Eu Creio no Pai no Filho e no Espírito Santo - Hermisten Maia Pereira

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Hemm ten Maid Pereiro c\i Casio

EU CREIO

P o i . no Fllho c

no Espirito Santo

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EU CR.EIO&To

Pai, no Filho e

no Espírito Santo

HERMISTEN MAIA PEREIRA DA COSTA

fZ 0 EDIÇÕES ^l/p a r a k le t o s

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Costa, Hermisten Maia Pereira daEu Creio no Pai, no Filho e no Espírito Santo /

Hermisten Maia Pereira da Costa. — São Paulo : Edições Parakletos, 2002.

Bibliografia.

1. Credos 2. Deus - Paternidade 3. Espírito Santo 4. Jesus Cristo 5. Trindade 6. Trindade - História das doutrinas I. Título.

02-3237__________________________________________________ CDD 238.11índices para catálogo sistemático:

1. Credo ápostólico : Fé Cristã : Doutrina cristã 238.11

® 2002, Edições Parakletos.Todos os direitos são reservados.

1a edição: julho de 2002 Tiragem: 2.000 exemplares

Editoração e capa:Eline Alves Martins

Conselho editorial:Valter Graciano Martins, Denivaldo Bahia de Melo,

Lauro B. Medeiros Silva e Eline Alves Martins

/7 p EDIÇÕES tJpARAKLETO S

Rua Adamantina, 36 • Baeta Neves • 09760-340 • São Bernardo do Campo, SP Telefax: 11 4121-3350 • e-mail: [email protected]

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ÍNDICE----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

PREFÁCIO ...................................................................................................................................................... 7PALAVRA EXPLICATIVA........................................................................................................................... 9OS SÍMBOLOS DE FÉ NA HISTÓRIA: INTRODUÇÃO GERAL.................................................. 13

I - A INSPIRAÇÃO E INERRÂNCIA DAS ESCRITURAS...................................................... 77II - A FÉ SALVADORA........................................................................................................................97III - A PATERNIDADE DE D E U S .................................................................................................. 129IV - O PODER SOBERANO DE D E U S ....................................................................................... 145V - O DEUS CRIADOR.......................................................................................................................169VI - A VINDA DE JESUS CRISTO................................................................................................. 202VII - A PESSOA DE CRISTO .........................................................................................................214VIII - A UNIDADE E A NECESSIDADE DAS DUAS NATUREZAS DE

CRISTO .................................................................................................................................... 222IX - O FILHO UNIGÉNITO DE D E U S ....................................................................................... 250X - JESUS CRISTO, NOSSO SENHOR........................................................................................ 261XI - O MINISTÉRIO TERRENO DE JESUS CRISTO.............................................................270XII - OS SOFRIMENTOS DE CRISTO.......................................................................................... 278XIII - JESUS, O SALVADOR..........................................................................................................286XIV - O SACERDÓCIO DE CRISTO ............................................................................................297XV - A RESSURREIÇÃO DE CRISTO........................................................................................ 310XVI - A ASCENSÃO DE JESUS CRISTO.................................................................................. 326XVII - A SEGUNDA VINDA DE CRISTO.................................................................................. 334XVIII - O JUÍZO F IN A L .................................................................................................................... 366XIX - CREIO NO ESPÍRITO SANTO: SUAS PERFEIÇÕES E

D IVINDADE..............................................................................................................................382XX - A IGREJA DE DEUS: UNA, SANTA E UNIVERSAL.................................................. 418XXI - AMÉM ...................................................................................................................................... 461

ADENDO:PRINCIPAIS CATECISMOS E CONFISSÕES REFORMADOS:SUBSÍDIOS HISTÓRICOS................................................................................................................ 469

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PREFÁCIO— —

alavra Credo, cujo significado - creio eu - refere-se ao ato pelouai o homem reconhece e confessa a realidade e o conteúdo da

O histórico e precioso documento chamado “Credo dos Apósto­los”, matéria da análise deste livro, tem sido conservado pelos cristãos, e ecoado através dos séculos como uma profissão de fé em que se defi­ne a doutrina base da Igreja. Sendo inicialmente elaborado para a con­fissão de fé batismal dos que iam se tomando cristãos, foi acrescido, posteriormente, de outros artigos, tomando a forma em que o conhece­mos hoje.

Contudo, desde há muito, até aos nossos dias, em todo o mundo, cristãos de todos os matizes o sabem de cor e o proclamam, liturgica- mente, com devoção.

No entanto, poucos têm imergido na profundidade doutrinária des­tas declarações, ou percebido o mundo teológico que as envolve, real­çando razões, alicerce e o fundamento bíblico que lhes dão suporte.

É isto o que vemos na presente obra do já apreciado e respeitado autor, Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa, cuja formação teológica que hoje atinge a níveis de doutorado, teve sua base no bacharelado do Seminário Presbiteriano do Sul na sua fase pós crise na segunda meta­de dos anos setenta.

Com uma didática de Mestre, trazendo-nos uma soma espantosa de informações, e abrindo-nos, através de substanciosas notas, cente­nas de obras, o autor esclarece, fundamenta, comunica, informa e, na verdadeira acepção da palavra, ensina a boa doutrina, e o faz com fide­lidade e clareza.

sua fé.

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8 EU CREIO.

O pastor, o professor de Escola Dominical, o estudioso da Palavra de Deus vão encontrar neste tratado teológico uma fonte da boa doutri­na reformada, desenvolvendo os temas mais importantes da teologia cristã, como Teontologia, Cristologia e Pneumatologia, e outros, inse­ridos nestes, como Eclesiologia e Escatologia.

Todos aqueles que amam a Palavra de Deus, e se deleitam no estudo sério das Escrituras Sagradas, ao compulsarem esta obra serão fortaleci­dos e perceberão a magnitude e a profundidade que subjazem nesta bendi- da expressão: “Eu Creio no Pai, no Filho e no Espírito Santo”.

Ocupando com notável competência, já há quase duas décadas, a cadeira de Teologia Sistemática no Seminário Presbiteriano Reveren­do José Manoel da Conceição, em São Paulo, o Rev. Hermisten, des- pretencioso, sempre avesso a honrarias e poder, tem contribuído com sua personalidade, seus livros e aulas, para a formação teológica e éti­ca de algumas gerações de pastores que muito honram o ministério da Igreja Presbiteriana do Brasil.

Em meio aos desvios da fé que expressam o tumultuado mundo religioso em que vivemos, chega-nos, em boa hora, esta publicação teológica, bíblica e orientadora, enriquecendo não apenas boas biblio­tecas, mas mentes e corações sequiosos da verdade.

Somos gratos a Deus pela vida enriquecedora do mestre, teólogo, pastor e amigo, Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa, cuja palavra, escrita ou falada, testemunha em verdade o título da sua obra.

São Bernardo do Campo, Outono de 2002.Alceu Davi Cunha

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PALAVRA EXPLICATIVA-------------------------------------------------------------------

Este livro surgiu basicamente de uma necessidade. Em abril de 1988, percebi a necessidade de elaborar lições para serem estudadas na

Escola Dominical da Igreja da qual era pastor: Igreja Presbiteriana de Vila Guarani, São Paulo, Capital. Escolhi o Credo Apostólico como rota de estudo por ver nele uma boa síntese da Fé Cristã.

A Igreja começou a estudar os textos no primeiro domingo de ju­lho de 1988, continuando, de modo ininterrupto, até agosto de 1991.

Na elaboração e análise desses textos, algumas observações de­vem ser feitas:

1) Os textos foram escritos da maneira mais simples possível a fim de serem acessíveis aos crentes em geral. Neste mister, a Sr“ Neuraci Maria Toscano Salerno foi de grande valia. Como professora de uma das classes de adultos, eu lhe pedi que lesse boa parte dos textos escri­tos, a fim de que opinasse quanto à compreensão dos mesmos bem como à possibilidade de sua ministração. Ela atendeu o meu pedido com competência e generosidade.

2) Cada texto foi estudado num período que variou entre quatro e oito semanas.

3) No final de cada capítulo - com poucas exceções ao invés de apresentar uma conclusão, indiquei algumas implicações doutrinárias e práticas do assunto abordado. Este método parte da maneira como olho as Escrituras: entendo que toda doutrina ensinada nas Escrituras tem relação com outras doutrinas; e estas têm implicações direta com a nossa ética. Cada doutrina estudada deve vir acompanhada da questão pessoal e intransferível - e por isso mesmo de extrema relevância: o que devo fazer?

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10 EU CREIO.

4) Nos textos originalmente estudados, apresentei, ao final, suges­tões de leitura para que o assunto pudesse ser aprofundado por quem se interessasse. Essas sugestões não foram incluídas nesta coletânea.

Quanto ao texto que agora temos reunido, devemos destacar algu­mas coisas. Entre a primeira redação das lições e a sua reunião final, passaram-se quase treze anos, e algumas modificações foram feitas. Obviamente, os textos foram ampliados partindo de algumas novas leituras; no entanto, a estrutura é a mesma do início. Nessas amplia­ções, os textos ganharam vida própria; assim, alguns comentários fei­tos em determinados capítulos foram acrescentados a outros para con­ferir maior sentido à compreensão daquele texto isolado. Desse modo, algumas repetições serão inevitáveis, considerando também que, mes­mo reunindo os capítulos, procurei preservar cada um como texto au­tônomo, para que o leitor, comece por onde começar, tenha sempre um texto completo em cada capítulo.

Outro fato é que, se por um lado os textos foram aperfeiçoados dentro da mesma estrutura, o capítulo sobre o Espírito Santo sofreu aqui um grande corte, tendo em vista que a partir das cinco lições ori­ginais deixei apenas a primeira, com os acréscimos já mencionados. A razão é simples. Esses capítulos tornaram-se livro independente, se­guindo a mesma estrutura, apenas extremamente maior. No entanto, no capítulo preservado abordamos o que julgamos essencial a este livro: o tratamento do Espírito como Pessoa Divina.

O capítulo sobre o Sacerdócio de Cristo não fazia parte original desta coletânea. No entanto, o mesmo também foi estudado na Igreja em outro período. Eu o inseri por considerá-lo pertinente à nossa abor­dagem do assunto.

A introdução sobre os Símbolos de Fé foi apresentada pela primei­ra vez em 19/5/90, na Igreja Presbiteriana de Pedro Leopoldo, MG, no encontro promovido pela Secretaria de Educação Religiosa do Presbi­tério Metropolitano. O texto também passou por revisões, no entanto a estrutura original foi mantida.

Finalizando, registro que na redação original de todos esses tópi­cos sou devedor a muitas pessoas, que por certo não são responsáveis pelas inevitáveis falhas. Todavia, gostaria de destacar a Sr“ Neuraci

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Palavra Explicativa

que, como já mencionei, leu grande parte dos primitivos originais; a Igreja Presbiteriana de Vila Guarani - a qual tive a honra de pastorear (1985-1994; 1997-1998) - , que através do seu interesse sempre me incentivou a continuar escrevendo. Sou grato também à minha esposa, Eliana, que, apesar de seus muitos afazeres domésticos, sempre encon­trou tempo para ler meus manuscritos e fazer correções importantes que amenizaram em muito o meu estilo pedregoso... A todos meus sinceros agradecimentos.

São Paulo, 19 de abril de 2001. Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

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OS SÍMBOLOS DE FÉ NA HISTÓRIA: INTRODUÇÃO GERAL

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"A Bíblia é a Palavra de Deus ao homem; o Credo é a resposta do homem a Deus. A Bíblia revela a verdade em forma popular de vida e fato; o Credo declara a verdade em forma lógica de doutrina. A Bíblia é para ser crida e obedecida; o Credo é para ser professado e ensinado.’’ - R Schaff, The Creeds o f Christendom, 6a ed. revised and enlarged, Grand Rapids, Michigan, Baker Book House, 1977, Vol. II, p. 3.

"O Que temos de fazer é reconhecer oue somos, muito mais do Que reconhece­mos, frágeis filhos da tradição, boa ou má, e precisamos aprender a Questionar, à luz das Escrituras, aouilo oue até aoui aceitamos sem perguntas.” - |.I. Packer, O Conforto do Conservadorismo: In: Michael Horton, ed. Religião de Poder, São Paulo, Editora Cultura Cristã, 1998, p. 236.

IN TRO D U ÇÃO

Na Reforma Protestante do século XVI, o uso de Catecismos e Confissões foi de grande valia para a educação dos crentes, partindo sempre do princípio da necessidade da fé explícita de que

todos os cristãos devem conhecer sua fé, sabendo no que crêem e por que crêem. No Brasil, quando nossa Igreja foi iniciada (1860),1 o ensino dos símbolos de Westminster teve um papel importante.

1 Com o sabem os, o Presbiterianismo brasileiro comemora o seu aniversário em 12 de agosto, tendo com o marco a chegada de Ashbel G. Simonton (1833-1867) no Rio de Janei­ro, em 12/08/1859. Todavia, usei o ano de 1860, não com o intuito de polem izar a respeito - aliás, porque considero de inteira irrelevância uma discussão desse tipo mas sim, por­que foi em 22/04 /1860 que ele com eçou uma Escola Dom inical em sua casa, sendo este o seu primeiro trabalho evangélico realizado em português. O nosso sistema não é episcopal que entende que onde está o bispo está a Igreja... [vd. mais detalhes in Hermisten M.P. Costa, Os Prim órdios do P resbiterianism o no Brasil: B reves Anotações, São Paulo, 1997],

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14 EU CREIO.

Hoje, em nome de um suposto “pluralismo” supostamente acadê­mico, o que podemos perceber é um enfraquecimento desta ênfase, mesmo nos Seminários ditos Reformados, acarretando um desfigu- ramento doutrinário por parte de muitos de seus pastores e, conse­qüentemente, dos membros da igreja.

No início do século passado, ouvia-se o clamor de determina­dos grupos independentes nos Estados Unidos, que diziam o se­guinte: “Nenhum credo senão a Bíblia".2 Atitude similar ainda hoje é observada em grupos ou pessoas, dentro de nossa denominação, que manifestam à t form a clara o seu desprezo para com os Credos da Igreja ou, de modo velado, não se interessando por eles, como se os Credos fossem apenas uma série de pronunciamentos antiqua­dos, sem nenhuma relevância para a igreja contemporânea ou como se eles pretendessem se constituir numa declaração de fé que rivali­zasse com as Escrituras Sagradas, devendo, portanto, ser rejeitados por não estarem de acordo com o espírito da Reforma que, correta­mente, enfatizou “Sola Scriptura”...

Quando tratamos deste tema, as questões que logo vêm à baila são: Estariam tais grupos, ou pessoas, errados? Por outro lado, as denominações que têm suas Confissões de Fé estariam incorrendo em erros? Neste caso, os Credos e as Confissões não estariam sen­do colocados no mesmo nível das Escrituras, contrariando assim um dos princípios da Reforma, que diz: “Sola Scriptura”?

Tais questões parecem-nos de grande relevância e pertinência; cremos poder respondê-las através deste ensaio; todavia, conside­ramos oportuno realçar preliminarmente que “Lutero e os reforma­

2 Cf. M. A. N oll, C onfissões de Fé: In: Walter A. E lw ell, ed. E nciclopédia H istórico- Teológica da Igreja C ristã , São Paulo, Vida Nova, 1988-1990, Vol. I, p. 340. Este tipo de declaração também tornou-se comum pelo menos no início do século X X , quando alguns fundamentalistas, além de repetirem a afirmação supra, também bradavam: “Nenhum ‘C R E­D O ’, senão Cristo" (vd. R.B. Kuiper, El Cuerpo G lorioso de Cristo: La Santa Iglesia, Grand Rapids, M ichigan, SLC., 1985, p. 100; L. Berkhof, Introduccion a la Teologia S iste­m ático, Grand Rapids, M ichigan, T.E.L.L., c. 1973, p. 22). Entre o final dos anos 50 e in ício dos anos 60 , Lloyd-Jones disse com tristeza: “N o presente sécu lo há marcante aver­são por credos, confissões e por definições precisas. O cristianismo tornou-se um vago e indefinido espírito de boa vontade e filantropia” (David M. Lloyd-Jones, A U nidade C ris­tão, São Paulo, PES, 1994, p. 213).

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dores não queriam dizer por Sola Scriptura que a Bíblia é a única autoridade da igreja. Pelo contrário, queriam dizer que a Bíblia é a única autoridade infalível dentro da Igreja.”3 A autoridade dos Cre­dos era indiscutivelmente considerada pelos reformadores - tendo inclusive Lutero e Calvino elaborado Catecismos para a Igreja contudo, somente as Escrituras são incondicionalmente autoritativas.1. O S SÍMBOLOS DE FÉ

1.1. Origem da Palavra Símbolo

O termo “Símbolo” é proveniente do grego I/ó|lfk>À,ov, deriva­do de 5X>(l|3áÀ,À,£iv (crúv = “junto com” & pàX,A,co = “atirar”, “lan­çar”, “sem ear”4), que significa “comparar” e “lançar junto” e “con­frontar”, “pôr junto com”. O substantivo SunfioA/rí significa “en­contro”, “juntura”, “ajustamento”. “Symbolé pode significar con- cretamente a articulação do cotovelo ou do joelho: dois ossos dife­rentes se unem ou se ajustam um ao outro; não se poderia, contudo, conceber concretamente um sem o outro.”5

Na Antigüidade, quando era formalizado um contrato, um obje­to era partido e dividido entre as partes contratantes; cada parte do objeto dividido era um “símbolo” de identidade para a junção com

3 R. C. Sproul, Sola Scriptura: Crucial ao Evangelicalism o: In: J.M. B oice, ed. O A licer­ce da A u toridade B íblica, São Paulo, Vida Nova, 1982, p. 122. Timothy George coloca a questão nestes termos: “O sola scriptura não pretendia desprezar completamente o valor da tradição da igreja, mas sim subordiná-la à primazia das Escrituras Sagradas. Enquanto a Igreja Romana recorria ao testemunho da igreja a fim de validar a autoridade das Escrituras canônicas, os reformadores protestantes insistiam em que a Bíblia era autolegitimadora, isto é, considerada fidedigna com base em sua própria perspicuidade, comprovada pelo testemunho íntimo do Espírito Santo” (Timothy George, Teologia dos Reform adores, São Paulo, Vida N ova, 1994, p. 312). A observação de Packer é pertinente com o princípio que deve servir de parâmetro: “Dentro dessa abordagem, e com base na percepção com um de que tanto o Espírito de Deus com o também o pecado humano estão sempre trabalhando dentro da igreja, espera-se que as tradições cristãs sejam parcialmente certas e parcialmen­te erradas” (J.I. Packer, O Conforto do Conservadorismo: In: M ichael Horton, ed. Religião de P oder, São Paulo, Editora Cultura Cristã, 1998, p. 234).

4 Vd. Mt 3.10; 13.48; M c 4.26; 15.24; Ap 14.19. N a voz média, significa “pensar consi­go m esm o”, “ponderar”, “deliberar” (cf. páXXco: ln: Lindell & Scott, Greek-English Lexi- con, Oxford, Humphrey Milford, 1935, p. 126a).

5 Marc Girard, O s Sím bolos na B íblia, São Paulo, Paulus, 1997, p. 26.

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ló EU CREIO.

o outro pedaço, “um fragmento que exigia ser completado por outra parte para formar uma realidade completa e funcional”.6 Posterior­mente, a palavra passou a significar qualquer sinal ou senha (con- tra-senha) que transmitisse determinada mensagem.7 Notemos, por­tanto, que a idéia embutida no conceito de símbolo é de “dualis­mo”, separação e junção: as duas partes são separadas para ser “re­unidas”.8 O símbolo só tem valor porque aponta para a realidade simbolizada, e a realidade simbolizada carece daquele sinal que a referencia.

O substantivo não é empregado no Novo Testamento, no entan­to o verbo a\))J,páX,A,co ocorre seis vezes - somente nos escritos de Lucas com o sentido de “calcular”, “considerar”, “consultar”, “contender”, “auxiliar”, “receber” (*Lc 2.19; 14.31; At 4.15; 17.18; 18.27; 20 .14).9 Na Septuaginta aparece uma só vez, no sentido religi­oso: Os 4.12,10 traduzida por “madeira”, “pedaço de pau”, que servia para a consulta idólatra do povo: rabdomancia. Deus já falara desta prática de forma condenatória (Dt 18.9-14; Is 40.19-20; Jr 2.27).

6 D. Sartore, Sinal/Sím bolo: In: D om enico Sartore & A chille M. Triacca, orgs. D icioná­rio de L iturgia, São Paulo, Paulinas/Paulistas, 1992, p. 1143b.

7 A m brósio de M ilão, por exem plo, explica: “Sím bolo é o termo grego que significa ‘contribuição’. Principalmente os comerciantes costumam falar de contribuição quando ajuntam seu dinheiro e a som a assim reunida pela contribuição de cada um é conservada inteira e inviolável, se bem que ninguém ouse cometer fraude em relação à contribuição. E sse é o costum e entre os próprios comerciantes para que, se alguém com eter fraude, seja rejeitado com o fraudulento” (Am brósio, Explicação do Símbolo, São Paulo, Paulus, 1996,2. p. 23). Vejam-se: F.D. Danker, Sim bolism o, Simbología: ln: E.F. Harrison, ed. Dicciona- rio de Teologia, p. 500; Fernando B. de Ávila, Pequena E nciclopédia de M oral e Civism o (Rio de Janeiro), MEC., 1967, p. 457; A. Lalande, Vocabulário Técnico e C rítico da F ilo ­sofia, São Paulo, Martins Fontes, 1993, “Sím bolo” , 1015; K.S. Latourette, H istória dei C ristianism o, 4a ed. Casa Bautista de Publicaciones, 1978, Vol. 1, pp. 180-181. Para uma discussão concernente à interpretação da palavra entre os escritores cristãos prim itivos, vd. J.N .D. Kelly, P rim itivos Credos C ristianos, Salamanca, Espana, Secretariado Trinitario, 1980, p. 71ss.

8 Vd. Marc Girard, O s Sím bolos na B íblia , p. 26.9 Isidro Pereira indica que “au|xpó&Am”, na voz média no intransitivo, tem o sentido,

entre outros, de “coligir”, “deduzir”, “julgar”, “com preendei”, “considerar” (Jsidro Perei­ra, D icionário G rego-P ortuguês e Português-G rego, 7“ ed. Braga, Livraria Apostolado da Imprensa (1990), “cruppò&Ata”, p. 539b). Talvez indicando a idéia de “cotejar” os fatos.

10 N o texto, D eus condena a prática de Israel (8o século), indicando sua falta de conheci­mento da Palavra de D eus e do D eus da Palavra (vd. Os 2.8; 4.1, 6; 8.1, 2, 14; 10.1; 11.3).

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1.2. Definição de Símbolo

O símbolo está relacionado com algo que ultrapassa o seu valor intrínseco, tendo como caráter intencional apontar para além de si mesmo; ele tem como marca de sua essência o caráter de sua supera­ção, na qual encontra o seu verdadeiro significado.11 Cari Jung (1875- 1961) diz o seguinte: “Uma palavra ou imagem é simbólica quando implica alguma coisa além do seu significado manifesto e imediato.”12

O símbolo é um veículo de comunicação que contribui para rom­per as barreiras lingüísticas,13 permitindo a identificação sem o uso necessário de palavras, as quais por sua vez também são símbolos. A linguagem é sempre um elemento simbólico; a língua é uma es­pécie daquele gênero. O símbolo não pode ser confundido com o elemento simbolizado e, num primeiro instante, ele pode não ter nenhuma relação intrínseca com o que representa;14 em muitos ca­sos, a relação estabelecida é apenas no nível de idéia, não do ser em si.15 Os símbolos são “imagens de coisas ausentes”.16 Por isso é que o “signum” (signo) é contrastado com a “res" (coisa) que é conside­rada em si e por si mesma.17

11 Vd. A gostinho, A D outrina C ristã , São Paulo, Paulinas, 1991,1.2.2. pp. 52-53.12 Cari G. Jung, org. O Hom em e Seus Sím bolos , 9“ ed. Rio de Janeiro, Nova Fronteira

(s.d.), p. 20. A gostinho já dissera: “O sinal é, portanto, toda coisa que, além da impressão que produz em nossos sentidos, faz com que nos venha ao pensamento outra idéia distinta” (A gostinho, A D outrina C ristã , 11.1.1. p. 93) [vd. também, Agostinho, D e M agistro, São Paulo, Abril Cultural (Os Pensadores, Vol. VI), 1973, pp. 319-356].

,3Ernest Cassirer (1874-1945), diz: “... Nenhum processo mental chega a captar a reali­dade em si, já que, para poder representá-la, para poder, de algum modo, retê-la, tem de socorrer-se do signo, do sím bolo. E todo o sim bolism o esconde em si o estigm a da media- tez, o que o obriga a encobrir quanto pretende manifestar. A ssim , os sons da linguagem esforçam -se por ‘expressar’ o acontecer subjetivo e objetivo, o mundo ‘interno’ e ‘externo’; porém, o que captam não é a vida e a plenitude individual da própria existência, mas apenas abreviatura morta. Toda essa ‘denotação’, que as palavras ditas pretendem dar, não vai, realmente, mais longe que a sim ples ‘alusão’; alusão que parecerá mesquinha e vazia, fren­te à concreta multiplicidade e totalidade da experiência real” [Ernest Cassirer, Linguagem, M ito e Religião, Porto, Rés-Editora (s.d.), pp. 11-12],

14 E aqui que alguns divergem, aplicando esta conceituação ao “sinal”, entendendo que o “sím bolo” tem uma conexão necessária com o simbolizado.

15 Vd. Hermisten M.P. Costa, A L iteratura A pocalíptico-Judaica, São Paulo, Casa Edito­ra Presbiteriana, 1992, p. 40ss.

16 João C alvino,A ? Institutas, IV. 17.21.17 Vd. Signum: In: Ricliard A. Muller, D ictionary o f Latin an d Greek Theological Terms,

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18 EU CREIO.

Os símbolos têm normalmente um duplo sentido: eles revelam e encobrem;18 o uso dos símbolos envolve normalmente um “públi­co alvo” a que me dirijo, tentando ser compreendido por ele. Por outro lado, de forma explícita ou velada, uso este recurso para ocul­tar a minha mensagem, despistar os “estranhos”, não iniciados. É claro que nem sempre isto está no nível da consciência, no entanto, quando nos damos conta disso, tendemos naturalmente a usar esse recurso.

O homem é um “animal simbólico”;19 por isso ele se vale deste veículo para se comunicar; os símbolos são puramente funcionais. O símbolo também pode ser usado como elemento de convergência de um povo ou de um grupo: reunimos pessoas em torno de um gesto que simboliza os nossos ideais e valores; o desenho e as cores de nossa bandeira que nos falam de “pátria” e “nação”; os hinos que nos emocionam conduzindo-nos a uma postura de luta em prol de uma causa que eles tão bem sintetizam em nosso imaginário, ainda que circunstancialmente20... Assim, mudar um símbolo é mais do que mudar uma simples “marca”, é modificar uma concepção, uma perspectiva do mundo e da realidade; este ato envolve a memória e a imaginação, visto que mexe nas estruturas da lembrança de um fato ou no conjunto de fatos que deram origem àquele símbolo, e também no imaginário coletivo que o símbolo concentra e ao m es­mo tempo germina: um símbolo tem uma conotação de memória e de esperança; ele marca no tempo o nosso compromisso com o pas­4" ed. Grand Rapids, M ichigan, Baker Book House, 1993, p. 282.

18 Analisando a questão pela perspectiva do intérprete, Julien Naud comenta: “Quando um sím bolo é familiar a alguém, sua compreensão consiste em seguir o m ovim ento da im agem que espontaneamente conduz àquilo que esta sugere. M as quando alguém é intro­duzido num conjunto sim bólico que comporta uma distância no tempo e no espaço cultural, é necessário que efetue um longo desvio na interpretação; socorrendo-se de diversos m éto­dos de leitura, pode atingir o que é sugerido pelo texto, isto é, o tipo de mundo que lhe é proposto pelo próprio texto” (Julien Naud, Simbolism o: ln: René Latourelle & Rino Fisi- chella, dirs. D icionário de Teologia Fundamental, Petrópolis, RJ/Aparecida, SP, Vozes/ Santuário, 1994, p. 897b).

l9Em st Cassirer, A ntropologia Filosófica, 2" ed. São Paulo, Mestre Jou, 1977, p. 51.20 Eusébio diz que quando Constantino entrou vitorioso em Rom a cantou hinos ao Senhor

(vd. Eusébio de Cesavea, H istoria Eclesiastica , Madrid, La Editorial Católica (B iblioteca de Autores Cristianos, Vols. 349-350), 1973, IX .9.8-9 (doravante citada com o HE).

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sado e a nossa responsabilidade com o futuro, que temos de cons­truir sob aquela “marca” que nos distingue e identifica. Mudar um símbolo assemelha-se a mudar as leis ou a Constituição. Maquiavel (1469-1527) percebeu bem isso ao dizer: “Nunca coisa nenhuma deu tanta honra a um governante novo como as novas leis e regula­mentos que elaborasse. Quando estes são bem fundados e encerram grandeza, fazem com que ele seja reverenciado e admirado.”21

Portanto, não é de estranhar o fato de que, quando Constantino (280-337) se declarou convertido ao cristianismo,22 alegando ter um sonho antes de uma batalha (312), pintou na bandeira, em seu capa­cete e no escudo de seus soldados um símbolo ‘rr1, que representava o nome de Cristo.23 Dizendo que agora, conforme vira em sonho, este sinal estava acompanhado da inscrição: “Por este sinal vence­rás”. Eusébio relata que Constantino empregou este “símbolo de salvação” contra todas as adversidades e inimigos:24 Aqui, confor­me queria Constantino, estava um novo sinal que apontava para a origem de suas vitórias: “Por este sinal vencerás!”.

Vejamos as distinções estabelecidas aos símbolos.1.3. Tipos de Símbolo

A classificação dos símbolos pode obedecer diversos critérios, sem contar as diferenças de conceitos que alguns fazem entre sím­bolo e sinal; todavia, para o nosso estudo, no qual este assunto é apenas secundário, não adentrarei a tais questões,25 seguindo uma

21 N. M aquiavel, O Príncipe, São Paulo, Abril Cultural (O s Pensadores, Vol. IX), 1973, Cap. X XVI, p. 114.

22 Vd. Eusébio de Cesarea, HE., IX. 9.1 ss. Idem , The Life o f Constantine The G reat, 1.26- 40. In: P. Schaff & H. Wace, eds. Nicene and P ost-N icene Fathers o f the Christian Church (Second Series), Grand Rapids, M ichigan, Eerdmans, 1978, Vol. I, pp. 489-493.

23 Eusebius, The Life o f Constantine The G reat, 1.30-31. ln: N P N F 2 ,1, pp. 490-491.24 Eusebius, The Life o f Constantine The Great, 1.31. In: N P N F 2 ,1, p. 491.25 Para uma visão comparativa entre sím bolo e sinal, ver, entre outros: Paul Tillich, D inâ­

m ica da Fé, São Leopoldo, RS, Sinodal, 1974, p. 30ss.; Idem, Teologia S istem ática, São Paulo/São Leopoldo, RS, Paulinas/Sinodal, 1984, pp. 201ss. e 252; Battista M ondin, O Homem, quem é Ele?, São Paulo, Paulinas, 1980, pp. 136-138; Marc Girard, O s Sím bolos na Bíblia , pp. 46-47; Ernst Cassirer, A ntropologia F ilosófica, 2a ed. São Paulo, M estre Jou, 1977, p. 59ss.

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20 EU CREIO.

classificação quase “convencional”. Ei-la: Convencional, Aciden­tal e Universal.

1.3.1. Símbolo Convencional

É aquele em que a relação entre o símbolo e o objeto simboliza­do é convencionada, não havendo necessariamente nenhuma rela­ção essencial entre eles. Por exemplo: o som da palavra “cadeira” está relacionado com aquilo em que estou sentado neste instante. Qual a relação essencial entre as letras C-A-D-E-I-R-A e o objeto “cadeira”? Nenhuma. Nós estabelecemos esta relação mental por­que aprendemos assim, e desta forma a relação foi convencionada. A linguagem é um conjunto de símbolos (= sinais) convencionais que visam à comunicação;26 o mesmo ocorre com as cores do semá­foro, a sinalização rodoviária etc.

A relação entre o símbolo e a realidade simbolizada muitas ve­zes têm uma ligação bastante tênue, dependendo de uma explica­ção que - mesmo não esgotando o assunto - faculta a percepção da

26 O Hom em é um ser com unicativo! O Hom em “é a única criatura na terra capaz de colocar a com unicação em forma de sím bolos sem nenhuma relação com seus referentes, além daquela que a mente humana lhe atribui. A lém disso, transcendendo o tempo e o espaço, e le consegue passar informações a outros em lugares remotos ou àqueles que ainda vão nascer” (D avid J. Hesselgrave, A Com unicação Transcultural do Evangelho, São Pau­lo, Vida N ova, 1994, Vol. 1, p. 23). Portanto, “Comunicar é uma maneira de compreensão mútua.” (R ollo May, P oder e Inocência, Rio de Janeiro, Artenova, 1974, pp. 57-58), sendo a com unicação fundamental para o desenvolvim ento psíquico e social do ser humano. C o­municar, etim ologicam ente, significa “tornar com um ”. Neste ato de comunicar, formamos uma comunidade constituída por aqueles que sabem, que partilham do m esm o conhecim en­to; assim, a comunicação é uma quebra de isolamento individual, para que haja uma com u­nhão (Vd. José Marques de M elo, Com unicação Pessoal: Teoria e P esqu isa , 6a ed. Petró- polis, RJ, Vozes, 1978, p. 14). “A ‘com unhão’ encontra-se em códigos partilhados mutua­mente” (David J. H esselgrave, A Com unicação Transcultural do Evangelho, p. 39 ), porque som ente assim poderá o “código” ser “decodificado”, estabelecendo-se desse modo a co ­m unicação.

Todo hom em é uma ilha, até que resolva fazer parte do continente; isto ele faz através da comunicação. O filósofo G.W. Leibniz (1646-1716) colocou a questão nos seguintes termos:

“Tendo criado o hom em para ser uma criatura sociável, Deus não só lhe inspirou o desejo e o colocou na necessidade de viver com os de sua espécie, mas outorgou-lhe igualmente a faculdade de falar, faculdade que deveria constituir o grande instrumento e o laço comum desta sociedade. É daí que provêm as palavras, as quais servem para representar, e até para explicar as idéias.” (G.W. Leibniz, N ovos Ensaios, São Paulo, Abril Cultural (O s Pensado­res, Vol. XIX ), 1974,111.1.1).

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relação possível, ainda que outras também o sejam. Na convencio- nalidade do símbolo, há a priorização de determinada característi­ca, elevando-a ao conceito de ponto dominante ou de univocidade, estabelecendo assim uma relação em nosso imaginário entre o pon­to priorizado ou exclusivizado e a coisa simbolizada. Portanto, o símbolo é sempre parcial; ele não esgota a realidade simbolizada nem exaure por completo o sentido do instrumento simbolizante. Como exemplo cito o fato de que, mesmo sendo a cruz um símbolo do Cristianismo, sabemos que ela não diz tudo a respeito do Cristia­nismo, e, por sua vez, ela não se aplica apenas a este fim.

Ilustrando aspectos que desenvolvemos no parágrafo anterior, perguntamos: Qual a explicação para as cores de nossa bandeira? Por que a sarça ardente se constituiu durante tantos anos no símbo­lo de nossa Igreja? E esse agora aprovado? Ou, tomando os exem­plos de Girard: “Por que a folha vermelha do ácer se tornou o em­blema do Canadá? Por que o azul-branco-vermelho simboliza a França, e o sol vermelho sobre fundo branco, o Japão? A flora ca­nadense está longe de restringir-se a uma só espécie de vegetal, mais típica, aliás, do Leste que do Oeste do país; e a cor verde da folha de ácer pode ser observada por muito mais tempo do que sua efêmera cor de outono! A cada uma das faixas verticais da bandeira tricolor francesa é ligada mais ou menos artificialmente uma signi­ficação (cor, respectivamente, da cidade capital, da realeza, da re­volução); mas, pode-se perguntar, por que o azul está à esquerda, ao passo que na bandeira holandesa, marcada pelas mesmas três cores (de interpretação diferente), o azul está na faixa horizontal infe­rior?... Enfim, ninguém pretenderá que o sol se levante só no Japão, não obstante ser ele o país do sol levante.”27

Um outro ponto que gostaria de realçar é que os símbolos con­vencionais são também usados para ocultar uma mensagem daque­les que não sabem a relação estabelecida entre o símbolo e sua men­sagem. Na literatura apocalíptica judaica, os símbolos foram am­plamente usados; seu objetivo era levar uma mensagem de conforto

27 Marc Girard, Os Sím bolos na B íblia, pp. 27-28.

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22 EU CREIO.

para os judeus - que, no caso, tinham condições de discernir e inter­pretar os símbolos e ocultá-la dos opressores estrangeiros.28

A Igreja Primitiva, por exemplo, usou o símbolo do peixe para expressar sua fé e, ao mesmo tempo, para ocultá-la aos seus perse­guidores. Peixe, em grego, se escreve t%iíh5ç; todavia, os cristãos primitivos tomaram a palavra e a escreveram em forma de acrósti­co: ’lr]ao{)ç X p ia ió ç ©eóç u ióç Ecotr^p.

I - ’iTiao-uç (JESUS)X - XpiCTTÓÇ (CRISTO)0 - 08ÒÇ (DEUS)Y - uióç (FILHO)2 - ZCOTT P (SALVADOR)

Assim temos: “JESUS CRISTO, FILHO DE DEUS, SALVADOR”

Os cristãos primitivos também chamavam Jesus de “Peixe”, visto entenderem na palavra uma confissão de fé. Há, por exemplo, uma catacumba no terceiro ou quarto século, encontrada na França, em 1839, que traz um registro referindo-se a Jesus desta forma.29 E este não foi um caso isolado.30 Agostinho (354-430), explicando o empre­go desse símbolo, interpreta: “Esse nome místico simboliza Cristo, porque apenas ele foi capaz de viver vivo, quer dizer, sem pecado, no abismo de nossa mortalidade, semelhante às profundezas do mar.”31

Todavia, o uso corrente deste símbolo logo desapareceu; no prin­cípio do quinto século já não mais o encontramos na arte religiosa.32

1.3.2. Símbolo Acidental

O símbolo acidental é praticamente exclusividade de cada um, diferindo de pessoa para pessoa, sendo por isso difícil de ser transmi­

28 Vd. Hermisten M.P. Costa, A L iteratura A pocalíp tica Judaica, pp. 43-44.25 Vejam-se os dizeres da catacumba, In: Henry Bettenson, D ocum entos da Igreja Cristã ,

São Paulo, ASTE., 1967, p. 127.30 Cf. Justo L. G onzalez, A Era dos M ártires, São Paulo, Vida Nova, 1980, p. 159.11 Agostinho, A Cidade de Deus, 2a ed. Petrópolis, RJ/ São Paulo, Vozes/ Federação

Agostiniana Brasileira, 1990, Vol. II, XVIII.23. pp. 336-337.32 Cf. Withrow, Catacum bas, pp. 252-255. A pud Benjamin Scott, A s Catacum bas de

Rom a, 4 a ed. Rio de Janeiro, CPAD, 1982, p. 106.

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tido. Ele representa, de forma subjetiva, aquilo que ocorre conosco. Exemplifiquemos: Suponhamos que você haja tido uma boa expe­riência de vida numa determinada cidade, bairro ou rua onde vive. Posteriormente você se muda para outra cidade ou bairro, e aquele antigo local de sua residência transmite a você aquelas lembranças agradáveis, aqueles sentimentos que permearam sua existência ali, passando a ser o símbolo de uma agradável saudade. Particular­mente, Campinas e Belo Horizonte me trazem sentimentos análo­gos, pois foi, respectivamente, onde passei quatro dos melhores anos de minha vida de estudante e onde comecei meu ministério pastoral e docente. Ambas as cidades são para mim o símbolo de alegria e aprendizado, embora não possa transferir estes símbolos...

Se, por outro lado, alguém tiver passado maus momentos nestas mesmas cidades, ambas terão em sua lembrança um simbolismo bem diferente, daí a impossibilidade de se comunicar o símbolo acidental. A outra pessoa poderá até entender o que estamos dizen­do, todavia isto não faz parte da sua experiência, e dificilmente po­derá ser interiorizado como tal.

1.3.3. Símbolo Universal

O símbolo universal é aquele em que há uma relação intrínseca entre o símbolo e aquilo que ele representa, podendo por isso ser compartilhado com todos; desta forma temos: O choro = tristeza; sorriso = alegria; fumaça = fogo; nuvem escura = chuva iminente; sol = vida; água = pureza etc. É claro que alguns destes símbolos podem, eventualmente, representar uma imagem diversa: alguém chora de alegria; rir de nervosismo e tristeza; a água suja, indicando a poluição dos rios etc., todavia estas exceções não invalidam a universalidade destes símbolos, apenas o confirmam.

1.4. A Igreja e os Símbolos

A Bíblia está repleta de símbolos: cores, números, animais, no­mes de lugares e de pessoas, metais, pedras preciosas etc. Como já vimos, a Igreja pós-apostólica sentiu-se à vontade para empregar figuras que expressassem sua fé em Deus: O acróstico da palavra

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24 EU CREIO.

“peixe” (“Jesus Cristo, Filho de Deus, Salvador”); as duas letras iniciais do nome “Cristo”, colocadas uma sobre a outra [X (Chi) e P (Rho)] ^ = (“Cristo”); um círculo (= “vida eterna”); e o triângulo com três lados iguais (= Trindade), são apenas alguns dos muitos símbolos usados pela Igreja.33

Todavia, a palavra símbolo foi usada pela primeira vez, no sen­tido teológico, por Cipriano34 em 250, nas suas Epístolas (76 ou 69), referindo-se ao cismático Novaciano.35

O Credo Apostólico (2o século) - que fora atribuído tradicional­mente aos apóstolos36 - recebeu o designativo de símbolo, ao que parece, no Sínodo de Milão (390), numa carta subscrita por Ambró- sio (c. 334-397), sendo designado de “symbolum apostolorum”.37

Lutero (1483-1546) e Melanchton (1497-1560) foram os pri­meiros a usarem a palavra “símbolo” para os credos protestantes,38 passando desde então a designar os Catecismos e Confissões adota­

33 Cf. Benjamin Scott, A s Catacum bas de Roma, p. 95ss.; F.R. Worth, Simbolism : In: Vergilius Ferm, ed. An E ncyclopaedia o f R eligion, N ew York, The Philosophical Library, 1945, p. 754; Sim bolos, Histórico-Cristãos: In: Russel N. Chatnplin & João Marques Ben- tes, E nciclopédia de Bíblia, Teologia e Filosofia, São Paulo, Candeia, 1991, Vol. VI, pp. 276-277.

34 Vejam-se os textos das Epístolas In: A. Roberts & J. Donaldson, eds. The Ante-N icene F athers, N ew York, The Christian Literature Publishing Company, 1885, Vol. V (E pístola 76), pp. 402-404; (E písto la 69), pp. 375-377 (doravante citado com o AN F ).

35 Cf. Philip Schaff, The Creeds o f Christendom , 6a ed. Grand Rapids, M ichigan, Baker Book H ouse (revised and enlarged), 1977, Vol. I, p. 3 e Philip Schaff, ed. R eligious En­cyclopaedia: o r D ictionary o f Biblical, H istorical, Doctrinal, and P ractical Theology (1891) Vol. IV, p. 2276.

36 Esta lenda bastante antiga encontrou sua forma mais fam osa em Rufino (c. 404), que supõe que cada um dos apóstolos colaborou com uma cláusula em particular na elaboração do “Credo” (vd. J.N.D. Kelly, P rim itivos Credos Cristianos, p. 15ss.; J. Ratzinger, Introdu­ção ao C ristianism o, São Paulo, Herder, 1970, pp. 17-18).

37Am brósio, Ep. 4 2 ,5 (vd. J.N.D. Kelly, P rim itivos Credos Cristianos, p. 15; F.D. Danker, Sim bolism o, Sim bología: ln: E.F. Harrison, ed. D iccion ario de Teologia, p. 500; G.W. Brom iley, Credo, Credos: ln: Walter A . E lw ell, ed. E nciclopédia H istórico-Teológica da Igreja Cristã, I, p. 366). Cipriano, Agostinho e Rufino encontram-se entre aqueles que utilizaram o nome “Sím bolo” para referir-se ao “Credo A postólico” (cf. Charles A. Briggs, T heological Sym bolics, N ew York, Charles Scribners’s Sons, 1914, pp. 3, 4).

38 Cf. In: Philip Schaff, ed. R eligious E ncyclopaedia: o r D iction ary o f B iblical, H istori­cal, D octrinal, an d P ractical Theology, IV, p. 2276; Philip Schaff, The Creeds o f Christen­dom , Vol. I, pp. 3-4 (nota).

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Os Símbolos de Fé na História 25

dos pelas Igrejas Luteranas e Reformadas como elementos distinti­vos da sua compreensão teológica.2. O S CREDOS E AS CON FISSÕES

2.1. Origem e Uso

A palavra “Credo” é derivada do latim “credo”, que denota uma postura ativa de “eu creio”, uma confiança perene em Deus.

A Bíblia apresenta diversas confissões que consistem em ex­pressões de fé, as quais eram ensinadas. Parece haver acordo entre os estudiosos no que diz respeito às evidências neotestamentárias referentes a um corpo doutrinário específico, considerado como “depósito sagrado da parte de Deus”.39 No Antigo Testamento en­contramos: o “Shemá”40 (“ouve”), o “credo judeu”,41 que consistia na leitura de Dt 6.4-9; 11.13-21 e Nm 15.37-41). O “Shemá” era repetido três vezes ao dia,42 sendo usado liturgicamente na Sinago­ga43 e, possivelmente, Dt 26.5-9.44 No Novo Testamento deparamo- nos com abundante material que indica a existência de um corpo doutrinário fixo da igreja cristã. Temos referências às “tradições” [TtapáSooiç] (2Ts 2.15),45 à “Doutrina dos apóstolos" (At 2.42), à

39 Ralph P. Martin, Credo: J.D. Douglas, ed. org. O Novo D icionário da B íblia, I, p. 342; R.P. Martin, A doração na Igreja Prim itiva, São Paulo, Vida Nova, 1982, p. 64ss

40 É a primeira palavra que aparece em Dt 6.4, derivada do verbo (UÜW', Shãm a’), “ouvir”, envolvendo normalmente a idéia de ouvir com afeição (vd. Hermann J. Austel, Shãm a’: In: R.L. Harris, et. al. eds. Theological Wordbook o fth e O ld Testament, 2a ed. Chicago, M oody Press, 1981, Vol. II, pp. 938-939).

41 Conforme expressão de Edersheim (1825-1889). Vd. A. Edersheim, L a Vida y los Tiempos de Jesus el M esias, Barcelona, CLIE, 1988, Vol. I, p. 491.

42 Quanto ao emprego desta oração feita pelos judeus individualm ente, vd. Shemá: In: Alan Unterman, D icionário Judaico de Lendas e Tradições, Rio de Janeiro, Jorge Zahar ed. 1992, p. 242.

43 Cf. Hermisten M.P. Costa, Teologia do Culto , p. 19.44 Cf. G.W. Brom iley, Credo, Credos: ln: Walter A. Elwell, ed. E nciclopédia H istórico-

Teológica da Igreja Cristã , I, p. 365.45A tradição oral (itapáSoaiç) [“transmissão", “entrega", “tradição". A palavra é formada

de “Ilapá” (“junto a”, “ao lado de”) & “Aí8co|ii” (conform e o contexto: “dar”, “trazer”, “conceder”, “causar”, “colocar”, etc.)] consistia basicamente no que Jesus Cristo, os apósto­los e outros servos de Deus ensinavam através de seus sermões, orientações e comportamento (IC o 11.2, 23-25; G1 1.14; 2Ts 2.15; 3.6; Rm 6.17; 16.17; ICo 15.1-11; Fp 4.9; 1T s2.9, 13; 4 .11 ,1 2 ). Nestes textos, evidencia-se que a “tradição” recebida e ensinada amparava-se numa

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“palavra da vida” (Fp 2.16); à ‘ form a ( t ú t t o v = modelo) de doutri­na" (R m 6.17), à “Palavra” (G16.6), à “Pregação” (Rm 16.25; ICo 1.21),46 à “fé evangélica” (Fp 1.27), à “fé" (Ef 4.5; Cl 2.6-7; lTm 6.20-21), às “sãs palavras” (2Tm 1.13), ao “bom depósito" (2Tm 1.14; lTm 6.20), à “sã doutrina" (2Tm 4.3; lTm 4.6; Tt 1.9), à “verdade" (Cl 1.5; 2Ts 2.13; 2Tm 2.18, 25; 4.4), à “tradição {dos apóstolos)" (ICo 11.2;C1 2.6; lTs 4.1; 2Ts 2.15), ao “evangelho" (IC o 15.1; G1 1.9), à “confissão" (Hb 3.1; 4.14; 10.23), à “fé que uma vez por todas fo i entregue aos santos" (Jd 3; lTm 1.19; Tt 1.13) e à “fé santíssima" (Jd 20).

Outros textos parecem indicar as primeiras confissões da Igre­ja, tais como: “Jesus, o Cristo” (At 5.42); “Jesus Cristo é Senhor" (Fp2.11; ICo 12.3);“Senhor e Deus" (Jo 20.28); “Deus e Salvador Jesus Cristo" (At 2.13); “Senhor e Cristo" (At 2.36); “Jesus Cristo Filho de Deus" (At 8.37; Mt 16.16; Uo 4.15), etc.47

Os Credos em princípio não pretendem ser uma exposição exaus­tiva da fé, antes consistem numa declaração de fé dos pontos consi­derados essenciais à existência da Igreja Cristã.certeza quanto à sua origem divina. Portanto, as “tradições” m encionadas por Paulo distin­guem -se daquelas inventadas e transmitidas pelos hom ens, as quais são recriminadas por Cristo, visto que estes ensinam entos anulavam a Palavra de Deus (cf. Mt 15.2, 3, 6; Mc 7.3, 5, 8, 9, 13). A JtapóSoaiç é rejeitada todas as vezes que entra em choque com a Palavra de Deus (vd. H.M.F. Biichsel, n ap áS oa iç: In: Gerhard Kittel & G. Friedrich, eds. Theological D iction ary o fth e N ew Testament, M ichigan, Eerdmans, 1983 (Reprinted), Vol. II, pp. 172- 173; G. Hendriksen, 1 y 2 Tessalonicenses, Grand Rapids, M ichigan, Subcom ision Litera­tura Cristiana de la Iglesia Cristiana Reformada, 1980, pp. 217 e 230; I.H. Marshall, I e II Tessalonicenses: Introdução e Com entário, São Paulo, Vida Nova/M undo Cristão, 1984, pp. 245 e 257; W. Popkes, nap áS oa iç: In: Horst B alz & Gerhard Schneider, eds. Exegeti- cal D iction ary o fN ew Testament, Grand Rapids, M ichigan, Eerdmans, 1978-1980, Vol. 111, p. 21). Portanto, “A questão não é se temos tradições, mas se as nossas tradições estão em conflito com o único padrão absoluto nessas questões: as Escrituras Sagradas” (J.l. Packer, O Conforto do Conservadorismo: In: M ichael Horton, ed. R eligião de P oder, p. 234). Rid- derbos salienta que o conccito de tradição no N ovo Testamento não está associado ao pen­samento grego, antes é orientado pela concepção judaica, pela qual “o que confere autori­dade à tradição não é o peso dos antepassados ou da escola senão primordialmente o caráter do material dessa tradição....” [Herman N. Ridderbos, H istoria de la Salvación y Santa Escritura, Buenos Aires, Editorial Escaton (1973), p. 39],

46Vd. G.W. Bromiley, Credo, Credos: In: Walter A. E lw ell, ed. E nciclopédia H istórico- Teológica da Igreja C ristã , 1, p. 365; J.N.D. Kelly, P rim itivos Credos C ristianos, p. 24.

47 Vd. R.P. Martin, A doração na Igreja P rim itiva, pp. 63-76.

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Primitivamente, os Credos e Confissões eram empregados prin­cipalmente da seguinte forma:

2.1.1 Doutrinariamente

Serviam como ensino proposicional a respeito da fé cristã, ao mesmo tempo que combatiam ênfases ou ensinamentos essencial­mente errados.48 No segundo século eíes eram conhecidos como “regra de fé”.49 Os candidatos à Profissão de Fé estudavam a “dou-

48 Vd. At. 2.42; Rm 6.17; E f 4.5; Fp 2.16; Cl 2.7; 2Ts 2.15; 1 Tm 4.6, 16; 6.20; 2Tm 1.13, 14; 4.3; Tt 1.9, entre outros.

4(1 O s “Pais da Igreja” e alguns Concílios usaram com certa freqüência a expressão "câ­non” que, via de regra, visava a distinguir os ensinam entos da Igreja cristã das heresias que surgiam. Abaixo poderem os constatar, dentro da documentação disponível, alguns dos di­versos e valiosos testemunhos dos País e Concílios da Igreja.

Clem ente (c. 30-100), bispo de Roma (91-100), por volta do ano 95 A D., deparou-se com uma grave dissensão na Igreja de Corinto, causada por alguns jovens que não estavam obedecendo aos presbíteros da Igreja. Clem ente então, no m esm o ano, escreveu uma carta à Igreja, na qual ele os exorta à humildade e obediência, segundo o exem plo de Cristo, para que possam assim chegar à unidade e paz. Estimulando a Igreja arrependida a uma cam i­nhada segura em Cristo, diz: “Prossigam os para a gloriosa e venerável regra (Kavcív) de nossa tradição” (Clem ente de Roma, E pístola aos Coríntios, 1.7.2). Clem ente de A lexan­dria (c. 150-c. 215) chamou a harmonia entre o Antigo e o N ovo Testamentos de “um cânon p a ra a Igreja” [Clem ente de Alexandria, The Strom ata, VI. 15. In: A N F., II, pp. 506-511 (Vd. também, VI. 11; VII. 16)]. E le também escreveu um livro contra os judaizantes, intitu­lado, “Cânon eclesiástico ou contra os ju daizan tes” (Eusebio de Cesarea, H istoria E clesi­ástica, Madrid, Espana, La Editorial Católica, S.A . (Biblioteca de Autores Cristianos, Vols. 349 e 350), VI. 13.3. Irineu (c. 120-202), chama o “credo batism al” - que deveria ser guar­dado sem nenhuma modificação no coração - de “O cânon da verdade" (Irineu, A gainst H eresies, 1.9.4. In: AN F., I, p. 330. Vd. tam bém , A g ain stH eresies, I .10.I; III.4.1). Policar- po (c. 70-155) refere-se ao “Evangelho” com o “cânon da f é ” (Eusebio, HE., V.24.6).

Entre os anos de 264 e 268, três Sínodos reuniram-se sucessivam ente em Antioquia, tendo com o objetivo julgar a conduta e os ensinamentos de Paulo de Samosata, bispo de Antioquia desde 2 6 0 .0 último dos três sínodos (268) o condenou e o excom ungou por “heterodoxia” (fc-tepoSoíjíav). A sua doutrina e conduta foram classificadas com o sendo uma “apostasia do cânon” (“ótrcocrcòç t o ü kocvóvoç” ) (Eusebio de Cesarea, HE., VII.30.6); ou seja, o abandono da fé ortodoxa.

Com o pudem os observar, o emprego da expressão “cânon”, pelos Pais e C oncílios da Igreja, tinha o sentido de um padrão aprendido e recebido com o verdadeiro. Um a outra expressão usada, e pelo que deduzimos tinha o m esm o significado, era: “regra de fé" [cf. o uso feito por Tertuliano, D a Prescrição dos H ereges, 13. In: Cirilo Folch G om es (com pila­dor). A n tolog ia dos Santos Padres, 2a ed. (revista e ampliada), São Paulo, Paulinas, 1980. § 254 , p. 162 e AN F., III, p. 249; Novaciano, Sobre a Trindade: In: Cirilo Folch Gom es (compilador). A n tolog ia dos Santos Padres, § 309, p. 201] e “regra dos an tigos” (confor­m e uso de B asílio , Profissão de Fé: In: Cirilo Folch Gom es (compilador). A n tolog ia dos

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trina” a fim de que pudessem, na ocasião própria, declarar publica­mente sua fé de forma responsiva.

Os Credos também tiveram uma outra utilidade: Devido ao medo da perseguição, ao invés de serem escritos, eram memorizados50 e, quando necessário, recitados como testemunho de sua fé.

2.1.2. Liturgicamente

a) Batismo'. Os fiéis declaravam (no caso de serem adul­tos),51 responsivamente, sua fé na ocasião do batismo52 (Vd. At 8.37; Rm 10.9).

b) Santa Ceia: Na Eucaristia a Igreja declarava sua fé através de hinos, orações e exclamações devocionais (vd. ICo 12.3; 16.22; Fp 2.5-11).

c) Culto: Ao que parece, a partir do quarto século, os credos passaram a ser usados nos cultos regulares, sendo recitados após a leitura das Escrituras.

Com o passar do tempo, os credos foram se tornando mais detalhados; isto por dois motivos: 1) Devido à compreensão mais aprimorada das doutrinas bíblicas; 2) Devido à necessidade de, atra­vés do ensino cristão, combater as heresias que surgiam, marcada- mente relacionadas com a Pessoa de Cristo.53 Neste contexto sãoSantos Padres, § 365, p. 239). Em outras palavras, o “cânon eclesiástico” (koívcíj' xrjç èKKXriataç), quando não se referia aos Livros da Bíblia, significava a doutrina ortodoxa da Igreja, aquilo que a Igreja sustentava com o verdade (para mais detalhes sobre este assunto, vd. Hermisten M.P. Costa, A Inspiração e Inerrância das Escrituras: Uma P erspectiva Reform ada, São Paulo, Editora Cultura Cristã, 1998).

50 Am brósio de M ilão (c. 334-397) escreveu: “Os santos apóstolos juntos fizeram um resumo da fé a fim de que pudéssem os compreender brevemente o elenco de toda a nossa fé. A brevidade é necessária para que ela seja sempre mantida na memória e na lembrança” (Am brósio, E xplicação do Símbolo, São Paulo, Paulus, 1996, 2. p. 23).

51 Vd. H ipólito de Roma, Tradição A postólica , Petrópolis, RJ, Vozes, 1981, § 44. p. 51.52 Vd. H ipólito de Roma, Tradição A postólica , § 46, pp. 51-52; D idaquê, São Paulo,

Imprensa M etodista, 1957, VII. 1. p. 70.53 “A cristologia, como a maioria das doutrinas do Novo Testamento, foi retirada da bigorna

da necessidade quando a igreja entrou em conflito com os ensinos errôneos” (Broadus D. Hale, Introdução ao Estudo do Novo Testamento, Rio de Janeiro, JUERP, 1983, p. 299). Quanto às principais heresias dos primeiros séculos concernentes à Pessoa de Cristo, vd. Hermisten M.P. Costa, Introdução à Cristologia: Uma Perspectiva Histórica, São Paulo, 2001.

