca é o amor que o Novo Testamento prega.

Se não há, portanto, um comportamento humano imaginável que pos­sa ser conceituado inequivocamente como amor; se amor acontece além de toda desunião em que o ser humano vive; se, literalmente, tudo o que o ser humano possa entender e praticar como amor só é concebível como compor­tamento humano dentro da desunião existente, resta um enigma, uma ques­tão aberta acerca do que possa vir a ser amor para a Bíblia. Ela não nos nega a resposta. Nós a conhecemos muito bem, só que sempre a distorcemos. Ela diz: Deus é amor (Jo 4.16). Essa frase, a bem da clareza, deve ser lida pri­meiramente com ênfase na palavra Deus, ao passo que nós nos acostumamos

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a acentuar a palavra "amor". Deus é amor, ou seja. não um comportamento humano, uma mentalidade, uma ação, mas Deus mesmo é amor. Só sabe o que é amor quem conhece Deus, não o inverso: sabendo primeiro, e por natu­reza, o que é o amor, sabe-se então também o que é Deus. Ninguém conhece Deus a não ser que Deus se lhe revele. Consequentemente, ninguém sabe o que é amor a não ser na autorrevelação de Deus. Assim, amor é revelação de Deus. Revelação de Deus, no entanto, é Jesus Cristo. "Nisto se manifestou o amor de Deus por nós, em haver Deus enviado seu Filho unigênito ao mun­do, para vivermos por meio dele" (1Jo 4.9). A revelação de Deus em Jesus Cristo, a divina revelação do amor de Deus precede todo o nosso amor a ele. O amor tem sua origem em Deus, não em nós; o amor é postura divina, não comportamento humano. "Nisto consiste o amor, não em que nós tenhamos amado a Deus, mas em que ele nos amou e enviou o seu Filho para o perdão de nossos pecados" (1Jo 4.10). O que vem a ser amor só reconhecemos em Jesus Cristo, mais precisamente em sua ação por nós. "Nisto conhecemos o amor, em que Cristo deu a sua vida por nós" (1Jo 3.16). Também aqui não se oferece uma definição genérica do amor. no sentido, por exemplo, de que a entrega da vida pelos outros fosse amor. Não o genérico, mas a entrega abso­lutamente única da vida de Jesus Cristo por nós é qualificada aqui de amor. Amor está ligado de forma indissolúvel ao nome de Jesus Cristo como reve­lação de Deus. O Novo Testamento responde de forma muito clara à pergun­ta sobre o que vem a ser amor apontando exclusivamente para Jesus Cristo. Ele é a única definição do amor. Estaríamos desvirtuando tudo, no entanto, se da contemplação de Jesus Cristo, de sua obra e seu sofrimento, quisésse­mos deduzir uma definição genérica do amor. Amor não é o que ele faz e sofre; amor é o que ele faz e sofre. Amor sempre é ele mesmo. Amor sempre é o próprio Deus. Amor sempre é revelação de Deus em Jesus Cristo.

A rigorosa concentração de todos os pensamentos e afirmações a respei­to do amor no nome de Jesus Cristo não deve degradá-lo a um conceito abstra­to; antes, deve ser entendida sempre na plenitude concreta da realidade históri­ca de um ser humano de carne e osso. Portanto - mantendo o que dissemos acima -, só a ação e o sofrimento concretos do homem Jesus Cristo tornarão compreensível o que vem a ser amor. O nome "Jesus Cristo", no qual Deus revela a si mesmo, oferece sua autointerpretação na vida e na mensagem de Jesus Cristo. Afinal, o Novo Testamento não consiste na infindável repetição do nome de Jesus Cristo; o que esse nome abrange é interpretado por aconteci­mentos, conceitos e afirmações que nos são inteligíveis. Assim, o poder do termo "amor", ágape, não é simplesmente arbitrário. Por mais que esse termo receba um sentido completamente novo através da mensagem do Novo Testa­mento, não está aí sem relação alguma com o que, em nossa língua, entende­mos por "amor". Não é nem que o conceito bíblico de amor fosse uma forma determinada daquilo que, genericamente, sempre já entendemos por "amor". Diante do conceito bíblico de amor acontece exatamente o inverso, evidencian-

