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RELIGIÃO NO DOCUMENTO DE APARECIDA:
ÉTICA E MÉTODO
Agemir Bavaresco
Introdução
Constata-se que um dos desafios atuais à filosofia da religião é interpretar a passagem
do ateísmo moderno ao novo ateísmo, embora alguns entendam que o fenômeno seja
uma reposição de teses antigas. Cabe considerá-las, todavia, para compreender em que
medida isso influencia o fenômeno religioso em geral, e como isso repercute,
especificamente, no Documento de Aparecida. Em primeiro lugar, em que consiste,
brevemente, o ateísmo moderno e o novo ateísmo?
Uma das principais teses do (a) ateísmo moderno é negar a Deus, para afirmar
absolutamente o ser humano, passando a autodeterminar-se de maneira atéia1. Pode-se
situar a origem desse fenômeno na radicalização do iluminismo francês, sendo os seus
principais porta-vozes Feuerbach, Marx, Nietzsche, Freud e, no século 20, Sartre.
Feuerbach, em A essência do Cristianismo (1841), critica a religião e o cristianismo.
Ali, o ser humano é o grande projeto e Deus é a sua projeção. Tudo o que o ser humano
fala acerca de Deus, através da linguagem religiosa, nada mais é do que confissão de
seus desejos, projetos e aspirações.
Karl Marx propõe o novo humanismo na forma do ateísmo, ou seja, “o ateísmo é o
humanismo pela superação da religião”. É clássica a sua frase: “A religião é o ópio do
povo”, porque ela hipnotiza os seres humanos com a falsa superação da miséria e,
assim, destrói a sua força de revolta. A religião produz a alienação do povo.
Nietzsche é conhecido pelo ateísmo niilista, condensado na sua afirmação: “Deus está
morto”! Como conseqüência da morte de Deus tem-se o niilismo. O nada passa a ocupar
Doutor em Filosofia pela Universidade de Paris 1 (França), professor de filosofia na Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul. 1 Cf. Urbano Zilles, Filosofia da religião, p. 99-185; Giuseppe Staccone, Filosofia da religião, p. 95-163.
2
o lugar de Deus. Nietzsche via a sua época como o fim da metafísica, o tempo da morte
de Deus e do ateísmo.
Freud defende um ateísmo psicanalítico, afirmando que “Deus é uma ilusão infantil”.
Ele sugere uma concepção científica do mundo para substituir a religião, isto é, a idéia
de Deus pela ciência. A religião deve ser abandonada, por ser uma doença, uma neurose
obsessiva. Deus é uma nostalgia que o ser humano tem de um pai onipotente, que o
consola e proteja em sua angústia pela dureza da vida.
Feuerbach, Marx e Nietzsche têm algo em comum no seu ateísmo: a luta contra a ilusão
religiosa, contra o cristianismo e os valores morais, contra uma ordem de verdades
eternas.
Sartre, em especial na sua obra O ser e o nada, elabora o existencialismo ateu, que nega
Deus, para afirmar o ser humano, tal como Nietzsche. O existencialismo é um ateísmo
que funda um novo humanismo, diferente dos essencialismos do passado. Se Deus não
existe, o ser humano está condenado a ser livre, isto é, a inventar a sua essência humana,
o seu projeto de vida e de humanidade, a criar-se e recriar-se como ser humano.
Se a filosofia medieval teve a tendência de afirmar que Deus é tudo, e o ser humano é
nada, a filosofia moderna, por seu lado, afirma que o ser humano é tudo, e Deus é nada.
Esse jogo de oposições – Deus ou o ser humano – conduziu à eliminação dos pólos que
compõem a relação e ao não reconhecimento entre ambos. Como esse problema é posto
pelo novo ateísmo, também chamado de “naturalismo científico”?
Cabe destacar, pois, (b) o “novo ateísmo” ou o “naturalismo científico”2. O cardeal
Carlo Maria Martini, arcebispo emérito de Milão, afirma: “Existe em nós um ateu
potencial que grita e sussurra, cada dia, suas dificuldades em crer”3. De um lado, o
cardeal Martini expressa o difícil itinerário da experiência de crer e não desconhece o
“ateu em potencial” que, como um aguilhão, está a aguçar as nossas convicções para
aprender, cotidianamente, a crer de novo. De outro lado, os cientistas, filósofos e
2 Não tratamos, aqui, do ateísmo que poderia ser denominado de laico. Um exemplo típico disto é o que
propõe André Comte-Sponville. O espírito do ateísmo. São Paulo: Martins Fontes, 2007. Ele propõe uma
metafísica materialista e uma espiritualidade sem Deus, sugerindo uma “sabedoria para o nosso tempo”.
3
escritores, como Richard Dawkins, Daniel Dennett, Sam Harris, Michel Onfray e
Christopher Hitchens, entre outros, reintroduzem o debate sobre o ateísmo.
John F. Haught, professor de teologia da Universidade de Georgetown, coloca uma série
de questões sobre esse novo ateísmo. Será que o método científico de entender o mundo
tornou a fé religiosa intelectualmente implausível? Mais: a ciência exclui a existência de
um Deus pessoal, como sustentou Albert Einstein? A evolução torna indigna de crédito
toda a idéia da providência divina? A vida e a mente podem ser reduzidas à química?
Podemos continuar a afirmar, plausivelmente, que o mundo é criado por Deus ou que
Deus realmente quer que os seres humanos estejam aqui? Observando a natureza, será
possível que a complexa padronização que ocorre seja simplesmente o produto do acaso
cego e da necessidade física? Numa era da ciência, podemos crer, sinceramente, que o
universo tem um propósito?
Num livro recente4, John F. Haught critica o que chama de “novo ateísmo”, sobretudo
porque se trata de uma crença no naturalismo científico. Ou seja, acredita-se que a
natureza é tudo o que há, que Deus não existe e que a ciência é o único caminho que
conduz à verdade. Os novos ateístas, continua Haught, rejeitam o Deus dos
criacionistas, dos fundamentalistas do “desígnio inteligente”. Vale ressaltar que
debatem com esses últimos, e não com teólogos, mostrando a sua adesão a um
fundamentalismo ainda mais simplista, a saber, o naturalismo científico. O cientificismo
é a versão do fundamentalismo da comunidade científica, porque supõe que o universo
apenas se torna plenamente transparente para o pensamento se for apresentado na
linguagem impessoal da ciência5.
