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RELIGIÃO NO DOCUMENTO DE APARECIDA: ÉTICA E MÉTODO Agemir Bavaresco Introdução Constata-se que um dos desafios atuais à filosofia da religião é interpretar a passagem do ateísmo moderno ao novo ateísmo, embora alguns entendam que o fenômeno seja uma reposição de teses antigas. Cabe considerá-las, todavia, para compreender em que medida isso influencia o fenômeno religioso em geral, e como isso repercute, especificamente, no Documento de Aparecida. Em primeiro lugar, em que consiste, brevemente, o ateísmo moderno e o novo ateísmo? Uma das principais teses do (a) ateísmo moderno é negar a Deus, para afirmar absolutamente o ser humano, passando a autodeterminar-se de maneira atéia 1 . Pode-se situar a origem desse fenômeno na radicalização do iluminismo francês, sendo os seus principais porta-vozes Feuerbach, Marx, Nietzsche, Freud e, no século 20, Sartre. Feuerbach, em A essência do Cristianismo (1841), critica a religião e o cristianismo. Ali, o ser humano é o grande projeto e Deus é a sua projeção. Tudo o que o ser humano fala acerca de Deus, através da linguagem religiosa, nada mais é do que confissão de seus desejos, projetos e aspirações. Karl Marx propõe o novo humanismo na forma do ateísmo, ou seja, “o ateísmo é o humanismo pela superação da religião”. É clássica a sua frase: “A religião é o ópio do povo”, porque ela hipnotiza os seres humanos com a falsa superação da miséria e, assim, destrói a sua força de revolta. A religião produz a alienação do povo. Nietzsche é conhecido pelo ateísmo niilista, condensado na sua afirmação: “Deus está morto”! Como conseqüência da morte de Deus tem-se o niilismo. O nada passa a ocupar Doutor em Filosofia pela Universidade de Paris 1 (França), professor de filosofia na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. 1 Cf. Urbano Zilles, Filosofia da religião, p. 99-185; Giuseppe Staccone, Filosofia da religião, p. 95-163.

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RELIGIÃO NO DOCUMENTO DE APARECIDA:

ÉTICA E MÉTODO

Agemir Bavaresco

Introdução

Constata-se que um dos desafios atuais à filosofia da religião é interpretar a passagem

do ateísmo moderno ao novo ateísmo, embora alguns entendam que o fenômeno seja

uma reposição de teses antigas. Cabe considerá-las, todavia, para compreender em que

medida isso influencia o fenômeno religioso em geral, e como isso repercute,

especificamente, no Documento de Aparecida. Em primeiro lugar, em que consiste,

brevemente, o ateísmo moderno e o novo ateísmo?

Uma das principais teses do (a) ateísmo moderno é negar a Deus, para afirmar

absolutamente o ser humano, passando a autodeterminar-se de maneira atéia1. Pode-se

situar a origem desse fenômeno na radicalização do iluminismo francês, sendo os seus

principais porta-vozes Feuerbach, Marx, Nietzsche, Freud e, no século 20, Sartre.

Feuerbach, em A essência do Cristianismo (1841), critica a religião e o cristianismo.

Ali, o ser humano é o grande projeto e Deus é a sua projeção. Tudo o que o ser humano

fala acerca de Deus, através da linguagem religiosa, nada mais é do que confissão de

seus desejos, projetos e aspirações.

Karl Marx propõe o novo humanismo na forma do ateísmo, ou seja, “o ateísmo é o

humanismo pela superação da religião”. É clássica a sua frase: “A religião é o ópio do

povo”, porque ela hipnotiza os seres humanos com a falsa superação da miséria e,

assim, destrói a sua força de revolta. A religião produz a alienação do povo.

Nietzsche é conhecido pelo ateísmo niilista, condensado na sua afirmação: “Deus está

morto”! Como conseqüência da morte de Deus tem-se o niilismo. O nada passa a ocupar

Doutor em Filosofia pela Universidade de Paris 1 (França), professor de filosofia na Pontifícia

Universidade Católica do Rio Grande do Sul. 1 Cf. Urbano Zilles, Filosofia da religião, p. 99-185; Giuseppe Staccone, Filosofia da religião, p. 95-163.

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o lugar de Deus. Nietzsche via a sua época como o fim da metafísica, o tempo da morte

de Deus e do ateísmo.

Freud defende um ateísmo psicanalítico, afirmando que “Deus é uma ilusão infantil”.

Ele sugere uma concepção científica do mundo para substituir a religião, isto é, a idéia

de Deus pela ciência. A religião deve ser abandonada, por ser uma doença, uma neurose

obsessiva. Deus é uma nostalgia que o ser humano tem de um pai onipotente, que o

consola e proteja em sua angústia pela dureza da vida.

Feuerbach, Marx e Nietzsche têm algo em comum no seu ateísmo: a luta contra a ilusão

religiosa, contra o cristianismo e os valores morais, contra uma ordem de verdades

eternas.

Sartre, em especial na sua obra O ser e o nada, elabora o existencialismo ateu, que nega

Deus, para afirmar o ser humano, tal como Nietzsche. O existencialismo é um ateísmo

que funda um novo humanismo, diferente dos essencialismos do passado. Se Deus não

existe, o ser humano está condenado a ser livre, isto é, a inventar a sua essência humana,

o seu projeto de vida e de humanidade, a criar-se e recriar-se como ser humano.

Se a filosofia medieval teve a tendência de afirmar que Deus é tudo, e o ser humano é

nada, a filosofia moderna, por seu lado, afirma que o ser humano é tudo, e Deus é nada.

Esse jogo de oposições – Deus ou o ser humano – conduziu à eliminação dos pólos que

compõem a relação e ao não reconhecimento entre ambos. Como esse problema é posto

pelo novo ateísmo, também chamado de “naturalismo científico”?

Cabe destacar, pois, (b) o “novo ateísmo” ou o “naturalismo científico”2. O cardeal

Carlo Maria Martini, arcebispo emérito de Milão, afirma: “Existe em nós um ateu

potencial que grita e sussurra, cada dia, suas dificuldades em crer”3. De um lado, o

cardeal Martini expressa o difícil itinerário da experiência de crer e não desconhece o

“ateu em potencial” que, como um aguilhão, está a aguçar as nossas convicções para

aprender, cotidianamente, a crer de novo. De outro lado, os cientistas, filósofos e

2 Não tratamos, aqui, do ateísmo que poderia ser denominado de laico. Um exemplo típico disto é o que

propõe André Comte-Sponville. O espírito do ateísmo. São Paulo: Martins Fontes, 2007. Ele propõe uma

metafísica materialista e uma espiritualidade sem Deus, sugerindo uma “sabedoria para o nosso tempo”.