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do-se que tão-somente ele é a base, a verdade e a realidade do amor, de manei­ra tal que toda reflexão natural sobre o amor só tem verdade e realidade na medida em que tem sua origem no amor que o próprio Deus é em Jesus Cristo e na medida em que participa desse amor.

À pergunta em que consistiria o amor continuamos respondendo com a Escritura: na reconciliação do ser humano com Deus em Jesus Cristo. A desu­nião do ser humano com Deus e com o próximo, com o mundo e consigo mesmo está terminada. Por graça, foi-lhe devolvida a origem.

O amor designa, portanto, a ação de Deus no ser humano através da qual é superada a dicotomia em que o ser humano vive. Essa ação chama-se Jesus Cristo, reconciliação. Amor, portanto, é uma coisa que acontece ao ser huma­no, algo passivo, algo de que ele não dispõe por si mesmo, porque, por defini­ção, está além de sua existência na dissensão. Amor significa sofrer a meta­morfose de toda a existência por parte de Deus, ser incorporado ao mundo tal como ele somente pode subsistir diante de Deus e em Deus. Amor não é esco­lha do ser humano, mas eleição do ser humano por Deus.

Em que sentido, então, pode-se ainda falar do amor como uma ação humana, do amor do ser humano a Deus e ao próximo, como o Novo Testa­mento o faz com suficiente clareza? O que quer dizer que também o ser huma­no pode e deve amar diante do fato de que Deus é o amor? "Nós o amamos porque ele nos amou primeiro" (1Jo 4.19). Isso significa que o nosso amor se baseia exclusivamente na circunstância de sermos amados por Deus, em ou­tras palavras, que o nosso amor outra coisa não pode ser do que a aceitação do amor de Deus em Jesus Cristo. "Se alguém ama a Deus é conhecido por ele" (ICo 8.3). Ser conhecido significa, na linguagem bíblica, "eleito, gerado". Amar a Deus quer dizer aceitar sua eleição, sua geração em Jesus Cristo. A relação do amor divino e do humano não deve ser entendida como se o primeiro prece­desse o segundo com a finalidade de acionar o amor humano como ação inde­pendente, livre e própria do ser humano face ao amor de Deus. Ao contrário, também para tudo quanto se possa dizer do amor humano vale que Deus é o amor. É com o amor de Deus. e nenhum outro - porque não há outro amor, autônomo ou livre diante deste -, que o ser humano ama a Deus e ao próximo. Nisso o amor humano permanece totalmente passivo. Amar a Deus é apenas o anverso do ser amado por Deus. O amor de Deus inclui o amor a Deus; o amor a Deus não se justapõe ao ser amado por Deus.

Para elucidar isso é preciso uma palavra esclarecedora, neste contexto, sobre o conceito de passividade. Trata-se aqui - como sempre quando na teo­logia se fala da passividade humana! - de um conceito teológico e não psicoló­gico, visando à existência do ser humano diante de Deus. Passividade face ao amor de Deus não significa descanso no amor de Deus sob exclusão de pensa­mentos, palavras e ações, como se ele só me seria dado nessas "horas de cal­ma". O amor de Deus não é apenas aquele porto de refúgio onde posso me abrigar do mar revolto. Ser amado por Deus de modo algum proíbe ao ser

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Nota do editor: Capítulo inconcluso.

humano pensamentos fortes e ações alentadas. Somos amados e reconciliados por Deus em Cristo como seres humanos inteiros. É como seres humanos in­teiros, raciocinando e agindo, que amamos a Deus e aos irmãos. 8