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Os Símbolos de Fé na História 29

elaborados quatro Credos que são considerados os mais importan­tes dos cinco primeiros séculos.

2.2. Credo Apostólico

O Credo dos Apóstolos tem sua origem no Credo Romano An­tigo, elaborado no segundo século,54,tendo algumas declarações doutrinárias acrescentadas no decorrer dos primeiros séculos,55 che­gando à sua forma como temos hoje por volta do sétimo século.

Paul Tillich (1886-1965), comentando a primeira declaração de fé deste Credo - “Creio em Deus Pai Todo-Poderoso Criador do Céu e da Terra” - , diz que “deveríamos pronunciar essas palavras com grande reverência, porque, por meio dessa confissão, o cristia­nismo se separou da interpretação dualista da realidade presente no paganismo (...). O primeiro artigo do Credo é a grande muralha que o cristianismo ergueu contra o paganismo. Sem essa separação a cristologia teria inevitavelmente se deteriorado num tipo de gnosti- cismo no qual o Cristo não seria mais do que um dos poderes cós­micos entre outros, embora, talvez, o maior deles.”56

O Credo Apostólico era usado na preparação dos catecúmenos, professado durante o batismo, servindo também para a devoção pri­vada dos cristãos. Posteriormente passou a ser recitado com a Ora­ção do Senhor no culto público.57 No nono século, ele foi sanciona­do pelo Imperador Carlos Magno para uso na Igreja, e o papa o incorporou à liturgia romana.58

54 Sobre a formação deste Credo, vd. J.N.D. Kelly, Prim itivos Credos Cristianos, p. 125ss.55 Cf. P. Schaff, The C reeds o f Christendom, Vol. 1, pp. 19-22; II. 45-55; Reinhold See-

berg, M anual de H istória de las D octrinas, El Paso, Texas/Buenos Aires/Santiago, Casa Bautista de Publicaciones/Junta Bautista de Publicaciones/Editorial “El Lucero”, [1963], Vol. 1, pp. 93-94; O.G. Oliver, Jr„ Credo dos Apóstolos: ln: Walter A . E lw ell, ed. E nciclo­p é d ia H istórico-Teológica da Igreja Cristã, I, pp. 362-363; K.S. Latourette, H istória dei C ristianism o, Vol. I, pp. 180-182; Henry Bettenson, D ocum entos da Igreja C ristã , p. 54; Charles A. Briggs, Theological Symbolics, N ew York, Charles Scribners’s Sons, 1914, p. 40; W ayne A. Grudem, Teologia Sistem ática, São Paulo, Vida N ova, 1999, p. 486ss.

“ Paul Tillich, H istória do Pensam ento Cristão, São Paulo, ASTE, 1988, p. 34.57 Cf. Philip Schaff, The Creeds o f Christendom, Vol. I, p. 17; O.G. Oliver, Jr., Credo dos

Apóstolos: ln: Walter A. Elwell, ed. Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã, 1, p. 363.58 Cf. Jack B. Rogers, Creeds and Confessions: Donald K. M cKim, ed. E ncyclopedia o f

the Reform ed Faith, Louisville, Kentucky, Westminster/John Knox Press, 1992, p. 91.

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30 EU CREIO.

A Reforma valorizou este Credo,59 sendo ele usado liturgica- mente em muitas de nossas igrejas ainda na atualidade.

A analogia feita por P. Schaff (1819-1893) parece resumir bem o significado deste Credo: “Como a Oração do Senhor é a Oração das orações, o Decálogo, a Lei das leis, também o Credo dos Após­tolos é o Credo dos credos.”60

2.3. Credo Afanasiano

Também conhecido como “Symbolum Quicunque”, porque esta é sua primeira palavra em latim: “ Quicunque vult salvus esse” (“Todo aquele que quiser ser salvo...”). Este Credo que reflete a teologia dos quatro primeiros sínodos ecumênicos tem sentenças breves que são “artisticamente arranjadas e ritmicamente expressadas. Ele é um credo musical ou salmo dogmático.”61 Segundo a tradição, ele teria sido escrito por Atanásio (295-373), Bispo de Alexandria (328- 373), conhecido como “Pai da Ortodoxia”. Segundo a mesma tra­dição, Atanásio o elaborara durante seu exílio em Roma, tendo-o oferecido ao papa Julius como sua confissão de fé.62 Todavia, esta tradição tem sido rejeitada por muitos estudiosos desde o século XVII, quando o holandês Gerhard Jan Vossius (1577-1649) apre­sentou em 1642 suas conclusões que contrariavam a referida cren­ça, o mesmo fazendo James Usher (1581-1656) em 1647.63

59 O Credo A postólico pode ser dividido em quatro partes, a saber:1) D eus Pai2) D eus Filho: a História da Redenção3) D eus Espírito Santo4) A Igreja e os benefícios que D eus nos tem concedido

Vd. J. Calvino, Catecism o de Ia Iglesia de Genebra: In: C atecism os de la Ig lesia R efor­m ada, Pergunta 186, p. 32.

60P. Schaff, The Creeds o f Christendom , Vol. 1, p. 14.61 P. Schaff, The Creeds o f Christendom , Vol. 1, p. 37.62 Cf. P. Schaff, The Creeds o f Christendom , Vol. I, p. 35.63 Cf. P. Schaff, The Creeds o f Christendom , Vol. I, p. 35; J.F. Johnson, Credo Atanasia-

no: In: Walter A. E lw ell, ed. Enciclopédia H istórico-Teológica da Igreja Cristã, I, p. 364. Kelly diz que Vossius e Usher “inauguraram a era moderna de estudos sobre os credos” (J.N. D. Kelly, P rim itivos Credos Cristianos, p. 19).

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Os Símbolos de Fé na História 31

A teoria mais aceita hoje é a de que este Credo foi escrito por volta do ano 500, no sul da Gália ou África do Norte64 ou até mes­mo em dois lugares e momentos diferentes.65 Apesar de várias hi­póteses quanto à sua autoria (Ambrósio, Hilário de Aries, Virgílio de Tapsus, Vicente de Lérins, Paulinus de Aquileja, entre outros),66 ninguém conseguiu provar de modo incontestável a identidade do seu autor.

A ênfase deste Credo é a defesa da Cristologia e da doutrina da Trindade conforme foram definidas nos Concílios de Nicéia (325), Constantinopla (381) e Calcedônia (451), refletindo visivelmente a teologia de Agostinho (354-430).67

Ele foi amplamente considerado na Idade Média: na Igreja lati­na era quase que diariamente usado nas devoções matinais68 e, ao que parece, também tinha funções catequéticas.69 Os Reformadores o apreciaram bastante (tanto Lutero como Calvino70); as Confissões Luteranas (Augsburgo e Fórmula de Concórdia) e Reformadas (Trin­ta e Nove Artigos, Primeira e Segunda Confissão Helvética, Belga) fazem referência a ele. Neste ponto, a Confissão de Westminster se constitui numa exceção, já que não o menciona.

64 Cf. P. Schaff, The Creeds o f Christendom , Vol. I, p. 36; Johnson, Credo Atanasiano: In; Walter A. E lw ell, ed E nciclopédia H istórico-Teológica da Igreja C ristã , I, p. 364; James Hastings, ed., D ictionary o f the Bible, N ew York, Charles Scribner’s Sons (edition revised F.C. Grant and H.H. R ow ley), 1963, p. 188; A .A . H odge, E sboços de Theologia, Lisboa, Barata & Sanches, 1895, p. 103; L. BofF, A Trindade e a Sociedade, 3" ed. Petrópolis, RJ, Vozes, 1987, pp. 91-92.

65 Conform e sugere Charles A. Briggs, T heological Sym bolics, p. 100.66 Vd. P. Schaff, The Creeds o f Christendom , Vol. I, p. 36; Johnson, Credo Atanasiano;

In; Walter A. Elw ell, ed Enciclopédia H istórico-Teológica da Igreja Cristã, 1, p. 364; Charles A. Briggs, T heological Sym bolics, p. lOOss.

67 Cf. J.N.D. Kelly, D outrinas C entrais da Fé Cristã: O rigem e D esenvolvim ento , São Paulo, Vida Nova, 1983, p. 206; P Schaff, The Creeds o f Christendom , Vol. 1, p. 36ss; A .A . Hodge, E sboços de Theologia, p. 103 (veja-se, conform e já indicamos supra: Agostinho, A Trindade, São Paulo, Paulus, 1994).

68 Cf. P. Schaff, The Creeds o f Christendom , Vol. 1, p. 40.“ Johnson, Credo Atanasiano: In:-Walter A. E lw ell, ed E nciclopédia H istórico-Teológi­

ca da Igreja Cristã , 1, p. 364.70 Compare; T.M. Lindsay, La Reform a y S u D esarrolo Social, Barcelona, CLIE., [1986],

p. 102 e L. Berkhof, H istória das D outrinas Cristãs, São Paulo, PES, 1992, p. 87; Timothy G eorge, Teologia dos Reform adores, pp. 198-200.

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32 EU CREIO.

Atualmente o Credo Aíanasiano é usado liturgicamente com mais freqüência pelas Igrejas Romana e Anglicana.

2.4. Credo Niceno-Constantinopolitano71

O Credo Niceno primitivo foi elaborado no Primeiro Concílio Ecumênico72 de Nicéia (20/05/325),73 na Bitínia, no ano 325. Este

71 Quem primeiro o denominou assim foi J.B. Carpzov (1639-1699), professor de Teolo­gia da Universidade de Leipzig (vd. J.N. D . Kelly, Prim itivos Credos C ristianos, p. 353).

72 Esses C oncílios foram assim chamados porque reuniam as Igrejas do Oriente e do Ocidente. A palavra OlKot)|iévr) é derivada de O íkoç (casa, nação). O conceito desta pala­vra era primariamente geográfico - terra habitada [Vd. Heródoto, H istória, Rio de Janeiro, Editora Tecnoprint (s.d.), IV. 110, p. 373] - , tornando-se depois também cultural e político (vd. M ichel, fi olKou|xévr|: ]n : TDNT., V, p. 157), indicando o mundo cultural versado e refinado comandado pelos gregos em contraposição ao “barbarismo” [cf. John H. Gerstner, Ecum enism o: In: E.F. Harrison, ed. D iccionario de Teologia, p. 183b].

OlKo\)|xévr| tem o sentido de “mundo civilizado”, “todos os habitantes do globo” (cf. A Lexicon A bridgedfrom L iddell and S c o tt’s Greek-English Lexicon, Oxford, Clarendon Press, 1935, p. 477b). A palavra veio a significar: a) A partir de D em óstenes (384-322 a.C.), mundo habitado pelos gregos em contraste com as terras habitadas pelos bárbaros; b) A partir de Aristóteles (384-322 a.C.), mundo habitado, quer por gregos, quev por “bárbaros” , contrastando com as terras não habitadas; c) Adquiriu no Império Rom ano um sentido político, indicando as terras sob o dom ínio romano. Não é à toa que Nero tinha o título de Ecottíp e EÚEpyétriç da OlK0 U|xévr|, ou seja, “Salvador e benfeitor da terra” [cf. O Flender, Terra: In: Colin Brown, ed. ger. O N ovo D icionário Internacional de Teologia do N ovo Testamento, Vol. IV, pp. 601-602],

Na Septuaginta, a palavra ocorre 46 vezes, especialm ente no Livro de Salm os, tendo de m odo geral o sentido de terra habitada, sendo muitas vezes traduzida por mundo. Com o exem plo, citamos: 2Sm 22.16; SI 18.15; 19.4; 24.1; 33.8; 50.12; Jr 10.12 (mundo); Is 10.14, 23; 13.5, 9 (terra); Ex 16.35 (ARA; BJ: “terra habitada”); Pv 8.31 (ARA: “mundo habitá­vel”; BJ; “superfície da terra”).

O NT emprega a palavra 15 vezes (*Mt 24.14; Lc 2.1; 4.5; 21.26; At 11.18; 17.6, 31; 19.27; 24.5; Rm 10.18; Hb 1.6; 2.5; Ap 3.10; 12.9; 16.14) - especialm ente nos escritos de Lucas (8 vezes) - , primordialmente no sentido geográfico, ainda que Lc 2.1, entre outros textos, indique o sentido político, revelando o poder romano. A ssim podem os classificar sua ocorrência do seguinte modo: a) A terra habitada, o mundo: M t2 4 .1 4 ;L c 4 .5 ; 21.26; At 11.28; Rm 10.18; Hb 1.6; Ap 16.14; b) Mundo, no sentido de humanidade: At 17.31; 19.27; Ap 3.10; 12.9; c) O Império Romano: At 24.5; d) Seus habitantes: Lc 2.1; At 17.6; e) O mundo por vir: Hb 2.5.

n Socrates Scholasticus, E cclesiastical H istory, 1.13. In: NPNF2, 11, p. 19. Ou dia 19, conform e estudos modernos têm indicado (cf. J.N.D. Kelly, P rim itivos Credos Cristianos, p. 254). A História mais detalhada deste Concílio é encontrada, entre outras, nas seguintes obras: J.N.D. Kelly, Prim itivos Credos C ristianos, p. 247ss.; K.S. Latourette, H istória dei C ristianism o, 1, p. 201 ss.; Earle E. Cairns, O C ristianism o A través dos Séculos, São Paulo, Vida N ova, 1984, p. 107ss.; C .A. Blaising, Concílio de Nicéia: In; Walter A. E lw ell, ed

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Os Símbolos de Fé na História 33

Concílio teve uma representação significativa (especialmente das igrejas do Oriente): 30074 ou 31875 bispos; cerca de 1/6 de todos os bispos (estima-se a existência de 1800 bispos em toda a Igreja).76 O Concílio foi convocado e subvencionado pelo Imperador Constan­tino77 - quem presidiu a sessão inaugural, fazendo um discurso so­bre o perigo da dissensão dentro da Igreja, tendo também ampla participação no decorrer do Concílio78 - visando tratar da questão Ariana79 que prejudicava a união da Igreja e, conseqüentemente, doE nciclopédia H istórico-Teológica da Igreja Cristã , ], pp. 309-311; W. Walker, H istória da Igreja C ristã , São Paulo, ASTE, 1967, Vol. I, pp. 157-162 e, principalmente, J.L. G onza­lez, A Era dos G igantes, São Paulo, Vida Nova, 1980, pp. 87-98 e G iuseppe Alberigo, org. H istória dos Concílios Ecum ênicos, São Paulo, Paulus, 1995, p. 23ss.

74 K.S. Latourette, H istória dei C ristianism o, I, p. 202; E.E. Cairns, O C ristianism o A través dos Séculos, p. 107; J.L. Gonzalez, A Era dos G igantes, p. 92.

75 Philip Schaff, The Creeds o f Christendom , Vol. I, p. 25; A.H. Leitch, Creed, Creeds: In: Merril C. Tenney, ed. ger. The Zondervan P ic tora l E ncyclopaedia o f the B ible, 5" ed. M ichigan, Zondervan, 1982, Vol. 1, p. 1027. D evido à participação desses 318 bispos, este C redo é também chamado “Credo dos 31 8” (Ibidem , p. 1027). Convencionou-se, desde a segunda metade do 4° século, a declaração de que houve 318 representantes, “inspirando-se nos 318 servidores de Abraão de Gn 14.14”; todavia as fontes antigas e interpretações modernas são das mais variadas, oscilando entre 194 e 318 representantes (vd. Giuseppe Alberigo, org. H istória do s C oncílios Ecumênicos, p. 25).

76 Cf. Philip Schaff, H istory o f the Christian Church, Peabody, M assachusetts, Hendri­ckson Publishers, 1996, Vol. Ill, § 120, pp. 623-624.

77 Cada bispo poderia levar consigo dois presbíteros e três criados (cf. Philip Schaff, H istory o f the Christian Church, Vol. I ll, § 120, p. 623).

78 Cf. Eusebius, The Life o f Constantine the G reat, III. 12. ln: NPNF2, Vol. I., p. 523 (Vd. Philip Schaff, H istory o f the Christian Church, Vol. Ill, § 120, p. 622ss; K.S. Latourette, H istória del Cristianism o, I, p. 201; C.A. Blaising, C oncílio de Nicéia: ln: Walter A. Elw e- 11, ed. E nciclopédia H istórico-Teológica da Igreja Cristã, I, p. 310; J.L. G onzalez, A Era dos M ártires, p. 93; Giuseppe Alberigo, org. H istória dos Concílios Ecum ênicos, p. 26s.; J.N.D. Kelly, Prim itivos Credos Cristianos, p. 254).

79 A questão ariana é proveniente da condenação dos ensinam entos de Ário. Ário (c. 250- c.336), natural da Líbia e educado em Antioquia da Síria, tendo com o mestre a figura enigm ática de Luciano de Antioquia ( t 312), que teria sido discípulo de Paulo de Samosata. Ário teve os seus ensinam entos condenados em Antioquia (02/325); e no Primeiro Concílio Ecum ênico de N icéia (20/05/325), sendo então deportado para o Ilírico. M esm o no exílio , ele continuou escrevendo, aumentando consideravelm ente a sua influência, contando sem ­pre com um bom número de am igos fiéis, sendo o grande articulador político do grupo ariano, o bispo Eusébio de N icom édia (t 342). Em 335, num encontro com Constantino (274-337), Ário subscreveu uma confissão considerada pelo Imperador “ortodoxa” . [Vd. o texto da sua confissão In: Socrates Scholasticus, The Ecclesiastical H istory, 1.26. In: NPNF2.,II, pp. 28-29; Salaminus Hermias Sozom en, The E cclesiastical H istory, 1.27. ln: NPNF2,11, pp. 277-278; o texto grego está reproduzido in P. Schaff, The Creeds o f Christendom ,

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34 EU CREIO.

Império. O Concílio, depois de amplo debate, declarou a igualdade essencial entre o Pai e o Filho. Os ensinamentos de Ário foram condenados e ele foi deportado para o Uírico.80Vol. II, pp. 28-29. Vd. também, Carlos Ignacio G onzalez, El D esarrollo D ogm ático en los C oncílios C risto log icos , Santafé de Bogotá, CELAM ., 1991, p. 316], Em 336/337, quando jazia no seu leito de morte em Constantinopla, foi solenem ente readmitido à comunhão da Igreja pelo Sínodo de Jerusalém.

O Arianismo a despeito de sua condenação em Nicéia, juntamente com os anátemas em itidos por este Concílio, desfrutou de ampla aceitação no quarto século, só com eçando a perder força no C oncílio de Constantinopla (381), quando a posição de N icéia fo i reafirma­da; no entanto, o arianismo permaneceu vivo até o final do século sétimo.

' O ponto focal de Ário é dc que há um só Deus não-gerado, sem com eço, único, verdadei­ro, único detentor de imortalidade. Para os arianos, Jesus Cristo não era da m esm a substân­cia do Pai (ópooiicnoç), mas sim de uma substância similar (ó p o ió w io ç ) . D esta premissa, corno observa (vd. J.N.D. Kelly, D outrinas Centrais da Fé Cristã, pp. 172-174), decorrem quatro outras;

1) O Filho é uma criatura; uma criatura perfeita, distinta da criação, mas que veio à existência pela vontade do Pai;

2) Com o criatura, o Filho teve um com eço. Logo, a afirmação de que ele era co-eterno com o Pai implicaria na existência de dois princípios, o que assinalaria uma negação do m onoteísm o;

3) O Filho não tem nenhuma comunhão substancial com o Pai. Ele é uma criatura que recebeu o título de “Palavra” e “Sabedoria” de Deus porque participa da Palavra e Sabedo­ria essenciais;

4) O Filho está sujeito a mudanças e ao pecado, tendo podido cair com o o diabo caiu. Contudo, Deus, prevendo sua firmeza de caráter, agiu preventivamente com sua graça.

Á r io e seu s discípulos, buscando apoio em textos tais com o Jo 1. J4; 3.16, 18; Cl 1.15; U o 4.9, ensinavam que Deus, o Pai, criou o Filho primeiro, e através do Filho criou o Espírito, os homens e o mundo; portanto: Jesus é o primogênito do Pai e o Espírito é o primogênito do Filho. O Filho fo i criado do nada; ele veio à existência antes da fundação do mundo, mas ele não é eterno porque foi criado. D aí o “chavão” ariano: “Tempo houve em que ele não existia” (cf. J.N.D. Kelly, Doutrinas Centrais da F é Cristã, p. 173). Portanto, sendo o Filho criado, não é Deus. Conseqüentemente, Jesus não é da mesma essência ou natureza do Pai. A atribui­ção dc títulos “Deus” e “Filho” feita a Jesus era apenas de cortesia, resultante da graça.

Quando perseguido em 321, Ário buscou ajuda no seu antigo e poderoso am igo, o bispo Eusébio de Nicom cdia ( f 342) - quem batizaria o imperador Constantino, moribundo, em maio de 337 - , escrevendo: “Som os perseguidos porque afirmamos que o Filho tem um início, enquanto que Deus é sem início (&wxpxoç)”. (Ário a Eusébio, In: H. Bettenson, D ocum entos da Igreja Cristã, p. 72.)

O historiador W. Walker resume a posição de Ário:“Para Ário, Cristo era, na verdade, Deus, em certo sentido, mas um Deus inferior, de m odo algum uno com o Pai em essência ou eternidade. Na encarnação, esse Logos entrou em um corpo humano, tomando o lugar do espírito racional humano” (W. Walker, H istória da Igreja Cristã , Vol. I, p. 158).

80 V.L. Walter, Arianismo: In: Waltcr A. Elwell, ed. E nciclopédia H istórico-Teológica da Igreja Cristã, 1, p. 105.

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Os Símbolos de Fé no História 35

Posteriormente, o Concílio de Constantinopla (381), convoca­do pelo Imperador Teodósio I - sendo presidido inicialmente por M elécio de Antioquia (310-381) constituído tradicionalmente por 150 bispos, ampliou o Credo Niceno, daí o nome de Credo Niceno- Constantinopolitano. Esse Credo “ampliado”81 foi lido e aprovado no Concílio de Calcedônia (451).82

O Credo Niceno-Constantinopolitano é usado liturgicamente pela Igreja romana e pelas Igrejas Luteranas e Anglicanas. As Igre­jas Reformadas o usam pouco.83 Ele é sem dúvida um dos mais importantes Credos da Igreja Cristã.

2.5. Credo de Calcedônia

O Quarto Concílio Ecumênico foi realizado em Calcedônia, perto de Constantinopla (atual Istambul). Reunido de 8 a 31 de outubro de 451, contou com a presença de mais de 50084 bispos e vários delegados papais que, como de costume, o representavam. Nesta

81 Para uma critica desta posição, vd. J.N. D. Kelly, P rim itivos Credos Cristianos, p. 356ss. Temos uma defesa da visão tradicional preservada desde Calcedônia (451), In: Giu- seppe Alberigo, org. H istória dos Concílios E cum ênicos, pp. 68-70

82 Cf. Archibald A. Hodge, Esboços de Theologia , p. 104; J.N. D . Kelly, P rim itivos C redos C ristianos, p. 354. Este Credo seria posteriormente reafirmado na oitava sessão do6 o C oncílio Ecum ênio, realizado em Constantinopla (16/9/680; cf. J.N. D. Kelly, P rim iti­vos Credos C ristianos , p. 356) (Os primeiros 4 C oncílios Ecum ênicos - reuniram as igrejas do Ocidente e do Oriente - foram: N icéia (325), Constantinopla (381), Éfeso (431) e Calcc- dônia (451).

83 Cf. P. Scliaff, The Creeds o f Christendom , Vol. I, p. 27. N o entanto, a Reforma tornou- o mais conhecido, traduzindo-o para vários idiomas, reafirmando sua importância (cf. J.N. D. Kelly, P rim itivos Credos Cristianos, p. 354).

84 J.L. G onzalez diz 520 (A Era das Trevas, p. 99). Latourette fala de 600 bispos, fora os legados (Kenneth S. Latourette, H istoria dei Cristianism o, 1, p. 220. Vd. também: A .A. Hodge, E sboços de Theologia, p. 104). Hodge fala de 630 (Archibald A. Hodge, Confissão de Fé W estminster Com entada p o r A.A. H odge, São Paulo, Editora os Puritanos, 1999, p. 192). Outros autores mencionam de forma m enos específica a presença de mais de 500 bispos (Ex. J.N.D. Kelly, D outrinas C entrais da F é Cristã: Origem e D esenvolvim ento , p. 256; J.H. Hall, Concílio de Calcedônia: In: ln: Walter A. E lw ell, ed. E nciclopédia H istóri- co-T eológica da Igreja Cristã, Vol. 1, p. 306). Sobre as versões diferentes a respeito do número de participantes, vd. Lorenzo Perrone, D e N icéia (325) a Calcedônia (451): In: Giuseppe Alberigo, org. H istória dos C oncílios Ecumênicos, São Paulo, Paulus, 1995, p. 93). D estes bispos, 4 0 “teriam sido incapazes de assinar seu nom e” (Jean Vial, Técnicas Pedagógicas: Os Rudimentos até ao Renascimento: ln: Gaston Mialaret & Jean Vial, dire­tores, H istória M undial da Educação, Porto, Rés (s.d.), Vol. 1, p. 313).

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36 EU CREIO.

reunião, a já aludida “Carta Dogmática” ou ‘Tomo”85 redigido pelo bispo Leão I, o “Grande”,86 de Roma (13/06/449), foi decisivo na elaboração de seu Credo.87

Como vimos, Calcedônia ratificou o Credo de Nicéia (325) e o de Constantinopla (381). O seu objetivo era estabelecer uma unida­de teológica na Igreja.

A sua declaração teológica foi rascunhada em 22 de outubro por uma comissão presidida por Anatólio de Constantinopla (f 458),88 encontrando a sua redação final, possivelmente, na 5a Ses­são, na quinta-feira de 25 de outubro.89 Calcedônia rejeitou o Nes- torianismo90 (duas pessoas e duas naturezas) e o Eutiquianismo91

85 Este “Tomo" é chamado por Berkhof de “um com pêndio da cristologia ocidental” (vd. L. Berkhof, H istória das D outrinas C ristãs, pp. 97-98). D o m esm o m odo, declara Perrone: “O Tomus ad Flavianum representa uma contribuição decisiva para a solução da questão cristológica, tal com o tomará forma na definição de Calcedônia” (Lorenzo Perrone, D e N icéia (325) a Calcedônia (451): ln: ln: G iuseppe Alberigo, org. H istória dos Concílios Ecum ênicos, p. 88). Boa parte deste “Tomo" encontra-se In: H. Bettenson, D ocum entos da Igreja Cristã, pp. 83-86.

86Latourette diz que Leão I “foi um dos homens mais capazes que já ocuparam o chama­do trono de Pedro” (K.S. Latourette, H istória dei Cristianism o, I, p. 220).

87 Quando o “Tomo” de Leão foi lido, na segunda sessão (10 /10/451), ainda que não unânime, houve repetidas aclamações, tais como: “A fé dos pais, a fé dos apóstolos” ; “P e­dro falou por m eio de Leão” e “Leão e Cirilo deram o m esm o ensinam ento” (cf. Lorenzo Perrone, D e N icéia (325) a Calcedônia (451): In: Giuseppe Alberigo, org. H istória dos Concílios Ecum ênicos, p. 96).

88 Cf. Lorenzo Perrone, D e N icéia (325) a Calcedônia (451): In: G iuseppe Alberigo, org. H istória dos Concílios Ecumênicos, p. 98.

s'; Compare as informações de J.N.D. Kelly, Doutrinas C entrais da F é Cristã: O rigem e D esenvolvim ento , p. 257; P. Schaff, The Creeds o f Christendom , Vol. 1, p 29; Lorenzo Perrone, D e N icéia (325) a Calcedônia (451): In: H CE ., pp. 97-98..

IJ0 N om e proveniente de Nestório (380-451), B ispo de Constantinopla (428-431). Adver­sário voraz do Arianismo, seu primeiro ato oficial com o patriarca foi incendiar uma capela ariana.

N estório, numa série de sermões proferidos em 428 , combateu uma designação popular dada a Maria, “ Q e o t ó k o ç ” (“M ãe de D eus”). Esta fórmula seria usada pouco depois pelo C oncílio de Éfeso (431), alcunhada por Cirilo de Alexandria. O Concílio de Éfeso utilizou esta expressão não com o uma atribuição de majestade a Maria [o que viria a acontecer por volta do sexto século, quando Maria com eçaria a ser adorada (cf. W.C.G. Proctor, Madre de Dios: ln: E .E Harrison, ed. D iccíonario de Teologia, p. 325)], mas sim com o reconheci­mento de que o que dela nasceu, por obra do Espírito Santo, era o Filho de Deus, o Deus encarnado desde à concepção. Nestório, por sua vez - fugindo do que considerava o extre­m o oposto, que dizia ser Maria “èa/Spojto-cÓKOç” (“M ãe do hom em ”) - , entendia que a

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Os Símbolos de Fé na História 37

expressão correta seria “ XpiaTO-cÓKOç” (“Mãe de Cristo”), ou m esm o, “© eoSó^oç” [“que recebe (“Ao%if’, “recipiente”, “vasilha”, “depósito”) a D eus”], por considerar distintas as qualidades da divindade e da humanidade. D este modo, aceitando sua posição, podem os perceber logo de início o problema da encarnação do Verbo: o m enino que nasceu de Maria era Deus-Hom em ?.

Nestório, tentando refutar o Eutiquianismo, ensinava (?)(*) que Jesus C risto era consti­tuído de duas pesso a s e duas naturezas. Sustentava que cada uma das duas Naturezas de Jesus tinha sua própria subsistência e personalidade; a união entre elas não era ontológica, mas apenas moral, simpática e afetiva.

Os seus ensinam entos foram rejeitados no Concílio de Éfeso (431) e de Calcedônia (451). Ele fo i mandado para um mosteiro em Antioquia, depois exilado (435/436) na distante cidade de Petra da Arábia e finalmente foi para o O ásis de Upper no Egito, onde passaria o resto dc seus dias.

O Nestorianism o permaneceu na Pérsia, onde seus seguidores estabeleceram um eficien­te trabalho m issionário que permitiu sua proliferação na Arábia, índia, Turquestão e China, espalhando-se por diversas regiões da Ásia. Ainda hoje sobrevive o Nestorianism o (“Cal­deus Uniatos”) na M esopotâmia, Pérsia e Síria, havendo um grupo alinhado com a Igreja de Roma e outro independente (“Igreja Nestoriana Não-Unida”). (Vd. mais detalhes in Nesto- rianos: In: Russel N. Champlin & João Marques Bentes, E nciclopédia de Bíblia, Teologia e Filosofia, IV, p. 489; K..S. Latourette, H istória dei Cristianism o, I, pp. 218-219; Justo L.. Gonzalez, A Era das Trevas, São Paulo, Vida Nova, 1985 (reimpressão), p. 116ss.)

(*) No início do século XX, descobriu-se um escrito de Nestório, O Livro de H eraclei- des, no qual ele ensina algo que vai justamente de encontro à heresia que supunham que c ie sustentava. Referindo-se a Cristo, Nestório afirma que “o m esm o que é um é duplo” ; ele também se dizia satisfeito com a Cristologia de Calcedônia. Na atualidade os estudi­osos estão divididos quanto ao seu pensamento; e se foi justo ou não condená-lo (vd. H. Griffith, Nestório, Nestorianismo: In: Walter A. E lw ell, ed. E nciclopédia Histórico-Teo- lógica da Igreja Cristã, Vol. III, p. 19; J.N.D. Kelly, D outrinas C entrais da Fé Cristã , pp. 235-240; B. Hágllund, H istória da Teologia, Porto Alegre, RS, Casa Publicadora Concórdia, 1973, pp. 79-82; G.C. Berkouwer, A P essoa de C risto , p. 54).91 Nom e derivado de Êutico (= Eutiques, Eutíquio) (c .378-454), arquimadrita(chefe de um

ou mais mosteiros) de um mosteiro em Constantinopla, discípulo de Cirilo de Alexandria. A sua doutrina consiste numa reação ao Nestorianismo. Ele sustentou que a encarnação é o resultado da fu são do divino com o humano em Jesus, sendo a natureza humana absorvida pela divina. Assim , sua posição envolvia uma pessoa e uma natureza. Ele foi o fundador do “M onofisism o”: Cristo tem uma única natureza; a divina revestida de carne humana.

O Eutiquianismo foi condenado no Sínodo Permanente de Constantinopla (448). Toda­via, em outro Concílio, convocado pelo imperador Teodósio II (408-450), realizado em É feso (08 /449), Êutico foi reabilitado. Isto ocorreu à revelia do bispo de Roma Leão 1, “o Grande” , que havia elaborado uma “C arta Dogm ática" ou “Tomo” (13/06/449) com baten­do a doutrina da natureza única de Cristo. D ióscoro, sucessor de Cirilo ( t 4 4 4) com o patri­arca de Antioquia, foi quem presidiu este Concílio - com plenos poderes im periais-, impe­dindo inclusive que os três legados do bispo de Roma lessem sua “C arta D ogm ática” pe­rante o C oncílio .(*)

No entanto, dois anos depois foi convocado o Concílio de Calcedônia (451) pelo impera­dor Marciano, que casou-se com Pulquéria [irmã do imperador Teodósio II, falecido pre­maturamente numa queda de cavalo (28/07/450)]. Calcedônia anulou a decisão de Éfeso e o invalidou com o C oncílio verdadeiramente ecum ênico, condenando o Eutiquianismo, exi-

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38 EU CREIO.

(uma pessoa e uma natureza), afirmando que Jesus Cristo é uma Pessoa, sendo verdadeiro Deus e verdadeiro homem (uma pessoa e duas naturezas). “....Calcedônia pronunciou-se não só contra a se­paração como contra a fusão”92 das duas naturezas de Cristo. Toda­via, a noção de mistério esteve presente nesta confissão, por isso ela não tentou explicar o que as Escrituras não esclareciam.93

Como já escrevemos em outro lugar, “Um decreto ou uma de­claração teológica, por mais relevante que seja, não põe fim ime­diatamente a um sistema; a ortodoxia, por sua vez, não é criada através de pronunciamentos oficiais, embora saibamos que todos eles sejam necessários e relevantes para nortear a Igreja. Com isso, estamos apenas querendo indicar que, do mesmo modo que Ni- céia não colocou um ponto final na questão Trinitária, Calcedônia não determinou o fim dos problemas Cristológicos. Como já indi­camos, as heresias permaneceram em diversas regiões, especial­mente na Igreja Oriental.94 Contudo, Calcedônia se constitui num marco decisório na vida da Igreja, estabelecendo uma compreensão Cristológica que, se não é a final, é a que pôde ser alcançada, pelo Espírito, dentro da revelação. No entanto, a Palavra é a fonte de toda a genuína teologia, portanto, se Calcedônia estabeleceu bali­zas, e graças a Deus por isso, devemos permanecer sempre atentoslando Êutico e Dióscoro. Contudo, o Eutiquianismo continuou vigorando com o ensinam en­to genuíno na Igreja Egípcia.

(*) Este C oncílio seria conhecido na História com o o “Sínodo dos Ladrões", alcunha dada por Leão, bispo de Roma, em carta dirigida a Pulquéria, irmã do imperador Teodó- sio 11, em 20/07/451. Isto porque a sua decisão não coincidia com a ortodoxia da Igreja, e também porque o seu docum ento não foi lido (vd. mais detalhes, ln: J.N.D. Kelly, D outrinas C entrais da Fé Cristã, pp. 249-252; Éfeso, C oncílios de; In: Russel N. Cham- plin & João Marques Bentes, E nciclopédia de Bíblia, Teologia e F ilosofia, II, p. 289a; Justo L. G onzalez, A Era das Trevas, pp. 98-99).(,2G. C. Berkouwer, A Pessoa de Cristo, p. 55.M Vd. G.C. Berkouwer, A P essoa de Cristo, p. 67ss.; Cari E. Braaten, A Pessoa de Jesus

Cristo: ln: Cari E. Braaten & Robert W. Jenson, eds. D ogm ática Cristã, Vol. I, p. 492.,4 A lém das indicações já feitas, vd. Louis Berkhof, H istória das D outrinas C ristãs, pp.

99-102; J.N.D. Kelly, Doutrinas C entrais da F é Cristã: O rigem e D esenvolvim ento , p. 258; B . Lohse, A Fé C ristã A través dos Séculos, pp. 101-106; P. Tillich, H istória do P en­sam ento C ristão, São Paulo, ASTE, 1988, p. 91ss.; J.L. Gonzalez, A Era das Trevas, p. 102ss.; Cari E. Braaten, A Pessoa de Jesus Cristo: In: Cari E. Braaten & Robert W. Jenson, eds. D ogm ática Cristã, Vol. 1, p. 492ss.

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à Palavra de Deus, à luz da qual nós e nossa teologia seremos julga­dos.”95

Segue abaixo a transcrição do Credo Niceno (Primitivo) do Credo Niceno-Constantinopolitano, como é usado hoje, do Credo de Cal- cedônia e do Credo Atanasiano:

f \ O CREDO NICENO-CONS- TANTINOPOLITANO (381)

Cremos em um só Deus, o Pai Todo-Poderoso, Criador [do céu e da terra],96 de todas as coisas, visíveis e invisíveis;

E em um só Senhor )esus Cristo, o Filho Unigénito de Deus, o gerado do Pai [antes de todos os séculos],’ 7 [Deus de Deus],98 Luz de Luz, Ver­dadeiro Deus de Verdadeiro Deus, ge­rado e não feito, da mesma substân­cia Que o Pai, por meio do Qual todas as coisas vieram a ser; o oual, por nós, os homens, e por nossa salva­ção desceu [dos céus]99 e se encar­nou [do Espírito Santo e da Virgem Maria]100 e se fez homem [e foi por nós crucificado sob Pôncio Pilatos]101 e padeceu [e foi sepultado]102 e res­suscitou ao terceiro dia, [segundo as

Os Símbolos de Fé na História 39

95 Hermisten M.P. Costa, Introdução à C risto log ia , São Paulo, 2001, pp. 18-19.‘“ Cláusula acrescentada.97 Cláusula acrescentada.98 A expressão “D eus de Deus" foi omitida em Constantinopla, porém foi recolocada no

III C oncílio local de Toledo (589) na Espanha (vd. A .A . Hodge, E sboços de Theologia, p. 103; H. Bettenson, Documento.1! da Igreja Cristã, p. 56; P. Schaff, The Creeds o f Christen­dom , Vol. I, pp. 26-27).

” Cláusula acrescentada.100 Cláusula acrescentada.101 Cláusuta acrescentada.102 Cláusula acrescentada.

f \

O CREDO NICENO (325)

Cremos em um só DEUS, o Pai Todo-Poderoso, criador de todas as coisas visíveis e invisíveis.

E em um só Senhor )ESUS CRIS­TO, o Filho de Deus; gerado como o Unigénito do Pai, isto é, da substân­cia do Pai, Deus de Deus, Luz de Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadei­ro, gerado, não feito, consubstanciai com o Pai, mediante o Qual todas as coisas foram feitas, tanto as Que es­tão nos céus como as oue estão na terra; o Qual, por nós homens e por nossa salvação, desceu, se encarnou e se fez homem e sofreu e ressusci­tou ao terceiro dia, subiu ao céu, e novamente virá para julgar os vivos e os mortos;

v--------------------------------------------------------------- J

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40 EU CREIO.

E no ESPIRITO SANTO.

Escrituras],103 e subiu aos céus |e eslá sentado à direita do Pai]104 e virá de novo, [com glória],103 a julgar vivos e morlos [e do seu reino não haverá fim].106

E no ESPÍRITO SANTO, o Senhor e Vivificador, o Que procede do Pai e do Filho,107 o Que junlamente com o

103 Cláusula acrescentada.104 Cláusula acrescentada.105 Cláusula acrescentada.106 Cláusula acrescentada.107 A expressão “e do Filho’’, em latim “F ilioque”, foi acrescentada no III C oncílio local

de Toledo (589) e, ao que parcce, posteriormente no Quarto Sínodo de Praga (675) e em Hatfield (680). [Cf. O. Semmelroth, Espírito Santo: In: H. Fries, ed. D icionário de Teolo­g ia , Vol. 11, p. 100; J.N.D. Kelly, P rim itivos Credos C ristianos, Salamanca, Secretariado Trinitario, 1980, pp. 426, 429-430], Todavia, esta cláusula já havia sido usada no Primeiro (400) e Segundo (477) C oncílio de Toledo (vd. H. Bettenson, D ocum entos da igreja Cristã, p. 56; P. Schaff, The Creeds o f Christendom , Vol. I, p. 26; Earle E. Cairns, O C ristianism o A través dos Séculos, p. 109; G.W. Brom iley, Filioque: In: E.F. Harrison, ed. D iccion ario de Teologia, p. 242. ; L. B off, A Trindade e a Sociedade, 3“ ed. Petrópolis, RJ, Vozes, 1987, p. 93; J.N.D. Kelly, P rim itivos Credos Cristianos, p. 427). Este acréscimo - que reflete espe­cialm ente o pensamento de Agostinho (354-430), que enfatizou com propriedade a unidade da Trindade (A Trindade, São Paulo, Paulus, 1994, 11.5.7; 1V.20.29.; XV.17-20; 26-27), ainda que não exclusivam ente (vd. J.N.D. Kelly, P rim itivos Credos Cristianos, p. 425) - marca de forma definitiva a teologia anti-ariana sustentada pela Igreja Ocidental, enfati­zando a unidade essencial do Pai e do Filho bem com o a procedência do Espírito com o sendo de ambos. Este acréscimo que se tornou amplamente aceito na Igreja Ocidental [em 1014, o papa Benedito VIII determinou que o Credo Niceno-Constantinopolitano, com a expressão “filioque”, deveria ser proferido durante a m issa (cf. Robert W. Jenson, O E spí­rito Santo: In: Cari E. Braaten & Robert W. Jenson, eds. D ogm ática C ristã , Vol. II, p. 159)] e ratificado em 1017, foi o principal m otivo doutrinário para a primeira grande divisão da Cristandade, criando a Igreja do Oriente e a do O cidente em 1054 (A s Igrejas do Oriente diziam: “D o Pai através do Filho”). No entanto, som ente no Segundo Concílio de Lyon (1274) é que esta cláusula foi considerada oficialm ente com o doutrina da Igreja Ocidental (Cf. H. Brandt, O R isco do Espírito: Um Estudo Pneum atológico, p. 16). Este assunto seria ampla e vagarosamente discutido no Concílio de Ferrara-Florença-Roma (1438-1445) en­tre os representantes da Igreja Oriental e Ocidental, quando então os Orientais aceitariam com o razoável o acréscimo latino, contudo não ficando imposto à sua Igreja a aceitação do m esmo. Nesta reunião foi formulada uma declaração “conciliatória”, datada de 06 /7/1439 (vd. o texto In: L. Boff, A Trindade e a Sociedade, pp. 95-96; vd. Umberto Proch, A União no Segundo C oncílio de Lião e no C oncílio de Ferrara-Florença-Roma: In: G iuseppe Albe- rigo, org. H istória dos Concílios Ecumênicos, pp. 300ss., 305; L. B off, A Trindade e a

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Os Símbolos de Fé na História 41

E a Quanlos dizem: "Houve lempo em Que não era” ; e "Antes de nascer ele não era", ou Que "Foi feito do Que não existe", bem como a Quanlos ale­gam ser o Filho de Deus “de outra substância ou essência", ou "feito", ou "mutável” , ou "alternável", a Io­dos esles a Igreja católica108 e apos­tólica anatematiza.

Pai e o Filho é adorado e glorificado, o Que falou através dos profetas; e numa só Igreja santa, católica e apos­tólica. Confessamos um só batismo para remissão dos pecados, espera­mos a ressurreição dos mortos e a vida do século vindouro. Amém.

Sociedade, pp. 95-96; vd. uma boa discussão a respeito do uso da expressão, In: J.N.D. Kelly, P rim itivos Credos C ristianos, p. 424ss.; Reinhold Seeberg, M anual de H istoria de las D octrinas, El Paso, Texas, Casa Bautista de Publicaciones, 1963, Vol. II, p. 45; Sinclair B. Ferguson, O E spírito Santo, São Paulo, Editora Os Puritanos, 2000, pp. 95-103). No entanto, não devem os esquecer que a Confissão Ortodoxa de Fé da Igreja C ató lica e A p os­tó lica do O riente (1643) reafirma a procedência do Espírito com o sendo apenas do Pai (Vd. o texto ln: P. Schaff, The Creeds o f Christendom , Vol. tl, p. 282).

108 O adjetivo “C ató lico” é lima transliteração do grego “Kai5oA.iKÓç”, que pode ser tra­duzido por “universal” e “geral”. O termo grego é constituído de duas palavras: “KCXtáT (= cujo significado original é “abaixo”; todavia, em com posição, assum e os mais diversos sentidos; aqui talvez signifique “de acordo com ” (vd. H.E. Dana e Julius R. Mantey, M anu­a l de G ram atica D el Nuevo Testamento G riego, Buenos Aires, Casa Bautista de Publicaci­ones © 1975, pp. 104-105, 110-1 l l ) ) e “õXoç” (= Todo, inteiro, com pleto). A ssim , o grego “KaiDoXiKÓç” pode significar: “conform e ou de acordo com o todo” . A palavra só ocorre uma vez no N ovo Testamento e, m esm o assim, na forma adverbial, acompanhada de um advérbio de negação (“KaôóX.ov |i^), sendo traduzida (ARA, BJ, ARC, ACR) por “absolu­tamente não” (At 4.18).

A té onde vai o nosso conhecim ento, o primeiro hom em a usar a palavra ‘'católica" para se referir à Igreja foi Inácio de Antioquia (c. 30-110 A D ), na sua epístola à Igreja de Esmir- na, escrita por volta do ano 110, quando diz: “Onde quer que se apresente o bispo, ali também esteja a comunidade, assim com o a presença de Cristo Jesus também nos assegura a presença da Igreja católica” (Inácio de Antioquia, C artas de Santo Inácio de A ntioquia, 3a ed. Petrópolis, RJ, Vozes, 1984, 8.2. p. 81).

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42 EU CREIO.

O CREDO DE CALCEDÔNIA109

Portanto, seguindo os santos Pais, todos nós, em perfeito acordo, ensinamos Que se deve confessar um só e o mesmo Filho, nosso Senhor ]esus Cristo, perfei­to na Deidade e também perfeito na humanidade; verdadeiro Deus e verdadeiro homem,"0 de alma racional (VPuxil ^o yik t^)"1 e corpo, consubstanciai (ó|iooi$ c io ç ) " 2 ao Pai na Divindade e consubstanciai (ò|iooúcJioç) a nós na humanida­

109 O Credo de C alcedônia é precedido pela confirmação dos Credos de N icéia (325) e Constantinopla (381). A elaboração deste novo Credo pode ser explicada pelo surgimento de novas heresias referentes a Cristo (Apolinarism o, Nestorianism o e Eutiquianismo), que precisavam ser combatidas (vd. P. Schaff, The Creeds o f Christendom , Vol. II, pp. 63-64).

110 Este conceito já estava presente em Irineu (c. 130- c. 200) (Irineu, Irineu de Lião, IV.6.7) pp. 382-383.

1,1 Esta expressão visa a combater o Apolinarismo. Apolinário, o jovem (c. 310-C.390), bispo de Laodicéia na Síria (c. 360), teve os seus ensinam entos condenados em vários Concílios: Alexandria (362) (aqui som ente o apolinarismo, não Apolinário); Rom a (377) (Apolinário e o apolinarismo); Antioquia (378), no 2o Concílio Ecum ênico de Constantino­pla (381) (Apolinário e o apolinarismo). Apesar destas condenações, Apolinário conseguiu adeptos; um de seus discípulos, Vitális, fundou uma congregação em Antioquia (375), sen­do sagrado bispo por Apolinário. “Os apolinarianos tiveram pelo m enos um sínodo em 378, e há evidência no sentido de ter ocorrido um segundo sínodo. D epois da morte de A poliná­rio, seus seguidores dividiram-se em dois partidos, os vitalianos e os polem eanos ou sinusi- atos. Por volta de 420, os vitalianos já estavam reunidos com a Igreja Grega. Pouco mais tarde, os sinusiatos fundiram-se no cism a m onofisita” (V.L. Walter, Apolinarismo: In: Wal- ter A . E lw ell, ed. E nciclopédia H istórico-Teolágica da Igreja Cristã, I, p. 98).

D evido à sua concepção tricotôm ica do homem, bem com o seu desejo de preservar a divindade e a unipersonalidade de Cristo, terminou por concebê-lo com o sendo totalmente divino e apenas 2/3 humano. A idéia de total humanidade envolvia o conceito de pecam ino- sidade, por isso sua tentativa de resguardar o Filho. Para ele, o homem era constituído de ZãHioc (carne ou corpo); VP'UX11 (alma animal) e nveí3(xa (alma racional). O I lv e ín a é que torna o hom em o que ele é. Aplicando estes conceitos a Jesus, Apolinário dizia que Jesus tinha Scqxo e 'Puxl1 iguais a de um homem comum; já o nveC(aa fora substituído pelo Aóyoç; assim, Jesus possu ía um corpo, uma alma, m as não possu ía um espírito humano.

A ssim , para Apolinário há uma única vida; uma perfeita fusão do hom em (carne) com o divino, sendo a carne de Jesus glorificada pelo Logos, daí ele falar de “carne divina”, “car­ne de D eus” , “natureza encarnada da Palavra divina”.

Os ensinam entos de Apolinário foram censurados pelo fato de que, se o Logos não tomou sobre si a integridade da natureza humana - estando toda ela afetada pelo pecado - , esta natureza não poderia ser redimida, visto que aquilo que o Filho não levou sobre si não pode ser alvo de sua redenção.

112 ó |ioo\3aioç, na versão latina: "consubstantialem ”. Da mesma substância, consubstan­ciai, coessencial. Atanásio, combatendo o Arianismo, já havia usado este termo em N icéia (325), referindo-se à Trindade, indicando a unidade da essência do Pai, do Filho e do Espí­rito Santo. Aqui em Calcedônia, a expressão é utilizada para indicar a verdadeira divindade

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de, 'em todas as coisas semelhante a nós, exceto no pecado';113gerado antes de todas as eras pelo Pai Quanto à sua Divindade, e nos últimos dias, por nós e para nossa salvação, nasceu da Virgem Maria, a Mãe de Deus (©eoxÓKOç),114 Quanto à sua humanidade; um e o mesmo Cristo, Filho, Senhor, Unigénito, sendo conhe­cido em duas naturezas, inconfundíveis (òntr/^oixcüç),115 imutáveis (òrcpéracoç),116 indivisíveis (àS ia ipéxcoç),"7 inseparáveis (ó%<»píatcoç);M8 a distinção das duas naturezas de modo algum é anulada pela união, mas as propriedades de cada natureza são preservadas e concorrem em uma Pessoa (npóacojtov)l|,; e uma Subsistência (tiTCÓataaiç),120 não separada ou dividida em duas pessoas (ripó aam ov), porém um e o mesmo Filho, Unigênilo, Verbo de Deus, o Senhor |esus Cristo, conforme os profetas do passado e o próprio Senhor ]esus Cristo nos ensinaram a respeito dele e o Credo dos santos Pais nos transmitiu.”

e verdadeira humanidade de Cristo. Calvino (1509-1564) diz que “essa palavrinha fazia a diferença entre os cristãos de pura fé e os sacrílegos arianos” {As Instituías, 1.13.4).

113 Hb 4.15.114 ©eotÓKoç, na versão latina: “D ei genetrice" [0 e ó ç & T ó k o ç = Tíkico = “Dar à luz um

menino; gerar, chegar a ser mãe; produzir”: “M ãe de D eus” . A expressão foi usada para indicar que Aquele que foi concebido de Maria fora obra do Espírito Santo, portanto era Deus. A expressão também ressalta que Maria não foi mãe sim plesm ente da natureza hu­mana de Jesus, mas sim , da pessoa Teantrópica de Jesus Cristo (cf. P. Schaff, The Creeds o f Christendom , Vol. II, p. 64)].

115 ÒKn>y%ina>ç, na versão latina: “ i n c o n f u s e “Sem confusão”, “sem mistura”. Expres­são usada contra o Eutiquianismo, que sustentava que a encarnação fora o resultado da fusão do divino com o humano.

116 òctpéjttcoç, na versão latina: “im m utabiliter” . “Sem conversão”, “sem transformação” . Da m esm a forma, esta expressão também foi usada contra o Eutiquianismo.

117 òíSiaipÉtcoç, na versão latina: “indivise”. “Sem divisão”. Expressão que visava a com ­bater o Nestorianismo, que separava as duas naturezas de Cristo, afirmando ser sua união apenas moral, simpática e afetiva.

118 óe^ctípícrccoç, na versão latina: “inseparabiliter”. “Sem separação “, “indissolúvel”. Termo também usado contra o Nestorianismo. G.C. Berkouwer, interpretando Korff, co ­menta que estes quatro advérbios de Calcedônia: inconfundíveis (4í£juY%irta>ç), imutáveis (óapéTCtcoç), indivisíveis (ixSiaipéxcoç), inseparáveis (á^copícrccoç), “Enriquecem a fé e a humildade da Igreja. Esses advérbios assem elham -se a um alinhamento de bóias cercando o estreito canal navegável e alertando os navios contra os perigos ameaçadores dos dois la­dos. Não são uma definição nem servem para definir, pois tal não foi a intenção da Igreja” (G.C. Berkouwer, A P essoa de Cristo, p. 68. Vd. também: B. Lohse, A Fé C ristã A través dos Séculos, 2a ed. São Leopoldo, RS, Sinodal, 1981, pp. 100-101). Num mar tormentoso com o aquele vivido em Calcedônia, as “âncoras” foram necessárias - e ainda são - para preservar segura a Igreja em m eio a todas as ondulações heréticas na história, sem se dis­tanciar da plenitude da revelação bíblica.

"’ Ilpóacojtov, na versão latina: “Personam ”. “Pessoa”; significando primariamente “face” ou “expressão”. A idéia básica da palavra é a de um papel representado por alguém numa

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44 EU CREIO.

O CREDO ATANASIANO(C. 500)

1. Todo aouele Que Quiser ser salvo: é-Ihe necessário, primeiro Que tudo, Que receba a fé calólica:

2. A Qual é preciso Que cada um guarde perfeita e inviolada ou terá com certeza de perecer para sempre.

3. A fé calólica é esta: quc adoremos um só Deus cm Irindade, e trindade em unidade.

4. Nem confundindo as Pessoas, nem separando a Substância.5. Poroue é uma Pessoa do Pai: outra do Filho: e outra do Espírilo Santo.6. Mas a Divindade do Pai, do Filho e do Espírito Santo é uma: a Glória igual e

majestade co-eterna.7. AquíIo Que o Pai é, o mesmo é o Filho e o Espírito Santo.8. O Pai incriado: o Filho incriado: o Espírito Santo incriado.9. O Pai imenso: o Filho imenso: o Espírilo Sanlo imenso.10. O Pai eterno: o Filho eterno: o Espírito Santo elerno.11. E contudo não são Irês eternos: mas um só eterno.12. Como lambém não são Irês incriados; nem três imensos, porém um só

incriado: e um só imenso.13. Do mesmo modo o Pai é onipolente: o Filho é onipolente: e o Espírito

Santo onipotente.14. E conludo não há Irês onipolenles: mas um só onipolente.I 5. Assim o Pai é Deus: o Filho é Deus: e o Espírito Santo é Deus.16. E conludo não há Irês Deuses: mas um só Deus.17. Assim o Pai é Senhor: o Filho é Senhor: o Espírito Santo é Senhor.18. E contudo não há três Senhores: mas um só Senhor.19. Poroue assim como somos obrigados pela verdade Cristã a confessar Que

cada Pessoa é por si mesma Deus e Senhor.20. Assim lambém somos proibidos pela religião católica de dizer: há três Deu­

ses, ou Irês Senhores. 2 1. O Pai não foi feilo de ninguém: nem criado, nem gerado.

brincadeira. Logicam ente, este termo é m enos técnico e preciso que v n iím a c n ç . Os Pais gregos se apropriaram desta palavra, utilizando-a para referir-se à Trindade, conferindo-lheo sentido teológico de “indivíduo”, de uma pessoa que tem uma natureza racionat e uma substância individual, própria (quanto às discussões teológicas a respeito da inteipretação dada a esta palavra, vd. Persona: In: Richard A. Muller, D iction ary o f Latin and Greek Theological Terms, pp. 223-227).

120 iâ7tó<ycaaiç, na versão latina: “Subsistentiam ”. “Substância”, “natureza”, “essência”. A palavra denota uma subsistência pessoal e real (*2C o 9.4; 11.17; Hb 1.3; 3.14; 11.1; sobre a interpretação desta palavra nos textos aludidos, vd. W ick Broomall, Su(b)stancia: In: E.F. Harrison, ed. D iccionario de Teologia , pp. 504-505).

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22. O Filho é só do Pai: não é feito, nem criado: mas gerado.23. O Espírito Santo é do Pai e do Filho: não feito, nem criado, nem gerado:

porém procedendo.24. Por isso há um só Pai, não três Pais: um Filho, não três Filhos: um Espírito

Santo, não três Espíritos Santos.25. E nesta Trindade nenhum é o primeiro ou o último: maior ou menor.26. Mas todas as três Pessoas são co-eternas e co-iguais.27. Semelhantes em todas as coisas, como supracitado: a Unidade na Trindade,

e a Trindade na Unidade, deve ser adorada.28. Portanto Quem Quiser ser salvo deve pensar assim a respeito da Trindade.29. Mas é necessário para a salvação eterna: Que também se creia fielmente na

encarnação de nosso Senhor Jesus Cristo.30. E, portanto, verdadeira fé Que creiamos e confessemos Que nosso Senhor

Jesus Cristo e Filho de Deus é Deus e homem;3 I . Deus, da Substância do Pai; gerado antes dos mundos; e Homem, da

Substância de sua Mãe, nascido no mundo.32. Perfeito Deus; e perfeito Homem, subsistindo em uma alma racional e

carne humana.33. Igual ao Pai segundo a sua Divindade; e menor do oue o Pai segundo a sua

humanidade.34. O Qual, ainda Que seja Deus e homem, não é dois, e sim um só Cristo.35. Um só: não por conversão da sua Divindade em carne; mas sim pela assun­

ção em Deus da sua Humanidade.36. Um só: não por confusão de Substância: mas sim, pela unidade da Pessoa.37. Poroue assim como uma alma racional e carne são um só homem, assim

também Deus e Homem são um só Cristo;38. O Qual sofreu por nossa salvação: desceu ao inferno, ao terceiro dia ressur­

giu dos mortos.39. Ascendeu aos céus: assentando-se à direita de Deus Pai Onipotente.40. De onde virá para julgar os vivos e os mortos.4 1. A cuja vinda todos os homens ressurgirão com seus corpos;42. E darão conta de suas próprias obras.43. E os oue tiverem feito o bem entrarão na vida eterna; e os oue tiverem feito

o mal, para o fogo eterno.44. Esta é a fé católica: a menos Que um homem creia fiel e firmemente, não

poderá ser salvo.121

121 Este C redo encontra-se pubticado em tatim e ingtês in P. Schaff, The Creeds o f Chris­tendom, II, pp. 66-70. Em obra recente de Teologia Sistem ática, o Credo A tanasiano veio pubticado em português (Wayne A. Grudem, Teologia S istem ática, pp. 997-998).