3

escritores, como Richard Dawkins, Daniel Dennett, Sam Harris, Michel Onfray e

Christopher Hitchens, entre outros, reintroduzem o debate sobre o ateísmo.

John F. Haught, professor de teologia da Universidade de Georgetown, coloca uma série

de questões sobre esse novo ateísmo. Será que o método científico de entender o mundo

tornou a fé religiosa intelectualmente implausível? Mais: a ciência exclui a existência de

um Deus pessoal, como sustentou Albert Einstein? A evolução torna indigna de crédito

toda a idéia da providência divina? A vida e a mente podem ser reduzidas à química?

Podemos continuar a afirmar, plausivelmente, que o mundo é criado por Deus ou que

Deus realmente quer que os seres humanos estejam aqui? Observando a natureza, será

possível que a complexa padronização que ocorre seja simplesmente o produto do acaso

cego e da necessidade física? Numa era da ciência, podemos crer, sinceramente, que o

universo tem um propósito?

Num livro recente4, John F. Haught critica o que chama de “novo ateísmo”, sobretudo

porque se trata de uma crença no naturalismo científico. Ou seja, acredita-se que a

natureza é tudo o que há, que Deus não existe e que a ciência é o único caminho que

conduz à verdade. Os novos ateístas, continua Haught, rejeitam o Deus dos

criacionistas, dos fundamentalistas do “desígnio inteligente”. Vale ressaltar que

debatem com esses últimos, e não com teólogos, mostrando a sua adesão a um

fundamentalismo ainda mais simplista, a saber, o naturalismo científico. O cientificismo

é a versão do fundamentalismo da comunidade científica, porque supõe que o universo

apenas se torna plenamente transparente para o pensamento se for apresentado na

linguagem impessoal da ciência5.

Verifica-se que há uma expressão epistemológica totalitária e um anacrônico

cientificismo, que se reduz a um reducionismo dogmático excludente do saber religioso,

enquanto experiência da fé. Ora, sabe-se que não há “ciência”, mas métodos científicos,

tão diversos quanto os da física, da biologia ou da sociologia, com diversas escolas de

pensamento e teorias, todas com discursos provisórios. A interdisciplinaridade, o uso

simultâneo de diversos marcos teóricos e a complementaridade entre o científico, o

3 Cf. Corriere della Sera, 16.11.2007.

4 Cf. John F. Haught, God and the New Atheism: A Critical Response to Dawkins, Harris and Hitchens,

2008.

4

filosófico, o teológico, o intuitivo e o místico constituem uma razão transversal, própria

para compreender a multidimensionalidade do ser e do saber.

O problema está, de um lado, no ateísmo científico e no seu naturalismo unilateral; de

outro, está no fundamentalismo religioso que faz uma aplicação literal de textos

sagrados clássicos das religiões monoteístas, por exemplo, da Bíblia ou do Corão, para

justificar posições ou atacar teorias. Uma leitura fundamentalista da Bíblia ou do Corão

conduz, também, a juízos reducionistas. De fato, são duas posições fundamentalistas em

campos opostos, sem a justa mediação interdisciplinar.

O Documento de Aparecida6 posiciona-se diante desse debate, afirmando: “Diante da

falsa visão, tão difundida em nossos dias, de uma incompatibilidade entre fé e ciência, a

Igreja proclama que a fé não é irracional. „Fé e razão são duas asas pelas quais o espírito

humano se eleva na contemplação da verdade‟”7. O DA tem consciência de um tipo de

fundamentalismo científico, com ranço iluminista, que classifica a fé como expressão de

irracionalismo. Por isso, trata direta ou indiretamente da ciência em vinte números, no

sentido de “valorizar sempre mais os espaços de diálogo entre fé e ciência, inclusive nos

meios de comunicação”8, instigando que “não podemos escapar desse desafio de

diálogo entre a fé, a razão e as ciências”9, porque “hoje em dia as fronteiras traçadas

entre as ciências se desvanecem. Com este modo de compreender o diálogo, sugere-se a

idéia de que nenhum conhecimento é completamente autônomo”10

.

Logo no início da apresentação crítica da realidade, o Documento constata que os povos

da América Latina e do Caribe “vivem hoje uma realidade marcada por grandes

mudanças que afetam profundamente suas vidas”, sendo “um fator determinante dessas

mudanças a ciência e a tecnologia”11

. Ora, a análise da realidade feita pelo Documento

tem como pressuposto essa mudança cultural, implementada pela ciência e tecnologia,

estabelecendo, subjacentemente, uma separação entre fé e razão, ou fé e ciência, em

5 Acessado na internet em 26.11.07: www.unisinos.br/ihu.

6 Daqui em diante, o Documento de Aparecida será citado como DA.

7 Cf. DA, 494.

8 Cf. DA 495.

9 Cf. DA 466.

10 Cf. DA 124.

11 Cf. DA 33 e 34.

5

todos os níveis da sociedade. Mais ainda, há uma ruptura das tradições culturais

religiosas e um conflito ético, no contato com a emancipação científico-tecnológica.

Por isso, o nosso estudo identifica no DA, primeiramente, (1) o modo como aparecem

os modelos de religião na tradição clássica, moderna e globalizada. De fato, convivem

simultaneamente pelo menos três tradições, constituindo um pluralismo religioso com

repercussões na prática e na compreensão da fé. Depois, (2) apresentamos como essas

tradições implicam um conflito evidente de duas experiências éticas: a ética da virtude e

a ética do dever-ser. Enfim, (3) analisamos a proposta metodológica que o Documento

sintetiza na expressão “discípulo(a) missionário(a)”, justamente para enfrentar esse

tempo de mudanças.

1. Religião na tradição clássica, moderna e globalizada

Antes de descrevermos as três tradições religiosas, vejamos o que se entende pelo

conceito de religião, compreendendo, nesse fenômeno, a dimensão natural ou deísta e a

teísta.

O termo “religião natural” ocorre, inicialmente, na primeira metade do século 17, usado

em três sentidos relacionados, sendo o mais comum (a) um corpo de verdades a respeito

de Deus e dos nossos deveres, que podem ser descobertos pela razão natural; (b) uma

religião que tem origem humana distinta de uma origem divina; (c) uma religião da

natureza humana como tal, distinta de crenças e práticas religiosas determinadas por

circunstância locais. Nos três sentidos, a religião natural inclui a crença na existência de

Deus, como justiça, benevolência e providência, na imortalidade e nos ditames da moral

comum. Esse conceito está relacionado com o deísmo, causando acolhida entre autores

cristãos, uma vez que, para esses, a religião revelada restaura a religião natural à sua

origem e acrescenta a necessidade de sua prática12

.