Verifica-se que há uma expressão epistemológica totalitária e um anacrônico
cientificismo, que se reduz a um reducionismo dogmático excludente do saber religioso,
enquanto experiência da fé. Ora, sabe-se que não há “ciência”, mas métodos científicos,
tão diversos quanto os da física, da biologia ou da sociologia, com diversas escolas de
pensamento e teorias, todas com discursos provisórios. A interdisciplinaridade, o uso
simultâneo de diversos marcos teóricos e a complementaridade entre o científico, o
3 Cf. Corriere della Sera, 16.11.2007.
4 Cf. John F. Haught, God and the New Atheism: A Critical Response to Dawkins, Harris and Hitchens,
2008.
4
filosófico, o teológico, o intuitivo e o místico constituem uma razão transversal, própria
para compreender a multidimensionalidade do ser e do saber.
O problema está, de um lado, no ateísmo científico e no seu naturalismo unilateral; de
outro, está no fundamentalismo religioso que faz uma aplicação literal de textos
sagrados clássicos das religiões monoteístas, por exemplo, da Bíblia ou do Corão, para
justificar posições ou atacar teorias. Uma leitura fundamentalista da Bíblia ou do Corão
conduz, também, a juízos reducionistas. De fato, são duas posições fundamentalistas em
campos opostos, sem a justa mediação interdisciplinar.
O Documento de Aparecida6 posiciona-se diante desse debate, afirmando: “Diante da
falsa visão, tão difundida em nossos dias, de uma incompatibilidade entre fé e ciência, a
Igreja proclama que a fé não é irracional. „Fé e razão são duas asas pelas quais o espírito
humano se eleva na contemplação da verdade‟”7. O DA tem consciência de um tipo de
fundamentalismo científico, com ranço iluminista, que classifica a fé como expressão de
irracionalismo. Por isso, trata direta ou indiretamente da ciência em vinte números, no
sentido de “valorizar sempre mais os espaços de diálogo entre fé e ciência, inclusive nos
meios de comunicação”8, instigando que “não podemos escapar desse desafio de
diálogo entre a fé, a razão e as ciências”9, porque “hoje em dia as fronteiras traçadas
entre as ciências se desvanecem. Com este modo de compreender o diálogo, sugere-se a
idéia de que nenhum conhecimento é completamente autônomo”10
.
Logo no início da apresentação crítica da realidade, o Documento constata que os povos
da América Latina e do Caribe “vivem hoje uma realidade marcada por grandes
mudanças que afetam profundamente suas vidas”, sendo “um fator determinante dessas
mudanças a ciência e a tecnologia”11
. Ora, a análise da realidade feita pelo Documento
tem como pressuposto essa mudança cultural, implementada pela ciência e tecnologia,
estabelecendo, subjacentemente, uma separação entre fé e razão, ou fé e ciência, em
5 Acessado na internet em 26.11.07: www.unisinos.br/ihu.
6 Daqui em diante, o Documento de Aparecida será citado como DA.
7 Cf. DA, 494.
8 Cf. DA 495.
9 Cf. DA 466.
10 Cf. DA 124.
11 Cf. DA 33 e 34.
5
todos os níveis da sociedade. Mais ainda, há uma ruptura das tradições culturais
religiosas e um conflito ético, no contato com a emancipação científico-tecnológica.
Por isso, o nosso estudo identifica no DA, primeiramente, (1) o modo como aparecem
os modelos de religião na tradição clássica, moderna e globalizada. De fato, convivem
simultaneamente pelo menos três tradições, constituindo um pluralismo religioso com
repercussões na prática e na compreensão da fé. Depois, (2) apresentamos como essas
tradições implicam um conflito evidente de duas experiências éticas: a ética da virtude e
a ética do dever-ser. Enfim, (3) analisamos a proposta metodológica que o Documento
sintetiza na expressão “discípulo(a) missionário(a)”, justamente para enfrentar esse
tempo de mudanças.
1. Religião na tradição clássica, moderna e globalizada
Antes de descrevermos as três tradições religiosas, vejamos o que se entende pelo
conceito de religião, compreendendo, nesse fenômeno, a dimensão natural ou deísta e a
teísta.
O termo “religião natural” ocorre, inicialmente, na primeira metade do século 17, usado
em três sentidos relacionados, sendo o mais comum (a) um corpo de verdades a respeito
de Deus e dos nossos deveres, que podem ser descobertos pela razão natural; (b) uma
religião que tem origem humana distinta de uma origem divina; (c) uma religião da
natureza humana como tal, distinta de crenças e práticas religiosas determinadas por
circunstância locais. Nos três sentidos, a religião natural inclui a crença na existência de
Deus, como justiça, benevolência e providência, na imortalidade e nos ditames da moral
comum. Esse conceito está relacionado com o deísmo, causando acolhida entre autores
cristãos, uma vez que, para esses, a religião revelada restaura a religião natural à sua
origem e acrescenta a necessidade de sua prática12
.
Para as tradições teístas – judaísmo, cristianismo e islamismo –, a religião trata da
existência, da natureza e das atividades de Deus. Essas tradições entendem que Deus é
12
Cf. Dicionário Cambridge de Filosofia, editado por Robert Audi, p. 815.
6
um ser pessoal, eterno, livre, onipotente, onisciente, criador e sustentáculo do universo,
sendo objeto da obediência e da adoração humanas13
.
Tendo como pressuposto o conceito de religião acima exposto, é suficiente para o nosso
estudo que duas compreensões entendam a experiência religiosa como a relação do ser
humano com Deus, não obstante as nuances específicas de cada tradição. Ora, no
Documento de Aparecida é possível constatar, na descrição das tradições culturais da
América Latina e do Caribe, ao menos três fenômenos religiosos simultâneos que
implicam a experiência religiosa: a religião clássica, a religião moderna e a religião face
à globalização. Vejamos como se caracterizam cada um desses fenômenos e, ao mesmo
tempo, os problemas e desafios que o Documento de Aparecida neles identifica.
1.1. A religião clássica ou o comunitarismo das tradições
A religião clássica vem marcada por um caráter comunitarista, ou seja, há um centro
englobante, através da tradição comunitária, em que as relações são marcadas pelos
valores, e a integração realiza-se pelos vínculos religiosos e tradições culturais
homogêneas.