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46 EU CREIO.

2.6. Os Credos da Reforma

Os Credos da Reforma são as Confissões de Fé e Catecismos que surgiram no período da Reforma ou por inspiração daquele movimento, refletindo uma teologia semelhante.

O que os séculos 4o e 5o foram para a elaboração dos Credos, os séculos 16 e 17 foram para a confecção das Confissões e Catecis­mos. A razão nos parece evidente: na Reforma, as Igrejas logo sen­tiram a necessidade de formalizar sua fé, apresentando sua inter­pretação sobre diversos assuntos que as distinguiam da igreja ro­mana; com o passar do tempo, surgem outras denominações dentro da Reforma que discordavam entre si sobre alguns pontos, daí a necessidade de se estabelecer cada um de per si seus princípios dou­trinários.

Calvino (1509-1564) já combatera a “fé implícita”122 - que era patente na teologia católica declarando que a nossa fé deve ser “explícita”. No entanto, Calvino ressalta que, devido ao fato de que nem tudo foi revelado por Deus, bem como à nossa ignorância e pequenez espiritual, muito do que cremos permanecerá nesta vida de forma implícita.

Calvino (1509-1564), depois de um extenso comentário, nos diz:“Certamente que não nego (de que ignorância somos cercados!) que

muitas cousas nos sejam agora implícitas, e ainda o hajam de ser, até que, deposta a massa da carne, nos hajamos achegado mais perto à presença de Deus, cousas essas em que nada pareça mais conveniente que suspender julgamento, mas firmar o ânimo a manter a unidade com a Igreja.123 Com

122 Que chama de “espectro papista”, que “separa a fé da Palavra de D eus” [J. Calvino, E xposição de Rom anos, São Paulo, Parakletos, 1997 (Rm 10.17), p. 375],

123 Foi com este espírito que Calvino nos advertiu diversas vezes: “A s cousas que o Senhor deixou recônditas em secreto não perscrutemos, as que pôs a descoberto não negli­genciem os, para que não sejamos condenados ou de excessiva curiosidade, de uma parte, ou de ingratidão, de outra” (J. Calvino, A.ç Instituías, 111.21.4). “N em nos envergonhem os em até este ponto submeter o entendimento à sabedoria imensa de Deus, que em seus muitos arcanos sucumba. Pois, dessas cousas que nem é dado, nem é lícito saber, douta é a ignorân­cia, a avidez de conhecim ento, uma espécie de loucura” (As Institutas, 111.23.8). ”Que esta seja a nossa regra sacra: não procurar saber nada mais senão o que a Escritura nos ensina. Onde o Senhor fecha seus próprios lábios, que nós igualmente im peçam os nossas mentes de avançar sequer um passo a mais” [J. Calvino, E xposição de Rom anos, São Paulo, E dições

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este pretexto, porém, adornar com o nome de fé à ignorância temperada com humildade, é o cúmulo do absurdo. Ora, a fé jaz no conhecimento de Deus e de Cristo 0 ° 17.3), não na reverência à Igreja”124 (grifos meus).

Em outro lugar:“Que costume é esse de professar o evangelho sem saber o que ele signi­

fica? Para os papistas, que se deixam dominar pela fé implícita, tal coisa pode ser suficiente. Mas para os cristãos não existe fé onde não haja co­nhecimento.”125

Pelas palavras de Calvino, podemos observar a necessidade la­tente do ensino e estudo constante da Palavra de Deus, a fim de que cada homem, sendo como é, responsável diante de Deus, tenha con­dições de se posicionar diante de Deus de forma consciente; a fé explícita é patenteada pela Igreja através do ensino da Palavra.126

Tillich, interpretando esse fato, diz:“Cada indivíduo deve ser capaz de confessar os próprios pecados, expe­

rimentar o significado do arrependimento e se tornar certo de sua salvação em Cristo. Essa exigência gerava um problema no protestantismo. Significa­

Parakletos, 1997 (Rm 9.14), p. 330],124 J. Calvino, A s Instituías, 111.1.3 (vd. também I11.2.5ss). Em outros passagens, Calvino

discorreu sobre a fé; cito aqui algumas delas: “Fé verdadeira é aquela que o Espírito de D eus sela em nosso coração” (J. Calvino, A.v Institutos, 1.7.5). “A fé não consiste na igno­rância, senão no conhecim ento; e este conhecim ento há de ser não som ente de Deus, senão também de sua divina vontade” (A.ç Institutas, 1II.2.2). “E um conhecim ento firme e certo da vontade de Deus concernente a nós, fundamentado sobre a verdade da promessa gratuita feita em Jesus Cristo, revelada ao nosso entendimento e selada em nosso coração pelo Espírito Santo” (As Institutas, III.2.7). “Nossa fé repousa no fundamento de que Deus é ver­dadeiro. A lém do mais, esta verdade se acha contida em sua promessa, porquanto a voz divina tem de soai' primeiro para que possam os crer. Não é qualquer gênero de voz que é capaz de produzir fé, senão a que repousa sobre uma única promessa. Desta passagem, pois, podemos deduzir a relação mútua entre a fé dos homens e a promessa de Deus. Se Deus não prometer, ninguém poderá crer” [J. Calvino, Exposição de H ebreus (Hb 10.23), p. 270], “Fé verdadeira é aquela que ouve a Palavra dc Deus e descansa em sua promessa” [J. Calvino, Ibidem (Hb11.11), p. 318], “Nossa fé não tem que estar fundamentada no que nós tenhamos pensado por nós m esmos, senão no que nos foi prometido por D eus” (Calvino, Sermones Sobre la Obra Salvadora de Cristo, Jenison, Michigan: TELL, 1988, “Sermon n° 13", p. 156).

125 João Calvino, G álatas , São Paulo, Parakletos, 1998 (G1 1.2), p. 25.126 “a Escritura é a escola do Espírito Santo, na qual, com o nada é om itido não só neces­

sário, mas também proveitoso de conhecer-se, assim também nada é ensinado senão o que convenha saber” (J. Calvino, As Institutas, 111.21.3).

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va que todas as pessoas precisavam ter o mesmo conhecimento básico das doutrinas fundamentais da fé cristã. N o ensino dessas doutrinas não se em­prega o mesmo método para o povo comum e para os candidatos às ordens, ou para os futuros professores de teologia, com a prática do latim e grego, da história da exegese e do pensamento cristão. Como se pode ensinar a todos? Naturalmente, apenas se tornarmos o ensino extremamente simples.”127

Essa necessidade determina o uso cada vez mais evidente da razão, a fim de apresentar de forma mais razoável possível a doutri­na e, ao mesmo tempo, de forma simples. Eis dois marcos do ensi­no ortodoxo: amplitude e simplicidade. O ser humano é responsá­vel diante de Deus; ele dará contas de si mesmo ao seu Criador; portanto, tendo oportunidade, ele precisa conhecer devidamente a Palavra de Deus em toda a sua plenitude revelada.

Essas declarações de fé precisavam ser até certo ponto comple­tas, porém, ao mesmo tempo, simples, para que o crente comum (não iniciado nas questões teológicas) pudesse entender o que esta­va sendo dito, confrontando este ensinamento com a Palavra de Deus, tendo assim uma compreensão bíblica da sua fé. Em outras pala­vras, a fé não deveria ser apenas “implícita”, mas também “explíci­ta”. Neste contexto, e com objetivos eminentemente didáticos, sur­gem os Catecismos (Gr. Kaxr|%éco = “ensinar”, “instruir”, “infor­mar”. Cf. Lc 1.4; At 18.25; 21.21, 24; Rm 2.18; ICo 14.19; G16.6.), constituídos, ainda que não exclusivamente, de perguntas e respostas. Até o século XVI, a palavra “catecismo” ainda não tinha sido usada neste sentido.128 Os Catecismos visavam servir para ins­truir as crianças e os adultos;129 este é o motivo que contribuiu deci­sivamente para a sua proliferação, sendo que a maioria deles jamais passou da forma manuscrita, visto que muitos pastores os elabora­vam apenas para a sua congregação local, visando a atender às suas necessidades doutrinárias.130

127 Paul Tillich, P erspectivas da Teologia P rotestante nos Séculos XIX e XX, São Paulo, A STE, 1986, p. 41.

128 Cf. D.F. Wright, Catecismos: In: Walter A . E lw ell, ed. E nciclopédia H istórico-Teoló- gica da Igreja C ristã , I, 249.

,29Vd. M. Lutero, C atecism o M aior, Prefácio, II .1-6.130 Daqui depreende-se que não foram som ente eruditos que escreveram catecism os, mas

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Os Símbolos de Fé na História 49

O primeiro trabalho a receber o título de “Catecismo” foi o de Andreas Althamer (c. 1500-) em 1528.131 Porém, os mais influen­tes no século XVI, foram os de Lutero (1483-1546): O Catecismo M aior (1529) e O Catecismo Menor (1529). No prefácio do Cate­cismo M enor, Lutero declara os motivos que o levaram a redigir este Catecismo, e apresenta também sugestões de como ensiná-lo à Congregação. No decorrer dos sete capítulos, ele quase sempre ini­cia, dizendo: “Como o chefe de fam ília deve ensiná-lo à sua casa” ou: “Como o chefe de fam ília deve ensiná-lo com toda a sim plici­dade à sua casa” e expressões similares.

Transcreverei apenas o que Lutero disse a respeito das suas motivações:

“A lamentável e mísera necessidade experimentada recentemente, quan­do também eu fui visitador,132 é que me obrigou e impulsionou a preparar este catecismo ou doutrina cristã nesta forma breve, simples e singela. Meu Deus, quanta miséria não vi! O homem comum simplesmente não sabe nada da doutrina cristã, especialmente nas aldeias. E, infelizmente, muitos pastores são de todo incompetentes e incapazes para a obra do ensino. (...) N ão sabem nem o Pai-Nosso, nem o Credo, nem os Dez M andam entos.”133

Mais tarde, Calvino (1509-1564) elaborou em francês, durante o inverno de 1536-1537, um Catecismo, não sendo constituído em forma de perguntas e respostas, escrito de modo que julgou acessí­vel a toda Igreja. O seu objetivo era puramente didático. Esta obra foi intitulada: Instrução e Confissão de Fé, Segundo o Uso da Igre­ja de Genebra,134 sendo traduzida para o latim em 1538.Posterior­também pastores, que estavam preocupados especificam ente com a sua comunidade local (vd. David. F. Wright, Catechism: Donald K. M cKim, ed. E ncyclopedia o f the Reform ed Faith, p. 60).

131 Cf. D.F. Wright, Catecismos: In: Walter A. E lw ell, ed. E nciclopédia H istórico-Teoló- gica da Igreja C ristã , 1, 250,

132 Lutero viajou pela Saxônia Eleitoral e por M eissen, entre 22 /10 /1528 e 09 /01 /1529 .133 C atecism o M enor, In: Os Catecism os, Martinho Lutero, Porto Alegre/São Leopoldo,

RS Concórdia/Sinodal, 1983, p. 363.134 Este Catecism o consistiu num resumo da primeira edição das in stitu tos (1536; cf.

John H. Leith, em prefácio à tradução da obra de Calvino e Paul T. Fuhrmann em “prefácio histórico” à m esm a obra, Instruction in Faith (1537), Louisville, Kentucky, W estminster/ John Knox Press [1992], pp. 10 e 16; Cf. Tomas M. Lindsay, La Reform a y su D esarrollo

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50 EU CREIO.

mente, Calvino a reviu - tornando a sua teologia mais acessível aos seus destinatários: as crianças135- , e a ampliou consideravelmente, mudando inclusive a sua forma, passando então a ser constituída de perguntas e respostas, contendo 373 questões.136 Esta nova edição foi publicada entre o fim de 1541 e o início de 1542, tomando-se juntamente com a Instituição um sucesso editorial.137 Em 1545,138 Cal­vino o traduziu para o latim, visando a dar um alcance maior aos seus ensinamentos, contribuindo deste modo para a maior unidade entre as Igrejas Reformadas. A partir de 1561, este Catecismo ga­Social, p. 101; John T. M cN eill, The H istory and C haracter o f Calvinism , N ew York, Oxford University Press, 1954, p. 140. Vd. também, p. 204). Esta foi a primeira “exposição siste­mática do pensamento calvinista na língua francesa” (A.H. Freundt Jr., Catecism o de G ene­bra: ln; Walter A. E lw ell, ed. E nciclopédia H istórico-Teológica da Igreja C ristã , 1, p. 246).

134 Marc Venard, O C oncílio Lateranense V e o Tridentino. In: G iuseppe Alberigo org. H istória dos Concílios Ecum ênicos, São Paulo, Paulus, 1995, p. 339.

135 Cf. Tomas M. Lindsay, La Reform a y su D esarrollo Social, p. 100.136 Este Catecism o pode ser assim esboçado:

1 - Fé (1-130)Introdução (1-18)Segue a exposição do Credo Apostólico, da seguinte forma:a) D eus Pai (19-29)b) Deus Filho (30-87)c) Deus Espírito Santo (88-91)d) A Igreja (92-130)

II - Os D ez Mandamentos (131-232)III - A Oração (233-295)IV - A Palavra e os Sacramentos (296-373)

a) A Palavra e o Ministro (296-308)b) Os Sacramentos (309-373)

D efinição e Significado (309-323)Batism o (324-339)Ceia do Senhor (340-373)

137 Febvre diz que “de 1550-1564 [ano da morte de Calvino] serão publicadas 256 edi­ções, das quais 160 em Genebra. A Institution chrétienne é então, sozinha, objeto de 25 reedições, nove latinas e dezesseis francesas das quais a maioria provém dos prelos gene- brinos; e mais ainda, talvez, o Catéchism e par demandes et réponses que Calvino publica em 1541...” (Lucien Febvre & Henry Jean-Martin, O A parecim ento do Livro, pp. 442-443). W endel nos diz que a primeira edição da Instituição esgotou-se em m enos de um ano (Fran- çois W endel, Calvin, p. 113; Justo L. G onzalez, A Era do s Reform adores, São Paulo, Vida N ova, 1986 (reimpressão), p. 111; vd. Também, T. George, Teologia dos Reform adores, pp. 177-178).

138 A dedicatória de Calvino é de 02 /12 /1545 (vd. ln: John Calvin, Tracts an d Treatises on the D octrine and Worship o fT h e Church, Grand Rapids, M ichigan, Eerdmans, 1958, Vol. II, p. 36).

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Os Símbolos de Fé na História 51

nhou maior importância, visto que desde então todo ministro da Igreja deveria jurar fidelidade aos ensinamentos nele expressos e comprometer-se a ensiná-los.'39

Quanto às Confissões, elas basicamente não foram feitas como um texto para a instrução na fé Cristã, já que esta era a função dos Catecismos.140 Elas poderiam ser produzidas por homens individu­almente, para o seu uso privado (A Segunda Confissão Helvética); por um Concílio de uma Igreja em particular (Cânones de Dort)\ por um indivíduo que age como representante de sua Igreja (Con­fissão de Augsburgo)', por um grupo de teólogos convocados pelo Estado (Confissão de Westminster) ou escrita como uma defesa de sua fé em meio a uma terrível perseguição (A Confissão dos Val- denses) 141 etc. Com isso estamos dizendo que não havia uma regra fixa para a elaboração de uma Confissão; os contextos eram varia­dos e, apesar de haver motivações comuns a todas elas, existiam circunstâncias especiais que conduziam a determinadas ênfases, especialmente no que se refere às questões relativas ao governo e à igreja romana. Isto traz consigo o problema da unificação das Con­fissões. Por que não unificá-las?!, é uma pergunta pertinente. De fato, esta preocupação existiu. Por exemplo:

139 Cf. C atecism o de la Iglesia de G inebra, In: C l R., pp. 7-8.140 Cf. George S. Hendry, The W estminster Confession f o r Today, Richimond, Virgínia,

John Knox Press, 1960, p. 10.141 A Confissão dos Valdenses - que não faz parte de nossa abordagem - é em parte um

resumo da Confissão G aulesa (P. Schaff, The Creeds o f Christendom , Vol. III, p. 757. Vd. um quadro comparativo das duas, feito por Alberto R evel, In: Catecism os de la Iglesia Reform ada, Buenos Aires, Editorial “La Aurora”, 1962, p. 195). Ela foi com posta prova­velm ente por Jean Leger (1615-?) e possivelm ente sistematizada por seu tio Antoine Leger, professor da A cadem ia de Calvino em Genebra. Foi publicada num período de forte perse­guição religiosa na Itália, quando os Valdenses foram caluniados, martirizados, esbulha­dos, exilados etc. A edição Italiana da Confissão intitulava-se: "Confissão de f é das Igrejas R eform adas, C ató licas e A postólicas de Piemonte, confirm ada p e lo testemunho explícito da Sagrada E scritura".

O texto francês, diz: “Breve Confissão de Fé das Igrejas Reformadas de Piem onte” e, em baixo, acrescentava: "Publicada em seu M anifesto à ocasião do horrendo m assacre do ano de 1655."

A o que parece, esta Confissão só viria a ser aprovada oficialm ente no século XIX (vd. J. Alberto Soggin em texto introdutório à Confissão de Fé da Igreja Evangélica Valdense, In: C atecism os de la Iglesia Reform ada, Buenos Aires, Editorial “La Aurora”, 1962, pp. 189- 196; P. Schaff, The Creeds o f Christendom , Vol. III, p. 757).

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52 EU CREIO.

Em 1530, Carlos V, Imperador da Alemanha, convoca a Dieta de Augsburgo. Objetivo: unificação político-religiosa dos seus do­mínios. Daqui saiu a Confissão de Augsburgo, redigida por Ph. Melanchton (1479-1560), o “preceptor da Germânia”,U2 com a aquiescência de Lutero (1483-1546), que fez um comentário ambí­guo a respeito da sua leveza.... Esta Confissão foi lida em latim e alemão pelo Chanceler Christian Beyer, da Saxônia Eleitoral, pe­rante toda a Dieta, no dia 25 de junho de 1530, às 15 horas. Mesmo o Imperador não a aceitando, e proibindo a sua divulgação, ela em pouco tempo foi propagada em toda Alemanha.143

Calvino entende que a divergência em questões secundárias não deve servir de pretexto para a divisão da Igreja; afinal, todos, sem exceção, estão envoltos de “alguma nuvenzinha de ignorância”...

“ ... São palavras do Apóstolo: ‘Todos quantos somos perfeitos sintamos o mesmo; se algo entendeis de maneira diferente, também isto vos haverá de revelar o Senhor’ [Fp 3.15]. Não está ele, porventura, a suficientemen­te indicar que o dissentimento acerca destas cousas não assim necessárias não deve ser matéria de separação entre cristãos? Por certo que estará em primeira plana que em todas as cousas estejamos em acordo; mas, uma vez que ninguém há que não esteja envolto de alguma nuvenzinha de igno­rância, impõe-se que ou nenhuma igreja deixemos, ou perdoemos o enga­no nessas cousas que possam ser ignoradas não somente inviolada a suma da religião, mas também aquém da perda da salvação.

“Mas, aqui, não quereria eu patrocinar a erros, sequer os mais diminu­tos, de sorte que julgue devam ser fomentados, com agir com com placên­cia e ser-lhes conivente. Digo, porém, que não devemos por causa de quais­

142 Cf. Herrlinger e Max Landerer, Melanchthon: In: Philip Schaff, ed. R eligious En- cyclopaedia: o r D iction ary ofB ib lica l, H istorical, D octrinal, and P ractical Theology, II, p. 1461; Paul Monroe, H istória da Educação, 11“ cd. São Paulo, Companhia Editora Naci­onal, 1976, p. 179 e Lorcnzo Luzuriaga, H istória da Educação Pública, São Paulo, C om ­panhia Editora Nacional, 1959, p. 8. Monroe diz que Melanchthon, por ter redigido em 1528 os Regulam entos Escolares da Saxônia, “tornou-se o fundador do sistem a escolar do Estado moderno” (P. Monroe, H istória da Educação, p. 180). Na presidência da Universi­dade de Wittenberg, e le “exigiu que os professores ensinassem de acordo com o Credo A postólico, o Credo de Niccia, o Credo dc Atanásio e a Confissão de Augsburgo” (Hayward Armstrong, B ases da E ducação Cristã , Rio de Janeiro, JUERP, 1992, p. 62).

143 Vd. Martin Dreher em Introdução à Confissão de Augsburgo, São Leopoldo, RS, Sinodat, 1980, pp. 7-11; J.M. Drickamer, Confissão de Augsburgo: In: In: Walter A. Elwell, ed. E nciclopédia H istórico-Teológica da Igreja Cristã, I, pp. 328-329.

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quer dissentimentozinhos abandonar irrefletidamente a Igreja, em que so­mente se retenha salva e ilibada essa doutrina, mercê da qual se mantém firme a incolumidade da piedade e conservado é o uso dos sacramentos instituído pelo Senhor.”144

“N ão vejo, porém, nenhuma razão por que uma igreja, por mais universal­mente corrompida, desde que contenha uns poucos membros santos, não deva ser denominada, em honra desse remanescente, de santo povo de Deus.”145

“Todavia, ainda quando a Igreja seja remissa em seu dever, não por isso será direito de cada um em particular a si pessoalmente assumir a decisão de separar-se.”146

Após argumentar contra aqueles que chamavam os reformados de hereges, ressalta que a unidade cristã deve ser na Palavra:

“Com efeito, também isto é de notar-se: que esta conjunção de amor assim depende da unidade de fé que lhe deva ser esta o início, o fim, a regra única, afinal. Lembremo-nos, portanto, quantas vezes se nos reco­menda a unidade eclesiástica, isto ser requerido: que, enquanto nossas mentes têm o mesmo sentir em Cristo, também entre si conjungidas nos hajam sido as vontades em mútua benevolência em Cristo. E, assim, Pau­lo, quando para com ela nos exorta, por fundamento assume haver um só Deus, uma só fé e um só batismo [Ef 4.5], De fato, onde quer que nos ensina o Apóstolo a sentir o mesmo e a querer o mesmo, acrescenta im e­diatamente: em Cristo [Fp 2.1, 5] ou: segundo Cristo [Rm 15.5], significan­do ser conluio de ímpios, não acordo de fiéis a unidade que se processa à parte da Palavra do Senhor.”147

Para os irmãos refugiados em Wezel (Alemanha), que sofriam diversas pressões dos luteranos e sobreviviam numa pequena Igreja

144 J. Calvino, Aç Instituías, IV. 1.12.145 João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo, Parakletos, 1999, Vol. 2 (SI 50.4), p. 401.146 J. Calvino, A? Instituías, IV. 1.15. Em outro lugar, Calvino diz: “Deus só é corretamen­

te servido quando sua lei for obedecida. Não se deixa a cada um a liberdade de codificar um sistem a de religião ao sabor de sua própria inclinação, senão que o padrão de piedade deve ser tomado da Palavra de D eus” [João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo, Parakletos, Vol. 1 (SI 1.1), p. 53],

141J. Calvino, As Insíiíuías, 1V.2.5. Calvino entendia que “onde os hom ens amam a dispu­ta, estejam os plenamente certos de que Deus não está reinando ali” [J. Calvino, Exposição de I Coríntios, São Paulo, Edições Parakletos, 1996 (IC o 14.33), p. 436], T. George co­menta com acerto que “Calvino não estava disposto a comprometer pontos essenciais em favor de uma paz falsa, mas ele tentou chamar a igreja de volta à verdadeira base de sua unidade em Jesus Cristo” (T. George, Teologia dos Reform adores, pp. 182-183).

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Reformada, Calvino, em 1554, os consola mostrando que apesar dos grandes problemas pelos quais passavam o mundo, Deus lhes havia concedido um lugar onde poderiam adorar a Deus em liber­dade. Também os desafia a não abandonarem a Igreja por pequenas divergências nas práticas cerimoniais, sendo tolerantes a fim de pre­servar a unidade. Contudo, os exorta a jamais fazerem acordos em pontos doutrinários.148

Portanto, mesmo desejando a paz e a concórdia, Calvino enten­dia que essa paz nunca poderia ser em detrimento da verdade, pois, se assim fosse, essa dita paz seria maldita:

“Naturalmente, há uma condição para entendermos a natureza desta paz, ou seja, a paz da qual a verdade de Deus é o vínculo, Pois se temos de lutar contra os ensinamentos da impiedade, mesmo se for necessário m o­ver céu e terra, devemos, não obstante, perseverar na luta. Devemos, cer­tamente, fazer que a nossa preocupação primária cuide para que a verdade de Deus seja mantida em qualquer controvérsia; porém, se os incrédulos resistirem, devemos terçar armas contra eles, e não devemos temer sermos responsabilizados pelos distúrbios. Pois a paz, da qual a rebelião contra Deus é o emblema, é algo maldito; enquanto que as lutas, indispensáveis à defesa do reino de Cristo, são benditas.”149

Em 20 de março de 1552, Thomas Cranmer (1489-1556)150 es­creveu a Calvino - bem como a Melanchthon (1479-1560)151 e a Bullinger (1504-1575)152 - , convidando-o para uma reunião no Pa-

148 John Calvin, To the Brethren o f W ezel, “Letter, ” John Calvin Collection [CD-ROM ], (Albany, OR: A ges Software, 1998), n° 346, pp. 32-34.

145 J. Calvino, Exposição de 1 Coríntios, São Paulo, Edições Parakletos, 1996 (1 Co 14.33), p. 437.

150 Arcebispo de Canterbury, que em 1549 havia elaborado o Livro de O ração Comum, no qual dava ênfase ao culto em inglês, à leitura da Palavra de Deus e ao aspecto congrega- cional da adoração cristã.

151 M elanchton, m esm o sendo luterano e am igo pessoal de Lutero, desfrutou também de boa amizade com Calvino, mantendo com este ampla correspondência. Nos dizeres de Schaff, M elanchton “permaneceu com o um homem de paz entre dois hom ens de guerra” (Philip Schaff, H istory o f the Christian Church, Vol. VIII, p. 260). O seu principal trabalho teoló­gico foi L oci Communes (abril de 1521). Este tratado foi a primeira obra de teologia siste­mática protestante do período da Reforma, marcando época, portanto, na história da teolo­gia. N ele Melanchton segue a ordem da Epístola aos Rom anos (ver Philip Schaff, H istory o f the Christian Church, Vol. VII, 368-370).

152Bullinger foi am igo, discípulo e sucessor de Zuínglio (1484-1531), tendo escrito cerca

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lácio de Lambeth com o objetivo de preparar um credo que fosse consensual para as Igrejas Reformadas.153 Cranmer tinha em vista também a realização do Concílio de Trento154 que estava em anda-de 150 obras, entre elas A Segunda Confissão H elvética (1562-1566).

153 Cranmer, na carta a Calvino, diz: “Como nada mais tende a separar as Igrejas de Deus que as heresias e diferenças sobre as doutrinas de religião, assim nada mais eficazm ente os une, e fortalece a obra dc Cristo mais poderosamente, que a doutrina incorrupta do evange­lho e união em opiniões reconhecidas. Eu tenho freqüentemente desejado, e agora desejo, que esses hom ens instruídos e piedosos, que superam outros em erudição e julgam ento, constituíssem uma assembléia em um lugar conveniente, onde se realizasse urna consulta mútua e, comparando as suas opiniões, eles poderiam discutir todas as principais doutrinas da igreja.... N ossos adversários estão agora organizando o seu concílio em Trento, no qual eles podem estabelecer os seus erros. E devem os nós negligenciar convocar um sínodo piedoso que nos possibilite refutar os erros deles e purificar e propagar a verdadeira doutri­na?” Thomas Cranmer to Calvin, “Letter, ” John Calvin Collection [CD-ROM ], (Albany, OR: A ges Software, 1998), 16.

154 Cranmer era um teólogo e estadista; a sua preocupação com Trento era pertinente e a história já demonstrou amplamente esse fato.

Os jesuítas foram a força motriz do Concílio de Trento, sendo de fato os teólogos do Papa. Com o os bispos geralmente não dispunham de grande conhecim ento teológico, m es­mo titulados em Direito Canônico, eles se valiam de teólogos - em geral pertencentes às ordens religiosas - , que os assessoravam, sendo alguns teólogos enviados diretamente pelo Papa. E nessa condição, de modo especial, que destacam -se os jesuítas, entre eles, Tiago Lainez, Cláudio [Afonso?] Salmeron - estes dois sugeridos por L oyola - , Claude Le Jay, Pedro Canísio e Oto von Truchsess, que passaram, alguns deles, a desempenhar no Concílio um “papel teológico de primeira linha” (Marc Venard, O C oncílio Lateranense V e o Tri- dentino. In: O iuseppe Alberigo, org. H istória dos Concílios Ecumênicos, p. 332).

Este C oncílio teve vários percalços, a começar das suas convocações, visto que antes de ser realizado ele foi convocado em 04/6/1536 para Mântua em 07/05/1537; V icência 01/ 05/1538; e, em 21/05 /1539 ficou adiado indefinidamente. Neste período de incertezas, hou­ve tentativas de diálogo entre católicos e protestantes: N o colóquio de Ratisbona (1541), onde participaram, pelo lado protestante, Bucer e M elanchton, e, pelo lado católico, Conta- rini e Gropper, m esm o conseguindo um consenso quanto à justificação, os “representantes” de cada lado não avançaram quando se depararam com a questão da Ceia. A lém disso, essas atitudes conciliatórias não desfrutavam do apoio total das igrejas: Lutero e Roma desapro­variam em breve esse Colóquio. “Em Roma, aliás, vivia-se na expectativa do concílio, que devia ser um concilio de condenação e de refutação das teses protestantes” (Marc Venard, O Concílio Lateranense V e o Tridentino. In: Giuseppe Alberigo, org. H istória dos C oncílios Ecum ênicos, p. 331).

Em 1542, uma bula papal convoca o Concílio para Trento, cidade vertente dos Alpes italianos. Com pareceram alguns poucos b ispos que, depois de sete m eses de espera, dispersaram-se.

Finalm ente, Paulo III (1468-1549), sendo pressionado por Carlos V (1500-1558), redi­giu uma nova bula (19 /11/1544) convocando o concílio para o dia 15/03/1545, em Trento. Dia 13 começaram a chegar os prelados, contudo o Concílio só teve o seu início em 13/12/ 1545, com a presença de 4 cardeais, 4 arcebispos, 21 bispos e cinco gerais de ordens,

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mento, estando preocupado de modo especial com a questão da Ceia do Senhor.

Calvino então responde (abril de 1552), encorajando a Cranmer no seu objetivo. A certa altura diz:

“ ...Estando os membros da Igreja divididos, o corpo sangra. Isso me pre- ocupa tanto que, se pudesse fazer algo, eu não me recusaria a cruzar até dez mares, se necessário fosse, por essa causa.”155

número este que foi aumentado para 60 e 70 posteriormente. Contudo, a média de presença nas reuniões era abaixo de 50; só no final o número de votantes elevou-se a 250, conform e Eduardo Carlos Pereira, não ultrapassando o número de 213 prelados presentes; em suma: “pouco mais de duzentos padres”, isso cm seu período áureo: 1563. Venard diz que, no cômputo geral, “participaram do concílio, sob Pio V (1562-1563), sem estarem presentes ao m esm o tempo, 9 cardeais, 39 patriarcas e arcebispos, 236 bispos e 17 abades ou gerais de ordens. Esses números devem ser postos em relação com o episcopado católico da épo­ca, que devia girar em torno de 700 m embros” (Marc Venard, O Concílio Lateranense V e o Tridentino. In: Giuseppe Alberigo, org. H istória dos C oncílios Ecum ênicos, p. 331). E, além disso, aqueles que participaram de Trento não eram de fato os mais representativos do catolicism o.

A o longo de seus 18 anos de funcionamento, o C oncílio reuniu-se por 50 m eses, realizou25 sessões, sendo algumas delas meramente formais. O C oncílio de Trento pode scr dividi­do historicamente em três fases:

1) Sessões 1-10 (13/12/1545 a 02 /06 /1547 , no pontificado de Paulo III (1534-1549).2) Sessões 11-16 (01/05/1551 a 28/04 /1552), no pontificado de Júlio 111 (1550-1555).3) Sessões 17-25 (17 -18/01 /1562 a 04/12 /1563), no pontificado de Pio IV (1559-1565).O C oncílio deliberou em nível de decretos de definições doutrinárias e de ordem discipli­

nar. O s primeiros consistiram na rejeição dos postulados protestantes, considerando o fato de que este C oncílio estava grandemente preocupado com a situação de expansão do protes­tantismo. Os sete sacramentos são confirmados à maneira medieval. A Escritura e a tradi­ção são igualmente fontes de verdade. A Vulgata foi elevada à condição de igualdade com os Originais Hebraicos e Gregos.

Os jesuítas que foram fomentadores do Concílio de Trento saíram por toda parte levando tais resoluções, enfatizando sempre a supremacia papal, assunto que até então era muito disputado (se o papa ou o concílio tinha a palavra final). Sobre o serviço dos jesuítas, duas palavras: de um regalista e de um tridentino: “Inspirando o concílio de Trento: em toda a parte, em todos os tempos, de todo modo, nunca foram os jesuítas outra cousa que uma representação fiel, tenaz, inteligente do espírito romano, o ultramontanismo em atividade” [Rui Barbosa, Versão e Introdução de O Papa e o Concílio, 3° ed. Rio de Janeiro, Elos (s.d.), Vol. I, p. 43],

155 Letters ofJohn Calvin, Selected from the Bonnet Edition, Edinburgh, The Banner o f Truth Trust, 1980, pp. 132-133. Comentando sobre o egoísm o humano que gera divisões na Igreja e, ao m esm o tempo, a falta de tolerância, Calvino escreve, exortando-nos a amar os nossos irmãos: (Retom o aqui parte de citação j á fe ita ) “Há tanta rabugice em quase todos esses indivíduos que, estando em seu poder, de bom grado fariam para si suas próprias igrejas, porquanto se torna difícil acom odarem -se aos m odos das demais pessoas. Os ricos

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Todavia, é importante que se diga que num primeiro momento era impossível qualquer tentativa neste sentido, visto haver proble­mas geográficos, políticos, objetivos circunstanciais diferentes, e mesmo problemas doutrinários. Contudo, já no século XVII, algum progresso neste sentido é evidente, através de formulações doutri­nárias mais completas, e também, após passar o primeiro ardor apai­xonado e exclusivista, ainda que surgissem novos debates teológi­cos nos séculos XVII e XVIII, durante o período denominado de “Ortodoxia Protestante” ,m

Mesmo assim, as diferenças permaneceram sem, contudo, ferir pontos cruciais da Reforma, tais como: A Bíblia como autoridadeinvejam uns aos outros, e raramente se encontra um entre cem que acredite que os pobres são também dignos de ser chamados e incluídos entre seus irmãos. A m enos que haja sim i­laridade em nossos hábitos, ou alguns atrativos pessoais, ou vantagens que nos unam, será m uitíssim o difícil manter uma perene comunhão entre nós. Essa advertência, pois, se torna m ais que necessária a todos nós, a fim de sermos encorajados a amar, antes que odiar, e não nos separarmos daqueles a quem D eus nos uniu. Torna-se urgente que abracemos com fraternal benevolência àqueles que nos são ligados por uma fé incom um. E indubitável que a nós com pete cultivar a unidade da forma a m ais séria, porque Satanás está alerta, seja para arrebatar-nos da Igreja, ou para desacostumar-nos dela de maneira furtiva” [João Calvino, E xposição de H ebreus (Hb 10.25), pp. 272-273]. Schaff analisa: “A Igreja de D eus era a sua casa, e aquela Igreja não conhece nenhum limite de nacionalidade e idioma. O mundo era a sua paróquia. Tendo rompido com o papado, e le ainda permaneceu um católico na melhor acepção da palavra, e orou e trabalhou para a unidade de todos os crentes” (Philip Schaff, H istory o f the Christian Church, Vol. VIII, p. 799).

156 O período entre a Reforma e o llum inism o ou, mais precisamente, o século X V II , é conhecido na História da teologia protestante com o “Escolasticism oProtestante” , “Ortodo­xia Protestante” ou “Confessionalista”, que se caracterizou por uma preocupação profunda e sistemática pelo rigor doutrinário, elaborando com riqueza de detalhes os posicionam en­tos teológicos da igreja, conform e a compreensão da amplitude da revelação bíblica. Pode­m os dizer que este período consistiu na sistematização das doutrinas da Reforma. Normal­mente a O rtodoxia Luterana é colocada a partir do Livro da C oncórdia (1580), Livro que contém todos os sím bolos aceitos pela Igreja Luterana; e a O rtodoxia Reform ada, com o tendo sido arquitetada a partir dos escritos de Theodore de Beza (1519-1605) e H. Zanchi (1516-1590). [Cf. Arthur C. Piepkorv, Orthodoxy: In: Encyclopaedia Britannica, 1973, Vol. 16, p. 1126b. Leith, McGrath e Piepkorv tomam com o ponto de partida para a defini­ção deste período o ano da morte de Calvino (1564; vd. John H. Leith, An Introduction to the Reform ed Tradition, Ati anta, Geórgia, John Knox Press, 1977, p. 114; Alister E. McGrath, Christian Theology: An Introduction, p. 69; Arthur C. Piepkorv, Orthodoxy: E ncyclopae­d ia Britannica, 1973, XVI, p. 1126b). McGrath acentua que o período entre 1559-1622 é caracterizado pela ênfase doutrinária (Alister E. McGrath, Christian Theology, p. 70).] Para maiores detalhes sobre este assunto, vd. Hermisten M. P. Costa, Ortodoxia Protestante: Um D esafio à Doutrina e à Piedade: In: Fides Reformata, 3 /1 (1 9 9 8 ), pp. 50-71.

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final; a Justificação pela graça mediante a fé; o Sacerdócio uni­versal dos Santos; a Suficiência do sacrifício de Cristo para nos salvar etc.

Assim, os Credos da Reforma tinham três objetivos específicos:a) Evidenciar os fundamentos bíblicos de seus ensinos;b) Demonstrar que suas doutrinas estavam em acordo com os

principais credos da Igreja (Apostólico, Niceno, Constantinopolitano;c) Demarcar sua posição teológica em relação à teologia roma­

na e às demais correntes provenientes da Reforma.157As Confissões provenientes da Reforma (Séculos XYI e XVII)

são divididas em dois grupos: Luteranas e Calvinistas (Reforma­das). Dentro do nosso propósito, só consideraremos as Confissões Reformadas (Calvinistas).3. A IGREJA PRESBITERIANA DO BRASIL E OS SÍMBOLOS

DE FÉ

A Igreja Presbiteriana do Brasil completa em agosto (2002) 143 anos. A data comemorativa refere-se à chegada de Ashbel Green Simonton (1833-1867) ao Brasil, proveniente dos Estados Unidos, em 12/08/1859. Simonton veio como Missionário da Junta de M is­sões Estrangeiras da Igreja Presbiteriana da América do Norte.

Simonton, que já havia estudado português em New York, dedi­cou-se aqui com afinco ao estudo da nossa língua,158 iniciando uma Escola Bíblica Dominical em 22/4/1860.159

157 Vd. Jack B. Rogers, Autoridade e Interpretação da B íblia na Tradição Reformada: ln: Donald K. M cK im , ed. G randes Temas da Tradição R eform ada, São Paulo, Pendão Real, 1998, p. 41.

lss Veja-se Hermisten M.P. Costa, Os P rim órdios do Presbiterianism o no B rasil, São Paulo, 1990, pp. 1 9 e 2 8 .

159 Este tipo de trabalho - até onde sabemos - foi iniciado pelos M etodistas no R io de Janeiro, através do Rev. Justin Spaulding, no dom ingo, 01 de maio de 1836. Todavia, este trabalho teria curta duração, já em 1841 a M issão Metodista, por diversas razões, encerra­ria as suas atividades no Brasil, só reiniciando seu trabalho de forma permanente em 5/8/ 1867, com a chegada do Rev. Junis Eastham Newm an (1819-1865). A segunda Escola D om inical em nosso território foi organizada pelos Congregacionais, com o Dr. Robert R. Kalley (1809-1888) e a Sr.“ Sara P. Kalley (1825-1907) em Petrópolis, no dia 19/8/1855. Esta foi a primeira Escola Dom inical em caráter permanente em solo brasileiro, lecionada

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Em 25/7/1860, chega outro missionário enviado pela mesma Missão, Rev. Alexander Lattimer Blackford (1829-1890), acompa­nhado de sua esposa, Elizabeth, irmã de Simonton. O terceiro mis­sionário, o Rev. F. J.C. Schneider (1832-1910), chegou em 7/12/1861.

Finalmente, em 12 de janeiro de 1862, organizou a Primeira Igreja Presbiteriana no Brasil, na Capital do Império, Rio de Janei­ro, na Rua Nova do Ouvidor n° 31, com as duas primeiras Profis­sões de Fé: Um comerciante, norte-americano, Henry E. Milford (com cerca de 40 anos), natural de New York, que veio para o Bra­sil como agente da Singer Sewing Machine Company, e Camilo Cardoso de Jesus (com cerca de 36 anos),160 que posteriormente mudou o seu nome para Camilo José Cardoso.161 Ele era natural da cidade do Porto, Portugal, sendo padeiro e ex-foguista em barco de cabotagem.162 Ambos eram assíduos desde o início dos trabalhos promovidos por Simonton.163 O Sr. Cardoso seria mais tarde o pri­meiro diácono eleito nesta Igreja (02/04/1866), conservando-se neste ofício até à morte.164

Como o Sr. Milford já fora batizado na infância na Igreja Epis­copal, não foi rebatizado.165 Já o Sr. Camilo, por ser proveniente do

em português. A Escola Dom inical criada por Simonton, até onde pesquisam os, foi a ter­ceira a ser organizada... (vd. Hermisten M.P. Costa, A O rigem da Escola D om inical no Brasil: Esboço H istórico, São Paulo, 1997).

160 D iário , 14/01/1862; Rev. Antonio Trajano, Esboço Histórico da Egreja Evangélica Presbyteriana: ln: Álvaro Reis, ed. Alm anak H istórica do O Puritano, Rio de Janeiro, Casa Editora Presbyteriana, 1902, pp. 7-8.

161 Rev. A ntonio Trajano, Esboço Histórico da Egreja Evangélica Presbyteriana: ln: Á l­varo R eis, ed. Alm anak H istorico do O Puritano, p. 8.

162Rev. Antonio Trajano, Esboço Histórico da Egreja Evangélica Presbyteriana: In: Á l­varo R eis, ed. A lm anak H istorico do O Puritano, pp. 7-9; Boanerges Ribeiro, P rotestan tis­m o e Cultura Brasileira, São Paulo, Casa Editora Presbiteriana, 1981, p. 24; Júlio A . Fer­reira, H istória da Igreja Presbiteriana do B rasil, 2“ ed. São Paulo, Casa Editora Presbiteri­ana, 1992, Vol. I, p. 28.

m D iário , 25/11/61; 31/12/61; Boanerges Ribeiro, P rotestantism o e Cultura B rasileira, p. 24, veja-se nota 131.

164 Relatório de Simonton apresentado ao Presbitério do Rio de Janeiro no dia 10/07/ 1866, p. 8; Rev. Antonio Trajano, Esboço Histórico da Egreja Evangélica Presbyteriana: In: Álvaro R eis, ed. Alm anak H istorico do O Puritano, p. 8; Júlio A. Ferreira, H istória da Igreja P resbiteriana do Brasil, Vol. 1, p. 28.

165 A tas da Igreja do Rio de Janeiro (1862), p. 5; D iário , 14/01/62; Boanerges Ribeiro,

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60 EU CREIO.

Romanismo, foi rebatizado (este era seu desejo).166 Apesar de Si- monton ter titubeado diante do problema de batizar ou não batizar o Sr. Cardoso, conversando com os seus colegas, ouvindo a opinião de Kalley, e até mesmo consultando a Junta Missionária em New York,167 o rebatismo de católicos convertidos estava em harmonia com a legislação da Igreja Presbiteriana da América, que em 1835 decidira o seguinte:

“ (...) A Igreja Católica Romana apostatou essencialmente da religião de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, e por isso não é reconhecida como igreja cristã.”168

Em 1845, mediante consulta ao Presbitério de Ohio, se o Batis­mo da Igreja de Roma era válido, decidiu:

“ ... A resposta a essa questão envolve princípios vitais para a paz, a pure­za e a estabilidade da Igreja de Deus. Após ampla discussão, que se esten­deu por diversos dias, a Assembléia decidiu, pela quase unanimidade de votos (173 a favor e 8 contra), que o batismo administrado pela Igreja de Rom a não é válido.”169

A segunda Igreja foi organizada em São Paulo por Blackford, em 5/3/1865, na rua São José n° 1 (hoje Libero Badaró), permane­cendo nesse endereço até 1876.170 Na ocasião foi celebrada a Santa Ceia pela terceira vez em São Paulo. 18 pessoas comungaram e a Igreja recebeu seis novos membros por Profissão de Fé e Batis­

Protestantism o e Cultura B rasileira, p. 25. A lguns historiadores, por um pequeno descuido indutivo, têm afirmado erradamente que o Sr. M ilford também foi batizado na ocasião; o que de fato não ocorreu. (Com o exem plo do equívoco, vd. Rev. Antonio Trajano, Esboço Histórico da Egreja Evangélica Presbyteriana: In: Álvaro Reis, ed. A lm anak H istorico do O Puritano, p. 7; Erasmo Braga & Kenneth Grubb, The Republic o f Brasil. N ew York, World Dom inion Press, 1932, p. 58; Ém ile G. Léonard, O P rotestantism o Brasileiro, São Paulo, AST E (1963), p. 55.)

m D iário , 14/01/62.lf,7Boanerges Ribeiro, P rotestantism o e Cultura Brasileira, pp. 25-26; D iário , 14/01/62.168 A ssem bly D igest, Livro VI, Seção 83, p. 560 (1835), A pud Carl J. Hahn, H istória do

Culto P rotestante no Brasil, São Paulo, ASTE, 1989, p. 161.169A ssem bly D igest, Livro 111, Seção 13, p. 103 (1845), A pud Carl J. Hahn, H istória do

Culto P rotestante no B rasil, p. 162.,70Cf. O Estandarte, 18/01/1912, p. 9.

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Os Símbolos de Fé na História 61

m o.171 Simonton pregou na ocasião.172 V.T. Lessa observa que não há registro de organização de Igreja, apenas se menciona a celebração da Ceia e a recepção de membros; todavia, “a data ficou tradicio­nal.”173 A terceira Igreja foi organizada também por Blackford, em Brotas, interior de São Paulo, numa terça feira, em 13/11/1865, na casa do Sr. Antônio Francisco de Gouveia.174 Conceição foi o prega­dor. Na ocasião, onze pessoas foram recebidas por Profissão de Fé e Batismo; eram todas provenientes do Catolicismo. Celebrou-se a Ceia do Senhor.175 O Re v. Blackford visitara Brotas pela primeira vez em fevereiro de 1865, “onde pregou o evangelho pela primeira vez no domingo, 5 do mesmo mês, a 10 pessoas, em casa de Da Antonia Justina do Nascimento, na vila. Em seguida pregou (...) em casa do Sr. Antonio (ilegível) Gouvêa a 40 pessoas e duas vezes em casa do Sr. Manoel José Ribeiro a 15 e 30 pessoas respectivamente.”176 O trabalho foi intenso; havia um revezamento constante e dedicado: Blackford, Simonton, Chamberlain, Conceição,177 Pitt e Pires.178 Bla-

171 Cf. R ela tório de B lackford apresentado ao Presbitério do Rio de Janeiro, Sessão de 10/07/1866. In: C oleção C arvalhosa - Relatórios Pastorais, 1866-1875, pp. 19-20 (fonte manuscrita).

172 Vicente T. Lessa, Annaes da 1“ Egreja Presbyteriana de São Paulo, São Paulo, Edição da 1a Egreja Presbyteriana Independente, 1938, p. 31; Boanerges Ribeiro, P rotestantism o e Cultura B rasileira, p. 49; B. Ribeiro, O Padre Protestante, 2a ed. São Paulo, Casa Editora Presbiteriana, 1979, p. 134.

113 Vicente T. Lessa, A nnaes da 1" Egreja Presbyteriana de São Paulo, p. 31.174 O Rev. Blackford visitou Brotas pela primeira vez em fevereiro de 1865, “onde pregou

o Evangelho pela primeira vez no dom ingo 5 do m esm o mês a 10 pessoas, em casa de D a Antonia Justina do Nascim ento na vila. Em seguida pregou (...) em casa do Sr. Antonio (ilegível) G ouvêa a 40 pessoas e duas vezes em casa do Sr. M anoel José Ribeiro a 15 e 30 pessoas respectivam ente” [Livro de A tas da Igreja Evangélica Presbiteriana de Brotas, Livro 1, p. 2 (fonte manuscrita)].

175 Cf. R elatório de Blackford apresentado ao Presbitério do Rio de Janeiro, Sessão de 10/07/1866. In: C oleção C arvalhosa - Relatórios Pastorais, 1866-1875, p. 23 (fonte ma­nuscrita); Livro de A tas da Igreja Evangélica Presbiteriana de Brotas, Livro 1, pp. 3 e 31 (fonte manuscrita); Blackford, In: Boanerges Ribeiro, Protestantism o e Cultura B rasileira, p. 311; Vicente T. Lessa, Annaes da 1“ Egreja Presbyteriana de São Paulo, pp. 34-35.

176Livro de A tas da Igreja Evangélica P resbiteriana de Brotas, Livro I, p. 2 (fonte ma­nuscrita).

177 O próprio Conceição relata ao Presbitério suas andanças:“Aos 28 de fevereiro de 1866 saí de São Paulo pregando o Evangelho. Tomei a estrada do

Sul para Sorocaba.... Segui para Capivari e Piracicaba, onde não preguei, cheguei a São João do Rio Claro, onde preguei e segui para Brotas, onde por muitos dias me conservei

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ckford relata: “Em fevereiro de 1865 visitei pela primeira vez a vila e o Distrito de Brotas.... em março e abril os srs. Simonton e Chamber- lain também foram lá.... em junho do mesmo ano o Sr. Bastos179 visi­tou o lugar com livros e trabalhou com sucesso. Em outubro e no­vembro desse ano Conceição e eu passamos uns 20 dias pregando e ensinando constantemente na vila e nos sítios do Distrito.”180

O trabalho crescia rapidamente; em cada registro das “Actas da Sessão ou dos Pastores” constava o número de novos convertidos que professavam sua fé: Como vimos, na organização da Igreja: 11 pessoas (13/11/1865). A Igreja aumentava: 7 pessoas (maio de 1866); 4 Profissões de Fé e Batismo e 9 Batismos Infantis (20/10/1866); 8 Profissões de Fé e Batismo, 1 Profissão de Fé (a pessoa já fora bati­zada) (21/10/1866). Este ritmo continuou.181 Brotas se tornará o gran­de celeiro de Reforma Evangélica.182

com os revs. srs. Schneider e Chamberlain visitando e pregando na vila e pelos sítios com resultados abençoados por Deus pois que muitas conversões tiveram lugar em fam ílias inteiras.

“D epois de aí termos celebrado a Ceia do Senhor partimos ficando eu doente em casa do sr. José de Castilho e seguindo os revs. Schneider e Chamberlain para Rio Claro.

“Logo que me senti melhor preguei e visitei os crentes na Serra do Itaqueri, estive alguns dias em casa do sr. Paula Lima no campo, preguei no Bairro da fazenda onde m oços c m eninos deram muita vaia.

“Segui para Rio Claro onde preguei em casa do rev. sr. Schneider, pastor, ouvindo o Vigário e grande número de povo. Segui para Limeira, onde preguei em casa do sr. Manoel Joaquim de M elo, que tem casa de jogo, e muitos entre os quais alguns doutores em direito e m edicina...” (R elatório de C onceição apresentado ao P resbitério do Rio de Janeiro, Sessão de 10/07/1866.)

178 Livro de A tas da Igreja E vangélica Presbiteriana de Brotas, Livro I, pp. 2-4 (fonte manuscrita); Boanerges Ribeiro, José M anoel da C onceição e a Reform a Evangélica, São Paulo, Livraria O Semeador, 1995, p. 49ss.

179 Certamente o Sr. Manoel Pereira Bastos, agente da Sociedade Bíblica Americana [cf. Livro de A tas da Igreja Evangélica Presbiteriana de Brotas, Livro I, pp. 2-3 (fonte manuscri­ta); Relatório de Blackford apresentado ao Presbitério do Rio de Janeiro, Sessão de 10/07/ 1866. In: Coleção Carvalhosa - Relatórios Pastorais, 1866-1875, p. 18 (fonte manuscrita)].

180 R elatório de B lackford apresentado ao Presbitério do Rio de Janeiro, Sessão de 10/ 07/1866 . In: C oleção C arva lhosa - Relatórios P astorais, 1866-1875, pp. 22-23 (fonte manuscrita).

181 Vd. Livro de A tas da Igreja E vangélica P resbiteriana de Brotas, Livro I, p. 31 ss. (fonte manuscrita).

182 Vd. Boanerges Ribeiro, O Padre Protestante, pp. 123-132; Ém ile G. Léonard, O P ro­testantism o Brasileiro, pp. 58-60.

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Os Símbolos de Fé na História 63

Brotas só viria ter um pastor residente em 04/09/1868, com a vinda do Rev. Roberto Lenington.183

A Igreja crescia: agora temos um Presbitério. Assim, no sába­do, 16/12/1865,184 organizou-se o Presbitério do Rio de Janeiro, em reunião na casa de Blackford, na rua São José n° 1, São Paulo.185 O Presbitério era composto de três pastores: A.G. Simonton, do Pres­bitério de Carlisle; A. L. Blackford, do Presbitério de Washington e F.J.C. Schneider, do Presbitério de Ohio. Mediante proposta de Si­monton, Blackford foi escolhido moderador, ficando Schneider como secretário temporário e Simonton como Secretário Permanente. O Presbitério do Rio de Janeiro (organizado em São Paulo) ficou sob a jurisdição do Sínodo de Baltimore.186 Segundo Landes, na ocasião os missionários apresentaram cartas de transferência dos seus res­pectivos presbitérios para o Presbitério do Rio.187

Nesse mesmo dia o ex-padre José Manoel da Conceição (1822- 1873) foi examinado quanto ao seu desejo de ser Ministro do Evan­gelho: “principiando pelo exame de costume sobre os motivos que influíram nele para que desejasse ser incumbido do Ministério do Evangelho”,188 feitos outros de praxe e depois Conceição declarou aceitar a Confissão de Fé [de Westminster] e a Forma de Governo

183 Livro de A tas da Igreja E vangélica Presbiteriana de Brotas, Livro I, p. 4 (fonte ma­nuscrita); Blackford, ln: Boanerges Ribeiro, P rotestantism o e Cultura B rasileira , p. 311; Boanerges Ribeiro, J o sé M anoel da C onceição e a Reform a E vangélica , p. 52; Boanerges Ribeiro, O P adre Protestante, p. 132.

184 Sim onton na ata citou janeiro de 1866; todavia mais tarde verificou-se o erro e corri­giu-se na própria ata apresentando a data de 16/12/1865. Para a verificação correta, o Pres­bitério do Rio de Janeiro nomeou uma Com issão que deu seu relatório explicando o eqtiívo- co de Simonton. Veja-se relatório da mesma Reunião do Presbitério do R io de Janeiro de 06/09/1884 , “nona sessão”, pp. 371-372. A com issão era com posa pelos pastores: A.L. Blackford (relator), FJ.C. Schneider e Robert Lenington. A o Rev. M odesto P.B. Carvalbo- sa, com o Secretário Permanente do Presbitério, coube a tarefa de providenciar a retificação onde coubesse. N o final da primeira ata do Presbitério a correção é feita com a assinatura de Carvalhosa (vd. A tas do Presbitério do Rio de Janeiro, p. 7. Original manuscrito).

185 O livro de atas tem em sua primeira página a inscrição: “Actas do Presbyterio do Rio de Janeiro constituído em São Paulo a 16 de dezembro de 1865 - Livro Primeiro.”

186 A tas do P resbitério do R io de Janeiro, p. 2.187 Philip S. Landes, Ashbel Green Simonton, p. 67. A ata de organização não cita esse

fato, no entanto é possível e até natural que tenha ocorrido.188 A tas do P resbitério do Rio de Janeiro, pp. 2-3.

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da Igreja Presbiteriana. Mediante proposta de Simonton, o Presbi­tério votou favorável, dispensando-o inclusive dos “demais exames e formalidades exigidos”, não porém de um sermão pregado como de praxe. Foi marcado o dia seguinte, às 10h30m., sendo inclusive indicado o texto do sermão: Evangelho de Lucas, capítulo 4, versos 18 e 19.189

No dia seguinte, à hora marcada, após a abertura da Sessão, pregou Conceição com uma audiência de cerca de 25 pessoas. O sermão foi aprovado. Às 17 horas, com a parênese de Simonton, baseada em 2 Coríntios 5, verso 20, o Presbitério procedeu a orde­nação do Rev. José Manoel da Conceição:190 o primeiro pastor bra­sileiro. O Presbitério passou a contar agora com quatro pastores.191

Ainda não havia presbíteros na Igreja Presbiteriana no Brasil.192 O Presbitério era formado por três igrejas: a do Rio de Janeiro, São Paulo e Brotas.