Para as tradições teístas – judaísmo, cristianismo e islamismo –, a religião trata da

existência, da natureza e das atividades de Deus. Essas tradições entendem que Deus é

12

Cf. Dicionário Cambridge de Filosofia, editado por Robert Audi, p. 815.

6

um ser pessoal, eterno, livre, onipotente, onisciente, criador e sustentáculo do universo,

sendo objeto da obediência e da adoração humanas13

.

Tendo como pressuposto o conceito de religião acima exposto, é suficiente para o nosso

estudo que duas compreensões entendam a experiência religiosa como a relação do ser

humano com Deus, não obstante as nuances específicas de cada tradição. Ora, no

Documento de Aparecida é possível constatar, na descrição das tradições culturais da

América Latina e do Caribe, ao menos três fenômenos religiosos simultâneos que

implicam a experiência religiosa: a religião clássica, a religião moderna e a religião face

à globalização. Vejamos como se caracterizam cada um desses fenômenos e, ao mesmo

tempo, os problemas e desafios que o Documento de Aparecida neles identifica.

1.1. A religião clássica ou o comunitarismo das tradições

A religião clássica vem marcada por um caráter comunitarista, ou seja, há um centro

englobante, através da tradição comunitária, em que as relações são marcadas pelos

valores, e a integração realiza-se pelos vínculos religiosos e tradições culturais

homogêneas.

Na religião clássica, pode-se construir um conceito unitário da vida humana e das

virtudes. Segundo MacIntyre, três são os elementos que constituem a tradição clássica

comunitarista e têm, em Aristóteles, um de seus expoentes: o conceito de prática, a idéia

de narrativa (ordem narrativa) da vida humana única e a tradição moral. A partir desses

elementos, MacIntyre pretende renovar e atualizar a tradição aristotélica, mantendo a

sua estrutura teleológica. Utilizaremos esses três elementos para caracterizar a religião

clássica inserida no viés comunitarista.

(i) A prática é uma forma coerente e complexa de atividade humana cooperativa,

estabelecida socialmente, mediante a qual se realizam os bens que lhe são próprios,

enquanto se tenta alcançar o modelo de excelência condizente com essa forma de

atividade. O conjunto de práticas é amplo: as artes, as ciências, os jogos, a política, a

religião, etc. Toda prática inclui, além de bens, modelos de excelência e de obediência

13

Id. ibid., p. 377.

7

às regras. Através do conceito de prática, MacIntyre entende a virtude como uma

qualidade humana adquirida, cujo exercício nos torna capazes de alcançar os bens que

são intrínsecos às práticas. A religião é uma das práticas que propõem modelos e

virtudes comunitárias.

(ii) A inteligibilidade de uma ação é possível no contexto de uma narrativa histórica.

MacIntyre afirma que sonhamos, esperamos, desesperamos, cremos, descremos,

planejamos, criticamos, construímos, apreendemos, odiamos etc., sempre

narrativamente. Não somos apenas atores, mas também autores de narrativas, que

apresentam a ação em certo trilho teleológico. Tanto individual como coletivamente,

vivemos à luz de um futuro compartilhado. Não há presente que não esteja informado

de alguma imagem futura, e o futuro sempre se apresenta em forma de telos, de uma

“finalidade”, como busca consciente de objetivos. A narrativa é o que dá unidade à vida

humana e cria a identidade pessoal. A experiência religiosa insere-nos numa ordem

narrativa, impelindo-nos a uma permanente busca do bem, ajudando-nos a vencer os

riscos, tentações e distrações, com que nos deparamos no curso da vida, e fornecendo-

nos um crescente sentido da trajetória biográfica pessoal e grupal.

(iii) As tradições, quando estão vivas e perduram, incorporam continuadamente os

conflitos. O que anima as tradições é o exercício das virtudes pertinentes. A falta de

justiça, de veracidade, de valor, de virtudes intelectuais apropriadas corrompe as

tradições. Por isso, MacIntyre é contra o individualismo moderno, que nega a inserção

da história individual na história das comunidades de onde se originam as identidades

pessoais14

. Nesse sentido, a tradição religiosa fornece um espaço especial de exercício

da virtude comunitária.

Partindo desse conceito de religião clássica, inserida dentro de uma tradição

comunitarista, pode-se identificar no Documento de Aparecida a religiosidade popular

como sendo uma manifestação de religião clássica de viés comunitário. Assim, (a) o

papel integrador da religiosidade popular, enquanto uma ordem narrativa, desperta a

consciência para o seguinte: “Em nossa cultura latino-americano e caribenha

conhecemos o papel tão nobre e orientador que a religiosidade popular [grifo nosso]

14

Cf. Alasdair MacIntyre, Depois da virtude, p. 30-110.

8

desempenha, especialmente a devoção mariana, que contribui para nos tornar mais

conscientes de nossa comum condição de filhos de Deus e de nossa comum dignidade

perante seus olhos, não obstante as diferenças sociais, étnicas ou de qualquer outro

tipo”15

. Além disso, há que se atentar para (b) o cuidado pela prática da religiosidade

popular: “É necessário cuidar do tesouro da religiosidade popular de nossos povos”16

.

Essa prática religiosa, porém, corre o risco de se fragmentar, devido à falta de uma

síntese narrativa: “O que hoje em dia está em jogo não é a diversidade que os meios de

comunicação são capazes de individualizar e registrar. O que ninguém esquece é, pelo

contrário, a possibilidade de que essa diversidade possa convergir em uma síntese que,

envolvendo a variedade de sentidos, seja capaz de projetá-la em um destino histórico

comum”17

. Finalmente, tem-se (iii) a tradição do apego à terra e a vida comunitária

como fundamento das virtudes: “Existem em nossas regiões diversas culturas indígenas,

afro-americanas, mestiças, componesas, urbanas e suburbanas. As culturas indígenas se

caracterizam sobretudo por seu apego profundo à terra, pela vida comunitária e por uma

certa procura de Deus”18

.

No entanto, a religião clássica vive a contradição entre os valores da cultura globalizada

e os valores comunitaristas:

“Essas culturas coexistem em condições desiguais com a chamada cultura globalizada. Elas exigem

reconhecimento e oferecem valores que constituem uma resposta aos anti-valores da cultura, que se

impõem através dos meios de comunicação de massas: comunitarismo, valorização da família, abertura à

transcendência e solidariedade”19

.

