Ética e Meio Ambiente - Dissertacao Liliana Lincka
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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
LLILIANAILIANA L LINCKAINCKA DEDE S SOUSAOUSA
João Pessoa/PB2004
LILIANA LINCKA DE SOUSA
ÉÉTICATICA EE MEIOMEIO AMBIENTEAMBIENTE: : AA QUESTÃOQUESTÃO DADA RESPONSABILIDADERESPONSABILIDADE
PARAPARA COMCOM ASAS FUTURASFUTURAS GERAÇÕESGERAÇÕES
Dissertação apresentada como requisito indispensável à obtenção do título de Mestre em Filosofia, pela Universidade Federal da Paraíba. Orientada pelo Professor Doutor Marconi Pequeno.
João Pessoa/PB2004
LILIANA LINCKA DE SOUSA
Ética e meio ambiente: a questão da responsabilidade para com as futuras gerações
Dissertação apresentada como requisito indispensável à obtenção do título de Mestre em Filosofia, pela Universidade Federal da Paraíba. Orientada pelo Professor Doutor Marconi Pequeno.
Monografia aprovada em: ___/___/2004.
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________ORIENTADOR: Professor Dr. Marconi Pequeno
(Universidade Federal da Paraíba)
___________________________________________MEMBRO DA BANCA: Professor Dr. Giusepe Tosi
(Universidade Federal da Paraíba)
_______________________________________________________PROF. CONVIDADO: Professor Dr. Marcelo Luiz Pelizzoli
(Universidade Federal de Pernambuco)
Aos meus pais, Oswaldo e Luzia
(in memorian), aos meus filhos Tiago,
Ana Luísa e Sara, aos meus amigos e às
minhas amigas presentes e ausentes e às
gerações futuras.
Dentre todos os sentimentos humano, creio que a
gratidão seja o mais nobre deles. Saber reconhecer todo e
qualquer apoio é, no mínimo uma atitude de racionalidade.
Sendo assim, e, para não correr o risco de me esquecer de
alguém, agradeço a todas as pessoas que, direta ou
indiretamente, contribuíram para a finalização deste trabalho.
Contudo, quero deixar registrado um obrigado todo especial a
Cícero Ferreira de Sousa por, em diversos momentos, ter
proporcionado as condições necessárias para o
desenvolvimento deste projeto e a Alvamar Costa de Queiroz
pela credibilidade em mim depositada. Por fim, quero
expressar o meu reconhecimento e admiração ao meu
professor e orientador Dr. Marconi Pequeno.
“Devemos enfim viver para sermos criativos. O que
quero dizer com criativo? Quero dizer tentar mudar o
universo no qual nos encontramos – tentar acrescentar-lhe
coisas boas, se possível.”
Arnold Toynbee
“Não tenho medo de nada. Não há como realizar uma
revolução se tiver medo das dificuldades. É natural enfrentar
dificuldades ao realizar uma revolução.”
Deng Yingchao
RESUMO
Apresenta uma discussão acerca do problema moral que se coloca por detrás da questão ambiental a qual tem origem no atual modelo de desenvolvimento, ou seja, na maneira como os seres humanos vêm se relacionando com a natureza. O problema moral a que se refere consiste em julgar se existem obrigações morais desta geração para com as gerações futuras. Engloba quatro capítulos: o primeiro discorre acerca do conceito de natureza desde a Grécia antiga até seus desdobramentos em alguns momentos do pensamento tradicional; o segundo capítulo aborda a discussão referente ao problema das futuras gerações a partir da obra de Giuliano Pontara; o terceiro capítulo discute a questão ambiental relacionando-a aos possíveis impactos sobre a vida das futuras gerações a partir da ótica neo-utilitarista de Peter Singer; o último, e quarto capítulo mostra o princípio de responsabilidade formulado pelo filósofo alemão Hans Jonas, bem como sua importância no sentido de garantir a existência das gerações futuras. Finaliza com as considerações finais acerca do princípio de responsabilidade que será apresentado como forma dar cabo à desvairada corrida tecno-científica o que irá, certamente, garantir o futuro da humanidade.
Palavras-chave: Ética. Responsabilidade. Gerações futuras. Meio ambiente.
ABSTRACT
This work presents discussions related to the moral problem lying beneath environmental issues that has been originated throughout the current development model. This is seen by the way humans relate to nature. These questions bring upon discussions related to aspects judging whether there are moral obligations of this generation upon the next one. The research is divided into four chapters: the first one deals with nature and its concepts from ancient Greece and its unveilings in moments of the traditional school of thinking; the second chapter deals with aspects related to problems of the future generations considering the work of Giuliano Pontara; the third one discusses environmental issues relating them to possible impacts on future generation. This is done taking into consideration the neo-utilitarian angle of Peter Singer. The last and fourth chapter shows the principle of responsibility that was formed by German philosopher Hans Jonas as well as the importance of guaranteeing the existence of future generations. The work finalizes with consideration related to the principle of responsibility that presented as a form to end the crazy techno-scientiffic run, that will certainly end the future of humankind.
Key Words. Ethics. Responsibilities. Future Generations. Environment.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO......................................................................................................................... 9
1 A NATUREZA NA MULTIPLICIDADE DE SUAS VOZES....................................................... 13
2 O MODELO ATUAL DE CIVILIZAÇÃO E O PROBLEMA DAS GERAÇÕES FUTURAS........... 31
2.1 TESE DA NÃO-RESPONSABILIDADE PARA COM A ESPÉCIE HUMANA................................... 35
2.2 TESE DA NÃO-RESPONSABILIDADE PARA COM OS DESCENDENTES.................................... 37
a) O argumento da providência divina.............................................................................. 37
b) O argumento da astúcia da razão................................................................................. 38
c) O argumento da relevância ética do presente e da irrelevância ética do futuro....... 39
d) O argumento da ausência de empatia........................................................................... 41
e) O argumento baseado na observância dos deveres morais......................................... 43
f) O argumento da ignorância humana............................................................................. 43
2.3 A TESE DA MENOR RESPONSABILIDADE............................................................................ 45
2.4. A TESE DA RESPONSABILIDADE DECRESCENTE................................................................ 48
2.5 A TESE DA RESPONSABILIDADE TOTAL............................................................................. 50
3 A QUESTÃO DAS GERAÇÕES FUTURAS SEGUNDO A PERSPECTIVA NEO-UTILITARISTA DE PETER SINGER................................................................................................................. 56
4 A ÉTICA DA RESPONSABILIDADE PARA COM AS GERAÇÕES FUTURAS............................ 70
4.1 O FAZER TECNOLÓGICO E SUAS IMPLICAÇÕES.................................................................. 70
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................................... 78
REFERÊNCIAS........................................................................................................................ 82
INTRODUÇÃO
No afã de satisfazer suas necessidades vitais, o ser humano vem, ao longo dos tempos,
realizando atos que, muitas vezes, tendem a comprometer sua relação com o meio natural. Tal
fato, desde o século passado, tem sido objeto de investigação de alguns estudiosos como, por
exemplo, o biólogo alemão Ernst Haeckel (1834-1999) que, em 1866, criou o termo ecologia
(do grego oikos = casa; logos = estudo) definindo-a como o estudo do inter-retro-
relacionamento de todos os sistemas vivos e não vivos entre si e com seu meio ambiente. A
princípio, a ecologia era estudada no âmbito da biologia; entretanto, atualmente, passou a ser
objeto de estudo de várias ciências, como: a economia, a geografia, a sociologia, a psicologia,
dentre outras.
Os movimentos ecológicos tornaram público que a crise ambiental revela a maneira
como nos relacionamos com o meio ambiente, servindo ainda de parâmetro para compreensão
daquilo que o homem tem feito à natureza. Esta crise se afigura como um resultado do
interesse de alguns pensadores que passaram a ver a crise ambiental numa perspectiva mais
humanista e menos técnica. Tais interesses também se ampliaram a outras esferas e instâncias
da vida contemporânea. Atrelada a esses estudos e preocupações está a idéia de instituir
mecanismos capazes de disciplinar a ação do homem sobre o mundo natural e, sobretudo, a
noção de responsabilidade para com as gerações futuras.
No âmbito do direito internacional, a Carta das Nações Unidas, aprovada em junho de
1945, constituiu-se como o primeiro documento a fazer referência à responsabilidade dos
indivíduos para com as gerações futuras. Todavia, convém indagar: como pensar o nosso
futuro e o dever que temos para com os que ainda hão de surgir, sem antes entender a origem
9
do fenômeno? E, ainda, por que o problema relativo às gerações futuras tem se tornado uma
questão moral fundamental?
A tradição ocidental instaurou uma idéia antropocêntrica ao pensar a relação do homem
com o meio natural. Aristóteles, por exemplo, via a natureza como “uma hierarquia na qual os
que têm menos capacidade de raciocínio existem para o bem dos que têm mais”
(ARISTÓTELES apud SINGER, 1993, p.282). A tradição judaico-cristã fez com que a
natureza passasse a ser considerada como obra da vontade de uma providência absoluta, cujo
poder determinaria até mesmo a configuração do cosmos e o lugar que nele ocuparíamos.
Com isso, o domínio do homem sobre a natureza tornou-se um direito outorgado por Deus.
O que Deus quis “dizer” quando deu ao homem a permissão de domínio é uma questão
bastante discutida pelos ecologistas contemporâneos, uma vez que, por domínio, não se pode
entender “uma licença para fazermos tudo o que quisermos com os outros seres vivos, mas,
sim, como uma orientação para cuidarmos deles em nome de Deus e sermos responsáveis,
perante o Criador, pelo modo como a tratamos” (SINGER, 1993, p.281).
Poder-se-ia também pensar que o ser humano age contra a natureza pelo fato de
desconhecer a “dignidade” do Planeta, passando a concebê-lo como se fosse propriedade sua.
Dito de outra maneira, talvez o drama de nossa cultura esteja na idéia de se fazer da diferença
uma discriminação, uma desigualdade. Para alguns estudiosos, o fato de o homem ser
diferente não deve ser visto como um passaporte para o domínio sobre os demais seres, no
sentido de exercício de um poder absoluto, pois é da diversidade que surge a vida. A
diversidade fornece à vida a possibilidade de se expandir, de se ampliar ao longo da nossa
história natural. É ela, a rigor, que vai permitir a comunhão, a alteridade, isto é, a capacidade
de o indivíduo se colocar no lugar do outro, como desafio para se atingir a unidade e o
equilíbrio. Somente quando for capaz de captar o sentido da alteridade é que o homem
conseguirá entender o legado que a presente geração poderá deixar para as gerações futuras.
10
Há também uma grande dificuldade em se aceitar que é preciso uma mudança no
modelo de civilização atual. E por que tal mudança é relevante? Porque, caso não se faça uma
opção pela vida, parece pouco plausível que se possa garantir uma existência sadia às
gerações futuras. A existência sadia dar-se-á quando o homem conseguir vencer o desafio de
reinventar novos modelos de vida e de adequá-los aos interesses da humanidade. Neste
sentido, mais do que gerenciar os fenômenos do mundo, o homem contemporâneo, numa
perspectiva ética, está sendo desafiado a começar a trabalhar com uma visão generativa em
vez de reativa1, a fim de que não se tenha que reanimar a vida depois de se tê-la perdida. Em
outros termos, é imprescindível que o homem tente recriar ou redimensionar seus modos de
viver com vistas à construção de um equilíbrio harmônico com o mundo que o circunda.
Com esta perspectiva, o problema moral consiste em se julgar se existem obrigações
morais desta geração para com as gerações futuras. Mas, para enfrentar essa questão,
precisamos remontar às origens do problema a fim de perscrutar as suas causas. Devemos,
enfim, lançar luzes sobre alguns dos contornos teóricos sobre este tema, elucidando as
categorias ou conceitos que balizam a discussão atual.
Nesse sentido, apresentamos no capítulo 1, o modo como a idéia de natureza se define a
partir dos gregos e seus desdobramentos em alguns momentos do pensamento tradicional. No
capítulo 2, discorremos sobre o modelo atual de civilização e o problema das gerações
futuras, procurando ainda demonstrar como essa problemática se instaura e, sobretudo, como
ela tem sido enfrentada por alguns autores, como é o caso de Pontara, Glover e Rawls. Aqui
apresentamos as teses e os argumentos que dão sustentação à idéia de responsabilidade em
seus vários aspectos e dimensões (responsabilidade para com a espécie, para com os
descendentes, responsabilidade total, não-responsabilidade, etc.). No Capítulo 3, tratamos do
problema das gerações futuras à luz do pensamento de Peter Singer, destacando, sobretudo, o
1 Isto significa que é preciso concentrar as ações no sentido de produzir boas causas, o que implica gerar bons efeitos.
11
viés neo-utilitarista característico de suas formulações. Aqui também analisamos, com base
nas idéias do referido autor, o significado do fazer tecnológico e suas implicações sobre a vida
dos indivíduos atuais e, mais particularmente, acerca dos possíveis impactos do mesmo sobre
a vida das futuras gerações. Por fim, no capítulo 4, tratamos do princípio de responsabilidade
formulado por Hans Jonas, apresentando alguns dos elementos essenciais de sua proposta e a
importância que ela assume para a discussão acerca dos compromissos morais que temos em
relação aos seres que ainda surgirão no Planeta.
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1 A NATUREZA NA MULTIPLICIDADE DE SUAS VOZES
A natureza fala, mas fala como uma alma deve falar a outra, sem intermédio dos lábios.
Machado de Assis
Pense num jardim onde apenas dois sons são audíveis: um produzido pelo canto dos
pássaros; outro, proveniente de uma pequena queda d'água... Quando imaginamos um lugar
como este, o que sentimos? A beleza da paisagem que nos enleva ou somente um local para
aliviar o estresse acumulado por mais um dia de trabalho exaustivo? Por que uma árvore
derrubada faz suscitar o clamor de muita gente, assim como uma baleia encalhada numa praia
desperta uma comoção na opinião pública? Por que tal sentimento nem sempre é expresso
diante de uma criança faminta, dessas que encontramos em nossas ruas? A relação que
mantemos com o meio em que vivemos pode ser melhor entendida se formos capazes de
responder a perguntas do tipo: o que entendemos por Natureza2 e qual a relação que devemos
manter com os seus elementos? Qual o estatuto e a importância que o ser humano deve
conferir aos outros seres naturais?
Responder a tais perguntas tem sido hoje um desafio, pois o que entendemos hoje por
Natureza sofre redimensionamentos e reconfigurações de acordo com a época e as
circunstâncias em que vivemos. A noção e o respeito à Natureza (ou aos seres naturais)
depende das variáveis culturais e dos interesses estratégicos dos indivíduos, face aos
imperativos de sua época.
Tais questões ganham importância porque, para muitos, o futuro nunca fôra tão incerto
e sombrio como o é agora. O novo século começa carregando consigo velhos problemas e
novas encruzilhadas, determinadas de um lado, pelo avanço da tecnologia e, de outro, pelas
negações que ela engendra. Assim, diante das dificuldades que caracterizam a questão
2 Sempre que o termo Natureza estiver escrito em letra maiúscula estará se referindo ao termo grego phýsis no sentido de força originária criadora de todos os seres, ou seja, o fundo perene de onde vem e para onde retornam todas as coisas; a realidade primeira e última de todos os seres que existem. Neste caso opõe-se a nómos – àquilo que se refere ao uso ou ao costume.
13
ambiental, cabe-nos perguntar: como é possível compatibilizar o avanço material vertiginoso
acarretado pelo progresso técnico-científico com a necessidade de se manter o meio ambiente
saudável?
Uma das principais dificuldades em responder a este dilema é representada pelo desafio
em se compreender o que é este fenômeno que designamos como Natureza. Este problema é
ainda agravado pela confusão que se faz entre Natureza e meio ambiente. Com efeito, os
problemas que deram origem à questão ambiental ou à chamada crise ecológica3, já foram
objetos de muitos estudos científicos, bem como de vários relatórios de Entidades
Internacionais como, por exemplo, o State of the World, que consiste numa série de
documentos editados pelo Worldwatch Institute, de Washington, D.C.4 Dentre os problemas
ecológicos mais expressivos analisados aqui estão a explosão demográfica, o efeito estufa,
que tem contribuído para o aquecimento da atmosfera, o aumento da emissão de gases
poluentes, como é o caso do CFC (Clorofluorcarbono) que deixam a camada de ozônio cada
vez mais rarefeita; o aumento crescente de substâncias químicas, sobretudo nos rios e
mananciais d’água, trazendo sérios danos aos lençóis freáticos; o comprometimento da
qualidade de vida e sobrevivência, especialmente de populações que vivem no hemisfério sul,
tendo em vista as carências nutricionais, sanitárias e econômicas que as atingem.
É interessante ainda salientar que a intensificação da crise ecológica poderá levar a
humanidade a conflitos gerados pelo esgotamento das fontes vitais de subsistência, bem como
a sofrer a ameaça de epidemias decorrentes de microorganismos patológicos provenientes de
outros seres vivos (a exemplo do vírus HIV, cuja origem atribui-se ao contato do homem
africano com primatas infectados). Assim, além do risco sempre presente do uso de armas
químicas e bacteriológicas, bem como de artefatos nucleares de alto poder destrutivo, muitos
3 O termo ecológico traduz um sentido bem mais amplo e profundo, isto é, reconhece a interdependência entre todos os problemas que compõem a questão ambiental.
4 Conforme indica CAPRA (2002), parte destes Relatórios já foi traduzida pela Editora Globo sob o título Salve o Planeta!
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indivíduos ainda estão à mercê do poder beligerante das superpotências e de sua hegemonia
sobre os bens essenciais e estratégicos da Natureza. Afora essas ameaças, constata-se que a
questão ecológica, embora ganhe cada vez mais destaque nas sociedades contemporâneas, não
tem ocupado um lugar de honra na fila das prioridades das políticas públicas, nem, tampouco,
tem ajudado a modificar a postura cotidiana dos cidadãos em face do meio ambiente.5
Ora, a desconsideração de tais problemas por parte de governos e agentes produtivos
tende a gerar um desenvolvimento sócio-econômico insustentável, além de inviabilizar o uso
racional dos recursos naturais disponíveis. Para alguns autores, a reversão desse cenário
somente seria possível mediante uma mudança de concepções e atitudes que proporcionem ao
ser humano dirigir o seu olhar para a Natureza, não mais como uma mera imagem distante, e
sim como algo do qual ele faz parte. Para tanto, seria necessário abolir a distinção homem-
Natureza como se ambos fossem fenômenos isolados, apartados; e que a Natureza passasse a
ser vista como um todo integrado, no interior do qual o homem existe como parte
constitutiva.6 Atendidas essas condições, seria possível a formação de uma consciência capaz
de tornar menos vulnerável o ambiente no qual vive o homem.
O fato é que, aos olhos de muitos, os homens têm tratado de forma hostil a Natureza. O
que parece mais grave é que esta conduta vem se agravando consideravelmente, a ponto de
pôr em risco a sua existência e a das demais espécies vivas. Diante desse quadro, faz-se
necessário repensar o papel e o valor dos seres naturais em si e não apenas pelo que eles
podem oferecer para garantir a realização do sonho humano de grandeza e progresso. A
aposta num desenvolvimento auto-sustentável e de uma ação mais responsável dos agentes
tecnológicos sobre o mundo natural permitirá, quiçá, legar às gerações futuras um Planeta
habitável. O fato é que o desenvolvimento material tem se dado de forma descompassada em
5 Quem não se lembra da Guerra dos Seis Dias, em 1967, entre Israel e seus vizinhos que teve como motivação a ameaça, por parte dos árabes, de desviar o fluxo do rio Jordão, o qual juntamente com seus afluentes é responsável pelo fornecimento de 60% da água consumida em Israel.