Com a organização de um Presbitério nacional, ligado ao Síno­do de Baltimore, significa que o sistema de liturgia, disciplina e doutrina daquele Sínodo é também adotado aqui. Pois bem, em 1716 os três Presbitérios americanos de Filadelphia, Newcastle e Long Island193 constituíram o Sínodo de Filadélfia que, em 19/09/1729,

185 A tas do Presbitério do Rio de Janeiro, pp. 4-5.1.0 A tas do Presbitério do Rio de Janeiro, p. 6; Boanergcs Ribeiro, O Padre Protestante,

2a ed. São Paulo, Casa Editora Presbiteriana, 1979, pp. 138-141.1.1 Um dos participantes da reunião, referindo-se à ordenação de Conceição, escreveu:

“Este acontecimento representa um passo importante no progresso do protestantismo nestepaís papal; o caráter desse hom em , e sua influência entre o povo, vão ter, fora de todadúvida, efeito considerável sobre a mente popular” (Mc. F. Gaston, Hunting a H om e in Braz.il, pp. 271-272. A pud Júlio A. Ferreira, H istória da Igreja Presbiteriana do Brasil, Vol. 1, p. 61)

192 Os primeiros oficiais só seriam eleitos em 1866: Os D iáconos (02 /04/1866) e os P res­b íteros em 07 /07 /1866 (vd. R elatório de Simonton apresentado ao Presbitério do Rio de Janeiro no dia 10/07/1866, pp. 7-8; Vicente T. Lessa, Annaes da 1“ Egreja Presbyteriana de São Paulo, p. 41).

IM O Rev. Francis M akemie (1658-1708) foi enviado pelas Igrejas da E scócia com o missionário à América, pregando exaustivamente em várias cidades, estabelecendo a pri­meira Igreja Presbiteriana em Maryland no ano de 1684 [Morton H. Smith, Studies in Sou­thern P resbyterian Theology, N ew Jersey, Presbyterian and Reformed Publishing Com- pany, 1987, pp. 18-20; Mark A N oll, A H istory o f Christianity in the U nited States and C anada, Grand Rapids, M ichigan, Eerdmans, 1993 (reprinted), p. 68].

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adotou como Símbolo de Fé a Confissão de Fé e os Catecismos Maior e Menor de Westminster, com exceção dos capítulos que se referiam aos magistrados civis.194 Esta decisão ficou conhecida como “Ato de Adoção”.195 Refletindo a teologia calvinista no presbiteria- nismo americano, os símbolos de Westminster foram revisados e emendados em 1787 e confirmados em maio de 1789 na organiza­ção da Assembléia Geral da Igreja Presbiteriana nos Estados Uni­dos.196 Desta forma, podemos concluir que os Símbolos de West­minster foram adotados no Presbiterianismo brasileiro desde a sua implantação.

O ensino de Catecismo era parte integrante do pastorado de Si- monton. Como vimos, seu primeiro trabalho em português foi uma Escola Dominical em 22/04/1860. Os textos usados com as cinco crianças presentes (três americanas da família Eubank e duas ale­mãs da família Knaack) foram: A Bíblia, O Catecismo de História Sagrada197 e o Progresso do Peregrino, de Bunyan.198 Duas das cri­anças, Amália e Mariquinhas (Knaack), confessaram ou demons­traram na segunda aula (29/04/1860) ter dificuldade em entender John Bunyan.199

154 Cf. E.F. Hatfield, Presbyterian Churches: In: Philip Schaff, ed. Religious E ncyclopa­edia: o r D iction ary o f Biblical, H istorical, D octrinal, an d P ractical Theology, Vol. I ll, pp. 1906-1907; Archibald A. Hodge, Confissão de Fé Westminster C om entada p o r A.A. H od­ge, São Paulo, Editora os Puritanos, 1999, p. 45; Morton H. Smith, Studies in Southern P resbyterian Theology, pp. 23, 25; Kevin Reed, Introductory Essay. In: Samuel Miller, D octrinal Integrity, Dallas, Texas, Presbyterian Heritage Publicacions, 1989, p. xv; E.E. Cairns, O C ristianism o A través dos Séculos, p. 315; George S. Hendry, La Confesion de Fe de Westminster, pa ra el d ia de hoy, Bogotá, CCPAL, 1966, p. 14.

195 “Este Ato de A doção convocava também os presbitérios a providenciarem para que nenhum candidato ao ministério fosse admitido sem subscrever todos os artigos essenciais e necessários da Confissão ou dos Catecism os. Providenciava também para que, caso qual­quer ministro do Sínodo não pudesse aceitar algum artigo julgado necessário e essencial pelo presbitério, este presbitério o declarasse impossibilitado de continuar com o membro daquele corpo” (C. Gregg Singer, Os Irlandeses-escoceses na América: In: W. Stanford Reid, editor. C alvino e Sua Influência no Mundo O cidental, pp. 333-334).

196 Morton H. Smith, Studies in Southern Presbyterian Theology, p. 29; Archibald A. Hodge, Confissão de Fé W estminster Com entada p o r A.A. H odge, p. 45.

l97Estou convencido de que este Catecism o seja o m esm o que ele publicou parcialmente na Im prensa Evangélica a partir da edição de 16/02/1867 até 16/11/1867.

198 D iário , 28/04/1860.199 D iário , 01/05/1860.

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66 EU CREIO.

Aqui nós vemos delineados os princípios que caracterizariam a nossa Escola Dominical: O estudo das Escrituras, o estudo da histó­ria bíblica através do Catecismo de História Sagrada,™ e com uma aplicação ética e mística, através do Progresso do Peregrino.

Na edição de 04/02/1865 da Imprensa Evangélica, deu-se iní­cio à publicação de um “Breve catecismo para meninos”, com uma nota de agradecimento:

“Sumamente gratos à digna senhora que nos ofereceu esta tradução do inglês, nós chamamos a atenção dos senhores pais de família para estas doutrinas tão puras e salutares; e o fazemos com a melhor boa vontade, p orquan to tam bém nos lison jeia a co labo ração de tão em inente tradutora.”201

No seu relatório ao Presbitério de 1867, Simonton diz que havia dois cultos na Igreja e um às quartas-feiras, fazendo uma modifica­ção no culto matinal, realizando “um exercício mais familiar, os membros da igreja tomando parte mais ativa nas orações e medita­ção que são o fim dessa reunião.”202 Entendendo que a Igreja deve ser uma escola para o crente, adotou a prática de uma vez por mês substituir o sermão “pelo estudo e a explicação do breve catecismo [de Westminster?]”, crendo que “a excelência desta exposição das doutrinas da salvação é reconhecida por todos”. Seu objetivo era

2,10 Em 1867, A Im prensa dá a publicação do C a tecism o , iniciando com uma nota explicativa:

“A Bíblia em grande parte é história, e o plano da nossa redenção atravessa longos sécu­los, com eçando a descobrir-se a Adão e Eva e alcançando o seu perfeito desenvolvim ento com a descida do Espírito Santo no dia de Pentecoste.

“Se queremos compreender a Bíblia e torná-la com preensível aos outros, é mister dar­m os a devida importância à sua forma histórica. E necessário acompanhar passo a passo o desenvolvim ento do piano de Deus em relação à nossa raça e comentar os fatos na ordem em que se sucedem ” (Im prensa E vangélica , 16/02/1867, p. 27).

Este C atecism o seria publicado até a Imprensa de 16/11/1867, com a promessa de conti­nuar. No entanto, Simonton morreria semanas depois, o que m e leva a crer que o referido trabalho era de sua autoria.

201 Im prensa E vangélica , 04 /02 /1865 , p. 8. Este Catecism o foi publicado até a edição de 06/5/1865 (o jornal saiu erradamente com a data de 1864), perfazendo um total de 203 perguntas. Não consegui identificar a origem do referido Catecismo; todavia sabemos que não é o Breve C atecism o de Westminster.

202 R elatório de Simonton apresentado ao Presbitério do Rio de Janeiro no dia 12/07/ 1867, p. 3

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Os Símbolos de Fé na História 67

preparar os crentes para defender-se dos ataques incrédulos; por­tanto, “estou fazendo o que está em mim para gravar este catecismo na memória de todos.”203

Em 1870, após a Licenciatura de Carvalhosa,204 Torres205 e Tra- jano,206 o Presbitério do Rio de Janeiro decide que os referidos Li­

203 R elatório de Simonton apresentado ao P resbitério do Rio de Janeiro no dia 12/07/ 1867, p. 5 do seu relatório individual.

204 M odesto Perestrello Barros de Carvalhosa (1846-1917), português, professou sua fé e foi batizado na Igreja Presbiteriana de São Paulo em 25/03/1866. Foi licenciado em 22/ 08/ 1870, designado para a Igreja de Lorena; ordenado em 20/07/1871 (Atas do P resbitério do Rio de Janeiro, Sessão de 20/07/1871).

21,5 M iguel Gonçalves Torres (1848-1892), português, professou sua fé e foi balizado na mesma ocasião de Trajano, em 5/3/1865. Já durante os estudos, sofria de tuberculose; quan­do concluiu o Seminário, foi encaminhado pelo m édico para Caldas, em Minas Gerais, onde o clima e a altitude ajudariam no tratamento dc sua enfermidade. Creio que sua licen­ciatura foi retardada devido à sua saúde, que era precária; isto se torna ainda mais evidente pelo fato de M iguel Torres ter chegado em Caldas transportado numa liteira (cf. Júlio A. Ferreira, H istória da Igreja Presbiteriana do Brasil, Vol. 1, p. 133). A sua licenciatura ocorreu em 19/07/1871 (A tas do Presbitério do Rio de Janeiro, Sessão de 19/07/1871. A.B. Teixeira, numa biografia feita de Cerqueira Leite, publicada em O Estandarte de 4 e 11/ 01/1912, p, 31, apresenta a data da Licenciatura com o sendo 22 /08 /1870 . Creio que este pequeno equívoco deveu-se à falta de dados, conform e ele m esm o confessou ao iniciar o artigo. Engano sem elhante com ete Álvaro Reis, ed. Alm anak H istorico do O Puritano, na “Folhinha H istórica"), sendo designado para o campo de Caldas (chamada depois de Par­reiras e novamente Caldas) [cf. Júlio Andrade Ferreira, O A póstolo de Caldas, Franca, SP, Edição da Gráfica Renascença (s.d,), p. 209] e outras cidades de Minas. Ordenado em 10/8/ 1875 [Torres e Trajano foram ordenados juntos (A tas do Presbitério do Rio de Janeiro , Sessão de 10/08/1875). Em fontes secundárias também encontrei conflito de informações: vejam-se: J.A. Ferreira, O A póstolo de C aldas, p. 46; Álvaro Reis, ed. Alm anak H istorico do O Puritano, p. 86; Vicente T. Lessa, Annaes da 1" Egreja Presbyteriana de São Paulo, pp. 112, 137; “Folhinha H istórica”: ln; Álvaro R eis, ed. Alm anak H istorico do O Puritano, no dia 2/8/1875; A. B. Teixeira, O Estandarte de 4 e 11/01/1912, p. 31]. Ficando com as Igrejas de Caldas, Machado e Borda da Mata.

206 Antonio Bandeira Trajano (1843-1921), português, professou sua fé e foi batizado na organização da Igreja Presbiteriana de São Paulo (5/3/1865). Foi licenciado em 22 /08 / 1870, designado para os campos das Igrejas de Brotas, Jacutinga e Rio N ovo. Ordenado em 10/8/1875 [A tas do Presbitério do Rio de Janeiro, Sessão de 10/08/1875], Foi empossado com o Pastor da Igreja de Brotas em 03/10/1875 [Livro de A tas cla Igreja Evangélica P res­biteriana de Brotas, Livro 1, Ata n° 79, p. 57 (fonte manuscrita)]. Em fontes secundárias encontrei conflito de informações: Álvaro Reis, ed. Alm anak H istorico do O Puritano, Almanak, “Folhinha H istórica”, 2 /8 /1875, na parte final, não paginada; Vicente T. Lessa, A nnaes da / “ Egreja Presbyteriana de São Pauto, 85-86; Júlio A . Ferreira, H istória da Igreja Presbiteriana do B rasil, Vol. I, p. 88; O Estandarte, de 18/01/1912, p. 9, data a Ordenação de Trajano em 10/08/1875. A 1 Ia Reunião do Presbitério do Rio de Janeiro, ocorreu em Rio Claro, de 4 a 10 de agosto de 1875 (veja-se, Vicente T. Lessa, Annaes da J“ Egreja Presbyteriana de São P aulo, p. 136)].

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68 EU CREIO.

cenciados se preparem para a próxima reunião do Presbitério (1871) com vistas à sua Ordenação ao Sagrado Ministério, estudando os capítulos 1 a 14 da Confissão de Fé [Westminster], a fim de serem “examinados minuciosamente”. Recomendou-se também que os candidatos “estudassem particularmente sobre estes assuntos Hodge’s Commentary on the Confession of Faith e Hodge’s Outhines of Theo­logy.”207

Em 1876, a Igreja Presbiteriana publicou em português a Con­fissão de Fé de Westminster,208 constando também da “Epitome da Fórma de Governo e Disciplina da Igreja Presbyteriana”, que em seu prefácio, na pagina 78, dizia:

“O seguinte Epitome de Forma de Governo e Disciplina da Igreja Pres- biteriana foi preparado por uma comissão do Presbitério do Rio de Janeiro para de alguma maneira suprir a falta de uma edição autorizada em sua Forma de Governo e Disciplina, que até agora não tem sido possível ofere- cer ao público; o que porém se espera seja realizado sem muita demora.”

Durante o ano de 1881, saiu publicado em vários fascículos, na Imprensa Evangélica,209 o “Livro de Ordem da Igreja Presbyteria­na no Brazil”. No capítulo VII, da Primeira Parte, dizia:

“A Constituição da Igreja Presbiteriana no Brasil consiste de seus Sím ­bolos Doutrinais compreendidos na Confissão de Fé, nos Catecismos M ai­or e Breve, juntamente com o Livro de Ordem Eclesiástica, que abrange a Forma de Governo, as Regras de Disciplina e o Diretório do Culto.”

Para os pastores, presbíteros e diáconos serem ordenados, ti­nham que responder afirmativamente à seguinte pergunta:

“Recebeis e adotais sinceramente a Confissão de Fé e Catecismos desta Igreja, como fiel exposição do sistema doutrinário ensinado nas Santas Escrituras?”210

207 Ata do P resbitério do Rio de Janeiro, Sessão de 29/08/1870. Esta obra só seria tradu­zida para o português recentemente: Archibald A. Hodge, Confissão de Fé Westminster C om entada p o r A.A. H odge, São Paulo, Editora os Puritanos, 1999, p. 596.

208 Confissão de Fé de Westminster, Rio de Janeiro, Livraria Evangélica, 1876, p. 96.2m Sobre este jornal, que foi o primeiro jornal evangélico da Am érica Latina, vd. Hermis-

ten M.P. Costa, O s P rim órdios do Presbiterianism o no B rasil, p. 35ss.2,0 Livro de Ordem , 1.6. seções 5 e 6.

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Os Símbolos de Fé na História 69

Como exemplo, cito que o Rev. Eduardo Carlos Pereira e o Rev. José Zacharias de Miranda foram ordenados após cumprirem os exames previstos pelo “Livro de Ordem".211

Em 1888, a Igreja Presbiteriana no Brasil constava de três Pres­bitérios,2'2 a saber: do Rio de Janeiro (organizado em 16/12/1865); de Campinas-Oeste de Minas (organizado em 14/4/1887) e o de Pernambuco (organizado em 17/8/1888).213 Assim, autorizados pe­las Assembléias Gerais das Igrejas Presbiterianas dos Estados Uni­dos (Norte e Sul), estes Presbitérios se reuniram no dia 6 de setem­bro de 1888, no templo da Igreja Presbiteriana do Rio de Janeiro, sob a direção do Rev. G.W. Chamberlain, para constituir o primeiro Sínodo nacional. Na ocasião, pregou o Rev. Eduardo Lane. Em se­guida, procedeu-se à chamada dos respectivos representantes dos Presbitérios. A convite do presidente, o Rev. A.L. Blackford leu o ato constitutivo do Sínodo que, aprovado previamente pelos presbi­térios, foi aprovado unanimemente pelo Sínodo, o qual recebeu o seguinte nome: “Synodo da Egreja Presbyteriana no Brazil”• O Rev. Blackford foi eleito Moderador do Sínodo, no primeiro escrutínio.214

Aqui, os Padrões de Westminster são confirmados como símbo­los de Fé da Igreja Nacional. No Ato Constitutivo, Art 1 °, § 2o, lemos:

“O s símbolos da igreja assim constituída serão a Confissão de Fé e os Catecismos da Assembléia de Westminster, recebidos atualmente pelas igre - jas presbiterianas nos Estados Unidos, e o Livro de Ordem publicado na Imprensa Evangélica de 1881, com as emendas já adotadas pelos presbitérios.”

A nossa Igreja, fiel à sua compreensão bíblica e ao seu compro­misso histórico, continua adotando os mesmos Símbolos de Fé. A Constituição da Igreja Presbiteriana do Brasil, promulgada em 20 de julho de 1950, e ainda hoje em vigor, diz no Capítulo I, Art Io:

211 Vejam-se: L ivro de A tas da Igreja Evangélica Presbiteriana de Brotas, Ata n° 154, p. 1 (fonte manuscrita); Imprensa Evangélica e R evista Christã, set/18 8 1, p. 287.

212 Perfazendo um total de 50 igrejas locais, e mais de três mil membros professos, e não m enos de dez mi! assistentes (cf. Imprensa Evangélica, 5 /1/1889, p. 4).

213 Quanto às datas das organizações dos respectivos Presbitérios, consulte, Hermisten M.P. Costa, Os P rim órdios do Presbiterianism o no Brasil, p. 42.

214 Hermisten M.P. Costa, Os P rim órdios do P resbiterianism o no B rasil, p. 56.

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70 EU CREIO.

“A Igreja Presbiteriana do Brasil é uma federação de igrejas locais, que adota como única regra de fé e prática as Escrituras Sagradas do Velho e Novo Testamento e como sistema expositivo de doutrina e prática a sua Confissão de Fé e os Catecismos Maior e Breve....” .

Como já indicamos, os Padrões de Westminster são os Símbo­los de Fé de todas as Igrejas Presbiterianas do mundo que tiveram a sua origem inglesa ou escocesa.2154. O USO DE CATECISMOS E CON FISSÕES REFORMADOS

4.1. limites

Creio ter ficado evidente a relevância dos Credos Evangélicos216 no que se refere à sua formulação doutrinária. O ato de depreciar os Credos significa deixar de usufruir das contribuições dos servos de Deus no passado referentes à compreensão bíblica; “é uma negação prática da direção que no passado deu o Espírito Santo à Igreja.”217

Por outro lado, temos de entender - aliás, como sempre foi en­tendido pelos Reformados - que os Credos têm o seu limite. O Cre­do é uma resposta do homem à Palavra de Deus, sumariando os artigos essenciais da fé cristã. Desta forma, eles pressupõem fé; mas não a geram; esta é obra do Espírito Santo através da Palavra (Rm 10.17).

Os Credos baseiam-se na Palavra, porém não são a Palavra - nem jamais foi isso cogitado pelos seus formuladores; eles não po­dem substituir a Palavra de Deus; somente ela gera vida pelo poder de Deus (IPe 1.23; Tg 1.18).218

Para nós Reformados, os Credos têm a sua autoridade decorren­te da Palavra de Deus; em outras palavras, o seu valor não é intrín­

2,5 Cf. A .A . Hodge, Esboços de Theologia, p. 112.216 Chamo aqui de “Credos” os Credos propriamente ditos, os Catecism os e C onfissões.2l7Louis Berkhof, Introduccion a la Teologia Sistem ática, p. 22. Stott coloca bem esta

questão: “Desrespeitar a tradição e a teologia histórica é desrespeitar o Espírito Santo que tem ativamente iluminado a Igreja em todos os séeulos” (John R.W. Stott, <4 Cruz de Cristo, Miami, Editora Vida, 1991, p. 8).

218 Vd. J.M. B oice, O Pregador e a Palavra de Deus: In: J.M. B oice, ed. O A licerce da A utoridade B íblica, p. 162.

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Os Símbolos de Fé na História 71

seco, mas sim extrínseco: Eles são recebidos e cridos enquanto per­manecem fiéis à Escritura; assim, a sua autoridade é relativa. Se isto é assim, alguém poderia insistir: “Para que então os Credos, se nós temos a Bíblia?”. O Dr. A. A. Hodge (1823-1886), apresenta uma observação relevante:

“Todos os que estudam a Bíblia fazem isso necessariamente no próprio processo de compreender e coordenar o seu ensino; e pela linguagem de que os sérios estudantes da Bíblia se servem em suas orações e outros atos de culto, e na sua ordinária conversação religiosa, todos tornam manifesto que, de um ou outro modo, acharam nas Escrituras um sistema de fé tão completo como no caso de cada um deles lhe foi possível. Se os homens recusarem o auxílio oferecido pelas exposições de doutrinas elaboradas e definidas vagarosamente pela Igreja, cada um terá de fazer seu próprio credo, sem auxílio e confiando só na própria sabedoria. A questão real entre a Igreja e os impugnadores de credos humanos não é, como eles muitas vezes dizem, uma questão entre a Palavra de Deus e os credos dos homens, mas é questão entre a fé provada do corpo coletivo do povo de Deus e o juízo privado e a sabedoria não auxiliada do objetor individual.”219

Os Credos são somente uma aproximação e relativa exposição correta da verdade revelada. Desta forma, podem ser modificados pelo progressivo conhecimento da Bíblia a qual é infalível e ines­gotável. Por isso, não devemos tomar os Credos como autoridade final para definir um ponto doutrinário: os limites de nossa reflexão teológica estão na Palavra, não nos Credos. Os Credos não estabe­lecem o limite de nossa fé, antes a norteiam. A Palavra de Deus sempre será mais rica do que qualquer pronunciamento eclesiástico por m elhor que seja elaborado e por m ais fiel que seja às Escrituras.220 A firmeza e vivacidade da Teologia Reformada está justamente em basear o seu sistema em todo o desígnio de Deus, submetendo-o ao próprio Deus que fala através da sua Palavra.221

2|,J A .A . Hodge, Esboços de Theologia, p. 99.220 Vd. G.C. Berkouwer, A Pessoa de Cristo, p. 76.221 O teólogo Reformado Geerhardus Vos (1862-1949) conceituou corretamente a teolo­

gia, afirmando: “Toda genuína Teologia Cristã é necessariamente Teologia Bíblica, porque à parte da Revelação Geral, a Escritura constitui o único material com o qual a ciência Teológica pode tratar.’’(Geerhardus Vos, B iblical Theology: O ld and New Testament, Grand Rapids, M ichigan, WM. B. Eerdmans Publishing Co., 1985 (reprinted), “P reface”, p. v.)

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72 EU CREIO.

A Confissão de Westminster, capítulo I, seção 10, diz:“O Juiz Supremo, pelo qual todas as controvérsias religiosas têm de ser

determinadas, e por quem serão examinados todos os decretos de concíli- os, todas as opiniões dos antigos escritores, todas as doutrinas de homens e opiniões particulares, o Juiz Supremo, em cuja sentença nos devemos fir­mar, não pode ser outro senão o Espírito Santo falando na Escritura.”

4.2. Valor e Importância

A idéia de Credos desagrada a muitas pessoas porque os Credos pressupõem caminhos a serem seguidos; imaginam os Credos como um empobrecimento espiritual, um amordaçamento do Espírito... Dentro desta perspectiva a doutrina tem pouco valor, o que importa de fato é a “vida cristã”; daí as ênfases de tais pessoas ou grupos, nas “experiências” - que, via de regra, pretendem convalidar a Pa­lavra - ou num “evangelho” puramente ético-social. Todavia, am­bos os comportamentos, que revelam o mesmo equívoco, pecam por não compreender que a base de uma vida cristã autêntica é uma sólida doutrina vivenciada (vd. lTm 4.16). D. M. Lloyd-Jones (1899- 1981), acentuou bem este ponto, dizendo:

“Toda a doutrina cristã visa a levar, e foi destinada a levar a um bom resultado prático. (...) A doutrina visa a levar-nos a Deus, e a isso foi des­tinada. Seu propósito é ser prática (...) a nossa vida cristã nunca será rica, se não conhecermos e não aprendermos a doutrina.”222

“Você não poderá ser santo se não conhecer bem a doutrina. Doutrina é a ligação direta que leva à santidade. É somente quando compreende­mos estas verdades fundamentais que podemos atender ao apelo lógico para a conduta e o comportamento agradáveis a D eus.”223

222 D.M. Lloyd-Jones, A í Insondáveis Riquezas de Cristo, São Paulo, PES, 1992, pp. 85-86.2B Ibidem ., p. 254. Alhures, Jones insiste: “Um a das primeiras coisas que você deve

aprender nesta vida cristã e nesta guerra é que, se você estiver errado em sua doutrina, estará errado em todos os aspectos da sua vida. Provavelm ente estará errado em sua prática e em sua conduta; e certamente estará errado em sua experiência” (David Martyn Lloyd- Jones, O Com bate C ristão, São Paulo, PES, 1991, pp. 101-102). “Não existe nada que seja tão errôneo e tão completamente falso com o não perceber a importância primordial da doutrina verdadeira” (Ibidem ., 102). “A verdadeira doutrina cristã é sempre urgentemente importante. É de suma importância para toda a vida da Igreja” (Ibidem ., p. 103). “Se me pedissem para mencionar o maior problema entre os cristãos atuais, incluindo-se os conser­

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Os Símbolos de Fé na História 73

Alinhemos agora alguns elementos que atestam a importância e o valor dos Credos:

1) Facilita a confissão pública de nossa fé.2) Oferece-nos de forma abreviada o resultado de um processo

cumulativo da história, reunindo as melhores contribuições de di­versos servos de Deus na compreensão da Verdade. Em outro lugar, referindo-nos à ciência, enfatizamos que ela não tem pátria nem idade; não sendo privilégio de um povo, menos ainda de um indiví­duo; todo cientista - usando a figura de João de Salisbury (c. 1110- 1180)224 - equivale a um anão sobre os ombros de gigantes, valen­do-se das contribuições de seus predecessores, a fim de poder en­xergar um pouco além deles. Podemos aplicar esta figura à teolo­gia. Aliás, Packer já o fez, mais especificamente aplicando à tradi­ção: “A tradição nos permite ficar sobre os ombros de muitos gi­gantes que pensaram sobre a Bíblia antes de nós. Podemos concluir pelo consenso do maior e mais amplo corpo de pensadores cristãos, desde os primeiros Pais até o presente, como recurso valioso para compreender a Bíblia com responsabilidade. Contudo, tais interpre­

vadores, eu diria que é a nossa falta de espiritualidade e de um verdadeiro conhecim ento de D eus” (D.M . Lloyd-Jones, A.ç Insondáveis R iquezas de C risto , p. 8. Prefácio). “Jamais poderem os conhecer demasiadamente as grandes doutrinas da fé, mas se esse conhecim ento não nos leva a uma experiência cada vez mais profunda do amor de Cristo, não passa de conhecim ento que ‘incha’ (IC o 8.1 )"(Ibidem , p. 8. Prefácio). “O conhecim ento é absoluta­mente essencial; sem conhecim ento não pode haver nenhum crescimento. Todavia o conhe­cimento, no sentido verdadeiramente cristão, nunca é meramente intelectual. E assim , e isso porque é o conhecim ento de uma Pessoa. O propósito de toda doutrina, o valor de toda instrução, é levar-nos à Pessoa do nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo” (Ibidem , p. 165). “O evangelho não com eça com as minhas dores e penas, minha necessidade de orientação, minha aflição. Não, com eça com conhecer a Deus (...). O objetivo do cristianismo é levar- nos ao conhecim ento de Deus com o Deus, e ao conhecim ento do Senhor Jesus Cristo” (.Idem ., O C om bate C ristão , p. 127).

224 Cf. N. Abbagnano & A. Visalberghi, H istoria de la Pedagogia , Novena reimpresión, M éxico, Fondo de Cultura Económica, 1990, p. 203. Parece que esta figura também foi empregada por outro teólogo medieval, “que morreu quase 300 anos antes de Lutero nas­cer...”, Pedro de B lois (cf. Timothy George, Teologia dos R eform adores , São Paulo, Vida N ova, 1994, p. 23). N ewton mais tarde, referindo-se a Keplcr (1571-1630), Galileu (1564- 1643) e Descartes (1596-1650), entre outros, também faria uso desta analogia (vd. N. Ab­bagnano & A. Visalberghi, H istoria de la P edagogia , p. 280).

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74 EU CREIO.

tações (tradições) jamais serão finais; precisam sempre ser subme­tidas às Escrituras para mais revisão.”225

3) É uma exigência natural da própria unidade da Igreja, que exige um acordo doutrinário226 (Ef 4.11-14; Fp 1.27; ICo 1.10; Jd 3; Tt 3.10; G1 1.8, 9; lTm 6.3-5).

4) Visto que o cristianismo é um modo de vida fundamentado na doutrina, os Credos oferecem uma base sintetizada para o ensino das doutrinas bíblicas, facilitando a sua compreensão, a fim de que todos os crentes sejam habilitados para a obra de Deus.

Não deixa de ser curioso o fato de Spener (1635-1705), o “fun­dador” do “Pietismo” - que se opunha ao “Escolasticismo Protes­tante” insistir com os pastores que ensinem às crianças e aos adultos, juntamente com as Escrituras, o Catecismo,227 visto ser este fundamental para a sedimentação da fé.228

5) Preserva a doutrina bíblica das heresias surgidas no decorrer da história, revelando-se de grande utilidade, especialmente nas questões controvertidas, dando-nos uma exposição sistemática e norteadora a respeito do assunto.

6) No que se refere à compreensão bíblica, permite distinguir as nossas Igrejas das demais.

225 J.I. Packer, O Conforto do Conservadorismo: In: M ichael Horton, ed. R elig ião de P oder, p. 235. “N a verdade a abordagem im piedosa seria tentar aprender de Deus com o cavaleiro solitário que orgulhosamente ou impacientemente virasse as costas para a igreja e sua herança: isso seria receita certeira para esquisitices sem fim !” (J.I. Packer, Ibidem , p. 236). “Quem examina a tradição encontra aberta diante de si a sabedoria de todas as épo­cas” (J.I. Packer, Ibidem , p. 237). “Humildade no juízo particular quer dizer que continua­m os a examinar as Escrituras até ficar claro o que Deus disse, proibindo nosso intelecto orgulhoso de tirar conclusões sobre aquilo que o Deus da Bíblia deixa em aberto ou de recusar-nos a aceitar ajuda da tradição cristã na interpretação das Escrituras sob a suposi­ção de que um estudante da B íblia ‘se vira’ perfeitamente bem sem essa ajuda” (J.I. Packer, O Conforto do Conservadorismo: In: M ichael Horton, ed. R eligião de P oder, p. 241).

226 Vd. A.A. Hodge, E sboços de Theologia, p. 100; L. Berkhof, Introduction a la Teolo­gia Sistem ático , p. 18.

227 N o caso, o C atecism o M enor de Lutero, 1529. Spener era luterano.228Vd. Ph. J. Spener, M udança pa ra o Futuro: P ia D esideria , Curitiba, PR/São Bernardo

do Campo, SP, Encontrão Editora/Instituto Ecum ênico dc Pós-Graduação em Ciências da R eligião, 1996, pp. 32-33; 57-58; 118.

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7) Serve como elemento regulador do ensino ministrado na Igreja bem como de seu governo, disciplina e liturgia.

James Orr (1844-1913), na sua obra prima, O Progresso do Dogma, escrevendo sobre os “Credos da Reforma”, disse:

A idade da Reforma se destacou por sua produtividade de credos. Fa­remos bem se não menosprezarmos o ganho que resulta para nós dessas cri­ações do espírito do século XVI. Cometeremos grave equívoco se, seguindo uma tendência prevalecente [1897], nos permitirmos crer que são curiosi­dades arqueológicas. Esses credos não são produtos ressecados como o pó, senão que surgiram de uma fé viva e encerram verdades que nenhuma Igreja pode abandonar sem certo detrimento de sua própria vida. São produtos clássicos de uma época que se comprazia em formular credos, com o quê quero dizer, uma época que possuía uma fé que é capaz de definir-se de modo inteligente, e pela qual está disposta a sofrer se for necessário - e que, portanto, não pode por menos que expressar-se em formas que não tenham validade permanente - . [...] Estes credos se têm mantido erguidos como testemunhos, inclusive em período de decaimento, às grandes doutrinas so­bre as quais foram estabelecidas as Igrejas; têm servido como baluartes con­tra os assaltos e a desintegração; têm formado um núcleo de reunião e reafir­mação em tempos de avivamento; e talvez têm representado sempre com precisão substancial a fé viva da parte espiritual de seus membros...

“Os credos da Reforma dão, e isso praticamente pela primeira vez, uma exposição conjunta de todos os grandes artigos da doutrina cristã.”229

8) Serve como desafio para que continuemos nossa caminhada na preservação da doutrina e na aplicação das verdades bíblicas aos novos desafios de nosssa geração, integrando-nos assim à nobre sucessão daqueles que amam a Deus e a sua Palavra e que buscam entendê-la e aplicá-la, em submissão ao Espírito, à vida da Igreja. Portanto, “o conservadorismo criativo utiliza-se da tradição, não como autoridade final ou absoluta, mas como recurso importante colocado à nossa disposição pela providência de Deus, a fim de nos ajudar a entender o que a Escritura está nos dizendo sobre quem é Deus, quem somos nós, o que é o mundo ao nosso redor e o que fomos chamados para fazer aqui e agora.”230

2M James Orr, El Progreso dei Dogm a, Barcelona, CL1E., [1988], pp. 226-227.230 J.I. Packer, O Conforto do Conservadorismo: ln: M ichael Horton, ed. R eligião de

P oder, p. 241.

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76 EU CREIO.

Conforme já vimos, o Antigo e o Novo Testamentos usaram deste recurso para auxiliar os crentes na sua vida doutrinária e prá­tica cristã, expressando também o que a Igreja cria. Creio que isso resume bem o nosso assunto. Que Deus nos abençoe e nos ensine a honrar a sua Palavra e os Credos da Igreja enquanto estes permane­cerem fiéis à Escritura. Amém

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I - A INSPIRAÇÃO E INERRÂNCIA DAS ESCRITURAS

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Estamos iniciando o estudo do Credo Apostólico, dividindo as suas declarações em proposições que nos parecem explícitas.

Todavia, como consideramos o Credo uma declaração de fé que se ampara no ensino bíblico, estudaremos preliminarmente a Inspira­ção das Escrituras. Antes, porém, apresentaremos algumas linhas a respeito da origem do Credo Apostólico.

Como é possível que você não tenha lido a parte histórica intro­dutória, repetirei aqui nestes quatro parágrafos alguns dados já apre­sentados. O Credo dos Apóstolos tem a sua origem no Credo Ro­mano Antigo, elaborado no segundo século,231 tendo algumas de­clarações doutrinárias acrescentadas no decorrer dos primeiros sé­culos,232 chegando à sua forma como temos hoje, por volta do séti­mo século. A sua origem está tradicionalmente atribuída aos após­tolos. Essa lenda, bastante antiga, encontrou a sua forma mais fa­

231 Sobre a formação deste Credo, vd. J.N.D. Kelly, Prim itivos Credos Cristianos, Sala­manca, Secretariado Trinitario, 1980, p. 125ss.

232 Cf. Philip Schaff, The Creeds o f Christendom , 6“ ed. (revised and enlarged), Grand Rapids, M ichigan, Baker Book House (1931), Vol. 1, pp. 19-22; 11. 45-55; Reinhold See- berg, M anual de H istória de las D octrinas, El Paso, Texas/Buenos Aires/Santiago, Casa Bautista de Publicaciones/Junta Bautista de Publicaciones/Editorial “El Lucero” [1963], Vol. I, pp. 93-94; O.G. Oliver, Jr., Credo dos Apóstolos: ln: Walter A. E lw ell, ed. Enciclo­p éd ia H istórico-Teológica da Igreja Cristã, São Paulo, Vida Nova, 1990, Vol. 1, pp. 362- 363; K.S. Latourette, H istória de i Cristianism o, 4a ed. Buenos Aires, Casa Bautista de Publicaciones, 1978, Vol. I, pp. 180-182; Henry Bettenson, D ocum entos da Igreja Cristã, São Paulo, ASTE, 1967, p. 54; Charles A. Briggs, Theological Symbolics, N ew York, Charles Scribners’s Sons, 1914, p. 40; W ayne A. Grudem, Teologia Sistem ática, São Paulo, Vida N ova, 1999, p. 486ss.

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78 EU CREIO.

mosa em Rufino (c. 404), que supõe que cada um dos apóstolos colaborou com uma cláusula em particular.233

O Credo Apostólico era usado na preparação dos catecúmenos, professado durante o batismo, servindo também para a devoção pri­vada dos cristãos. Posteriormente, passou a ser recitado com a Ora­ção do Senhor no culto público.234 No nono século, ele foi sanciona­do pelo Imperador Carlos Magno para uso na Igreja, e o papa o incorporou à liturgia rom ana.235

A Reforma valorizou este Credo, sendo ele usado liturgicamen- te em muitas de nossas igrejas ainda na atualidade.

A analogia feita por P. Schaff (1819-1893) parece resumir bem o significado deste Credo: “Como a Oração do Senhor é a Oração das orações, o Decálogo a Lei das leis, também o Credo dos Após­tolos é o Credo dos credos.”236

O Credo Apostólico pode ser dividido em quatro partes:2371) Deus Pai2) Deus Filho: a História da Redenção3) Deus Espírito Santo4) A Igreja e os benefícios que Deus nos tem concedidoA Inspiração e Inerrância Bíblica238 são verdades fundamentais

231 Vd. J.N.D. Kelly, Prim itivos Credos Cristianos, p. 15ss.; J. Ratzinger, Introdução aoCristianism o, São Paulo, Herder, 1970, pp. 17-18.

234 Cf. Philip Schaff, The Creeds o f Christendom , Vol. 1, p. 17; O.G. Oliver, Jr., Credo dosApóstolos: In: Walter A. E lw ell, ed. Enciclopédia H istórico-Teológica da Igreja Cristã, Vol. 1, p. 363.

235 Cf. Jack B. Rogers, Creeds and Confessions: In: Donald K. M cKim, ed. E ncyclopedia o f the Reform ed Faith, Louisville, Kentucky, Westminster/John Knox Press, 1992, p. 91.

236 Philip Schaff, The Creeds o f Christendom , Vol. I, p. 14.237 Vd. Catecism o de la lg lesia de Ginebra: In: Catecism os de la Iglesia Reform ada, La

Aurora, Buenos Aires, 1962, Pergunta 186, p. 32.238 “Inerrância” tem neste ensaio o m esm o sentido de “infalibilidade” conform e sempre

foi usado pelos protestantes evangélicos (vd. Jack Rogers, Inerrancy: In: Donald W. Musser & Joseph L. Price, eds. A N ew H andbook o f Christian Theology, Nashville, Abingdon Press, 1992, p. 254. Vd. também: D .S. Carson, Recent Developm ents in the Doctrine of Scripture: In: D .A . Carson & John D. W oodbrigde, eds. Herm eneutics, A uthority and C a­non, Grand Rapids, M ichigan, Zondervan, 1986, p. 25ss.; Kenneth S. Kantzer, Os Evangé­licos e a Doutrina da Inerrância: In; James M. B oice, ed. O A licerce eta Au toridade B íblica, São Paulo, Vida N ova, 1982, pp.' 177-178.

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I - A Inspiração e Inerrância das Escrituras 79

da fé cristã, das quais depende toda a nossa formulação teológica. Estas verdades permeiam toda a História da Igreja. É pura ingenui­dade supor que o ensino destas doutrinas seja algo novo, posterior à Reforma, resultante da Ortodoxia do século XVII ou fruto do “funda- mentalismo” do século XX .239 Na realidade, Jesus Cristo e os após­tolos em nenhum momento sugeriram qualquer “engano”, “equívo­co” ou “contradição” nas páginas do Antigo Testamento; os Pais da Igreja, os Reformadores240 e os cristãos em geral - inclusive os Católicos241 até o Vaticano II (1962-1965)242 - , jamais creditaram à Bíblia qualquer tipo de erro. A Inspiração e a Inerrância das Escri­turas são verdades que fazem parte do “Antigo Evangelho” procla­mado por Jesus Cristo, os apóstolos, os Reformadores, Francis Tur- retin (1623-1687), Archibald Alexander (1772-1851); Charles Hodge (1797-1878); Archibald A. Hodge (1823-1886), B.B. Warfield

239 Conform e sugere Karen Armstrong (ver Karen Armstrong, Em N om e de D eus: o fundam entalism o no judaísm o, no cristianism o e no islam ismo, São Paulo, Companhia das Letras, 2001, p. 199).

M0Timothy George observa que, “Todos os reformadores estavam convencidos daquilo que Zuínglio chamou de a ‘clareza e certeza da Palavra de D eu s’. Embora acolhessem entusiasticam ente os esforços dos eruditos humanistas, tais com o Erasmo, por recuperar o primeiro texto bíblico e subm etê-lo a uma rigorosa análise filológica, eles não viam a B í­blia meramente com o um livro entre muitos outros. Eles eram irrestritos em sua aceitação da Bíblia com o a única e divinamente inspirada Palavra do Senhor” (Tim othy George, Teologia dos R eform adores , São Paulo, Vida N ova, 1994, p. 312).

241 Mais uma vez encontramos uma descrição objetiva da questão em George: “No século XVI, a inspiração c a autoridade das Escrituras Sagradas não eram um ponto de debate entre católicos e protestantes. Todos os reformadores, até m esm o os radicais, aceitavam a origem divina e o caráter infalível da Bíblia. A questão que surgiu na Reforma foi sobre o modo com o a autoridade divinamente comprovada das Escrituras Sagradas estava relacio­nada à autoridade da igreja e da tradição eclesiástica (católicos romanos), por um lado, e ao poder da experiência pessoal (espiritualistas), pelo outro” (T. George, Teologia dos Refor­m adores, p. 312).

242 O C oncílio Vaticano II declarou o seguinte: “D eve-se professar que os livros da Escri­tura ensinam com certeza, fielm ente e sem erro a verdade que Deus em vista da nossa salvação quis fosse consignada nas Sagradas Escrituras” (Com pêndio do Vaticano II, 5a ed. Petrópolis, RJ, Vozes (1971), II.3.11. § 179, p. 129). Todavia, J.J. Packer observa com acuidade que esta assertiva “foi redigida com o propósito de funcionar com o buraco no dique da inerrância bíblica, e é certamente assim que os teólogos católicos romanos a partir do Vaticano 11 têm feito uso desta afirmação” (J.l. Packer, Confrontando os Conceitos dos N ossos Dias Acerca da Escritura: In: James M. B oice, ed. O Alicerce da Au toridade B íbli­ca, p. 83. Veja-se, por exem plo, D e Fraine, Inspiração: In: A. Van Den Born, redator, D ici­onário E nciclopédico da B íblia , 2“ ed. Petrópolis, RJ, Vozes, 1977, seção IV, p. 734).

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80 EU CREIO.

(1851-1921); J.G. Machen (1881-1937), Louis Berkhof (1873-1957), David M. Lloyd-Jones (1899-1981), J.I. Packer, e tantos outros.243

Estamos convencidos de que um dos problemas fundamentais entre os cristãos do século XX está na aceitação teórica (confessional) e prática (vivencial) da Bíblia como Palavra autoritativa, inerrante e infalível de Deus. Uma visão relapsa deste ponto determina o fra­casso teológico e espiritual da Igreja. “Uma compreensão certa da inspiração e da revelação é essencial para se distinguir entre a voz de Deus e a voz do homem”, observa corretamente MacArthur.244

É justamente devido ao fato de muitos cristãos terem negado de modo confessional e/ou vivencial a inspiração e inerrância das Es­crituras que tem havido tantas heresias em toda a história do Cristia­nismo. Este desvio teológico, acerca destas doutrinas, tem contribuí­do de forma acentuada para que os homens não mais discirnam a Palavra de Deus e, por isso, não possam gozar da sua operação eficaz levada a efeito pelo Espírito (Cf. 1Ts 2.13;Jo 17.17), caindo assim na “rampa escorregadia”245 da negação de outras doutrinas.

Entendo ainda que qualquer diálogo teológico produtivo deve começar tendo a inerrância bíblica como um pressuposto essencial. Fora disso, sinceramente, não creio que possa haver um colóquio satisfatório, edificante e esclarecedor; comecemos, pois, pela Ins­

243 Vd. R. Laird Harris, lnspiration an d Canonicity o fth e Scriptures, Greenville, SC. A. Press, 1995, pp. 55-64; John H. Gerstner, A Doutrina da Igreja Sobre a Inspiração Bíblica: In: James M. B oice, ed. O A licerce da Au toridade B íblica, p. 25ss.

244 John F. MacArthur, Os C arism áticos, São Paulo, Fiel, 1981, p. 19. Vd. também, J.I. Packer, Confrontando os Conceitos dos N ossos D ias Acerca da Escritura: In: James M. B oice, ed. O A licerce da A u toridade B íblica, pp. 76-77.

245 Vd. J.I. Packer, Confrontando os Conceitos dos N ossos Dias Acerca da Escritura: In: James M. B oice, ed. O A licerce da Au toridade B íblica, pp. 76, 77, 88, 89. P.D. Feinberg, Bíblia, Inerrância e infalibilidade da Bíblia: In: Walter A, Elwell, ed. E nciclopédia H istóri- co-T eológica da Igreja, Vol. I, pp. 182-183. Agostinho (354-430), que na questão do Cânon nem sempre foi dos mais lúcidos, raciocina de forma lógica e objetiva sobre a questão da inerrância, dizendo: “Numa autoridade tão alta (i.é, a Escritura), a admitir uma só mentira oficiosa não deixará sobrar uma só passagem daquelas que parecem difíceis para praticar ou crer que, segundo a mesma regra altamente perniciosa, não possa ser explicada com o mentira feita pelo autor deliberadamente para servir a algum propósito...” (A pud J.I. Pa­cker, Confrontando os Conceitos dos N ossos Dias Acerca da Escritura: In: James M. Boice, ed. O A licerce da A u toridade B íblica, p. 88).

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I - A Inspiração e Inerrância das Escrituras 81

piração e Inerrância das Escrituras, entendendo que a Inerrância e a Infalibilidade da Bíblia são decorrentes da sua Inspiração.2461. A NECESSIDADE DAS ESCRITURAS

1.1. Necessidade Primária

A necessidade primária para o registro da Bíblia foi o pecado do homem. No Éden só havia um livro: o livro da natureza; todavia, com o pecado humano, a natureza também sofreu as conseqüênci­as, ficando obscurecida, perdendo parte da sua eloqüência primeva em apontar para o seu Criador (Gn 3.17-19),247 e, como parte do castigo pelo pecado, o homem perdeu o discernimento espiritual para poder ver a glória de Deus manifesta na criação (SI 19.1; Rm 1.18-23). A Revelação Geral que fora adequada para as necessida­des do homem no Éden - embora saibamos que ali também se deu a Revelação Especial (Gn 2.15-17, 19, 22; 3.8ss) - tornou-se agora incompleta e ineficiente248 para conduzir o homem a um relaciona­mento pessoal e consciente com Deus.249 A observação de Calvino (1509-1564) parece-nos importante aqui: “Lembremo-nos de que nossa ruína se deve imputar à depravação de nossa natureza, não à natureza em si, em sua condição original, para que não lhe lance­mos a acusação contra o próprio Deus, autor dessa natureza.”250

246 Quanto ao assunto desta introdução, vd. Francis A. Schaeffer, D eus dá ao seu Povo uma Segunda Oportunidade: In: James M. B oice, ed. O A licerce da Au toridade B íblica, pp. 15-21.

247 Vd. Hermisten M.P. Costa, Antropologia Teológica: Uma Visão B íblica do Homem, São Paulo, 1988, pp. 22-24. Groningen acentua: “O Senhor soberano julgou necessário revelar explicitam ente a natureza de sua relação pactuai com a humanidade. Ele fez isso antes de o homem cair em pecado. Depois da queda, isso se tornou ainda mais necessário devido aos efeitos do pecado” (Gerard Van Groningen, Revelação M essiânica no Velho Testamento, Campinas, SP, Luz para o Caminho, 1995, p. 63).

248 Vd. B.B . Warfield, Revelation and Inspiration: In: The Works o f Benjamin B. War­fie ld , Grand Rapids, M ichigan, Baker Book House, 1981, p. 7ss. A revelação Geral é “tê­nue e obscura para a humanidade pecadora, e m esm o para a humanidade redimida” (Gerard V. Groningen, R evelação M essiânica no Velho Testamento, p. 64).

249 Vd. Hermisten M.P. Costa, Introdução à Teologia Sistem ática, São Paulo, 1986, pp. 7ss.; 21.

250 J. Calvino, As Instituías, II. 1.10.

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82 EU CREIO.

Através da História Deus separou e preparou homens para que registrassem de forma exata e infalível os seus desígnios, sendo a Palavra de Deus escrita, dentre outras coisas, “o corretivo às idéias disformes que pode dar-nos a natureza em seu estado caído.”251

Desta forma, a Bíblia tem um caráter instrumental e temporá­rio, embora seus efeitos e suas verdades sejam eternos. O que esta­mos querendo dizer é que na eternidade não haverá mais a Bíblia; apenas teremos a visão ampla e experimental daquilo para o qual ela apontava: A vitória do Cordeiro!

1.2. Necessidade Conseqüente

Como conseqüência lógica do argumento anterior, podemos observar que a Bíblia foi escrita para registrar de forma cabal e inerrante a vontade de Deus referente ao aqui e agora e ao lá e de­pois, evitando assim os desvios naturais, fruto do pecado humano. Por isso, só se considera adequada a revelação de Deus contida na Bíblia; somente através das Escrituras o homem pode ter um co­nhecimento de Deus livre de superstições.

Calvino (1509-1564), compreendendo bem este fato, escreveu:“Com efeito, se refletimos quão acentuada é a tendência da mente hu­

mana para com o esquecimento de Deus, quão grande a proclividade para com toda sorte de erro, quão pronunciado o gosto de a cada instante forjar novas e fantasiosas religiões, poder-se-á perceber quão necessária haja sido tal autenticação escrita da celeste doutrina, para que não deperecesse pelo olvido, ou se dissipasse pelo erro, ou fosse da petulância dos homens cor­rompida.”252

A Bíblia como Palavra inspirada e inerrante de Deus dá ao ho­mem a resposta adequada às necessidades espirituais de que tanto carece, apontando para Jesus Cristo (Jo 5.39) e para o poder de Deus. Nas Escrituras encontramos a esperança da vida preparada, realizada e consumada pelo Deus Triúno (Rm 15.4; lJo 5.13).

251 H.H. Meeter, La Iglesia y El Estado, 3a ed.Grand Rapids, Michigan, TELL (s.d.), p. 28.252 J. Calvino, Â í Instituías, 1.6.3 (vd. Confissão de W estminsler, 1.1).

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I - A Inspiração e Inerrância das Escrituras 83

A Bíblia não foi registrada apenas para o nosso deleite espiritu­al; mas para que cumpramos os seus preceitos, dados pelo próprio Deus (Dt 29.29; Js 1.8; 2Tm 3.15, 16; Tg 1.22); a Bíblia também não nos foi dada para satisfazer nossa curiosidade pecaminosa (Dt29.29), que em geral ocasiona especulações esdrúxulas e facções;253 Ela foi-nos concedida para que conheçamos seu Autor; e, o conhe­cendo, o adoremos; e, o adorando, mais o conheçamos (Os 6.3; 2Pe 3.18).254 A Bíblia foi-nos confiada a fim de que, mediante a ilumi­nação do Espírito Santo,255 sejamos conduzidos a Jesus Cristo (Jo 5.39; Lc 24.27, 44), sendo ele mesmo quem nos leva ao Pai (Jo 14.6-15; lTm 2.5; IPe 3.18) e nos dá vida abundante (Jo 10.10; Cl3.4). Por isso, “ao estudarmos Deus, devemos procurar ser conduzi­dos a ele. A revelação nos foi dada com esse propósito e devemos usá-la com essa finalidade”.256

253 Calvino combateu as especulações com veemência; em diversos lugares e le escreveu sobre o assunto; com o exem plo, cito:

“Porque são mui poucos entre a ingente multidão de homens que existe no mundo os que pretendem saber qual é o caminho para ir ao céu; porém todos desejam antes do tempo conhecer o que é que se faz nele” (As Instituías, 111.25.11; vd. também 1.5.9).

“ ‘A Escritura é proveitosa.’ Segue-se daqui que é errôneo usá-la de forma inaproveitá- vel. A o dar-nos as Escrituras, o Senhor não pretendia satisfazer nossa curiosidade, nem alimentar nossa ânsia por ostentação, nem tampouco deparar-nos uma chance para in­venções m ísticas e palavreado tolo; sua intenção, ao contrário, era fazer-nos o bem. E, assim, o uso correto da Escritura deve guiar-nos sempre ao que é proveitoso” [J. Calvino, A s P asto ra is , São Paulo, Parakletos, 1998 (2Tm 3.16), p. 263],

“A s cousas que o Senhor deixou recônditas cm secreto não perscrutemos, as que pôs a descoberto não negligenciem os, para que não sejam os condenados ou de excessiva curi­osidade, de uma parte, ou de ingratidão, de outra” (A.ç Instituías, TII.21.4).

“Nem nos envergonhemos em até este ponto submeter o entendimento à sabedoria imensa de Deus, que em seus muitos arcanos sucumba. Pois, dessas cousas que nem é dado, nem é lícito saber, douta é a ignorância, a avidez de conhecim ento, uma espécie de loucura” (As Institutos, III.23.8).254 Vd. Calvino, A s Institutos, 1.5.10; Agostinho, Confissões, 9a ed. Porto, Livraria A pos­

tolado da Imprensa, 1977, T .l.l. pp. 27-28; J.I. Packer, O Conhecimento de D eus, São Paulo, Mundo Cristão, 1980, especialm ente, pp. 26-35.

255 J. Calvino observou que: “Só quando Deus irradia em nós a luz de seu Espírito é que a Palavra logra produzir algum efeito. D aí a vocação interna, que só é eficaz no eleito e apropriada para ele, distingue-se da voz externa dos hom ens” [J. Calvino, E xposição de Rom anos, São Paulo, Parakletos, 1997 (10.16), p. 374], A vocação eficaz do eleito “não consiste som ente na pregação da Palavra, senão também na iluminação do Espírito Santo” (J. Calvino, A s Instilu tas, III.24.2).

25fiJ.l. Packer, O Conhecimento de Deus, p. 15.

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84 EU CREIO.

2. A INSPIRAÇÃO DAS ESCRITURAS

2.1. O que Inspiração Não E

2.1.1. Mecânica ou Ditada

Inspiração não significa que os escritores receberam o conteúdo de seus escritos por ditado divino. Se assim fosse, significaria que eles foram apenas os secretários, amanuenses de Deus, que copia­vam pura e simplesmente o que lhes fora ditado;257 logo, não have­ria estilos diferentes na Bíblia; o que, como sabemos, há. O estilo, neste caso, seria do Espírito Santo! Um dos textos que indicam o contrário é 2Pe 3.15, 16, quando Pedro faz alusão à maneira própria de Paulo escrever.

2.1.2. Iluminação

A Inspiração não consiste apenas numa intensificação da ação do Espírito Santo sobre os escritores, de tal forma que eles puderam ter um grau mais elevado de percepção espiritual. Se a inspiração fosse apenas isso, cairíamos num subjetivismo extremamente peri­goso, pois, neste caso, a veracidade dos textos bíblicos dependeria da apreensão de cada “iluminado” para que pudesse registrar o que percebera. Conseqüentemente, não poderíamos considerar a Bíblia como o registro inerrante da Palavra de Deus, visto que a Bíblia apenas conteria a Palavra que foi apreendida, captada... Este con­ceito contraria o ensino das Escrituras (vd. Jo 10.35; At 4.25, 26; 6.2), que afirma que Deus fala através dos seus servos, sendo o seu registro, a Palavra de Deus, a qual não pode ser anulada.

2.1.3. Intuição

Inspiração não significa que os escritores foram inspirados da mesma forma que os grandes autores da literatura, inventores, cien­tistas, músicos etc.258 Se assim fosse, a Bíblia poderia até ser um

257 Notem os que não haveria nenhum problema em copiar o “ditado” divino; o que esta­mos dizendo é que a Bíblia não nos ensina isto.

158 Richardson, que sustenta tal posição, diz: “A inspiração dos livros da B íblia não nos força a aceitar que foram produzidos ou escritos de qualquer maneira genericam ente difc-

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I - A Inspiração e Inerrância das Escrituras 85

belíssimo livro, todavia apenas um livro humano, criado pela geni­alidade humana e, por mais belo e extraordinário que fosse, seria falível, cheio de erros, preceitos antiquados e, o pior de tudo: não nos conduziria a Deus (Jo 5.39).

2.1.4. Parcial ou Fracional

Inspiração não significa que os autores tiveram apenas uma ins­piração parcial quanto a alguns assuntos da Bíblia. Os defensores desta idéia entendem que doutrinariamente a Bíblia contém a Pala­vra de Deus (embora não haja unanimidade quanto à aceitação des­ta ou daquela doutrina); contudo, ela contém erros de história, cro­nologia, arqueologia, geografia etc. A idéia mais comum é a de que a Bíblia só teria autoridade em matérias morais e espirituais. Este conceito traz em seu bojo a pressuposição consciente ou inconsci­ente de que a Bíblia tem uma “inerrância limitada”, restrita aos assuntos morais e espirituais.259 Todavia, Paulo diz que “Toda Es­critura é inspirada por Deus...” (2Tm 3.16). O labor humano em tentar separar - como se existisse o que separar - o que é “inspira­do” do que “não é inspirado”, se constitui em algo nocivo e temerá­rio, visto que o homem arroga para si a condição de superior à Pala­vra, colocando-se sobre a Bíblia para julgá-la, com critérios subje­tivos, estabelecendo um “Cânon dentro do Cânon”, rejeitando o próprio testemunho das Escrituras.

rente daquela por que se escreveram outros grandes livros cristãos, com o, por exem plo, A Imitação de Cristo ou O Peregrino. A inspiração do Espírito Santo, no sentido em que o apóstolo Paulo disse ter a direção do Espírito, não cessou quando foram escritos todos os livros do N ovo Testamento, ou quando se estabeleceu finalmente o cânon do N ovo Testa­mento. Há uma boa porção da literatura cristã que vai do século segundo ao século vinte, que pode com muita propriedade ser tida com o inspirada pelo Espírito Santo, precisamente no m esm o sentido formal que julgam os inspirados os livros da B íblia” (Alan Richardson, A pologética C ristã , 2“ ed. Rio de Janeiro, JUERP, 1978. p. 167).

2WR.C. Sproul apresenta de forma clara e objetiva alguns desvios decorrentes da aceitação da “inerrância limitada” (R.C. Sproul, Sola Scriptura: Crucial ao Evangelicalismo: ln: James M. Boice, ed. O A licerce da Autoridade Bíblica, pp. 134-138. A interpretação católica roma­na, a partir do Concílio Vaticano II (1962-1965), corresponde a este conceito. Conforme já vimos, o Concílio declarou: “D eve-se professar que os livros da Escritura ensinam com certe­za, fielmente e sem erro, a verdade que Deus em vista da nossa salvação quis fosse consignada nas Sagradas Escrituras” (Compêndio do Vaticano II, 11.3.11. § 179, p. 129).