A experiência da religião clássica, como foi exposto acima, aparece, sobretudo, na

religiosidade popular, no apego à terra e à vida comunitária. No entanto, o Documento

de Aparecida percebe que essas práticas, narrativas e tradições convivem, ao mesmo

tempo, com uma realidade em crise do sentido:

“Os múltiplos sentidos parciais que cada um pode encontrar nas ações cotidianas [não garante um]

sentido que dá unidade a tudo o que existe e nos sucede na experiência, e que os cristãos chamam de

15

Cf. DA, 37. 16

Cf. DA, 549. 17

Cf. DA, 43. 18

Cf. DA, 56. 19

Cf. DA, 57.

9

sentido religioso. Habitualmente, este sentido se coloca à nossa disposição através de nossas tradições

culturais que representam a hipótese de realidade com que cada ser humano pode olhar o mundo em que

vive”20

.

1.2. A religião moderna e a dupla secularidade: a autonomia subjetiva

A religião moderna caracteriza-se pela experiência da secularidade, que opera a

transição da cristandade para o Estado laico. Mais ainda, a laicidade implica uma

transformação das teologias políticas numa dupla secularização, tendo como viés de

fundo o conceito de autonomia subjetiva.

O filósofo Charles Taylor fala sobre a não-retroatividade da secularidade e a queda de

antigas cosmovisões, em entrevista concedida a Norbert Mayer e publicada pelo jornal

Die Presse, em 13.11.2007:

“Eu emprego o conceito de secularidade, que é um fato, e não é nenhum „ismo‟. Considere as incríveis

possibilidades da espiritualidade hoje e compare-as com o século XVIII. O mundo não era, então, tão

sincrético quanto é hoje. Isso não se pode mais mudar. A Igreja precisa aprender a agir com esta espécie

de mundo. Nós estamos mais próximos do Império Romano do que da Idade Média. A cristandade morre,

mas não o cristianismo, este está sempre muito vivo. O papa fala sobre secularismo como doutrina e aí

existem centenas de variantes. Não é possível sintetizá-las, principalmente não com a palavra

“relativismo”. Não vejo, portanto, o mundo como ele o vê”.

Jean-Claude Monod afirma que, “na democracia, por oposição às antigas „teologias

políticas‟ do poder encarnado, o poder é essencialmente um „lugar vazio‟, e nenhum

grupo, nenhum partido, nenhuma doutrina podem pretender „ocupá-lo‟ de pleno direito,

sem contestação, e é por esta própria „vacância‟ que uma vida democrática, uma

„invenção democrática‟ é possível”21

. A constatação do lugar vazio, ou a vacância na

constituição do poder encarnado, permite a invenção democrática da interpretação,

abrindo possibilidades hermenêuticas na compreensão dos poderes da religião e do

Estado. Nesse sentido, a secularização das teologias políticas implica uma dupla

secularização da religião.

(a) A secularização moderna da religião ou a modernidade implementando os ideais

cristãos: a modernidade seculariza a religião no sentido de que fundamenta a realidade,

20

Cf. DA, 37. 21

Cf. Jean-Claude Monod, A secularização da secularização e o futuro da autonomia, in: Revista do

Instituto Humanitas Unisinos, p. 25.

10

não mais na razão teológica, mas na razão subjetiva livre, que passa a ser o critério de

validação das experiências. “Como conceito ou „palavra de ordem‟ política tipicamente

moderna, a secularização pode ser definida como emancipação em face da religião”,

entendida como tradição e heteronomia. Isso significa emancipar-se da “lei do Outro”,

ou seja, “uma lei imposta como imutável, enquanto sagrada, transcendente”22

. A

explicação filosófica da modernidade compreende-se como a época da autonomia do

sujeito. Por exemplo, Descartes exige que toda realidade – tradições, opiniões, etc. –

seja examinada pelo sujeito, refundando o conhecimento sobre a certeza subjetiva.

Assim, a modernidade como secularização consiste em autofundar, no sujeito

individual, as normas sobre a vontade do sujeito, que só obedecerá à lei verificada pela

prova da justificação racional. O desenvolvimento desse valor do sujeito individual,

como o sujeito cristão, será implementado na democracia laica.

(b) A secularização da secularização ou autonomia funcional: Monod descreve uma

segunda secularização, após a primeira, caracterizada pelo sujeito livre e autônomo.

Essa segunda ocorre em nível mais amplo, enquanto autonomia da esfera sociológica.

“Uma segunda concepção da secularização, mais sociológica, seria mais neutra em vista

de seus efeitos para o indivíduo, privilegiando antes o que se chamou de “a autonomia

das esferas sociais””23

. Max Weber fala de um processo de auto-legislação, ou seja, os

diferentes setores sociais são progressivamente “racionalizados” em torno de suas

“próprias normas”, ou sua “lógica intrínseca”, citando as máximas típicas: “a arte pela

arte”, “os negócios pelos negócios”, “a guerra como a guerra”. Nesse processo, grupos

sociais ou indivíduos reivindicam a autonomia de seu setor de atividade, o direito de só

seguir as normas internas a esse domínio, e recusam como atentados à sua liberdade os

julgamentos de valor “externos”, por exemplo, os interditos e as prescrições religiosas

que interferem sobre a atividade artística, mas também, mais amplamente, toda pressão

em função de exigências não-artísticas: políticas, morais, comerciais, etc. Esse processo

histórico contribui na formação de uma sociedade secularizada, no sentido de uma

sociedade na qual a religião não constitui mais o “setor dominante”, mas onde existem

esferas relativamente autônomas24

.

22

Id. ibid., p. 25. 23

Id. ibid., p. 26. 24

Id. ibid.

11

A religião na tradição clássica, como vimos acima, está centrada na instituição religiosa.

As possibilidades de o sujeito construir respostas e sentidos para a sua vida são poucas.

Conforme Peter Berger, na religião clássica as respostas já estão dadas na teodicéia

dominante, fornecendo aos diversos grupos e classes sociais o sentido de sua existência.

Numa sociedade tradicional, não há desafios imaginados, pois a realidade é

compreendida dentro de um esquema fechado, desconsiderando o sujeito e as mudanças

no processo histórico. As crises são vistas como desvios, que são resolvidos a partir do

receituário apresentado pela instituição.

