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ETNOMAPEAMENTO DE COMUNIDADES TRADICIONAIS ATRAVÉS DAS PERCEPÇÕES DO ESPAÇO VIVIDO: A ECO-ALFABETIZAÇÃO E A ALFABETIZAÇÃO CARTOGRÁFICA COMO FORMAS ALTERNATIVAS DE ENSINO-APRENDIZAGEM Jéssica de Pontes Alves [email protected] Tauã Souza e Silva [email protected] Resumo O trabalho tem como objetivo mapear as comunidades em que o programa Geografia da Produção Alimentar atua para que a comunicação gráfica facilite, para a população, o processo de identificação do território. O reconhecimento de seu espaço de vida será mediado pela representação espacial e, através da materialização deste território, poderá reivindicá-lo frente às questões que o permeiam seu cotidiano. Sendo o foco a educação, as ações do projeto valorizam metodologias lúdico-participativas, baseadas no contexto em que o ensino é trabalhado dentro dessas comunidades tradicionais. Através deste projeto pudemos analisar e viver profundamente a dinâmica homem-meio, em que questões envolvidas com o território ditam a vida destas comunidades e estão intimamente ligadas à educação destes povos, percebendo sua prática como instrumento de poder. Palavras-chave: Etnomapeamento. Território. Ensino-aprendizagem. Ecoalfabetização. Alfabetização cartográfica. Introdução O projeto surgiu da vontade de levar às populações tradicionais do interior do município de Oriximiná, localizadas nos rios Trombetas e Mapuera, mais especificamente os remanescentes de quilombolas da Associação Mãe Domingas (comunidades do Abuí, Paraná do Abuí, Sagrado Coração de Jesus, Tapagem e Mãe Cué) e do lago do Erepecu (comunidades de Santa Maria e Nova Esperança) e indígenas WaiWai (aldeias Kwanamari e Takará) 1 , meios de instrumentalizá-los com um recurso político básico, necessário para seu enfrentamento perante a sociedade burguesa. Trata-se de demonstrar que a leitura- escrita é o instrumento político primordial para criticar, negociar e se impor perante as

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ETNOMAPEAMENTO DE COMUNIDADES TRADICIONAIS ATRAVÉS DAS PERCEPÇÕES DO ESPAÇO VIVIDO: A ECO-ALFABETIZAÇÃO E A

ALFABETIZAÇÃO CARTOGRÁFICA COMO FORMAS ALTERNATIVAS DE ENSINO-APRENDIZAGEM

Jéssica de Pontes Alves [email protected]

Tauã Souza e Silva [email protected]

Resumo

O trabalho tem como objetivo mapear as comunidades em que o programa Geografia da Produção Alimentar atua para que a comunicação gráfica facilite, para a população, o processo de identificação do território. O reconhecimento de seu espaço de vida será mediado pela representação espacial e, através da materialização deste território, poderá reivindicá-lo frente às questões que o permeiam seu cotidiano. Sendo o foco a educação, as ações do projeto valorizam metodologias lúdico-participativas, baseadas no contexto em que o ensino é trabalhado dentro dessas comunidades tradicionais. Através deste projeto pudemos analisar e viver profundamente a dinâmica homem-meio, em que questões envolvidas com o território ditam a vida destas comunidades e estão intimamente ligadas à educação destes povos, percebendo sua prática como instrumento de poder.

Palavras-chave: Etnomapeamento. Território. Ensino-aprendizagem. Ecoalfabetização. Alfabetização cartográfica.

Introdução

O projeto surgiu da vontade de levar às populações tradicionais do interior do município de

Oriximiná, localizadas nos rios Trombetas e Mapuera, mais especificamente os

remanescentes de quilombolas da Associação Mãe Domingas (comunidades do Abuí,

Paraná do Abuí, Sagrado Coração de Jesus, Tapagem e Mãe Cué) e do lago do Erepecu

(comunidades de Santa Maria e Nova Esperança) e indígenas WaiWai (aldeias Kwanamari

e Takará)1, meios de instrumentalizá-los com um recurso político básico, necessário para

seu enfrentamento perante a sociedade burguesa. Trata-se de demonstrar que a leitura-

escrita é o instrumento político primordial para criticar, negociar e se impor perante as

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demandas da sociedade que os circunda, voraz em subjugar seus territórios e utilizar suas

terras para fins que não os beneficiam.

Sabemos que a política estabelecida pela sociedade burguesa está baseada em um conjunto

de leis discriminadas na Constituição 1988. Porém, conhecendo a realidade dos povos

tradicionais, entendemos que sua dinâmica político-social é estabelecida por seus modos de

vida, pela cultura e pelo que entendem ser necessário e precioso. Logo, a visão do mundo

burguês não condiz com a visão das populações tradicionais sobre a própria

sociedade/comunidade, que, para transmitir seus valores, leis e regras, cria e recria seus

meios de comunicação através de codificações e simbologias decorrentes do cotidiano

social e do meio natural no qual estão inseridos.