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86 EU CREIO.

2.1.5. Mental

Inspiração não significa que os autores secundários tiveram ape­nas os seus pensamentos inspirados, mas não as palavras de seus registros. Se isto fosse assim, os pensamentos seriam verdadeiros, contudo o registro destes pensamentos poderiam e, de fato, conteri­am erros. Ora, esta concepção é extravagante, pois admite a possi­bilidade de Deus inspirar o pensamento humano sem palavras. Não é justamente em palavras que nós pensamos, ainda que a sua ex­pressão possa ser pictórica?! Além do mais, a Bíblia nos ensina que Deus dá as palavras para serem registradas (cf. Ex 24.4; 34.27; Is 30.8; Jr 1.9; 36.2; Hc 2.2; Ap 21.5). À inspiração termina não nas idéias, mas no registro final das Escrituras (2Tm 3.16).

2.2. O que Entendemos por Inspiração

2.2.1. Considerações Gramaticais

A palavra “inspiração” não ocorre no Novo Testamento. Ela só aparece uma única vez no Antigo Testamento: “Mas ninguém diz: Onde está Deus que me fez, que inspira (Hb. ]ri3 (Nãthan) = “dar”, “conceder”) canções de louvor durante a noite" (Jó 35.10; ARA).260 No Novo Testamento, a palavra é decorrente de uma tradução inter- pretativa do Texto de 2Tm 3.16, que diz: “Toda Escritura é inspira­da por Deus...". A expressão “inspirada por Deus” provém de um único termo grego, ©eÓJivetmoç, que só ocorre aqui (não aparece na LXX). Todavia, a tradução que temos (Almeida, Revista e Atua­lizada) segue aqui a Vulgata, que traduz, “Divinitus Inspirata”.261

A palavra ©eòjiveuaxoç não significa “ins-pirado”, mas, sim, “ex-pirado”', ou seja, ao invés de soprado para dentro, soprado para fora. Este adjetivo, comenta Colin Brown, “não significa qualquer modo específico de inspiração, tal qual alguma forma de ditado divino. Nem sequer dá a entender a suspensão das faculdades cog­nitivas normais dos autores humanos. Do outro lado, realmente quer

260 o verbo é traduzido da m esm a forma em BJ. A R C e A C R traduzem mais literalmente por “dá” .

261 A expressão completa é: “Omnis Scriptura Divinitus Inspirata”.

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I - A Inspiração e Inerrânáa das Escrituras 87

dizer algo bem diferente da inspiração poética. É um erro omitir o elemento divino no termo, transmitido por theo (The New English Bible faz assim, ao traduzir a frase; ‘toda escritura inspirada’).262 É claro que a expressão não dá a entender que algumas escrituras são inspiradas, enquanto outras não são. Todas as Sagradas Escrituras expressam a mente de Deus; fazem assim, no entanto, com o alvo da sua operação prática na vida.”263 O que Paulo quer dizer é que toda a Escritura Sagrada é soprada, exalada por Deus. Ou, se tomar­mos a palavra apenas no sentido passivo, diremos que “Deus em sua revelação é soprado pelas páginas das Escrituras”. Desse modo podemos dizer que Deus é o Autor e o Conteúdo das Escrituras.

Benjamin B. Warfield (1851-1921), comentando o Texto de 2Tm 3.16, diz:

“Num a palavra, o que se declara nesta passagem fundamental é, sim- plesmente, que as Escrituras são um produto divino, sem qualquer indica- ção da maneira como Deus operou para as produzir. N ão se poderia esco- lher nenhuma outra expressão que afirmasse, com maior saliência, a pro­dução divina das Escrituras, como esta o faz. (...) Paulo (...) afirma com toda a energia possível que as Escrituras são o produto de uma operação especificamente divina.”264

Com isso estamos dizendo que o Deus que se revelou esteve “ex­pirando” os homens que ele mesmo separou para registrarem esta revelação. A inspiração bíblica garante que seja registrado de forma veraz aquilo que a inspiração profética fazia com respeito à palavra do profeta, para que ela correspondesse literalmente à mente de Deus; em outras palavras: a Palavra escrita é tão fidedigna quanto a Palavra falada pelos profetas; ambas foram inspiradas por Deus.

262 D e fato, assim lem os na The New English Bible: New Testament, Great Britain, Oxford University Press, 1961: “Every inspired scripture”. Mesmo equívoco com ete ARC. Vd. uma boa discussão sobre este ponto In: Edwin A. Blum, The Apostles’ o f Scripture: In: Norman L. Geisler, ed. Inerrancy, Grand Rapids, Michigan, Zondervan Publishing House, 1980, p. 45ss.

i<a C. Brown, Escritura: In: Colin Brown, ed. ger. O N ovo D icionário Internacional cie Teologia do N ovo Testamento, São Paulo, Vida Nova, 1981-1983, Vol. II, pp. 103-104. Vd. a análise da questão In: Homer C. Hoeksema, The D octrine o f Scripture, Grand Rapids, M ichigan, Reformed Free Publishing Association, 1990, p. 40ss.

264 B.B. Warfield, The Inspiration o f the Bible: In: The Works o f Benjamin B. Warfield, Vol. I, p. 79.

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88 EU CREIO.

A Bíblia é o registro infalível da Palavra de Deus. Deus fez com que os seus servos registrassem a sua vontade mediante a Revela­ção ,, Inspiração e Iluminação do Espírito; desta forma, o Deus Tri- úno é o Autor das Escrituras, sendo a Inspiração mais propriamente atribuída ao Espírito (cf. 2Sm 23.2; Mt 22.43; At 1.16; 4.24-26; 28.25; Hb 3.7-11; 9.6-8; 10.15-17; IPe 1.10-12; 2Tm 3.16; 2Pe 1.20-21).

2.2.2. Definição de Inspiração

Podemos definir a Inspiração como sendo a influência sobrena­tural do Espírito de Deus sobre os homens separados por ele mes­mo, a fim de registrarem de forma inerrante e suficiente toda a von­tade de Deus, constituindo este registro na única fonte e norma de todo o conhecimento cristão.

Com isso estamos dizendo que o Deus que se revelou esteve “expirando” os homens que ele mesmo separou para registrarem esta revelação. A inspiração bíblica garante que seja registrado de forma veraz aquilo que a inspiração profética fazia com respeito à palavra do profeta, para que ela correspondesse literalmente à men­te de Deus; em outras palavras: a Palavra escrita é tão fidedigna quanto a Palavra falada; ambas foram inspiradas por Deus.

Van Groningen coloca a questão nestes termos:“O Espírito Santo habitou em certos homens, inspirou-os, e assim diri­

giu-os para que eles, em plena consciência, se expressassem em sua singu­lar maneira pessoal. O Espírito capacitou homens a conhecer e expressar a verdade de Deus. Ele impediu-os de incluir qualquer coisa que fosse con­trária a essa verdade de Deus. Ele também impediu-os de escrever coisas que não eram necessárias. Assim, homens escreveram como homens, mas, ao mesmo tempo, comunicaram a mensagem de Deus, não a do homem. ”2Í5

Desse modo cremos que a Inspiração foi Plenária, Dinâmica, Verbal e Sobrenatural.

1) Plenária: Porque toda a Escritura é plenamente expirada. De Gênesis ao Apocalipse, tudo o que foi registrado o foi pela vontade de Deus (2Tm 3.16; 2Pe 1.20-21).

265 Gérard Van Groningen, R evelação M essiânica no Velho Testamento, pp. 64-65.

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I - A Inspiração e Inerrância das Escrituras 89

2) Dinâmica:266 Porque Deus não anulou a personalidade dos escritores; por isso, inspirados por Deus, eles puderam usar de suas experiências, pesquisas, aptidões, e manter o seu estilo (2Pe 3.15- 16). Deus na realidade separou os seus servos antes de eles nasce­rem, e os preparou para desempenharem esta função (Is 49.1, 5; Jr 1.5; G1 1.15-16).267

3) Verbal, Porque Deus se revelou através de Palavras, e todas as palavras dos autógrafos originais são Palavra de Deus (2Sm 23.2; Jr 1.9; Mt 5.18; ICo 2.13). Em G1 3.16, é interessante observar que Paulo baseia o seu argumento numa só palavra usada no original hebraico.268 A inspiração se estende aos pensamentos bem como às palavras.269

2* A inspiração é também chamada de “orgânica”, porque a Escritura pode ser compara­da em certo sentido a um organismo, onde há uma interação harmoniosa de forças. Deus preparou os seus servos desde à eternidade, tornando-os “órgãos da inspiração” (vd. HoinerC. Hoeksem a, The D octrine ofS crip tu re , p. 78ss.).

2(’7 Vd. L. Boeltner, A Inspiração das Escrituras, Lisboa, Papelaria Fernandes (s.d), p. 30; B.B. Warfield, The Inspiration o f the Bible: In: The Works o f Benjamin B. Warfield, Vol. I, p. 101.

268 Vd. L. Boettner. A Inspiração das E scrituras, p. 112ffl) Vd. Cornelius Van Til, An Introduction To Systematic Theology, Phillipsburg, N ew Jer-

sey, Presbyterian and Reformed Publishing Co., 1974, p. 152. Seguindo esta linha de interpre­tação, a Formula Consensus H elvetica (1675) - também conhecida com o “Símbolo Secundi- no”, “Formula Anti-Saumuriensis”, ou “Anti-Amyraldensis” devido ao combate à teologia de M oisés Amyraut (1596-1664) da escola de Saumur - foi mais longe, declarando a infalibili­dade das vogais hebraicas (*), que, diga-se, ainda não existiam nos tempos bíblicos (sobre os “massoretas” que vocalizaram o Antigo Testamento Hebraico, vd. G. L. Archer, Jr. M erece Confiança o Antigo Testamento, São Paulo, Vida Nova, 1974, p. 65ss.; R.N. Champlin, Ma­nuscritos do Antigo Testamento e Massora: In: EBTF., IV, pp. 64-65; 153). D iz a Formula no cânon II: “O Original Hebreu do Antigo Testamento que temos recebido da tradição da Igreja Judaica, à qual antigamente ‘foram confiados os oráculos de D eus’ (Rm 3.2), e retido até o presente dia, tanto em suas consoantes com o em suas vogais - os pontos mesm os, ou pelo menos a força dos pontos - , e tanto em sua substância com o em suas palavras é inspirado divinamente, de modo que, junto com o Original do N ovo Testamento, é a única e completa regra da nossa fé e vida, mediante cujo critério, com o uma pedra de toque, devem ser postas à prova todas as versões que existem, tanto orientais como ocidentais, e, se em algum ponto variam, devem ser colocadas em conformidade com a mesma” (In: John H. Leith, ed. Creeds o f the Churches, New York, Anchor Books, 1963, p. 310). Esta declaração teológica, que A.A. Hodge denomina de “a mais cientifica c completa de todas as Confissões Reformadas” (A .A . Hodge, E sboços de Theologia, Lisboa, Barata & Sanches, 1895, p. 113), foi elaborada em Zurique, pelo professor John Henry Heidegger, de Zurique (1633-1698); Rev. Lucas Ger- nler, de Basiléia (1625-1675), e pelo professor François Turrctini, de Genebra (1623-1687), o grande teólogo reformado, para quem a Bíblia é a única fonte da Teologia. Ela foi a última

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90 EU CREIO.

4) Sobrenatural: Por ter sido originada em Deus e produzir efei­tos sobrenaturais, mediante a ação do Espírito Santo, em todos aque­les que crêem em Cristo (Jo 17.17; Rm 10.17; Cl 1.3-6; IPe 1.23). É através da Palavra que Deus gera os seus filhos espirituais.270

2.2.3. O Papel dos Escritores Sagrados em Seus Respectivos Registros

1) Papel PassivoEles foram inteiramente passivos no sentido em que não interfe­

riram na ação de Deus em se revelar, e também no fato de que não expressaram a sua natureza pecaminosa. Os escritores foram apenas instrumentos humanos por meio dos quais Deus decretou registrar a sua mensagem (2Pe 1.21; 2Tm 3.16). Eles falaram; todavia, somente à medida que foram conduzidos pelo Espírito Santo. A Escritura não é maniqueísta: tendo de um lado a Palavra de Deus e de outro a pala­vra dos homens; nem é ela o produto de uma decisão humana e falí­vel; é antes “exalada por Deus” em toda a sua extensão.271

Confissão da Igreja Reformada Suíça, encerrando assim o período de “Credos Calvinistas”. M esm o não estendendo sua autoridade além da Suíça, esta Fórmula é de grande valor para a história da teologia protestante e para o fortalecimento da união entre os Reformados nos cantões suíços. “Este Consensus foi significativo não somente para condenar a teologia Sal- muriana, porém também para unir os cantões evangélicos da Suiça na comum definição da fé reformada. Semelhante unidade foi necessária para o fortalecimento reformado da Suíça con­tra a Igreja Católica Romana” (Martin I. Klauber, The H elvetic Formula Consensus (1675): An Introduction and Translation: In: Trinity Journal, 1 INS (1990), p. 107; vd. P. Schaff, The Creeds o f Christendom, 6a ed. Grand Rapids, Michigan, Baker Book House (Revised and Enlarged, 1931), Vol. I, pp. 478-479; A.A. Hodge, Esboços de Theologia, p. 113; Jack Ro­gers, The Church Doctrine o f Biblical Authority: In: Jack Rogers, ed. Biblical Authority, Waco, Texas, Word Books, 1977, pp. 30-31).

(*) Esta tese era sustentada por Johannes Buxtorf, pai (1564-1629) e filho (1599-1664), tendo este exercido influência na Fórmula (vd. E. Berthcau, Buxtorf: In: Philip Schaff, ed. Religious Encyclopaedia: or D ictionary o f Biblical, H istorical, D octrinal, and P rac­tical Theology, Chicago, Funk W agnalls, Publishers, 1887 (revised edition), Vol. 1, p. 351; P. Schaff, The Creeds o f Christendom , Vol. I, pp. 479-480; Paul Tillich, H istória do Pensam ento C ristão, São Paulo, ASTE, 1988, p. 256).270 Vd. J.M. B oice, O Pregador e a Palavra de Deus: In: James M. B oice, ed. O A licerce

da Autoridade B íblica, p. 162.271 Vd. B.B. Warfield, Revelation and Inspiration: In: The Works o f Benjamin B. War­

fie ld , Vol. 1, pp. 96-97; Edwin H. Palmer, El Espiritu Santo, Gran Bretana, El Estandarte de la Verdad (s.d.), p. 58.

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I - A Inspiração e Inerrância das Escrituras 91

2) Papel AtivoConforme já afirmamos anteriormente, Deus não anulou a per­

sonalidade dos escritores; caso contrário, na Bíblia haveria apenas um único e inconfundível estilo: O estilo do Espírito Santo.

No entanto, quer através dos Originais, quer através das tradu­ções, é facilmente percebida st diferença entre os escritos de M oi­sés, Isaías, Amós, entre outros. Da mesma forma são perceptíveis de modo claro as características próprias dos escritos de Paulo e de João, bem como os de Mateus, Marcos e Lucas. Portanto, podemos afirmar que, de certa forma, cada Livro da Bíblia é fruto do estilo literário do seu autor humano (autor secundário).

Por isso, dentro da inspiração há lugar para assuntos pessoais como, por exemplo, a Epístola de Paulo a Filemom, e também há espaço para recomendações e preocupações específicas (cf. lTm 5.23; 2Tm 4.13).

Edwin Palmer, comentando este assunto, escreve:“Deus permitiu que o amor de Davi pela natureza brilhasse em seus

Salmos, que o conhecimento que Paulo tinha da literatura pagã se mani- festasse em suas cartas, que os conhecimentos médicos de Lucas caracte­rizassem seus escritos, que a brusquidão de Marcos aparecesse em seu li­vro. Tanto é que Paulo escreveu em uma forma lógica, João o fez numa forma mais mística.”272

Esta compreensão harmoniza-se perfeitamente com a soberania de Deus. Deus decretou e controlou os eventos proporcionando as condições para que os seus servos se tornassem “naturalmente” ap­tos para a tarefa que ele mesmo lhes confiaria.273 Na doutrina da inspiração vemos de forma nítida a providência de Deus, que revela o seu governo sobre todas as coisas.

Os escritores sagrados não foram obrigados a escrever nada que fosse contrário à sua vontade; nem Deus fez com que, quem só sou­besse o hebraico, tivesse de escrever em grego; Deus usou as suas aptidões “naturais” de forma misteriosa, de tal forma que o produto

272 E. Palmer, El Espiritu Santo, pp. 59-50.273 Vd. Homer C. Hoeksem a, The D octrine o fS crip ture , p. 80ss.

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92 EU CREIO.

final fosse o registro inerrante da Palavra de Deus e, ao mesmo tempo, houvesse a expressão da individualidade de cada escritor.2743. A BÍBLIA DÁ TESTEMUNHO DA SUA INSPIRAÇÃO E INER-

RÂNCIA

Conforme já indicamos de forma bastante resumida, a Bíblia au- tentica-se a si mesma como o registro inspirado e inerrante da revela­ção de Deus. Deus ordenou que a sua palavra fosse escrita (Ex 17.14), sendo chamado este registro de “Livro do Senhor” (Is 34.16). Anali­semos este ponto com mais vagar, substanciando-o com alguns dos muitos textos bíblicos que fundamentam a nossa assertiva:

3.1. O s Profetas

1) Os profetas são descritos como aqueles através dos quais Deus fala (Ex 7.1; Dt 18.15, 18; Jr 1.9; 7.1). O Profeta não criava nem adaptava a mensagem; a ele competia transmiti-la como havia re­cebido (Ex 4.30; Dt 4.2, 5). O que se exige do Profeta é fidelidade.

R. Martin-Achard resume bem isso, dizendo:“N a realidade, o profeta não tem por missão pregar uma ideologia nova,

qualquer que seja ela, ele coloca novamente os seus contemporâneos di­ante da pessoa de Deus, ele situa Israel diante de Alguém e não diante de um ensinamento ou um ideal, ele deixa Javé e o seu povo face a face.”275

2) Os profetas tinham consciência de que foram chamados por Deus (ISm 3; Is 6; Jr 1; Ez 1-3); receberam a mensagem da parte de Deus (Nm 23.5; Dt 18.18; Jr 1.9; 5.14), que era distinta dos seus próprios pensamentos (Nm 16.28; 24.13; lRs 12.33; Ne 6.8). Os falsos profetas eram acusados justamente de proferirem as suas pró­prias palavras e não as de Deus (Jr 14.14; 23.16; 29.9; Ez 13.2, 3, 6).

3) Quando os profetas se dirigiam ao povo, diziam: “Assim diz o Senhor...”, “Ouvi a Palavra do Senhor...”. “Veio a Palavra do

™ Vd. B.B. W arfield, Revelation and Inspiration: In: The Works o f Benjamin B. War- fie ld , Vol. 1, p. 101.

275 R. Martin-Achard, Como Ler o Antigo Testamento , São Paulo, ASTE, 1970, p. 71. Vd. G.L. Archer Jr., M erece Confiança o Antigo Testam ento, São Paulo, Vida N ova, 1974, pp. 333-337.

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I - A Inspiração e Inerrância das Escrituras 93

S en h o r (c f.E z31 .1 ;O s 1.1; J1 1.1; Am 1.3; 2.1; Ob l.l;M q 1.1; Jr 27.1; 30.1, 4 etc.); isto indicava a certeza que tinham de que Deus lhes dera a mensagem e os enviara (cf. Jr 20.7-9; Ez 3.4ss, 17, 22; 37.1; Am 3.8; Jn 1.2).

4) Um fato importante a favor da sinceridade dos profetas de Deus é que nem sempre etes entendiam a mensagem transmitida (cf. Dn 12.8, 9; Zc 1.9; 4.4; IPe 1.10, 11).

3.2. Os Apóstolos

Os escritores do Novo Testamento reconheciam ser o Antigo Testamento a Palavra de Deus (Hb 1.1; 3.7), sendo a “Escritura” um registro fiel da história e da vontade de Deus (Rm 4.3; 9.17; G1 3.8; 4.30).

Os Apóstolos falavam com a convicção de que estavam pregan­do e ensinando a Palavra inspirada de Deus, dirigidos pelo Espírito Santo (vd. ICo 2.4-13; 7.10; 14.37; 2Co 13.2-3; G1 1.6-9; Cl 4.16; lTs 2.13; 2Ts 3.14).

Paulo e Pedro colocavam os Escritos do Novo Testamento no mesmo nível do Antigo Testamento (cf. lTm 5.18; Dt 25.4; Lc 10.7; 2Pe 3.16).

Paulo reconheceu os apóstolos e os profetas no mesmo nível, como os fundamentos da Igreja, edificados sobre Jesus Cristo, a pedra angular (Ef. 2.20).

3.3. Jesus Cristo

Jesus apelava para o Antigo Testamento, considerando-o como a expressão fiel do Conselho de Deus, sendo a verdade final e deci­sória. Deus é o Autor das Escrituras! (Mt 4.4, 7, 10; 11.10; 15.4; 19.4; 21.16, 42; 22.29; Mc 10.5-9; 12.10; 12.24; Lc 19.46; 24.25- 27, 44-47; Jo 10.34).

3.4. Afirmações Diretas das Escrituras

O Novo Testamento declara enfaticamente que toda a Escritura, como Palavra de Deus, é inspirada, inerrante e infalível (vd. Mt

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94 EU CREIO.

5.18; Lc 16.17,29,31; Jo 10.35; At 1.16; 4.24-26; 28.25; Rm 15.4; 2Tm 3.16; Hb 1.1-2; 3.7-11; 10.15-17; 2Pe 1.20).

A Bíblia fornece argumentos racionais que demonstram a sua inspiração e inerrância; todavia, os homens só poderão ter esta con­vicção mediante o testemunho interno do Espírito Santo (SI 119.18).276 Os discípulos de Cristo só entenderam as Escrituras quando o pró­prio Jesus lhes abriu o entendimento (Lc 24.45). A Escritura autenti­ca-se a si mesma e nós a recebemos pelo Espírito.277

A posição que sustentamos neste ensaio consiste apenas numa rendição incondicional às reivindicações proféticas, apostólicas e do próprio Cristo. Diante de um testemunho tão evidente, como poderia eu descartá-lo e seguir as opiniões fantasiosas de homens? O cristão sincero deve aprender, pelo Espírito de Deus, a subordi­nar sua inteligência à sabedoria de Deus revelada nas Escrituras e a guardar no coração a Palavra de Deus (SI 119.II).2784. A INSPIRAÇÃO E A EVANGELIZAÇÃO

No ato evangelizador da Igreja, ela prega a Palavra de Deus, conforme a ordem divina expressa nas Escrituras; fala da salvação eterna oferecida por Cristo, conforme as Escrituras; proclama as perfeições de Deus, conforme as Escrituras... Ora, se a Igreja não

216 Vd. J. Calvino, Exposição de Romanos (Rm 8.16), p. 279.277 Vd. J. Calvino, As Institutos, 1.7.4-5 c 1.8.13.278 Alhures escrevemos: “A Palavra de Deus deve ser guardada em nosso coração - o centro

de nosso pensamento, em oções e decisões - , a fim de que todo o nosso procedimento seja conforme os Preceitos de Deus. A Palavra de Deus meditada c guardada no coração é preven­tiva contra o pecado: “Guardo no coração as tuas palavras para não pecar contra ti” (SI 119.11; veja-se SI 37.31 ;119.2, 57, 69; Pv 2.10-12). O verbo “guardar” no salmo citado flas (çãphan) = “esconder”, “ocultar”, “entesourar”, “armazenar”] tem o sentido de guardar com atenção, levando-o em consideração no seu agir (vd. no sentido negativo: SI 10.8; 56.6; Pv 1.11, 18); esconder alguém considerando precioso ou importante a ponto de arriscar a sua própria vida para poder ocultar (Ex 2.2-3; Js 2.4) - Deus também nos “esconde”, nos “prote­ge” dos inimigos (SI 27.5; 31.19, 20; 8 3 .3 )- ; ou algo precioso para alguém (Ct 7.13), tendo cm vista sempre algum propósito. Portanto, guardar a Palavra no coração significa considerá- la em todo o nosso ser, sendo ela a norteadora do nosso sentir, pensar, falar e agir; o lugar da Palavra deve ser sempre no cerne essencial do homem. A Palavra é guardada em nosso coração quando está presente continuamente, não meramente como um preceito exterior, mas, sim, como um poder interno motivador que se opõe ao nosso pensar e agir egoísticos” (Hermisten M.P. Costa, Santificação: A Vontade de Deus para o Seu Povo, São Paulo, 1995, pp. 32-33).

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I - A Inspiração e Inerrância das Escrituras 95

tem certeza da fidedignidade do que ensina, como então poderá testemunhar de forma honesta?

Uma Igreja que não aceite a inspiração e a inerrância bíblica não poderá ser uma igreja missionária.279 Como poderemos pregar a Pa­lavra se não estivermos confiantes do sentido exato do que está sendo dito? Como evangelizar se nós mesmos não temos certeza se o que falamos procede da Palavra de Deus ou está embasado numa falácia?

Billy Graham, em 1974, no Congresso de Lausanne, na Suíça, afirmou corretamente:

“Se há uma coisa que a história da Igreja nos deveria ensinar é a impor­tância de um evangelismo teológico derivado das Escrituras.”280

Neste sentido, encontramos a convicção de Paulo, o grande mis­sionário, de que a Palavra de Deus é fiel; por isso, ele a ensinava com autoridade (lTm 1.15; 4.9; 2Tm 4.6-8).

A grandiosidade da pregação consiste basicamente, não nos re­cursos da retórica (os quais certamente devem ser buscados), mas em sua pureza, em sua fidelidade à Palavra.281 Como bem disse Charles H. Spurgeon (1834-1892), “Se o que pregarem não for a verdade, Deus não estará aí.”282 Assim sendo, a pregação grandiosa

™ N ão faço aqui nenhuma distinção entre “m issão” e “evangelização” (vd. R .B. Kuiper, E vangelização Teocêntrica, p. 1). Orlando E. Costa, que diz haver uma confusão entre os termos, assim os distingue: “M issão e evangelism o são, pois, dois lados da m esm a moeda. A moeda é Deus (Sic) e sua atividade redentora em favor de toda a humanidade. Evangelis­mo é o anúncio dessa obra; missão c o mandamento que nos com pele a pôr em ação esse anúncio” (Orlando E. Costas, La Iglesia e Su M ision E vangelizadora, Buenos Aires, La Aurora, 1971, p. 27). O autor acrescenta, de forma acertada, que a distinção equivocada entre “m issão” c “evangelização, tem levado a Igreja a ter uma visão unilateral de missão: ou apenas no exterior, esqueccndo-se do seu âmbito local, ou apenas local em detrimento daquela (vd. Ibidem , p. 33ss.). N este sentido, vejam -se as pertinentes observações de Fran- cis A. Schaeffer (F. A. Schaeffer, Forma e Liberdade na igreja: ln: A M issão da Igreja no M undo de H oje, São Paulo/Belo Horizonte, MG, A B U /V isão Mundial, 1982, p. 222).

280 Billy Graham, Por que Lausanne?: ln: A M issão da Igreja no M undo de H oje, p. 20.281 Vd. John H. Jowett, O Pregador, Sua Vida e Obra, São Paulo, Casa Editora Presbite­

riana, 1969, p. 97.282 C.H. Spurgeon, Firm es na Verdade, Lisboa, Edições Peregrino, 1990, p. 85. Alhures,

Spurgeon nos diz: “O verdadeiro ministro de Cristo sabe que o verdadeiro valor de um sermão está, não em seu m olde ou modo, mas na verdade que ele contém. Nada pode com ­pensar a ausência de ensino; toda retórica do mundo é apenas o que a palha é para o trigo,

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96 EU CREIO.

é bíblica. Pois bem, se eu não creio na inspiração e inerrância da Bíblia, certamente poderei ter consciência da biblicidade da minha pregação (basta que pregue o que está escrito); contudo, como po­derei ter certeza da veracidade daquilo que prego, visto que neste caso ser bíblico não é a mesma coisa que ser inerrante e, por isso, verdadeiro? Se destruo os fundamentos, cai todo o edifício.

Creio que Satanás, objetivando esmorecer o ímpeto evangelís- tico da Igreja, tem usado deste artifício: minar a doutrina da inspi­ração e inerrância das Escrituras, a fim de que a Igreja perca a com­preensão de sua própria natureza, e assim substitua a pregação evan­gélica por discursos éticos, políticos e filosóficos.283 Aliás, a Escri­tura sempre foi um dos alvos prediletos de Satanás (vd. Gn 3.1-5; Mt 4.3, 6, 8, 9; 2Co 4 .3 ,4 ). Entretanto, a Igreja é chamada a procla­mar com firmeza o Evangelho, conforme registrado na Bíblia e pre­servado pelo Espírito através dos séculos (2Tm 4.2).

A Igreja prega o Evangelho consciente de que ele é o poder de Deus para a salvação do pecador (Rm 1.16); por isso, recusar o Evangelho significa rejeitar o próprio Deus que nos fala (lTs 4.8). Calvino, comentando Rm 1.16, diz que aqueles que “se retraem de ouvir a Palavra proclamada estão premeditadamente rejeitando o poder de Deus e repelindo de si a mão divina que pode libertá- los.”284 A Igreja proclama a Palavra, não as suas opiniões a respeito da Palavra, consciente de que Deus age através das Escrituras, pro­duzindo frutos de vida eterna (Rm 10.8-17; ICo 1.21; ICo 15.11; Cl 1.3-6; lTs 2.13-14). A Igreja por si só não produz vida, todavia ela recebeu a vida em Cristo (Jo 10.10), através da sua Palavra vivi- ficadora; deste modo, ela ensina a Palavra, para que, pelo Espírito de Cristo, que atua mediante as Escrituras, os homens creiam e re­cebam vida abundante e eterna.em contraste com o evangelho da nossa salvação. Por mais belo que seja o cesto do sem ea­dor, é uma miserável zombaria, se estiver sem sem entes” (L ições aos M eus Alunos, São Paulo, PES, 1982, Vol. II, p. 88).

283 Vejam-se D. Martyn Lloyd-Jones, Pregação e Pregadores, São Paulo, Fiel, 1984, pp. 9- 10; James M. Boice, O Pregador e a Palavra de Deus: In: J.M. Boice, ed. O Alicerce da Autori­dade Bíblica, pp. 143-167; J.C. Ryle, A Inspiração das Escrituras, São Paulo, PES (s.d.), p. 15.

2S4J. Calvino, E xposição de Rom anos (Rm 1.16), p. 58.

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I I-A FÉ SALVADORA---------------------------------------------------------------

IN TRO D U ÇÃO

A fé é indispensável, essencial à vida humana. Todos os homens têm seus pressupostos, os quais nada mais são do que uma confi­ança preliminar em algo. As contribuições científicas geralmente co­

meçam por um ato de fé, uma hipótese, uma pressuposição que pode­rá, posteriormente, ser confirmado ou não. A fé é fundamental para o início e progresso da ciência; é impossível haver ciência sem fé.285

É muito comum ouvir pessoas consolando outras, em momen­tos de dificuldade, dizendo: “tenha fé”, “o importante é ter fé”. Na literatura, encontramos homens de concepções variadas falando de fé, usando por certo conceitos diferentes para se expressarem, mas, de qualquer forma, o assunto envolve a pauta de suas atenções. Como exemplo, temos Miguel de Unamuno (1864-1936), dizendo que a fé “é o poder criador do homem”;286 Erich Fromm (1900-1980), afirmando que fé é a “consciência da gravidez” e do “estado de gravidez”;287 Paul Tillich (1886-1966), falando do “estado de ser;”288

285 Vd. Hendrik van Riessen, Enfoque Cristiano de la Ciência, 2a ed. FEL1RE, Países Bajos, 1990, p. 61 ss. “Ainda que a cicncia esteja livre de certos elem entos subjetivos e os transcende, nunca estará livre da fé do cientista. A ciência c única, porém limitada” (H en­drik van Riessen, Enfoque Cristiano de la Ciência, pp. 58-59). “A ciência nunca avança sem uma fé, e nunca deverá avançar sem a fé cristã. A ciência sempre está guiada e inspira­da pelo crer. O cientista cristão deve escutar e pedir a seu Pai celestial que lhe guie em sua tarefa científica. O resultado dependerá da bênção de D eus” (Hendrik van Riessen, Enfo­que Cristiano de la Ciência, p. 62),

286 M iguel de Unamuno, Do Sentimento Trágico da Vida, Porto, Editora Educação Na­cional, 1953, p. 234.

287 Evich Fromm, A Revolução da Esperança, São Paulo, Círculo do Livro (s.d.), p. 27.288 Paul Tillich, A Coragem de Ser, 3“ ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977, p. 134.

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98 EU CREIO.

e Emil Brunner (1889-1966), declarando ser a fé a “janela aberta para o porvir”.289

A fé é também importante como elemento psicológico; todavia, em si mesma, como elemento solitário, ela é de pouco valor práti­co; sua relevância não depende simplesmente de sua intensidade, mas, sim, de seu objetivo. Uma fé forte em algo débil de nada adi­anta. Qual o valor de uma “fé forte” nos ídolos criados pela imagi­nação pecaminosa do homem? Os ídolos nada podem fazer, por maior que seja a fé posta neles (SI 115.4-8; Is 44.9-20; lR s 18.20- 30). Os homens, em seus pecados, se tornaram nulos em seus pen­samentos tal qual sua “criação”...

‘‘Os ídolos - escreve o salmista - das nações são prata e ouro, obra das m ãos dos homens. Têm boca, e não falam ; têm olhos, e não vêem; têm ouvidos, e não ouvem; pois não há alento de vida em sua boca. Como eles se tornam os que os fazem e todos os que neles confiam” (SI 135.15-18). Nossa fé repousa em Deus eem sua Pala­vra: em sua promessa. “A fé que repousa na Palavra de Deus per­manece inabalável contra todas as investidas de Satanás.”290

Nosso estudo se restringe ã fé no campo religioso; começare­mos, então, analisando os tipos de fé.1. TIPOS DE FÉ

Pode parecer estranho para alguns o fato de tratarmos de tipos diferentes de fé; no entanto, a Bíblia nos mostra que apesar de usar­mos a palavra “fé” de modo generalizado, há distinções importan­tes que devem ser feitas, para que possamos ter uma verdadeira compreensão da genuína fé salvadora.

285 Heinrich E. Brunner, N ossa Fé, 2a ed. São Leopoldo, RS, Sinodal, 1970, p. 114.2,0 João Calvino, Efésios, São Paulo, Parakletos, 1998 (E f 4.14), p. 128. “O conhecim en­

to do divino favor, é verdade, deve ser buscado na Palavra de Deus; a fé não possui nenhumoutro fundamento no qual possa descansar com segurança, exceto a Palavra; mas quando D eus estende sua mão para ajudar-nos, a experiência disto é uma profunda confirmaçãotanto da Palavra quando da fé” [João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo, Parakletos,1999, Vol. 2 (SI 43 .2), p. 276],

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II - A Fé Salvadora 99

1.1. Fé Histórica ou Especulativa

Ela é caracterizada pela crença intelectual na veracidade de um acontecimento tido como histórico. Quando, por exemplo, estuda­mos os eventos da História, na realidade estamos exercitando nossa fé histórica, crendo que de fato os episódios se deram conforme os registros históricos. Alguém pode ter sido criado na igreja, aprendi­do as histórias bíblicas, estar socialmente integrado na igreja, e no entanto só dispor de uma crença puramente intelectual que em nada afeta sua existência.291

O fato de alguém crer na singularidade da Bíblia, na existência de Jesus; na veracidade histórica das narrativas do Pentateuco, por exemplo, não indica necessariamente que ele tenha uma fé divina, salvadora (vd. Jo 3.2; At 26.24-27; Tg 2.19).

1.2. Fé Temporal

Este tipo de fé é decorrente da consciência da realidade das ver­dades religiosas. Num primeiro momento, ela manifesta frutos se­melhantes aos da fé salvadora; todavia, por ela não proceder de um coração regenerado, é ineficaz e não permanece; falta-lhe raiz (Mt 13.20-21).

De quando em quando surgem pessoas na Igreja cheias de entu­siasmo, julgando que tudo está errado, querendo transformar as es­truturas, achando que podem fazer melhor o trabalho etc. De repen­te, de modo abrupto ou gradativo, elas perdem o primeiro vigor e se afastam: sua fé aparentemente tão fervorosa se apagou. Era uma fé cheia de adjetivos, contudo não dispunha de substância. Esta é uma forma característica da fé temporal se manifestar (vd. Jo 2.23-25; At 8.13, 18-24; 2Tm 4.10; Uo 2.19).

1.3. Fé Milagrosa

É caracterizada pela persuasão intelectual de que eu serei o ins­trumento ou o beneficiário de um milagre. Dessa conceituação po­demos distinguir esta fé em dois tipos:

291 Vd. D . Martyn Lloyd-Jones, D eus o Espírito Santo, São Paulo, PES, 1998, pp. 188-189.

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100 EU CREIO.

1.3.1. Ativa

É a certeza de que Deus operará um milagre através de mim (Mt 7.21-23; 10.1; 17.20).

1.3.2. Passiva

É a convicção de que Deus operará um milagre em mim (Mt 8.10-13; Lc 17.11-19; At 14.8-10).

Esta fé pode estar acompanhada da fé salvadora, porém não necessariamente; no caso do leproso que foi curado e voltou para “dar glória a Deus”, há evidência da fé salvadora (cf. Lc 17.19), enquanto que no caso dos outros nove, ao que parece, havia apenas a fé milagrosa.

Observemos que Deus é soberano para agir como ele quiser; inclusive capacitando os homens para serem seus agentes ou bene­ficiários dos milagres; por isso, não nos iludamos com os “sinais” alegados por tantos pregadores.

No final dos tempos, quando Cristo voltar em glória, muitos ho­mens se apresentarão diante dele, dizendo terem feito milagres e sinais em seu nome, entretanto, apesar de tais sinais terem ocorrido, não fo­ram operados através de Cristo, conforme alegado, mas, sim, pelo “es­pírito de demônios” (vd. Ap 16.14). Assim Jesus narra o episódio pro­fético: “Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor! entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos céus. Muitos naquele dia hão de dizer-me: Senhor, Senhor! porventura não temos nós profetizado em teu nome, e em teu nome não expelimos demônios, e em teu nome não fizemos muitos milagres (8"úva|iiç)? Então lhes direi explicitamente: Nunca vos conheci. Apartai-vos de mim, os que praticais a iniqüidade” (Mt 7.21-23). Jesus Cristo decla­ra que nunca os reconheceu como seus discípulos; em momento al­gum manteve com eles uma relação afetiva (vd. Ex 7.22; 8.7, 18).

Satanás é um imitador de Deus; ele procura produzir obras se­melhantes às de Deus a fim de confundir os homens, deixando-os desnorteados.292 Satanás também procura criar em nossas mentes

m “Não me passa despercebido que Satanás é em muitos aspectos um imitador de Deus,

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Il - A Fé Salvadora 101

uma valorização demasiada do sinal a fim de manter-nos presos a isso, não conseguindo enxergar o valor de tudo mais. Paulo escreve sobre este ponto: “Ora, o aparecimento do iníquo é segundo a efi­cácia (èvépyeia)293 de Satanás, com todo poder (8l)va|Liiç)294 e si­nais (ctt]|1£ Ío v )295 e prodígios (xépaç)296 da mentira” (2Ts 2.9). Nestea fim de, mediante enganosa similaridade, melhor insinuar-se à mente dos sím plices” (J. Calvino, A.v Instituías, 1.8.2).

2,3 Satanás atua de forma eficaz na consecução de seus objetivos: èvépyeia (energeia) - “trabalho efetivo" de onde vem a nossa palavra “energia”, passando pelo latim, “energia”. Esse substantivo é empregado tanto para Deus (Ef 3.7; 4.16; Fp 3.21; Cl 1.29; 2.12) como para Satanás (2Ts 2.9). Estando este subordinado à èvépyeia de Deus (2Ts 2.11). èvépyeia e seus derivados, no NT, descreve sempre um poder eficaz em atividade sobre-humana, atra­vés da qual a natureza de quem a exerce se revela (vd. W illiam Barclay, P alavras Chaves do N ovo Testamento, São Paulo, Vida N ova, 1988, pp. 51-57).

294 Satanás atua com “p o d er”, “força”, “habilidade” (vd. a palavra “capacidade" em Mt 25.15 e “fo rç a ” em 2Co 1.8).

295 A palavra indica uma marca ou sinal indicativo pelo qual alguma coisa é identificada; aponta para outra coisa cujo significado parece obscuro. Esta palavra é usada para referir- se aos m ilagres divinos (M t 12.38, 39; 16.1, 4; Mc 8.11, 12; 16.17, 20; Lc 11.16; Jo 2.11) e de Satanás e seus m ensageiros (Mt 24.24; Mc 13.22; 2Ts 2.9; Ap 13.13, 14; 16.14; 19.20). Os discípulos querem um sinal da vinda de Cristo (Mt 24.3; 24.30; M c 13.4); o beijo traidor de Judas serviu com o sinal (Mt 26.48); a criança nascida em Belém era um sinal do nasci­mento do M essias (Lc 2.12); Sim eão diz que Jesus será “alvo” ( a r |p .E io v ) de contradição (Lc 2.34). Jonas foi um sinal para os ninivitas e Jesus o era para sua geração (Lc 11.29, 30). Herodes queria ver Jesus realizar algum sinal (Lc 23.8); os judeus queriam um sinal de Jesus que atestasse sua autoridade (Jo 2.13-18; 3.2; 6.14; 6.30); muitos creram através de seus sinais (Jo 2.23; 4.48; 6.2; 7.31). Todavia, outros estavam mais preocupados com o pão (Jo 6.26), e outros, ainda que vendo os sinais, não creram (Jo 12.37); contudo gostavam de ver sinais (M t 16.1; ICo 1.22). O s sinais de Jesus deixavam confusos os judeus e amedron­tadas as autoridades (Jo 9.16; 11.47, 48). João diz que Jesus fez “muitos outros sinais”, contudo estes foram registrados para que os hom ens cressem (Jo 20.30, 31; Hb 2.3, 4). Os sinais incitam “a mente humana a atentar para algo mais elevado que a mera aparência” [João Calvino, E xposição de Hebreus, Sâo Paulo, Parakletos, 1997 (Hb 2.4), p. 55). João Batista não fez sinal, mas tudo o que disse era verdade (Jo 10.41). Os apóstolos também realizaram sinais (A t 2.43; 4.16; 5.12), reconhecendo que estes eram obra de Deus (At 4.30; 14.3; 15.12). Estêvão, Filipe, Paulo e Barnabé, do mesmo modo, operaram sinais (At 6.8; 8.13; 14.3; 15.12; Rm 15.19). Os sinais se constituíam num dos elem entos que creden­ciavam o apóstolo (2C o 12.12). Resumindo: os sinais de Cristo nunca eram praticados com fins egoístas ou com o propósito de se mostrar aos seus ouvintes. Na realidade vim os sem ­pre o propósito de glorificar a D eus relacionar de forma fundamental a base sobrenatural da revelação e também satisfazer e aliviar as necessidades humanas. (Quanto a maiores detalhes sobre esta palavra, vd. K.R. Rengstorf, a riH E Ío v , etc.: In: G. Kittel & G. Friedri- ch, eds. T h eolog ical D iction ary o f the N ew Testament, Grand Rapids, M ichigan, Ecrd- mans, 1983 (reprinted), Vol. VII, pp. 200-269; O. H ofius, Milagre: ln: Colin Brown, ed. ger. O N ovo D icionário Internacional de Teologia do N ovo Testamento, São Paulo, Vida

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texto fica claro que Satanás se vale de todos os recursos a ele dispo­níveis, contudo, como não poderia ser diferente, amparado na “men­tira", já que ele é seu pai (Jo 8.44).

Jesus advertiu a seus discípulos: “Surgirão fa lsos cristos e fa l­sos profetas operando grandes sinais (ar|jJ,eiov) e prodígios (xé paç) para enganar, se possível, os próprios eleitos” (Mt 24.24).

1.4. Fé Salvadora

Esta é a genuína fé cristã. Ela está enraizada no coração que foi regenerado por Deus. A fé salvadora é obra de Deus e é direcionada para Deus, através de Cristo (Hb 12.2; U o 5.1-5). Contudo, deve­mos observar que nós não somos salvos pela fé, mas, sim, por Cris­to Jesus através da fé.2. A NATUREZA DA FÉ SALVADORA

2.1. Definição

Fé Salvadora é um dom da graça de Deus, através do qual so­mos habilitados a receber a Jesus Cristo como nosso único e sufici­ente Salvador e a crer em todas as promessas do Deus Triúno, con­forme estão registradas nas Escrituras.

N ova, 1981-1983, Vol. Ill, pp. 169-174; Richard C. Trench, Synonyms o f the N ew Testa­ment, Grand Rapids, M ichigan, Eerdmans, 1985 (reprinted), pp. 339-344; Richard C. Tren­ch, N otes on The M iracles o f O ur Lord, London: Kegan Paul, Trench, Triibner, & Co. Ltd., 1911, p. 2ss.)

296 A palavra indica algo que é maravilhoso, prodigioso, causa assombro, é estarrecedor; é aquilo que desperta a atenção, é novo e incom um, sendo guardado na memória. Satanás também usa deste recurso para enganar, se possível, os eleitos [Mt 24 .24 (= Mc 13.22); 2Ts 2.9]; Jesus, além de sinais, operou prodígios (At 2.22); do m esm o m odo os apóstolos (At 2.43; 5.12), os quais reconheciam ser isso obra de D eus (At 4.30; 14.3). Estêvão, Paulo e Barnabé também realizaram prodígios (At 6.8; 14.3; 15.12). A ssim com o os “sinais” , os “prodígios” se constituíam num dos elem entos que credenciavam o apóstolo (2C o 12.12). Eles tinham uma função de confirmar o anúncio da salvação (Hb 2.3, 4; quanto a maiores detalhes sobre esta palavra, vd. O. Hofius, Milagre: ln: Colin Brown, ed. ger. O N ovo D icio­nário internacional de Teologia do Novo Testamento, Vol. Ill, p. 175; K.R. Rengstoif, tépaç: ln: G. Kittel & G. Friedrich, eds. Theological Dictionary o f the New Testament, Vol. VIII, pp. 113-126; Richard C. Trench, Synonyms o f the New Testament, pp. 339-344; Richard C. Tren­ch, N otes on The M iracles o f O ur Lord, p. 2ss.).

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O Catecismo Menor (1647), na questão 86, assim define:“Fé em Jesus Cristo é uma graça salvadora, pela qual o recebemos e

confiamos só nele para a salvação, como ele nos é oferecido no Evangelho.”

2.2. Elementos da Fé

A fé salvadora não é simplesmente emocional, como muitos pensam, antes ela é constituída de três elementos, a saber:

2.2.1. Elemento Intelectual

Caracteriza-se pela convicção racional de que aquilo que a Pa­lavra diz é verdade, porque faz sentido. A razão não é desprezada em nossa relação com Deus. O conhecimento das realidades espiri­tuais passa por nossa mente (Jo 3.31-34; 20.30-31; At 10.43; 11.13, 14; Rm 10.14-17; ICo 15.1-8; Tg 2.19).

Este foi um assunto bastante enfatizado pelos Reformadores. A igreja romana ensinava que os crentes comuns, por não entenderem a doutrina, precisavam apenas crer na igreja, entregando-se aos seus ensinamentos...

Conforme já vimos, Calvino (1509-1564) já combatera a “fé implícita”297 - que era patente na teologia romana - , declarando que a nossa fé deve ser “explícita”. No entanto, Calvino ressalta que devido ao fato de que nem tudo foi revelado por Deus, bem como à nossa ignorância e pequenez espiritual, muito do que cre­mos permanecerá nesta vida de forma implícita.

Calvino, depois de um extenso comentário, nos diz:“Certamente que não nego (de que ignorância somos cercados!) que

muitas cousas nos sejam agora implícitas, e ainda o hajam de ser, até que, deposta a massa da carne, nos hajamos achegado mais perto à presença de Deus, cousas essas em que nada pareça mais conveniente que suspender

2‘J7 Que chama de “espectro papista” [J. Calvino, Exposição de Rom anos, São Paulo, Parakletos, 1997 (Rm 10.17), p. 375] e “fé forjada e implícita inventada pelos papistas. Pois por fé im plícita eles querem dizer algo destituído de toda luz da razão” [João Calvino, A s P astorais (Tt 1.1), p. 299], que “separa a fé da Palavra de D eus” [J. Calvino, Exposição de Rom anos (Rm 10.17), p. 375].

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julgamento, mas firmar o ânimo a manter a unidade com a Igreja. Com este pretexto, porém, adornar com o nome de fé à ignorância temperada com humildade, é o cúmulo do absurdo. Ora, a fé jaz no conhecimento de Deus e de Cristo 0 ° 17.3), não na reverência à Igreja."298 (grifos meus).

2.2.2. Elemento Emocional

Se a fé não é somente emocional, também não é apenas uma questão racional; ela envolve nossa razão e nossas emoções. Não basta que eu reconheça racionalmente a Cristo como meu Senhor e Salvador, é necessário que eu creia nele como meu Salvador e Se­nhor. Este ato de crer envolve todo o nosso ser, passando a viver intensamente a realidade dessa fé (vd. Mt 13.20; At 8.5-8).

2.2.3. Elemento Volitivo

Aqui já não há apenas uma convicção racional e emocional de que Jesus é o Salvador. Há o desejo do coração tocado e transfor­mado pelo Espírito, de receber a Cristo como seu Senhor, entregan­do-se totalmente a ele.

L. Berkhof (1873-1957) assim coloca a questão:“A fé não é apenas uma questão de intelecto, nem de intelecto e senti­

mentos combinados: também é uma questão de vontade, determinando a direção da alma, um ato da alma que parte rumo ao seu objeto dele se apropria. Sem esta atividade, o objeto da fé, que o pecador reconhece como verdadeiro e real, e como inteiramente aplicável às suas necessida­des presentes, permanece fora dele.”299

Concluindo, podemos dizer que nenhum dos três elementos ou mesmo a combinação de dois deles é suficiente. A fé salvadora en­volve os três, compondo um ato de entrega sem reservas a Cristo (Rm 10.9, 10; Mt 11.28, 29; Jo 1.12; 14.1; 16.31). Somos salvos quando depositamos confiadamente nossa fé em Jesus Cristo, ten­do exclusivamente nele a certeza de nossa salvação.

258 J. Calvino, At Instituías, III.1.3 (vd. também II1.2.5ss).2<WL. Berkhof, Teologia Sistemática, Campinas, SP, Luz para o Caminho, 1989, p. 508.

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3. CARACTERÍSTICAS DA FÉ SALVADORA

3.1. Origina-se no Próprio Deus

A fé salvadora é produto da graça de Deus que age através de sua Palavra registrada na Bíblia (At 3.16; 18.27; Rm 10.17; Ef 2.8; 6.23; Fp 1.29; Hb 12.2; Tg 1.18; IPe 1.23). É através da Palavra que Deus nos gerou espiritualmente, tornando-nos seus filhos.

A fé salvadora exige conhecimento da Palavra de Deus. A fé é uma relação de confiança; como acreditar em alguém que não co­nhecemos? A fé consiste no conhecimento do Pai e do Filho pelo testemunho do Espírito (Jo 17.3; Jo 15.26; 16.13-14). “A fé não consiste na ignorância, senão no conhecimento; e este conhecimen­to há de ser não somente de Deus, senão também de sua divina vontade.”300 É impossível crermos e nos relacionarmos pessoalmente com um Deus desconhecido.

O que importa neste caso não é o que pensamos, mas, sim, o que Deus prometeu: Deus cumpre sempre sua promessa, não neces­sariamente nossas expectativas. Deus não tem compromisso com nossa fé, mas, sim, com sua Palavra, e, conseqüentemente, com a fé que brota da Palavra. Calvino (1509-1564) enfatizou: “Não deve­mos conceber que Deus será nosso libertador simplesmente porque nossa própria fantasia o sugere. E preciso crer que ele fará isso só depois de graciosa e espontaneamente se nos oferecer neste cará­ter.”301 Todavia, é importante ressaltar que não conhecemos tudo a respeito de Deus e de sua Palavra; mas devemos ter por certo que o limite da fé está circunscrito pelos parâmetros das Escrituras (Dt29.29). Ou seja: não podemos crer além do que Deus nos revelou na Bíblia; fazer isto não é ter fé, mas, sim, especular sobre os mistérios de Deus. Os discípulos, no caminho de Emaús, revelaram ao Se­nhor sua frustração justamente porque eles se iludiram com suas próprias expectativas, não com as promessas de Jesus; daí dizerem de forma patética: “Ora, nós esperávamos que fosse ele quem havia

300 J. Calvino, A.f Instituías, III.2.2.301J. Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo, Parakletos, 1999, Vol. 2 (SI 48.9), p. 363.

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de redimir a Israel; mas, depois de tudo isto, é já este o terceiro dia desde que tais coisas sucederam” (Lc 24.21). Jesus Cristo jamais havia lhes prometido isso, pelo contrário; o caminho descrito por Cristo envolvia o sofrimento, a morte e a ressurreição (Mt 16.21).

Se a Palavra for o fundamento de nossa esperança, podemos descansar confiantes: Deus cumpre sua Palavra!302 “Deus age con- sistentemente consigo mesmo, e jamais poderá desviar-se do que ele disser.”303 A Palavra deve ser sempre o guia de nossa f é !. “Nossa fé não tem que estar fundamentada no que nós tenhamos pensado por nós mesmos, senão no que foi prometido por Deus.”304 Por isso devemos estar atentos à Palavra de Deus, para entendê-la e praticá- la (Js 1.8; SI 119.97; Fp 3.15-16; Tg 1.22-25). Calvino, estudando o Salmo 42, quando o salmista em meio às aflições demonstra sua fé no livramento de Deus, comenta que esta certeza não é “uma ex­pectativa imaginária produzida por uma mente fantasiosa; mas, con­fiando nas promessas de Deus, ele não só se anima a nutrir sólida esperança, mas também se assegura de que receberia infalível li­vramento. Não podemos ser competentes testemunhas da graça de Deus perante nossos irmãos quando, antes de tudo, não testifica­mos dela a nossos próprios corações.”305

A razão estigmatizada pelo pecado, que se mostra tão eficaz nas coisas naturais, perde-se diante do mistério de Deus revelado em Cristo e também diante da Revelação geral na Natureza: “As mentes huma­nas são cegas a essa luz, a qual resplandece em todas as coisas cria­das, até que sejam iluminados pelo Espírito de Deus e comecem a compreender, pela fé, que jamais poderão entendê-lo de outra for­ma.”306 A graça, portanto, antecede à fé e ao conhecimento.

102 Foi muito confortador ler posteriormente Calvino dizendo: “D eus não frustra a espe­rança que e le m esm o produz em nossas mentes através de sua Palavra, e que e le não costu­ma ser mais liberal em prometer do que em ser fiel na concretização do que prometeu” [João Calvino, O Livro dos Salm os, São Paulo, Parakletos, 1999, Vol. 2 (SI 48 .8), p. 361],

303 João Calvino, O Livro dos Salm os , Vol. 2 (SI 62.11), p. 581.304 Juan Calvino, Sertnones Sobre a La O bra Salvadora de Cristo, Jenison, M ichigan,

TELL., 1988 (Sermão n° 13), p. 156.305 João Calvino, O Livro dos Salm os, Vol. 2 (SI 42 .5), p. 264.306 João Calvino, Exposição de H ebreus (Hb 11.3), p. 299.

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3.2. É Direcionada para Deus e para Sua Palavra

3.2.1. Deus Pai Através do Filho

Biblicamente falando, a fé salvadora é uma fé teológica, e esta é cristocêntrica. A teocentricidade da fé é cristocêntrica. Crer no Pai é o mesmo que crer no Filho (Jo 5.24; 12.44; 14.1; Mc 11.22; At 20.21; Rm 3.22, 26; 4.24; G1 2.20; IPe 1.21; lJo 3.23). Sem Jesus Cristo o Pai continua a ser-nos inacessível (Lc 10.22; Jo 8.12; 14.6; lTm 2.5; 6.16). Uma fé supostamente depositada no “Pai” sem a aceitação do Filho como Senhor e Salvador, não é a fé genuinamen­te bíblica: E impossível ter a Deus como Pai sem o Filho como Irmão Primogênito (Rm 8.29).307 “O objetivo final de nossa fé é Deus mesmo; mas vemos sua glória através de Cristo, o qual é o caminho divinamente designado para revelar a glória de Deus.”308

Agostinho (354-430), fazendo uma distinção entre a “fé cristã” e pagã, escreve:

“A fé dos cristãos não é louvável porque eles crêem no Cristo que mor­reu, mas no Cristo que ressuscitou. Pois também o pagão acredita que ele morreu e te acusa como de um crime por teres acreditado num morto. Que tens, portanto, de louvável? Teres acreditado que Cristo ressuscitou e esperar que hás de ressuscitar por Cristo. Nisto consiste uma fé louvável. ‘Se confessares com tua boca que Jesus é Senhor e creres em teu coração que Deus o ressuscitou dentre os mortos, serás salvo’ (Rm 10.9). (...) Esta é a fé dos cristãos.’’309

Calvino resume:“Lembremo-nos de que a fé genuína está então contida em Cristo, que

ela não sabe, nem deseja saber, nada mais além dele” .310

307 “Por m eio da fé, Cristo nos é com unicado, através de quem chegam os a D eus, e através de quem usufruímos os benefícios da adoção” [João Calvino, Efésios (E f 1.8), p. 30],

308 John O wen, A G lória de C risto , São Paulo, PES, 1989, p. 23.309 A gostinho, Com entário aos Salm os, São Paulo, Paulus (Patrística, 9 /3), 1998 (SI

101), Vol. I ll, pp. 32-33.310 J. Calvino, Efésios (E f 4.13), p. 127.

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108 EU CREIO.