Na sociedade moderna, porém, aparece uma outra fonte de referência para entender o

mundo: o sujeito autônomo. Aqui, a busca pessoal de construção de sentido sobrepõe-se

à teodicéia, que é uma explicação com um caráter comunitário em que, de certa forma, a

pessoa tem de renunciar à sua consciência individual25

. O sujeito laico eleva-se acima

do institucional, na medida em que é ele quem define o espaço de interferência do

universo religioso em sua vida e quem produz a religião para além das fronteiras

institucionais, através da dupla secularização.

Face a esse fenômeno, o Documento de Aparecida tem um olhar extremamente crítico

sobre o processo de secularização da modernidade: “Vivemos uma mudança de época, e

seu nível mais profundo é o cultural”26

. E as conseqüências disso são diversas, tais

como (i) fragmentação e ateísmo: “Dissolve-se a concepção integral do ser humano, sua

relação com o mundo e com Deus“. E os bispos referem-se ao Discurso inaugural de

Bento XVI, no V CELAM: “Aqui está precisamente o grande erro das tendências

dominantes do último século... Quem exclui Deus de seu horizonte, falsifica o conceito

da realidade e só pode terminar em caminhos equivocados e com receitas destrutivas”.

E também (ii) a sobrevalorização do sujeito: “Surge hoje, com grande força, uma

sobrevalorização da subjetividade individual. Independentemente de sua forma, a

liberdade e a dignidade da pessoa são reconhecidas”. (iii) O enfraquecimento da

dimensão comunitária: “O individualismo enfraquece os vínculos comunitários e

propõe uma radical transformação do tempo e do espaço, dando papel primordial à

imaginação”. (iv) A autonomia funcional e conceito de tempo: “Os fenômenos sociais,

25

Cf. P. L. Berger, O dossel sagrado, p. 67. 26

Cf. DA, 44.

12

econômicos e tecnológicos estão na base da profunda vivência do tempo, o qual se

concebe fixado no próprio presente, trazendo concepções de inconsistência e

instabilidade”. (v) O desejo imediato e direitos individuais: “Deixa-se de lado a

preocupação pelo bem comum, para dar lugar à realização imediata dos desejos dos

indivíduos, à criação de novos e, muitas vezes, arbitrários direitos individuais”27

.

O Documento constata que o fenômeno da modernidade continua permeando as

relações atuais, sendo o seu principal efeito o reducionismo do sujeito autônomo, em

detrimento da dimensão comunitária.

1.3. Religião e globalização: pluralismo de uma sociedade de indivíduos?

A globalização desencadeia uma situação de crise, em que a própria modernidade já não

consegue mais dar respostas adequadas aos novos problemas, colocados pelos diversos

desdobramentos sócio-culturais. Os novos problemas e desafios que afloram vão além

das respostas e soluções apresentadas pela modernidade e revelam os próprios limites da

mesma. A crise da modernidade se expressa na ausência de certezas, de orientações

definitivas, de valores absolutos. Por isso, ela gera instabilidade, insegurança, incerteza,

inquietações tanto no nível das instituições como no nível da vida pessoal. Porém, ao

mesmo tempo, como uma contradição latente, essa crise faz nascer a busca de

estabilidade, de segurança, de certeza, de respostas. Essa crise tem suas origens na

própria modernidade contemporânea. Ao pretender negar a tradição, o dogma e o

passado, a modernidade inaugurou um tempo de incerteza, de provisoriedade e de

precariedade. A modernidade pretendeu eliminar incertezas, apresentando novas

respostas, o que ela fez, foi, paradoxalmente, provocar o surgimento de mais incertezas,

porque a razão autônoma sempre teria as suas dúvidas. Nesse contexto de crise da

modernidade, a pessoa sente-se como se tivesse perdido a sua identidade. Ela precisa

redefinir a sua identidade numa situação desafiadora de crise.

A autonomia individual emergente manifesta-se apática e insensível em relação às questões

coletivas e à realidade social. Fixa-se num consumo ilimitado de bens e serviços, segundo o

estilo de vida e a forma de uma individualidade centrada em si mesma. Esse conceito de

27

Id. ibid.

13

liberdade, como autodependência ou auto-satisfação, com todo o seu potencial destrutivo,

conduz-nos ao impacto de uma crise ecológica sem precedentes.

A situação do indivíduo, hoje, é a constituição de uma “subjetividade idêntica a si mesma,

fonte única do sentido do mundo”28

. Tal estado de coisas resulta de um conjunto de

variáveis que se interpenetram e que tem o seu ponto de inflexão naquilo que Alain

Touraine designa “a decadência e o desaparecimento do universo que chamávamos de

social”29

. De fato, desde que se pode considerar inexpugnável o triunfo da economia sobre

a política, as categorias sociais, até então vigentes, se embaralharam. A superação da

sociedade industrial pela revolução tecnológica da informação deixou para trás as relações

sociais de produção, de tal maneira que os conflitos de grande envergadura hoje, tais como

as guerras, não têm mais função política ou social e só podem ser elucidados pela ótica do

interesse puramente econômico30

. Face a tal quadro, o indivíduo vê-se interditado para o

exercício de uma subjetividade engajada, perdendo os referenciais para uma razão de ser.

Passa, então, a assumir os riscos de um retorno solitário a si mesmo, que, se por um lado

pode ser valorado positivamente, do ponto de vista da autonomia, pode também ser

determinante para a adoção de posturas próprias de um ceticismo niilista.

Diferentemente do que foi gestado na modernidade, o indivíduo de hoje pode ser descrito

como uma reação ao intenso bombardeio da propaganda, impingido pelos meios de

comunicação de massa. Portanto, ele se apresenta descrente de valores universais,

particularista, pragmático na busca de seus interesses, voltado a orientações íntimas e

individuais para a vida:

“O que importa acima de tudo é sua liberdade individual entendida como fazer o que pretende, como viver a

intensidade do momento, sobretudo, as sensações fortes e, dentro deste contexto desenvolver sua criatividade:

daí a mudança e a inquietude permanente”31

.

Diante dessa situação de globalização, a religião é apresentada como a instância que

permite ao sujeito encontrar um ou mais sentidos explicativos para a sua existência no

mundo, ou seja, ela defronta-se com o pluralismo. Há uma nova relação sujeito-religião,

28

Cf. Manfredo Araújo de Oliveira, Ética, direito e democracia, p. 4. 29

Cf. Alain Touraine, Um novo paradigma, p. 10. 30

Id. ibid. 31

Cf. Manfredo Araújo de Oliveira, op. cit., p. 6.