Na religião clássica, pode-se construir um conceito unitário da vida humana e das
virtudes. Segundo MacIntyre, três são os elementos que constituem a tradição clássica
comunitarista e têm, em Aristóteles, um de seus expoentes: o conceito de prática, a idéia
de narrativa (ordem narrativa) da vida humana única e a tradição moral. A partir desses
elementos, MacIntyre pretende renovar e atualizar a tradição aristotélica, mantendo a
sua estrutura teleológica. Utilizaremos esses três elementos para caracterizar a religião
clássica inserida no viés comunitarista.
(i) A prática é uma forma coerente e complexa de atividade humana cooperativa,
estabelecida socialmente, mediante a qual se realizam os bens que lhe são próprios,
enquanto se tenta alcançar o modelo de excelência condizente com essa forma de
atividade. O conjunto de práticas é amplo: as artes, as ciências, os jogos, a política, a
religião, etc. Toda prática inclui, além de bens, modelos de excelência e de obediência
13
Id. ibid., p. 377.
7
às regras. Através do conceito de prática, MacIntyre entende a virtude como uma
qualidade humana adquirida, cujo exercício nos torna capazes de alcançar os bens que
são intrínsecos às práticas. A religião é uma das práticas que propõem modelos e
virtudes comunitárias.
(ii) A inteligibilidade de uma ação é possível no contexto de uma narrativa histórica.
MacIntyre afirma que sonhamos, esperamos, desesperamos, cremos, descremos,
planejamos, criticamos, construímos, apreendemos, odiamos etc., sempre
narrativamente. Não somos apenas atores, mas também autores de narrativas, que
apresentam a ação em certo trilho teleológico. Tanto individual como coletivamente,
vivemos à luz de um futuro compartilhado. Não há presente que não esteja informado
de alguma imagem futura, e o futuro sempre se apresenta em forma de telos, de uma
“finalidade”, como busca consciente de objetivos. A narrativa é o que dá unidade à vida
humana e cria a identidade pessoal. A experiência religiosa insere-nos numa ordem
narrativa, impelindo-nos a uma permanente busca do bem, ajudando-nos a vencer os
riscos, tentações e distrações, com que nos deparamos no curso da vida, e fornecendo-
nos um crescente sentido da trajetória biográfica pessoal e grupal.
(iii) As tradições, quando estão vivas e perduram, incorporam continuadamente os
conflitos. O que anima as tradições é o exercício das virtudes pertinentes. A falta de
justiça, de veracidade, de valor, de virtudes intelectuais apropriadas corrompe as
tradições. Por isso, MacIntyre é contra o individualismo moderno, que nega a inserção
da história individual na história das comunidades de onde se originam as identidades
pessoais14
. Nesse sentido, a tradição religiosa fornece um espaço especial de exercício
da virtude comunitária.
Partindo desse conceito de religião clássica, inserida dentro de uma tradição
comunitarista, pode-se identificar no Documento de Aparecida a religiosidade popular
como sendo uma manifestação de religião clássica de viés comunitário. Assim, (a) o
papel integrador da religiosidade popular, enquanto uma ordem narrativa, desperta a
consciência para o seguinte: “Em nossa cultura latino-americano e caribenha
conhecemos o papel tão nobre e orientador que a religiosidade popular [grifo nosso]
14
Cf. Alasdair MacIntyre, Depois da virtude, p. 30-110.
8
desempenha, especialmente a devoção mariana, que contribui para nos tornar mais
conscientes de nossa comum condição de filhos de Deus e de nossa comum dignidade
perante seus olhos, não obstante as diferenças sociais, étnicas ou de qualquer outro
tipo”15
. Além disso, há que se atentar para (b) o cuidado pela prática da religiosidade
popular: “É necessário cuidar do tesouro da religiosidade popular de nossos povos”16
.
Essa prática religiosa, porém, corre o risco de se fragmentar, devido à falta de uma
síntese narrativa: “O que hoje em dia está em jogo não é a diversidade que os meios de
comunicação são capazes de individualizar e registrar. O que ninguém esquece é, pelo
contrário, a possibilidade de que essa diversidade possa convergir em uma síntese que,
envolvendo a variedade de sentidos, seja capaz de projetá-la em um destino histórico
comum”17
. Finalmente, tem-se (iii) a tradição do apego à terra e a vida comunitária
como fundamento das virtudes: “Existem em nossas regiões diversas culturas indígenas,
afro-americanas, mestiças, componesas, urbanas e suburbanas. As culturas indígenas se
caracterizam sobretudo por seu apego profundo à terra, pela vida comunitária e por uma
certa procura de Deus”18
.
No entanto, a religião clássica vive a contradição entre os valores da cultura globalizada
e os valores comunitaristas:
“Essas culturas coexistem em condições desiguais com a chamada cultura globalizada. Elas exigem
reconhecimento e oferecem valores que constituem uma resposta aos anti-valores da cultura, que se
impõem através dos meios de comunicação de massas: comunitarismo, valorização da família, abertura à
transcendência e solidariedade”19
.
A experiência da religião clássica, como foi exposto acima, aparece, sobretudo, na
religiosidade popular, no apego à terra e à vida comunitária. No entanto, o Documento
de Aparecida percebe que essas práticas, narrativas e tradições convivem, ao mesmo
tempo, com uma realidade em crise do sentido:
“Os múltiplos sentidos parciais que cada um pode encontrar nas ações cotidianas [não garante um]
sentido que dá unidade a tudo o que existe e nos sucede na experiência, e que os cristãos chamam de
15
Cf. DA, 37. 16
Cf. DA, 549. 17
Cf. DA, 43. 18
Cf. DA, 56. 19
Cf. DA, 57.
9
sentido religioso. Habitualmente, este sentido se coloca à nossa disposição através de nossas tradições
culturais que representam a hipótese de realidade com que cada ser humano pode olhar o mundo em que
vive”20
.
1.2. A religião moderna e a dupla secularidade: a autonomia subjetiva
A religião moderna caracteriza-se pela experiência da secularidade, que opera a
transição da cristandade para o Estado laico. Mais ainda, a laicidade implica uma
transformação das teologias políticas numa dupla secularização, tendo como viés de
fundo o conceito de autonomia subjetiva.