6 Para aprofundar essas questões ver Luc-Ferry citado nas referências.
15
relação aos anseios de preservação ambiental. Além disso, os termos ambiente, meio
ambiente, ecossistema, Natureza, são usados muitas vezes de forma pólissêmica, adquirindo
diversos contornos e significações.
A palavra Natureza, por exemplo, é, freqüentemente, empregada em múltiplas
acepções. Eis o que torna ainda mais complexo e obscuro o seu significado. O dicionário de
língua portuguesa Ferreira (1986) oferece a seguinte definição: “1. Todos os seres que
constituem o Universo; 2. Força ativa que estabeleceu e conserva a ordem natural de tudo
quanto existe”. Observa-se, assim, que natureza remete à ordem natural, e esta, por sua vez,
remete à natureza, formando, dessa forma, um círculo do qual é difícil sair.
Os dicionários de filosofia não tornam menos difusa a definição. Para Nicola
Abbagnano (1998, p. 699), a Natureza é definida a partir de quatro concepções: “1ª) princípio
do movimento ou substância; 2ª) ordem necessária ou conexão causal; 3ª) exterioridade,
contraposta à interioridade da consciência; 4ª) campo e encontro ou de unificação de certas
técnicas de investigação”.
Pode-se dizer que as duas primeiras definições expressam o sentido dado pelos antigos
pensadores gregos do período cosmológico cujas investigações centravam-se na busca da
origem do mundo (arché) que, para eles, encontrava-se na Natureza. Estas investigações
datam do século VI a.C. Tal período marca, sobretudo, o início da revolução intelectual
gerada, inicialmente, por Tales, Anaximandro e Anaxímenes, todos de Mileto. Estes autores
inauguraram uma forma de refletir distinta de tudo o que se realizara até então, a qual
consistia numa investigação sistemática acerca das coisas que há no mundo. Com eles surgiu
a filosofia como um pensamento sistemático, fundado na razão, cujo escopo consistia em
investigar o fundamento e a origem da realidade. Mesmo divergindo quanto ao elemento
16
originário7, ao princípio fundador de tudo o que é, os primeiros filósofos gregos, como
sabemos, negavam a idéia de uma origem pautada em quaisquer
agentes sobrenaturais cujas aventuras, lutas, façanhas formavam a trama dos mitos de gênese que narravam o aparecimento do mundo e a instituição da ordem; nem mesmo alusão aos deuses que a religião oficial associava, nas crenças e no culto, às forças da natureza (VERNANT, 1996, p. 73).
A fim de superar esta concepção, diz Robert Lenoble (1969, p. 184s),
foram necessários ao homem séculos de trabalho e de coragem intelectual para passar da definição de natureza por naturalmente e de naturalmente por natureza, isto é, da impressão de uma necessidade contra a qual somos impotentes, para a afirmação audaciosa de que a natureza forma um conjunto, de que as próprias coisas se encontram submetidas a uma lei.
Um pouco mais adiante, ele afirma que
bastar-nos-á conhecer estas leis para nos situarmos a nós mesmos no nosso lugar neste conjunto, para entrar nele e não nos deixarmos mais dominar por ele – e isso será uma primeira conquista. Depois, dir-se-á um dia: se conhecermos as leis, podemos, pois, servir-nos das coisas e tornar-nos ‘donos e senhores’ da natureza, e isso será uma segunda fase (LENOBLE, 1969, p. 185).
Nota-se que a afirmação de Lenoble reflete duas concepções opostas acerca do que é
Natureza. A primeira vê a Natureza como uma multiplicidade de coisas desordenadas que, ao
ordenarem-se, formam um conjunto regido por leis. A mudança dá-se justamente aí, isto é,
quando passamos da idéia de natureza para a de naturalmente, ou seja, de algo que acontece
por geração espontânea. O fato é que, para os gregos, a Natureza possui uma força motriz
própria, uma lei necessária que a gera. Dá-se aqui o momento em que o homem afasta-se do
mito e, por conseguinte, instaura um modo de pensar racional (logos). A racionalidade
7 Para Tales, era a água; para Anaximandro, o ápeiron, isto é o ilimitado, indeterminado; para Anaxímenes era o ar (pneûma).
17
possibilitou o conhecimento da justiça que, naturalmente, levou o homem a aprender a viver
segundo a lei (nomos) e não mais segundo o determinismo da sua natureza (physis).
O segundo momento ao qual se refere Lenoble foi aquele em que o ser humano, depois
de conhecer as leis, se fez ‘dono e senhor’ da Natureza, engendrando todo o processo de
objetificação da mesma, o qual só foi possível porque os ‘donos e senhores’ da Natureza
passaram a vê-la de forma fragmentada, ou seja, como um conjunto de partes desconectadas
umas das outras. Mas esta reviravolta somente se dera a partir da modernidade. Sobre isto
falaremos depois.
Certamente que neste exercício para se compreender a idéia de Natureza, não seria
prudente deixar à margem a indicação sobre o significado etimológico do termo Natureza que
tem sua origem no latim – nasci, nascor – e designa o nascer, o crescer, o ser criado. É neste
sentido que a Antigüidade entendia tanto a natureza, como origem das coisas e como a
Natureza em si. Vejamos alguns exemplos dessa reviravolta.
Há no pensamento dos jônios acerca da Natureza duas grandes idéias convergentes: a
primeira diz respeito ao caráter laico do pensamento que a apreende; a segunda se refere à
totalidade do ser, pois, para os milésios, tudo o que existe é Natureza, isto é, phýsis8. Nesse
sentido,
os homens, a divindade, o mundo formam um universo unificado, homogêneo, todo ele no mesmo plano: são as partes ou os aspectos de uma só e mesma phýsis que põe em jogo, por toda parte, as mesmas forças, manifesta a mesma potência de vida (LENOBLE, 1969, p. 73).
Resumidamente, pode-se concluir que, para os jônios, a phýsis é o todo, a unidade e a
ela pertencem o mundo, as plantas, os animais, os homens e os deuses. Contudo, tais
pensadores não pretendiam, a partir dessa idéia de phýsis, naturalizar o homem, nem,
8 A phýsis é o fundo inesgotável que dá origem ao kósmos (ordem e organização da natureza ou do mundo); é para onde regressam todas as coisas, a realidade primeira e última de tudo que existe. É o oposto de nómos (o que é por decisão dos humanos). O sentido completo de phýsis pode ser encontrado em CHAUÍ (1994).
18
tampouco, humanizar a Natureza. Com efeito, o que se discute não é o conceito de Natureza
ou de homem, mas uma idéia de totalidade, ou ainda daquilo que constitui o sentido, a
essência, de tudo o que existe.
Se para os jônios a natureza e a phýsis são os dois lados de uma mesma moeda, o
mesmo entendimento não prevalece entre os atomistas, pois, neste caso, a phýsis é
representada pelo átomo, como unidade fundamental da mesma (Lenoble, 1969). A
cosmologia proposta pelos atomistas defende, principalmente, a idéia de que nada existe por
acaso, ou melhor, se uma coisa existe é porque sua ocorrência é necessária.
Lenoble (1969, p. 85) descreve assim a escola atomista:
Para os atomistas, nada resta das aparências das coisas. Nem as qualidades sensíveis, simples ilusões subjectivas construídas sobre formas geométricas: «é convenção a cor, convenção o amargo»; na realidade, não existem senão átomos e vazio diz Demócrito, que pensa que é da reunião dos átomos que todas as qualidades semelhantes nascem, de alguma forma, para nós que as percebemos, «pois na Natureza não existe nem branco, nem preto, nem amargo, nem doce».
Sobre os atomistas, Marilena Chauí (1994, p. 102) diz que “mais do que uma
cosmologia, com os atomistas temos uma física” concluindo, adiante, que “os átomos não são
qualidades, são formas (figura, ordem, posição), são estruturas das coisas, cuja origem e
mudanças decorrem apenas dos movimentos dos átomos no vácuo”. Tais preocupações serão,
por assim dizer, deflacionadas pela emergência da antropologia filosófica, inaugurada por
Sócrates e, posteriormente, desenvolvida sobretudo por Platão e Aristóteles.
Ao contrário dos pré-socráticos que se dedicavam às cosmogonias, Sócrates e Platão,
como sabemos, ocupavam-se, principalmente, das questões inerentes à existência humana.
Sócrates, a rigor, não recusava a idéia de que o mundo segue suas leis próprias, o que para ele
é independente da direção que o destino do homem poderá ter. O homem socrático não
poderia inverter a ordem natural das coisas, ou seja, ele primeiro deveria se ocupar de pôr em
ordem a sua casa (oikos, polis) para, somente depois, ocupar-se das outras esferas (o mundo,
19
o cosmos). Ao mesmo tempo em que vai se reconhecendo autônomo,9 o homem pensado por
Sócrates, também reconhece a autonomia das coisas. Daí a necessidade de o mesmo, garantir,
em primeiro lugar, as condições de sua própria existência para, somente depois, voltar-se para
fora de si, isto é, para o mundo exterior à pólis.
Se, por um lado, Sócrates pouco se ocupou da cosmologia, Platão, entretanto, o fez sem
muito sucesso, pois, como sugere Lenoble, tanto ou mais do que seu ‘mestre’, Platão também
é um moralista e sua grande preocupação é como a da maioria dos gregos de sua época, com
política, a organização da cidade, a formação do cidadão.
Se Platão estendeu à polis o olhar pacífico da ordem, Aristóteles, por sua vez, foi
procurar a mesma ordem na Natureza. A este respeito Lenoble (1969, p. 66) afirma que
até chegarmos a ele, o homem, obcecado com os seus próprios problemas, reflectiu sobre a Natureza da magia que o atormentava; morigerado e acalmado pelo «isolamento» socrático e platônico, pode agora aceitar a alteridade do mundo. Com Aristóteles surge a primeira percepção desinteressada da Natureza.
Ao conhecimento produzido pelo homem, Aristóteles dá o nome de Filosofia – vale
lembrar que, no Ocidente, até o século XIX, filosofia e ciência aparecem amalgamadas.
Aristóteles divide as ciências em teoréticas, práticas e produtivas. Sua idéia da Natureza faz
parte do campo de pesquisa das ciências teoréticas as quais investigam o princípio e as causas
dos seres que existem naturalmente, ou seja, por natureza. Esta última, para Aristóteles, é o
fim (télos). Assim, o homem só pode conhecer a natureza de uma coisa depois que ela se
desenvolve.
No livro II da Física, Aristóteles classifica os seres segundo a sua natureza. Para ele,
alguns seres são por natureza enquanto outros o são por outras causas. Uma das coisas que
existe por natureza (phýsis) é a polis. A polis é a própria comunidade (Koinomia) a qual é
constituída de vários vilarejos; estes, por sua vez, constituem a cidade.
9 Conforme indica LENOBLE (1969), apesar de reconhecer-se autônomo, o homem socrático não se vê separado do mundo.
20
Aristóteles, na Física, apresenta a noção de movimento como a passagem de um estado
inicial para a realização da forma. Assim, o movimento tornará possível que, por exemplo,
uma semente se transforme em uma árvore. Ademais, é a presença ou a ausência de
movimento que diferencia os seres. A partir dessa noção é possível então classificar as
ciências teoréticas. Desse método surge a ciência da Natureza que tem por objeto o estudo dos
seres naturais, isto é, de tudo que integra a phýsis e que existe independentemente da vontade
do homem. Portanto, a Filosofia da Natureza ocupa-se dos seres que passam do estado de
potência ao ato.
Ademais, para Aristóteles, há no homem uma tendência natural em se desenvolver e
assumir uma função na polis. Disto se conclui que a plis é anterior à família, da mesma forma
que o todo precede a parte. Eis a marca do holismo organicista presente na teoria aristotélica.
Para que esta noção holística se concretize é preciso que o ser-homem esteja vinculado ao seu
ambiente.10 Daí a necessidade natural que o homem tem em se dirigir para a polis.
Aristóteles busca o sentido de Natureza com base na relação que há do todo com suas
partes. Assim, segundo Lenoble (1969, p. 75), nas questões relativas à Natureza, Aristóteles
considera
que a natureza fabrica as pedras, os animais e as plantas como o oleiro gira o seu vaso. A teoria das quatro causas é a racionalização desta imagem: como o artesão, a Natureza pega uma matéria (causa material) e impõe-lhe uma forma (causa formal) com o auxílio de um instrumento (causa eficiente); sendo toda a operação empreendida e conduzida tendo em vista o resultado (a causa final é a mais importante e a única explicativa em última instância).
Em síntese, Aristóteles busca o sentido de Natureza cujo princípio consiste em conhecer
o todo para então se conhecer as partes. Esta visão de uma Natureza como objeto de estudo irá
prevalecer até o início do século XVI, quando ocorreu a sua substituição pela idéia de
10 Aristóteles não concebe a idéia de um espaço vazio. Para ele, o lugar é a fronteira, o limite entre um corpo continente e o contorno do corpo contido.
21
Natureza como campo de ação do homem. Tal substituição ocorre em razão do surgimento de
novos paradigmas e da mudança do papel do homem no mundo.
Antes da emergência do cristianismo, o homem via a Natureza como uma cômoda
morada, pois tinha garantido o seu lugar nela, assim como os demais seres o têm. Entretanto,
com o advento do cristianismo, ele passa a não mais se situar nela, porque não mais lhe
pertence. A Natureza passa a ser vista como resultante da graça divina. Nota-se, aí, a
introdução do elemento transcendente na relação homem-Natureza.
A concepção cristã de Natureza se distancia daquela presente na Antigüidade em dois
aspectos: primeiro concebe a natureza como uma realidade que não existe por si mesma, pelo
contrário, existe porque encontra em Deus a sua origem. Assim, temos que:
No princípio Deus criou o céu e a terra [...] E Deus disse: Exista a luz [...] Disse também Deus: Faça-se o firmamento no meio das águas [...] produzam as águas répteis animados e viventes e aves que voem sobre a terra debaixo do firmamento do céu [...] e os abençoou dizendo: Crescei e multiplicai-vos, e enchei as águas do mar; e as aves se multipliquem sobre a terra (Gên. 1, 1-23).
É interessante lembrar que, muito embora a narração bíblica sobre o surgimento do
mundo seja de origem judaica, esta concepção foi, prontamente, incorporada pelo
cristianismo. Este fato corroborou a idéia de uma Natureza cuja origem remonta a uma causa
sobrenatural.
O segundo aspecto refere-se à sua relação com a moral. Na Antigüidade, a noção que se
tem da Natureza é a de um conjunto regido por leis, do qual o homem é apenas uma das
partes. Nessa época, o indivíduo “não pensa ainda em transformá-la” (LENOBLE, 1969, p.
190). A essa realidade pode-se ainda atribuir a idéia de que existe uma alma comum, assim
como é possível falar de uma Natureza eterna.
Eis a diferença em relação à moral cristã, que não aceita a idéia de uma Natureza eterna,
pois, “Deus lançou-a no ser quando quis e suprimi-la-á no último dia como se de um imenso
22
cenário se tratasse” (LENOBLE, 1969, p. 191). Daqui para frente a Natureza não mais será
vista como um todo, pelo contrário, ela agora torna-se “uma coisa entre as mãos de Deus. E o
homem habituar-se-á a situar-se também já não na Natureza, mas perante ela, a conceber o
seu destino como independente da história do mundo” (LENOBLE, 1969, p. 191). Resta saber
se, agora que não mais faz parte da Natureza, este novo homem será capaz de encontrar uma
regra para bem dominá-la, assim como pretendia fazer em relação a si próprio.
A dificuldade para encontrar as regras para o bom domínio da Natureza resulta do
comprometimento do ser humano com o meio natural, do qual ele acredita não mais
pertencer, ou melhor, o homem cristão passou a acreditar que não faz mais parte da Natureza.
Esta relação tornou-se mais problemática a partir da noção de que agora existem dois lados:
em um encontra-se o mundo – a Natureza – e no outro o homem e a graça.
Todavia, vale ressaltar que se essa dificuldade se faz presente até os dias de hoje, e que
isso se dá em razão da concepção cristã de Natureza e, ulteriormente, em face da visão
mecanicista que engendrará o novo modo de o homem com ela interagir. Esta mudança, não
obstante, ocorreu de forma gradual e progressiva.
A transição entre o final da Idade Média e o início dos tempos modernos configura-se
como um dos momentos de maior ebulição da história da humanidade. Foi um período de
efervescência, em que a Natureza era amada ainda que não se constituísse em fenômeno
desvendado e conhecido quanto aos seus processos e funções. “Para os cristãos, ela canta
Deus, para os pagãos do Renascimento voltou a pegar na flauta de Pã e canta como outrora a
fecundidade da terra, as ninfas das fontes e a providência dos astros” (LENOBLE, 1969, p.
209).
Neste contexto, a unidade – até então inquestionável – existente na Igreja começa a
desabar em virtude do surgimento de fortes tribulações que a colocam em xeque. Este mal-
estar surge logo após o desenvolvimento da tipografia, por Johann Gutemberg, que contribuiu
23
para aumentar a produção de livros, dentre os quais a Bíblia. Diante disso, um maior número
de pessoas teve acesso aos textos sagrados, fazendo surgir as mais diferentes interpretações
nem sempre em consonância com as da Igreja oficial, isto é, como as do alto clero.
Em decorrência desta turbulência, surge um movimento religioso que, inicialmente,
ofereceu novas interpretações aos textos bíblicos. Contudo, posteriormente, tal evento ganha
força consolidando-se naquilo que mais tarde fôra denominado de Reforma Protestante. Em
princípio, este movimento pode ser compreendido como uma crítica ao comportamento
abusivo do clero católico. Criticava-se, principalmente, a exploração da boa-fé das pessoas
que eram iludidas pelo comércio de relíquias religiosas como, por exemplo, supostos espinhos
que fizeram parte da coroa de Cristo; palhas de capim que formaram a manjedoura onde o
menino Jesus descansou após o seu nascimento; pedaços de panos, supostamente sujos pelo
sangue da face de Jesus e tantos outros. Como se não bastasse, paralelamente a esta prática
comercial havia também a venda de indulgências que, pretensiosamente, se propunham a
comprar a salvação eterna.
Foi, portanto, neste cenário que as Reformas11 – luterana, calvinista, anglicana –
consolidaram o seu ideal teológico e, por conseguinte, fortaleceram o seu status quo. Logo,
enfraqueceram a hegemonia da unidade cristã católica. Sem dúvida alguma foram as
Reformas que impulsionaram o movimento contra a unidade da Igreja católica, uma vez que
questionaram a sociedade como um todo, principalmente em seus aspectos teológicos,
políticos e filosóficos.
A próposito, Lenoble (1969, p. 240) diz:
O protestantismo se torna tão rapidamente «liberal», é preciso não esquecer que em Lutero, Calvino e nos primeiros Reformadores, ele começou por ser a afirmação da corrupção essencial da Natureza e a negação da liberdade, ilusório orgulho do «servil arbítrio». Trata-se, pois, não só de uma recusa em entregar-se ainda à amizade das coisas (fruitio), como pretendia a Roma do Renascimento, mas também de uma reacção contra a escolástica, que tentava aclimatar o homem à Natureza e a Natureza ao homem.
11 É importante lembrar que, ao longo da história esta não foi a primeira vez que a unidade católica fôra questionada. Já no século XI ocorreu a primeira cisão da Igreja que deu origem à Igreja Ortodoxa.