O que se coloca é que as populações tradicionais criam suas leis e determinam suas regras

intrinsecamente ao meio sócio-natural em que vivem, pois, se sentem donas do solo que

pisam, já que são elas que fazem este solo ser produtivo (alimentação), casa (morada), local

de fraternidade (comunidade), trabalho (necessidade) e ser, também, espaço de lazer

(cultura e arte - expansão da mente). Por que, então, alguma liderança exterior a este

território determinará o que se deve ou não fazer, ou, o que é ou não correto naquele espaço

do seu âmbito de vida? Deve-se lembrar, com efeito, que essas referidas leis e regras,

criadas no interior dessas comunidades, se constroem por processos conflituosos. É preciso

refutar a concepção de que todos os conflitos referentes a comunidades tradicionais são

impostos, implantados pela sociedade burguesa. Não queremos reforçar a ideia do bom-

selvagem, pelo contrário, queremos desconstruí-la a partir da assunção de que estas

comunidades são (re)produzidas por seres humanos, portanto, seres sociais que, como tal,

refletem na sua sociedade seus conflitos internos, criando, então, conflitos sociais. Para

exemplificar, recorremos ao que percebemos como uma desigualdade social marcante nas

comunidades quilombolas: a posse da televisão! É clara a importância que as famílias com

televisão ganham para a vida social. Em dia de futebol isto é bem explícito. Aqueles que

não têm ficam a espera (muitas vezes mal sucedida, como vivenciamos) dos donos da casa,

para saciar a vontade de ver o futebol. Além da desigualdade em termos de lazer, instala-se

também a desigualdade em termos de renda/gastos, pois, aqueles que possuem televisão

necessitam/querem utilizar o combustível para alimentar o gerador de luz, enquanto os

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outros se preocupam em alimentar a rabeta (motor de canoas), para se locomover. Para

finalizar esta problemática, pensemos ainda na desigualdade brutal de informação que se

instala. Se antes os quilombos estavam longe demais para terem uma influência violenta, a

partir da compra e manutenção da televisão (que, deixemos claro, são escolhas), os

quilombolas se aproximam, entram num imaginário coletivo que, a princípio, não diz

respeito a sua realidade. Esta escolha em ter e assistir novelas, como pudemos ver, é um

elemento importante para refutarmos a concepção apresentada de que os conflitos são

criados pela sociedade burguesa e implantados nas comunidades tradicionais. No caso da

televisão, este contato, esta influência, se dá por espontânea vontade daqueles que podem

adquirir um aparelho e mantê-lo. Podemos ainda lembrar dos conflitos políticos que

observamos, como o que está relacionado às diferentes correntes da ARQMO (Associação

de Remanescentes de Quilombos do Município de Oriximiná) e que divide os quilombolas,

ou ainda, lembrar que a aldeia Kwanamari, onde trabalhamos por 15 dias, foi iniciada

devido a desentendimentos do cacique com outros índios da aldeia Mapuera. Enfim, não

cabe aqui evidenciar todos os conflitos internos que observamos nas comunidades, mas esta

nuance não pode ser ignorada se quisermos desconstruir a concepção do bom selvagem, a

concepção de que os problemas destas comunidades são todos vinculados à sociedade

burguesa que as circunda.

As populações tradicionais, quando soberanas culturalmente em seu próprio território,

criam tecnologia diretamente da natureza e, neste sentido, são independentes de redes e

divisões de trabalho, sendo auto-sustentáveis em termos de subsistência. Diferente da

sociedade burguesa, que se abastece a partir, necessariamente, de redes e, se divide

abertamente em “setores da economia”. Isso é uma demonstração da distinção da

organização social que incide neste debate sobre a leitura-escrita. A necessária

padronização das formas de comunicação urgente à sociedade burguesa para que locais

remotos passem a constituir esta rede e seus setores, não se confere nas populações

tradicionais pelo fato delas não necessitarem imediatamente ser absorvidas pela dinâmica

da primeira. Contudo, de acordo com o crescimento da demanda por novas terras e

territórios, advinda das empresas e do Estado, estas duas formas de se entender como

sociedade/comunidade vão se conflitando e, cada vez mais, se confrontando. É para este

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confronto que queremos instrumentalizar as comunidades tradicionais. Confrontos

jurídicos, legais, normativos. É aí, portanto, que está a urgência em dominar a leitura-

escrita. Diga-se, o domínio deste instrumento político é a tarefa básica para estas

populações, contudo é apenas o elemento sine qua non a esta empreitada que, entendemos,

eles devem seguir cada vez mais autônomos.