O filósofo Charles Taylor fala sobre a não-retroatividade da secularidade e a queda de
antigas cosmovisões, em entrevista concedida a Norbert Mayer e publicada pelo jornal
Die Presse, em 13.11.2007:
“Eu emprego o conceito de secularidade, que é um fato, e não é nenhum „ismo‟. Considere as incríveis
possibilidades da espiritualidade hoje e compare-as com o século XVIII. O mundo não era, então, tão
sincrético quanto é hoje. Isso não se pode mais mudar. A Igreja precisa aprender a agir com esta espécie
de mundo. Nós estamos mais próximos do Império Romano do que da Idade Média. A cristandade morre,
mas não o cristianismo, este está sempre muito vivo. O papa fala sobre secularismo como doutrina e aí
existem centenas de variantes. Não é possível sintetizá-las, principalmente não com a palavra
“relativismo”. Não vejo, portanto, o mundo como ele o vê”.
Jean-Claude Monod afirma que, “na democracia, por oposição às antigas „teologias
políticas‟ do poder encarnado, o poder é essencialmente um „lugar vazio‟, e nenhum
grupo, nenhum partido, nenhuma doutrina podem pretender „ocupá-lo‟ de pleno direito,
sem contestação, e é por esta própria „vacância‟ que uma vida democrática, uma
„invenção democrática‟ é possível”21
. A constatação do lugar vazio, ou a vacância na
constituição do poder encarnado, permite a invenção democrática da interpretação,
abrindo possibilidades hermenêuticas na compreensão dos poderes da religião e do
Estado. Nesse sentido, a secularização das teologias políticas implica uma dupla
secularização da religião.
(a) A secularização moderna da religião ou a modernidade implementando os ideais
cristãos: a modernidade seculariza a religião no sentido de que fundamenta a realidade,
20
Cf. DA, 37. 21
Cf. Jean-Claude Monod, A secularização da secularização e o futuro da autonomia, in: Revista do
Instituto Humanitas Unisinos, p. 25.
10
não mais na razão teológica, mas na razão subjetiva livre, que passa a ser o critério de
validação das experiências. “Como conceito ou „palavra de ordem‟ política tipicamente
moderna, a secularização pode ser definida como emancipação em face da religião”,
entendida como tradição e heteronomia. Isso significa emancipar-se da “lei do Outro”,
ou seja, “uma lei imposta como imutável, enquanto sagrada, transcendente”22
. A
explicação filosófica da modernidade compreende-se como a época da autonomia do
sujeito. Por exemplo, Descartes exige que toda realidade – tradições, opiniões, etc. –
seja examinada pelo sujeito, refundando o conhecimento sobre a certeza subjetiva.
Assim, a modernidade como secularização consiste em autofundar, no sujeito
individual, as normas sobre a vontade do sujeito, que só obedecerá à lei verificada pela
prova da justificação racional. O desenvolvimento desse valor do sujeito individual,
como o sujeito cristão, será implementado na democracia laica.
(b) A secularização da secularização ou autonomia funcional: Monod descreve uma
segunda secularização, após a primeira, caracterizada pelo sujeito livre e autônomo.
Essa segunda ocorre em nível mais amplo, enquanto autonomia da esfera sociológica.
“Uma segunda concepção da secularização, mais sociológica, seria mais neutra em vista
de seus efeitos para o indivíduo, privilegiando antes o que se chamou de “a autonomia
das esferas sociais””23
. Max Weber fala de um processo de auto-legislação, ou seja, os
diferentes setores sociais são progressivamente “racionalizados” em torno de suas
“próprias normas”, ou sua “lógica intrínseca”, citando as máximas típicas: “a arte pela
arte”, “os negócios pelos negócios”, “a guerra como a guerra”. Nesse processo, grupos
sociais ou indivíduos reivindicam a autonomia de seu setor de atividade, o direito de só
seguir as normas internas a esse domínio, e recusam como atentados à sua liberdade os
julgamentos de valor “externos”, por exemplo, os interditos e as prescrições religiosas
que interferem sobre a atividade artística, mas também, mais amplamente, toda pressão
em função de exigências não-artísticas: políticas, morais, comerciais, etc. Esse processo
histórico contribui na formação de uma sociedade secularizada, no sentido de uma
sociedade na qual a religião não constitui mais o “setor dominante”, mas onde existem
esferas relativamente autônomas24
.
22
Id. ibid., p. 25. 23
Id. ibid., p. 26. 24
Id. ibid.
11
A religião na tradição clássica, como vimos acima, está centrada na instituição religiosa.
As possibilidades de o sujeito construir respostas e sentidos para a sua vida são poucas.
Conforme Peter Berger, na religião clássica as respostas já estão dadas na teodicéia
dominante, fornecendo aos diversos grupos e classes sociais o sentido de sua existência.
Numa sociedade tradicional, não há desafios imaginados, pois a realidade é
compreendida dentro de um esquema fechado, desconsiderando o sujeito e as mudanças
no processo histórico. As crises são vistas como desvios, que são resolvidos a partir do
receituário apresentado pela instituição.
Na sociedade moderna, porém, aparece uma outra fonte de referência para entender o
mundo: o sujeito autônomo. Aqui, a busca pessoal de construção de sentido sobrepõe-se
à teodicéia, que é uma explicação com um caráter comunitário em que, de certa forma, a
pessoa tem de renunciar à sua consciência individual25
. O sujeito laico eleva-se acima
do institucional, na medida em que é ele quem define o espaço de interferência do
universo religioso em sua vida e quem produz a religião para além das fronteiras
institucionais, através da dupla secularização.
Face a esse fenômeno, o Documento de Aparecida tem um olhar extremamente crítico
sobre o processo de secularização da modernidade: “Vivemos uma mudança de época, e
seu nível mais profundo é o cultural”26
. E as conseqüências disso são diversas, tais
como (i) fragmentação e ateísmo: “Dissolve-se a concepção integral do ser humano, sua
relação com o mundo e com Deus“. E os bispos referem-se ao Discurso inaugural de
Bento XVI, no V CELAM: “Aqui está precisamente o grande erro das tendências
dominantes do último século... Quem exclui Deus de seu horizonte, falsifica o conceito
da realidade e só pode terminar em caminhos equivocados e com receitas destrutivas”.