14

na qual o sujeito define as prioridades no âmbito do religioso. De um lado, a religião

passa, agora, a ter um papel importante na busca da identidade pessoal, e, de outro, a

religião adquire uma carga forte de subjetividade. Nas sociedades tradicionais, era a

sociedade ou a “cultura” que determinava a identidade do indivíduo. O mundo moderno

e global torna-se pluralista. Aqui, é o indivíduo que escolhe a sua identidade e

determina quem ele é. Então, as opções religiosas serão marcadas pelo subjetivismo: o

indivíduo aceita uma parte dos dogmas e da disciplina da religião institucionalizada,

mas discorda e rejeita outra parte32

.

Percebe-se que a complexidade do campo religioso tem a ver com os diversos modelos

que a religião adota num determinado momento histórico e com a rapidez com que esses

formatos vão desenvolvendo-se. Em tempos de transformações aceleradas no âmbito da

economia, da política e da cultura, essas mudanças também atingem o campo

religioso33

.

O Documento de Aparecida detecta o novo cenário da globalização e o seu impacto

sobre a cultura e a religião, impondo-se a seguinte questão: Como ser discípulo

missionário numa cultura pluralista e numa sociedade de indivíduos? O cenário da

globalização ganha algumas caracterizações. Primeiramente, (i) homogeneização

cultural e pluralismo: “Verifica-se, em nível massivo, uma espécie de nova colonização

cultural pela imposição de culturas artificiais, desprezando as culturas locais e com

tendências a impor uma cultura homogeneizada em todos os setores”34

. Há uma

contradição cultural emergente, pois, se de um lado, temos essa tendência monocultural,

de outro, “a sociedade panamazônica é pluriétnica, pluricultural e plurireligiosa”35

.

Em segundo lugar, percebe-se (ii) uma sociedade de indivíduos indiferentes:

“Essa cultura se caracteriza pela auto-referência do indivíduo, que conduz à indiferença pelo outro, de

quem não necessita e por quem não se sente responsável. Prefere-se viver o dia-a-dia, sem programas a

longo prazo nem apegos pessoais, familiares e comunitários. As relações humanas estão sendo

32

Cf. A. Antoniazzi, O sagrado e as religiões no limiar do Terceiro Milênio, in: C. Caliman (org.), A

sedução do sagrado. O fenômeno religioso na virada do milênio, p. 13. 33

Cf. Wagner Lopes Sanchez, Elementos para a análise do campo religioso no Brasil, in:

www.pucsp.br/nures/revista2/artigos_wagner_sanchez.pdf, 2001. 34

Cf. DA, 46. 35

Cf. DA, 86.

15

consideradas objetos de consumo, conduzindo a relações afetivas sem compromisso responsável

definitivo”36

.

Em terceiro lugar, destaca-se (iii) o pluralismo religioso:

“Dentro do novo pluralismo religioso em nosso continente, não se tem diferenciado, suficientemente, os

cristãos que pertencem a outras igrejas ou comunidades eclesiais, tanto por sua doutrina como por suas

atitudes, dos que fazem parte da grande diversidade de grupos cristãos (inclusive pseudo-cristãos) que se

têm instalado entre nós”37

.

O pluralismo religioso tem diante de si o sujeito entendido como gerador de autonomia

e de liberdade. A consciência do sujeito passa a ser o critério fundamental para a

constituição do universo religioso e a sua movimentação na esfera religiosa. O universo

religioso tem uma nova referência: o indivíduo. Antes, a referência última era a

tradição, o passado. Agora, privilegia-se o emergente, a experiência do momento e o

indivíduo nessa experiência.

Pelo que se apresenta acima, a religião tem, diante de si, o desafio da passagem de um

modelo de autonomia individual subjetivo para um modelo de autonomia individual inter-

subjetivo, em que se opõem dois modelos de ética: a de virtudes (religião na tradição

clássica) e a do dever-ser (religião moderna). Como conciliar uma ética comunitária de

conteúdos, própria do tradição clássica, com uma ética universalista formal, da tradição

moderna?

2. Religião e ética

O Documento de Aparecida vive entre duas éticas: uma que a religião clássica associa à

ética de virtudes; outra a que a religião moderna associa à ética do dever-ser. Subjaz ao

Documento, conforme foi apresentado acima, essa oposição ética: uma ética da virtude

fundada numa religião de tradição comunitária aristotélica e uma ética do dever-ser

kantiana, de viés legalista proibitivo, fundamentada na religião universalista abstrata.

2.1. Ética da virtude e religião de tradição comunitária

36

Cf. DA, 46.

16

Os defensores de uma ética de virtudes afirmam o seguinte: o kantismo e o utilitarismo

são fundados em princípios universais formais, que estão destituídos de conteúdo moral.

Um kantiano poderia propor uma moral formalmente rigorosa e abster-se de promover o

bem comum; um utilitarista poderia torturar um inocente para maximizar o bem-estar da

maioria.

A ética de virtudes propõe uma maior atenção às circunstâncias particulares dos agentes

e à formação de seu caráter, pelo cultivo dos bons hábitos que formam as pessoas

virtuosas. Os teóricos da ética de virtudes criticam as tendências éticas de estatuir

princípios universais de ação. É preciso compreender as qualidades morais dos agentes

e o seu agir ético.

Um dos defensores da ética de virtudes é o filósofo escocês, naturalizado americano,

Alasdair MacIntyre. Em Depois da virtude, ele afirma que o projeto moderno de

justificação da moralidade fracassou, devido à justificação das virtudes a uma prévia

justificação de princípios. Para o autor, é preciso inverter esse procedimento: primeiro

as virtudes, para então poder compreender a finalidade e o valor das regras morais. Essa

é a melhor forma de justificar a moralidade. O modelo mais próximo desse

procedimento se encontra em Aristóteles.

A hipótese de MacIntyre é a seguinte: a linguagem moral está em desordem, porque

faltam os contextos de uso que antes forneciam o seu significado. Usam-se expressões

morais, porém, não se compreende o sentido teórico-prático. Nem a filosofia analítica e

nem a fenomenologia podem restabelecer a compreensão da linguagem moral.

Há críticas à proposta de atualização da ética de virtudes. Afirma-se que a análise de

MacIntyre é decadentista, isto é, interpreta o passado grego como uma época de ouro,

ao passo que a modernidade é vista como decadente. No entanto, a ética moderna tem

valores, como, por exemplo, a autonomia pessoal. Por isso, a ética de virtudes pode

assumir uma postura anti-iluminista, desprezando a razão e enaltecendo a compreensão

tradicionalista e autoritária da moralidade. O desafio é abandonar a nostalgia e enfrentar

os desafios globais.

37

Cf. DA, 99g.