3.2.2. Toda a Palavra

"N ada é mais solicitamente intentado por Satanás do que impregnar nossas mentes, ou com dúvidas, ou com menosprezo pelo evangelho.” - João Calvino.311

“O evangelho de vossa salvação” é para ser crido (Ef 1.13). Por isso, a pregação cristã nada mais é do que a proclamação do evan­gelho; o poder de Deus para a salvação (Rm 1.16). “A pregação (...) é o instrumento divino para a salvação das pessoas.”312

Sem a Palavra, Jesus se constitui no caminho desconhecido para oP ai (Jo 20.30-31; Jo 14.6).313

A Palavra de Deus reclama nossa fé (vd. Mc 1.15; Jo 5.45-47; 17.20; At 4.4; Rm 10.8, 14, 17; Ef 1.13; lTm 1.15; 4.9).314 O que Deus revelou e prometeu é para ser crido (Rm 4.20). Jesus Cristo é o autor e o conteúdo,315 o substantivo da promessa; por isso, crer no evangelho significa crer em Jesus Cristo (Mc 1.15; Rm 15.20; At 16.31).316 Jesus Cristo conforme o conhecemos no evangelho é a Palavra Final de Deus: Nele conhecemos o que Deus quer que sai­bamos e o que deseja que sejamos nesta vida.

Todavia, se Deus não abrir o entendimento dos homens, eles ja­mais crerão, como nós também jamais teríamos crido um dia; por isso, a proclamação do evangelho deve vir acompanhada da oração.317

311 João Calvino, Efésios, São Paulo, Parakletos, 1998 (E f 1.13), p. 35.312 Ph. J. Spener, M udança p a ra o Futuro: P ia D esideria , Curitiba, PR/São Bernardo do

Campo, SP, Encontrão Editora/Instituto Ecum ênico de Pós-Graduação em Ciências da R e­ligião, 1996, p. 118.

313 “Não há outro guia para a verdade, senão a Bíblia, na m edida em que o Espírito nos ajuda a entendê-la” (W illiam Guthrie, As Raízes de Uma Fé A u têntica , São Paulo, PES, 1994, p. 14).

314 Vd. J. Calvino, A í Instituías, III.2 .1 .315 M ichael Green escreveu: “Aquele que veio pregando as boas-novas passou a ser o

conteúdo das boas-novas” (M ichael Green, E vangelização na Igreja P rim itiva, São Paulo, Vida N ova, 1984, p. 58).

316 ”A fé que nos traz à salvação é questão de querer a Cristo, ser levado a ele, apoiar-se e ter confiança nele” (W illiam Guthrie, A.ç R aízes de Uma Fé Auíêníica, p. 26).

317 J.l. Packer, ressaltando a importância da convicção da Soberania de Deus no m inisté­rio evangélico, diz:

“(A ) fé fervorosa na soberania absoluta de Deus (...) não som ente fortalece a evangeliza-

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Il - A Fé Salvadora 109

3.3. Apoia-se no Poder e Fidelidade de Deus

O fundamento da fé é o Deus fiel: Aquele que a gerou e a sus­tenta (ICo 2.4, 5; Hb 11.11; IPe 1.21).

Nossa fé encontra seu amparo na veracidade e fidelidade de Deus. A fidelidade de Deus se revela em suas promessas, como expressão de sua fidelidade a si mesmo. “A fé verdadeira é aquela que ouve a Palavra de Deus e descansa em sua promessa.”318

Analisemos um caso específico. O salmo 11 inicia-se com uma declaração de fé do salmista, resultante, certamente, de sua extensa experiência espiritual: “No Senhor me refugio” (SI 11.1). No entan­to, a percepção do salmista a respeito de sua situação não era a única; outras pessoas, possivelmente amigas, olhavam sua situação e diziam mais ou menos o seguinte: “Foge para o monte... os ímpi­os armam o arco, dispõem sua flecha na corda para às ocultas d is­pararem contra os retos de coração...”.

O salmista, no entanto, nega-se a seguir este conselho; ele, com justa indignação, diz: “Ora, destruídos os fundamentos, que poderá fa zer o justo?” (3). Sua questão era a seguinte: o certo tornou-se errado? O mal tornou-se em bem? Não há mais justiça? Não há quem olhe por nós? Se não houver mais justiça, como o homem justo, de bem, poderá viver? Notemos que o impasse do salmista não nos é estranho. Em determinadas situações, pensamos: a quem vamos recorrer? Se quem nos deveria defender é quem nos explora, o que fazer?

O fato é que a vida de Davi está em perigo, os fundamentos de seu reino estão ameaçados; seus amigos aconselham-no a fugir para as montanhas onde teria melhor abrigo. No entanto, o salmista in-ção, com o sustenta o evangelista, criando uma esperança de êxito que, de outro modo, não poderia ser realidade; e igualmente nos ensina a ligar a pregação à oração, tornando-nos ousados e confiantes perante os homens, ao mesmo tempo em que nos torna humildes e persis­tentes perante Deus” (J.l. Packer, Evangelização e Soberania de Deus, 2“ ed. São Paulo, Vida N ova, 1990, pp. 84-85. D o mesmo modo, vd. J.l. Packer, Vocábulos de D eus, São José dos Campos, SP, Fiel, 1994, p. 121. Vejam-se: Jo 15.5; 16.33; ICo 15.57-58; Fp 4.13).

318 J. Calvino, E xposição de H ebreus (Hb 11.11), p. 318. Vd. também, Ibidem (Hb 10.23), p. 270; João Calvino, G álatas, São Paulo, Parakletos, 1998 (G1 2 .2), p. 49.

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daga a respeito dessa atitude, considerando-a inadequada. É possível que este salmo tenha sido escrito no tempo em que Absalão prepara­va de forma sorrateira uma rebelião para tentar assumir o trono.

Em princípio, o conselho que lhe fora dado não lhe era estra­nho; Davi já tivera a experiência de esconder-se nos montes contra a perseguição de Saul, no entanto o texto no livro de Samuel nos diz: “Permaneceu Davi no deserto, nos lugares seguros, e ficou na região montanhosa no deserto de Zife. Saul buscava-o todos os dias, porém Deus não o entregou em sua mão” (ISm 23.14). Davi sabia que quem lhe protegia não eram os montes, mas Deus. Ele sabia que não podemos substituir Deus pelos montes. Davi rejeita o con­selho de seus amigos, porque se refugia em Deus (SI 16.1; 36.7).

Nesta rejeição, que poderia parecer mera teimosia, na realidade era uma questão de princípio teológico, uma experiência de fé. Davi demonstra que sua fé amparava-se no fato de Deus ser Santo (SI11.4), ele está em seu santo templo (Vd. Hc 2.20). Davi sabia que podia confiar num Deus justo, que ama a justiça (SI 11.7). Deus é justo em si mesmo e, por isso mesmo, em suas manifestações. A justiça de Deus se caracteriza por sua ação coerente com seu pa­drão; por isso, suas ações são sempre perfeitas e retas, pois seu pa­drão é a perfeição: “ Justiça e direito são o fundamento de teu tro­no” (SI 89.14). Por isso, “A maior desonra que alguém poderia lan­çar sobre seu nome é a de contestar sua justiça.”319

Davi tem também como fundamento de sua fé a certeza de que Deus reina; ele é santo e rei: “nos céus tem o Senhor o seu trono” (4). O reino de Deus é o reinado de Deus. Deus é soberano: A ele perten­cem o poder, o reino e a glória eternamente. Sua soberana vontade é caracterizada pela perfeição: sua vontade é perfeita (Rm 12.2).

O salmista sabia quem era seu Deus: Aquele que reina sobre todas as coisas. Por isso, não há impedimentos na concretização de suas promessas. E justamente isso que diz o anjo a Maria: “Porque para Deus não haverá impossíveis em todas as suas prom essas” (Lc 1.37).

^ ’ João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 2 (SI 50.21), p. 417.

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II - A Fé Salvadora 111A soberania de Deus não significa algo abstrato; antes, seu cui­

dado para conosco: “...seus olhos estão atentos, suas pálpebras son­dam os filhos dos homens” (SI 11.4). Portanto, mais do que um simples exercício intelectual, a soberania de Deus é um desafio à nossa confiança no Deus poderoso e providente. Jesus Cristo, no Sermão do Monte, diz: “...Não andeis ansiosos pela vossa vida, quanto ao que haveis de comer ou beber; nem pelo vosso corpo quanto ao que haveis de vestir (...). Não vos inquieteis com o dia de amanhã, pois o amanhã trará os seus cuidados; basta ao dia o seu próprio mal” (Mt 6.25, 34). Paulo, preso, seguindo os ensinamen­tos de Cristo, escreve aos filipenses: “Não andeis ansiosos de coisa alguma; em tudo, porém, sejam conhecidas diante de Deus as vos­sas petições, pela oração e pela súplica, com ações de graça” (Fp 4.6). “E pela fé que tomamos posse de sua providência invisível”, conclui Calvino.320

Deus sabe de nossas necessidades. O saber de Deus não é ape­nas intelectual: Deus sabe e por isso cuida (Mt 6.8). Ele não dorme; antes, sabe do que necessitamos antes mesmo que tenhamos cons­ciência de nossas necessidades: A Bíblia também nos ensina que Deus nem sempre nos dá aquilo que pedimos; entretanto, sempre nos dá aquilo de que necessitamos de fato e de verdade, mesmo que nem ainda tenha penetrado em nosso coração a realidade da carên­cia... Nossa morosa consciência de nossas próprias carências não escapa à Providência de Deus, nem à sua graciosa provisão.

Deus não é indiferente ao nosso clamor: Davi, em outro salmo, reflete: “Os olhos do Senhor repousam sobre os justos, e seus ouvi­dos estão abertos ao seu clamor” (SI 34.15). Do mesmo modo, o salmista diz: “Ele não permitirá que teus pés vacilem: não dorm i­tará aquele que te guarda. E certo que não dormita nem dorme o guarda de Israel” (SI 121.3-4).

Davi, que inicia o salmo declarando sua confiança em Deus, conclui revelando o aspecto escatológico de sua fé: “os retos lhe contemplarão a fa ce” (SI 11.7). Veremos a face de Deus.

320 João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1 (SI 13.1), p. 262.

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112 EU CREIO.

As Escrituras nos,desafiam a confiar em Deus, depositando no Deus soberano toda a nossa ansiedade. É importante que tenhamos sempre diante de nós a certeza de que o poder de Deus é algo con­creto e real em nossa vida diária, em nosso sustento e preservação. Essa compreensão de fé deve guiar nossa perspectiva da realidade e, conseqüentemente, nossa atuação no mundo. Calvino observa que “as pessoas erram clamorosamente na interpretação da Escritu­ra, deixando inteiramente suspensa a aplicação de tudo quanto se diz acerca do poder de Deus e em não descansar certas de que ele será também seu Pai, uma vez que fazem parte de seu rebanho e são partícipes de sua adoção.”321

3.4. É Resultado de Nossa Eleição Eterna

A eleição divina nos é totalmente estranha até que nos consci- entizemos desta realidade pela fé. A fé é a causa instrumental de nossa salvação; todavia, nossa eleição é a causa essencial. A fé e o arrependimento são resultado da eleição. Usando uma expressão de Calvino, podemos dizer que a “eleição é mãe da fé”.322 A fé não é precondição da eleição, no entanto ela evidencia e confirma nossa eleição como um selo.323 A fé não tem nada de meritório; “A causa eficaz da fé não é a perspicácia de nossa mente, mas a vocação de Deus. E ele [Pedro] não se refere somente à vocação externa, que é em si mesma ineficaz; mas à vocação interna, realizada pelo poder secreto do Espírito, quando Deus não somente emite sons em nos­sas orelhas pela voz do homem, mas, por seu próprio Espírito, atrai intimamente nossos corações para ele mesmo.”324 Em outro lugar: “O fundamento de nossa vocação é a eleição divina gratuita pela qual fomos ordenados para a vida antes que fôssemos nascidos. Desse fato depende nossa vocação, nossa fé, a concretização de nossa sal­vação.”325

321 João Calvino, O Livro dos Salm os, Vol. 2 (SI 46 .7), p. 336.322 Vd. J. Calvino, As Instituías, 111.22.10.323 Vd. J. Calvino, A í Instituías, 111.24.3.324 John Calvin, C a lv in ’s Com m entaries, Grand Rapids, M ichigan, Baker B ook House,

1996 (reprinted), Vol. 22 (2Pe 1.3), p. 369.325 João Calvino, G álatas (G1 4 .9), p. 128.

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II - A Fé Salvadora 113

Desse modo percebemos como Deus em sua misericórdia em tudo se antecipou a nós;326 a fé é dos eleitos de Deus (Tt 1.1). Aque­le que crê é um eleito de Deus. No entanto, devemos enfatizar que esta relação não é mecânica: Eleição e Fé. A Palavra nos ensina que fomos eleitos para que tivéssemos fé; e esta fé é gerada e sedimen­tada em nossos corações pelo Espírito através do conhecimento de Cristo. “A fé salvadora é um salto para a luz porque se baseia no conhecimento do Senhor Jesus Cristo.”327 E o conhecimento de Cris­to deve ser nossa vocação incondicional. “E a vida eterna é esta: que te conheçam a ti, o único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste” (Jo 17.3).

Paulo considerou todas as outras coisas como perda, diante da sublime realidade do conhecimento de Cristo; conhecer a Cristo era sua prioridade; ele declara: “Sim, deveras considero tudo como perda, por causa da sublimidade do conhecimento de Cristo Jesus meu Senhor: p o r amor do qual, perdi todas as coisas e as considero como refugo, para ganhar a Cristo” (Fp 3.8).328

Desta forma podemos dizer que:a) Todos os eleitos crêem : Jo 10.16, 27-29; 6.37, 39; 17.2, 9, 24.b) Só os eleitos crêem: Jo 10.26.c) Os que crêem fazem-no por serem eleitos: At 13.48; Tt 1.1.Portanto, toda a honra e glória pertencem a Deus (Ef 2.5, 8-10;

vd. lTs 1.3,4; 2Ts 2.13; Tg 2.5; Jd 3).126 Vd. Agostinho, On The G ospel o f St. John. In: Philip Schaff & Henry Wace, eds.

Nicene an d Post-N icene Fathers ofC hristian Church (First Series), 2a ed. Peabody, M assa- chusettes, Hednrickson Publishers, i 995, Tractate 86 (Jo 15.16), p. 354.

327 R.B. Kuiper, El Cuerpo G lorioso de Cristo, M ichigan, Subcom ision Literatura Cris- tiana de la Iglesia Cristiana Reformada, 1985, p. 230.

328 “O conhecim ento de Deus não está posto em fria especulação, mas traz consigo o culto” (]. Calvino, A s Instituías, 1.12.1). “Jamais poderemos conhecer demasiadamente as grandes doutrinas da fé, mas se esse conhecim ento não nos leva a uma experiência cada vez mais profundado amor de Cristo, não passa de conhecim ento que ‘incha’ (IC o 8 .1)” (D.M. Lloyd-Jones, A í Insondáveis R iquezas de C risto , São Paulo, PES, 1992, p. 8. “P refácio”). “O conhecim ento é absolutamente essencial; sem conhecim ento não pode haver nenhum crescimento. Todavia o conhecim ento, no sentido verdadeiramente cristão, nunca é mera­mente intelectual. E assim, e isso porque é o conhecim ento de uma Pessoa. O propósito de toda doutrina, o valor de toda instrução, é levar-nos à Pessoa de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo” (D.M . Lloyd-Jones, Ibidem, p. 165).

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114 EU CREIO.

4. EVIDÊNCIAS DA FÉ SALVADORA

As características se constituem, de certa forma, em evidências, e de igual modo algumas evidências caracterizam a fé salvadora. Entretanto, fizemos tais divisões com o objetivo de apresentar uma visão mais didática, e assim termos uma compreensão mais abran­gente e prática desta doutrina.

4.1. O Desejo de Ser Batizado

Um homem desprovido de fé salvadora pode até desejar ser ba­tizado; isto é admissível, especialmente no caso da fé temporal; todavia, não o é um crente, salvo pela graça de Deus, não desejar receber este sinal externo que evidencia sua filiação divina. O ba­tismo é uma seqüência natural da fé salvadora (Mc 16.16; At 8.37, 38; 16.30-33; 18.8).

4.2. Fraternidade

A fé salvadora é demonstrada na vida diária da Igreja (At 2.44; 4.32).

4.3. Viva Esperança em Deus

A fé é demonstrada em nossa atitude de esperança depositada em Deus e em suas promessas. A esperança sem o conhecimento de Cristo e de suas promessas é apenas uma utopia humana. Jesus Cristo é o Senhor e o alvo de nossa esperança que procede da fé (Rm 4.18; 6.8; ICo 15.19; 2Tm 1.12; 4.7; Hb 11.1). “A esperança não é mais do que o alimento e a força da fé.”329

4.4. Obediência

Fé significa conhecer a Deus e também em saber o que Deus deseja que façamos. Fé envolve um compromisso entre nós e Deus. Nós fomos criados em Cristo para as boas obras (Ef 2.8-10). Deste modo, é inconcebível um “crente” de “muita fé” desobediente à Palavra e às determinações da Igreja - enquanto esta permanecer

3M J. Calvino, A? Institu ías, III.2.43

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II - A Fé Salvadora 115

fiel à Palavra de Deus. A obediência é fruto da fé genuína. “Só o crente é obediente, e só o obediente é que crê.”330 “A fé só é fé no ato da obediência”.331 A verdadeira fé se evidencia no fato de to­marmos a Bíblia como nossa norma de vida (At 15.22-29; 16.4-5; vd. Rm 1.4, 5; 16.25, 26; Hb 11.7, 8, 17-19; Tg 2.14, 20-23). A profissão de nossa fé se dá no ato de nossa obediência: “A resposta do discípulo não é uma confissão oral da fé em Jesus, mas sim um ato de obediência (...). Não há qualquer outro caminho para a fé senão o da obediência ao chamado de Jesus”.332

Agostinho (354-430), de modo poético, diz:“...Ele chama e nós respondemos, não pela voz, mas pela fé; não pela

língua, mas pela vida.”333

No Catecismo de Heidelberg (1563), analisando a doutrina da Justificação, lemos:

“Esta doutrina não torna as pessoas descuidadas e ímpias?”. Responde: “De forma alguma, pois é impossível que alguém, que está enxertado em Cristo por uma verdadeira fé, não produza frutos de gratidão” (Pergunta 64).Um crente seguro de sua salvação é um trabalhador ardoroso e

fiel na Causa de Cristo; não um espectador indolente com uma su­posta fé bem fundamentada.

4.5. Procedimento Diário

A fé em Deus influencia nossa cosmovisão e, conseqüentemen­te, nosso comportamento. A fé não é algo abstraído da realidade; os assuntos da fé têm relação com nosso hoje existencial; não pode­mos separar a fé de nosso testemunho, de nossa ética, de nossa for­ma de viver (Rm 1.17; 2Co 5.17; G1 2.20).

330 Dietrich Bonhoeffer, D iscipulado, 2" ed. São Leopoldo, RS, Sinodal, 1984, p. 25.331 D. Bonhoeffer, D iscipulado, p. 25.332 Dietrich Bonhoeffer, D iscipulado, p. 20.333 A gostinho, C om entário aos Salm os, São Paulo, Paulus (Patrística, 9 /3), 1998 (SI

(102)101), Vol. 111, p. 31.

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116 EU CREIO.

4.6. Santificação

A fé salvadora conduz-nos ao crescimento espiritual, à apropri­ação dos meios concedidos por Deus para o nosso crescimento (Mt 13.23;At 26.18). A fé cresce através da Palavra (2Ts 1.3; lT m 4.6).

A fé está indissoluvelmente ligada à santificação:“Ora, visto que a fé abraça a Cristo como ele nos é oferecido pelo Pai, e

Aquele, de fato, seja oferecido não apenas como justiça, remissão dos pe­cados e paz, mas também como santificação, e fonte de água viva, sem dúvida jamais o poderá alguém conhecer devidamente que não apreenda ao mesmo tempo a santificação do Espírito. (...) A fé consiste no conheci­mento de Cristo. E Cristo não pode ser conhecido senão em conjunção com a santificação de seu Espírito. Segue-se, conseqüentemente, que de modo nenhum a fé se deve separar do afeto piedoso”.354

4.7. Operosidade

O crescimento e fortalecimento de nossa fé é demonstrado atra­vés de nossa operosidade (lTs 1.3, 8), agindo sempre em amor (G1 5.6; Ef 1.15; 6.23; Cl 1.4; ICo 13.2). A fé não é algo simplesmente contemplativo, ela se manifesta em atos. A palavra empregada por Paulo, traduzida por “operosidade” (êpyov; lTs 1.3), tem o sentido tanto de trabalho ativo como de resultado do trabalho feito. Paulo diz ter sido confortado com as notícias trazidas por Silas concernentes ao fato de que os tessalonicenses, mesmo sob forte tribulação, permane­ciam firmes na fé (lTs 2.14; lTs 3.7). De passagem, vemos que nosso trabalho deve ser guiado pela fé, e a fé se materializa no trabalho. A Igreja de Corinto era fruto do trabalho de Paulo (ICo 9.1).

A fé dos tessalonicenses era tão ativa que já repercutira nas re­giões da Macedônia e Acaia (lTs 1.7-9). Um fato que se tornou notório foi sua conversão a Deus e o abandono da idolatria (lTs 1.9). O mesmo aconteceria posteriormente com a Igreja de Roma. Paulo então escreveu: “Dou graças a meu Deus mediante Jesus Cristo, no tocante a todos vós, porque em todo mundo é proclam a­da vossa fé ” (Rm 1.8).

334 J. Calvino, A í Institu ías, III.2.8.

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II - A Fé Salvadora 117

Tiago diz que “a fé sem obras é morta” (“Jtícraç X^P^Ç êpycov VEKpá è a x i v ” (Tg 2.26). Ou seja, a verdadeira fé se manifesta em atos de obediência. A fé operosa é aquela que obedece aos manda­mentos de Deus. Daí, a recomendação de Paulo aos coríntios: “P or­tanto, meus amados irmãos, sede firmes, inabaláveis e sempre abun­dantes na obra (êpyov) do Senhor, sabendo que, no Senhor, o vosso trabalho (k ó tc o ç ) não é vão” (ICo 15.58). Do mesmo modo instrui a Tito quanto ao que deveria ensinar: “Fiel é esta palavra, e quero que, no tocante a estas coisas, faças afirmação, confiadamente, para que os que têm crido (TCEJuatsuKÓTEç) em Deus sejam solícitos na prática de boas obras (KaXóàv335 êpycov). Estas coisas são excelen­tes e proveitosas aos homens” (Tt 3.8).

Do mesmo modo, Paulo enfatiza que para isso mesmo é que todos fomos eleitos, sendo regenerados para as boas obras: “Pois somos feitura dele, criados em Cristo Jesus para boas obras (ê pyoiç òcyaBotç336), as quais Deus de antemão preparou para que andássemos nelas” (Ef 2.10). Nessa prática, agradamos a Deus, “...frutificando em toda boa obra (êpyco áyaBco) e crescendo no pleno conhecimento de Deus” (Cl 1.10).

É interessante observar que no Apocalipse, repetidamente, quan­do Deus fala às sete igrejas da Ásia, diz: “conheço as tuas obras” (Ap 2.2, 19; 3.1, 8, 15) - , mostrando que o juízo é conforme as obras de cada um, procedentes da fé (Ap 18.6; 20.12, 13; 22.12).

4.8 Perseverança

A fé salvadora é aquela que permanece até o fim firmada em Deus e em sua Palavra (Jo 8.30, 31; Hb 10.39; Ap 14.12); todavia, ela se tornará desnecessária: No céu já não mais precisaremos de ter fé, pois a plenitude daquilo que esperávamos pela fé terá sido alcançada (ICo 13.9-13).

335 K aW ç, “bom ”, “útil” . A palavra grega indica algo que é essencialm ente bom, formoso - a idéia de beleza estética está classicam ente presente nesta palavra - , útil e honroso.136 òíYaGóç, denota o que é moral e praticamente bom. A vontade de D eus é boa (óeyaSóç; Rm 12.2) porque e le é bom (Lc 18.19).

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118 EU CREIO.

4.9. Vence as Tentações do Mundo

A graça de Deus, que age através da fé, nos torna vitoriosos já nesta vida, a partir do aqui e agora. Através da fé podemos viver neste mundo sem sermos dominados por suas agendas e praxes. Nossos ditames são celestiais (H o 5.4, 5; IPe 5.8, 9).

Deus permite que passemos por provações para que, mediante seu sustento, possamos nos fortificar em nossa fé, nos apegando mais confiadamente a ele, frutificando em toda boa obra, crescendo em nossa vida espiritual, reconhecendo que nossa sustentação pro­vém de Deus que nos capacita a resistir em todos os embates. Deve- se dizer que não nos alegramos com o sofrimento, mas, sim, com o proveito espiritual que podemos, pela graça, extrair dele (vd. IPe 4.12-19).337 Calvino (1509-1564) chega a dizer que “tanto ao Dia­bo, quanto aos ímpios todos, Deus os arma para o embate e toma assento, como se fora um mestre de liça, para que nos exercite a paciência.”338

4.10. Uma Vida Transformada Através da Palavra

Uma das maiores evidências da fé salvadora é um testemunho que reflita uma vida transformada pelo poder de Deus que age atra­vés da Palavra; contra isto não há argumentos. Podemos argumen­tar contra uma teoria, mas não contra uma vida digna (vd. ISm 12.1-5; Jo 8.46; 2C o5.21).339

A Palavra de Deus age eficazmente em nós, produzindo frutos (Cl 1.4-6; lTs 2.13; Js 1.8; SI 1.2; Tg 1.22-25).

317Vd. Charles Hodge, Com mentary on the Epistle to the Rom ans, Grand Rapids, M ichi­gan, Eerdmans, 1994 (reprinted), (Rm 5.3-4), pp. 134-135.

™ João Calvino, A s Instituías, 1.17.8.339 Na literatura grega encontramos o testemunho de Xenofonte (c. 430-355 aC.), histori­

ador e general grego, a respeito de seu mestre, Sócrates (469-399 aC.), talvez o mais admi­rável filóso fo da antigüidade. Xenofonte escreveu: “Sei que Sócrates era para seus discípu­los m odelo vivo de virtuosidade e que lhes administrava as mais belas lições acerca da virtude e o mais que ao hom em concerne” [Xenofonte, D itos e F eitos M em oráveis de Só- cra íes, São Paulo, Abril Cultural (Os Pensadores, Vol. II), 1972,1 .2 .17 . p. 44],

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II - A Fé Salvadora 119

5. NECESSIDADE DA FÉ SALVADORA

5.1. Para a Salvação

A fé é a causa instrumental da salvação; ela é “a mão pela qual o pecador recebe a salvação oferecida por Deus”;340 por isso ela é chamada de fé salvadora (Jo 3.16; At 16.31; Ef 2.8; IPe 1.9). “D e­pois que decaímos da vida à morte, inútil seria todo esse conheci­mento de Deus como o Criador (...) a não ser que adviesse também a fé, pondo diante de nós em Cristo a Deus como o Pai.”341

5.2. Para a Oração

“Palavras sem pensamentos nunca vão para o céu.”342 A oração deve ser sempre acompanhada de fé. Como confiar a alguém que não conhecemos nossos desejos mais íntimos? A oração sincera é um atestado de carência e de total confiança em Deus. A certeza de que seremos atendidos repousa na Palavra de Deus (Mt 21.22; Tg 1.5-8).343 “A oração é a conversa da alma com Deus. (...) Um homem sem oração é necessária e totalmente irreligioso. Não pode haver vida sem atividade. Assim como o corpo está morto quando cessa sua atividade, assim a alma que não se dirige em suas ações a Deus, que vive como se não houvesse Deus, está espiritualmente morta.”344

5.3. Para o Culto

O culto cristão é a expressão da alma que conhece a Deus e que140 R.B. Kuiper, Evangelização Teocêntrica, São Paulo, PES, 1976, p. 20.341 João Calvino, As Instituías, 11.6.1.342 W. Shakespeare, H am let, São Paulo, Abril Cultural, 1978, III.3. p. 272.343 “A oração genuína provém, antes de tudo, de um real senso de nossa necessidade, e,

em seguida, da fé nas promessas de D eus (João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo, Parakletos, 1999, Vol. 1, p. 34). “Para que nossa fé repouse verdadeira e firmemente em Deus, devem os levar em consideração, ao m esm o tempo, estas duas partes de seu caráter - seu imensurável poder, pelo qual e le pode manter o mundo inteiro sob seus pés; e seu amor paternal, o qual manifestou em sua Palavra” [João Calvino, O Livro dos Salm os, São Paulo, Parakletos, 1999, Vol. 2 (SI 46 .7), pp. 335-336],

344 Charles Hodge, Sysíem atic Theology, Grand Rapids, M ichigan, Eerdmans, 1976 (re­printed), Vol. I ll, p. 692 [Esta o b ra fo i pu blicada inlegralm enle em português, em tradu­ção fe ita p e lo com petente e incansável tradutor, escritor e editor, Rev. Valter C raciano M artins (Charles Hodge, Teologia Sistem ática, São Paulo, Editora Hagnos, 2001)].

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120 EU CREIO.

deseja dialogar com seu Criador; mesmo que esse diálogo, por al­guns instantes, consista num monólogo edificante no qual Deus nos fale através da Palavra. A seguinte definição expressa bem esta re­alidade: “Em essência, o culto é um encontro de Deus com seu povo no qual se estabelece um diálogo: Deus fala a sua Igreja através de sua Palavra e a Congregação expressa sua adoração ao Senhor me­diante as orações, oferendas e hinos.”345

O culto cristão não é uma ação humana, mas, sim, uma respos­ta; uma atitude responsiva à ação de Deus que primeiro veio ao homem, revelando-se e capacitando-o a responder-lhe. É Deus que procura seus adoradores (Jo 4.23).346 A adoração correta ao verda­deiro Deus é uma atitude de fé e obediência na qual o adorador se prostra diante do Deus que o atraiu com sua graça irresistível.347 Neste ato de culto, o homem confessa sua dependência de Deus, profes­sando sua fé em resposta à Palavra criadora de Deus (Jo 1.1; Rm 10.17; Tg 1.18; IPe 1.23).

Culto sem fé é uma contradição de termos (Hb 10.22; 11.4, 17, 28).

5.4. Em Nosso Relacionamento com Deus

Nossa aproximação de Deus através da oração, leitura e medita­ção na Palavra deve ser sempre norteada pela fé (Hb 11.5, 6).

5.5. Para Resistir ao Diabo

Uma das artimanhas do diabo é manter-nos na ignorância da Palavra de Deus (2Co 4.1-6). Aliada a esta estratégia, ele procura torcer os ensinamentos de Deus para gerar confusão, semeando a discórdia (Gn 3.1-7; Mt 4.5, 6; 13.24, 25, 38, 39).

Lloyd-Jones (1899-1981) expressou bem esta questão, dizendo: “A mente é o dom mais elevado do homem, e por isso o diabo

345Víctor M .S. Garcia, M usica y Alabanza: In: R evista Teológica , M éxico, Vol. IX, n° 31-32, 1978, p. 47.

346 Vd. Confissão de F é de Westminster, IX .3, 4.347 Vd. Confissão de F é de W estminster, X . l , 2.

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II - A Fé Salvadora 121

concentra seus ataques nas mentes dos homens.”348 Paulo fala dos “desígnios”349 de Satanás (2Co 2.11), indicando a idéia de que ele tem metas definidas, estratégias elaboradas, um programa de ação com variedades de técnicas e opções a serem aplicadas conforme as circunstâncias. Satanás “fará qualquer coisa para conseguir vanta­gem sobre nós, diz o apóstolo, fará qualquer coisa para derrubar- nos, para fazer-nos parecer ridículos e para pôr em desgraça o nome de Deus.”350Ele emprega toda sua “energia” para realizar seus pro­pósitos. Esta ação é notória entre aqueles que ainda não conhecem a Cristo. Para que não entendam a Palavra de Deus, Satanás age obscurecendo seu entendimento; Paulo diz que “... O deus deste século cegou os entendimentos (vòr||ia) dos incrédulos, para que lhes não resplandeça a luz do evangelho da glória de Cristo, o qual é a imagem de Deus” (2Co 4.4; vd. também: Ef 4.17-18; Cl 1.21).

Aos judeus que não entendiam a mensagem de Cristo, ele diz: “Qual a razão por que não compreendeis minha linguagem (À,aÀ,iá)?351 E porque sois incapazes de ouvir minha palavra (A,óyoç).352 Vós sois do diabo que é vosso pai, e quereis satisfazer-lhe os desejos (...). Quem é de Deus ouve as palavras de Deus; por isso não me dais ouvidos, porque não sois de Deus” (Jo 8.43, 44, 47).

A insensibilidade de seus ouvintes não estava ligada à suposta obscuridade da mensagem de Cristo ou à sua linguagem, mas, sim, à incapacidade espiritual de seus ouvintes de entenderem o que Je-

348 D.M . Lloyd-Jones, O Com bate C ristão, São Paulo, PES, 1991, p. 76.345 A palavra traduzida por “desígn io” (vór||xa, noêma) ocorre cinco vezes no NT, sendo

utilizada apenas por Paulo: 2Co 2.11; 3.14; 4.4; 10.5; 11.3; Fp 4.7, tendo o sentido de “plano" (Platão, P olítica , 260d), “intenção m aligna”, “in trigas”, “ard is” . Com exceção de Fp 4.7 , a palavra é sempre usada negativamente no NT. N órina é o resultado da atividade do voGç (m ente). (J. Behm & E. W iirthwein, vouç, etc.: In: G. Kittel & G. Friedrich, eds. Theological D iction ary o f the N ew Testament, Vol. IV, p. 960). “É a faculdade geral do juízo , que pode tomar decisões e pronunciar certos ou errados os veredictos, conform e as influências às quais têm sido expostas” (J. Goetzmann, Razão: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo D icionário Internacional de Teologia do N ovo Testamento, Vol. IV, p. 32).

350 D. M. Lloyd-Jones, O Com bate C ristão, p. 90.351 A a X iá (lalia; *Mt 26:73; Jo 4.42; 8.43) parece indicar mais do que o “dia le to”, a

estrutura do pensamento de Jesus; eles não conseguiam acompanhar seu raciocínio.352 Aqui significa a m ensagem em si, seu conteúdo.

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122 EU CREIO.

sus lhes falara; havia um clima de total má vontade e descaso para com o evangelho por ele anunciado. No entanto, aqueles que são de Deus ouvem a Palavra de Deus, entendem salvadoramente sua men­sagem e, portanto, são salvos (Jo 6.45, 46; 10.27-29).

Às igrejas perseguidas, Pedro exorta: “Sede sóbrios e vigilan­tes. O diabo, vosso adversário, anda em derredor, como leão que ruge procurando alguém para devorar; resisti-lhe firmes na fé, certos de que sofrimentos iguais aos vossos estão se cumprindo em vossa irmandade espalhada pelo mundo” (IPe 5.8-9).

Satanás está ativamente feroz contra nós, desejando encontrar uma fresta, uma brecha pela qual ele possa entrar. Pedro nos diz que devemos resistir-lhe “firm es na fé ”.

Esta resistência na fé significa: não lhe permitir o acesso, opor- se a suas sugestões malignas.

Só podemos resistir-lhe com fé quando firmados no fundamen­to da fé, que é a Palavra de Deus... É Deus mesmo quem nos forta­lece, nos firma: A fé salvadora é aquela que permanece até o fim firmada em Deus e em sua Palavra (Jo 8.30,31; Hb 10.39; Ap 14.12).

Às mesmas igrejas sofredoras, Pedro consola e estimula: “Ora, o Deus de toda a graça, que em Cristo vos chamou à sua eterna glória, depois de terdes sofrido por um pouco, ele mesmo vos há de aperfeiçoar, firmar, fortificar e fundamentar” (IPe 5.10).

Notemos que nossa resistência ao diabo encontra sua base em Deus: É ele que nos capacita a perdoar, nos dá sua armadura, nos protege com sua presença e nos firma na fé que ele mesmo produ­ziu em nós.

“Um a vez que temos pedido de Deus a proteção contra o mal - escreveu Cipriano e a temos obtido, então estamos seguros e a salvo de tudo o que o diabo e o mundo possam fazer contra nós. E que perigo pode haver nesta vida para quem tem a Deus como protetor?”353 (Rm 8.31-39).

De fato, sem Deus nada podemos fazer (Jo 15.5). Entretanto, pesa■151 Cipriano, El Padrenuestro, 27 Apud^N. Barclay, El Padrenuestro, Buenos Aires, La

Aurora/ABAP, 1985, p. 142.

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II - A Fé Salvadora 123

sobre nós a responsabilidade de utilizar os meios fornecidos por Deus para que possamos cumprir o imperativo: “Resisti ao diabo”.

Pela fé podemos resistir ao diabo em todas as suas armadilhas: A fé é o conhecimento convicto e confiante de Deus e de sua vonta­de (IPe 5.8, 9; lJo 5.4, 5).6. EFEITOS DA FÉ SALVADORA

6.1. Nossa Salvação

Mais uma vez enfatizamos a relação entre eleição e fé. Deus nos elegeu na eternidade, não porque um dia teríamos fé; mas, sim, para que tivéssemos fé: Sem a graça de Deus não haveria fé.354 A fé é essencial à salvação, como uma evidência de nossa eleição: Só os que crêem serão salvos; só os eleitos crêem! (lTs 1.3, 4; 2Ts 2.13; Tt 1.1). A fé não tem méritos salvadores; ela é apenas o instrumento gracioso de Deus para a apropriação da salvação preparada pelo Trino Deus para seu povo escolhido (Lc 8.12; At 16.31; ICo 1.21; Ef 2.8; 2Ts 2.13).

“Eu não me apresento - escreveu Schaeffer - presunçosamente pensan­do que posso salvar a mim mesmo, mas entregando-me ao trabalho com ­pleto de Cristo e às promessas escritas de Deus. Minha fé é simplesmente as mãos vazias com as quais aceito a dádiva de D eus.”155

Os tópicos que se seguem estão relacionados diretamente com nossa salvação; vamos destacá-los apenas para que possamos ter uma visão mais rica das bênçãos de Deus decorrentes da fé, que ele mesmo produziu em nós.

6.2. Recepção do Espírito Santo, Sendo Selados por Ele

Todos os crentes èm Cristo recebem o Espírito Santo, sendo ele mesmo a garantia de nossa salvação (Jo 7.38, 39; G1 3.14; Ef 1.13; 4.30).

354 “É pela fé que nos apropriamos da graça de Deus, a qual está oculta e é desconhecida do entendimento carnal” [J. Calvino, O Livro dos Salm os, Vol. 1 (SI 13.5), p. 267],

355 Francis A. Schaeffer, O D eus que Intervém, São Paulo, R efúgio/A B U , 1981, p. 208.

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124 EU CREIO.

6.3. Tornamo-nos Filhos e Herdeiros de Deus

Pela fé todos nós nos tornamos filhos de Deus, passando a ser guiados pelo Espírito (Jo 1.12; Rm 8.14-17; G1 3.26).

6.4. Perdão dos Pecados

O perdão que nos vem absolutamente gratuito custou o precioso sangue de Cristo, o Cordeiro sem mácula. Pela fé em Cristo, medi­ante nosso arrependimento, somos perdoados por Cristo Jesus (Mc 2.5; At 10.43).

6.5. Justificação

Somos declarados justos pela justiça de Cristo. A justificação nos transfere de uma condição de condenados para a de herdeiros de Deus (Jo 3.18; At 13.39; Rm 3.28, 30; 5.1; G1 2.16; 3.24; Rm8.1, 7).356Na regeneração recebemos um coração novo, com uma santa disposição; na justificação Deus nos declara justos, perdoan­do todos os nossos pecados, cujo preço foi pago definitivamente por Cristo; por isso, já não há nenhuma condenação sobre nós; esta­mos em paz com Deus amparados pela justiça de Cristo (vd. Rm 5.1; 8.1, 31-33). O preço de nossa justificação, para nós gratuita, foi o sangue de Cristo Jesus.357

Nossa justificação é pela graça mediante a fé (G1 3.11; Fp 3.9; Tt 3.4-7) “...A fé é o instrumento pelo qual o pecador recebe e apli­ca a si tanto Cristo como sua justiça.”358

6.6. Passamos da Morte para a Vida; das Trevas para a Luz

Deus nos salvou do domínio do pecado para ele mesmo (Jo 5.24; 12.46; Ef 2.1; 5.8).

356 Cf. J.l. Packer, O Conhecimento de Deus, São Paulo, Mundo Cristão, 1980, p. 121357 Vd. J.l. Packer, O Conhecimento de Deus, p. 121.358 C atecism o M aior de Westminster, Pergunta, 73.

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II - A Fé Salvadora 125

6.7. Certeza da Vida Eterna

“A fé não se satisfaz com probabilidades, mas com a plena verdade.”359 Deus nos garante já nesta vida a certeza de que temos a vida eterna. “Os santos no céu são mais felizes que os crentes aqui na terra, porém sua salvação não é mais segura que a destes últimos”360 (Jo3.13-18, 36;6.40,47; 11.25,26; lT m 4.16; lJo5.13).

6.8. A Intercessão Eficaz de Jesus e do Espírito

O Espírito ora conosco e por nós; ele, juntamente com Cristo, em esferas diferentes, intercede por nós; “Cristo intercede por nós no céu, e o Espírito Santo, na terra. Cristo, nosso Santo Cabeça, estando ausente de nós, intercede fora de nós; o Espírito Santo, nosso Consolador, intercede em nosso próprio coração quando ele o santifica como seu templo”, contrasta Kuyper (1837-1920).361

A intercessão de Cristo respalda-se em seus merecimentos, ob­tendo para seus eleitos os frutos de sua obra expiatória.362 O Espíri­to intercede por nós, considerando nossas necessidades vitais e cos- tumeiramente imperceptíveis aos nossos próprios olhos, e também intercede em nós, aplicando a Palavra de Deus, nos ensinando a orar em consonância com a vontade de Deus (Jo 17.9, 20; Rm 8.26, 27, 34; Hb 7. 25; lJo 2.1).363

6.9. Santificação

Somos santos em santificação. A glorificação futura será a con-559 João Calvino, As Pastorais (Tt J. 1), p. 299.360 Loraine Boettner, La Predestinación , M ichigan, SLC (s.d.), p. 156.3lil Abraham Kuyper, The Work o fth e H oly Spirit, Chattanooga, AMG. Publishers, 1995,

p. 670.m “Não temos com o medir esta intercessão pelo nosso critério carnal, pois não podem os

pensar no Intercessor com o humilde suplicante diante do Pai, com os joelhos genuflexos e com as mãos estendidas. Cristo, contudo, com razão intercede por nós, visto que comparece continuam ente diante do Pai, com o morto e rcssurreto, que assume a posição de eterno intercessor, defendendo-nos com eficácia e vívida oração para reconciliar-nos com o Pai c levá-lo a ouvir-nos com prontidão” [J. Calvino, Exposição de Rom anos, São Paulo, Para- kletos, 1996 (8.34), p. 304],

363 Vd. Hermisten M.P. Costa, A P essoa e O bra do E spírito Santo, São Paulo, 2000, passitn.

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126 EU CREIO.

sumação da santificação iniciada pela fé a partir de nossa regenera­ção (At 26.18; 2Ts 2.13).

A santificação é um processo que não encontra sua perfeição nes­ta vida. Sua conclusão se dará em nossa glorificação futura, quando Deus completar sua obra iniciada em nós (Rm 8.29-30: Fp 1.6). To­davia, a perspectiva do encontro com Cristo, quando ele regressar em glória, deve nos motivar hoje, solicitamente, à santificação, a fim de vivermos em santidade em sua presença, puros como ele é puro.

A santidade perfeita no céu encontra seus primórdios na vida dos eleitos aqui na terra. “Amados, agora somos filhos de Deus, e ainda não se manifestou o que havemos de ser. Sabemos que, quan­do ele se manifestar, seremos semelhantes a ele, porque havemos de vê-lo como ele é. E a si mesmo se purifica todo o que nele tem esta esperança, assim como ele épu ro” (lJo 3.2-3).

Cristo morreu por nós para que ele nos apresentasse “a si m es­mo igreja gloriosa, sem mácula, nem ruga, nem coisa semelhante, porém santa e sem defeito” (Ef 5.27). Dentro desta perspectiva, a Igreja procura viver de forma santa, para encontrar-se com Cristo, conforme seu propósito sacrificial. “Teremos de ser santos antes de morrer, se quisermos ser santos quando estivermos na glória”.364

O desejo da Igreja deve ser de encontrar-se com Cristo de forma íntegra e irrepreensível; por isso a Igreja é chamada a viver hoje na presença de Deus, estando sempre preparada para seu encontro fi­nal e jubiloso com o Senhor Jesus; este era o alvo da intercessão de Paulo, conforme vimos (lTs 5.23).

Jesus Cristo, que se santificou pela Igreja e que se entregou por ela, exerce seu poder para apresentá-la a si mesmo com alegria, uma Igreja irrepreensível, diante do escrutínio de sua glória. O após­tolo Judas encerra sua epístola com uma doxologia, cuja primeira parte nos diz: “Ora, àquele que é poderoso para vos guardar de tropeços e para vos apresentar com exultação, imaculados diante de sua glória” (Jd 24; vd. Ef 5.25-27).

364 J.C . Ryle, Santificação, São José dos Campos, SP, FIEL, 1987, p. 46.

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II - A Fé Salvadora 127

Nosso padrão de santidade não é um simples “melhoramento” diante dos padrões humanos, mas, sim, sermos conforme Cristo: Fo­mos eleitos para Cristo a fim de sermos “conformes à imagem” dele; portanto devemos ser seus imitadores, seguindo suas pegadas (vd. Rm 8.28-30; Jo 13.15; 2Co 3.18; Ef 4.32; 5.1-2; Fp 2.5-8; 2Ts 2.13; IPe ]. 13-16; 2.21). “A santidade não é negativa, é positiva; é ser como Deus (...). A santidade não significa simplesmente obter vitó­ria sobre pecados particulares. É ser como Deus, que é santo.”365

6.10. Paz e Alegria

Agora já não há condenação para nós que estamos, pela fé, em Cristo Jesus: estamos em paz com Deus. A alegria espiritual é o resultado de nossa comunhão com Deus (Rm 5.1; IPe 1.6-9).366“A alegria do Espírito é inseparável da fé”, afirmou corretamente Cal- vino.367

IM PLICAÇÕES DOUTRINÁRIAS E PRÁTICAS

1) A verdadeira fé é aquela que ouve a Palavra de Deus e des­cansa perseverantemente em suas promessas. Analisando a paciên­cia de Davi revelada no salmo 40, Calvino extrai uma “preciosa” lição: “Embora Deus não se apresse em surgir em nosso socorro, no entanto propositadamente nos mantém em suspenso e perplexida­de; entretanto, não devemos perder a coragem, já que a fé não é totalmente provada senão pela longa espera”. Continua: “E possí­vel que Deus nos socorra mais lentamente do que gostaríamos, mas quando parece não tomar ele conhecimento de nossa condição, ou, se é que podemos usar tal expressão, quando parece inativo e a dormitar, isso é totalmente diferente de enganar; pois se somos in­

365 D. Martyn Lloyd-Jones, O Com bate C ristão, p. 127.366 Quanto à desconfiança puritana do “excesso de alegria”, vd. J.l. Packer, Entre os

G igantes de D eus: uma Visão Puritana da Vida Cristã, São José dos Cam pos, SP, Fiel, 1996, pp. 197-198.

367 João Calvino, O Livro dos Salm os, São Paulo, Parakletos, 1999, Vol. 2 (SI 51 .8 -9), p. 436.

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128 EU CREIO.

capazes de suportar, mediante o vigor e o poder invencíveis da fé, o tempo oportuno de nosso livramento por fim se manifestará.”368

2) A fé salvadora encontra seu momento de decisão quando o pecador, tocado pelo Espírito, diz: “Eu creio Senhor”.

3) A fé salvadora é a boa obra do Espírito Santo em nós, basean­do-se nos feitos do Pai e do Filho: A fé é resultado do ministério da Trindade em favor de seu povo.

4) “Se o caminho para Deus só é aberto para a fé, segue-se que todos quantos se encontram fora da fé não podem agradar a Deus.”369

5) A fé em Deus se revela eloqüentemente em nosso modo de viver, agir, falar e decidir (lTs 1.3, 8). Em outras palavras: “A fé não é alguma espécie de crença intelectual que vocês carregam con­sigo numa mochila, não é algo que vocês manipulam, põem e dis­põem, quando quiserem, mas é algo que se assenhoreia de todo o ser de vocês.”370

6) Pela fé Deus nos capacita a vencer as tentações e as armadi­lhas de Satanás (IPe 5.8, 9; lJo 5.4, 5).

7) “Indubitavelmente, olhar para Deus é uma propriedade da fé, mesmo nas circunstâncias mais tentadoras, e pacientemente espe­rar pelo socorro que lhe fora prometido por Deus.”371

8) O culto que prestamos a Deus deve ser a manifestação de uma alma crente que conhece seu Senhor, a quem adora (2Pe 3.18).

9) O Senhor conhece nossa fé (Ap 2.13, 19). Usemos, pois, dos meios fornecidos por Deus para nosso alimento espiritual e, assim, vivamos em comunhão com ele (Hb 11.4-7). A fé faz parte de nossa responsabilidade.372

368 João Calvino, O Livro dos Salm os, Vol. 2 (SI 40 .1), p. 215.365 João Calvino, Exposição de Hebreus (Hb 11.6), p. 304.370 D. Marlyn Lloyd-Jones, Deus o Espírito Santo , p. 189.371 João Calvino, O Livro dos Salm os , Vol. 1 (SI 25.5), p. 543.372 Vd. John Murray, Redenção: Consum ada e A p lica da , São Paulo, Editora Cultura

Cristã, 1993, p. 126.

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III. A PATERNIDADE DE DEUS------------------------------- ---------------------------------------------—

IN TRO DUÇÃO/

Emuito comum a afirmação de que o Deus do Antigo Testamen­to é um “Deus Vingador”, e o do Novo Testamento é o “Deus

Pai”, “Deus de amor". Tal distinção, além de ser maléfica, pois prejudica a compreensão da unicidade da Teologia Bíblica - dico- tomizando Deus e sua Palavra é ilusória, amparada em uma visão superficial das Escrituras. Tanto no Antigo como no Novo Testa­mento, encontramos a revelação de que Deus é Pai de amor, bonda­de e justiça. Neste capítulo, vamos enfocar alguns aspectos da pa­ternidade de Deus, e também alguns pontos relativos à nossa filia­ção. Vamos ao estudo.1. A PATERNIDADE DE DEUS NO ANTIGO TESTAMENTO

No Antigo Testamento, a paternidade de Deus é reconhecida como sendo exclusiva: Deus é Pai de Israel (Dt 7.6-8; 14.1-2; 32.6; SI 103.13, 14; Is 63.15, 16; Jr 31.9, 20; Ml 2.10). Apesar de só encontrarmos 14 vezes a palavra “Pai”, em referência a Deus, o Antigo Testamento apresenta, em todas as suas partes, esta idéia de forma enfática.

A paternidade de Deus sobre Israel encontra seu fundamento no ato histórico de salvação: O Êxodo do Egito. Deus tirou Israel da escravidão como um pai que liberta e protege seu filho. Esta foi a mensagem que Moisés levou a Faraó: “Assim diz o Senhor: Israel é meu filho, meu primogênito. Digo-te, pois: Deixa ir meu filho, para que me sirva..." (Ex 4.22, 23).

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130 EU CREIO.

2. A PATERNIDADE DE DEUS NO NOVO TESTAMENTO

A paternidade de Deus é amplamente ensinada no Novo Testa­mento. Paulo, por exemplo, em todas as suas epístolas reafirma este fato (Rm 1.7; ICo 1.3; 2Co 1.2; G1 1.3; Ef 1.2; Fp 1.2; Cl 1.2; lTs 1.1; 2Ts 1.2; lTm 1.2; 2Tm 1.2; Tt 1.4; Fm 3).

A paternidade divina é entendida como um ato de intenso amor para com os homens que se encontravam num estado de total de­pravação e miséria (Jo3.16; lJo 3.1). Os homens são filhos de Deus, não simplesmente por nascimento natural, mas, sim, por um novo nascimento concedido por Deus, tornando-se, assim, seus filhos adotivos. Nossa filiação, olhando por qualquer ângulo, é um ato da livre graça de Deus (Jo 3.3, 5; Rm 8.15; G1 4.3-6; Ef 1.5). Todas as demais bênçãos que recebemos decorrem da “graciosa adoção divi­na como sua causa primeira.”373 A Confissão de Westminster (1647) declara de forma correta: “A todos os que são justificados, Deus se digna fazer participantes da graça da adoção...” (XII. 1). Do mesmo modo, o Catecismo Menor, em resposta à pergunta 34 - “O que é adoção?” - , diz: “Adoção é um ato da livre graça de Deus, pelo qual somos recebidos no número dos filhos de Deus, e temos direito a todos os seus privilégios” (lJo 3.1; Jo 1.12; Rm 8.14-17)”. Fazendo uma analogia entre a “adoção” e a “justificação”, Packer diz: “A justi­ficação é a bênção básica, sobre a qual a adoção se fundamenta; a adoção é a bênção do coroamento, para a qual a justificação abre o caminho.”374

Na oração que Jesus ensinou a seus discípulos, ele diz que orás­semos assim: “Pai Nosso”. Já de início há o pressuposto de nossa filiação, portanto do amor de Deus para conosco. Conforme já ob­servamos anteriormente, esta oração é para ser feita pelos filhos de Deus: aqueles que têm a Deus como Pai. Mas, o que isso significa? Como devemos entender a paternidade de Deus?

No início do século XX (1927), um psiquiatra austríaco, Sig- mund Freud (1856-1939) - fundador da Psicanálise - difundiu a

373 J. Calvino, E xposição de Rom anos (8.28), p. 294.374 J.I. Packer, Teologia Concisa, São Paulo, Editora Cultura Cristã, 1999, p. 157.

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III - A Paternidade de Deus 131

idéia de que o que cremos a respeito de Deus é uma projeção ideal das virtudes de nossos pais; assim, dentro desta interpretação, cada um de nós atribui a Deus, de forma perfeita, aquelas virtudes que vemos em nossos pais terrenos.375

Sabemos, entretanto, que se quisermos aprender de fato quem é Deus, qual o verdadeiro sentido de sua paternidade, devemos bus­car o significado correto destas questões na própria Bíblia, que nos mostra de modo suficiente e claro quem é Deus, Aquele que é o nosso Pai...

A Oração Dominical começa dirigindo-se a Deus como Pai. Por­tanto, aquele que faz esta oração reconhece em Deus seu Pai. Con­tudo, é possível que tenhamos uma idéia equivocada de Deus como Pai; por isso, devemos voltar à Palavra para que juntos estudemos o sentido de sua paternidade.3. ASPECTOS DA PATERNIDADE DE DEUS376

1) Pai Glorioso: Jo 17.1-5; Ef 1.17;2) Pai Santo: Jo 17.11;3) Pai Justo: Jo 17.25;4) Pai Perfeito: Mt 5.48;5) Pai Misericordioso: Lc 6.36; 2Co 1.3;6) Pai Gracioso: Mt 7.11; Rm 1.7; Tg 1.17;7) Pai Fiel no Cumprimento de suas Promessas: Dt 7.6-9; Lc

24.49; At 1.4, 8; At 2.1ss.; 14ss.;8) Pai que escolhe seus filhos adotivos: Jo 6.37, 44, 65; Ef 1.3,

4; 2Ts 2.13;9) Pai Incansável: Jo 5.17;10) Pai Onisciente e Todo-Poderoso: Mc 13.32; 14.36;11) Pai que envia seu Filho para salvar seu povo: lJo 4.14; Jo

17.6-26;12) Pai Auto-existente: Jo 5.26;

375 Vd. por exem plo: S. Freud, O Futuro de uma Ilusão. In: E dição E letrônica B rasileira das O bras P sicológicas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro, Imago Editora (s.d.), Vol. XXI.

376 Vd. mais detalhes in: Hermisten M.P, Costa, O P ai Nosso, a O ração do Senhor, São Paulo, Editora Cultura Crista, 2001, passim .

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132 EU CREIO.

13) Pai livre em seus atos: Jo 5.21; Rm 9.14-29; 11.33-36;14) Pai que se revela através do Filho: Mt 11.27.Estes são apenas alguns dos aspectos da paternidade de Deus. A

Bíblia nos fala de muitos outros. Nós conhecemos a Deus por seu ato de graça em revelar-se em sua Palavra, e em Jesus Cristo (Jo 10.30; Cl 1.19; 2.9; Hb 1.1-4).

A paternidade de Deus envolve, conseqüentemente, a idéia de filhos. Estudemos agora, de forma esquemática, alguns elementos de nossa filiação divina.4. OS FILHOS ADOTIVOS DE DEUS

4.1. A Natureza de Nossa Filiação

4 .1 .1 . Resultado da Graça de Deus

“Por meio da fé, Cristo nos é comunicado, através de quem che­gamos a Deus, e através de quem usufruímos os benefícios da ado­ção”, escreve Calvino.377 Fomos adotados pela graça de Deus, tor­nando-nos seus filhos (Ef 1.5, 6; G1 4.4-6).

A graça é o favor de Deus manifestado livremente em favor dos homens que estavam numa situação miserável, resultante de seu pecado. O pecado tornou-nos - já que todos pecamos - inimigos de Deus, contrários aos seus mandamentos e propósitos. No entanto, a Palavra nos diz que “Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei, para resgatar os que estavam sob a lei, a fim de que recebêssemos a adoção de filhos” (G1 4.4, 5).

A Palavra também nos diz que este ato histórico amparou-se no decreto eterno, livre, soberano e bondoso de Deus: “Nos predesti­nou para ele, para adoção de filhos, por meio de Jesus Cristo, se­gundo o beneplácito de sua vontade” (Ef 1.5).

Portanto, quando falamos de nossa filiação, devemos ter em mente que ela é um dom de Deus; “é o próprio Deus agindo gracio­

177 João Calvino, Efésías (E f 1.8), p. 30.

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III - A Paternidade de Deus 133

samente em nosso favor”.378 Portanto, a adoção é, possivelmente, o maior de todos os dons da graça.379

O Catecismo de Heidelberg (1563), à pergunta 33 - “P or que é ele chamado Filho UNIGÉNITO DE DEUS, se nós também somos filhos de Deus?” - responde:

“Porque só Cristo é o Filho eterno de Deus, ao passo que nós, por suacausa, e pela graça, somos recebidos como filhos de Deus.”

4.1.2. Resultado de Seu Amor Eterno

Nossa filiação revela parte do amor inefável e eterno de Deus; ao considerarmos a graça da adoção, vemos nesta doutrina estam­pado o amor invencível de Deus que nos tira da condenação do pecado para sua herança eterna. “Vede que grande amor nos tem concedido o Pai, ao ponto de sermos chamados filhos de Deus; e, de fato, somos filhos de Deus...” (lJo 3.1). “O amor transcende a todos os outros dons em duração, pois todos os dons um dia cessa­rão, mas o amor é eterno”380

4.2. Critérios para Nossa Filiação

4.2.1. Nascer de Novo

A Palavra de Deus nos diz que os filhos de Deus são gerados outra vez, são nascidos do Espírito Santo.