24
As Reformas iniciaram, por assim dizer, o processo de desprezo à Natureza, uma vez
que a mesma perdeu o seu caráter espiritual. O conceito católico de Natureza se diferencia do
protestante, basicamente devido ao lugar que a graça divina ocupa nele. Os primeiros, ao
mesmo tempo em que temiam as paixões, subordinavam a Natureza à graça. Para os outros,
isto é, os protestantes, esta virtude não passa pela Natureza, daí o fato de eles encontrarem-se
melhor preparados no tocante ao “novo estado da ciência, que verá na Natureza uma mecânica
sem alma” (LENOBLE, 1969, p. 241).
Paralelo ao movimento religioso houve, ainda, um outro movimento tão importante
quanto as Reformas. Esta reviravolta teológica-cultural teve como principal reação o dualismo
corpo-mente que se configura num rompimento à submissão divina que prevaleceu até o
período medieval. Assim, a Igreja, que antes era tida como a própria imagem da Natureza, viu
ruir a sociedade que ajudou a construir e, conseqüentemente, os seus alicerces teórico-
teológicos. Com efeito, não é para o Uno que o espírito se volta, ao contrário, o que ele busca,
agora, é a diversidade. Neste contexto, é importante destacar a idéia de Natureza concebida
durante o Renascimento, pois, conforme indica Lenoble (1969, p. 243) “os homens do
Renascimento amaram apaixonadamente a Natureza, sentiram-na na qualidade de poetas, mas
não a conheceram porque, entregues à sensação e à admiração, não se resignaram a pensá-la”.
Quando analisado de forma mais detalhada, percebe-se que o movimento renascentista
conseguiu, ocultamente, uma espécie de dualidade. Ou seja, tudo se passa como se
primeiramente a Natureza existisse para o homem. A Natureza gozava assim de uma certa
virtualidade, e isso o levava a se distanciar dela. Contudo, ao tempo em que o sujeito dela se
distanciava, tal fato provocava-lhe curiosidade e uma imensa vontade de aventurar-se rumo ao
desconhecido. Estes aspectos demonstram que o Renascimento traz consigo uma atitude de
valorização do pensamento cósmico e naturalista e, ao mesmo tempo, de construção do
humanismo que tem como foco principal o homem e suas paixões.
25
O fato é que, a partir das teorias de Galileu Galilei (1565-1642), Francis Bacon (1561-
1626), René Descartes (1596-1650) e Isaac Newton (1642-1727), o termo Natureza adquiriu
um novo significado. Para tanto, foi necessário que o pensamento científico destronasse a
idéia de Natureza concebida pelos naturalistas do século XVI. Porém, não tarda muito para o
naturalismo metafísico perder o seu lugar para a idéia de natureza-máquina. Conforme indica
Lenoble (1969) a data deste feito não é tão difícil de precisar: 1632, ano em que
Galileu pede a engenheiros que nos descubram o verdadeiro sistema do mundo. Verão que esta data merece ser fixada: a estrutura da Natureza e, conjuntamente, a estrutura da sociedade vão sofrer uma remodelação completa; o engenheiro conquista a dignidade de sábio, porque a arte de fabricar tornou-se o protótipo da ciência. O que comporta uma nova definição do conhecimento, que já não é contemplação mas utilização, uma nova atitude do homem perante a Natureza: ele deixa de a olhar como uma criança olha a mãe, tomando-a por modelo; quer conquistá-la; tornar-se «dono e senhor» dela (LENOBLE, 1969, p. 260).
Este novo olhar traz consigo uma nova atitude do homem para com a Natureza, ou seja,
se antes a Igreja fornecia as diretrizes para o seu modo de relacionar-se com ela, na
modernidade essa relação não sofre mais tal influência. O comando cabe, agora, à ética, mais
precisamente, à moral antropocêntrica.
Ao se libertar dos dogmas religiosos e da submissão às leis cósmicas, o homem passou
a assumir a tarefa de dominar a Natureza. Sendo assim, o próximo passo seria buscar os meios
para fundamentar sua atitude perante a Natureza, isto é, o seu ato de dominação.
Galileu e Descartes assumiram a tarefa de dar um novo significado à idéia de Natureza;
o “velho tabu do natural pressupõe uma diferença essencial entre a experiência de laboratório
e os fenômenos «naturais», isto é, considerados até aí sagrados” (LENOBLE, 1969, p. 260).
Com isso, o homem moderno descobriu outra função para a Natureza, isto é, a ela foi dado
tão-somente o papel de executora, porque doravante ficou estabelecido que “conhecer é
fabricar”. Com efeito, a verdade sobre a Natureza está nas experiências e não mais nos
conhecimentos sobre a sua essência, como ocorria entre os gregos. Desse modo,
26
Não só se deixa de temer a cólera divina por esta violação da Natureza como se crê que Deus nos deu a missão de trabalhar à sua imagem, de construir o mundo no nosso pensamento como ele o criou no seu, fornecendo as suas leis. O físico da Idade Média eleva-se a Deus descobrindo as intenções, as finalidades da Natureza, o físico mecanicista eleva-se a Deus penetrando o próprio segredo do Engenheiro divino, colocando-se no seu lugar para compreender com ele a forma como o mundo foi criado (LENOBLE, 1969, p. 260).
Com a modernidade, o homem começou a se perceber não mais como um mero
contemplador do cosmos. A partir daí, ele passou a ocupar o lugar de artífice, de produtor.
Entretanto, é interessante lembrar que tal operação somente foi possível em virtude do valor
que foi conferido ao poder e à autonomia da razão. Portanto, conhecer, tanto quanto fabricar
eram sinônimos de poder. Um outro aspecto que muito contribuiu para a construção do
conceito moderno de Natureza foi o fato de que a queda da unidade divina não trouxe consigo
o rompimento do homem com Deus. Na realidade, quando o homem rompe com o Uno
sobrevém a compreensão de que se Deus existe12, isto se faz por necessidade e não mais por
uma relação de dependência, uma vez que esta última, conforme diz Descartes em seu
Discurso do Método, é manifestadamente um defeito, logo não pode fazer parte da natureza
de Deus, pois, Este é um ser perfeito.
Dentre os quatro autores citados anteriormente, acredita-se que tanto o pensamento de
Bacon quanto o de Descartes se constituem como os pilares da era moderna e,
conseqüentemente, da ciência.
A conclusão do Novum Organum anuncia o canto de triunfo, uma nova redenção. No paraíso terrestre, Deus dera já ao homem o domínio sobre a Natureza. Eis, com efeito, sabemo-lo, o que significa o poder dado a Adão de «dar nome» aos animais. Mas a queda fê-lo descer dessa alta posição. [...] O drama do Calvário justificou-nos, mas cabe a nós reconquistar, através dos nossos esforços, o domínio sobre as coisas, conseqüência natural da justificação. [...] A ciência torna-se, assim, auxiliar da graça: «O homem», escreve Bacon, «ao cair do seu estado de inocência, deixou-se destronar da sua soberania sobre as criaturas. Pode recuperar em parte ambas as coisas nesta vida: a inocência através da religião e da fé, a soberania aqui em baixo através das artes (as técnicas) e da ciência» (LENOBLE, 1969, p. 266-267).
12 A certeza acerca da existência de Deus, para Descartes, está no princípio de causalidade, ou seja, não se pode pensar um ser finito tal qual o homem – sujeito pensante – sem conceber a idéia de um ser infinito (Deus). Uma visão completa sobre este assunto pode ser obtida nas Meditações.
27
Vemos aqui os elementos que deram ao homem as condições necessárias para que ele,
aos poucos, pudesse se distanciar de seus esquemas conceituais anteriores. Essa nova
racionalidade é bem representada pelo pensamento cartesiano, pois, a partir do racionalismo
moderno, a ciência passara a ocupar um lugar de destaque na ordem do conhecimento, ou
seja, ela passa, inclusive, a ser o instrumento mediante o qual o homem poderá conhecer e
modificar os produtos da criação divina. A partir daí, o homem assumiu o comando dessa
grande nave chamada planeta Terra. Mas para que tal papel pudesse ser assumido foi preciso
abandonar a antiga filosofia especulativa substituindo-a por
uma outra prática, pela qual, conhecendo a força e as ações do fogo, da água, do ar, dos astros, dos céus e de todos os outros corpos que nos cercam tão distintamente como conhecemos os diversos misteres de nossos artífices, poderíamos empregá-los da mesma maneira em todos os usos para os quais são próprios, e assim nos tornar como que senhores e possuidores a natureza (DESCARTES, 1996, p. 116).
Se por um lado, Descartes consegue elevar o homem ao lugar de gerente do mundo, por
outro foi Newton quem, através do mecanismo dos corpos, conseguiu expressar em fórmulas
as leis do movimento. Contribuiu para o êxito deste feito não apenas a teoria matemática de
Newton, mas, também, a filosofia cartesiana e, finalmente, a metodologia científica de Bacon
que, combinadas, deram origem à Física clássica que dominou o conhecimento científico
durante os séculos XVII, XVIII e XIX. A partir daí “pensava-se que a matéria era a base de
toda a existência, e o mundo material era visto como uma profusão de objetos separados,
montados numa gigantesca máquina” (CAPRA, 2001 p. 44).
Todavia, o problema é que em nome da autonomia da razão, o homem passou a
subjugar os demais seres vivos e, o que é pior, a justificar tal fato alegando que se deveria
preservar da vida humana sobre a Terra. Mas, sob o argumento de que devemos defender
nossa sobrevivência podemos dizimar tantas espécies quantas considerarmos necessárias?
Mesmo que haja um argumento válido nesse sentido, ainda assim pergunta-se: como garantir
o futuro das gerações, levando-se em conta a idéia de Natureza como um reduto devassável e
controlado pelo homem? É aceitável atribuir maior valor à vida humana do que à vida de um
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gorila, por exemplo? Por outro lado, podemos responder estas e tantas outras questões deste
tipo se considerarmos a Natureza a partir da perspectiva da dominação e do poder que
exercemos sobre elas?
A idéia de que Natureza existe para o nosso usufruto ajudou a fomentar, também, a falsa
noção de que os recursos naturais são inesgotáveis. Por isso, não raramente, a utilização
desses recursos é comparada às prateleiras de um supermercado, as quais são reabastecidas de
acordo com a voracidade do consumo. Com efeito, a extração desmedida dos recursos
naturais ajudou a fomentar o progresso científico-tecnológico do qual o homem
contemporâneo é protagonista, mas, da mesma forma, trouxe sérias implicações ao equilíbrio
do ecossistema. Algumas dessas conseqüências de cunho sócioambiental são representadas,
por exemplo, pelo grande número de pessoas que moram em áreas de risco de desabamento,
pelos desmatamentos e devastação dos manguezais, poluição atmosférica e dos mananciais de
água doce, pela desertificação de grandes áreas. Em suma, pode-se afirmar que algumas das
mais importantes questões da atualidade têm sua origem na forma como o homem interage
com a Natureza, ou seja, no modo como ele a transformou num simples objeto a ser
controlado, manipulado, sendo seu fim último satisfazer às suas necessidades de consumo.
Ademais, a crença pautada no conhecimento técnico-científico não tem conseguido
responder aos mais diversos problemas contemporâneos gerados pelo poder da tecnociência.
Dessa forma, considerando a dimensão desta problemática e sua relação com a sobrevivência
das futuras gerações, necessário se faz, em primeiro lugar, que o homem não mais se aperceba
como um ser destacado da Natureza. Muito pelo contrário, ele deve doravante conscientizar-
se de que, independentemente de ser racional é, também, um ser da Natureza.
Uma vez feita esta operação, será possível realizar uma segunda: substituir o velho
conceito de Natureza pelo de meio ambiente – lugar onde se dá a relação, em diferentes
29
momentos, do ser humano consigo mesmo e com os elementos que compõem o meio natural
em seus mais diversos níveis de evolução.
Estes dois conceitos – ser humano e meio ambiente – se complementam e, por isso, se
constituem no instrumental básico para o restabelecimento da sinergia do sujeito com o seu
mundo natural. Tal possibilidade requer que se coloque a questão acerca do estatuto da
natureza e se é possível lhe conferir direitos específicos. A questão consiste em saber até que
ponto podemos falar de uma inteligência ambiental, ou seja, se é possível atribuir
propriedades, julgadas antes tipicamente humanas, aos demais seres vivos do Planeta.
O problema torna-se ainda mais desafiador porque sabemos que é pura ingenuidade
acreditar que apenas medidas de cunho político-econômico seriam suficientes, senão para
sanar, pelo menos para minimizar os problemas característicos da atual crise ambiental. Se
isso fosse verdade, propostas como o Protocolo de Kyoto seriam um eficaz instrumento na
luta pela preservação ambiental. A realidade demonstra que tais mecanismos ainda são
inócuos para reverter esse quadro. A complexidade do fenômeno não admite respostas
simples ou soluções miraculosas. A questão possui dimensões multifacetadas e contornos
múltiplos. Ela diz respeito ao nosso modelo de civilização, aos valores da nossa cultura e,
sobretudo, a questão concernente à nossa liberdade e a responsabilidade que temos para com
as atuais e futuras gerações.
30
2 O MODELO ATUAL DE CIVILIZAÇÃO E O PROBLEMA DAS GERAÇÕES FUTURAS
Antes de aprofundar a análise das questões morais propriamente ditas, referentes à
relação homem-Natureza, é importante traçar um breve esboço sobre os principais problemas
ambientais da atualidade, uma vez que eles motivam os questionamentos morais relativo à
existência ou não de responsabilidade de uma geração para com a sua sucessora. Vale
destacar que no âmbito deste trabalho não adotamos nenhuma definição específica para o
termo geração tendo em vista as muitas divergências encontradas, em especial no que diz
respeito à questão da responsabilidade entre as gerações.
Segundo Giuliano Pontara (1996), a compreensão do termo geração é múltipla e
depende da teoria que se tome como referência para explicá-lo. Tal assertiva leva a crer que o
problema não consiste na definição do termo em si, uma vez que este se encontra diluído,
explicita ou implicitamente, nas mais diferentes teorias consideradas, mas em responder à
questão se deve reconhecer ou não a responsabilidade desta geração para com as gerações
futuras. Voltemos, então, aos pressupostos dessa discussão.
A segunda metade do século XX marcou o despertar de muitos segmentos sociais para a
questão ambiental. Esta preocupação foi, sobretudo, motivada pelo agravamento dos
problemas decorrentes dos efeitos do emprego nocivo da razão instrumental sobre a vida dos
indivíduos. A maior parte destes problemas surge em decorrência de pressões crescentes da
população e de expansões das áreas urbanas, agrícolas e industriais, geralmente mal
planejadas. Disto resulta o impacto que as atividades humanas ocasionaram, principalmente,
sobre as zonas costeiras as quais sofrem grande degradação em razão das descargas de
esgotos domésticos e industriais; além disso, muitos rios agonizam por estarem carregados de
sedimentos procedentes de erosões, asfixiando, com isso, a fauna e a flora aquática, fato que
contribui, consideravelmente, para o aumento da poluição costeira.
31
O mau planejamento também é um fator responsável pelo aumento da poluição
atmosférica na maioria dos países. Apesar de, em muitas zonas urbanas, ter diminuído ou se
estabilizado a emissão de gases poluentes, “aproximadamente a metade da população urbana
de todo o mundo, certa de 990 milhões, continua exposta a níveis insalubres de dióxido de
enxofre e de macropartículas” (DIAS, 1993, p. 151).
A atmosfera sofre ainda pelo considerável aumento de gás carbônico (CO2) – também
denominado de dióxido de carbono e, também, em escala menor pelo monóxido de carbono
(CO), gás reconhecidamente asfixiante e mortal, resultante da queima de combustíveis
hidrocarbonetos (AGUIAR, 1996). Como se não bastasse a emissão desses gases, usa-se
ainda, devido a industrialização e ao modo de vida moderno, o clorofluorcarbono, mais
conhecido como CFC. Este gás libera o freon que, entre os muitos malefícios, destrói a
camada de ozônio, ameaçando sobremaneira Ademais, no século XX, o aumento da
população mundial chegou a índices jamais registrados, alcançando, em 1990, a marca de 5,3
bilhões de habitantes; em 2.000 o patamar já era de nada menos que 6,3 bilhões, sendo que
nos países ditos em desenvolvimento ocorreram as maiores elevações demográficas (DIAS,
1993). Diante de tais dados, são inevitáveis os questionamentos: como produzir alimento para
tantos? Como levar água a todos? Responder a tais perguntas talvez não seja tão difícil quanto
responder à questão: como resolver estes desafios sem comprometer os recursos faunísticos e
sem causar mais desmatamentos? Vale lembrar que essa solução desordenada compromete os
já escassos recursos hídricos, que, por sua vez, põem em risco a produção de alimentos?
Atualmente, a produção mundial de alimentos não é suficiente para suprir as
necessidades alimentares de toda a humanidade. Tal fato decorre da estabilização na produção
de alimentos, a qual é, praticamente, a mesma desde o fim da década de 80 próxima passada
(DIAS, 1993). Para que mais pessoas tenham chance de se alimentar melhor e, por
conseguinte, cheguem a um nível nutricional razoável, é preciso que a produção de alimentos
32
cresça algo em torno dos 60%, em relação aos níveis atuais, até o ano de 2025. Porém, este
aumento não bastaria para resolver o problema da fome mundial, porque “a maioria das
regiões com potencial de expansão sofre de escassez de água ou de restrições como solos
suscetíveis à erosão ou mal drenados, ou localizados em topografias desfavoráveis à
agricultura” (DIAS, 1993, p. 150).
E o que falar da água doce? Como é possível escassez de água potável num planeta
composto por mais 70% de água? No tocante a este recurso hídrico, existem grandes
controvérsias no que diz respeito à possibilidade real de escassez desse elemento essencial.
Dentre os pesquisadores deste assunto, há os que afirmam que a água será o “petróleo branco”
deste milênio devido aos altos níveis de poluição dos cursos d’água existentes; há, também,
aqueles que defendem a tese de que esta constatação é equivocada, pois existiriam ainda
grandes aqüíferos no mundo. Muito embora as opiniões dos pesquisadores sejam divergentes
quanto à disponibilidade desse líquido vital, há uma convergência quanto à natureza, valor e
uso da água, isto é, já se sabe que ela é um recurso finito e que a falta de eficiência no seu
processamento compromete seriamente a sua oferta (Thame, 2000; Lerrer, 2000).
Chamamos também a atenção para os problemas relacionados à perda da diversidade
biológica. Estima-se que existam no mundo cerca de 5 a 10 milhões de espécies vivas. Destas,
somente 1,4 milhão foram identificadas e classificadas. Estima-se, também, que “entre os
anos de 1900 e 2000 é possível que a extinção de espécies causadas pelo desmatamento
elimine entre 5% e 15% das espécies vivas do mundo” (DIAS, 1993, p. 151).
Entretanto, os desmatamentos não são a única atividade humana que põe em risco a
diversidade biológica. “A medida que a água e o ar se contaminam, destroem-se barragens e
se inundam vales, os habitats de certas espécies se transformam e se perdem” (DIAS, 1993, p.
151). As conseqüências oriundas desta antropia13 não poderiam ser mais desastrosas, pois,
uma vez quebrado o equilíbrio dos ecossistemas, podem daí surgir efeitos incontroláveis
13 Atividade dos seres humanos que interferem no meio ambiente.
33
como, por exemplo, a ocorrência de pragas, em decorrência da extinção de aves, as quais são
os predadores naturais dos insetos que trazem graves problemas para a agricultura. A
medicina, a indústria e o patrimônio genético são outros setores diretamente atingidos pela
redução da diversidade biológica.