17

Quais virtudes devem ser assumidas? E quais são os modelos que servem de guia? Para

Homero, virtude é excelência. Segundo Platão, as virtudes são a sabedoria, a

temperança, a coragem e a justiça; a análise de Aristóteles enfoca, ao invés do guerreiro,

o cidadão ateniense. Na tradição cristã, estão no centro as virtudes da fé, da esperança e

da caridade. Para Hume e Smith, a virtude central é a simpatia. Nisso, como percebemos

surgem diferenças marcantes entre as diversas tradições.

Qual modelo serviria de guia quanto ao critério da correção moral das ações? Madre

Teresa de Calcutá ou Buda? Por que esses referenciais, e não outros38

?

2.2. A ética do dever-ser e a religião de tradição universalista

Como determinar as regras do que é certo ou errado? Immanuel Kant responde que é

moralmente correta a ação que está de acordo com determinadas regras. Kant não

propõe uma lista de regras com conteúdo previamente determinado, como é caso dos

mandamentos religiosos, mas propõe uma regra universal para corrigir a norma que

orienta nossa ação, a saber, o imperativo categórico. As características principais da

ética do dever encontram-se na obra Fundamentação da metafísica dos costumes

(1785). Ali, idéia central é que a ação deve ser realizada apenas conforme o dever e por

dever, como respeito à lei, e não por interesses egoístas ou motivações empíricas.

Afirma-se que a moral kantiana é puramente formal, porque apresenta apenas

exigências mínimas, desprovidas de substância real. Ou seja, trata-se de uma moral

mínima, que estipula deveres gerais e estabelece mais o que não se deve fazer do que

recomenda a prática de ações virtuosas: “Não devemos quebrar promessas”, “não

devemos mentir”, “não devemos cometer suicídio”39

, etc.

Em meio à disputa entre essas duas teorias éticas, há a ética utilitarista. Não vamos

tratar, aqui, desta corrente ética, que se impõe com muita força na solução dos dilemas

éticos atuais. De fato, a experiência religiosa ainda é determinada pelas duas teorias

mencionadas, porém, percebe-se que, em meio ao pluralismo religioso, há uma

tendência utilitarista, na medida que os indivíduos buscam a religião que traga mais

38

Cf. Maria de Lurdes Borges et alii, Ética, p. 57s.

18

bem-estar para sua vida, ou seja, produza resultados efetivos para o sentido de viver. O

utilitarismo conserva o senso de realidade, simplesmente identifica na felicidade o

maior bem atingível e deduz o que devemos fazer para esse fim. Não se preocupa em

criar uma norma ou regra moral que tenhamos que seguir. As regras morais apenas são

meios para atingir o bem maior.

O Papa Bento XVI não desconhece esse dilema ético da experiência religiosa,

sobretudo, uma ética que apenas aponta para o que não deve ser feito: “O cristianismo

não é um conjunto de proibições, mas uma opção positiva. E é muito importante que

evidenciemos isso novamente, porque essa consciência, hoje, desapareceu quase que

completamente”40

.

O Documento de Aparecida fala em apoiar uma ética política: “Apoiar a participação da

sociedade civil para a re-orientação e conseqüente reabilitação ética da política”41

. E

acrescenta o desafio de formar para uma ética cristã: “Formar na ética cristã que

estabelece como desafio a conquista do bem comum a criação de oportunidades para

todos”42

. Esta ética cristã, segundo o Documento, tem como conteúdo o bem comum e a

criação de oportunidades. Assim como a expressão “reabilitação ética da política” é o

indicativo da virtude ética no exercício político, o que denotaria uma tradição

comunitária. Se, de um lado, temos o acento na tradição da ética de virtudes, de outro, o

discurso subjacente do Documento é uma ética do dever-ser em que são indicados

imperativos universais a que o agir do fiel deve adequar a sua ação. Ou seja, o

universalismo salvífico e o seu compromisso moral levam ao entendimento de que a

Igreja é um espaço religioso com pluralismo ético, porque as éticas corresponderão às

várias experiências religiosas, em conformidade com a tradição clássica, moderna e

globalizada em que o fiel está inserido. Ao distinguir o que é essencial e secundário nas

práticas éticas, os fiéis elaboram uma concepção da Igreja como um ente social, em que

há lugar para a doutrina e para padrões plurais de comportamento, bem como uma

concepção da Bíblia e da doutrina como literatura religiosa, útil para a devoção pessoal

e o uso litúrgico, enquanto referencias de sentido.

39

Id. ibid., p. 15s. 40

Cf. Joseph Ratzinger, Papa Bento XVI, entrevista concedida à televisão alemã, em 13.08.2006. 41

Cf. DA, 406a.

19

Diante do quadro descrito acima, em que o Documento de Aparecida constata ao menos

três experiências religiosas – clássica, moderna e globalizada – convivendo

simultaneamente, que correspondem a práticas éticas diferentes, torna-se evidente que o

fenômeno do pluralismo religioso e ético perpassa o tecido cultural da sociedade latino-

americana e caribenha. O Documento propõe uma resposta metodológica, segundo o

nosso modo de análise, para poder assumir os desafios da missão, conforme será

exposto abaixo.

3. Religião e método

A tradição do modelo de religião clássica e moderna é centrada na missão, ou seja, no

ato de levar e expandir a doutrina “ad gentes”, ou seja, implantar a cristandade. Pode-se

dizer que o método, aqui, é doutrinador. Ora, o Documento de Aparecida apresenta uma

reviravolta metodológica importante, que se detecta na expressão “discípulo

missionário” ou “discípula missionária”. Todo o Documento está estruturado a partir

desse núcleo metodológico do discipulado missionário.

3.1. Discípulo missionário ou uma pedagogia da aprendência

Qual é o pressuposto do método do “discípulo missionário” numa sociedade globalizada

e plural? Trata-se da compaixão e da compreensão misericordiosa, que se realiza através

do diálogo.

O método do discipulado missionário implica uma pedagogia do aprender a crer. Todos

os seres vivos são sistemas aprendentes. Mantêm-se vivos e crescem em vitalidade, à

medida que continuam aprendendo. Existe uma unidade básica entre processos vitais e

processos cognitivos, e existe um nexo profundo entre dinâmica da vida e dinâmica do

prazer. Por isso, a prazerosidade é um aspecto importante da aprendizagem. O objetivo

da formação do discipulado é criar a experiência da paixão de aprender, ou seja, da

paixão de crer. Pode-se dizer que religião é criar a experiência da paixão de aprender a

crer.

42

Cf. DA, 407b.