E também (ii) a sobrevalorização do sujeito: “Surge hoje, com grande força, uma
sobrevalorização da subjetividade individual. Independentemente de sua forma, a
liberdade e a dignidade da pessoa são reconhecidas”. (iii) O enfraquecimento da
dimensão comunitária: “O individualismo enfraquece os vínculos comunitários e
propõe uma radical transformação do tempo e do espaço, dando papel primordial à
imaginação”. (iv) A autonomia funcional e conceito de tempo: “Os fenômenos sociais,
25
Cf. P. L. Berger, O dossel sagrado, p. 67. 26
Cf. DA, 44.
12
econômicos e tecnológicos estão na base da profunda vivência do tempo, o qual se
concebe fixado no próprio presente, trazendo concepções de inconsistência e
instabilidade”. (v) O desejo imediato e direitos individuais: “Deixa-se de lado a
preocupação pelo bem comum, para dar lugar à realização imediata dos desejos dos
indivíduos, à criação de novos e, muitas vezes, arbitrários direitos individuais”27
.
O Documento constata que o fenômeno da modernidade continua permeando as
relações atuais, sendo o seu principal efeito o reducionismo do sujeito autônomo, em
detrimento da dimensão comunitária.
1.3. Religião e globalização: pluralismo de uma sociedade de indivíduos?
A globalização desencadeia uma situação de crise, em que a própria modernidade já não
consegue mais dar respostas adequadas aos novos problemas, colocados pelos diversos
desdobramentos sócio-culturais. Os novos problemas e desafios que afloram vão além
das respostas e soluções apresentadas pela modernidade e revelam os próprios limites da
mesma. A crise da modernidade se expressa na ausência de certezas, de orientações
definitivas, de valores absolutos. Por isso, ela gera instabilidade, insegurança, incerteza,
inquietações tanto no nível das instituições como no nível da vida pessoal. Porém, ao
mesmo tempo, como uma contradição latente, essa crise faz nascer a busca de
estabilidade, de segurança, de certeza, de respostas. Essa crise tem suas origens na
própria modernidade contemporânea. Ao pretender negar a tradição, o dogma e o
passado, a modernidade inaugurou um tempo de incerteza, de provisoriedade e de
precariedade. A modernidade pretendeu eliminar incertezas, apresentando novas
respostas, o que ela fez, foi, paradoxalmente, provocar o surgimento de mais incertezas,
porque a razão autônoma sempre teria as suas dúvidas. Nesse contexto de crise da
modernidade, a pessoa sente-se como se tivesse perdido a sua identidade. Ela precisa
redefinir a sua identidade numa situação desafiadora de crise.
A autonomia individual emergente manifesta-se apática e insensível em relação às questões
coletivas e à realidade social. Fixa-se num consumo ilimitado de bens e serviços, segundo o
estilo de vida e a forma de uma individualidade centrada em si mesma. Esse conceito de
27
Id. ibid.
13
liberdade, como autodependência ou auto-satisfação, com todo o seu potencial destrutivo,
conduz-nos ao impacto de uma crise ecológica sem precedentes.
A situação do indivíduo, hoje, é a constituição de uma “subjetividade idêntica a si mesma,
fonte única do sentido do mundo”28
. Tal estado de coisas resulta de um conjunto de
variáveis que se interpenetram e que tem o seu ponto de inflexão naquilo que Alain
Touraine designa “a decadência e o desaparecimento do universo que chamávamos de
social”29
. De fato, desde que se pode considerar inexpugnável o triunfo da economia sobre
a política, as categorias sociais, até então vigentes, se embaralharam. A superação da
sociedade industrial pela revolução tecnológica da informação deixou para trás as relações
sociais de produção, de tal maneira que os conflitos de grande envergadura hoje, tais como
as guerras, não têm mais função política ou social e só podem ser elucidados pela ótica do
interesse puramente econômico30
. Face a tal quadro, o indivíduo vê-se interditado para o
exercício de uma subjetividade engajada, perdendo os referenciais para uma razão de ser.
Passa, então, a assumir os riscos de um retorno solitário a si mesmo, que, se por um lado
pode ser valorado positivamente, do ponto de vista da autonomia, pode também ser
determinante para a adoção de posturas próprias de um ceticismo niilista.
Diferentemente do que foi gestado na modernidade, o indivíduo de hoje pode ser descrito
como uma reação ao intenso bombardeio da propaganda, impingido pelos meios de
comunicação de massa. Portanto, ele se apresenta descrente de valores universais,
particularista, pragmático na busca de seus interesses, voltado a orientações íntimas e
individuais para a vida:
“O que importa acima de tudo é sua liberdade individual entendida como fazer o que pretende, como viver a
intensidade do momento, sobretudo, as sensações fortes e, dentro deste contexto desenvolver sua criatividade:
daí a mudança e a inquietude permanente”31
.
Diante dessa situação de globalização, a religião é apresentada como a instância que
permite ao sujeito encontrar um ou mais sentidos explicativos para a sua existência no
mundo, ou seja, ela defronta-se com o pluralismo. Há uma nova relação sujeito-religião,
28
Cf. Manfredo Araújo de Oliveira, Ética, direito e democracia, p. 4. 29
Cf. Alain Touraine, Um novo paradigma, p. 10. 30
Id. ibid. 31
Cf. Manfredo Araújo de Oliveira, op. cit., p. 6.
14
na qual o sujeito define as prioridades no âmbito do religioso. De um lado, a religião
passa, agora, a ter um papel importante na busca da identidade pessoal, e, de outro, a
religião adquire uma carga forte de subjetividade. Nas sociedades tradicionais, era a
sociedade ou a “cultura” que determinava a identidade do indivíduo. O mundo moderno
e global torna-se pluralista. Aqui, é o indivíduo que escolhe a sua identidade e
determina quem ele é. Então, as opções religiosas serão marcadas pelo subjetivismo: o
indivíduo aceita uma parte dos dogmas e da disciplina da religião institucionalizada,
mas discorda e rejeita outra parte32
.
Percebe-se que a complexidade do campo religioso tem a ver com os diversos modelos
que a religião adota num determinado momento histórico e com a rapidez com que esses
formatos vão desenvolvendo-se. Em tempos de transformações aceleradas no âmbito da
economia, da política e da cultura, essas mudanças também atingem o campo
religioso33
.