Se quisermos entender melhor a questão ambiental, precisamos abandonar o mito de
que os recursos naturais são infinitos, bem como o vício de pensá-la a partir de uma
perspectiva eminentemente econômica. Caso isso não ocorra, corremos o risco de restringir os
problemas relativos ao meio ambiente aos da “natureza”, isto é, do meio físico, vegetal e
animal, o que tem pouco a ver com as relações homem – Natureza. Disso se infere que
preservar é importante, porém não é o bastante. Além disso, para muitos, o homem precisa se
ver como uma parte da natureza para sentir-se motivado a descobrir as soluções necessárias
para reverter esta situação e os problemas que ele mesmo criou.
O ser humano, movido pelo antropocentrismo cultural, voltou-se para si mesmo
passando, desde então, a se ver como um ser isolado, isto é, destacado do mundo natural.
Entretanto, o conceito de meio ambiente vem reacender algumas preocupações centrais que
devem nortear a conduta humana: a de que o ser humano pertence a um todo maior, que é
complexo, articulado e interdependente em relação aos demais; a de que a natureza é finita e
pode ser degradada pela utilização perdulária de seus recursos naturais; a de que o ser humano
não deve dominar a natureza, mas tem de buscar caminhos para uma convivência pacífica
entre ela e sua atividade produtiva, sob pena de colocar em risco a sobrevivência da espécie
humana; a de que a solidão humana se dá também pelo fato de o homem se considerar um ser
destacado do seu meio, esquecendo-se que apenas é diferente dos minerais, vegetais e demais
animais; a de que a luta pelo equilíbrio da vida não é somente uma responsabilidade dos
ecologistas, mas sim de todos os indivíduos que têm consciência política e ética da destruição
que o ser humano está realizando em nome do progresso.
34
Por detrás de tudo isso existem muitos e difíceis problemas de ordem ético-filosófica
dos quais têm-se ocupado muitos filósofos nos últimos vinte e cinco anos. O cerne destes
problemas está relacionado à questão da responsabilidade entre gerações. Há os que defendem
que, em relação às gerações que existirão num futuro remoto, não há nenhuma
responsabilidade ou que há uma responsabilidade bem menor em relação a elas.
Se admitirmos que não há responsabilidade para com as gerações futuras, a justificativa
para tal posição pode estar na tese da não-responsabilidade. Não obstante, admitir que existe
responsabilidade para com as gerações futuras remete a outra questão: quais são
concretamente estas obrigações? A resposta para esta questão encontra-se na tese da menor
responsabilidade, na tese da responsabilidade decrescente e, finalmente, na tese da
responsabilidade total. Assim, apresentamos a seguir estas teses, as quais buscam
fundamentar a questão: existe ou não obrigação moral desta geração pra com as gerações
futuras?
2.1 TESE DA NÃO-RESPONSABILIDADE PARA COM A ESPÉCIE HUMANA
No existe ninguna obligación o deber moral de concebir o traer al mundo seres humanos con el solo fin de garantizar la continuación de la especie humana en cuanto a tal (PONTARA, 1996, p. 35).14
Esta tese abre espaço para a discussão referente ao valor intrínseco atribuído às
espécies, isto é, quem tem valor intrínseco: a espécie ou o indivíduo? Segundo Giuliano
Pontara (1996), esta tese da não-responsabilidade para com a espécie humana é, no mínimo,
contraditória, porque se admitirmos que é apenas a espécie que possui valor intrínseco, então
não se justifica sacrificar, por exemplo, o último indivíduo de uma dada espécie X, tendo em
14 Não existe nenhuma obrigação ou dever moral de conceber ou trazer ao mundo seres humanos com o fim de garantir a continuação da espécie humana como tal (tradução nossa). Ressaltamos que as demais traduções deste trabalho foram realizadas pela autora.
35
vista o fato desta espécie ser considerada desejável. A contradição consiste em se atribuir, em
pelo menos um momento, um valor intrínseco somente ao indivíduo.
No tocante à espécie humana, pode-se então dizer que a continuação desta é desejável
no sentido de que é necessária para que se possam materializar atos revestidos de valor
intrínseco. Entendendo-se por tais atos todas as ações realizadas pela espécie humana, a qual,
em última instância, é a que possui valor intrínseco. Do que se conclui, que não se pode
predicar a uma espécie coisas que se predicam a um indivíduo.
Sendo assim, a continuação de uma espécie qualquer, inclusive da espécie humana, será
desejável de acordo com a qualidade de vida de seus indivíduos, ou seja, a continuação de
uma dada espécie deve ser postulada quando o valor intrínseco positivo se sobressai sobre o
valor intrínseco negativo. A fim de comprovar tal fato, Pontara apresenta a experiência de
pensamento proposta pelo filósofo inglês Jonathan Glover. Em resumo, suas idéias se
expressam da seguinte forma: suponhamos que haja uma droga que deixe estéril, mas, ao
mesmo tempo, feliz quem a toma e que o fato de não mais poder ter filhos não lhe traz
qualquer tipo de angústia. Com base nesta possibilidade surgem duas perguntas: seria um erro
se todos aqueles que hoje vivem tomassem esta droga, convertendo-se na última geração de
seres humanos e, por conseguinte, pondo fim à espécie humana? Seria um prejuízo se a
espécie humana deixasse de existir? (Pontara, 1996, p. 39).
Muito embora Glover e Pontara tenham respostas diferentes para a referida experiência
de pensamento, a conclusão de ambos é a mesma. Tanto para o primeiro como para o
segundo, o que parece razoável considerar como intrinsecamente desejável é que somente
existam seres que tenham uma vida digna de ser vivida. Pontara chega a radicalizar tal
experiência quando afirma que a existência da espécie humana, independente de como vivam
os indivíduos que a ela pertençam, não parece ser algo cuja continuação seja obrigatória
garantir, pois, para ele, o fato de existir seres da espécie Homo sapiens (ou de qualquer outra
36
espécie) somente será desejável na medida em que esses vivam dignamente (Pontara, 1996, p.
40). Passemos à tese seguinte.
2.2 TESE DA NÃO-RESPONSABILIDADE PARA COM OS DESCENDENTES
Muito embora existam outros argumentos, apresentaremos aqui apenas os seis
principais nos quais se fundamentam a tese da não-responsabilidade para com os
descendentes.
a) O argumento da providência divina
Não vos preocupeis pois, pelo dia de amanhã; o dia de amanhã terá as suas preocupações próprias. A cada dia basta o seu cuidado (Mt 6,34).
Que o homem é um ser razoável ninguém tem dúvidas. Ele ainda não encontrou
respostas definitivas para as perguntas: de onde viemos?; para onde vamos? Estas duas
perguntas sintetizam, quem sabe, o desejo da humanidade desde os tempos mais remotos de
encontrar sentido para a sua existência.
Como não encontrou respostas no campo da razão, o homem buscou refúgio no campo
místico. Apesar de existirem concepções religiosas diferentes e, por isso, caminhos distintos,
a grande maioria delas convergem quando afirmam que o homem é fruto da criação de Deus
e para Ele irá retornar após a morte. E, ainda no sentido de possibilitar à sus criação uma vida
mais prazerosa, Deus criou todas as coisas que existem na natureza.
Desta forma, surgiu a figura de um Deus pai, estabelecendo, ao mesmo tempo, a
sujeição do homem à figura divina. Tal figura, por conseguinte, está relacionada à imagem de
protetor, isto é, aquele que sempre se faz presente, que cuida para nada faltar aos seus.
37
Resumidamente, pode-se dizer que ao Pai cabe a responsabilidade de providenciar os meios
necessários à sobrevivência dos seus protegidos, a fim de que estes tenham uma vida feliz.
Este é um argumento bastante razoável para aqueles que concebem a idéia de um Deus
criador de todas as coisas. Entretanto, para os que não o concebem deste modo, este não é um
argumento convincente. É justamente por esta razão que se pode considerar o argumento da
providência divina um tanto quanto insuficiente. Isto porque sendo o homem um ser dotado
de razão e intuição e, ainda, um ser que não é bom, nem mau por natureza, então torna-se
mais simples justificar suas decisões e ações voluntárias como produto de sua própria
vontade.
Todavia, observa-se a ambigüidade de certos atos quando, por exemplo, alguns
pescadores desrespeitam o período do defeso15 de uma espécie qualquer. Estes, para
justificarem a sua não observância à legislação e ao bom senso, argumentam: “Ah! Nunca vai
faltar peixe, não. Me criei vendo meu avô e, depois, meu pai pescando... olha que já tenho 70
anos!”. Muitos percebem, através da experiência e de suas próprias vivências como
pescadores, que a quantidade de peixe vem diminuindo, mas como não encontraram
explicações que lhes satisfazem, preferem “confiar” na providência divina.
b) O argumento da astúcia da razão
A base teórica deste argumento está centrada na noção hegeliana da “astúcia da razão” e
na noção de Adam Smith da “mão invisível”. A partir destas duas figuras segue-se a
formulação de que não há responsabilidades entre gerações, tendo em vista o fato de que o
destino de uma geração é determinado por forças que fogem ao nosso controle. Isto ocorre
porque qualquer que sejam as ações e interações, ainda que desprovidas de vontade pessoal,
15 Época ou período do ano em que se proíbe a pesca ou a caça afim de garantir a reprodução das espécies.
38
intenção e de motivos, elas ensejam, a médio ou a longo prazo, resultados sempre positivos à
luz das aspirações humanas.
Logo, as gerações futuras estarão sempre em melhores condições em relação às suas
antecessoras, e este fato é um signo revelador do progresso humano em direção ao melhor.
Vale destacar que os partidários do livre mercado fazem parte do grupo de simpatizantes deste
argumento.
Percebemos que há entre estes dois primeiros argumentos uma certa relação de
correspondência no que diz respeito à sua fundamentação. Dito de outro modo, em ambos a
ausência de responsabilidade para com as gerações futuras dá-se devido à presença de algo
que foge ao nosso controle e ao alcance da nossa governabilidade: a força invisível daquilo
que nos carrega consigo, ou seja, o plano da razão.
Hegel (1986, p. 78), por sua vez, afirma que o fim último da humanidade é o espírito,
não havendo, portanto, nada superior a ele (o espírito). Para o hegelianismo, Deus não é
simplesmente uma idéia, mas sim uma eficiência. “La evidencia filosófica es que sobre el
poder del bien de Dios no hay ningún poder que le implica imponerse; es que Dios tiene razón
siempre; es que la historia universal representa el plan de la Providencia”16.
Dessa forma, Deus governa o mundo e, se a história da humanidade é o Seu plano,
então não há porque se preocupar com as conseqüências advindas do nosso descompromisso
para com os descendentes. Aliás, essa tal responsabilidade cabe à Deus, pensam os que
defendem o argumento em questão.
c) O argumento da relevância ética do presente e da irrelevância ética do futuro
No hay nada de irracional en preferir una experiencia agradable ahora
antes que una experiencia mucho más agradable en el futuro
(PONTARA, 1996 p. 43)17.
16 A evidência filosófica é que sobre o poder do bem de Deus não existe nenhum poder que se imponha; é que Deus tem sempre razão; é que a história universal representa o plano da Providência.
39
Se, mesmo em termos individuais, esta premissa se afigura aceitável, então, ela poderia
sê-lo para todo um conjunto de indivíduos, isto é, para uma geração. Logo, não há nada de
irracional ou mesmo imoral no fato de uma geração qualquer preferir o seu próprio bem
agora, a um bem maior para as gerações futuras. Contra esta argumentação existem pelo
menos três objeções, as quais serão apresentadas abaixo.
A primeira objeção consiste no fato de que mesmo se admite a sua aceitabilidade, isto é,
a racionalidade do argumento em pauta, disto não se pode inferir que o mesmo seja
moralmente justificado, uma vez que as idéias de moralidade e de racionalidade não estão
obrigatoriamente a ele conectadas. Dito de outra forma, a racionalidade não leva
necessariamente à moralidade.
A segunda objeção considera que esse argumento não é irracional nem, tampouco,
imoral, não se podendo, da mesma forma, deduzir que o mesmo seja moralmente justificado.
O problema consiste no fato de que, ainda que uma ação individual seja justificada do ponto
de vista racional, isto não enseja necessariamente uma justificação moral, pois o que está em
jogo são os interesses de outros seres humanos que existirão no futuro. Isto equivale a dizer
que o que é bom para mim pode não ser para os meus descendentes.
A terceira objeção rejeita a premissa do valor de tal obrigação e mostra como esta se
choca com o princípio de irrelevância do fator temporal. Este princípio foi formulado por
Henry Sidgwick em sua obra Métodos de Ética (1901) e, posteriormente, por John Rawls
(1971), ambos citado por Pontara (1996 p.45).
O primeiro afirmava que “la mera diferencia de anterioridad o posterioridad en el
tiempo no constituye un fundamento razonable para tener un mayor respecto hacia la
17 Não há nada de irracional em preferir uma experiência agradável agora a uma experiência muito mais agradável no futuro.
40
consciencia existente en un cierto momento más que en otro”18 o que leva à conclusão de que
tal princípio é evidentemente racional, não existindo, por isso, razões para negá-lo.
O segundo, setenta anos depois, reafirma o mesmo princípio, porém com outras
palavras: “la simple ubicación temporal, o la distancia del presente, no son razones para
preferir un momento a otro”19. Há entre aqueles que defendem este terceiro argumento um
consenso em relação ao fato de que negar o princípio em questão não implica contradizer-se
uma vez que o mesmo não é um princípio lógico.
Pontara, por sua vez, considera que se hoje uma determinada experiência agradável,
acompanhada de uma determinada duração e intensidade, é intrinsecamente boa, então esta
mesma experiência não é melhor que uma outra experiência agradável, acompanhada de igual
intensidade e duração, somente porque esta segunda será vivida no próximo ano ou mesmo no
próximo século. A conclusão de Pontara está expressa na afirmação de Sidgwick de que do
ponto de vista universal o tempo em que um ser humano existe não pode incidir sobre o valor
de sua felicidade.
d) O argumento da ausência de empatia
No tenemos ninguna obligación moral para con las generaciones futura en tanto
que no está en nuestro poder identificarnos con ellas, ni estamos motivados hasta el
punto de considerar sus intereses con ecuanimidad (PONTARA, 1996, p. 46.20
Se por um lado, não há desejo manifesto por parte de uma determinada geração, então
não há razões para se fazer sacrifício para garantir seus anseios ou, até mesmo, os interesses
fundamentais dos seus descendentes, porque não existe qualquer argumento que fundamente a
questão do dever acerca do sacrifício que se deve fazer em favor das gerações futuras. Vale
18 A mera diferença de localização no tempo não constitui um fundamento razoável para se ter um maior respeito para com a consciência existente em um certo momento mais que em outro.
19 A simples localização temporal ou a distância do presente, não são razoes para preferir um momento a outro.20 Não temos nenhuma obrigação moral para com as gerações futuras uma vez que não podemos nos identificar
com elas, nem estamos motivados a ponto de considerar seus interesses com imparcialidade.
41
ressaltar que a existência do desejo e o seu atendimento pressupõem que se tenha uma
empatia, a qual constitui-se como condição básica para o surgimento do desejo de, por
exemplo, promover o bem.
Por outro lado, se a capacidade empática humana é limitada, nesse caso o homem
pode, no máximo, identificar-se com aqueles com quem tem vínculos afetivos, culturais e, em
menor grau, com os que estão mais próximos no tempo e no espaço. Dessa forma, os seres
que existirão daqui há cem, trezentos ou três mil anos são somente seres em potencial, e,
quanto a isso, sabemos: seres em potencial não gozam de direitos efetivos. Logo, é difícil
prever as conseqüências que motivarão as ações presentes em relação aos interesses das
próximas gerações.
Contra este argumento há pelo menos duas objeções: a primeira consiste no fato de
que se há empatia, haverá, portanto, identificação com as gerações futuras e, naturalmente,
haverá também o interesse em realizar alguns sacrifícios em favor das mesmas.
A segunda chama atenção para a diferença conceitual existente entre os termos:
indivíduos futuros e indivíduos potenciais. Os primeiros são todos aqueles que existirão neste
ou em outro intervalo de tempo futuro. Já os outros são aqueles cuja existência depende da
escolha de determinados indivíduos que hoje existem. Os filhos que uma mulher poderia ter e
não os teve constituem um bom exemplo de indivíduos possíveis, porque tais filhos deixaram
de existir em razão da escolha daquela mulher.
Depois de esclarecer a distinção entre as duas categorias de indivíduos, o autor
salienta que as novas gerações precisam aprender a ampliar a sua capacidade de identificação
empática, de modo tal que abranja também as gerações futuras (Pontara, 1996, p. 49).
Ademais, quando as justificativas de caráter moral são insuficientes, convém,
segundo Pontara, recorrer às medidas coercitivas do tipo jurídico quando estas se fizerem
necessárias para salvaguardar, de modo imparcial, os interesses fundamentais das gerações
42
futuras (Pontara, 1996, p. 49). Disso se infere que, quando a moral é insuficiente para garantir
essa responsabilidade, a única alternativa que resta é a instauração de medidas legais que
obriguem os indivíduos a adotar tais posturas.
e) O argumento baseado na observância dos deveres morais
A justificação deste argumento está na teoria deontológica dos deveres morais, segundo
a qual só existem deveres morais para com os membros de uma mesma comunidade moral; o
pressuposto básico aqui é ter uma mesma concepção sobre o que é moral.
Neste contexto, não há relação entre uma ação moralmente justa ou reta e as
conseqüências das ações realizadas por uma comunidade. Assim sendo, o argumento em
questão bate de frente com algumas teorias éticas que admitem que nenhuma obrigação é de
natureza relacional. Pontara conclui que este é um argumento incompleto e, por isso, não é
uma base válida para sustentar a tese da não-responsabilidade para com os descendentes
(Pontara, 1996, p. 52).
f) O argumento da ignorância humana
El problema de nuestra responsabilidad para con las generaciones futuras reside en
crear un mundo quesea agradable a los que lo habitarán, no en crer un mundo
como nos plazca a nosotros. a) No sabemos nada acerca de cuáles serán los
intereses, las preferencias, los deseos, los valores y la concepción del propio bien
que tendrán los futuros habitantes del planeta, y b) incluso si supiéramos qué es lo
mejor para ellos, no sabemos nada acerca de cómo nuestras acciones pueden
incidir para lograrlo (PONTARA, 1996, p. 52).21
21 O problema de nossa responsabilidade para com as gerações futuras reside em criar um mundo que seja agradável aos que o habitarão, não em criar um mundo como nos agrada. a) Não sabemos nada sobre quais serão os interesses, as preferências, os desejos, os valores e a concepção do próprio bem que terão os futuros habitantes do planeta, e b) inclusive e soubéssemos o que é melhor para eles, não sabemos nada acerca de como nossas ações podem incidir para conseguí-lo.
43
A alegação básica que fundamenta a tese da não-responsabilidade é, segundo este
argumento, a ignorância humana, ou melhor, não é dada ao homem a faculdade de prever o
que será bom ou mau para aqueles que ainda não existem, mas que poderão existir.