20

Vejamos, finalmente, algumas características e alguns desafios dessa pedagogia do

discipulado da aprendência:

(i) Uma pedagogia capaz de criar o gosto de aprender a crer que dure a vida inteira: a

religião começa com a experiência de fé, isto é, com a capacidade de a pessoa ficar

confiante diante do mistério. Por isso, a pedagogia do discipulado promove e

incrementa a fé e o gosto vital de estar aprendendo a crer. Ela desperta a pessoa para

aprender a crer a vida inteira. Aprender a arte de crer é muito mais do que acumular

doutrinas prontas. Hoje, o aprender ao longo da vida inteira tornou-se um dos lemas da

sociedade do conhecimento.

(ii) De uma pedagogia do repasse de informações e saberes, passa-se para uma

pedagogia da construção de conhecimentos: hoje, a educação não pode reduzir-se

apenas a transmitir, mecanicamente, conhecimentos e saberes prontos. Educar a fé

significa criar experiências de aprendizagem e não transmitir coisas já prontas, saberes

já definidos. Ninguém aprende se não procura criar junto com aquele que ensina o

conhecimento. Aprender significa construir experiências visando à aprendizagem do

discipulado.

(iii) Uma pedagogia da iniciativa e da solidariedade: a sociedade aprendente está

inserida numa economia de mercado excludente. Nesse contexto, crer implica uma

missão social emancipatória. A pedagogia do discipulado educa para saber tomar

iniciativa, sendo esta uma condição de possibilidade para a solidariedade. A

solidariedade não funciona onde falta a criatividade e a disposição para tomar

iniciativas. Ora, o ato de crer é, eminentemente, um ato de iniciativa para criar sempre

novas formas de interpretar o mundo. Ele “projeta para a missão de formar discípulos

missionários para o serviço ao mundo. Habilita a propor projetos e estilos de vida cristã

atraentes, como intervenções orgânicas e de colaboração fraterna com todos os

membros da comunidade”43

.

(iv) Uma pedagogia que transforme a religião num espaço aprendente, onde se crie um

ambiente e uma experiência de aprendizagem: transformar a Igreja em ecologia

43

Cf. DA, 280d.

21

cognitiva, ou seja, um espaço de construção do gosto de estar aprendendo a vida e o

mundo, enfim, aprendendo caminhos e acessos. Um dos objetivos da religião é fazer

experiências de aprendizagem de crer.

(v) Uma pedagogia que integre as seguintes dimensões: unidade entre processos com

dimensão humano-comunitários44

, processos com dimensão intelectual e espiritual45

e

organizações eclesiais aprendentes com uma dimensão missionária46

. Enfim, pensa-se

uma Igreja como organização aprendente, que incentive nos crentes a auto-estima e a

auto-confiança, estimule a capacidade de tomar iniciativas, ensine a inovar (pedagogia

da criatividade), desperte aspirações, motivações e aumente os níveis de expectativa, ou

seja, opere uma “pedagogia da esperança”47

.

Assim, o método do discipulado é constituído por vários momentos que formam uma

unidade de aprendizagem da fé: “encontro-conversão-discipulado-comunhão-missão”48

.

3.2. Aprendendo a crer entre dúvida e crença

O método do discípulo missionário é uma experiência que vive na contradição entre a

dúvida e a crença. O Cardeal Martini escreveu o artigo Dúvida e crença, em que

expressa essa aprendizagem da fé. Ele começa dizendo assim: “solicitados pelas

palavras do Cântico “procurei Deus e não o encontrei”, coloquemo-nos o problema do

ateísmo, ou melhor, da ignorância sobre Deus”. A atitude de ignorância, ou seja, da

docta ignorantia, permite afirmar: “Nenhum de nós está longe de tal experiência: existe

em nós um ateu potencial que grita e sussurra cada dia suas dificuldades em crer”49

.

Quando se fala de “crer em Deus”, admite-se que há, no conhecimento de Deus, certo

ato de confiança e de abandono, que comporta um aprender a confiar.

Ora, são diversos os modos de aprender a crer. A tradição ocidental privilegia a

compreensão de Deus com uma definição, por exemplo, “sumo bem”, “ser subsistente”,

44

“Tende a acompanhar processos de formação que levem a pessoa a assumir a própria história e a curá-

la, com o objetivo de se tornar capaz de viver como cristão em um mundo plural, com equilíbrio, fortaleza,

serenidade e liberdade interior. Trata-se de desenvolver personalidades que amadureçam em contato com a

realidade e abertas ao Mistério”(DA, 280,a). 45

Cf. DA, 280b-c. 46

Cf. DA, 280d). 47

Cf. Hassmann, Competência e sensibilidade solidária. Educar para a esperança, p. 134s. 48

Cf. DA, 278a-e. 49

Cf. Cardeal Martini, Dúvida e crença, Acessado em 17.11.07: www.unisinos.br/ihu.

22

“ser perfeitíssimo”, etc. A tradição judaica, que se encontra na Bíblia, não conhece

nomes abstratos de Deus, mas enumera as suas obras. A Bíblia diz Deus,

primordialmente, com verbos, não com substantivos. Esses verbos referem-se às obras

com que Deus visitou o seu povo. São verbos como criar, prometer, escolher, eleger,

guiar, nutrir, etc. Referem-se ao que Deus fez pelo seu povo. Há, portanto, uma

experiência de aprendizagem: aquela de terem sido ajudados em circunstâncias difíceis.

A razão ocidental, continua o Cardeal Martini, também percorre um itinerário de

aprendizagem da fé:

“O mistério cristão, a natureza de Deus nos aparece gradualmente como envolta por uma luz. É uma

realidade que se prolonga para o outro, na qual é mais forte a relação e o dom de si, do que o possuir-se a

si mesmo. Por isso, Jesus sobre a cruz nos revela de maneira decisiva o ser de Deus como ser para outros:

é o ser Daquele que se doa e perdoa”50

.

As tradições religiosas têm uma dimensão de aprendizagem no ato de crer, ou seja,

nelas trata-se de um discipulado que sempre precisa ser reiventado. Nesse sentido, o

Documento de Aparecida aponta para o método correto e diagnostica com lucidez o

caminho a ser percorrido, para compreender as contradições, no sentido de

possibilidades e limites, do pluralismo ético-religioso dos povos latino-americanos e

caribenhos.

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2007.

50

Cf. Cardeal Martini, Dúvida e crença, acessado em 17.11.07: www.unisinos.br/ihu.

23

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cedeu o capítulo “Educação, autonomia e direito”, para a pesquisa de base deste

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