A mundialização de informações e do consumo torna os espaços mais próximos e as leis e

regras que regem o sistema vigente continuam fazendo-se valer sem considerar a

diversidade de tradições de cada grupamento humano, se sobrepondo sobre estas,

interferindo em suas dinâmicas, determinando seus métodos comunitários e ditando seus

caminhos. Habilidades como a leitura, escrita, cálculo, domínio de novas tecnologias, são

exigidas para resolução de demandas de fora que acabam por intervir nas vidas destas

populações tais como: intervenção de órgãos ambientais em áreas tituladas, formalização de

processos de titulação/demarcação, acordos empresariais com intenção exploratória em

território tradicional, contratação de trabalhadores para empresas próximas às áreas com

propostas pouco esclarecedoras, entre muitos outros... Para todos estes é de fundamental

importância ter certas aptidões do "homem branco", pois as relações se firmam através de

documentos, com a exigência de assinaturas, comprovando a ciência do contratado pelo que

está descrito no papel (vale aqui fazer um pausa para evidenciar um fato marcante na

relação sociedade burguesa-sociedade indígena: para os Waiwai, não há a expressão

“homem branco”, para se referir a nós, eles utilizam a palavra karayoá, que significa “não-

índio”. Porque será que para nós, aqueles que não são índios são “homens brancos”? é de se

pensar...). Assumindo uma visão atual/realista, torna-se claro que protegê-las do contato

não é a melhor administração política que se poder haver, pois, o Estado e diversas

empresas não pensam desta maneira. Assim, devem-se conjugar suas tradições com

demandas atuais, partindo de ensinamentos e ferramentas que semeiem a base para uma

autonomia futura a partir destes preceitos: instrumentos de reivindicação, defesa e

transmissão de seus saberes e culturas. Tudo a partir de uma educação horizontal. Se

apenas considerarmos a dimensão cultural histórica das populações tradicionais e não as

instrumentalizarmos para que continuem a viver em seus padrões de forma autônoma, as

deixamos em posição a ser brevemente corrompida, submetida à ação de grupos que

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mediem sua relação com a sociedade circundante, como ONGs e ações assistencialistas de

todos os tipos.

Se colocarmos a valorização da cultura tradicional dos "povos da floresta" como foco

central para atingir nosso objetivo final e também como direcionamento para se chegar a

todos os outros, temos que aliar aspectos geográficos (econômicos, sociais, e naturais) aos

antropológicos, num diálogo que permita analisar todas as questões que embasam a

dinâmica social do homem com a natureza em sua essência. Segundo Sauer (1931, p. 623

apud Lobato 2010, p. 25), para trabalhar com comunidades tradicionais, o trabalho consiste

em:

(...) estabelecer quais são as etapas normais de seu desenvolvimento, em investigar as fases de apogeu e de decadência e, desta forma, alcançar um conhecimento mais preciso da relação da cultura e dos recursos que são postos à sua disposição.

Junto a esta necessidade de adequar seus modos de vida às demandas que estão sofrendo

estas populações, surge em paralelo a necessidade de se pensar a metodologia de

aproximação e, uma vez definida – no caso, atuação nas escolas – vêm a necessidade de se

pensar qual metodologia pedagógica usarmos para que este quadro de adequação para

autonomia, com o cuidado de sabermos que o nosso intuito é libertá-los e não aprisioná-los

com a dependência de nossas intervenções periódicas.

Desenvolvimento

Para tal, este projeto de educação foi elaborado de acordo com as necessidades percebidas

nas vivências feitas anteriormente com os habitantes das comunidades. As idéias foram

colocadas antes da iniciação prática do projeto e, ao longo do tempo, foram se moldando de

acordo com o que se mostrava relevante e necessário.

Inicialmente, foram desenvolvidas atividades de educação ambiental nas escolas das

comunidades que o programa Geografia da Produção Alimentar atende. O objetivo era

fazer com que os alunos, através de oficinas lúdicas e participativas, se aproximassem das

práticas ancestrais, sobretudo da agricultura; entendessem o desenvolvimento de vegetais e

plantas para facilitar o manejo desta agricultura; olhassem os produtos vindos da cidade

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como de serventia mesmo após seu uso, refletindo sobre o lixo, com ensinamentos de

métodos ecologicamente corretos para seu destino, entre outros. Porém, a realidade

apresentada nos chamou atenção para outro aspecto e nos fez pensar em um projeto que

atendesse as demandas de alfabetização, letramento e fomento à leitura.

Todavia, como já explicitado, o ângulo de visão das populações tradicionais é diferente do

homem burguês e, criar ações inspiradas no modelo educacional antigo, do aprendizado

passivo dos fatos e da repetição descontextualizada, não seria coerente. Tão pouco

eficiente.

Procedimentos Metodológicos

Em consonância com esta perspectiva, a Ecoalfabetização foi pensada como método,

juntamente a proposta pedagógica descrita por Paulo Freire sobretudo em seu Pedagogia do

Oprimido (1979), da Troca de saberes, pois são metodologias vizinhas; se complementam

ao longo do trabalho proposto.