O Documento de Aparecida detecta o novo cenário da globalização e o seu impacto
sobre a cultura e a religião, impondo-se a seguinte questão: Como ser discípulo
missionário numa cultura pluralista e numa sociedade de indivíduos? O cenário da
globalização ganha algumas caracterizações. Primeiramente, (i) homogeneização
cultural e pluralismo: “Verifica-se, em nível massivo, uma espécie de nova colonização
cultural pela imposição de culturas artificiais, desprezando as culturas locais e com
tendências a impor uma cultura homogeneizada em todos os setores”34
. Há uma
contradição cultural emergente, pois, se de um lado, temos essa tendência monocultural,
de outro, “a sociedade panamazônica é pluriétnica, pluricultural e plurireligiosa”35
.
Em segundo lugar, percebe-se (ii) uma sociedade de indivíduos indiferentes:
“Essa cultura se caracteriza pela auto-referência do indivíduo, que conduz à indiferença pelo outro, de
quem não necessita e por quem não se sente responsável. Prefere-se viver o dia-a-dia, sem programas a
longo prazo nem apegos pessoais, familiares e comunitários. As relações humanas estão sendo
32
Cf. A. Antoniazzi, O sagrado e as religiões no limiar do Terceiro Milênio, in: C. Caliman (org.), A
sedução do sagrado. O fenômeno religioso na virada do milênio, p. 13. 33
Cf. Wagner Lopes Sanchez, Elementos para a análise do campo religioso no Brasil, in:
www.pucsp.br/nures/revista2/artigos_wagner_sanchez.pdf, 2001. 34
Cf. DA, 46. 35
Cf. DA, 86.
15
consideradas objetos de consumo, conduzindo a relações afetivas sem compromisso responsável
definitivo”36
.
Em terceiro lugar, destaca-se (iii) o pluralismo religioso:
“Dentro do novo pluralismo religioso em nosso continente, não se tem diferenciado, suficientemente, os
cristãos que pertencem a outras igrejas ou comunidades eclesiais, tanto por sua doutrina como por suas
atitudes, dos que fazem parte da grande diversidade de grupos cristãos (inclusive pseudo-cristãos) que se
têm instalado entre nós”37
.
O pluralismo religioso tem diante de si o sujeito entendido como gerador de autonomia
e de liberdade. A consciência do sujeito passa a ser o critério fundamental para a
constituição do universo religioso e a sua movimentação na esfera religiosa. O universo
religioso tem uma nova referência: o indivíduo. Antes, a referência última era a
tradição, o passado. Agora, privilegia-se o emergente, a experiência do momento e o
indivíduo nessa experiência.
Pelo que se apresenta acima, a religião tem, diante de si, o desafio da passagem de um
modelo de autonomia individual subjetivo para um modelo de autonomia individual inter-
subjetivo, em que se opõem dois modelos de ética: a de virtudes (religião na tradição
clássica) e a do dever-ser (religião moderna). Como conciliar uma ética comunitária de
conteúdos, própria do tradição clássica, com uma ética universalista formal, da tradição
moderna?
2. Religião e ética
O Documento de Aparecida vive entre duas éticas: uma que a religião clássica associa à
ética de virtudes; outra a que a religião moderna associa à ética do dever-ser. Subjaz ao
Documento, conforme foi apresentado acima, essa oposição ética: uma ética da virtude
fundada numa religião de tradição comunitária aristotélica e uma ética do dever-ser
kantiana, de viés legalista proibitivo, fundamentada na religião universalista abstrata.
2.1. Ética da virtude e religião de tradição comunitária
36
Cf. DA, 46.
16
Os defensores de uma ética de virtudes afirmam o seguinte: o kantismo e o utilitarismo
são fundados em princípios universais formais, que estão destituídos de conteúdo moral.
Um kantiano poderia propor uma moral formalmente rigorosa e abster-se de promover o
bem comum; um utilitarista poderia torturar um inocente para maximizar o bem-estar da
maioria.
A ética de virtudes propõe uma maior atenção às circunstâncias particulares dos agentes
e à formação de seu caráter, pelo cultivo dos bons hábitos que formam as pessoas
virtuosas. Os teóricos da ética de virtudes criticam as tendências éticas de estatuir
princípios universais de ação. É preciso compreender as qualidades morais dos agentes
e o seu agir ético.
Um dos defensores da ética de virtudes é o filósofo escocês, naturalizado americano,
Alasdair MacIntyre. Em Depois da virtude, ele afirma que o projeto moderno de
justificação da moralidade fracassou, devido à justificação das virtudes a uma prévia
justificação de princípios. Para o autor, é preciso inverter esse procedimento: primeiro
as virtudes, para então poder compreender a finalidade e o valor das regras morais. Essa
é a melhor forma de justificar a moralidade. O modelo mais próximo desse
procedimento se encontra em Aristóteles.
A hipótese de MacIntyre é a seguinte: a linguagem moral está em desordem, porque
faltam os contextos de uso que antes forneciam o seu significado. Usam-se expressões
morais, porém, não se compreende o sentido teórico-prático. Nem a filosofia analítica e
nem a fenomenologia podem restabelecer a compreensão da linguagem moral.
Há críticas à proposta de atualização da ética de virtudes. Afirma-se que a análise de
MacIntyre é decadentista, isto é, interpreta o passado grego como uma época de ouro,
ao passo que a modernidade é vista como decadente. No entanto, a ética moderna tem
valores, como, por exemplo, a autonomia pessoal. Por isso, a ética de virtudes pode
assumir uma postura anti-iluminista, desprezando a razão e enaltecendo a compreensão
tradicionalista e autoritária da moralidade. O desafio é abandonar a nostalgia e enfrentar
os desafios globais.
37
Cf. DA, 99g.
17
Quais virtudes devem ser assumidas? E quais são os modelos que servem de guia? Para
Homero, virtude é excelência. Segundo Platão, as virtudes são a sabedoria, a
temperança, a coragem e a justiça; a análise de Aristóteles enfoca, ao invés do guerreiro,
o cidadão ateniense. Na tradição cristã, estão no centro as virtudes da fé, da esperança e
da caridade. Para Hume e Smith, a virtude central é a simpatia. Nisso, como percebemos
surgem diferenças marcantes entre as diversas tradições.