Supondo-se que tais idéias estejam corretas, então a moralidade das ações que são
realizadas no presente deixam de ter sentido, em razão da inexistência de toda e qualquer
responsabilidade para com as gerações futuras. Assim, em função do desconhecimento sobre
o que será bom ou ruim para os futuros habitantes do planeta, é subtraída desta geração
qualquer obrigação moral para com as próximas gerações, ou seja, quanto mais distante é a
geração sobre a qual se focaliza a atenção, menor é a obrigação para com ela (GOLDING
citado por PONTARA, 1996, p. 52).
J. Passmore citado por Pontara, (1996) afirma que se deve trabalhar de forma tal que
não se prejudique as próximas gerações, pois o fato de se desconhecer o modo de vida delas
não implica que podemos ignorá-las, ou melhor, a incerteza não justifica a negligência.
Entretanto, o autor adverte para o perigo de que, na ânsia de se garantir o bem das gerações
futuras, pode-se causar danos consideráveis para a geração presente.
Neste sentido, até se admite, teoricamente, que exista uma responsabilidade de
promover o bem das gerações futuras, ou no mínimo, de não prejudicar-lhes ou que se deve
atuar de tal maneira que não lesione os seus direitos, pressupondo que as mesmas os tenham.
Porém, disto não se pode concluir que exista, de fato, uma responsabilidade para com as
gerações futuras. Logo, como não é possível saber exatamente o que é bom ou ruim para elas
e, também, em que medida as ações podem violar seus direitos, esta provável
responsabilidade passa a não existir (PASSMORE citado por PONTARA, 1996, p. 53).
Mesmo quando se admite a aceitabilidade das premissas do argumento em questão, este
leva a uma tese oposta à da não-responsabilidade para com os descendentes. Justamente, por
44
desconhecer o que será agradável e, até que ponto, os atos realizados hoje poderão influenciar
a vida das gerações futuras, é que se tem a responsabilidade de agir de maneira tal a permitir
às ditas gerações um amplo leque de possibilidades de escolhas. Todavia, não se deve impor a
esta geração e as duas ou três subseqüentes, sacrifícios por demais pesados (PONTARA,
1996, p. 56).
Com este argumento se encerra a discussão sobre a tese da não-responsabilidade para
com os descendentes. Entende-se, contudo, que tal concepção não responde,
satisfatoriamente, o problema relativo à existência ou não de obrigações e deveres morais
desta geração para com as subseqüentes. Vejamos, a seguir, a tese da menor responsabilidade.
2.3 A TESE DA MENOR RESPONSABILIDADE
Oposta à tese da não-responsabilidade para com os descendentes, esta tese admite que
existe, sim, responsabilidade para com os mesmos, só que de uma forma graduada, ou seja, a
quantidade de responsabilidade é medida levando-se em conta a proximidade de um indivíduo
em relação aos seus descendentes.
O nível desta escala é estabelecido conforme o grau de prioridade, o que cria três
classes de obrigações. Em primeiro lugar estão as obrigações que pressupõem que os
indivíduos submetidos a ela tenham realizado anteriormente atos de um determinado tipo.
Como exemplo, podemos citar a obrigação de saldar as próprias dívidas; em segundo lugar
estão as obrigações baseadas nas relações de parentesco e de nacionalidade. Deste grupo
fazem parte as obrigações para com os filhos, os pais, os compatriotas e os amigos; e em
terceiro lugar, estão as obrigações para com os estranhos, não importando, neste caso, se são
contemporâneos ou se são indivíduos das próximas gerações, não havendo, portanto,
45
nenhuma sujeição a atos anteriores, bem como às relações de parentesco. Desta forma, os
primeiros sempre têm prioridade sobre os segundos e estes, por sua vez, sobre os terceiros.
Visto desta maneira tem-se a impressão que tal tese deixa a questão relativa à
responsabilidade entre as gerações razoavelmente bem respondida. Porém, surgem a partir
desta tese alguns questionamentos, como por exemplo:
¿Cuáles son las razones que apoyan la tesis de que determinadas relaciones, en cuanto tales, cuentan éticamente más que otras? ¿Por qué el hecho de una determinada persona es mi hijo, o mi compatriota, o mi contemporáneo, constituye, en cuanto tal, una razón especial para tener que anteponer sus intereses al de un «extraño», por ejemplo, al de un individuo que todavía no existe pero que existirá en el futuro? (PONTARA, 1996, p. 58).22
Moralmente não existe nenhuma razão para se priorizar este ou aquele indivíduo. O que
acontece é que existe uma tendência ou inclinação natural inata ao ser humano que o leva, por
exemplo, a garantir, primeiramente, o bem daqueles que lhe são mais próximos, como os
filhos, pais, amigos, e assim sucessivamente. Contudo, tal fato não é o bastante para se
justificar a tese que por ora se apresenta, porque ela não se apóia em razões morais.
A concepção gradual proposta na presente tese postula que as relações de sujeição a atos
anteriores, relações de parentesco e relações de obrigação para com os estranhos são,
enquanto tais, e nesta ordem, eticamente relevantes. É importante ressaltar que para os
defensores da tese da menor responsabilidade, o interesse das pessoas que viverão no futuro
contam sempre menos que os dos filhos e de outros indivíduos com os quais se mantém
alguma das relações citadas (PONTARA, 1996, p. 58).
Seguramente pode-se aceitar a alegação de que existem obrigações especiais para com
os filhos, familiares, parentes, amigos ou compatriotas, porém, isto não é o suficiente para se
aceitar que estas obrigações são sempre prioritárias (PONTARA, 1996, p. 59).
22 Quais são as razões que apóiam a tese de que determinadas relações contam eticamente mais que outras? Por que o fato de uma determinada pessoa ser meu filho ou meu compatriota ou meu contemporâneo constitui, enquanto tal, uma razão especial para por seus interesses anteriores ao de um estranho, por exemplo, ao de um indivíduo que todavia não existe, porém, que existirá no futuro?.
46
Por esta razón puede estar totalmente justificado, por ejemplo, requerir o imponer a nuestros hijos, o compatriotas, o contemporáneos (o a parte de ellos) sacrificios tal vez «no demasiado costosos», cuando ello sea necessario para preservar a nuestros descendientes o bien de más «daños graves», o de una verdadera «catástrofe» (PONTARA, 1996, p. 59)23.
Percebemos que esta tese apresenta-se um tanto quanto insustentável, no tocante aos
critérios adotados quando da elaboração da suposta escala de prioridades, a qual justificaria o
grau de responsabilidade que se tem para com as gerações vindouras.
Ademais, se admitimos a validade da segunda objeção, relativa ao quarto argumento da
tese da não-responsabilidade para com os descendentes, não se pode deixar de considerar a
possibilidade de as novas gerações ampliarem a sua empatia. Então, como podemos escalonar
nossa responsabilidade, uma vez que, presume-se, foi aumentada a nossa capacidade de
empatia? Neste caso, o óbvio seria nos sentirmos igualmente responsáveis em relação a todos,
independente do tipo ou nível de relação existente.
Por outro lado, se for válido o argumento referente à ausência da empatia, não vemos,
também, como será possível escalonar nossa responsabilidade em relação às gerações futuras.
Porque, se há ausência de empatia, isso poderá acontecer tanto em relação aos nossos netos,
quanto em relação àqueles que viverão daqui a cem ou duzentos anos.
Assim sendo, concluímos que a única forma pela qual se poderia justificar a tese da
menor responsabilidade seria através do sentimento de afetividade que se constitui em um
conjunto de fenômenos psíquicos que se manifestam sob a forma de emoções, sentimentos e
paixões. Tais fenômenos sempre estão associados a impressões antagônicas como dor ou
prazer, satisfação ou insatisfação, alegria ou tristeza. Contudo, uma ética que considere o
problema da responsabilidade entre gerações não pode levar em conta apenas sentimentos,
23 Por esta razão pode estar totalmente justificado, por exemplo, pedir ou impor a nossos filhos ou compatriotas ou contemporâneos (ou a parte deles) sacrifícios não excessivamente pesados, quando isto for necessário para preservar a nossos descendentes de prejuízos mais graves ou de uma verdadeira catástrofe.
47
visto que estes possuem caráter meramente subjetivo, e a ética, como sabemos, tem por
objetivo estabelecer critérios universais que sirvam de medida para julgar se uma ação é
moralmente boa ou ruim.
2.4 A TESE DA RESPONSABILIDADE DECRESCENTE
Esta tese postula que quanto maior for a distância entre as gerações, menor é a
responsabilidade entre elas. Analogamente, pode-se afirmar que a responsabilidade de uma
geração para com as ulteriores está diretamente relacionada ao fator temporal. Sendo assim, a
responsabilidade pelos danos causados em decorrência das ações praticadas no presente, as
quais certamente causarão conseqüências que atingirão tanto as gerações que existirão num
futuro próximo quanto no futuro remoto, somente poderá ser atribuída à geração atual o
passivo gerado até uma determinada data, pois, quanto mais longe no tempo se estiver de uma
determinada geração, menos relevância têm as conseqüências de suas ações praticadas.24
A tese da responsabilidade decrescente tem sua fundamentação baseada no princípio
econômico de desconto do futuro, o qual estabelece um tipo de desconto social em que o valor
de uma vantagem ou a desvalorização da contribuição de um indivíduo futuro terá que ser
reduzida em função de sua distância no tempo. Alguns economistas defendem essa idéia
alegando que aplicar um tipo de desconto do futuro garantiria um eficaz rendimento dos
recursos existentes atualmente (Pontara, 1996, p. 62).
Sob a ótica econômica, este parece ser um princípio aceitável, entretanto não o é do
ponto de vista moral, porque, aqui, estão em jogo preferências. Uma coisa é descontar o valor
econômico de um benefício ou custo futuro de um indivíduo real e outra é descontar o valor
não econômico da satisfação de desejos, preferências ou de bem-estar futuros. Pode-se aceitar
24 Um bom exemplo é a questão referente a existência ou não de uma dívida dos europeus para com as populações negras da África que teria sido contraída por ocasião do tráfico de negros para as Américas no período compreendido entre os séculos XVI ao XVIII.
48
a aplicação do princípio de maximização no que diz respeito ao primeiro caso, porque o
mesmo está relacionado à idéia da distância temporal entre o presente e os benefícios e custos
no futuro. Porém, quando se fala em descontar o valor do bem-estar futuro, exclusivamente
em razão de sua distância temporal com o presente, ainda que seja do bem-estar de um mesmo
indivíduo, isto é algo que não se pode aceitar porque há um choque, neste sentido, com o
princípio da irrelevância temporal (Pontara, 1996, p. 63).
A diferença básica existente entre o princípio de desconto do futuro e o princípio de
maximização é que no segundo princípio, isto é, o da maximização, os descontos não são
desfrutados nem suportados pelas mesmas pessoas, mas sim por diversos indivíduos de várias
gerações. Esta é uma diferença fundamental que impede o progresso automático de um
princípio válido em nível intrapessoal e um princípio mais amplo situando na esfera
interpessoal (Pontara, 1996, p. 64).
Existe nesta idéia um aspecto perigoso, pois os princípios de desconto social valorizam
apenas um bem-estar em curto prazo, não relevando os possíveis danos que estes podem
causar às gerações futuras. Sob este prisma está justificada, por exemplo, a instalação de uma
usina nuclear, a qual beneficiará somente uma ou duas gerações e pouco acrescentando na
qualidade de vida destas gerações, e que pode, ademais, causar prejuízos irreparáveis às
gerações futuras. O mais aceitável é que a suposta usina deixasse de ser instalada, uma vez
que a aplicação dos tipos de desconto social apresentado não resulta na preservação da vida,
ou melhor, tal aplicação não é uma justificação moral e, portanto, inviabiliza a resposta sobre
quanta responsabilidade as gerações atuais têm para com as gerações futuras.
Percebe-se que, de certa forma, esta tese da responsabilidade decrescente se sobrepõe ao
terceiro argumento da tese da não-responsabilidade para com os descendentes, principalmente
no que diz respeito à fundamentação básica, ou seja, ambas justificam-se a partir do fator
temporal. Considera-se que tal fator é irrelevante para se julgar os danos causados por nossas
49
ações, pois ainda que se concebesse a idéia de que a responsabilidade que temos para com as
gerações futuras pode ser medida, a unidade utilizada, com certeza, não seria o tempo. Além
do que, parece-nos bastante complicado mensurar coisas incontáveis como prazer, alegria,
dor, sofrimento ou, até mesmo responder perguntas do tipo: quais são os critérios, os que
possibilitam emitir julgamento justo acerca dos sentimentos de outrem? Como é possível
medir a relevância dos sentimentos inerentes às próximas gerações?
Para John Rawls, o problema da justiça entre gerações pode ser solucionado pelo que
ele denominou de “princípio de poupança”. Este consiste numa “regra que atribui uma taxa
apropriada a cada nível de desenvolvimento, ou seja, uma regra que determina uma
programação das taxas de poupança” (Rawls, 1997, p. 319).
Lembramos que Rawls faz parte do grupo dos neocontratualistas e, sendo assim, a sua
proposta não poderia ser diferente, isto é, trata-se de um contrato. Desta forma, é importante
que as partes, ou seja, as gerações, tenham acordado os limites do princípio de poupança, o
qual deve assegurar “que cada geração receba de seus predecessores o que lhe é devido e faça
a sua parte justa em favor daqueles que virão depois” (Rawls, 1997, p. 318).
Se a melhor resposta em relação ao problema para com as gerações futuras encontra-se
num tipo de desconto do futuro ainda não se sabe. Entretanto, muitos evitam adotar um
princípio fundamentado no fator temporal puro, alegando que não é pelo fato de as pessoas ou
as gerações futuras estarem numa situação temporal diferente que se deve dispensar-lhes um
tratamento diferenciado.
2.5 A TESE DA RESPONSABILIDADE TOTAL
50
Os adeptos da tese da responsabilidade total consideram que a qualidade de vida25 de
uma geração Y está diretamente relacionada às conseqüências dos atos cometidos por sua
geração antecessora. A assertiva de Pontara de que a geração atual é moralmente responsável
por todas as conseqüências que suas ações têm sobre o bem-estar das gerações futuras
pretende alertar os indivíduos para a necessidade de se adotar uma conduta responsável em
relação ao futuro.
De modo diferente, a tese da responsabilidade parcial responde ao mesmo problema a
partir de um princípio normativo, segundo o qual para que uma ação seja dada como
moralmente errada é imprescindível que a sua concretização leve pelo menos um indivíduo a
ter o seu bem-estar comprometido. Mas, caso isto não ocorra, isto é, se a conseqüência das
ações não compromete a qualidade de vida de pelo menos um indivíduo, então nenhuma ação
poderá ser tida como imoral. Este princípio foi denominado por Pontara de princípio do
empobrecimento. Eis, então, como fica o enunciado desta tese de Pontara (1996, p. 66),
Somos moralmente responsables de las consecuencias que nuestras acciones tienen para los individuos futuros solamente en la medida en que nuestras acciones incidan sobre el destino de estos individuos, solamente si, y en la medida en que, las acciones que realicemos comportan un empeoramiento de la cualidad de vida de tales individuos.26
Neste ponto, observa-se uma certa imbricação desta tese da responsabilidade parcial
com a tese da não responsabilidade para com a espécie humana. Acredita-se que tal
imbricação consiste no fato de ambas defenderem a posição sobre a questão do valor
25 Atualmente esta é uma das expressões mais discutidas! Tanto no âmbito acadêmico e profissional quanto no pessoal. O que seria esta qualidade de vida? De modo bem simples qualidade de vida tem a ver com o jeito que cada um escolhe para viver bem. Não obstante, é importante ressaltar que no contexto deste trabalho o termo em questão é tomado como o conjunto das condições que proporcionam uma vida prazerosa não somente para as populações, mas também para todas comunidades de viventes. Desta forma,, destacamos alguns dos elementos que fazem parte de tal conjunto: a preservação e a conservação do meio ambiente natural, apoio simultâneo a uma educação que restabeleça a conexão com a ética e às ações que proporcionam a prática do desenvolvimento sustentável, especialmente, da agricultura e da pesca, garantia de boa saúde, dentre outros.
26 Somos moralmente responsáveis pelas conseqüências que nossas ações têm para com os indivíduos futuros somente na medida em que nossas ações incidam sobre o destino destes indivíduos, somente se, e na medida em que, as ações que realizamos impliquem diminuição da qualidade de vida de tais indivíduos.
51
intrínseco, isto é, ambas defendem que este atributo deve ser conferido, sempre, à qualidade
de vida do indivíduo.
Analisando as teses acima expostas, pode-se observar que o problema relativo à
existência ou não de responsabilidade para com as gerações futuras não é uma equação muito
fácil de resolver. É importante também lembrar que o alvo da presente discussão não é se em
um futuro remoto haverá ou não seres vivos. Pelo contrário, e considerando a atual população,
é bastante razoável acreditar que, pelo menos durante os dois próximos séculos, existirão
indivíduos tanto da espécie humana quanto de outras espécies. Logo, a qualidade de vida
destes indivíduos é o que conta. Eis, portanto, a razão de se aprofundar a discussão.
No que diz respeito ao problema entre gerações, Pontara (1996) apresenta o utilitarismo
clássico como a teoria ética mais razoável devido às reflexões levadas a efeito por um de seus
precussores: Jeremy Bentham. Segundo Pontara, o utilitarismo defende a tese segundo a qual
uma ação somente deve ser realizada na medida em que a mesma possibilite o aumento da
felicidade, do bem-estar ou da utilidade daqueles que a recebe.
Este autor, concebe as ações particulares como aquelas que são realizadas de modo
voluntário, ainda que suas conseqüências ultrapassem os domínios da intencionalidade. Ações
particulares são, portanto, aquelas ações cujo sujeito decide fazer de uma forma, ainda que
pudesse fazer de outro modo. Então, é certo afirmar que qualquer ação somente deverá ser
executada levando-se em conta suas conseqüências.
Daí a máxima do utilitarismo clássico27 que aceita a utilidade ou o princípio da maior
felicidade como fundamento moral. Para os utilitaristas, a felicidade é a ausência de dor, isto
é, o prazer. Este último, constitui-se no estado de consciência que leva o indivíduo a preferir
uma ação a outra. O oposto – o sofrimento – é todo estado de consciência que leva o
indivíduo a preferir que uma dada ação termine em vez de continuar.
27 Conforme indica Pontara, formulado inicialmente por Bentham e, posteriormente, sistematizado por Sidgwick. (Pontara, 1996, p. 135).
52
A preferência de Pontara pelo utilitarismo não se dá somente por sua complexidade e
sofisticação, mas também porque esta teoria considera relevante, do ponto de vista moral, o
bem-estar das gerações futuras independentemente da posição que estas venham a ocupar no
tempo em relação às gerações presentes. Ou ainda, a felicidade das gerações presente conta
tanto quanto a das gerações futuras.
Se, por um lado, o utilitarismo é considerado satisfatório, principalmente, por resolver o
problema da não identidade na medida em que evita várias conclusões contra intuitivas, por
outro ele sofre duas objeções, sendo uma devido à questão da simetria moral e a outra pelo
fato de levar a uma “conclusão repugnante”28. No entanto, aquilo que se configura num
problema para Parfit não passa, para Pontara, de obstáculos intransponíveis. Para ele, essas
implicações dizem respeito a uma questão estratégica, pois há uma distinção “entre
utilitarismo interpretado como teoría ética o principio de ética filosófica y utilitarismo
interpretado como método de deliberación o principio de moral positiva”29 (Pontara, 1996, p.
151).