O Espírito é o doador da vida (Rm 8.2). Através do Espírito fomos recriados para que possamos responder com fé à Palavra rei- vindicatória de Deus (Jo 3.5, 6, 8; Tt 3.5). A regeneração antecede a fé: Antes, estávamos mortos, portanto incapazes de atender às reivindicações de Cristo e de ver o glorioso reino de Deus.381 É o

378 John R.W. Stott, A Cruz de Cristo, p. 95.379 Vd. J.I. Packer, O Conhecimento de Deus, p. 197.380 Herraan Bavinck, O ur Reasonable Faith, 4" ed. Grand Rapids, M ichigan, Baker Book

House, 1984, p. 394.3810 hom em não regenerado pode até achar interessante o evangelho e tentar mudar seu

comportamento; todavia, isto não resolve a questão: “a razão e a consciência podem levar um homem a mudar de conduta, mas não podem levá-lo a mudar de coração” [Charles Hodge, O Cam inho da Vida, New York, Sociedade Americana de Tractados (s.d.), p. 280],

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134 EU CREIO.

Espírito que nos capacita a receber a graça,382 iniciando uma nova vida em nossos corações, na qual temos nossos olhos abertos e os corações voltados para a Palavra de Deus. Antes amávamos o peca­do; agora agrada-nos fazer a vontade de Deus (SI 119.16, 77, 97- 105; lJo 5.1-5). O Espírito infunde em nós uma nova disposição que nos conduz em direção à vontade de Deus, em uma santa e prazerosa obediência.383

Jesus Cristo ensina: “Em verdade, em verdade te digo que, se alguém não nascer de novo, não pode ver o reino de Deus (...). Quem não nascer da água e do Espírito, não pode entrar no reino de Deus” (Jo 3.3-5).

Do mesmo modo, Paulo: “... Segundo sua misericórdia, ele nos salvou mediante o lavar regenerador e renovador do Espírito San­to, que ele derramou sobre nós ricamente, por meio de Jesus Cristo nosso Salvador, a fim de que, justificados por graça, nos tornemos seus herdeiros, segundo a esperança da vida eterna” (Tt 3.5-7).

Resumindo: Os filhos de Deus procedem de Deus: São gerados por ele mesmo, e por isso volvem a Deus com fé (Jo 1.12-13).

4.2.2. Receber a Cristo

Nossa filiação está condicionada à recepção de Cristo como nosso Salvador, tornando-nos assim seus irmãos. Ninguém pode ter Deus como Pai sem ter Cristo como Salvador pessoal. João relata: “Veio para o que era seu, e os seus não o receberam. Mas a todos quantos o receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus; a saber, aos que crêem em seu nome” (Jo 1.11-12).

4.2.3. Fé em Jesus Cristo

Receber a Cristo significa confiar unicamente nele para a acei-Vd. R.C. Sproul, O M inistério do Espírito Santo, São Paulo, Editora Cultura Cristã, 1997, p. 93ss.

382 Confissão de W estminster, X.2.383 regeneração consiste na implantação do princípio da nova vida espiritual no ho­

mem, numa radical mudança da disposição dominante da alma, que, sob a influência do Espírito Santo, dá nascimento a uma vida que se m ove em direção a D eus” (L. Berkhof, Teologia Sistem ática, p. 470).

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III - A Paternidade de Deus 135

tação diante de Deus; confiar somente em seus merecimentos para a salvação; lançar-se, sem reservas, confiadamente em sua Palavra de vida. É neste sentido que Paulo escreve: “Pois todos vós sois filhos de Deus mediante a fé em Cristo Jesus” (G1 3.26).

4.3. Evidências de Nossa Filiação

4.3.1. Guiados pelo Espírito

Os filhos de Deus são aqueles que procuram sempre a orienta­ção de Deus para sua vida, seus planos e decisões. Em nossa sub­missão a Deus, pelo Espírito, revelamos nossa filiação divina. Pau­lo retrata: “Pois todos os que são guiados pelo Espírito de Deus são filhos de Deus” (Rm 8.14).

E é este mesmo Espírito que nos conduz à conformidade da imagem de Cristo, que é nosso modelo por excelência, a meta defi­nitiva de todo o povo de Deus. “Aos que de antemão conheceu, também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Fi­lho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos” (Rm8.29). Este é o sentido de santidade! “Santificação significa sermos feitos semelhantes ao Senhor Jesus Cristo, e portanto todos os que estão sendo santificados devem ter uma similaridade fundamental, pois todos estão se tornando cada vez mais semelhantes a ele.”384

Cristo nos libertou da condenação eterna, do pecado e do domí­nio de Satanás para si mesmo. Ele nos libertou daquilo que nos era acidental para que sejamos aquilo que de fato somos, a imagem de Deus; em Cristo temos o verdadeiro sentido de nossa existência; vivemos agora pela vida de Cristo, sob a direção do Espírito Santo (Jo 3.3; 10.10; At 10.18, 19; 20.22-24; 2Co 5.15-17; Fp 3.7-8; Cl3.1-3).

4.3.2. O Testemunho Interno do Espírito

O Espírito Santo, que habita em nós e nos guia, dá testemunho em nossos corações, através da Palavra de Deus, que somos filhos

,84 David M. Lloyd-Jones, A Unidade Cristã, São Paulo, PES, 1994, pp. 59-60.

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136 EU CREIO.

de Deus. Este testemunho se constitui num grande conforto para cada um de nós; Deus mesmo em Pessoa nos garante nossa filiação, nos concedendo esta certeza de que lhe pertencemos. “O próprio Espírito testifica com o nosso espírito que somos filhos de D eus” (Rm 8.16). O filho de Deus tem, pelo Espírito, esta convicção: sou filho de Deus!.

4.3.3. Fruto do Espírito

Se o Espírito do Pai e do Filho (Mt 10.20; G14.6) habita em nós, os frutos de sua presença e direção devem evidenciar-se em nossa vida. O fruto do Espírito é o grande atestado de nossa filiação divi­na e de nossa santificação progressiva.385 Paulo assim descreve este fruto: “... amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bonda­de, fidelidade, mansidão, domínio próprio” (G1 5.22, 23; Mt 5.9; U o 3.10).

4.3.4. Obediência

Jesus Cristo diz que aqueles, e somente aqueles, que obedecem ao Pai são seus irmãos, portanto somente eles são filhos de Deus: “Qualquer que fizer a vontade de meu Pai celeste, esse é meu ir­mão, irmã e mãe” (Mt 12.50).

4.3.5. Comunhão Integral

Os filhos de Deus têm obviamente a Deus como Pai, a Jesus Cristo seu irmão primogênito (Rm 8.29), e também a todos aqueles que crêem em Cristo como irmãos na fé. Os filhos de Deus, na consciência de sua irmandade, procuram sempre a comunhão fra­terna, na verdade de Cristo, considerando que todos os que crêem têm somente um Pai: “O que temos visto e ouvido anunciamos tam­bém a vós outros, para que vós igualmente mantenhais comunhão conosco. Ora, nossa comunhão é com o Pai e com seu Filho Jesus Cristo” (lJo 1.3).

Daí todo o esforço da Igreja em preservar esta unidade fraterna,

185 Vd. R.C. Sproul, O M inistério do E spírito Santo, p. 163ss.

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III - A Paternidade de Deus 137

que é produzida pelo Espírito, mas que, concomitantemente, é exer­citada e desenvolvida por todos nós (Ef 4.3, 5, 6, 11-16).

4.3.6. O Exercício da Disciplina de Deus

Os filhos de Deus, quando pecam, são disciplinados pelo pró­prio Deus, que assim age para que abandonem, arrependidos, sua prática pecaminosa e se voltem para ele, a fim de que se tornem “participantes de sua santidade” (Hb 12.10).

A disciplina de Deus é sempre pedagógica, nunca vingativa; nela está embutida a idéia de recuperação, de restauração do filho amado. Deus visa a nos conduzir ao crescimento, ao amadureci­mento espiritual, à santidade. A disciplina revela o amor de Deus Pai para com seus filhos. O salmista, fazendo um retrospecto de sua vida, pôde, pelo Espírito, reconhecer: “Foi-me bom ter eu passado pela aflição, para que aprendesse teus decretos” (SI 119.71). Do mesmo modo Ezequias, após ter se restabelecido de sua doença mortal: “Eis que fo i para minha paz que tive eu grande amargura; tu, porém, amaste minha alma e a livraste da cova da corrupção, porque lançaste para trás de ti todos meus pecados” (Is 38.17; vd. Hb 12.4-10).

Calvino, comentando o Salmo 6, quando Davi expressa sua dor e angústia, extrai a seguinte lição para todos nós:

“E como sabemos que o propósito de Deus, ao infligir-nos algum castigo, consiste em humilhar-nos, então, quando somos reprimidos sob sua vara, a porta se abre para que sua misericórdia nos alcance. Além disso, visto que sua peculiar função é curar os enfermos, erguer os caídos, amparar os fra­cos e, finalmente, comunicar vida aos mortos, esta, por si só, é uma razão suficiente para buscarmos seu favor quando nos acharmos mergulhados em nossas aflições.”386

4.4. A Responsabilidade dos Filhos

De certa forma, o que foi apresentado nas evidências se consti­tui em nossa responsabilidade; todavia, fiz esta distinção para enfa-

386 João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1 (SI 6.2), p. 126.

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138 EU CREIO.

tizar o que a Palavra nos fala sobre qual deve ser a conduta dos filhos de Deus. Nós, como filhos de Deus, temos a responsabilidade de viver à altura de tamanha dignidade. Calvino (1509-1564) corre­tamente diz: “Portanto, visto que Deus se há revelado a si mesmo como um Pai, se não nos comportarmos como seus filhos somos culpáveis da ingratidão mais desprezível.387 Paulo chama a atenção para esta responsabilidade em diversas ocasiões: “Vivei, acima de tudo, por modo digno do evangelho de Cristo" (Fp 1.27); “A fim de viverdes de modo digno do Senhor, para seu inteiro agrado" (Cl 1.10); “Exortamos, consolamos e admoestamos, para viverdes por modo digno de Deus, que vos chama para seu reino de glória" (ITs 2.12; vd. Ef 4.1; 5.8).

Os filhos de Deus são vocacionados a dar testemunho do poder de Deus em sua vida, sendo, dessa forma, um monumento vivo e histórico da graça de Deus.

Jesus Cristo indicou nossa responsabilidade, quando disse: “Vós sois a luz do mundo. (...) Assim brilhe também vossa luz diante dos homens, para que vejam vossas boas obras e glorifiquem a vosso Pai que está nos céus" (Mt 5.14, 16). Usando de uma figura seme­lhante, Paulo escreve: “Fazei tudo sem murmurações nem conten­das, para que vos torneis irrepreensíveis e sinceros, filhos de Deus inculpáveis no meio de uma geração pervertida e corrupta, na qual resplandeceis como luzeiros no mundo” (Fp 2.14, 15).

Neste texto, para descrever a meta comportamental do cristão, que já é filho de Deus (regeneração), mas que caminha em sua fili­ação (santificação), Paulo faz uso de três palavras:

a) Irrepreensível: (ájie|i.Tixoç)388 inculpável, inatacável. Quan­do a palavra se aplica a pessoas, tem em geral o sentido de “pureza moral”, inculpabilidade diante da léi (Lc 1.6; Fp 3.6). Portanto, esta palavra descreve a postura do cristão no mundo. Ele deve estar aci­ma de qualquer suspeita; ninguém tem de que o acusar.

387 John Calvin, G olden B ooklet o f the True Christian Life, 6“ ed. Grand Rapids, M ichi­gan, Baker B ook House, 1977, p. 15.

388 *Lc 1.6; Fp 2.15; 3.6; ITs 3.13; Hb 8.7.

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til - A Paternidade de Deus 139

b) Sincero: (àKépaioç)389 puro, sem mistura, sem mescla, não adulterado, íntegro. A palavra é aplicada ao leite que não é mistura­do com água e também à pureza do metal. Descreve o que o cristão deve ser em si mesmo: puro, sincero, sem dissimulação, sem se­gundas intenções.

Jesus Cristo e o apóstolo Paulo recomendam que assim seja­mos: “Eis que vos envio como ovelhas para o meio de lobos; sede, portanto, prudentes como as serpentes e símplices (àKépaioç) como as pombas" (Mt 10.16). “Pois a vossa obediência é conhecida por todos; por isso me alegro a vosso respeito; e quero que sejais sábi­os para o bem e símplices (àKépaioç) para o mal” (Rm 16.19).

A sabedoria cristã dos filhos de Deus se revela em seu uso para o bem; a sabedoria que procede de Deus (Tg 1.17) não é empregada para o mal, para destruir ou satisfazer nossos desejos egoístas.

Deus, descrevendo a insensibilidade espiritual de Judá, diz: “...meu povo está louco, já não me conhece; são filhos néscios, e não entendidos; são sábios para o mal, e não sabem fazer o bem” (Jr 4.22). A sabedoria cristã é o oposto disso; ela se dispõe a ajudar, socorrer, edificar. Seu planejamento é para o bem, nunca para o mal. Judá estava tão distante de Deus que desaprendera a fazer o bem, seus pensamentos eram ligeiros, ágeis para o mal. No entanto, o desafio de Deus para nós é que nos exercitemos na prática do bem... E quanto ao mal? Que sejamos puros quanto a ele, não tendo idéias para executá-lo... No entanto, quando nos desafiarem a fazer o bem, que sejamos argutos, prontos, tendo uma visão perspicaz e penetrante. Portanto, devemos utilizar a inteligência que Deus nos deu para edificar, construir, socorrer, nunca para destruir, lucrar desonestamente: isto seria esperteza, que nada tem a ver com o cris­tianismo e a pureza que deve caracterizar os filhos de Deus.

c) Inculpável: (ôqxco|a.oç)390 sem mancha, imaculado, sem nó­doa, inocente. A palavra era empregada para indicar os animais usa­

38‘J *Mt 10.16; Rm 16.19; Fp 2.15.,IXI E f 1.4; 5 .27 [Fp 2.15. Aqui há uma variante textual, que indica um sinônim o, óqiwiLiniá

(am ôm êta), talvez por seguir a LXX, Dt 32.5]; Cl 1.22; Hb 9.14; IPe 1.19; Jd 24; Ap 14.5.

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140 EU CREIO.

dos para o sacrifício; eles não podiam ter defeito. Esta palavra des­creve uma pureza ética; a idéia predominante é a ausência de qual­quer coisa que se constituiria em corrupção diante de Deus. Ela denota, portanto, o que o cristão deve ser diante de Deus.

As Escrituras declaram que foi assim que Jesus Cristo se ofere­ceu vicariamente por nós (Hb 9.14; IPe 1.19), sem mancha, sem pecado. O Cordeiro de Deus foi imolado por nós (1 Co 5.7), a fim de nos tornar sem mácula, sem ruga, sem qualquer impureza (Ef 5.25- 28), cumprindo, assim, parte do objetivo de nossa eleição eterna (Ef 1.4).391

A Igreja, como a comunidade dos filhos de Deus, é conclamada a viver de forma distinta, refletindo no meio de uma geração per­vertida e alienada de Deus a glória de seu Senhor (Mt 5.14-16; Jo 17.10; 2Ts 1.10-12; Dt 32.5).

Devemos empenhar-nos por sermos achados por Cristo assim: “... Aquele que é poderoso para vos guardar de tropeços e para vos apresentar com exultação, imaculados (á|J,co|J.oç) diante de sua gló­ria” (Jd 24).

Deus, ele mesmo, nos preserva intocáveis, para que possamos ser apresentados diante do Senhor Jesus, na manifestação de sua glória. Ninguém tem de que nos acusar; fomos justificados por Cristo (Rm 8.31, 33).

4.5. A Herança dos Filhos

A herança que os pais deixam para seus filhos, muitas vezes longe de servir de bênção, torna-se uma maldição, por causa do egoísmo dos filhos e de outros envolvidos. Se o pai for muito rico, o risco, via de regra, é ainda maior...

Naturalmente, quando pensamos ou falamos em herança, nos referimos a bens materiais; no entanto, as Escrituras, sem desprezar este aspecto, conduz nosso olhar para algo mais importante e nem

351 Vd. Hermisten M.P. Costa, A E leição de Deus, São Paulo, 2000 (Trabalho não publi­cado).

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III - A Paternidade de Deus 141

sempre prontamente perceptível. A Palavra nos diz que, como fi­lhos de Deus, somos seus herdeiros. Acontece que a herança que Deus garante a seus filhos não é constituída simplesmente de bens materiais, mas dele mesmo: Deus é a nossa herança! A oração do Pai Nosso é feita por todos aqueles que têm a Deus por herança.

Ilustremos isto. O período em que Davi fugia de Saul, que que­ria matá-lo, foi muito profícuo em sua vida; ele pôde amadurecer em todos os sentidos, e dessa fase da sua vida temos alguns salmos magistrais. O Salmo 16, de sua autoria (At 2.25; At 13.35-37), pos­sivelmente foi escrito nesta época. Davi está então longe de seus familiares, sem terra e um foragido em seu próprio país, odiado por muitos, convivendo com homens que, pelo que parece, pouco co­nheciam a Deus.

Neste salmo, Davi escreve: “Outro bem não possuo, senão a ti somente (...). O Senhor é a porção de minha herança e de meu cálice; tu és o arrimo de minha sorte. Caem-me as divisas em luga­res amenos, é mui linda a minha herança” (SI 16.2, 4, 5)

Davi, que fora de certa forma desterrado, declara ter Deus por herança. No deserto, quando poupa pela segunda vez a vida de Saul, diz a este: “... Eles me expulsaram hoje para que eu não tenha parte na herança do Senhor, como que dizendo: Vai, serve a outros deu- s e f ' (ISm 26.19).

Esta experiência não foi apenas de Davi. Na divisão das terras conquistadas, a tribo de Levi ficou sem nenhuma propriedade; as­sim registra Moisés: “Disse também o Senhor a Arão: Em sua ter­ra, herança nenhuma terás, e no meio deles nenhuma porção terás: eu sou a tua porção e a tua herança no meio dos filhos de Israel” (Nm 18.20).

O salmista Asafe exclama: “Quem mais tenho eu no céu? Não há outro em quem me compraza na terra (...). Deus é a fortaleza de meu coração e a minha herança para sempre” (SI 73.25, 26).

Ter Deus por herança é um desafio à confiança em sua provisão e cuidado, na certeza de que ele supre todas as nossas necessidades. Acontece que nem sempre a manifestação do amparo de Deus é

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142 EU CREIO.

imediata aos nossos olhos, e também não conseguimos entender tudo; por isso, há aqui um desafio à nossa perseverante confiança no amparo de Deus. Jeremias, após a destruição de Jerusalém e conseqüente cativeiro de Judá, escreve: “A minha porção é o Senhor, diz minha alma; portanto esperarei nele. Bom é o Senhor para os que esperam por ele, para a alma que o busca. Bom é aguardar a salva­ção do Senhor, e isso em silêncio” (Lm 3.24-26; SI 62.1-2).

Ter Deus por herança é, também, um desafio à obediência à P alavra: O salmista escreve: “O Senhor é a minha porção: eu disse que guardaria tuas palavras. Imploro de todo o coração a tua gra­ça; compadece-te de mim, segundo a tua palavra” (SI 119.57-58). Outra vez: “Teus testemunhos recebi-os por legado perpétuo, p o r­que me constituem o prazer do coração. Induzo ("1ft1?, Lmd, “edu­car”, “ensinar”) o coração a guardar teus decretos para sempre, até o fim. Aborreço a duplicidade, porém amo tua Lei” (SI 119.111- 113). Portanto, devemos preservar nosso coração constantemente em obediência a Deus.392

A Palavra de Deus nos mostra que Deus é o Senhor de todas as coisas e que Jesus Cristo, seu Filho eterno, é o herdeiro de tudo (Hb1.2). As Escrituras também declaram que somos co-herdeiros com Cristo (Rm 8.17). A Igreja de Deus é constituída somente por seus filhos, por isso ela tem a glória eterna como herança indestrutível e incomparável, embora não nos seja perceptível em toda sua glorio­sa extensão. “Porque para mim - escreve Paulo - tenho por certo que os sofrimentos do tempo presente não são para comparar com a glória por vir a ser revelada em nós” (Rm 8.18; vd. ICo 2.9).

Somente os filhos de Deus participarão da presença gloriosa e eterna de Deus! A comunhão eterna com Deus é a nossa maior he­rança: “ Vede que grande amor nos tem concedido o Pai, ao ponto de sermos chamados filhos de Deus; e, de fato, somos filhos de Deus. Por essa raz,ão o mundo não nos conhece, porquanto não o conheceu a ele mesmo. Amados, agora somos filhos de Deus, e ain­

3,2 Vd. J.I. Packer, O que é santidade e por que ela é importante?: In: Bruce H. W ilkinson, ed. ger. Vitória sobre a Tentação, pp. 31-32.

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Ill - A Paternidade de Deus 143

da não se manifestou o que havemos de ser. Sabemos que, quando ele se manifestar, seremos semelhantes a ele, porque havemos de vê-lo como ele é” (lJo 3.1-2). “Unicamente aquele que recebeu o verdadeiro conhecimento de Deus por meio da Palavra do evange­lho pode chegar a ter comunhão com Cristo”, conclui Calvino.393

Deus, como herança, é a garantia de nossa ressurreição final e vida eterna em sua presença (SI 16.9-11).

A Palavra de modo surpreendente nos mostra que aqueles que têm a Deus por herança são herança de Deus; em outras palavras, Deus tem sua Igreja como seu povo peculiar e especial; por isso, ninguém pode nos abater ou destruir; somos o povo escolhido de Deus, somos sua herança eterna, conquistada por Cristo Jesus. Daí Davi clamar: “Salva teu povo, e abençoa tua herança; apascenta- os, exalta-os para sempre” (SI 28.9). Do mesmo modo o salmista: “...O Senhor não há de rejeitar seu povo, nem desamparar sua he­rança" (SI 94.14). Portanto, o salmista pode declarar de forma con­fiante: “Feliz é a nação cujo Deus é o Senhor, e o povo que ele escolheu para sua herança” (SI 33.12).394

Ter Deus como Pai significa tê-lo como herança e ser ao mes­mo tempo a herança de Deus, porque Deus nos predestinou para si mesmo, a fim de que nos tornássemos seus filhos, “para louvor da glória de sua graça que ele nos concedeu gratuitamente no Amado, no qual temos a redenção, pelo seu sangue, a remissão dos peca­dos, segundo a riqueza de sua graça...” (Ef 1.6-7). Portanto, não podemos fazer esta oração sem sermos tomados de uma profunda gratidão para com Deus e um sincero louvor à sua graça que, sem que nada merecêssemos, nos tornou filhos, herdeiros e herança de Deus para sempre.

m John Calvin, Golden B ooklet o f the True Christian Life, p .16.5,4 Sobre Israel com o herança de Deus, vd. lS m 10.1 ; 2Sm 21.14; SI 33.12; 74.2; 78.62;

94.5, 14; 106.40; Is 19.25; 47.6; 63.17; Jr 12.14; J1 2.17; 3.2. Deus disciplina a sua herança: Jr 12.7-9; J1 2.17; os filhos com o herança do Senhor: SI 127.3; herança dada por Deus: SI 135.12; 136.21-22; Jr 3.18; proteção: ls 54.17; 58.14.

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IM PLICAÇÕES DOUTRINÁRIAS E PRÁTICAS

1) Deus é o Pai do povo formado e escolhido por ele mesmo;2) Nossa filiação divina é uma questão da livre, soberana e mis­

teriosa graça de D eus;3) A fé como critério básico para nossa filiação é um dom da

graça (Ef 2.8);4) A paternidade de Deus envolve seu cuidado providente para

com seu povo (Rm 8.31-39);5) Nossa filiação implica em nossa responsabilidade de viver de

modo digno de nosso Senhor e Pai.

144 EU CREIO...

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IV - O PODER SOBERANO DE DEUS----------------------------------------- < ^ f § ^ — ----------------------------------

"Deus é independente de tudo e de todos. Ele age de acordo com sua própria vontade. Quando ele diz: 'Eu farei', o oue oyer Que diga será feito. Deus é sobe­rano, e sua vontade, não a vontade do homem, será feita.” - C.H. Spurgeon, Sermões Sobre a Salvação, São Paulo, PES, 1992, pp. 42-43.

IN TRO D U ÇÃO

C reio em Deus Pai Todo-Poderoso...”. Esta tem sido a declara­ção feita pelos cristãos desde o século II, através do Credo Apos­tólico. A Igreja, amparada nas Escrituras, tem afirmado sua fé no

Deus “Todo-Poderoso”, Senhor de todas as coisas e que, ao mesmo tempo, é nosso Pai bondoso...

A palavra “poder” provém do latim vulgar “potere”, que signi­fica “ter a faculdade de”. A palavra latina traduz o grego (8úva- |xiç), de onde vem “dínamo”, “dinâmica” etc. “A úvajiiç” traduz: “poder”, “força”, “potência”. A idéia da palavra grega é a de um poder ativo, revelado, manifesto. No entanto, por questões etimoló­gicas e filosóficas, “poder” é muitas vezes identificado com “p o ­tência”, que vem do latim “potentia” = “poder”, “autoridade”, “vi­gor”. Esta discussão não tem maior relevância em nosso estudo, todavia indico o conceito que sigo, de que as palavras são usadas distintamente. Em nossa compreensão, o “poder” pressupõe a “po­tência”, e esta se manifesta no “poder”. O movimento que existe abrigado na “potência” é a passagem da “potência” ao “poder” e o “poder” é a concretização da “potência”. A verdadeira “potência” pode e tem força em si para manifestar-se em “poder”, e este, por sua vez, o é de fato por ter “potência”. Todavia, a passagem da

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146 EU CREIO.

“potência” para o “poder” é decorrente de uma necessidade interna ou externa, podendo a “potência” sofrer, em sua consecução, inter­ferências limitadoras.

Por isso, considero imprecisa a definição de poder como sendo “a capacidade de causar ou impedir mudanças”.395 Esta conceitua- ção se adequa melhor à idéia de “potência”. É no exercício da “po­tência” que temos “poder”.

Como a passagem da “potência” para o “ato” (= poder) pode sofrer distorções “imprevistas”, admitimos que somente Deus tem o domínio harmonioso e perfeito da “potência” e do “poder”; em Deus não existem impedimentos ou frustrações. Deus revela sua “Potência” conforme sua sábia, graciosa e soberana vontade. Nele, todo o potencial pode ser concretizado conforme seus santos desígnios.396 Deus é tão eterno quanto sua “potência criadora”, to­davia ele a exercitou, como e quando quis criar todas as coisas, com o poder de sua Palavra (Gn l;H b 11.3; SI 115.3). Em nosso estudo, usaremos a palavra “poder” de forma genérica, aplicando-a ao con­ceito de “potência” e ao de “poder” propriamente dito.

Deus se apresenta nas Escrituras como o Deus Todo-Poderoso (Onipotente), com capacidade para fazer todas as coisas conforme

Conforme define R ollo May, P oder e Inocência , R io de Janeiro, Artenova, 1974, p. 75. D epois desta conclusão, li José Ferrater Mora afirmando que entre os vários significa­dos de potência, destacam-se: “ 1) a potência é o poder que uma coisa tem de provocar uma mudança noutra coisa; 2) a potência é a potencialidade existente numa coisa de passar a outro estado” [J.F. Mora, D icionário de Filosofia (Edição Abreviada), Lisboa, Dom Qui- xote, 1982, "Potência”, p. 318],

D e igual modo: N icola Abbagnano, D icionário de Filosofia, São Paulo, Mestre Jou, 1982, “P otência”, p. 751. Para uma discussão histórica dos conceitos, consulte, André Lalande, Vocabulário Técnico e Crítico da Filosofia, São Paulo, Martins Fontes, 1993, "Potência”, "Ato". Uma breve, porém esclarecedora distinção entre “poder”, “potência” e “força”, encontramos em Gérard Lebrun, O Que é P oder, 3a ed. São Paulo, Brasiliense (Coleção Primeiros Passos, Vol. 24), 1981, especialm ente, pp. 10-12.

3,6 Leibniz (1646-1716), afirmou corretamente cm 1714, que “Há em D eus a Potência, origem dc tudo (...) o Conhecim ento (...) por fim a Vontade. (...) Em Deus (...) estes atribu­tos são absolutamente infinitos ou perfeitos” (G.W, Leibniz, A M onadolog ia , São Paulo, Abril Cultural (Os Pensadores, Vol. XIX), 1974, § 48 , p. 68).

“Eis a causa da existência do melhor [universo], conhecido por D eus pela sabedoria, escolhido pela sua bondade e produzido pela sua potência” (G.W. Leibniz, A M onado log ia , § 55, p. 68).

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IV - O Poder Soberano de Deus 147

sua vontade (SI 115.3; 135.6; Dn 4.35; Ef 1.11); entretanto, Deus também se mostra coerente com suas demais perfeições; ou seja, Deus exerce seu poder em harmonia com todas as perfeições de seu Ser (2Tm 2.13); ele tem total domínio sobre seu poder, não estando sob seu controle, caso contrário, Deus deixaria de ser livre. Assim, o poder de Deus se harmoniza com todo seu Ser. Por isso, a Bíblia declara que Deus não pode MENTIR (Nm 23.19; ISm 15.29; Hb6.18); NEGAR-SE (2Tm 2.13); MUDAR-SE (Tg 1.17); PECAR (Tg 1.13). Estudemos agora alguns aspectos do Poder Soberano de Deus.1. A LIBERDADE DO PODER DE DEUS

O Poder de Deus é soberanamente livre; Deus não tem primari­amente compromissos com terceiros; em outras palavras, Deus é soberano em si mesmo, a onipotência faz parte de sua essência, por isso para ele não há im possíveis; tudo o que ele deseja, pode realizar.397 No entanto, Deus não precisa exercer seu poder para ser o que é. “Deus é independente de tudo e de todos. Ele age de acordo com sua própria vontade. Quando ele diz: ‘Eu farei’, o que quer que diga será feito. Deus é soberano, e sua vontade, não a vontade do homem, será feita.”398

1.1. Liberdade de Existência: Poder de Existência

Os homens, por mais poderosos que sejam, na realidade são poderosos em decorrência de alguma posição que ocupam, das ri­quezas e/ou prestígio que possuem, do sucesso de suas realizações ou até mesmo devido à proximidade com pessoas influentes que, por sua vez, se encaixam em alguma das colocações acima.399 En­tretanto, quando a Bíblia fala do poder soberano de Deus, ela se refere não a um estado determinado por fatores externos, tais como

3,7 Stott o coloca nestes termos: A liberdade de Deus é perfeita, no sentido em que eleé livre para fazer absolutamente qualquer coisa que queira” (John Stott, Ouça o Espírito, Ouça o M undo, São Paulo, AB U Editora, 1997, p. 58).

M8C.H. Spurgeon, Serm ões Sobre a Salvação, São Paulo, PES, 1992, pp. 42-43.m T. H obbes, O Leviatã, São Paulo, Abril Cultural (Os Pensadores, Vol. XIV ), 1974,

I.x., p. 57ss., fala sobre algumas formas de poder humano.

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148 EU CREIO.

dinheiro, fama, prestígio etc., mas, sim, sua própria natureza. Deus não está simplesmente poderoso: Ele é o próprio poder. Por isso se manifesta poderosamente: “Uma vez falou Deus, duas vezes ouvi isto: Que o poder pertence a Deus” (Sl. 62.11).

Deus é tão eterno quanto seu poder; ele sempre foi e será o que é, independentemente de qualquer elemento externo a ele. Por isso é que a Bíblia não tenta explicar a existência de Deus; ela parte apenas do fato consumado de que Deus existe, manifestando seu poder em seus atos criativos (Gn 1.1).

“O poder de Deus, diz Spurgeon, é como ele mesmo, auto-exis- tente, auto-sustentado. O mais poderoso dos homens não pode acres­centar sequer uma sombra de poder ao Onipotente. Ele não se firma sobre nenhum trono reforçado; nem se apoia em nenhum braço aju- dador. Sua corte não é mantida por seus cortesãos, nem toma ele emprestado de suas criaturas seu esplendor. Ele próprio é a grande fonte central e o originador de toda energia”400 (vd. Ex 3.14; At 17.25; lTm 6.15, 16).

1.2. Liberdade de Decisão: Poder de Determinação

Pelo fato de Deus ser Todo-Poderoso, ele pode determinar li­vremente suas ações, o que de fato faz, manifestando tal poder em seus decretos.401 Deus eternamente tem diante de si uma infinidade de possibilidades de “decisões” sobre todas as coisas; entretanto, ele “decidiu”402 fazer do modo como fez por seus próprios motivos, sem que haja a possibilidade de influência de ninguém, nem de an­jos, nem de homens, visto que nenhum deles fora ainda criado, e também porque Deus não necessita de conselhos (Is 40.13, 14; Rm11.33-36). O plano de Deus é sempre o melhor, porque foi ele quem sábia e livremente o escolheu!

400C.H. Spurgeon, A pud A.W. Pink, O s Atributos de Deus, p. 48.4,11 Vd. Confissão de Westminster (1647), Capítulo III.402 R econheço que a palavra decisão não é a melhor, pois pressupõe a idéia de algo

anterior à decisão; no entanto, não disponho de outra melhor. A idéia é que eternamente D eus sempre teve diante de si as escolhas e eternamente as fez livre e soberanamente.

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IV - O Poder Soberano de Deus 149

1.3. Liberdade de Execução: Poder Executivo

Deus executa o seu plano através do seu poder, conforme a sua vontade (Mt 8.2). Não podemos marcar hora e lugar para Deus fa­zer isto ou aquilo. Deus opera como e quando quer, dentro de suas próprias deliberações. Deus age sempre conforme o seu Decreto, não dependendo de nenhum meio externo para realizá-lo, a menos que ele assim o determine. Por exemplo: Deus poderia, se quisesse, salvar a todos os homens independentemente da Palavra (Bíblia) e da fé em Cristo; entretanto, ele assim não faz; esta não é a sua forma ordinária de agir porque sábia e livremente estabeleceu o critério de salvação, que é pela graça, sempre pela graça, que opera mediante a fé através da Palavra (Rm 10.17; Ef 2.8). Deste modo, sem a graça de Deus, amparada no sacrifício de Cristo,403 ninguém será salvo!

Deus tem poder para executar toda a sua deliberação. Ele é o Todo-Poderoso (Gn 17.1) e nenhum dos seus planos pode ser frus­trado (Jó 42.2).

1.4. Liberdade de Limitação: Poder Auto-limitante

Algumas pessoas ficam desconfiadamente impressionadas pelo fato de falarmos de Deus, que é Todo-Poderoso, como sendo isto ou aquilo, fazendo e não fazendo, podendo e não podendo. O raciocí­nio de tais pessoas, que a priori pode parecer lógico, é o seguinte: Se Deus é soberano, Livre e Todo-Poderoso, ele pode muito bem, conforme sua vontade, mudar “as regras do jogo”,404 modificando as leis, seus princípios de ação, seus critérios; enfim, alterar aquilo

403 “Jesus Cristo, nosso Mediador, cumpriu de forma cabal e vicária as demandas da Lei em favor de seu povo. Se a obra de Cristo não fosse plenamente satisfeita, não haveria ‘bênção’ alguma a ser aplicada (Jo 17,4; 19.30; Hb 9.23-28; IPe 3.18)” (Hermisten M.P. Costa, Breve Teologia da Evangelização, São Paulo, PES, 1996, p. 27; vd. também: Con­fissã o de Westminster (1647), V III.1, 5, 8; C atecism o M aior de Westminster, Perguntas: 36, 37 e 59; J. Calvino, As Institutos, 11.17.1 ss.).

404 Atitude muito comum nas crianças que, quando estão perdendo o jogo , formam uma nova regra para se beneficiar, dizendo que o que antes não podia “agora pode” . D iga-se de passagem que esta atitude infelizm ente não caracteriza som ente as crianças; muitas vezes nós adultos, quando estamos investidos de alguma autoridade, som os amiúde - com uma imaturidade m aldosa - “levados” a mudar as normas e as leis, obedecendo casuísm os que, “coincidentem ente”, nos beneficiam ...

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150 EU CREIO.

que ele mesmo revelou e fez registrar em sua Palavra. Pois bem; se este poder pertencesse a um homem, deveríamos temer. A história tem demonstrado que o pensamento do Lorde Acton (1834-1902) é verdadeiro em muitos casos, visto que amiúde o poder tende a cor­romper.405

Afinal, Deus poderia ou não fazer tudo isso?! Deus estaria su­jeito à corrupção resultante do mal uso do poder? Retardemos um pouco mais a resposta.

Geralmente quem raciocina da forma apresentada acima tem em mente a ação do homem como modelo - cometendo o mesmo equívoco de muitos gregos na antigüidade406 - , tomando o homem como parâmetro para uma comparação, como se o “homem fosse a

405 A frase completa é a seguinte: “O poder tende a corromper, e o poder absoluto corrom­pe de m odo absoluto. Os grandes homens são quase sempre hom ens maus” (Lord Acton, Ensaios e Estudos H istóricos).

406 Apesar do paganismo grego da antigüidade sei' cheio de lendas c superstições, dc quando em quando alguns pensadores se levantavam contra as crenças e costum es popula­res, declarando algo de relevo. Entre os filósofos da antigüidade que souberam criticar com discernimento as práticas religiosas de seu tempo destacamos Xenófanes (c. 580-C.460 aC.), Heráclito (c. 500 aC.) e Em pédocles (c. 495-455 aC.).

Xenófanes faz uma crítica mordaz a Homero e H esiodo, dizendo:“Homero e H esiodo atribuíram aos deuses tudo o que para os homens é opróbrio e vergo­

nha: roubo, adultério e fraudes recíprocas.“Com o contavam dos deuses muitíssim as ações contrárias às leis: roubo, adultério, e

fraudes recíprocas.“M as os mortais imaginam que os deuses são engendrados, têm vestim entas, voz e forma

sem elhantes a eles.“T ivessem os bois, os cavalos e os leões m ãos, e pudessem com elas pintar e produzir

obras com o os hom ens, os cavalos pintariam figuras de deuses sem elhantes a cavalos, e os bois, sem elhantes a bois, cada (espécie animal) reproduzindo sua própria forma.

“Os etíopes dizem que seus deuses são negros e de nariz chato, os trácios dizem que têm olhos azuis e cabelos verm elhos” (Xenófanes, Fragm entos , 11-16. ln: Gerd A. Bornheim (organizador), O s Filósofos P ré-Socráticos, 3“ ed. São Paulo, Cultrix, 1977, p. 32).

Xenófanes propunha uma visão próxima ao monoteísm o ou, pelo m enos, um “politeísm o não antropomórfico” (W.K.C. Guthrie, Os Sofistas , São Paulo, Paulus, 1995, p. 211., di­zendo: “Um ünieo deus, o maior entre deuses e hom ens, nem na figura, nem no pensamento sem elhante aos mortais” (Xenófanes, Frag. 23).

H eráclito ridicularizava o antropomorfismo e a idolatria da religião contemporânea, d i­rigindo sua crítica à prática do sacrifício com o m eio de purificação, e às orações feitas às imagens: “Em vão procuram purificar-se, manchando-se com novo sangue de vítimas, com o se, sujos com lama, quisessem lavar-se com lama. E louco seria considerado se alguém o descobrisse agindo assim. Dirigem também suas orações a estátuas, com o se fosse possível

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IV - O Poder Soberano de Deus 151

medida de todas as coisas”.407 Este tipo de raciocínio encontra alen­to em Thomas Hobbes (1588-1679), que entendia que “o soberano de uma República, seja ele uma assembléia ou um homem, não está absolutamente sujeito às leis civis. Pois tendo o poder de fazer ou desfazer as leis, pode, quando lhe apraz, livrar-se desta sujeição revogando as leis que o incomodam e fazendo novas.”408 De fato, apesar desta atitude não ser apreciável em si, ela ocorre com fre­qüência, na esfera humana.

Respondo agora: Entretanto, com Deus é diferente; os homens, são tão fracos em suas condições de poderosos que não conseguem controlar seus ímpetos, por isso agem por paixões das mais varia­das, tais como: preconceito, vaidade, ódio, interesses etc. Deus, no entanto, é tão poderoso que estabelece limites para si mesmo! Por isso, quando afirmamos que Deus não mente, não se contradiz, não muda, não peca e não pode salvar fora de Jesus Cristo, não preten­demos estabelecer limites para Deus, mas, sim, reconhecer os pró­prios limites ou critérios que ele mesmo declarou a respeito de siconversar com edifícios, ignorando o que são os deuses e os heróis” (F rag ., 5; vd. também: Frag., 14). Talvez isto revele o que Heráclito diz no Fragm ento 79: “O hom em é infantil frente à divindade, assim com o a criança frente ao hom em .” Todavia devem os ressaltar que ele não era irreligioso, apenas discordava da prática religiosa que via (F r a g s 14/67).

E m p édo des fala do privilégio de se conhecer a Deus, que é um ser espiritual:“Bem-aventurado o hom em que adquiriu o tesouro da sabedoria divina; desgraçado o

que guarda uma opinião obscura sobre os deuses.“Não nos é possível colocar (a divindade) ao alcance de nossos olhos ou de apanhá-la

com as m ãos, principais caminhos pelos quais a persuasão penetra o coração do homem.“Pois seu corpo (da divindade) não é provido de cabeça humana; dois braços não se

erguem de seus ombros, nem tem pés, nem ágeis joelhos, nem partes cobertas de cabelos; é apenas um espírito; m ove-se, santo e sobre-humano, e atravessa todo o cosm os com rápidos pensam entos” (Em pédocles, Fragm entos, 132-134 ln: Ibidem., pp. 80-81).

Sobre Heráclito, Bréhier comenta: “A sabedoria de Heráclito despreza o que ao vulgo se refere: a com eçar pela religião popular, a veneração das imagens e, particularmente, os cultos m isteriosos, órficos ou dionisíacos [Frags., 5, 14, 15], com suas ignóbeis purifica­ções pelo sangue, os traficantes de mistérios, que alimentam a ignorância dos hom ens sobre o além” (É. Bréhier, H istória da Filosofia, São Paulo, M estre Jou, 1977,1/1 , p. 53).

407 O sofista grego Protágoras (c. 48 0-41 0 aC.) afirmara: “O homem é a m edida de todas as coisas, da existência das que existem e da não existência das que não existem ” (A pud Platão, Teeteto, 152a e Aristóteles, M etafísica, XI, 6. 1062). O Humanismo Renascentista tomou este dito com o lema em sua “virada antropológica”.

408T. Hobbes, A pud G. Lebrun, O Que é Poder?, 3“ ed. São Paulo, Brasiliense, 1981, p.28. Vd. também, T. Hobbes, O L eviatã, ll.x v iii, p. 11 Iss.

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152 EU CREIO.

mesmo em sua relação consigo e com o universo. Estes critérios são decorrentes de suas perfeições, pois se Deus é perfeitamente poderoso, é também perfeitamente verdadeiro, justo, fiel, sábio, amoroso, bondoso, santo. Deus é tão poderoso que trata conosco conforme as perfeições de seu Ser, e nos deu a conhecer tais perfei­ções a fim de que pudéssemos nele confiar e suas virtudes procla­mar (Ml 3.6; IPe 2.9,10). O poder de Deus está sob o controle de sua sábia e santa vontade, “Deus pode fazer tudo o que ele deseja, porém ele não deseja fazer tudo o que pode”409 (leia Ex 3.14; Nm 23.19; ISm 15.29; At 4.12; 2Tm 2.13; Hb 6.18; Tg 1.13, 17). “Deus é lei para si próprio, de modo que tudo quanto ele faz é justo.”410

Este fato nos enche de alegre confiança em Deus. H. Bavinck (1854-1921) resume bem este ponto, dizendo:

“A vontade de Deus é idêntica à sua existência, sua sabedoria, sua bon­dade e todos os seus atributos. E é por essa razão que o coração e a mente do homem podem descansar nessa vontade, porque é a vontade não da sina cega, nem da energia obscura da natureza, mas de um Deus onipoten­te e de um Pai misericordioso. Sua soberania é uma soberania de ilimitado poder, porém é também uma soberania de sabedoria e graça. Ele é Rei e Pai ao mesmo tempo.”4"

2. AAANIFESTAÇÕES DO PODER DE DEUS

Tudo que existe revela o Poder de Deus. Neste capítulo preten­demos apenas estudar algumas dessas manifestações.

2.1. Na Criação412

Jeremias escreve: “O Senhor fez a terra por seu poder; estabe­leceu o mundo por sua sabedoria, e com sua inteligência estendeu

405 A.H. Strong, System atic Theology, p. 287.4,0 A.W. Pink, O s A tributos de Deus, p. 34. Em outro livro, o m esm o autor escreve:

“Afirm am os que D eus não está sujeito a nenhuma regra ou lei fora da sua própria vontade e natureza e que D eus é a sua própria lei, não tendo qualquer obrigação de prestar contas dos seus propósitos a quem quer que seja” (A.W. Pink, Deus é Soberano, p. 21).

411 Herman Bavinck, The D octrine o f G od, p. 235.412 Sobre este tópico, vd. Hermisten M.P. Costa, A ntropologia Teológica: Uma Visão

B íblica do H om em , São Paulo, 1999, passim .

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IV - O Poder Soberano de Deus 153

os céus” (Jr 10.12). No Livro de Jó lemos: “Eis que Deus se mostra grande em seu poder!" (Jó 36.22). A criação é resultado da vontade e do poder criador de Deus, revelando aspectos da grandeza de Deus (Gn 1.1,26,27; Sl. 148.5; Is 44.24; Jr 32.17; Rm 1.20; 4.17; 2Co 4.6; Hb 11.3; Ap 4.11; este assunto será detalhado no próximo capítulo).

2.2. Nas Obras da Providência4'3

“As obras da providência de Deus são sua maneira muito santa, sábia epoderosa de preservar e governar todas as suas criaturas, e todas as açõesdelas” (Catecismo Menor de Westminster, Pergunta, 11; vd .Sl 104.24; 145.17;M t 10.29-30; Hb 1.3).

Entendemos que as obras da Providência consistem na execu­ção temporal dos decretos eternos de Deus. No Catecismo M aior de Westminster (1647) temos a pergunta 14: “Como executa Deus seus decretos?” Responde: “Deus executa seus decretos nas obras da criação e da providência, segundo sua presciência infalível e o livre e imutável conselho de sua vontade”414 (vd. Dn 4.35; Ef 1.11; IPe 1.1,2).

Deus preserva o mundo, governando-o através das leis que ele mesmo criou, caminhando assim para a realização de seu propósito eterno. O governo de Deus é uma manifestação de seu poder (Sl 65.5-8; 66.7; 103.19; Hb 1.3).415

Para o povo judeu, a grande demonstração histórica do poder de Deus deu-se em sua libertação do cativeiro egípcio (Ex 15.6; Dt 5.15; Sl 106.8).

2.3. No Controle de Satanás e Seus Anjos

A Bíblia nos ensina que os anjos bons estão a serviço de Deus,413 Sobre este tópico, vd. Hermisten M.P. Costa, A P rovidência de Deus: G overno ou

Fatalism o?, São Paulo, 2001. Agostinho (354-430), depois de convertido, narrando as ora­ções piedosas e intercessórias de sua mãe - M ônica - , escreveu: “O bondosa Onipotência que olhais por cada um de nós com o se dum só cuidásseis, velando por todos com o por cada um !” (Agostinho, Confissões, 11.11. p. 67).

414 Vd. A gostinho, A Trindade, III.4.9.415 Vd. João Calvino, O Livro dos Salm os, Vol. 2 (Sl 46 .7 ), pp. 335-336.

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154 EU CREIO.

em favor dos eleitos (Hb 1.14); são estes os anjos eleitos (lTm 5.21). A Palavra também nos ensina que Satanás que é o chefe dos anjos caídos (Mt 9.34; 10.25; 12.22-27); além de acusar os eleitos (Jó 1.18-21; Ap 12.9,10), tenta destruir, como se fosse possível, a obra de Cristo (Mt 4.1-11; Lc 4.13; Mt 13.24-30, 36-43; Mt 16.21-23; 2Co 4.1-6; 11.4). Entretanto, a Bíblia declara de forma inequívoca que Satanás nada pode fazer sem a prévia permissão de Deus; por isso Deus delimitou seu raio de ação (Jó 1.12; Mc 5.7-13). Jesus Cristo tem todo o poder (Mt 28.18; A p 4 .1 0 ,11). “Cristo já derrotou Satanás uma vez para sempre, mas ele está sempre pronto para re­novar a batalha”, conclui Calvino.416

Calvino (1509-1564) em outros lugares escreveu sobre isso com sua costumeira fidelidade bíblica:

“É evidente que Satanás está sujeito ao poder de Deus, e é de tal manei­ra governado por sua vontade, que se vê obrigado a obedecer-lhe e a cum ­prir o que lhe m anda.”417

“Satanás com toda sua fúria e com suas forças se vê reprimido por seu m andato [mandato de Deus], como o cavalo pelo freio, e tudo quanto poderia impedir nosso bem e salvação depende de seu arbítrio e vontade [de D eus].”418

“Satanás mesmo, que opera interiormente com seu poder compelidor, é ministro de Deus, de tal maneira que ele só age em obediência à ordem divina.”419

“Por isso afirmamos que os fiéis nunca, jamais poderão ser vencidos nem oprimidos por ele [Satanás].”420

Desse fato, Calvino faz uma observação que serve de conforto para todos nós. Ele pergunta: “Como é possível temermos quando o Deus que nos cobre com a sombra de suas asas é o mesmo que

416 J. Calvino, E xposição de Rom anos (16.20), p. 519.417 J. Calvino, As Instituías, 1.14.17. Vd. também: Idem, A.f Instituías, 1.18.1; Idem, Cal­

vino, Exposição de Rom anos (1.24), p. 71; C.H. Spurgeon, Um Antídoto contra os Artifíci­os de Satanás: In: Bruce H. W ilkinson, ed. ger. Vitória sobre a Tentação, p. 186.

4I8J. Calvino, A s Instituías, 1.16.3. Vd. também: J. Calvino, A.ç Insiiiuías, 1.17.11.419 J. Calvino, Exposição de Rom anos (9 .18), p. 337.4JtlJ. Calvino, A.? Insíitutas, 1.14.18.

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IV - O Poder Soberano de Deus 155

governa o universo com um gesto seu, mantém secretas as cadeias do diabo e de todos os ímpios, e eficazmente administra os desígni­os e intrigas deles?”421

2.4. Na Vida de Jesus Cristo

2.4.1. Nascimento Virginal

O nascimento de Cristo foi uma obra sobrenatural do Espírito Santo (Lc 1.35); ele veio sobre Marta, revestindo-a com seu poder preservador.422 O Espírito “formou o corpo e dotou a alma humana de Cristo com todas as qualificações para sua obra.”423 Este é um dos mistérios insondáveis da Palavra de Deus; no entanto, é este fato - miraculoso e incompreensível às nossas mentes finitas - , que dá sentido a todo o Novo Testamento.424 O Logos eterno tomou uma natureza humana naturalmente incapaz de qualquer ação santa sem o poder do Espírito Santo; daí a necessidade da ação santificadora e preservadora do Espírito 425 Na encarnação, o Espírito preservou Jesus Cristo da mancha do pecado original que é a herança de todo ser humano, fazendo com que ele tivesse uma natureza imaculada. O Espírito conservou a santidade e a impecabilidade daquele que nasceria. Se assim não fosse, Cristo não poderia oferecer-se por seu povo, apresentando um perfeito sacrifício vicário, sem mácula e de valor eterno (2Co 5.21; Hb 7.26, 27; IPe 1.18-21; 3.18).

O Catecismo Menor de Westminster (1647) diz:“Cristo, o Filho de Deus, fez-se homem tomando um verdadeiro corpo e

uma alma racional, sendo concebido pelo poder do Espírito Santo no ven­tre da virgem Maria, nascido dela, mas sem pecado.” (Pergunta, 22).

421 J. Calvino, O Livro do Salmos, Vol. 1 (SI 62.11), p. 584.422 Vd. Sinclair Ferguson, O E spírito Santo, São Paulo, Editora os Puritanos, 2000, p.

47 ss.423 Charles Hodge, Teologia Sistem ática, São Paulo, Editora Hagnos, 2001, p. 395.424 “A Encarnação, este milagre m isterioso do coração do Cristianismo histórico, é o

ponto central do testemunho do N ovo Testamento” (Encarnação: In: J.l. Packer, Teologia C oncisa, Campinas, SP, Luz para o Caminho, 1999, p. 99).

425 Vd. Abraham Kuyper, The Work o f the H oly Spirit, p. 109.

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156 EU CREIO.

2.4.2. Ministério

Seu Ministério foi marcado por atos de poder (Lc 4.14, 36; 5.17; At 10.38; Is 61.1-3).

2.4.3. Morte

Curiosamente, o que poderia parecer um fracasso - a morte de Cristo consistiu na execução do plano eterno de Deus, através da livre responsabilidade da maldade humana (Mt 20.28; Jo 10.11, 15; At 2.22, 23; 4.27, 28; IPe 1.18-20; Ap 13.8).

2.4.4. Ressurreição

A ressurreição de Cristo se constitui no clímax da manifestação do poder de Deus nesta era (2Co 13.4; Cl 2.12; E f 1.19, 20; Fp 3.10; At 2.24; 3.15; 4.10; 5.30; Rm 10.9).

2.4.5. No Lugar Ocupado, à Destra de Deus

Jesus Cristo ocupa um lugar de honra junto ao Pai, que por seu poder o exaltou, colocando-o à sua direita (At 2.32-36; Ef 1.19-23; Fp 2.9; Hb 2.9).

Não devemos esquecer o fato de que Jesus Cristo não foi sim­plesmente um alvo especial do poder de Deus; ele, como sendo igual a Deus (Jo 1.1, 14; 10.30; Mt 28.18, 19; lJo 5.20; Fp 2.6),426 é a própria manifestação encarnada do poder de Deus (ICo 1.24; Hb1.3). Jesus Cristo é o próprio Deus encarnado!.

2.5. Na Vida dos Eleitos

2.5.1. A Salvação Eterna

Nossa salvação é decorrente primeiramente da vontade sobera­na de Deus (Mt 19.23-36; Hb 7.25; Tg 4.12). Deus age através de sua poderosa Palavra (Rm 1.16; 9.16-18; 10.17; ICo 1.18), condu­zindo-nos a Cristo (Jo 6 .44,65), confessando-o como nosso Senhor (IC o 12.3). Deus mesmo nos dá a certeza de que fomos salvos pelo

426 Consulte: Catecism o M aior de W estminster, Pergunta, 36; Confissão de Westminster, V111.2; C atecism o M enor de W estminster, Pergunta, 21.

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IV - O Poder Soberano de Deus 157

poder de sua graça (Jo 10.27-29); confirmando (Rm 16.25-27);427 selando (Ef 1.13; 4.30), edificando (At 20.32), santificando (2Ts 2.13) e preservando-nos (Jd 24, 25), até à conclusão de seu propósi­to em nós: a salvação eterna para a glória de Deus (Fp 1.6; 2Ts 1.11, 12; IPe 1.3, 5; 2Pe 1.3).

A certeza de que Deus é o Senhor da Salvação, e que a ele per­tence o poder para nos salvar conforme seu decreto eterno, deve nortear e direcionar todo nosso pensar e agir evangélicos. A salva­ção é uma prerrogativa única e exclusiva de Deus: ele tem poder e total liberdade para salvar a quem ele quiser; a Palavra diz que a salvação pertence a Deus (Hb 2.10; 5.9; Tg 4.12; Ap 7.10; 19.1). De fato, Deus é quem salva, conforme seu propósito gracioso reve­lado nas Escrituras Sagradas, preservando-nos até o fim.

2.5.2. O Fortalecimento Diário

Deus nos reveste com seu poder para que possamos viver dig­namente com toda a perseverança, longanimidade, alegria e ação de graças para sua glória (Ef 3.16; 6.10; Cl 1.11; Fp 4.13). Deus nos socorre em meio a toda sorte de tentações, nos dando poder para resistir e vencer (ICo 10.13; 2Co 12.9, 10; Hb 2.18; 4.15).

Como já mencionamos anteriormente, nosso conforto está no poder de Deus que nos preserva do poder do maligno, nosso maior inimigo.428 Todavia, o que devemos ter sempre presente em nossas mentes e corações é que nossa força está em Deus; sozinhos esta­mos perdidos: A autoconfiança espiritual é um sinal evidente de

427Calvino (1509-1564), comentando o texto de Rm 16.25, diz que Paulo ensina aqui a perseverança final. “E para que descansem (os romanos) e se apoiem neste poder, indica que e le nos fo i assegurado pelo evangelho. Por isso não só nos promete a graça presente, ou seja, atual, senão também nos dá a certeza de uma graça eterna. P ois D eus nos anuncia que não som ente é nosso Pai agora, senão para sempre, e o que é mais ainda, sua adoção sobre- passa a morte porque nos conduz à herança eterna” (J. Calvino, La E pistola D el A postol P ablo A L os Rom anos, Grand Rapids, M iehigan, Subcom ision Literatura Cristiana de la Iglesia Cristiana Reformada, 1977, p. 393).

428 “Satanás está nas mãos de Deus. Ele tem de servir a D eus eontra sua vontade. Ainda que Satanás disponha de poder, este está limitado à vontade de Deus. Isto é m otivo de consolo para o crente” (D. Bonhoeffer, Tentação, Porto Alegre, RS, Editora Metrópole, 1968, p. 64).

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158 EU CREIO.

imaturidade. Calvino (1509-1564) observou que: “Aqueles que a tal combate se preparam na confiança de si próprios não compreen­dem suficientemente com quão aguerrido e bem equipado adversá­rio se tenham de haver”.429

O poder de Deus nos preserva de cedermos à tentação, todavia não nos livra dela... “Não existe sequer um discípulo de Jesus que fique isento da prova da tentação: só a vitória é objeto da promessa. Esta sentença nos fornece mais um testemunho de que a súplica final do Pai Nosso não pede que a tentação seja poupada àquele que ora, mas que Deus o ajude a vencê-la.”430

2.5.3. As Bênçãos Cotidianas

Tudo que temos e recebemos são manifestações do poder e graça de Deus (Jo 3.27; Ef 1.3); por isso devemos usar tudo que dispomos, com toda humildade (ICo 4.7; 2Co 3.5), para serviço e glória de Deus (ICo 10.31; Cl 3.17, 23, 24). (Leia também Mt 5.45; Lc 6.35.)