Qual modelo serviria de guia quanto ao critério da correção moral das ações? Madre
Teresa de Calcutá ou Buda? Por que esses referenciais, e não outros38
?
2.2. A ética do dever-ser e a religião de tradição universalista
Como determinar as regras do que é certo ou errado? Immanuel Kant responde que é
moralmente correta a ação que está de acordo com determinadas regras. Kant não
propõe uma lista de regras com conteúdo previamente determinado, como é caso dos
mandamentos religiosos, mas propõe uma regra universal para corrigir a norma que
orienta nossa ação, a saber, o imperativo categórico. As características principais da
ética do dever encontram-se na obra Fundamentação da metafísica dos costumes
(1785). Ali, idéia central é que a ação deve ser realizada apenas conforme o dever e por
dever, como respeito à lei, e não por interesses egoístas ou motivações empíricas.
Afirma-se que a moral kantiana é puramente formal, porque apresenta apenas
exigências mínimas, desprovidas de substância real. Ou seja, trata-se de uma moral
mínima, que estipula deveres gerais e estabelece mais o que não se deve fazer do que
recomenda a prática de ações virtuosas: “Não devemos quebrar promessas”, “não
devemos mentir”, “não devemos cometer suicídio”39
, etc.
Em meio à disputa entre essas duas teorias éticas, há a ética utilitarista. Não vamos
tratar, aqui, desta corrente ética, que se impõe com muita força na solução dos dilemas
éticos atuais. De fato, a experiência religiosa ainda é determinada pelas duas teorias
mencionadas, porém, percebe-se que, em meio ao pluralismo religioso, há uma
tendência utilitarista, na medida que os indivíduos buscam a religião que traga mais
38
Cf. Maria de Lurdes Borges et alii, Ética, p. 57s.
18
bem-estar para sua vida, ou seja, produza resultados efetivos para o sentido de viver. O
utilitarismo conserva o senso de realidade, simplesmente identifica na felicidade o
maior bem atingível e deduz o que devemos fazer para esse fim. Não se preocupa em
criar uma norma ou regra moral que tenhamos que seguir. As regras morais apenas são
meios para atingir o bem maior.
O Papa Bento XVI não desconhece esse dilema ético da experiência religiosa,
sobretudo, uma ética que apenas aponta para o que não deve ser feito: “O cristianismo
não é um conjunto de proibições, mas uma opção positiva. E é muito importante que
evidenciemos isso novamente, porque essa consciência, hoje, desapareceu quase que
completamente”40
.
O Documento de Aparecida fala em apoiar uma ética política: “Apoiar a participação da
sociedade civil para a re-orientação e conseqüente reabilitação ética da política”41
. E
acrescenta o desafio de formar para uma ética cristã: “Formar na ética cristã que
estabelece como desafio a conquista do bem comum a criação de oportunidades para
todos”42
. Esta ética cristã, segundo o Documento, tem como conteúdo o bem comum e a
criação de oportunidades. Assim como a expressão “reabilitação ética da política” é o
indicativo da virtude ética no exercício político, o que denotaria uma tradição
comunitária. Se, de um lado, temos o acento na tradição da ética de virtudes, de outro, o
discurso subjacente do Documento é uma ética do dever-ser em que são indicados
imperativos universais a que o agir do fiel deve adequar a sua ação. Ou seja, o
universalismo salvífico e o seu compromisso moral levam ao entendimento de que a
Igreja é um espaço religioso com pluralismo ético, porque as éticas corresponderão às
várias experiências religiosas, em conformidade com a tradição clássica, moderna e
globalizada em que o fiel está inserido. Ao distinguir o que é essencial e secundário nas
práticas éticas, os fiéis elaboram uma concepção da Igreja como um ente social, em que
há lugar para a doutrina e para padrões plurais de comportamento, bem como uma
concepção da Bíblia e da doutrina como literatura religiosa, útil para a devoção pessoal
e o uso litúrgico, enquanto referencias de sentido.
39
Id. ibid., p. 15s. 40
Cf. Joseph Ratzinger, Papa Bento XVI, entrevista concedida à televisão alemã, em 13.08.2006. 41
Cf. DA, 406a.
19
Diante do quadro descrito acima, em que o Documento de Aparecida constata ao menos
três experiências religiosas – clássica, moderna e globalizada – convivendo
simultaneamente, que correspondem a práticas éticas diferentes, torna-se evidente que o
fenômeno do pluralismo religioso e ético perpassa o tecido cultural da sociedade latino-
americana e caribenha. O Documento propõe uma resposta metodológica, segundo o
nosso modo de análise, para poder assumir os desafios da missão, conforme será
exposto abaixo.
3. Religião e método
A tradição do modelo de religião clássica e moderna é centrada na missão, ou seja, no
ato de levar e expandir a doutrina “ad gentes”, ou seja, implantar a cristandade. Pode-se
dizer que o método, aqui, é doutrinador. Ora, o Documento de Aparecida apresenta uma
reviravolta metodológica importante, que se detecta na expressão “discípulo
missionário” ou “discípula missionária”. Todo o Documento está estruturado a partir
desse núcleo metodológico do discipulado missionário.
3.1. Discípulo missionário ou uma pedagogia da aprendência
Qual é o pressuposto do método do “discípulo missionário” numa sociedade globalizada
e plural? Trata-se da compaixão e da compreensão misericordiosa, que se realiza através
do diálogo.
O método do discipulado missionário implica uma pedagogia do aprender a crer. Todos
os seres vivos são sistemas aprendentes. Mantêm-se vivos e crescem em vitalidade, à
medida que continuam aprendendo. Existe uma unidade básica entre processos vitais e
processos cognitivos, e existe um nexo profundo entre dinâmica da vida e dinâmica do
prazer. Por isso, a prazerosidade é um aspecto importante da aprendizagem. O objetivo
da formação do discipulado é criar a experiência da paixão de aprender, ou seja, da
paixão de crer. Pode-se dizer que religião é criar a experiência da paixão de aprender a
crer.
42
Cf. DA, 407b.
20
Vejamos, finalmente, algumas características e alguns desafios dessa pedagogia do
discipulado da aprendência:
(i) Uma pedagogia capaz de criar o gosto de aprender a crer que dure a vida inteira: a
religião começa com a experiência de fé, isto é, com a capacidade de a pessoa ficar
confiante diante do mistério. Por isso, a pedagogia do discipulado promove e
incrementa a fé e o gosto vital de estar aprendendo a crer. Ela desperta a pessoa para
aprender a crer a vida inteira. Aprender a arte de crer é muito mais do que acumular
doutrinas prontas. Hoje, o aprender ao longo da vida inteira tornou-se um dos lemas da
sociedade do conhecimento.