A educação deve ser o trabalho através do qual as pessoas vão se assumindo como sujeitos curiosos, indagadores, como sujeitos em processo permanente de busca, de descoberta da razão de ser das coisas. (...) É necessário entender como esses grupos de trabalhadores fazem sua leitura de mundo, entender sua 'cultura de resistência', entender o sentido de suas festas, ver a riqueza de sua fala e de seus símbolos.2

Paulo Freire diz que o processo educativo vai se delineando a partir do momento que o

sujeito vai tomando consciência de sua própria bagagem de aprendizados, adquirida com a

cultura a que estava inserido. Estes aprendizados vão apresentando espaços, lacunas que

suscitam dúvidas, curiosidades. Assim as interrogações florescem espontaneamente, em

busca de novos saberes, numa construção contínua de aprendizados, a partir de um fluxo

duplo de conhecimentos e saberes: do professor para o aluno, do aluno para o professor.

Esta prerrogativa que assume o professor também como receptáculo de conhecimentos e o

aluno também como comunicante de conhecimento, se dá dialogicamente, criando novos

atores dentro de sala: o educador-educando (ex “professor”) e o educando-educador (ex

“aluno”, sem luz). O que pode parecer apenas um jogo de palavras, quando assumido na

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práxis, se torna um modo diferenciado de lidar com o espaço da escola. Confirmamos isto

em nossa experiência, pois, quando fazíamos questão de nos apresentar não como

“professores”, mas como orientadores de atividades, dispostos a aprender juntamente com

ensinar, tivemos maior confiança daqueles que participavam das atividades para nos

mostrar seu conhecimento sobre seu território e paisagem. Ficou claro que não era uma

relação hierarquizada, até porque, fora da escola, nosso cotidiano dependia enormemente

daqueles que nos ouviam em sala. Muitas vezes, o peixe, a caça, a farinha, a paçoca e as

frutas que comíamos, vinham destes mesmos “alunos”. Como dizer que estamos ensinando

alguma coisa na escola, se não admitimos também que dependemos demais de aprender

com eles fora dela, para simplesmente sobreviver? E, se nossa intenção é conjugar seus

saberes com as demandas que a sociedade burguesa coloca hoje, devemos conjugar estes

saberes o tempo todo, dentro e fora da escola. Desta maneira, nossa estadia se torna um

contínuo exercício de educação, dentro desta perspectiva da Troca de saberes. Caso

queiramos comparar esta troca em termos de vetores, podemos dizer que: na escola nosso

vetor é proeminente, ensinamos mais que aprendemos pois somos educadores-educandos;

fora dela, o vetor das populações, dos comunitários é maior, nós aprendemos mais que

ensinamos. Porém, vale lembrar, os exemplos que usamos em sala, na sua maioria,

dependem do conhecimento do território deles, portanto, é resultado de um acúmulo de

conhecimentos que tivemos ao longo da nossa experiência total, dentro e fora da escola.

Nosso próprio deslocamento até as escolas depende dos comunitários (sobretudo nos

quilombos, uma vez que os índios são aldeados e a escola fica mais acessível), pois o

caminho se faz, por vezes, pela floresta. Estes argumentos denotam que esta quantificação

vetorial de influência não se verifica como coerente, ressaltando novamente a dialogicidade

intrínseca desta experiência. Pesquisador e pesquisado colaboram mutuamente em igual

relevância. Esta interpretação do nosso papel dentro deste projeto foi de fundamental

importância para nosso crescimento pessoal, intelectual e laboral.

Considerando o amplo e profundo conhecimento sobre o meio natural que as populações

amazônidas adquiriram ao longo do tempo, a Ecoalfabetização é uma proposta que foi

analisada como viável e interna a pedagogia que acreditamos. Nela, o conhecimento

adquirido na decodificação de letras, números e outros símbolos, são trabalhados a partir do

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modelo dos ecossistemas da natureza.

(...) para entendermos os princípios organizacionais que os ecossistemas desenvolveram ao longo de milhões de anos, temos que conhecer os princípios básicos da ecologia – a linguagem da natureza.3

As diferentes formas de linguagem que estas populações utilizam são carregadas de

inspirações advindas de observações da natureza durante muitos anos, assim a

Ecoalfabetização se torna um método facilitador de aprendizagem, adequada a cultura e à

história desses povos, que têm, no empirismo, o principal difusor de conhecimentos.

A ecoalfabetização acredita no mutualismo entre o conhecimento natural e o conhecimento

científico. Acredita que a sala de aula ao ar livre permite ao aluno se tornar mais íntimo à

aprendizagem, já que está acostumado com aquele ambiente (muitas vezes onde

acontecimentos importantes ocorrem). Parte da assunção de que o ambiente favorece o

saber pelo uso dos sentidos ao analisá-lo (tato, visão, olfato...) e pela capacidade de

raciocínio/racionalidade que se torna possível com uso destes sentidos. Quando somente

enquadradas na sala de aula, as atividades demandam uma capacidade de abstração maior e,

consequentemente, de significação menor.