Quando tomado como uma teoria ética ou como um princípio de ética filosófica, o
utilitarismo fixa as condições necessárias e suficientes do agir moralmente reto, justo e
necessário. Desta forma, uma ação será moralmente reta se e somente se não houver nenhuma
outra ação alternativa que aumente a sua utilidade; moralmente justa se qualquer outra ação
alternativa produzir menor utilidade; e moralmente equivocada se e somente se ela não for
moralmente reta (PONTARA, 1996, p. 152).
Levando-se em conta tal interpretação, mais adiante Pontara (1996, p. 152) afirma que
28 De acordo com Pontara (1996), estas duas implicações foram feitas por Derek Parfit, também estudioso do tema, em seu trabalho Reasons and Persons, no qual busca uma teoria X que responda ao problema da responsabilidade entre gerações. Segundo este último, o problema da simetria moral consiste, igualmente, no fato, por exemplo, de trazer ao mundo um filho que, possivelmente, terá uma vida muito feliz quanto ao de trazer ao mundo um indivíduo cuja existência certamente será infeliz. Já a questão da “conclusão repugnante” é um paradoxo, pois entende que é impossível em razão do aumento populacional, garantir a felicidade, o bem-estar e a utilidade total das pessoas sem, contudo, que isso comporte que qualquer indivíduo passe em termos quantitativos de um nível a outro.
29 Entre utilitarismo interpretado como teoria ética ou princípio de ética filosófica e utilitarismo interpretado como método de deliberação ou princípio de moral positiva.
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asi interpretado, el utilitarismo no dice nada acerca del proceso de decisión que se debe aplicar, o las operaciones mentales que es necesario llevar a cabo, en situaciones concretas de elección, a fin de identificar, de la manera humanamente más segura posible, la acción que en esa situación es la que, utilitaristamente, se debe realizar. Tampoco dice nada en concreto acerca de la cuestión de cuáles son los principios sostenibles de moral positiva, aquellos que están interiorizados y sustentados por la sociedad como principios conductores de nuestro quehacer cotidiano.30
A descrição sugere que o princípio utilitarista determine o grau de aceitabilidade da
teoria ética. Quer dizer que este é o método de discussão que todos devem interiorizar e,
portanto, aplicar e seguir em sua vida diária.
Verifica-se, desta forma, que a admissibilidade da assimetria em termos de moral
positiva pode, pois, ser compatível com o utilitarismo. Entretanto, o mesmo não ocorre em
termos de ética teórica, uma vez que o utilitarismo implica negar a assimetria. Eis, assim, o
que permite Pontara afirmar que existe obrigação moral desta geração para com as gerações
futuras.
A solução do problema não passa apenas pela negação da assimetria. É necessário
também refletir acerca da função do agir responsável. Com isso, não se está buscando uma
solução pautada no biocentrismo. O que se defende é o equilíbrio que serve para dar sentido à
natureza em si mesma. Talvez isto nos permita rever o conceito de dominação e, mais
especificamente, o de dominação da Natureza. E por que fazer isto? Porque este termo foi tão
importante em todo percurso moderno, a ponto de o homem contemporâneo definir o sentido
de sua própria humanidade na razão direta de sua capacidade de dominar a Natureza.
Diante disso tudo fica a questão: o que fazer? Para este problema existe pelo menos
duas respostas: uma consiste em afirmar que existe obrigação moral para com as gerações que
30 Assim interpretado, o utilitarismo nada diz acerca do processo de decisão que se deve aplicar, ou as operações mentais que é necessário levar a cabo, em situações concretas de escolha, a fim de idetificar, a maneira humanamente mais segura possível, a ação que nessa situação é a que, utilitaristicamente, se deve realizar. Tampouco diz nada de concreto acerca da questão e quais são os princípios sustentáveis da moral positiva, aqueles que estão interiorizados e sustentados pela sociedade como princípios condutores de nosso que fazer cotidiano.
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existirão num futuro remoto. A outra seria negar a existência de tal obrigação. Contudo,
independente da resposta que se queira dar, ou enquanto se busca uma resposta razoável,
necessário se faz que as ações humanas sejam guiadas pelo princípio da responsabilidade.
Vale ressaltar que um estudo mais detalhado sobre este princípio será realizado no capítulo
quarto deste trabalho. Por agora basta ter a consciência de que o agir responsável é a
condição, mínima, necessária e previsível, a qual possibilitará a humanidade descobrir os
mecanismos para garantir tanto a sua qualidade de vida como também das gerações futuras.
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3 A QUESTÃO DAS GERAÇÕES FUTURAS SEGUNDO A PERSPECTIVA NEO-UTILITARISTA DE PETER SINGER
Um rio precipita-se em direção ao mar, cruzando as matas dos vales e as ravinas rochosas. A comissão estadual de energia hidrelétrica vê aquelas águas correntes como energia inexplorada. A construção de uma represa numa das ravinas daria emprego a umas mil pessoas durante três anos e, em longo prazo, a vinte ou trinta pessoas. A represa armazenaria água suficiente para garantir ao estado, de forma econômica, o atendimento de suas necessidades energéticas durante a próxima década. Isso iria estimular o estabelecimento, no estado, de indústrias de consumo energético intensivo, contribuindo assim ainda mais pra a geração de empregos e para o crescimento econômico.O acidentado terreno do vale do rio torna-o acessível apenas aos que gozam de uma razoável condição física, mas apesar disso o local é um dos preferidos para as caminhadas pela mata. O próprio rio atrai os mais ousados a praticarem canoagem nas corredeiras. Nas profundezas dos vales recônditos erguem-se pinheiros-da-Tasmânia, com milhares de anos de idade. Os vales são a morada de muitas aves e animais, inclusive uma espécie ameaçada de rato marsupial, só encontrada ali e em um outro local da Austrália. Pode ser que existam mais plantas e animais raros, porém não se sabe, pois os cientistas ainda precisam investigar a fundo a região (Singer, 2002, p. 117).
A descrição31 acima sugere alguns questionamentos relacionados à preservação dos
recursos naturais, ao desenvolvimento socioeconômico, à ecologia e à ética, mais
especificamente, à responsabilidade para com as gerações futuras, dos quais destaca-se: o
projeto de construção da represa deve ou não ser aprovado? Quais os interesses que devem ser
levados em consideração? E em que medida é possível atendê-los?
Considerando-se a lógica econômica capitalista observa-se que, atualmente, há uma
forte tendência a se decidir favoravelmente sobre projetos desta natureza. Isso ocorre porque o
interesse econômico geralmente se sobrepõe ao ambiental. Esta tendência está justificada,
principalmente, pela necessidade de se abrir, cada vez mais, postos de trabalho, pois, tão
premente quanto encontrar soluções para os problemas ambientais é também a busca de
solução para os problemas sociais decorrentes, na maioria dos casos, da falta de trabalho.32
31 O fato acima descrito aconteceu em 1976, no rio Franklin, localizado no sudoeste da Tasmânia, uma ilha pertencente a Austrália, onde havia a possibilidade de construção de uma represa hidrolétrica. Vale ressaltar que foram alterados, deliberadamente, pelo autor alguns pormenores, por isso este pode ser considerado como um caso hipotético.
32 A questão do trabalho é tão forte que até os poetas não a desprezaram. Sobre isso assim diz Gonzaguinha: “um homem se humilha; se castram seu sonho; seu sonho é sua vida; e a vida é trabalho; e sem o seu trabalho um homem não tem honra; e sem a sua honra se morre, se mata; não dá pra ser feliz” (1995, Guerreiro menino. O Talento de Gonzaguinha).
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Eis um dos argumentos favoráveis à aprovação de semelhante proposta. Como conciliar
desenvolvimento econômico com preservação ambiental é a pergunta que anima a reflexão
contemporânea acerca da relação homem-Natureza. Assim, se por um lado a aprovação de tal
projeto irá aumentar a oferta de postos de trabalho, bem como a renda per capita do Estado,
por outro os danos ambientais podem ser irreversíveis, uma vez que tais ganhos – empregos,
lucros comerciais, elevação das exportações e possibilidades de aumento da oferta de matéria-
prima – são ganhos a curto prazo. Ademais, “é provável que os benefícios só perdurem por
uma ou duas gerações; depois disso, uma nova tecnologia fará com que esses métodos de
geração de energia se tornem obsoletos” (SINGER, 1993, p. 284). Assim, se a represa tivesse
sido construída por que os danos causados seriam irrelevantes? Porque as perdas atingiriam
direta ou indiretamente não somente as espécies existentes no vale, mas também os seres
humanos que existirão no futuro próximo, acarretando, pois, perdas irreversíveis para as
gerações futuras.
A idéia de irreversibilidade advoga a tese de que, uma vez inundada a floresta ali
existente, o equilíbrio ambiental correria o risco de se perder para sempre, isto porque as
técnicas de reflorestamento, por mais eficientes que sejam, não seriam capazes de tornar
aquela área tal como era no passado. Portanto, este é um preço que todos, inclusive as
gerações futuras, terão que pagar caso não se mude a forma de se tratar a Natureza. É preciso
olhar a natureza não mais como se olha para uma simples fotografia. Do que se conclui, que
tal ecossistema deve ser preservado, porque do contrário se estará privando as gerações
futuras de desfrutarem o prazer de apreciar a plenitude estética que a floresta possui. Esta é
uma experiência ímpar. Daí a responsabilidade em preservar a natureza para as gerações
vindouras e, não apenas em razão da utilidade que a floresta tem.
O fato é que formação política e cultural predominante no ocidente não tem sido capaz
de reconhecer o valor em si de determinados seres naturais. No plano das ações de governo,
57
muitas vezes só há medidas pontuais e imediatas. “Isso não se deve a nenhuma incerteza
sobre a existência, ou não, de seres humanos ou outras criaturas sencientes habitando este
planeta na ocasião, mas simplesmente ao efeito cumulativo da taxa de retorno aplicada ao
dinheiro investido hoje” (SINGER, 1993 p. 285). Ainda que fosse possível aplicar os recursos
financeiros ganhos com a derrubada da floresta, não há como justificar moral ou
materialmente tal fato, pois os ganhos advindos desta atividade não são suficientes para
comprá-la novamente.
A partir do estudo deste caso, pode-se notar quão grande é o desafio da filosofia moral
contemporânea. Pode-se, com isso, indagar: quais interesses são mais relevantes? Dos que
hoje necessitam de trabalho ou daqueles que sequer terão o direito de usufruir de um meio
ambiente equilibrado? É relevante ressaltar que o problema que orienta este trabalho não está,
simplesmente, na esfera do que fazer ou não fazer, mas, sim em se decidir pelo o que é certo e
o que é errado. Acreditamos, como muitos autores, que a saída seria a universalização de
alguns princípios morais. É na busca da universalização destes princípios morais que consiste
a tarefa de muitos filósofos, ao longo da história da filosofia. A dificuldade, todavia, é
ultrapassar a barreira que separa o “eu” do “outro”. Isto seria o mesmo que dizer que o
compromisso que temos em relação às gerações futuras deve ser desprovido de todo e
qualquer egoísmo. Este é um desafio importante, uma vez que não existe nada que justifique a
diferença entre os interesses de sobrevivência dos membros da espécie. Nisto consiste o
princípio da igual consideração de interesses, no qual se fundamenta a moral neo-utilitarista
defendida por Peter Singer: “não existe nenhuma razão logicamente imperiosa que nos force a
pressupor que uma diferença de capacidade entre duas pessoas justifique uma diferença na
consideração que atribuímos aos seus interesses” (1993, p. 30).
Este princípio da igual consideração de interesses está fundado em duas definições
bastante significativas no âmbito da concepção neo-utilitarista defendida por Singer. A
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primeira diz respeito à definição do termo interesse como sendo qualquer coisa que as pessoas
desejem. Excluem-se aqui aqueles desejos que são incompatíveis com outros desejos33. A
segunda é a definição de pessoa que, para Singer, não é necessariamente um indivíduo da
espécie humana. Pessoa é todo ser que tem consciência de si próprio. Baseado nesta definição,
Singer (1993, p.119) afirma que existem razões para se sustentar que tirar a vida de uma
pessoa constitui um erro muito mais grave do que tirar a de um ser que não é pessoa.
Ainda segundo este autor, uma pessoa é todo animal que tem autoconsciência, isto é,
que tem consciência de si próprio como ser distinto e que tem um passado e um futuro.
Tomando por base as pesquisas científicas, ele afirma que há fortes indícios de que alguns
animais não-humanos podem ser definidos como pessoa. E conclui mais adiante:
Portanto, devemos rejeitar a doutrina que coloca as vidas de membros de nossa espécie acima das vidas de membros de outras espécies. Alguns membros de outras espécies são pessoas; alguns membros da nossa espécie não são. [...] assim, parece que o fato de, digamos, matarmos um chipanzé é pior do que o de matarmos um ser humano que, devido a uma eficiência mental congênita, não é e jamais será uma pessoa (SINGER, 1993, p. 127).
Um outro termo que merece destaque é a noção de igualdade. Este não significa,
necessariamente, um tratamento igualitário, isto é, não se trata de uma igualdade factual, mas
sim que o interesse de todos os diferentes seres vivos deve ser levado igualmente em
consideração. Com efeito, em qualquer deliberação moral deve-se atribuir o mesmo valor aos
interesses iguais daqueles que serão atingidos por um determinado fato.
De um modo geral, os neo-utilitaristas consideram todos os interesses como eticamente
relevantes, ou seja, não importa se o interesse é de um animal humano ou não-humano.
Porém, dentre todos os interesses o de não sentir dor é, seguramente, o mais relevante, porque
a dor opõe-se ao prazer. Este último, para o neo-utilitaristarismo, é o que dá sentido à vida.
Entretanto, sabe-se que jamais se poderá sentir a dor do outro, pois, sendo ela uma sensação
33 Conforme indica Singer, 2002.
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de ordem subjetiva não há como mensurá-la nem, tampouco, como experimentá-la em seu
lugar. Acredita-se que a única coisa possível de se fazer é priorizar os interesses iguais em não
sentir dor. Isto poderia ser realizado, por exemplo, a partir de um diagnóstico médico, na
medida em que este profissional é quem detém os parâmetros necessários para presumir quem
está sentindo uma dor “maior”.
Levando-se em conta esta idéia, pode-se afirmar que, na prática, o princípio da igual
consideração de interesses garante o direito de que todas as pessoas tenham, por exemplo,
assegurado o acesso aos serviços de saúde pública. Diante disso é correto dizer que não se
pode, sob hipótese alguma, considerar mais a doença de um indivíduo X do que a doença de
um outro Y, ainda que X tenha um poder aquisitivo maior. Assim o direito de acesso aos
serviços de saúde pública deve ser garantido para ambos, mas não nas mesmas proporções. O
que se quer dizer com isso é que se, por exemplo, X e Y encontram-se diante da necessidade
de fazer um dado exame, mas os serviços de saúde pública só têm condições de atender a uma
única pessoa, nesse caso o indivíduo Y deve ter a preferência. Quanto a X este deverá
procurar um serviço privado de saúde, uma vez que está em melhores condições financeiras.
Com este exemplo pretende-se mostrar que o neo-utilitarismo, conforme propõe Singer,
se não é a solução mais plausível, pelo menos se afigura como um caminho que satisfaz
razoavelmente as questões engendradas pela civilização contemporânea. O princípio da igual
consideração de interesses é o que mais se aproxima do aspecto universal da ética. Nas
palavras deste autor, “a posição utilitária é a oposição mínima, uma base inicial que
alcançamos ao universalizar a tomada de decisão baseada em interesse pessoal” (SINGER,
2002, p. 36).
Considerando ainda o interesse pelo alívio da dor, como então se daria a aplicação do
princípio neo-utilitarista que ora se analisa numa situação em que se tem duas vítimas? Por
exemplo uma – vítima A – tem a perna esmagada e encontra-se agonizante; por sua vez a
60
outra – vítima B – tem um ferimento na coxa e sente um pouco de dor. Para aliviar a dor de
ambas as vítimas só existem duas doses de morfina. Diante de tal situação, o problema que se
coloca consiste em: como deve ser o procedimento de quem assiste às vítimas?
Possivelmente existam outras soluções, porém no momento somente serão analisadas
duas delas. Uma leva em conta o princípio da igualdade simples, o qual considera que a
atitude mais coerente é dar uma dose de morfina para cada vítima. Isto aliviaria
completamente a dor da vítima B, já que sua dor não é tão grande, porém isto não é o
suficiente para cessar a dor da vítima A.
A outra solução leva em conta o princípio da igual consideração de interesses.
Entretanto, antes de apresentar a solução fundada neste princípio, vale destacar que, segundo
Peter Singer (1993), este é um princípio mínimo de igualdade, porque não impõe um
tratamento igual às partes. Percebe-se que neste princípio encontra-se oculto um outro
princípio, o qual considera mais importante evitar sempre o pior. No exemplo acima,
considera-se pior o fato que uma vítima fique com uma dor, supostamente maior do que a
outra. Considerando que é o prazer que faz a vida ser desejável, se conclui, portanto, que
vivemos em busca do prazer, claro que não se trata do prazer pelo prazer. Fala-se do prazer de
ler um bom livro, de ouvir uma boa música, das calorosas relações pessoais, das boas
conversas, de apreciar lugares naturais não devastados e muitas outras formas de prazer que
incitem o desenvolvimento de uma ética da responsabilidade. Mas, retomando o exemplo em
questão e, de acordo com o princípio da igual consideração de interesses, a solução mais
correta é dar as duas doses de morfina para a vítima A, uma vez que desta forma o grau de
sofrimento da mesma se equipararia ao da vítima B.
Com isto fica claro que tal princípio tem por objetivo levar as pessoas a ponderarem,
imparcialmente, decidir sobre os interesses que estão em jogo. Não obstante, é necessário
frisar que a melhor forma de se fazer isto é através do uso da prudência para favorecer o lado
61
em que o interesse em não sentir dor, isto é, o prazer é mais forte, bem como levar em
consideração quais interesses estão sendo pesados.
Retornando para o estudo de caso apresentado no inicio deste capítulo, observa-se que
Singer (1993) defende o ponto de vista que nos cálculos referentes a decisão de se construir,
ou não, a represa, deve-se considerar, também, os interesses dos animais que vivem naquele
vale. De fato, para este autor, não se deve atribuir uma menor importância ao sofrimento
destes seres do que a importância atribuída ao sofrimento dos homens, porque
a diferença entre provocar a morte de uma pessoa e de um ser que não é uma pessoa não significa que a morte de um animal que não é uma pessoa deve ser tratada como coisa de menor importância. Pelo contrário, os utilitaristas levarão em conta a perda que a morte inflige aos animais – a perda de toda a sua futura existência e das experiências que teriam feito parte de suas vidas futuras (Singer, 1993, p. 291).
Este argumento abre espaço para a discussão sobre a importância da vida dos animais,
bem como leva a refletir, mais profundamente, sobre o respeito que se deve ter pela vida de
modo geral. Inicialmente, o problema a ser discutido é: quais são os seres que devem ser
levados em conta nas deliberações morais?
Acerca disso, nota-se que o neo-utilitarismo responde a questão de forma parcial, uma
vez que somente leva em conta os interesses dos animais sejam eles humanos ou não-
humanos. Em outras palavras, para Singer, não há como se levar em consideração os
interesses dos vegetais, assim como dos seres não vivos, isto é, dos seres inanimados. A
justificativa que dá para tal posição está na dificuldade em se definir parâmetros científicos
que comprovem se os vegetais possuem consciência de si próprio, pois este é um dos atributos
humanos que definem o valor intrínseco de um ser.