(ii) De uma pedagogia do repasse de informações e saberes, passa-se para uma
pedagogia da construção de conhecimentos: hoje, a educação não pode reduzir-se
apenas a transmitir, mecanicamente, conhecimentos e saberes prontos. Educar a fé
significa criar experiências de aprendizagem e não transmitir coisas já prontas, saberes
já definidos. Ninguém aprende se não procura criar junto com aquele que ensina o
conhecimento. Aprender significa construir experiências visando à aprendizagem do
discipulado.
(iii) Uma pedagogia da iniciativa e da solidariedade: a sociedade aprendente está
inserida numa economia de mercado excludente. Nesse contexto, crer implica uma
missão social emancipatória. A pedagogia do discipulado educa para saber tomar
iniciativa, sendo esta uma condição de possibilidade para a solidariedade. A
solidariedade não funciona onde falta a criatividade e a disposição para tomar
iniciativas. Ora, o ato de crer é, eminentemente, um ato de iniciativa para criar sempre
novas formas de interpretar o mundo. Ele “projeta para a missão de formar discípulos
missionários para o serviço ao mundo. Habilita a propor projetos e estilos de vida cristã
atraentes, como intervenções orgânicas e de colaboração fraterna com todos os
membros da comunidade”43
.
(iv) Uma pedagogia que transforme a religião num espaço aprendente, onde se crie um
ambiente e uma experiência de aprendizagem: transformar a Igreja em ecologia
43
Cf. DA, 280d.
21
cognitiva, ou seja, um espaço de construção do gosto de estar aprendendo a vida e o
mundo, enfim, aprendendo caminhos e acessos. Um dos objetivos da religião é fazer
experiências de aprendizagem de crer.
(v) Uma pedagogia que integre as seguintes dimensões: unidade entre processos com
dimensão humano-comunitários44
, processos com dimensão intelectual e espiritual45
e
organizações eclesiais aprendentes com uma dimensão missionária46
. Enfim, pensa-se
uma Igreja como organização aprendente, que incentive nos crentes a auto-estima e a
auto-confiança, estimule a capacidade de tomar iniciativas, ensine a inovar (pedagogia
da criatividade), desperte aspirações, motivações e aumente os níveis de expectativa, ou
seja, opere uma “pedagogia da esperança”47
.
Assim, o método do discipulado é constituído por vários momentos que formam uma
unidade de aprendizagem da fé: “encontro-conversão-discipulado-comunhão-missão”48
.
3.2. Aprendendo a crer entre dúvida e crença
O método do discípulo missionário é uma experiência que vive na contradição entre a
dúvida e a crença. O Cardeal Martini escreveu o artigo Dúvida e crença, em que
expressa essa aprendizagem da fé. Ele começa dizendo assim: “solicitados pelas
palavras do Cântico “procurei Deus e não o encontrei”, coloquemo-nos o problema do
ateísmo, ou melhor, da ignorância sobre Deus”. A atitude de ignorância, ou seja, da
docta ignorantia, permite afirmar: “Nenhum de nós está longe de tal experiência: existe
em nós um ateu potencial que grita e sussurra cada dia suas dificuldades em crer”49
.
Quando se fala de “crer em Deus”, admite-se que há, no conhecimento de Deus, certo
ato de confiança e de abandono, que comporta um aprender a confiar.
Ora, são diversos os modos de aprender a crer. A tradição ocidental privilegia a
compreensão de Deus com uma definição, por exemplo, “sumo bem”, “ser subsistente”,
44
“Tende a acompanhar processos de formação que levem a pessoa a assumir a própria história e a curá-
la, com o objetivo de se tornar capaz de viver como cristão em um mundo plural, com equilíbrio, fortaleza,
serenidade e liberdade interior. Trata-se de desenvolver personalidades que amadureçam em contato com a
realidade e abertas ao Mistério”(DA, 280,a). 45
Cf. DA, 280b-c. 46
Cf. DA, 280d). 47
Cf. Hassmann, Competência e sensibilidade solidária. Educar para a esperança, p. 134s. 48
Cf. DA, 278a-e. 49
Cf. Cardeal Martini, Dúvida e crença, Acessado em 17.11.07: www.unisinos.br/ihu.
22
“ser perfeitíssimo”, etc. A tradição judaica, que se encontra na Bíblia, não conhece
nomes abstratos de Deus, mas enumera as suas obras. A Bíblia diz Deus,
primordialmente, com verbos, não com substantivos. Esses verbos referem-se às obras
com que Deus visitou o seu povo. São verbos como criar, prometer, escolher, eleger,
guiar, nutrir, etc. Referem-se ao que Deus fez pelo seu povo. Há, portanto, uma
experiência de aprendizagem: aquela de terem sido ajudados em circunstâncias difíceis.
A razão ocidental, continua o Cardeal Martini, também percorre um itinerário de
aprendizagem da fé:
“O mistério cristão, a natureza de Deus nos aparece gradualmente como envolta por uma luz. É uma
realidade que se prolonga para o outro, na qual é mais forte a relação e o dom de si, do que o possuir-se a
si mesmo. Por isso, Jesus sobre a cruz nos revela de maneira decisiva o ser de Deus como ser para outros:
é o ser Daquele que se doa e perdoa”50
.
As tradições religiosas têm uma dimensão de aprendizagem no ato de crer, ou seja,
nelas trata-se de um discipulado que sempre precisa ser reiventado. Nesse sentido, o
Documento de Aparecida aponta para o método correto e diagnostica com lucidez o
caminho a ser percorrido, para compreender as contradições, no sentido de
possibilidades e limites, do pluralismo ético-religioso dos povos latino-americanos e
caribenhos.
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americano e do Caribe. Brasília – São Paulo: Edições CNBB – Paulus – Paulinas,
2007.
50
Cf. Cardeal Martini, Dúvida e crença, acessado em 17.11.07: www.unisinos.br/ihu.
23
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cedeu o capítulo “Educação, autonomia e direito”, para a pesquisa de base deste
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