A atenção aos detalhes e às peculiaridades de uma população tradicional é um dos critérios

por nós avaliados para que haja coerência e eficiência duradoura da nossa proposta de

trabalho.

Atividades realizadas e percepções acerca do trabalho

Levamos diversas oficinas criadas por nós a fim de contemplar as duas metodologias

descritas acima. Todas permeavam a relação homem/natureza e seriam aplicadas tanto nos

quilombos do Alto Trombetas quanto nas aldeias Waiwai do rio Mapuera. As oficinas

objetivavam, num primeiro momento, alfabetizar, letrar e fomentar a leitura. Porém, logo

de início, a partir do segundo dia de oficina, pensamos que seria ingenuidade da nossa parte

achar que íamos ter nosso objetivo atingido em tão pouco tempo – afinal não ficamos mais

que uma semana em cada comunidade quilombola. Então, decidimos retirar do projeto a

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alfabetização e o letramento, focando, portanto, no fomento a leitura. Em verdade,

fomentando a leitura, estaríamos colaborando indiretamente com o letramento e a

alfabetização, uma vez que é lendo que se aprende a escrever. Para seguirmos, separamos

aquelas oficinas que tinham este foco específico; literatura brasileira e elementos naturais

como espécies de árvores da região foram utilizados. Tínhamos então, o objetivo: fomentar

a leitura. Porém, a contextualização desta demanda apresentada por nós era extremamente

necessária, visto que tanto índios como quilombolas têm suas tradições passadas pela

cultura oral. Para quê, afinal, estaríamos ali incentivando seu contato com a leitura-escrita?

Esta era uma justificativa que precisávamos explicitar a todo tempo, para legitimar tanto

nossa intenção, quanto nossa perspectiva de trocar saberes. Criamos uma oficina chamada

“Palavra-puxa-palavra” na qual discutíamos a acepção que tinham da palavra território e

refletíamos sobre o momento atual, em que empresas e o Estado estão cada vez mais

pressionando o território e as terras daquelas comunidades. Esta oficina nos trouxe um

aprendizado enorme no que se trata de perceber como eles lidam com seu território, desde a

escala individual até as a regional (amazônica). A partir desta discussão, enriquecida de

acordo com o avanço da faixa etária das turmas, colocávamos que a leitura-escrita é o

instrumento básico para a legalidade jurídica de um território e que, estando eles dentro de

outros territórios (regional, estadual, nacional etc.), necessitavam dominar cada vez mais

este instrumento para lidar com as adversidades legais e sócio-culturais que os quilombos

estavam sujeitos.

Outra oficina, “Lendo a Terra”, levou o desafio de demonstrar como a natureza é rica em

linguagem, e como o homem é versátil para decifrá-las. Propúnhamos que os estudantes

discorressem sobre as linguagens que o homem utiliza (leitura-escrita, sonora, cromática,

corporal etc.) e comparassem com a natureza, destacando o sentido que utilizamos para

decifrar as mensagens desta. Dessa maneira, ficava claro como o homem é bem adaptado a

natureza e questionávamos então, a distância que se adquiria com as linguagens da natureza

na vivência urbana. O homem urbano, representados por nós mesmo ali, reconhecia a

perspicácia do homem rural sobre a natureza. As inúmeras maneiras que eles nos

apresentaram de ler a natureza e que nós desconhecíamos, corrobora esta afirmação.

Esta segunda oficina descrita, extremamente participativa, assim como a primeira (nas

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quais, sem o conhecimento que eles apresentavam, não seria possível conceber a proposta),

continha uma malícia: apresentar a natureza como uma comunicadora, detentora de

linguagem, portanto passível de ser lida. Isto porque, para fomentar a leitura em

comunidades de tracionais, nas quais prevalece a oralidade, pensamos que não podemos

falar de leitura-escrita sem primeiro refletirmos sobre o que é a leitura, e sua importância

para o ser humano. Leitura aí percebida como percepção e decodificação dos elementos

presentes no espaço/sociedade. A partir desta aproximação com a importância da leitura,

sobretudo afirmando que eles já fazem a leitura das linguagens naturais, é que podíamos

demonstrar que a linguagem basilar da sociedade burguesa é a leitura-escrita e portanto,

passível de entendimento, de ser lida.

Estas duas oficinas foram a base para as outras que propomos. Contudo, para a ida aos

índios do Mapuera, tivemos um problema de ordem cultural interessante a resolver: a

língua!