A distinção entre o neo-utilitarismo e as outras concepções éticas consiste no fato de
que o primeiro dá um grande passo ao incluir no campo de suas considerações morais todos
os seres humanos e não-humanos. Quanto a estes últimos, é importante frisar que apenas
62
serão levados em consideração os interesses daqueles que puderem ser definidos como
pessoas.
Trazer a discussão ética para além dos seres sencientes não é, com toda certeza, uma
tarefa muito fácil. Principalmente porque, até o momento, não se tem parâmetros seguros para
se estabelecer critérios morais capazes de definir se há interesse por parte dos seres
sencientes. É por isso que a resposta para a pergunta “o que é morrer para uma árvore?” é,
praticamente, impossível de ser dada. Todavia, acredita-se que mesmo diante deste obstáculo
não se pode deixar os vegetais aquém das considerações morais. Se assim não for, fica
evidente que o valor da vida está no tipo de vida que se tem, ou, ainda, no modo de se viver.
Desta forma, se por um lado é impossível saber o que sente uma árvore quando suas
raízes estão se afogando, por outro se imagina qual é a sensação de se morrer afogado. Então,
como é possível afirmar que os vegetais não sentem, uma vez que não se sabe o que é ser um
vegetal? Este é o nó que as concepções éticas, ainda, não conseguiram desatar, por isso
encontrar a resposta pode ser a chave para resolver boa parte dos conflitos socioambientais da
atualidade. Não obstante, faz-se necessário entender qual é a origem do distanciamento entre a
sociedade contemporânea e a natureza. Desde os primórdios da história, mais precisamente,
com o surgimento da tradição hebraica e, mais tarde, com o advento da civilização grega, os
seres humanos foram colocados no centro do universo moral. O livro do Gênesis assim narra:
E (por fim) disse: façamos o homem à nossa imagem e semelhança, e presida aos peixes do mar, e ás aves do céu, e aos animais selváticos, e a toda a terra, e a todos os répteis, que se movem sobre a terra. E criou Deus o homem à sua imagem; criou-o à imagem de Deus, e criou-os varão e fêmea. E Deus os abençoou, e disse: crescei e multiplicai-vos, e enchei a terra, e sujeitai-a , e dominai sobre os peixes do mar e sobre as aves do céu, e sobre todos os animais que se movem sobre a terra (Gen 1, 26-28).
Encontra-se nesta passagem bíblica a essência do problema referente ao distanciamento
homem-Natureza. O problema deste distanciamento consiste na forma como os seres
63
humanos exerceram o domínio sobre a concessão divina (a Natureza). Ao longo da história da
humanidade, percebe-se que há uma extrapolação na esfera de ação do domínio. Ou seja, o
valor que a natureza tem para o homem desde o inicio de sua história é um valor instrumental.
Todavia, a tradição ocidental, berço da ética antropocêntrica, por mais esdrúxulo que possa
parecer, não exclui a preocupação com a preservação da natureza desde que esta esteja
diretamente relacionada ao bem-estar humano. Sobre isto Singer afirma:
Deus concedeu aos seres humanos o domínio sobre o mundo natural, e a Deus não importa como nós o tratamos. Os seres humanos são os únicos membros moralmente importantes deste mundo. A própria natureza carece de valor intrínseco, e a destruição das plantas e dos animais não pode ser um pecado, exceto se nessa destruição forem prejudicados os seres humanos (2002, p. 121).
Portanto, se quiser desatar o referido nó é preciso, inicialmente, não fazer mais da
diferença uma discriminação, uma desigualdade. Isto significa romper as correntes da ética
antropocêntrica. Significa, também, abrir caminhos para uma nova forma de olhar o mundo.
Ou seja, balizar os juízos morais não em função do valor instrumental34 que os seres,
porventura, possuam, mas pela responsabilidade para com as gerações que viverão tanto num
futuro próximo quanto remoto.
Até hoje a justificativa que se tem para não atribuir valor intrínseco às plantas está na
limitação em avaliar a importância, ou melhor, a existência de interesses por parte destes
seres. É neste contexto que surge a corrente denominada ecologia profunda35 que entende que
há uma estreita inter-relação do homem com a Terra e, por conseguinte, com os animais e os
vegetais que nela vivem.
Segundo Singer (2002), o maior problema não está em atribuir valores para além da
espécie humana ou, ainda, para além dos seres sencientes. Para ele a questão consiste em 34 O valor instrumental – aquele que tem valor como meio para a aquisição de algum objetivo ou fim – se
contrapõe ao valor intrínseco que é o valor em si mesmo. Assim, o valor de uma coisa não é dado em função de sua utilidade, mas porque ela é boa e desejável.
35 Concepção ética formulada por volta de 1950 pelo ecologista norte-americano Aldo Leopold que tem o seu fundamento centrado numa forma de igualitarismo biocêntrico, isto é, para os ecologistas profundo todos os seres vivos, independentemente, de sua forma de vida, têm um valor em si mesmo.
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como é possível atribuir algum valor sem levar em conta os juízos humanos? Em rápidas
palavras, pode-se dizer que a divergência máxima que existe entre a concepção neo-utilitarista
e a ecologia profunda é, justamente, o fato de a primeira emitir seus juízos morais com base
no princípio da igual consideração de interesses e a segunda tem em vista o valor intrínseco
das coisas.
Os argumentos formulados pelos defensores da ecologia profunda visam defender a
vida em si mesma e não os indivíduos que têm vida. De acordo com Leopold, citado por
Singer (2002, p. 134), “uma coisa é certa quando tende a preservar a integridade, a
estabilidade e a beleza da comunidade biótica. É errada quando tem a tendência oposta”. Para
Singer, esta afirmação não é suficiente para provar que os seres sencientes possuem um valor
em si mesmo. Tendo em vista a especificidade da ética, sugere-se a seguinte formulação:
suponha-se que uma área relativamente preservada fôra considerada, pelo poder público,
como propícia para a construção de um conjunto de casas populares. Para tanto, a primeira
etapa passa pela “limpeza” da área. Assim, autorizou-se o corte das espécies ali existentes
dentre as quais encontra-se um exemplar de gameleira com mais de 600 anos de idade, a qual
ocupa metade da área em questão devido a expansão de suas raízes aéreas e uma jovem
colônia de espécimes da família das cactáceas. Para que o empreendimento tenha
continuidade existem duas possibilidades: ou se preserva a gameleira ou a jovem plantação de
cactáceas. Diante destas possibilidades, fica logo evidente a questão ecológica que o
empreendimento agrega, ou seja, qual das duas espécies deve ser preservada? Ou então, qual
das duas espécies, a gameleira ou a colônia de cactáceas, tem maior interesse em se manter
viva?
Eis algo difícil de se responder, porque não existe parâmetro algum que balize
quaisquer juízos desta natureza. Provavelmente, a maioria das pessoas optariam pela
preservação da gameleira, mas seja qual for a escolha, ela sempre será feita com base em
65
princípios e sentimentos como, por exemplo, a reverência à gameleira em virtude de seu
longo tempo de vida. Nada mais natural, uma vez que os humanos pensam, agem e julgam
com base em suas experiências. Mais precisamente, pode-se afirmar que isto ocorre porque
todos os seus juízos morais só podem levar em conta a única perspectiva que conhece, ou
seja, a dos seres humanos. É por isso que, neste exemplo ou em qualquer outra situação
semelhante, seja qual for a escolha que se fizer, esta sempre será baseada nos sentimentos
humanos porque não há como saber o que é desejável para uma planta. Até o momento, o
máximo que se consegue é detectar alguns tipos de sensações como, por exemplo, “medo” em
virtude de alguma interferência externa.
Tomando as premissas do estudo de caso, apresentado no início deste capítulo, Singer,
no que diz respeito ao argumento defendido pela ecologia profunda, assim conclui:
Se a base filosófica para uma ética da ecologia profunda é difícil de ser sustentada, isso não significa que o argumento em favor da preservação da floresta não seja forte. Tudo o que significa é que um tipo de argumento – o argumento que afirma o valor intrínseco das plantas, das espécies ou dos ecossistemas é, na melhor hipótese, problemático. Pisaremos terreno mais seguro se nos limitarmos à argumentação fundamentada nos interesses das criaturas sencientes, presentes e futuras, humanas e não-humanas. Na minha opinião os argumentos que têm por base os interesses dos seres humanos presentes e futuros, e os interesses dos não-humanos sencientes que habitam a floresta são suficientes para mostrar que, pelo menos numa sociedade onde ninguém precisa destruir a floresta para sobreviver, o valor da preservação do que resta das áreas significativas da mata ultrapassa em muito o valor do que se ganha em troca de sua destruição (SINGER, 2002, p. 136).
Nesse caso, os valores ambientais serão construídos a partir da necessidade que os seres
humanos têm de um meio ambiente ecologicamente equilibrado. Essa necessidade advém da
predação irrestrita que vem sofrendo o meio natural. Deste modo, o valor de uma floresta não
está em si mesma, mas na sua condição de ser insubstituível. Isto quer dizer que, quanto mais
raros forem os resquícios de florestas, mais valor um fragmento terá. De certa forma este
status tem contribuído para o avanço das políticas públicas36 voltadas para a questão
36 Sobre isso chamamos a atenção para a rica legislação ambiental brasileira. Entretanto, uma boa legislação não é o bastante para a solução da questão ambiental. É preciso criar as bases para a construção de uma ética que possibilite às gerações futuras o direito de usufruir o meio ambiente equilibrado e, em última instância,
66
ambiental, haja vista o crescente número de parques nacionais criados em quase todas as
partes do mundo. A crise ambiental somada ao processo de globalização tende a levar os
Estados-nações a se congregarem num Estado-global37. Certamente que este fenômeno possui
tanto aspectos positivos quanto negativos. Como aspecto negativo pode-se citar o processo de
aculturamento pelo qual a humanidade vem passando, em que a cultura do mais forte tende a
prevalecer. Em contrapartida, como ponto positivo, está a tentativa de se solucionar os
problemas ambientais de âmbito mais global como as emissões de gazes nocivos à camada de
ozônio, o desabastecimento de água, os desmatamentos, a diminuição da biodiversidade entre
outros que juntos vêm ocupando técnicos, políticos, educadores, filósofos dentre outros na
busca por soluções comuns para a questão ambiental. Contudo, tais soluções devem ser, no
mínimo, compatíveis com os interesses dos Estados-nações. Assim, os primeiros passos já
foram dados com a criação de instituições internacionais, muito embora ainda incipientes e
pouco eficientes, pois não vêm cumprindo os objetivos propostos, dos quais destaca-se: o
Protocolo de Kyoto, ratificado por um grande número de países; no campo da economia surge
o Banco Mundial, a Organização Mundial do Comércio e o Fundo Monetário Internacional.
Observa-se que o pano de fundo de todas essas iniciativas é o reconhecimento de que há uma
estreita interdependência entre os seres humanos e o ambiente em que se vive.
Não é demais reafirmar que diante destas questões se faz necessário desenvolver um
sentido ético, destinado a capacitar o homem a enfrentar as ameaças oriundas da questão
ambiental. O maior desafio a ser enfrentado diz respeito a formulação e, sobretudo, à adoção
de uma ética ambiental por parte dos agentes produtivos que seja compatível com a idéia de
preservação, mas, ao mesmo tempo, reconhece o caráter irrefreável do progresso científico.
Sendo assim, o desenvolvimento de uma ética ambiental, deve levar a sério a
necessidade de se preservar o meio ambiente. Para tanto, uma avaliação criteriosa nos padrões
de terem uma boa qualidade de vida.37 Sobre este assunto, sugerimos Singer, P. Um só mundo: a ética da globalização, obra listada nas referências
bibliográficas.
67
de consumo é inevitável, pois, é esta avaliação que levará a preferir um estilo de vida que
diminua as agressões ao meio ambiente. Ressalta-se que, caso isso não aconteça, corre-se o
risco de investir recursos financeiros em projetos para a preservação sem antes, contudo,
estabelecer uma mudança nos hábitos, pessoais e coletivos.
Singer (1993) afirma que para enfrentar a crise ambiental não é preciso descartar o
prazer, pois, como já foi dito, é ele que dá sentido à vida. Não obstante, o prazer a que ele se
refere é aquele em que a centralidade da vida ética deve ser ocupada pela liberdade e pela
igualdade de oportunidades oferecidas para todos, inclusive para as gerações futuras. Chama-
se a atenção para o fato de que não se pode exercer um tipo de liberdade que não leva em
conta os outros e os possíveis danos à natureza, uma vez que, certamente, tais prejuízos
afetarão a todos.
Uma ética para ser ambiental deve ser erigida, sobretudo, a partir de um princípio de
justiça mínima, o qual deve determinar que todos tenham a oportunidade de se realizar como
pessoas e seres sociais, exigindo, por isso, uma participação eqüitativa e adequada dos bens
naturais, culturais e tecnológicos. O advento de uma ética desta natureza se impõe em face das
gerações futuras que, certamente, têm o direito de receber o ambiente, senão melhor, pelo
menos igual ao recebido por esta geração, ou seja, com uma atmosfera pura e com os recursos
hídricos em condições de uso.Por fim, se a construção de uma tal ética é possível, ainda não
dá para responder. Por agora basta entender o porquê de a humanidade ter chegado a este
ponto. Portanto, de forma clara e concisa, Singer (2004, p. 269) afirma:
Os séculos XV e XVI são famosos pelas viagens de descobertas que provaram que a Terra era redonda. O século XVIII assistiu às primeiras proclamações dos direitos humanos universais. No século XX, a conquista do espaço tornou possível que um ser humano olhasse para o nosso planeta a partir de um ponto a ele exterior e o visse, literalmente, como um só mundo. O século XXI vê-se agora a braços com a tarefa de desenvolver uma forma adequada de governação desse mundo único. É um desafio moral e intelectual assustador, mas não se pode voltar-lhe as costas. O futuro do mundo depende da forma como o enfrentamos.
68
4. A ÉTICA DA RESPONSABILIDADE PARA COM AS GERAÇÕES FUTURAS
4.1. O FAZER TECNOLÓGICO E SUAS IMPLICAÇÕES
As implicações decorrentes do emprego dos artefatos da tecnociência, aliadas ao culto
desenfreado ao consumo e à utilização desmedida dos recursos naturais, suscitaram a
necessidade de se pensar acerca de qual Planeta as gerações futuras herdarão de nós. É neste
contexto que se insere o pensamento do filósofo alemão Hans Jonas (1903-1993), o qual visa
estabelecer os critérios mínimos, fundamentados no princípio de responsabilidade, para a
criação de uma ética voltada para a civilização tecnológica e suas repercussões sobre a vida
dos indivíduos. A ética da responsabilidade, como ficou conhecida a sua proposta, tem a
pretensão de refletir sobre o futuro do planeta, preservando-o para as gerações futuras.
Para este filósofo, a ação do homem contemporâneo representa uma séria ameaça à
permanência da vida na Terra, pois suas ações deletérias tendem a alterar a essência do
humano e, até mesmo, colocar em risco a sua existência. Segundo Jonas, é necessário
modificar o presente cenário. Para tanto, indica o caminho que consiste em restabelecer a
relação entre a ética e a ontologia a fim de que também se possa repensar a relação homem-
Natureza. Jonas considera que para o homem moderno a Natureza está submetida a ciclos e
trocas contínuas, sendo, por isso, capaz de recuperar infinitamente os danos sofridos pela ação
humana. Entretanto, esta mesma Natureza tem dado sinais de que seu funcionamento não
obedece a essa lógica, haja vista os problemas ambientais gerados justamente pela
incapacidade de auto-regeneração da mesma.
O conhecimento moderno trouxe consigo rupturas drásticas como aquelas ocorridas
entre corpo e alma, essência e aparência, pensamento e mundo. Tais dicotomias tornaram
ainda mais difícil a relação do homem com o meio natural, em razão da apartação promovida
entre os indivíduos e o mundo. Isso ensejou uma ideologia do progresso, baseada no domínio
69
e exploração dos recursos naturais, cujas repercussões sobre os ecossistemas tornaram-se cada
vez mais graves ao longo do tempo. Um reflexo dessa crescente ameaça pode ser observado
quando se constata a inflação de leis ambientais visando a preservação dos recursos naturais
ainda existentes38. Este caráter preservacionista demonstra, segundo Jonas (1995), a
prevalência da tese, à primeira vista bastante óbvia, de que a existência de um mundo é
melhor do que a sua inexistência. Porém, esse arsenal legislativo não tem sido suficiente para
responder à nossa inquietação diante da degradação dos ecossistemas.
O fato é que a promessa redentora feita, inicialmente, pelas tecnologias e suas variadas
formas de expressão tem se convertido, gradualmente, em sérios perigos para a sobrevivência
do homem no planeta. Ou seja, o que era uma conquista da humanidade tornou-se pouco a
pouco em motivo de medo e inquietude. É certo que o problema não pode ser atribuído à
tecnociência, mas ao emprego deletério que se faz dela. Com isso, fica claro o fato de que o
uso inapropriado da técnica tem criado um grande mal-estar na humanidade. A questão que se
impõe a todos nós é a seguinte: como criar mecanismos capazes de evitar a desmesura, isto é,
de arrefecer o emprego nocivo de determinados conhecimentos e instrumentos técnicos.
A fim de aportar respostas ao problema, Jonas (1995) afirma que é preciso ultrapassar a
ética da prudência em direção a uma ética do respeito a todos os seres vivos. Para ele, as
concepções éticas da tradição filosófica são insuficientes – em particular as propostas por
Aristóteles e Kant -, pois consideram apenas as relações do homem com o próprio homem,
não levando em conta as interações deste com os demais seres do planeta.
Jonas (1995) reconhece que não é uma tarefa muito fácil a de justificar, teoricamente, o
direito relativo às gerações futuras. O máximo que se consegue é justificá-lo através da
religião, o que não é considerado moralmente válido, pois pressupõe a existência de fé. Sendo
assim, a possibilidade ou não justificar um tal direito não é o que mais importa aqui. O cerne
38 Esta necessidade advém do fato de que a preservação da Natureza não é uma coisa boa em si mesma, isto é, não tem o seu valor intrínseco reconhecido. Daí a necessidade de torná-la boa senão pelo seu valor intrínseco pelo menos por sua viabilidade em função do ser humano.
70
da questão é reconhecer pragmaticamente a obrigação que esta geração tem para com as
gerações futuras. Desta forma, a justificativa é dada como um axioma. Logo, sem exigência e,
portanto, necessidade de qualquer demonstração.
Dentre as concepções éticas, Jonas (1995) elege a kantiana como ponto de partida para
desenvolver o seu pensamento. Esta escolha deve-se ao rigor e à abrangência do kantismo.
Muito embora se identifique com o pensamento kantiano, há uma diferença fundamental na
proposta destes dois filósofos que consiste, principalmente, na direção apontada pelos
mesmos. Ou seja, o primeiro cuida de orientar as ações no campo privado e o segundo
direciona seu trabalho para o campo coletivo.
Em Kant, uma ação será moral se for motivada pela boa vontade e, portanto, desprovida
de interesse. Ela não é boa por aquilo que promove ou realiza, não é boa por sua utilidade,
mas é boa em si mesma. A boa vontade é aquela cujo móvel da ação está assentado na lei
moral, como princípio instituído pela razão. Como isso, Kant nega o valor de uma moral
heterônoma (religião, sociedade, legislação) fundando a ação do indivíduo na autonomia da
razão. Por fim, o verdadeiro interesse da razão é produzir a boa vontade que encontra um fim
em si mesma. Para Kant (1980, p. 123),
tudo na natureza age segundo leis. Só um ser racional tem a capacidade de agir segundo a representação das leis, isto é, segundo princípios, ou: só ele tem uma vontade. Como para derivar as ações das leis é necessária a razão, a vontade não é outra coisa senão razão prática. Se a razão determina infalivelmente a vontade, as ações de um tal ser, que são conhecidas como objetivamente necessárias, são também subjetivamente necessárias, isto é, a vontade é a faculdade de escolher só aquilo que a razão, independentemente da inclinação, reconhece como praticamente necessário, quer dizer, como bom.