A nossa ânsia em instrumentalizar as populações tradicionais com a leitura-escrita,

justificando-se com a necessidade de afirmação perante a sociedade burguesa, como já

explicitamos, não levou em consideração os diferentes contextos em que as populações se

encontram. A situação política dos índios Waiwai é bem distinta dos quilombolas. Isso se

dá, oficialmente, pela tutela que o Estado, a partir da FUNAI, tem sobre os indígenas. A

estrutura legal e física que o Estado dispõe para os indígenas é algo a ser levado em

consideração. Apesar dos próprios indígenas questionarem o papel e a atuação da FUNAI

de maneira firme, a situação destes, se comparada aos quilombolas, é avançada. Sobretudo

pelo critério legal, no qual se estabelece lei acerca da relação indígenas/sociedade burguesa.

Art.22. Compete privativamente à União legislar sobre:

XIV - populações indígenas;

Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:

V - defender judicialmente os direitos e interesses das populações indígenas;” (Constituição

Brasileira, 1988)

Como se vê no artigo 129, o Estado assume a tutela dos interesses indígenas, distanciando-

os de sua autonomia política. Sendo nosso intuito instrumentalizar politicamente estas

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populações, ainda seria conveniente que mantivéssemos nossas oficinas centradas na

leitura-escrita. Porém, o Estado também diz garantir a manutenção dos costumes

tradicionais, como a alimentação e a língua. É aí que se criou uma encruzilhada pra nós,

pois, ao mesmo tempo que a leitura-escrita iria favorecer a autonomia perante o Estado, o

fato do mesmo valorizar a manutenção das línguas tradicionais enfraquece a necessidade

deles lidarem com o português correto, normativo. Assim, pensamos se, ao incentivarmos o

contato com o português, não estaríamos colaborando para a desarticulação daquela cultura.

Além deste fato de ordem teórica e filosófica, pesou bastante, talvez decisivamente, a

experiência que tivemos ao descer na primeira aldeia do rio Mapuera e perceber que,

realmente, estávamos em outra cultura. Não entendíamos nada do que falavam e isso nos

fez abandonar a ideia de trabalhar o português, definitivamente. Não havia por que

incentivá-los a lidar com esta língua geral, brasileira, a qual já tinha contato na própria

aldeia, dentro da sala de aula, se nós não entendíamos nem mesmo a língua deles. Não seria

coerente com a troca de saberes. Queríamos trabalhar algo que, em pouco tempo, pudesse

demonstrar para quê estávamos ali, qual seja, trocar saberes, conhecimentos práticos.

Trabalhar a necessidade do português, para nós, seria uma arrogância, uma hierarquização

do conhecimento.

Para solucionar esta encruzilhada filosófica e teórico-metodológica, optamos trabalhar com

a confecção de mapas. É importante ressaltar que o objeto permaneceu o mesmo:

instrumentalizar politicamente. O mapa, da mesma maneira que a leitura-escrita, é um

instrumento de assaz relevância para a demarcação de terras indígenas. Além disto, é uma

linguagem que deve ser mais explorada em comunidades tradicionais, já que as fotos de

satélite de suas terras não são suficientes para indicar a relação que a comunidade tem com

ela, ou seja, não mapeia seu território, apenas sua terra. Uma situação exemplar ocorreu

antes de irmos ao índios, ainda nos quilombolas: foi feito um mapa mental por adultos

quilombolas, no qual evidenciavam ilhas no curso do rio Trombetas, que só se verificavam

na vazante. Ora, uma foto de satélite não permite que percebamos a sazonalidade de um rio,

mas um mapa mental sim!

Foi a partir desta percepção que nos empenhamos, durante a estadia nas aldeias do rio

Mapuera, em fazer mapas etnográficos que ressaltassem os diversos aspectos culturais

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presentes, a fim de tornar estes mapas, além de material consultivo para o planejamento da

aldeia, fontes geográficas do laudo antropológico necessário a demarcação de terras

indígenas.

Três metodologias foram utilizadas:

• Mapa mental escolar: divididos em grupos, faziam o mapa da aldeia a partir da

memória e depois estes grupos debatiam os mapas e produziam um mapa final. Produto:

mapa mental da aldeia.

• Mapa mental: o cacique fez o desenho do rio e da serra e foi preenchendo com os

recursos que ele entendia constituir o território de sua aldeia (limites de pesca, madeira de

construção, limite de caça etc.).

Produto: mapa mental de uso do território

• Travessia: estudantes saíram junto com um de nós que, andando por todas as

construções da aldeia e, conversando sobre o histórico e significado de cada uma, foi

marcando num croqui aquelas que os estudantes consideravam importantes constar num

mapa. Depois, de volta a escola, ficou por conta dos próprios estudantes ampliar o croqui

numa folha maior. Produto: mapa perceptivo do território da aldeia

• Mapa temático: fora da escola, alunos de varias idades se unirão na comunidade

para confeccionar um mapa referente ao lixo (onde era sinalizado no mapa a quantidade de

lixo espalhada pela área central da comunidade, os espaços coletivos e a quantidade de

lixeiras nesses espaços)

Cada uma dessas metodologias tem como produto mapas que apresentam diferentes

concepções e significações do/no espaço. O primeiro demonstra que entre os próprios

moradores, a aldeia é vista de formas diversas e suas representações refletem isto. O

segundo mostra o caráter invisível para nós, de fora, acerca dos limites territoriais das

aldeias. A marcação do limite da pesca foi uma surpresa pra nós. Já o terceiro ressaltou algo

muito inesperado: os estudantes (todos entre 15 e 30 anos) optaram por não adicionar ao

território da aldeia, o roçado, pois, segundo eles, não é comum a todos, uma vez que não

são todos que roçam e ainda, há partes que são familiares, apesar de, constantemente,

abastecer todas as casas. Por isto o nome mapa perceptivo; foi posto aquilo que foi

percebido como território da aldeia. O quarto, um mapa para fomentar a discussão a cerca

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da produção de lixo local e de como eles cuidam desse lixo. É importante dizer que estas

acepções referidas aos mapas foram indicadas simploriamente, pois, uma análise mais

dedicada não é pertinente a este artigo.

Diferentes metodologias de trabalho com mapa

Deve-se deixar claro aqui, que todo o mapeamento que fizemos, foi acompanhado das

noções cartográficas básicas, tal como legenda, escala (relação de tamanho entre figuras),

rosa-dos-ventos, como também das funções políticas que um mapa pode adquirir.

Outra atividade que desenvolvemos foi o jogo “Lembranças de Minha Terrinha”, já

desenvolvido com comunidades quilombolas em outro momento. Este jogo, criado por nós,

foi fundamental para tangermos a historiografia da aldeia onde ele foi aplicado. Os

estudantes (todos adultos) se dividiam em grupo e a disputa se dava a partir de um tabuleiro

onde barquinhos iam “navegando” de acordo com o rolar dos dados. Caso parasse em

certas casas (aquelas que continham uma data – 5 anos atrás, 10, 15, 20...40 anos atrás), o

grupo tinha uma questão historiográfica a apresentar, a partir de um cartão sorteado –

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melhorou, está igual ou piorou. Ex.: tira-se o cartão piorou, na casa 10 anos atrás, então, o

grupo deve dizer o que mudou, e pra pior, em relação à alimentação (ou algum outro

quesito escolhido, esse foi um exemplo) de 10 anos atrás para cá. Depois que o grupo

apresenta sua opinião, esta tem que passar pela aprovação do ancião da aldeia, o mais

velho, que tem o papel de juiz. Se este concorda com a assertiva do grupo, anda-se mais

casas! Se discordar, volta-se casas!

Este jogo talvez tenha sido a experiência mais rica no que diz respeito a construção

histórica do pertencimento da aldeia, pois conjugou o passado e o presente, partindo da

história daqueles que construíram a aldeia antes dela existir, evidenciando o processo

padrão de deslocamento para a construção de aldeias pela etnia Waiwai, até os dias atuais,

em que a relação com a FUNAI e com o karayoá (não-índio) é constantemente criticada,

sobretudo pelos mais velhos, no que diz respeito ao detrimento da cultura tradicional.

Captávamos vários elementos que eles iam destacando ao longo desta volta ao passado,

como a caça que era disponível, as danças, as plantas medicinais que foram esquecidas e

muito mais. Além de ser gratificante pela pesquisa, foi enormemente gratificante a

possibilidade organizar um encontro dos mais velhos com os mais novos (filhos que

acompanhavam os pais) para falar da história perdida da aldeia. Um momento que nenhuma

política de Estado é capaz de conceber. Fizemos nosso trabalho muito além do

compromisso com a Universidade. Fizemos um trabalho pelo compromisso com o ser

humano. Jogo “Lembranças de minhas terrinha” e linha do tempo (produto)

Conclusão

O impacto do convívio, carregado de essência humana, coletiva e solidária, de valores

baseados primariamente no provimento da vida e na comunhão entre os seres foi,

sobretudo, um despertar da realidade que vivemos.