Para Kant, a razão é necessária para realizar o fim incondicionado da existência, ou seja,
a boa vontade. Desta forma, uma ação somente será moral se for realizada por dever e não por
inclinação. Para ter um valor moral a ação deve ser não somente conforme ao dever, mas deve
71
ser realizada por dever. Logo, uma ação realizada por dever tira seu valor moral não do
objetivo que deve ser atingido com ela, mas da lei a partir da qual ela é realizada.
Sendo assim, se a vontade for determinada pelos princípios formais que são sempre
dados pela razão pura prática, então a ação terá sido praticada por dever e, por isso, a ação
será considerada moral. Com efeito, é do dever que emana a necessidade de realizar uma ação
por respeito39 à lei moral que tem valor necessário e universal para todos os seres racionais.
Esta afirmação suscita a questão: de onde vem esta absoluta necessidade? A resposta kantiana
não poderia ser outra: do imperativo categórico, como princípio da razão.
Jonas, por sua vez, (1995, p. 39) observa, por exemplo, que a ação de que trata o
imperativo categórico kantiano precisa ser pensada sem contradição com a prática universal.
Coisa que não ocorre na formulação kantiana, pois o pode invocado no referido imperativo é
oriundo de fato da razão e não da prática universal da comunidade. Observa ainda que, neste
mesmo imperativo, a “reflexión fundamental de la moral no es ella misma moral, sino lógica;
el «poder querer» o «no poder querer» expresa autocompatibilidad o autoincompatibilidad
lógica, no aprobación o desaprobación moral”40. Não há autocontradição na idéia de que a
humanidade deixe de existir, tampouco na idéia de que a felicidade das gerações presentes e
próximas deva custar a infelicidade das gerações futuras ou, até mesmo, a sua inexistência e
vice-versa. A felicidade das gerações futuras não deve advir da infelicidade das gerações
presentes ou do extermínio parcial das mesmas. A transgressão desta classe de imperativos,
para Jonas (1995, p. 40), não implica de modo algum numa contradição racional. Pois,
segundo ele
puedo querer el bien actual sacrificando el bien futuro. De igual manera que puedo
querer mi propio final, así también puedo querer el de la humanidad. Sin incurrir
en contradicción alguna conmigo mismo puedo preferir tanto para mí como para la
39 Sentimento único derivado do pathos (o sensível) gerado pela razão pura.40 Reflexão fundamental da moral não é ela mesma moral, senão lógica, o «poder querer» ou «não poder
querer» expressa autocompatibilidade ou auto-incompatibilidade lógica, não aprovação ou desaprovação moral.
72
humanidad un fugaz relámpago de extrema plenitud al tedio de una infinita
permanencia en la mediocridad41.
Entretanto, mais adiante, ele faz a seguinte ressalva
que nos es lícito, en efecto, arriesgar nuestra vida, pero que no nos es lícito arriesgar la vida de la humanidad; que Aquiles tenía sin duda derecho a elegir para sí una efímera vida de hazañas gloriosas antes de una larga vida segura y sin fama (con la suposición tácita, claro está, de que habrá una posteridad que sabrá contar sus hazañas), pero que nosotros no tenemos derecho a elegir y ni siquiera a arriesgar el no ser de las generaciones futuras por causa del ser de la actual (JONAS, 1995, p. 40)42.
Retomando, vale frisar que a idéia central de Jonas (1995) é fundar uma ética para a
civilização tecnológica com base no princípio de responsabilidade. Diferente do imperativo
categórico kantiano, seu imperativo visa as conseqüências reais e objetivas das ações
praticadas. A crítica que faz à ética kantiana nada tem a ver com sua validade senão com a sua
limitação ante as novas dimensões da ação humana.
O pensamento de Jonas (1995, p. 40) está expresso no imperativo assim formulado:
“obra de tal modo que los efectos de tu acción sean compatibles con la permanencia de una
vida humana auténtica en la Tierra”43; ou na forma negativa: “obra de tal modo que los efectos
de tu acción no sean destructivos para la futura posibilidad de esa vida”44; ou simplesmente:
“no pongas en peligro las condiciones de la continuidad indefinida de la humanidad en la
Tierra”45; e, mais uma vez formulado de modo positivo: “incluye en tu elección presente,
como objeto también de tu querer, la futura integridad del hombre”46.
41 Posso querer o bem atual sacrificando o bem futuro. De igual maneira que posso quer o meu próprio final, assim também posso quer o da humanidade. Sem incorrer em contradição alguma comigo mesmo posso preferir para mim como para a humanidade um rápido relâmpago de extrema plenitude do que o tédio de uma infinita permanência na mediocridade.
42 Que é lícito de fato arriscar nossa vida, porém não nos é lícito arriscar a vida da humanidade; que Aquiles tinha sem dúvida direto a escolher para si uma efêmera vida de façanhas gloriosas a uma vasta e segura e sem fama (com a clara e tácita suposição que haverá uma posteriadade que contar suas façanhas), porém nós não temos direito de escolher e nem sequer ariscar o não-ser das gerações futuras por causa do ser da atual.
43 Aja de tal modo que os efeitos de tua ação sejam compatíveis com a permanência da vida humana na Terra.44 Aja de modo que os efeitos de tua ação não sejam destrutivos para a futura possibilidade de vida.45 Não ponha em perigo as condições da continuidade indefinida da humanidade na Terra.46 Inclui em tuas escolhas atuais, como objeto também de teu querer, a integridade futura do homem.
73
O alvo que Jonas quer atingir é o agir humano, bem como questionar o alcance das
implicações que a relação do homem com o mundo tecnológico tem ocasionado para o meio
ambiente. Vale lembrar que as terríveis conseqüências geradas por essa relação são oriundas
do tecnicismo e do mau emprego da razão instrumental. Para corrigir tais equívocos, diz ele, é
necessário começar pela inversão do modelo de produção ora adotado. Ou seja, é preciso que
o ser humano se volte para a Natureza com um olhar mais integral o que, acredita-se, dará a
ele as condições para desenvolver o sentimento de responsabilidade para com a mesma.
Jonas pretende mostrar que o princípio de responsabilidade é o veículo capaz de
oferecer os meios para transformar as relações homem–Natureza. Desta forma, é
extremamente relevante, do ponto de vista ético, reconhecer que este princípio tem como
essência solucionar questões relativas aos problemas atuais e ao futuro da existência humana
na Terra. Isso significa que, ou a humanidade assume sua responsabilidade diante dos
problemas socioambientais ou, então, corre o sério risco de vir a sucumbir frente à vertiginosa
ameaça causada pelo emprego desordenado dos artefatos do progresso tecnocientífico.
É por isso que Jonas (1995) chama a atenção para a necessidade de se reencontrar o
ideal grego de medida ou temperança que vincula a ética à idéia de limite, moderação e
contenção. Seu projeto é ampliar o papel das éticas tradicionais aliando-o às virtualidades da
extensão causal do agir humano coletivo atual. No mundo contemporâneo, diz Jonas, os
indivíduos têm se mostrado pouco atentos para as conseqüências do seu fazer, pois disto
decorre o bem-estar das gerações vindouras. Segundo o referido autor, faz-se necessário que
cada indivíduo assuma a responsabilidade moral de construir uma civilização planetária. Tal
iniciativa deve, todavia, estar balizada pelas políticas de Estado que visem a preservação dos
recursos naturais e o respeito à vida em suas diferentes formas de expressão. Segundo Jonas,
la previsión del gobernante consiste en la sabiduría y la mesura que aplica al presente. Este presente no está ahí como simple vía hacia un futuro distinto, sino que, en caso favorable, se conserva en un futuro semejante, y ha de estar tan justificado en sí mismo como éste. La duración se produce como una consecuencia más de lo bueno ahora y en cualquier época. Ciertamente, la extensión temporal
74
del efecto y la responsabilidad son mayores en la acción política que en la privaba, pero su ética es, en la concepción pre-moderna, una ética orientada al presente, aplicada a un orden de vida de mayor duración.47
Na era tecnológica, o homo faber se coloca acima do homo sapiens, o que resulta na
subsunção do próprio homem aos objetivos da técnica. A técnica moderna equipa o agir
humano mostrando-lhe novas possibilidades, ao mesmo tempo em que, essencialmente, altera
o meio no qual se insere. Sabe-se que essa intervenção produziu grandes modificações na
Natureza donde emana a premência de se estabelecer uma equação entre as novas
possibilidades de ação e poder em relação às novas dimensões de responsabilidade que esse
agir deve ensejar.
O avanço tecnológico, segundo Jonas (1995), traz consigo uma espécie de dinamismo
utópico, que engendra cada vez mais a distância entre os desejos cotidianos e fins últimos,
entre as ocasiões de exercer a prudência usual em consonância com o conhecimento
estratégico.
Segundo Jonas (1995, p. 56), uma ética da responsabilidade para com as gerações
futuras se faz necessária em razão de dois motivos essenciais. Um exige “una nueva ética de
más amplia responsabilidad, proporcionada al alcance de nuestro poder, entonces exige
también – precisamente en nombre de esa responsabilidad – una nueva clase de humildad”48.
O outro diz respeito a “duda sobre la capacidad del gobierno representativo para responder
adecuadamente con sus principios y procedimientos habituales a las nuevas exigencias”49. A
dúvida existe porque os governos, até então, têm considerado apenas os interesses imediatos
de controle e dominação dos instrumentos necessários à promoção do progresso. Esse modelo
de política pública não se sustenta mais diante da questão ambiental que vem corrigir os
47 A previsão do governante consiste na sabedoria e na cortesia que aplica ao presente. Este não está aí como simples via para um futuro distinto, senão que, em caso favorável, se conserva num semelhante futuro, e há de estar tão justificado em si mesmo como este. A duração se produz como uma conseqüência melhor agora que em qualquer época. Certamente, a extensão temporal do efeito e a responsabilidade são maiores na ação política que na privada, porém sua ética é, na concepção pré-moderna uma ética orientada para o presente, aplicada a uma ordem de vida de maior duração.
48 Uma nova ética de mais ampla responsabilidade, proporcional ao alcance de nosso poder, então exige também – precisamente em nome dessa responsabilidade – um novo tipo de humildade.
49 A dúvida sobre a capacidde do governo representativo para responder adequadamente com seus princípios e procedimentos habitais às novas exigências.
75
efeitos de uma cega racionalidade instrumental, através de uma racionalidade substantiva50
que reoriente o desenvolvimento material e as aplicações científicas.
Por detrás de tudo isso sobressai a questão: “¿Qué fuerza debe representar al futuro en
el presente?” Para Jonas (1995, p.57) este é um problema que deve ser respondido pela
filosofia política, entretanto, antes disso, é preciso enfrentar a seguinte questão: que valores
devem orientar nossa relação com o mundo natural? Como é possível coadunar a marcha
irrefreável do progresso material com uma consciência ecológica planetária? Que tipo de
ethos podemos instituir para reger hoje nossa ação sobre a physis? Eis alguns dos dilemas
fundamentais que acompanham o homo faber no seio da civilização tecno-científico-
industrial.
50 Que considera sobretudo os valores associados à qualidade de vida, o prazer estético, o desenvolvimento intelectual e as necessidades afetivas através da reconstrução e preservação do ambiente.
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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O progresso material do mundo acicatou minha sensibilidade moral, ampliou minha responsabilidade, aumentou minhas possibilidades, dramatizou minha impotência. Ao fazer-me mais difícil ser moral, faz com que eu, mais responsável que meus antepassados e mais consciente, seja mais imoral que eles, e minha moralidade consiste precisamente na consciência de minha incapacidade.
Umberto Eco
O planeta, visto como um organismo vivo, passou por inúmeras mudanças e
transformações ao longo do tempo. É certo que estas alterações, quando ocorridas
naturalmente, não têm nenhuma relação com os problemas ambientais da forma como a
humanidade os vive atualmente. A questão ambiental não está dissociada do modo como o
homem compreende seu habitat e age sobre a natureza. Ela também traz em si as marcas do
antropocentrismo como protagonista de todo esse processo de cisão entre o homem e a
Natureza, do qual o cartesianismo é o principal representante.
Descartes (1996), como afirmamos, havia defendido a autonomia da razão sobre a
natureza, considerando esta como algo exterior ao sujeito, sendo-lhe, pois, também
dependente. Com Descartes, o homem passa a ocupar o lugar de subjetividade autônoma,
enquanto o mundo natural irá representar a esfera da objetividade. É esta postura que norteará
a idéia, cultivada nos séculos seguintes, segundo a qual compete ao homem dominar e
manipular a Natureza.
É notório reconhecer que apesar de sua influência predominante na cultura ocidental, a
racionalidade teórica e instrumental herdeira do cartesianismo permitiu o surgimento das
ciências naturais e de outros paradigmas que balizaram as pesquisas em diversas áreas do
conhecimento nós últimos 400 anos. Sem dúvida, que este foi um grande ganho para a
humanidade. É impossível negar os avanços da ciência e suas importantes descobertas para a
melhoria da vida dos indivíduos. Não obstante esse fato indiscutível, é sabido que o modelo
de racionalidade instrumental empregado tem causado repercussões negativas e, em muitos
77
casos, colocado em risco o meio ambiente e a vida de muitos seres naturais. Diante disto,
convém questionar esse padrão de racionalidade, bem como os paradigmas teóricos que
impulsionaram e legitimaram o crescimento material da era moderna, uma vez que os mesmos
estavam quase sempre baseados na apropriação da Natureza e em sua utilização como meio
de produção e fonte de riquezas.
Diante dessas questões, uma pergunta ainda persiste: qual a idéia que temos hoje de
Natureza? Ora, como vimos, ao longo da história da humanidade este termo assumiu
diferentes conotações. Não se pode deixar também de considerar que esta noção traz consigo
uma tessitura metafísica, assim como também ocorre com outras noções como, por exemplo,
ser, essência, substância, Deus. Evidentemente que a simples reformulação dessas noções ou
a sua readequação aos valores do nosso tempo não parece ser suficiente para modificar a
postura que o homem tem tido em relação ao meio ambiente. Todavia, se passarmos a a
Natureza como algo finito, ou seja, como um fenômeno frágil e esgotável, talvez se possam
atenuar os crimes ambientais, coibindo a ação deletéria do homem sobre o ecossistema, pois
tal ato é a condição necessária para se garantir a sobrevivência da espécie humana.
É no sentido de garantir a sobrevivência do homem, através do que se convencionou
chamar de destino solidário, que Jonas (1995) fala de dignidade própria da Natureza.
Preservar a natureza significa também preservar o ser humano porque é com e nela que ele
vive. Não se pode dizer o que o homem é sem que se diga que a Natureza faz parte dele.
Diante desta constatação, é bastante razoável afirmar que dizer sim à Natureza significa uma
obrigação do ser humano para com ele próprio. O que o imperativo de Jonas propõe, com
efeito, não é apenas que existam homens depois de nós, mas precisamente que estes sejam
homens que defendam a humanidade e que habitem este planeta em harmonia com todo o
meio ambiente.
78
É neste contexto que se insere a necessidade de uma reflexão acerca do paradigma da
modernidade o qual não deve, contudo, nos enredar numa dicotomia falaciosa entre direitos
humanos e direto do meio ambiente. Se a questão ambiental obriga o ser humano a redefinir o
seu papel em relação à Natureza, isso implica, por conseguinte, em reforçar sua atitude crítica
acerca de sua postura em face do meio ambiente. Quer dizer, a determinação de seu novo
papel fundamenta-se na responsabilidade humana para com as gerações futuras a fim de evitar
a desmesura do poder tecnológico. Até porque é esse poder que determina as atitudes e
valores antropocêntricos os quais têm apartado o homem dos demais seres do Planeta. Esta
dificuldade tem sua origem no fato de a filosofia, quase que exclusivamente, se preocupar
com a ação humana situando-a apenas no âmbito da intersubjetividade, deflacionando, com
isso, os aspectos que envolvem a nossa interação com o mundo natural.
A postulação de uma responsabilidade para com a vida do Planeta e as gerações futuras,
como faz Jonas (1995), não significa, todavia, aderir à idéia de ecologia profunda. Na
verdade, trata-se tão-somente de reconhecer o direito da Natureza, assim como se faz em
relação aos direitos humanos. Entretanto, pensar a responsabilidade para com as gerações
futuras significa, ao mesmo tempo, conferir às mesmas um estatuto de sujeito de direitos.
Porém, convém indagar: como afirmar um direito para um ser ainda não-existente como é o
caso das gerações futuras? Ademais, como esse outro ainda não-existente pode engendrar em
todos nós uma espécie de obrigação moral? Tais questões revelam a dificuldade dessa
postulação de direitos para seres em potencial. Os indivíduos atualmente não podem deixar de
reconhecer a necessidade de enfrentar essa questão, pois, de um lado está a geração atual
digna de direitos e deveres, e de outro as gerações futuras que merecem e têm o direito de
existir.
Desta forma, o princípio de responsabilidade proposto por Jonas (1995) fundamenta-se
numa relação em que os direitos e os deveres não se originam de uma ética antropocêntrica,
79
mas tão-somente do espontâneo desejo de cada um contribuir para com a existência das
futuras gerações. Assim, seu imperativo conclama a humanidade a pautar suas ações pela
responsabilidade solidária, fraterna, altruísta. Do que se conclui que, antes de tudo, é
necessário garantir as condições básicas para que o direito à felicidade e a uma vida
harmonicamente equilibrada aconteça. Portanto, a missão desta geração é criar as condições
para que as gerações futuras possam existir num ambiente saudável, harmonioso, íntegro.
Finalmente, a proposta formulada por Jonas (1995) consiste na construção de um novo
paradigma para a humanidade, cujo pressuposto básico é: somente podemos vislumbrar um
futuro para o Planeta se passarmos a agir com responsabilidade na relação que mantermos
com o meio e com os demais seres naturais.
Face à amplitude que a expressão responsabilidade da humanidade possui, é importante
responder às perguntas: Quem é responsável? Por quem? Por quê? Para Jonas, os adultos –
homens e mulheres das gerações atuais – têm a responsabilidade para com seus filhos e
descendentes, de dar os passos necessários para criar uma civilização universal. A
responsabilidade à qual se refere Jonas (1995) implica num cuidado para com as futuras
gerações. Sendo assim, a postura responsável diante do mundo tornaria possível uma espécie
de família global orientada a reeducar-se mutuamente em função da continuação da espécie.
Pode-se responder à questão anterior, afirmando que os responsáveis são os seres humanos
frente a uma existência ameaçada. Vale ressaltar que a responsabilidade aqui descrita não está
voltada unicamente para a espécie humana. A responsabilidade por ele pensada é uma
responsabilidade coletiva que somente tem possibilidade de se realizar se houver uma
consciência universal dos problemas e um engajamento conjunto visando a sua solução. Este
seria um caminho possível para frear a vertiginosa corrida tecnocientífica e propiciar às
futuras gerações uma real e verdadeira qualidade de vida.
80
REFERÊNCIAS
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