O trabalho e, mais amplamente, a vivência nas comunidades quilombolas e indígenas

transformaram nossa visão sobre o mundo de hoje e sobre o homem. Conviver com as

formas autônomas de alimentação - a pesca, a coleta, a caça e o roçado – demonstrou o

quanto estamos enganados com nossas certezas e o quanto somos iludidos por nossa

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intelectualidade, nossa razão suprema. A intelectualidade arrogante que experimentamos

hoje, no reino da Razão, nada mais é do que o fruto excêntrico de uma relação desigual na

qual nos apropriamos do trabalho alheio para subsistir. Percebemos que a subsistência é, na

verdade, a razão pela qual devemos pautar nosso intelecto, pois é dela que este depende. A

razão construída nestas comunidades que, hoje, estão desconstruindo-a aos poucos,

infelizmente, é a razão que baseia a solidariedade, o respeito, o aprendizado mútuo. Tanto

na relação entre homens, como entre nós e a natureza. Algo que nos deixou muito

emocionados nas duas comunidades – indígena e quilombola - foi ver que, nas danças,

todos dançavam juntos; mulheres, meninos, velhos, meninas, homens...todos com todos,

sem desrespeito, sem vergonha, apenas dançando. A dança, que é arte, é partilhada

igualmente por todos. O alimento, que é a vida, é compartilhado com aqueles que

porventura estão precisando. Não ouvimos, na estadia, nenhuma atitude discriminatória de

qualquer aspecto.

Há muito a ser feito para eles a fim de sua autonomia se tornar plena, sobretudo no campo

jurídico, e, nós podemos colaborar. Porém, há muito a ser feito pela gente (sociedade

aburguesada) a fim de que nos tornemos mais autônomos de nossa Razão e entremos mais

em contato com nossa Humanidade, muito mais abrangente que esta Razão, a partir do

processo reflexivo contínuo de transformação do homem em humanidade e não mais do

homem em mercadoria, em quantificações. Nisso, eles podem nos ajudar.

Estivemos em contato por pouco mais de uma ou duas semanas em cada comunidade e,

essa breve vivência, que ao passar dos dias vai do distante ao mais íntimo das relações

humanas, acabou por nos servir de observação e reflexão crítica acerca do cotidiano da

sociedade que vivemos e que queremos (ou não) continuar à construir.

O empoderamento do homem sobre outros homens determinou ao longo da história das

sociedades, suas apropriações sobre o meio natural que, consequentemente, reproduziu essa

dinâmica pela força de subsistência inerente ao ser. Com os milhares de anos percorridos,

as sociedades constituíam-se em núcleos passivos, de pessoas com necessidades mútuas em

torno de interesses acumulativos de poucos, sustentados por idealismos e estratégias de

domínio, que apesar da mudança nos nomes e conceitos, continuaram, na prática, os

mesmos. Os mecanismos de controle evoluíram e, com eles, novas intenções surgiram,

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massacrando a capacidade mental dos “viventes sociais” de atuarem por si e para/com os

outros. Hoje não é mais necessário produzir coisas juntos, o contato com a terra foi

rompido, materializado e colocado na bandeja pronto para ser consumido. Nesse sentido, a

segregação de coisas e pessoas foram aumentando, as estruturas foram sendo rompidas, de

modo que se dificultou enxergar os elementos que vemos como integrados, efetivamente

necessários uns aos outros. Estão todos independentes, desconexos. E nesse caminho as

relações tornaram-se gélidas...

Não achamos possível naturalizar a ausência do contato do homem com o meio. Digamos

isso, pois, nas comunidades tradicionais, a manutenção contínua da vida é trabalho de cada

membro da família, em prol dos mesmos, não existe trabalho para outros, eles detém tudo

no meio. Seus espaços de vida estabelecem seus vínculos sociais, mantendo o sentimento

de unidade e de corrente vitalícia, de necessidades recíprocas, que se equilibram pelo

respeito entre seus iguais. Essa é a nossa preocupação com o território e, de certa maneira,

o sentido do trabalho, com a invencibilidade que ele precisa ter, enquanto início, meio e

fim, das relações humanas, indissociáveis de seus espaços (físicos e culturais).

OBS: O presente trabalho foi possível devido ao trabalho de campo executado a

partir da logística da Unidade Avançada José Veríssimo (UAJV) em Oriximiná. Esta

unidade pertence à UFF e tem como objetivo incentivar e dar suporte aos projetos e

programas de Extensão, sobretudo àqueles de cunho rural.

Dentre estes programas, encontra-se o “Geografia da Produção Alimentar” (GPA),

que objetiva incentivar populações tradicionais a permanecer produzindo seu próprio

alimento de maneira harmoniosa com a natureza, além de valorizar os aspectos tradicionais

destas culturas. Para tanto, este programa se constrói a partir de diferentes eixos. Os autores

deste presente trabalho se vinculam principalmente ao eixo de Educação.

Notas 1 Imagens dos rios e comunidades no anexo I.

2 FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido (manuscrito em português de 1968). Rio de Janeiro: Paz e Terra,

1970.

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3 CAPRA, Fritjof. Falando a linguagem da natureza: Princípios da sustentabilidade. In STONE, M.K.; BARLOW, Z (Orgs.). Alfabetização Ecológica: a educação das crianças para um mundo sustentável. São Paulo: Cultrix, 2006. P.47

Anexo I

Os rios e as respectivas comunidades trabalhadas.

Rio Trombetas Escola em Nova Esperança

Rio Mapuera Aldeia Kwanamari

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Referências

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