2.5.4. As Baas Obras43’

Deus é quem nos capacita a fazer as boas obras. Sem ele nada podemos; somos totalmente incapazes de “frutificar”, de realizar o bem; somos inteira e absolutamente devedores ao poder gracioso de Deus (Jo 15.4-8; 2Co 3.5: Fp 2.13). Por isso nossa fé deve apoi­ar-se no poder de Deus (ICo 2.4, 5).

425 Calvino, A i Instituías, III.20.46. D e m odo sem elhante atentaram para este fato outrosautores: K. Barth (1886-1968) escreveu: “Existe um inim igo superior, inevitável, a quem c totalmente im possível resistir se Deus não vem em nosso auxílio” (Karl Barth, La O ración, Buenos Aires, La Aurora, 1968, p. 86); D .M . Lloyd-Jones (1889-1981): “...Talvez a prova cabal do poder, da autoconfiança e da habilidade do diabo se ache no fato de que ele nãohesitou em tentar e atacar até m esm o o Filho de Deus. Ele o abordou confiantemente, segu­ro de si, pois havia derrotado todos os outros” (D.M . Lloyd-Jones, O C om bale C ristão , São Paulo, P.E.S. 1991, p. 73). Em outro lugar Lloyd-Jones afirma: “O hom em que ainda nãodescobriu o poder da tentação é o mais típico novato em questões espirituais. (...) O poder do inim igo contra nós só é inferior ao poder de Deus. E le é mais poderoso que qualquer homem que jam ais viveu; e os santos do Velho Testamento caíram diante dele” (D.M . Lloyd- Jones, P or Que P rosperam os ím pios? , São Paulo, PES 1983, pp. 16-17).

430J. Jeremias, O Pai-N osso: A O ração do Senhor, São Paulo, Paulinas, 1976, p. 53.431 Sobre este tópico, consulte: Hermisten M.P. Costa, A Salvação e as Boas O bras, São

Paulo, 1990, 18.

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IV - O Poder Soberano de Deus 159

2.5.5. No Cumprimento de Suas Promessas

Como temos dito, Deus sempre realiza o seu plano; não há cir­cunstâncias que impossibilitem o cumprimento de suas promessas. Deus é o Senhor das promessas e das circunstâncias! “Porque para Deus não haverá impossíveis em todas as suas promessas” (Lc 1.37. Leia também Gn 18.14; R m 4.20, 21; Tt 1.2; IPe 3.9).

Isto traz consigo uma implicação prática referente às nossas ora­ções: A Palavra de Deus é o manual de nossas orações. Devemos ser guiados não por nossos pensamentos ou por aquilo que julga­mos deveria Deus nos conceder, mas, sim, por tudo aquilo que Deus nos promete. “As promessas de Deus contêm a matéria da oração e definem suas dimensões. Aquilo que Deus tem prometido, tudo quanto ele tem prometido, e nada mais, sobre isso podemos orar.”432

2.5.6. O Testemunho

A Missão da Igreja inspira-se e fundamenta-se no exemplo Tri- nitário. O Pai envia seu Filho (Jo 3.16), ambos enviam o Espírito à Igreja (Jo 14.26; 15.26; G14.6), habitando em nossos corações (Rm8.9-11, 14-16); e nós somos enviados pelo Filho, sendo guiados pelo Espírito de Cristo (Jo 17.18; 20.21).

A Igreja de Deus é identificada e caracterizada pela genuína pregação da Palavra. A Igreja, em sua proclamação, revela o que ela é: nós somos identificados não simplesmente pelo que dizemos a nosso respeito, mas principal e fundamentalmente pelo que reve­lamos em nossos atos. A Igreja revela-se como povo de Deus em seu testemunho a respeito de Deus e de sua glória manifestada em Cristo, bem como na declaração do pecado humano e da necessida­de de reconciliação com Deus. A Igreja não é a mensagem; antes é o meio de proclamação; todavia, neste ato de proclamação das virtu­

432 A.W. Pink, Enriquecendo-se com a B íblia, São Paulo, F iel, 1979, p. 47. Lloyd Jonesnos diz: “Nada revela tanto o caráter de nossa fé com o o que faremos depois de havermos orado. Os hom ens de fé não som ente oraram, mas esperaram respostas às suas orações. Às vezes oramos a D eus numa hora de pânico: depois, passado esse m om ento, esquecem o-nos do que pedim os. A esperança da resposta é o teste de nossa fé” (D.Martyn Lloyd-Jones, Do Temor à Fé, M iami, Vida, 1985, p. 45).

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160 EU CREIO.

des de Deus ela torna patente sua identidade divina, demonstrando o poder daquilo que ela testemunha, visto ser a Igreja o monumento da Graça e Misericórdia de Deus, constituído a partir da Palavra criadora de Deus. É justamente por isso que “a pregação é uma tarefa que somente ela pode realizar”.433

“Somente quando a Palavra de Deus é pregada, de acordo com as Escri­turas, ali é ouvida a voz do Bom Pastor, chamando suas ovelhas pelo nome (...) Q uando a Palavra não é pregada, ati Cristo não fala sua Palavra de salvação, e ali não está reunida a Igreja.”434

O Espírito capacita a Igreja a cumprir o que Jesus lhe ordenou. Isso ele faz concedendo-lhe poder (At 1.8; 4.8-13, 31). Somente o Espírito pode capacitar a Igreja a desempenhar de forma eficaz seu Ministério. O texto de At 1.8 resume bem o conteúdo do Livro de Atos:435 A Igreja testemunha no poder do Espírito de Jesus (At 16.7). “O poder do Espírito Santo é sua capacidade de ligar os homens ao Cristo ressurreto de tal maneira que sejam capacitados a represen­tá-lo. Não há nenhuma bênção mais sublime.”436 Como bem obser­va Stott, do mesmo modo que o Espírito veio sobre Jesus, equipan­do-o para seu Ministério público, o Espírito deveria vir sobre seu povo, capacitando-o para seu serviço.437 Por isso que, “sem o poder do Espírito Santo a evangelização é impossível.”438 No Pentecoste se concretiza historicamente a capacitação da Igreja para sua mis­são no mundo; o Pentecoste revela o caráter missionário da Igreja, tornando cada crente uma testemunha de Cristo. “Pentecoste signi­fica evangelismo”.439

4,3 D.M . Martyn-Lloyd Jones, P regação e Pregadores, São Paulo, Fiel, 1984, p. 23.414 Herman Hoeksem a, Reform ed D ogm atics, 3“ ed. Grand Rapids, M ichigan, Reformed

Publishing Association, 1976, p. 621.435 Outros chamam At 1.8 de “índice” do Livro (cf. John R.W. Stott, A M ensagem de

A tos: a té os confins da terra , São Paulo, A B U , 1994, p. 42).436 Frederick D . Bruner, Teologia do E spírito Santo, p. 129.437 Vd. John R.W. Stott, A M ensagem de A tos: a té os confins da terra, p. 38.438 John R.W. Stott, C rer é tam bém Pensar, São Paulo, A B U , 1984 (2a impressão), p. 49.439R.B. Kuiper, El Cuerpo G lorioso de Cristo, Grand Rapids, M ichigan, SLC., 1985, p.

221.

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IV - O Poder Soberano de Deus 161

A Igreja é uma testemunha comissionada pelo próprio Deus, para narrar seus atos gloriosos e salvadores. A igreja é “o agente por excelência para a evangelização”.440 Assim, sua mensagem não foi recebida de terceiros, mas, sim, diretamente de Deus, através da Palavra do Espírito, registrada nas Sagradas Escrituras. A Igreja declara ao mundo, o “Evangelho do Reino”, visto e experimentado por ela em sua cotidianidade. “A Igreja e o evangelho são insepará­veis (...). A Igreja é tanto o fruto como o agente do evangelho, visto que por meio do evangelho a igreja se desenvolve e por meio desta se propaga aquele.”4410 testemunho da Igreja é resultado de uma experiência pessoal: O Espírito dá testemunho do Filho, porque ele procede do Pai e do Filho (Jo 14.26; 15.26; G1 4.6); nós damos testemunho do Pai, do Filho e do Espírito, porque os conhecemos e temos o Espírito em nós (Jo 15.26,27; 14.23; Rm 8.9). Nossa tarefa é ensinar o evangelho tal qual registrado nas Escrituras, em submis­são ao Espírito que nos dá compreensão na e através da Palavra (SI119.18).

Encontramos exemplos deste testemunho em Estêvão que falava cheio do Espírito Santo (At 6.10; 7.55); em Paulo que, após receber o Espírito no ato de sua conversão, passou a pregar que Jesus era o Filho de Deus (At 9.17-20; 13.9-12); e também em Barnabé, em seu breve, porém profícuo, ministério em Antioquia (At 11.21-25).

O poder do Espírito não significa simplesmente uma vitória so­bre as dificuldades, antes ele nos fala do triunfo, mesmo quando a derrota nos parece evidente. Assim, Estêvão testemunhou no poder do Espírito e foi apedrejado; Paulo cumpriu seu ministério sob a direção do Espírito e foi preso e martirizado. Estes exemplos, que não são isolados, nos falam de uma aparente derrota e frustração, todavia é apenas uma falsa percepção dos fatos. O poder do Espíri­to é a capacitação para levar adiante a mensagem de Cristo, mesmo que isto nos custe o mais alto preço do testemunho, que é o martí­rio. A Igreja no poder do Espírito declara solene e corajosamente:

440 R.B. Kuiper, El C uerpo G lorioso de C risto , p. 220.441 John R.W. Stott & Basil M eeking, editores, D ialogo Sobre La M ision, Grand Rapids,

M ichigan, Nueva Creación, 1988, p. 62.

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162 EU CREIO.

“Nós não podem os deixar de fa lar das coisas que vimos e ouvimos” (At 4.20). “Antes importa obedecer a Deus do que aos homens” (At5.29). “Estou pronto não só para ser preso, mas até para morrer em Jerusalém, pelo nome do Senhor Jesus” (At 21.13).

A Igreja tem com muita freqüência se distanciado daquilo que a caracteriza: a pregação da Palavra. Ela tem feito discursos políti­cos, sociais, ecológicos etc.; todavia, tem se esquecido de sua prio­ridade essencial: pregar a Palavra a fim de que os homens se arre­pendam e sejam batizados, ingressando assim na Igreja. Com isso não estamos defendendo um total distanciamento da Igreja do que ocorre na História, pelo contrário, a Igreja deve agir de forma evi­dente e efetiva na História; acontece que ela age de forma eficaz não com discursos rotineiros a respeito da pobreza, da violência e do desmatamento, mas, sim, na proclamação do evangelho de Cris­to, que é o poder de Deus para a transformação de todos os que crêem (Rm 1.16-17).442

“A Igreja declara que a relação se restabeleceu entre Deus e o homem, pela Palavra criadora de Deus. Eis uma declaração que inquieta o mundo; eis uma declaração que provoca a fúria homicida do mundo em agonia, contra a Igreja imortal, o que tantas vezes faz da testemunha, mártir; e da Revelação a João, a tela de horrores apocalípticos, onde a besta desespera- da tenta em vão destruir a Igreja. Mas a Igreja há de dar testemunho: não pode fugir à vocação de seu ser.

“A Igreja é a comunidade de seres humanos organizada pela presença permanente do Espírito Santo (...) conservada no mundo para ser teste­munha de Cristo por meio da Palavra de D eus.”443

Por isso a Igreja, como testemunha, não tem o direito nem realmente deseja optar se deve ou não dar seu testemunho, nem a quem deve testemunhar: Ela de fato não pode calar-se, do mesmo modo que não podemos deixar de respirar... A Igreja não pode deixar de dar testemunho, visto que ela “não pode fugir à vocação

442 Veja-se, Hermisten M.P. Costa, A.v Q uestões Sociais e a Teologia Contem porânea, São Paulo, 1986, p. 15.

443 Boanerges Ribeiro, O Senhor que Se Fez Servo, São Paulo, O Semeador, 1989, pp. 42-43.

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IV - O Poder Soberano de Deus 163

de seu próprio ser”444 (At 1.8; 4.8-13; 6.10; 7.55; 9.17-20; 11.21 -25;13.9-12).

Como Igreja, somos levados sob a direção do Espírito, de forma irreversível, a testemunhar sobre a realidade de Cristo e do poder de sua graça. “Viver segundo a direção do Espírito é viver na força do Espírito (...). A única maneira pela qual podemos viver pela for­ça do Espírito é mantendo comunhão com ele.”445

Desta forma, devemos ter consciência de que nosso trabalho depende inteiramente do Espírito da Graça de Deus: Sem a opera­ção do Espírito da Graça, toda nossa reflexão, todo nosso esforço, todos nossos métodos, toda nossa oratória e capacidade de persua­são serão vãos. O poder do evangelho está no conteúdo de sua men­sagem, que só é compreendido pela ação do Espírito (Hb 10.29; ICo 1.17; 2Co 2.1-5; lTs 1.5; ICo 3.1-9).

J.I. Packer nos diz isto de forma contundente:“Por mais que apresentemos o evangelho de forma elara e eonvineente,

não temos qualquer esperança de eonveneer ou converter quem quer que seja. Poderíamos o prezado leitor e eu, mediante nossas palavras mais in- tensas, quebrar o poder que Satanás exerce sobre a vida de um homem? Não. Poderíamos proporcionar vida aos espiritualmente mortos? Não. Po­deríamos nutrir a esperança de convencer os pecadores sobre a verdade do evangelho mediante as mais pacientes explicações? Não. Poderíamos es­perar levar os homens a obedecerem ao evangelho através de quaisquer palavras de exortação que porventura disséssemos? Não. N ossa maneira de evangelizar não será realista enquanto não tivermos enfrentado esse fato esmagador, permitindo que ele exerça o devido impacto sobre nós (...) Considerada como um empreendimento humano, a evangelização é uma tarefa inútil. Em princípio não pode produzir o efeito desejado. Podemos pregar, e pregar de modo claro, fluente e atrativo; podemos falar a indiví­duos da maneira mais apropriada e desafiadora; podemos organizar cultos especiais, distribuir folhetos, exibir cartazes e encher a terra de publicida­de - mas não há a mais remota esperança de que toda essa queima de esforços será capaz de conduzir qualquer alma a Deus. A não ser que al­gum outro fator interfira nessa situação, nossos próprios desempenhos, todas

444 Boanerges Ribeiro, O Senlior que Se Fez Servo, p. 43.445 A.A. Hoekema, Salvos pela G raça, São Paulo, Editora Cultura Cristã, 1997, p. 59.

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164 EU CREIO.

as atividades evangelísticas estarão condenadas de antemão ao fracasso.Esta é a verdade, nua e crua, que temos de enfrentar.”446

2.5.7. Vocação Ministerial

Primeiramente, o chamado para o ministério da Palavra não é uma questão de querer ou não querer; depende exclusivamente do poder de Deus; posteriormente, como algo natural, o homem deseja cumprir o ministério recebido, atendendo à vocação de Deus. Deus atua em nossa vontade mediante seu poder (Jr 1.5; G1 1.15; Ef 3.7; Fp 2.13).447

2.6. Nas Últimas Coisas

O poder de Deus também se manifestará de forma escatológica. Vejamos de forma esquemática alguns aspectos desta manifestação:

2.6.1. No Regresso Triunfante de Jesus Cristo

A primeira vinda de Cristo foi em humildade. Ele fez-se pobre por nós, deixando sua glória eterna para conviver conosco (Is 53.2- 3; Jo 17.5; Fp 2.7, 8; 2Co 8.9); na segunda vez, Cristo virá em poder e glória, manifestando a todos sua vitória, conquistada para seu povo, sobre Satanás, a morte e o pecado (Mt 24.30; Mc 13.26).

44f’J.I. Packer, Evangelização e Soberania de D eus , 2“ ed. São Paulo, Vida N ova, 1990, pp. 74-75. Quando evangelizam os, estam os certos do poder soberano de Deus, que age nos eleitos, criando fé, através de sua Palavra. Contudo, com o crerão e invocarão o nom e do Senhor, se não conhecerem o evangelho? (Rm 10.9-15). A Soberania de D eus é uma deter­minante da evangelização.

J.I. Packer, ressaltando a importância da convicção da Soberania de Deus no ministério evangélico, diz:

“(A) fé fervorosa na soberania absoluta de Deus (...) não só fortalece a evangelização, com o sustenta o evangelista, criando uma esperança de êxito que, de outro modo, não pode­ria ser realidade; e igualmente nos ensina a ligar a pregação à oração, tornando-nos ousados e confiantes perante os hom ens, ao m esm o tempo em que nos torna humildes e persistentes perante D eus” (J.I. Packer, Evangelização, pp. 84-85. Veja-se, também, pp. 66-67; 74-75; R.B. Kuiper, E vangelização Teocêntrica, São Paulo, PES, 1976, pp. 50-5.1 (vejam -se: Jo 15.5; 16.33; ICo 15.57-58; Fp 4.13).

447 “Entre tantos dotes preclaros com os quais Deus há exornado o gênero humano, esta prerrogativa é singular: que digna a si consagrar as bocas e línguas dos homens, para que neles faça ressoar sua própria voz” [João Calvino, A.ç Instituías, IV. 1.5], “A Deus pertence com exclusividade o governo dc sua Igreja. Portanto, a vocação não pode ser legítima a menos que proceda dele” [João Calvino, G álaías, São Paulo, Parakletos, 1998 (G1 1.1), p. 22],

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IV - O Poder Soberano de Deus 165

2.6.2. Na Ressurreição Final

Quando Cristo voltar em companhia de seus anjos e das almas dos fiéis que já tiverem morrido (Mt 16.27; 25.31; lTs 3.13; 4.14; 2Ts 1.7), ele ressuscitará em glória os que já morreram em Cristo e transformará os corpos dos que estiverem vivos. Nossos corpos se­rão os mesmos de antes, apenas com qualidades diferentes; os sal­vos terão seus corpos adaptados à bem-aventurança eterna; os ím­pios à condenação eterna (Jo 5.28-29; At 24.15; ICo 15.42-44; 51- 2; Fp 3.21). Isto se dará pelo poder de Deus! “Deus ressuscitou ao Senhor e também nos ressuscitará a nós pelo seu poder” (ICo 6.14; leia também: lJo 3.2; lTs 4.15-17; Jó 19.25).448

2.6.3. A Confissão Feita pela Igreja e pelos Anjos

A glória de Cristo será reconhecida por todos (Fp 2.11). Os an­jos e os santos cantarão a glória e o poder de Deus (Ap 4.10, 11;5.11, 12; 7.11, 12; 11.16, 17).

A salvação de sua Igreja será o troféu de sua vitória (Jo 17.10; 2Ts 1.10, 12; E f 2.4-7).

2.6.4. A Manifestação de Verdades Não Reveladas

Deus nos mostrará coisas inimagináveis e grandiosas que ultra­passam em muito aos nossos sonhos, por mais santos que eles se­jam (Dt 29.29; ICo 2.9-16; E f 3.20). Sua presente e eterna sobera­nia será então plenamente manifesta (Mt 20.30, 31; ICo 15.24-28). “O Servo que a si mesmo se humilhou perante todos se manifestará como o Rei.”449

2.6.5. O Juízo Final

Deus revelará de forma cabal seu poder na execução do Juízo Final (Rm 14.10-12; 2Co 5.10; Ap 20.11-15). Deus é Juiz de todos (Hb 12.23). Portanto, todos os homens comparecerão diante de Cristo e cada um dará contas de si mesmo; nossa responsabilidade é pes-

448 Vd. Confissão de W estminster, XXXII. 2, 3.449Herman N. Ridderbos, O Testemunho de M ateus A cerca de Jesus Cristo, Patrocínio,

MG, CE1BEL, 1980, p. 79.

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166 EU CREIO.

soai e intransferível (Mt 12.36-37; Rm 3.6; 14.10-12; 2Co 5.10; 2Tm 4.1; Jd 14-15; Ap 20.12-13). Ninguém escapará (Rm 2.3); o Juízo será extremamente meticuloso e revelador (Rm 2.16; ICo 4.5). Os eleitos serão julgados não quanto à condenação - visto que já não há condenação para os que estão em Cristo: seus pecados fo­ram perdoados (Rm 8.1, 33-34) mas o serão no que se refere ao galardão (ICo 4.5; Jo 5.24; Hb 10.30; Ap 11.18).

Todos os anjos que se rebelaram contra Deus serão condenados juntamente com seu chefe, Satanás. A rigor falando, sua condena­ção será apenas executada: Satanás já foi julgado e condenado (Mt 8.29; Jo 12.31; 16.11; ICo 6.3; 2Pe 2.4; Jd 6).450 “A revelação de Cristo também significa a revelação da justiça, tanto em seu signi­ficado redentor como retributivo.”451 (Mt 16.27; At 10.42;17.31; Rm 2.3-16; 14.10; 2Tm 4.1, 8; lP e4 .5 ; Jd 14, 15).3. ATITUDES PARA COM O DEUS SOBERANO

Depois de considerarmos o Soberano Poder de Deus, à guisa de esboço indicaremos biblicamente qual deve ser nossa atitude em relação a esta verdade bíblica, e que por certo tem sido experimen­tada por nós:

3.1. Submissão Prazerosa

Diante do poder de Deus, só nos resta a oração: “Faça-se a tua vontade, assim na terra com no céu” (Mt 6.10). Exemplos como este encontramos em Eli, diante da revelação de Deus feita a Sa­muel: “... E o Senhor; faça o que bem lhe aprouver” (ISm 3.18). Jó, depois de perder a família e os bens: “O Senhor o deu, e o Senhor o tomou; bendito seja o nome do Senhor!” (Jó 1.21).

Esta submissão prazerosa passa naturalmente pela entrega de nossos “planos” à direção de Deus, para que ele mesmo faça, refa­ça, dirija, nos guie... Tiago exorta: “Atendei agora, vós que dizeis:

450Vd. Confissão de Westminster, X X X III.1.451 Herman N. Ridderbos, El Pensam iento D el A postol P ablo, Buenos Aires, La Aurora,

1987, Vol. 2, pp. 276-277.

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IV - O Poder Soberano de Deus 167

Hoje, ou amanhã, iremos para a cidade tal, e lá passaremos um ano, e negociaremos e teremos lucros. Vós não sabeis o que suce­derá amanhã. Que é vossa vida? Sois apenas como neblina que aparece por instante e logo se dissipa. Em vez disso, devíeis dizer: Se o Senhor quiser, não só viveremos, como farem os isto ou aquilo” (Tg 4.13-15).

3.2. Alegre Confiança

A certeza da soberania absoluta de Deus deve nos encher de uma profunda alegria e confiança; nada acontece por acaso; o dese­jo de Deus é o melhor para nós. Deus concretiza seu propósito em santo amor; por isso, “sabemos que todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados segundo seu propósito” (Rm 8.28).

Quando Deus disse a Abraão que Sara teria um filho (Gn 18.14), Abraão creu, apesar de Sara ser estéril e estar demasiadamente ido­sa para gerar um filho. Como bem sabemos, Sara concebeu a Isa- que, conforme a promessa de Deus... No Novo Testamento, Paulo comentando a fé de Abraão, disse: “Não duvidou da promessa de Deus, p o r incredulidade; mas, pela fé, se fortaleceu, dando glória a Deus, estando plenamente convicto de que ele era poderoso para cumprir o que prometera” (Rm 4.20, 21).

Portanto, ainda que não entendamos clara e perfeitamente o que nos está acontecendo, o sentido dos fatos e da história, devemos sempre manter nossa confiança alicerçada no Deus Soberano, culti­vando em nosso espírito uma atitude de alegre confiança em ação de graças, como recomenda Paulo em duas ocasiões: “Dando sem ­pre graças por tudo a nosso Deus e Pai, em nome de nosso Senhor Jesus Cristo” (Ef 5.20). “Em tudo dai graças, porque esta é a von­tade de Deus em Cristo Jesus para convosco” (lTs 5.18).

Nas Escrituras há constante demonstração do poder de Deus, tendo isso um aspecto pedagógico; para que aprendamos a deposi­tar nossa confiança no Deus soberano. Calvino observa que “em virtude de nosso coração incrédulo, o mínimo perigo que ocorre no

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168 EU CREIO.

mundo influi mais em nós do que o poder de Deus. Trememos ante a mais leve tribulação, pois olvidamos ou nutrimos conceitos mui pobres acerca da onipotência divina.”452 O poder de Deus é algo concreto e real em nossa vida diária, em nosso sustento e preserva­ção. Essa compreensão de fé deve guiar nossa perspectiva da reali­dade e, conseqüentemente, nossa atuação no mundo.

3.3. Crescer Espiritualmente

Muitas pessoas estão interessadas em ver o poder de Deus em manifestações visivelmente milagrosas; querem sinais e prodígios. No entanto, a Palavra de Deus nos mostra que devemos recorrer ao poder de Deus para vencer as tentações e nos fortalecer na fé, cres­cendo espiritualmente. Assim sendo, devemos usar dos recursos que Deus nos concede a fim de que cresçamos em nossa fé, nos fortale­çamos na Palavra e na oração.

Pedro nos diz que, segundo o poder de Deus, “nos têm sido do­adas todas as coisas que conduzem à vida e à piedade, pelo conhe­cimento completo daquele que nos chamou para sua própria g ló­ria” (2Pe 1.3). Portanto, a meditação na soberania de Deus tem profundas e profícuas implicações espirituais, nos intimando a uma busca mais intensa de Deus e de sua Palavra, a nos fortalecer “na força de seu poder” (Ef 6.10; vd. Ef 3.16; Cl 1.11; Fp 4.13).

3.4. Adoração e Proclamação

A contemplação do Deus Soberano nos enche de “reverente te­mor”, nos conduzindo a adorá-lo em sua glória e proclamar sua graça e poder entre todos. Esta foi a experiência do salmista: “Can­tai ao Senhor um cântico novo, cantai ao Senhor, todas as terras. Cantai ao Senhor, bendizei o seu nome; proclamai a sua salvação, dia após dia. Anunciai entre as nações a sua glória, entre todos os povos as suas maravilhas. Porque grande é o Senhor e mui digno de ser louvado” (SI 96.1-4).

452 João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 2 (SI 68.17), p. 658.

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V - O DEUS CRIADOR------------------------ ------------------------------------------

"A aparência do céu e da terra compele até mesmo os ímpios a reconhecerem Que algum criador existe. (...) As mentes humanas são cegas a essa luz da nature­za, a Q ual resplandece em todas as coisas criadas, até Que sejam iluminadas pelo Espírito de Deus e comecem a compreender” - |oão Calvino, Exposição de He­breus (Hb I 1.3), p. 299.

"Se não chegamos até sua providência, por mais Que pareçamos não apenas com a mente compreender, mas até com a língua confessar, ainda não aprendemos corretamente Que Quer dizer isto: 'Deus é C r i a d o r ' - )oão Calvino, As Institutas, I.16.I.

IN TRO D U ÇÃO

A Bíblia parte do pressuposto da existência de Deus. “Antes que os montes nascessem e se formassem a terra e o mundo, de eternidade a eternidade tu és Deus”, escreveu Moisés (SI 90.2).

Moisés, por revelação direta de Deus, registra de forma inspirada (2Pe 1.20-21), narrando os atos criadores de Deus, sem se preocu­par em falar com mais detalhes a respeito daquele que, mediante sua Palavra, faz com que do nada surja a vida, criando o universo, estabelecendo suas leis próprias e avaliando sua criação como boa. Moisés apenas apresenta* o Deus Todo-Poderoso exercitando seu poder de forma criadora, segundo seu eterno propósito. Deus exis­te; este é o fato pressuposto em toda a narrativa da Criação. Deus cria segundo sua Palavra, e isso nos enche de admiração e reverente temor: a Palavra de Deus é o verbo criador que manifesta a determi­nação e o poder de Deus (Gn 1.1, 26, 27; SI 33.6, 9; Jo 1.1-3; Hb11.3), o qual criou as coisas com sabedoria (Pv 3.19).

O Catecismo M aior de Westminster, respondendo à pergunta -

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170 EU CREIO.

“Qual é a obra da criação?” resume: “A obra da criação é aquela pela qual, no princípio e pela palavra de seu poder, Deus fez do nada o mundo e tudo quanto nele há, para si, no espaço de seis dias, e tudo muito bom.”453 (Gn 1; Rm 11.36; Ap 4.11.)

Estudemos agora alguns aspectos da ação criadora de Deus - dedicando maior atenção ao homem como a “obra-prima” do Cria­dor - , entendendo sempre que conhecer as ações de Deus significa conhecer o próprio Deus, pois ele age sempre segundo suas perfei- ções, dando-se a conhecer - ainda que não exclusiva nem principal­mente - na Criação.1. A ORIGEM DO HOMEM SEGUN D O AS ESCRITURAS

1.1. A Narrativa Bíblica

Kuyper (1837-1920) chama nossa atenção para um ponto que costumeiramente é esquecido: “Quando Deus criou Adão, ele nos criou também. Na natureza de Adão ele produziu a natureza em que agora vivemos. Gênesis 1 e 2 não é história de estranhos, mas de nós mesmos - com respeito à carne e ao sangue que levamos conos­co, a natureza humana em que nos assentamos para ler a Palavra de Deus.”454 Portanto, tratar da criação do homem significa falar de nós mesmos, de nossa origem, de nossa história através de nossos primeiros pais. E impossível fazer isso de forma indiferente. Em seguida, Kuyper continua: “As primeiras páginas de Gênesis con­tam a história, não de um estranho, mas de nós mesmos.”455

A concepção cristã da criação do homem encontra sua base e fundamento na Palavra de Deus; por isso, é essencial à nossa consi­deração o que o Espírito Santo fez registrar no Livro de Hebreus: “Pela fé entendemos que o universo fo i form ado pela palavra de Deus, de maneira que o visível veio a existir das coisas que não aparecem” (Hb 11.3).

453 C atecism o M aior de Westminster, Perg. 15.454 Abraham Kuyper, The Work o f the H oly Spirit, Chattanooga, AM G Publishers, 1995,

pp. 34-35.455 Abraham Kuyper, The Work o f the H oly Spirit, p. 35.

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V - O Deus Criador 171

Nesta passagem bíblica subjazem algumas verdades que devem ser destacadas:

1) Deus é o Ser eterno que antecede a toda a criação;2) A fé é que deve dirigir nossa compreensão a respeito da cria­

ção. Calvino (1509-1564) conclui: “É tão-somente pela fé que che­gamos a entender que o mundo foi criado por Deus.”456

3) A criação é um ato livre da vontade soberana de Deus. Não há pressões externas ou necessidades internas que o impulsionem a criar.457 Deus fez o que fez e como fez por sua livre determinação.458 “A criação do mundo não foi um ato arbitrário, senão que serviu para fins elevados e dignos, e esses fins estiveram de acordo com a bondade e sabedoria infinitas do Criador.”459

4) Nada pode existir sem que tenha sido criado por Deus (Jo1.3); os céus e a terra são obras de Deus;

5) A Palavra de Deus é o verbo criador;6) A criação primária foi gerada do nada (creatio ex-nihilo).

Aqui temos a confissão de um mistério, não sua explicação.4607) A criação se distingue de Deus, não sendo sua extensão, mas

o resultado de sua vontade e poder.Algumas dessas verdades se depreendem também das narrati­

vas da criação registradas em Gn 1.1-2.25461 e de outros textos bí­blicos, tais como: Ne 9.6; Jó 26.7; 38.4-13; SI 33.6, 9; 90.2; 102.25;148.1-5; Pv 3.19; Is 40.26, 28; 42.5; 45.18; Jr 10.12-16; Am 4.13; Zc

456 João Calvino, Exposição de H ebreus, São Paulo, Parakletos, 1997 (Hb 11.3), p. 298. “As mentes humanas são cegas a essa luz da natureza, a qual resplandece em todas as coisas criadas, até que sejam iluminados pelo Espírito de D eus e com ecem a compreender pela fé que jam ais poderão entendê-lo de outra forma” [João Calvino, E xposição de H e­breus (Hb 11.3), p. 299],

457 Ver: J. Moltmann, Doutrina Ecológica da Criação, Petrópolis, RJ, Vozes, 1993, p, 119.

458 Ver: J. Moltmann, Doutrina E cológica da Criação, p. 126ss.451J J. Gresham M achen, El H om bre, Lima, El Estandarte de la Verdad, 1969, p. 82.460 Ver: Criação: In: J.J. Packer, Teologia Concisa, Campinas, SP, Luz para o Caminho,

1999, p. 19.461 Quanto à distinção dos nom es empregados para D eus nas primeiras narrativas de

G ênesis, vd. G leason L. Archer Jr., M erece Confiança o Antigo Testamento, São Paulo, Vida N ova, 1974, pp. 130-135, especialm ente, pp. 132-133.

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172 EU CREIO.

12.1; Mt 19.4, 5; Mc 10.6, 7; Lc 3.38; Jo 1.1-5; At 17.24; Rm 1.20, 25; 11.36; ICo 2.8, 9; Cl 1.16; lT m 2.13;H b 1.2; Ap 4.10, 11; 10.6.

As Confissões e Catecismos Reformados, sensíveis aos ensina­mentos bíblicos, pelo Espírito, confessam tal verdade:

O Catecismo de Heidelberg (1563), à pergunta 26, “Que é que crês, quando dizes: ‘Creio em Deus Pai, Todo-Poderoso, Criador do Céu e da Terra’?”, responde:

“Que o eterno Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que do nada criou o céu e a terra com tudo que neles há, que também os sustenta e governa pelo seu Filho - meu Deus e meu Pai. Confio nele tão completamente que não tenho nenhuma dúvida de que ele proverá de todas as coisas necessárias ao corpo e à alma....”

A Segunda Confissão Helvética (1562-1566), no capítulo VII, declara:

“Este Deus bom e onipotente criou todas as coisas, visíveis e invisíveis, pela sua Palavra co-eterna, e as preserva pelo seu Espírito co-eterno, como Davi testificou, quando disse: ‘O s céus por sua palavra se fizeram, e pelo sopro de sua boca o exército deles’ (SI 33.6)....”

Do mesmo modo ensina A Confissão de Westminster (1647):“Ao princípio aprouve a Deus o Pai, o Filho e o Espírito santo, para a

manifestação da glória do seu eterno poder, sabedoria e bondade, criar ou fazer do nada, no espaço de seis dias, e tudo muito bom, o mundo e tudo o que nele há, visíveis ou invisíveis” (IV I ) .462

Sabemos que a Bíblia não tem a pretensão de fazer ciência; ela não é um manual científico que pretenda ensinar-nos a respeito de Química, Física, Biologia, Botânica, Astronomia etc. Entretanto, cremos que o que ela diz no campo científico, como em qualquer outro, é a verdade do ponto de vista fenomenológico,463 não haven­

462 Vejam-se, também: Catecism o M aior de W estminster, Perg. 15; e Catecism o M enor de Westminster, Perg. 9.

463 Strong, de forma irônica, pergunta a respeito da descrição do texto de Gn 24.63: “Seria preferível, no Antigo Testamento, se o texto dissesse: ‘Quando a revolução da terra sobre o seu eixo fez com que os raios do luminário solar im pingissem horizontalmente sobre a retina, Isaque saiu para meditar’ ?” (August H. Strong, System atic Theology, p. 223)

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V - O Deus Criador 173

do divergência real entre a genuína ciência e a correta interpretação da Bíblia,464 já que Deus é o Senhor de toda a verdade. Portanto, nossa compreensão bíblica é determinada pela própria Revelação de Deus contida na Bíblia; não interpretamos a Bíblia simplesmen­te à luz da história, ou de seus condicionantes políticos, sociais, econômicos e culturais; antes, olhamos a história a partir da pers­pectiva das promessas divinas.465

Acreditamos na coerência de toda a realidade, considerando inclusive o pecado humano conforme registrado nas Escrituras; por isso, a ciência genuína nunca nos afastará de Deus, antes ela só encontrará seu sentido pleno naquele que é seu Senhor e para onde todo o real converge e encontra seu verdadeiro significado. Aliás, como bem acentuou Bavinck (1854-1921):

“Qualquer ciência, filosofia ou conhecimento que suponha poder fir­mar-se em suas próprias pressuposições, deixando Deus de fora de suas considerações, transforma-se em seu próprio opositor e desilude a todos que constroem suas expectativas nisto.”466

Portanto, nós não temos medo dos fatos, porque sabemos que os fatos são de Deus; nem temos medo de pensar porque sabemos que toda verdade é verdade de Deus. A razão corretamente conduzida e o exercício da genuína ciência não oferecem perigo à fé, antes são suas aliadas.467 Contudo, devemos estar atentos ao fato de que as Escrituras não se propõem a fazer ciência; o próprio Calvino (1509- 1564) destacou isso quando, comentando Gênesis 1.14, disse: “E necessário relembrar que Moisés não fala com agudez filosóficavcjam -se, também John H. Gerstner, A Doutrina da Igreja Sobre a Inspiração Bíblica: In: James M. B oice, ed. O A licerce da Au toridade B íb lica , São Paulo, Vida N ova 1982, pp. 26- 27; R.C. Sproul, Razão Para C rer , São Paulo, Mundo Cristão, 1986, pp. 15-25.

464 Tomás de Aquino, com acuidade, comentou: “Já que a palavra de Deus ultrapassa o entendimento, alguns acreditam que ela esteja em contradição com ele. Isto não pode ocor­rer” [Tomás de Aquino, Súmula Contra os G entios , São Paulo, Abril Cultural (O s Pensado­res, Vol. VIII), 1973, VII, p. 70]. Vd. A .A . H odge, Esboços de Theologia, Lisboa, Barata & Sanches, 1895, p. 7.

4f’5 Veja-se: D avid M. Lloyd-Jones, D o Temor à Fé, M iami, Florida, Vida, 1985, passim .466Herman Bavinck, O ur Reasonable Faith, p. 20.467 Vd. J.I. Packer, “Fundam entalism " and the Word o f God, Grand Rapids, M ichigan,

Eerdmans, 1988 (reprinted), p. 34.

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174 EU CREIO.

sobre os mistérios ocultos, porém relata aquelas coisas que em toda parte observou, e que igualmente são comuns aos homens sim­ples”.468 Ou seja, Moisés, inspirado por Deus, escreveu do ponto de vista fenomenológico, sem a preocupação - já que este não era o seu objetivo - de registrar os fatos com terminologia científica. Acrescentaríamos: Na hipótese de Moisés ter escrito conforme os padrões científicos de sua época - o que de fato não fez, sendo isto algo extremamente impressionante se considerarmos que ele teve uma formação primorosa dentro dos moldes egípcios e conseguiu romper com ela - , certamente o que disse seria ridicularizado hoje; por outro lado, se tivesse redigido o relato da Criação de forma científica absoluta, que certamente não era a dos egípcios e tam­bém não é a nossa, entenderíamos hoje o que ele teria dito? A res­posta é não; as Escrituras continuariam sendo ridicularizadas, nes­se caso simplesmente por nossa ignorância científica. A linguagem descritiva dos fatos, conforme se apresentam à nossa percepção, é o melhor modo de tornar algo compreensível a todas as épocas; as­sim, Deus se dignou fazer e o fez.

Charles Hodge (1797-1878), o grande teólogo calvinista norte- americano do século passado, escreveu:

“Ele [Deus] não ensinou astronomia ou química aos homens, porém ele deu-lhes os fatos externos sobre os quais aquelas ciências são construídas. Tampouco ensinou-nos teologia sistemática, porém ele deu-nos na Bíblia as verdades que, propriamente compreendidas e organizadas, constituem a ciência da Teologia” .469

1.2. Deus Criou o Homem Conforme o Sábio Conselho da Trindade

A Bíblia atesta que Deus faz todas as coisas conforme o conse­lho de sua vontade (Ef 1.11): conforme seu santo prazer e delibera­ção (SI 115.3;135.6). Todos os seus atos, livres como são, constitu-

468 John Calvin, Com m entaries on The F irst Book o f M oses C alled G enesis, Grand Rapi­ds, M ichigan, Baker Book H ouse, 1981 (reprinted), Vol. I (Gn 1.14), p. 84

469 Charles Hodge, System atic Theology, Grand Rapids, M ichigan, W m. Eerdmans Pu­blishing Co. 1986, Vol. I, p. 3.

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V - O Deus Criador 175

em-se em manifestações de seu soberano poder e de sua infinita sabedoria (Pv 3.19; Rm 11.33).

Jeremias escreve: “O Senhor fez a terra por seu poder; estabe­leceu o mundo por sua sabedoria, e com sua inteligência estendeu os céus” (Jr 10.12). No livro de Jó lemos: “Eis que Deus se mostra grande em seu poder!” (Jó 36.22). A criação é resultado da vontade e do poder criador de Deus, revelando aspectos da grandeza de Deus (Gn 1.1, 26, 27; Sl. 148.5; Is 44.24; Jr 32.17; Rm 1.20; 4.17; 2Co 4.6; Hb 11.3; Ap 4.11).

No relato da criação do homem encontramos o registro inspira­do: “Também disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, con­forme a nossa semelhança...” (Gn 1.26). Deus se aconselha consigo mesmo e delibera. Aqui podemos ver a singularidade da criação do homem; em nenhum outro relato encontramos esta forma relacio­nal.470 Conforme acentua Bavinck, “Ao chamar à existência as ou­tras criaturas, nós lemos simplesmente que Deus falou e essa fala de Deus trouxe-as à existência. Mas quando Deus está prestes a criar o homem, ele primeiro conferencia consigo mesmo e decide fazer o homem à sua imagem e semelhança. Isso indica que especi­almente a criação do homem repousa sobre a deliberação, sobre a sabedoria, bondade e onipotência de Deus (...) O conselho e a deci­são de Deus são mais claramente manifestos na criação do homem do que na criação de todas as outras criaturas.”471 Aqui temos o decreto trinitário que antecede o tempo, e que agora se executa his­toricamente conforme o eternamente planejado: “Façamos”. “É a Trindade quem delibera, sem qualquer intervenção ou consulta fei­ta aos anjos.”472

O “façamos” de Deus é a execução autodeliberada dele em criar o homem; desse modo, na criação em geral, e do homem em espe­cial, encontramos a concretização precisa do decreto eterno de Deus.

470 Vd. Anthony A. Hoekema, C riados à Im agem de D eus, São Paulo, Editora Cultura Cristã, 1999, p. 24.

471 Herman Bavinck, O ur Reasonable Failh, p. 184.472 Ernest F. Kevan, Gênesis: ln: F. Davidson, ed. O N ovo Com entário da Bíblia, 2" ed.

São Paulo, Vida N ova, 1976, p. 84.

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176 EU CREIO.

O homem é o produto da vontade de Deus. “Tudo quanto aprouve ao Senhor ele o fez, nos céus e na terra, no mar e em todos os abismos" (SI 135.6). Assim, o homem não foi criado por um insen­sível acaso, por uma catástrofe cósmica ou por uma complicada mistura de gases e matérias. O homem foi formado por Deus de acordo com sua sábia e soberana vontade (Gn 2.7; Rm 11.33-36). “Louvem o nome do Senhor, pois mandou ele, e foram criados” (SI 148.5).473 O poder de Deus “é a primeira coisa evidente na história da criação (Gn l . l ) .”474 E a criação do nada nos fala de seu infinito e incompreensível poder.475

Davi, contemplando a majestosa criação de Deus, escreveu: “Graças te dou, visto que por modo assombrosamente maravilhoso me form aste; as suas obras são admiráveis, e a minha alma o sabe muito bem” (SI 139.14).

Embora a Bíblia não declare o método usado por Deus, a idéia de uma evolução teísta está fora de questão. O texto de Gn 1.26, 27 implica na criação do homem, não a partir de seres criados, nem como resultado de uma suposta evolução de seres inferiores. O ver­bo XH3, usado em Gn 1.26, 27, no “Kal”, é sempre teológico, apre­sentando Deus como o sujeito da ação, que do nada, pelo seu poder, faz vir à existência algo novo, que antes não existia (cf. Gn 1.1; 2.4; SI 51 .10; 102.18; 148.5; Is 41 .20; 48 .6 -7; 65 .17 , Am 4 .13 , etc.),476contrapondo-se também aos deuses pagãos (Ez 2 8 .1 3 ,15).477

473 Com o indicativo histórico do conceito judeu referente à criação do mundo com o sendo proveniente do nada, citam os o livro apócrifo de M acabeus, que diz: “Suplico-te, meu filho, que olhes para o céu e para a terra e para todas as coisas que há neles, e que penses bem que D eus as criou do nada, assim com o a todos os hom ens” (2M ac 7.28).

474 Stephen Charnock, D iscourses Upon The Existence an d A ttribu tes o f G od, 9a ed. M ichigan, Baker B ook House, 1989, Vol. II. p. 36.

475 Cf. Stephen Charnock, D iscourses Upon The Existence and A ttribu tes o fG o d , Vol. II, p. 38.

476Cf. W illiam G esenius, H ebrew -C haldee Lexicon to the O ld Testament, 3a ed. M ichi­gan, W M. Eerdmans Publishing Co. 1978, pp. 138-139; Thomas E. M cCom iskey, !0 3 : In: R. Laird Harris, ed. T heological Wordbook o f the O ld Testament, 2” ed. Chicago, M oody Press, 1981, Vol. 1, p. 127b; H.H. Esser, Criação: In: Colin Brown, ed. ger. O N ovo D icio ­nário Internacional de Teologia do N ovo Testamento, Vol. I, p. 536; C.F. Keil & F. D elitzs­ch, C om m entary an the O ld Testament, Grand Rapids, M ichigan, Eerdmans (s.d.), Vol. 1 (Gn 1.1), p. 47; G.L. Archer Jr., M erece Confiança o Antigo Testamento, São Paulo, Vida

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V - O Deus Criador 177

O homem como criação secundária (em termos de ordem, não de importância) foi formado com maestria e habilidade478 de maté­ria previamente criada por Deus (Gn 3.19); entretanto, ele recebeu diretamente de Deus o fôlego da vida (Gn 2.7), passando ao mesmo tempo a ter uma origem terrena e celestial. “Isto nos persuade que, criação direta (imediata), o homem recebeu a impressão da ima­gem divina; que na criação as Pessoas divinas, cada uma efetuou uma obra distinta; e, finalmente, que a criação do homem com refe­rência ao seu destino se realizou pelo sopro do fôlego de Deus.”479

Agostinho (354-430), no final do 4o século (c. 395-398), extasi­ado com a criação de Deus, escreveu de modo poético:

“De que modo, porém, criastes o céu e a terra, e qual foi a m áquina de que Vos servistes para esta obra tão imensa, se não procedestes como o artífice que forma um corpo doutro corpo, impondo-lhe, segundo a con- cepção da sua mente vigorosa, a imagem que vê em si mesma, com os olhos do espírito? Donde lhe viria este poder, se Vós lhe não tivésseis cria­do a imaginação?

“O artífice impõe a forma à matéria - a qual já existia e já a continha - isto é, à terra, ou à pedra, ou à madeira ou ao ouro ou a qualquer coisa material. Mas donde proviriam estes seres, se os não tivésseis criado? (...). M as de que modo as fazeis? Com o fizestes, meu Deus, o céu e a terra? Sem dúvida, não fizestes o céu e a terra no céu ou na terra, nem no ar ou nas águas, porque também estes pertencem ao céu e à terra. Nem criastes o Universo no Universo, porque, antes de o criardes, não havia espaço, onde pudesse existir. Nem tínheis à mão matéria alguma com que modelásseis o céu e a terra. Nesse caso, donde viria essa matéria que Vós não criáreis e

N ova, 1974, p. 208; W illiam G.T. Shedd, D ogm atic Theology, 2° ed. Nashville, Thomas N elson Publishers, 1980, Vol. I, pp. 465-466; A.H . Strong, System atic Theology, pp. 374- 376; Walter C. Kaiser Jr. Teologia do Antigo Testamento, São Paulo, Vida N ova, 1980, p. 76; Millard J. Erickson, Christian Theology, 13“ ed. Grand Rapids, M ichigan, Baker B ook H ouse, 1996, p. 369. Outras características do verbo e seu emprego no AT podem ser en­contradas em W.H. Schm idt, fí"D: In: Ernst Jenni & Claus Westermann, D iccion ario Teologico M anual de i Antiguo Testamento, Madrid, Ediciones Cristiandad, 1978, Vol. I, pp. 489-490.

477 W.H. Schmidt, N12: In: Ernst Jenni & Claus Westermann, D iccion ario Teologico M anual del Antiguo Testamento, Vol. 1, p. 489.

478 Vd. Derek Kidner, G ênesis: introdução e Com entário, São Paulo, Vida Nova/M undo Cristão, 1979 (Gn 2.7), p. 57.

47il Abraham Kuyper, The Work o f the H oly Spirit, p. 37.

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178 EU CREIO.

com a qual pudésseis fabricar alguma coisa? Que criatura existe que não exija a vossa existência?

“Portanto, é necessário concluir que falastes, e os seres foram criados (SI 33.6, 9). Vós os criastes pela vossa palavra!

“Mas como é que falastes? (...). Efetivamente, qualquer que seja a subs­tância com que produzistes essa voz, de modo algum poderia existir, se a não tivésseis criado. Mas que palavra pronunciastes para dar ser à matéria com que havíeis de formar aquelas palavras?” .480

Charnock (1628-1680)481 observa que o fato da criação de Deus ter em si a capacidade de se propagar conforme a ordem divina: “Sede fecundos, multiplicai-vos e enchei as águas dos mares; e, na terra, se multipliquem as aves” (Gn 1.22) - revela o poder do Cria­dor. Deus por sua Palavra cria o mundo e, segundo o exercício deste mesmo poder, capacita suas criaturas a se propagarem, tornando “o ser humano como co-criador criado”.482

1.3. O Homem Foi Criado à Imagem e Semelhança de Deus

“ ... só o homem é imagem e semelhança de Deus, e chamo homem não ao que realiza ações semelhantes aos animais, mas àquele que, indo além da humanidade, chega até o próprio Deus.” - Taciano.483

Os seres criados por Deus (peixes, aves, animais domésticos, animais selváticos etc.) o foram conforme suas respectivas espéci­es. O homem, diferentemente, teve seu modelo no próprio Deus Criador (Gn 1.26; Ef 4.24), sendo distinto, assim, de todo o resto da criação, partilhando com Deus de uma identidade desconhecida por todas as outras criaturas, visto que somente o homem foi criado “à

480 Agostinho, Confissões, São Paulo, Abril Cultural (Os Pensadores, Vol. VI), 1973, XI.5-6. pp. 238-239.'

481 S. Charnock, D iscourses Upon The Existence an d A ttributes o f God, II, p. 47ss.482D evo esta expressão ao leólogo luterano Philip J. Hefner. No enlanto, deve-se observar

que o autor emprega a expressão numa acepção distinta da minha (vd. Philip J. Hefner, A Criação: ln: Carl E. Braaten & Robert W. Jenson, editores, D ogm ática Cristã, São Leopol­do, RS., Sinodal, 1990, Vol. 1, p. 327.

481 Taciano, D iscurso contra os Gregos, 15. In: P adres A pologistas, São Paulo, Paulus, 1995, p. 81.

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V - O Deus Criador 179

imagem e semelhança de Deus”. Somente o homem pode partilhar de um relacionamento pessoal, voluntário e consciente com Deus. Por isso, quando se trata de encontrar uma companheira para o ho­mem com a qual ele possa relacionar-se de forma pessoal - já que não se encontra em todo o resto da criação - , a solução é uma nova criação, tirada da costela de Adão e transformada por Deus em uma auxiliadora idônea, com a qual Adão se completará,484 passando a haver uma “fusão interpessoal”, “unidade essencial”, constituindo- se os dois uma só carne (Gn 2.20-24; Mc 10.8), unidos por Deus (Mt 19.6).

A constatação de Deus é que não seria bom para o homem per­manecer só. E Deus mesmo quem percebe a necessidade ainda im­perceptível ao homem. Tudo na criação era bom, exceto a solidão do homem. “Deus pôs o dedo na única deficiência existente no Pa­raíso.”485 O homem ainda não havia percebido isso; no entanto, Deus sabe que a solidão lhe fará mal. A carência vai tornar-se evidente: Deus passou diante de Adão todos os animais, para que este pudes­se nominá-los, distinguindo cada espécie. Aqui vemos de passagem a inteligência de Adão, tendo condições de discernir as espécies, exercitando sua capacidade de julgar, atribuindo nomes que, certa­mente, estavam relacionados com as características essenciais dos animais. Entre toda a criação não há uma companheira à altura do

484 “O propósito da existência do hom em com o ser criado não é ser um auxílio para a mulher no casam ento. Mas o propósito da existência da mulher com o ser criado é glorificar a D eus sendo um auxílio para o homem.

“... .A mulher deve ser, na verdade, uma auxiliadora do homem. M as deve ser auxiliadora ‘correspondente a e le ’. O todo da criação de D eus serviria de auxílio ao hom em de uma ou outra maneira. Mas em parte alguma da criação poder-se-ia achar um auxiliar ‘correspon­dente’ ao hom em (Gn 2.20). Som ente a mulher com o ser criado do hom em correspondeu a ele de tal maneira que fez dela o auxílio adequado de que ele necessitava.

“Este traço distintivo da mulher indica que ela não é menos significativa do que o homem com respeito à pessoa dela. D e maneira igual ao homem, ela traz em si mesma a imagem e sem elhança de D eus (Gn 1.27). Som ente com o igual em pessoalidade podia a mulher ‘cor­responder’ ao hom em ” (O. Palmer Robertson, C risto dos Pactos, Campinas, SP, Luz para o Cam inho, 1997, p. 69).

485 Raymond C. Ortlund, Jr., Igualdade M asculino-Fem inina e Liderança Masculina: In: John Piper & W ayne Grudem, com piladores, H om em e M ulher: seu p a p e l b íb lico no lar, na igreja e na sociedade, São José dos Campos, SP, Editora Fiel, 1996, p. 38.

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180 EU CREIO.

homem. Como ser sociável que é,486 o homem necessitará de com­partilhar conhecimentos e afetos; amar e ser amado. O homem, de fato, foi criado por Deus para viver em companhia de seus seme­lhantes, mantendo uma relação de idéias, valores e sentimentos. Ao permanecer assim, seus sentimentos mais profundos permanecerão guardados; ele não terá um ser igual com quem possa compartilhar, amar, emocionar-se, ensinar, aprender, divertir-se... No entanto, o mesmo Deus que criou o homem propõe-se a criar sua companhei­ra (Gn 2.21-22).

Deus, como uma espécie de “pai da noiva”487 (“padrinho de ca­samento”), leva-a até o noivo (Gn 2.22).488 Adão aprovou a nova criação de Deus. As primeiras palavras do homem, registradas nas Escrituras, foram: “Esta, afinal, é osso dos meus ossos e carne da minha carne; chamar-se-á varoa, porquanto do varão fo i tomada" (Gn 2.23). Agora tornou-se possível uma relação satisfatória para o homem e, ao mesmo tempo, eles poderão perpetuar-se através da procriação - como ato que reflete sua identidade de amor e comple­mento - , enchendo a terra e sujeitando-a, conforme a ordem divina (Gn 1.28). O Paraíso está pronto para expandir-se.489

Palmer Robertson comenta:“O ‘ser uma só carne’ descrito nas Escrituras não se refere simplesmente

aos vários momentos da consumação marital. Em vez disto, esta unidade

486 Ver: Aristóteles, A Ética, 1.7.6. e A P olítica , 1.1.9. D o m esm o modo, G.W. Leibniz, N ovos Ensaios, São Paulo, Abril Cultural (Os Pensadores, Vol. XIX ), 111.1.1. p. 167. C alvi- no (1509-1564) escreveu: “O homem é um animal social de natureza, conseqüentemente, propende por instinto natural a promover e conservar esta sociedade, e por isso observam os que existem na mente de todos os homens impressões universais não só de uma certa probi­dade, com o também de uma ordem civil” (João Calvino, A s Institutas, 11.2.13). Em outro lugar: “O hom em foi formado para scr um animal social” [John Calvin, Com m entaries on The F irst Book o fM o ses C a lled Genesis, Vol. 1 (Gn 2.18), p. 128],

487 Cf. Gerhard von Rad, Genesis: A Com mentary, 3a ed. (revised edition), Bllombsbury Street London, SCM Press Ltd., 1972 (Gn 2 .21-23), p. 84.

488 Cf. Gerhard von Rad, El Libro dei Genesis, Salamanca, Siguem e, 1977 (Gn 2.22), p. 101.

48‘J D iz a Confissão de Westminster: “O matrimônio foi ordenado para o auxílio mútuo de marido e mulher, para a propagação da raça humana por uma sucessão legítim a, e da Igreja por uma sem ente santa, e para evitar-se a impureza. Ref. Gn 2.18 e 9.1; Ml 2.15; ICo 7.2, 9” (C onfissão de W estminster, XX1V.2).

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V - O Deus Criador 181

descreve a condição permanente de união alcançada pelo casam ento.”490

1.4. A Criação da Mulher, a Companheira do Homem (Gn 2.18)

A mulher foi criada para ser companheira do homem. Desse modo percebe-se a idéia de complemento. O homem sozinho esta­ria no paraíso. Contudo permaneceria só, sem uma companheira. O paraíso sem a mulher seria um paraíso incompleto, insatisfatório. Por sua vez, já que a mulher completaria o homem, esta tornar-se-ia da mesma forma incompleta se não cumprisse sua missão.

1.4.1. Auxiliadora Idônea

“Far-lhe-ei uma auxiliadora [“Ui) ( ‘ezer)]491 que lhe seja idônea [i^3? (keneged)]” (Gn 2.18) é a solução encaminhada por Deus.

a) Auxiliadora:“i)i> ( ‘ezer) “auxiliadora”, “ajudadora”. Esta palavra que nos

tempos modernos é com freqüência olhada como se fosse uma di­minuição da mulher tem, na realidade, um tom extremamente sig­nificativo. Ela é empregada especialmente para descrever a ação de Deus que vem em socorro do homem. Deus mesmo é o ajudador dos pobres (SI 72.12), dos órfãos (SI 10.14; Jó 29.12); daqueles que não podem contar com mais ninguém (SI 22.11). Por isso podemos contar com Deus nos momentos de enfermidade (SI 28.7); nas opres­sões de inimigos (SI 54.4); e em períodos de grande aflição (SI 86.17). Aqueles que vivem fielmente buscando seu amparo em Deus po­dem ter a certeza de seu cuidado (SI 37.40; SI 89.21), sendo sua lei e suas mãos os seus auxílios (SI 119.173,175). Por isso os servos de

490 O. Palmer Robertson, C risto dos Pactos, Campinas, SP, Luz para o Caminho, 1997, p. 68. “A relação em ‘uma só carne’ envolve mais do que sexo; é a fusão de duas vidas em uma; é consentir em compartilhar a vida juntos, através do pacto do casamento; é a com ple­ta entrega de si m esm o a um novo círculo de existência, ao lado de um com panheiro” (Raym ond C. Ortlund, Jr., Igualdade M asculino-Fem inina e Liderança Masculina: In: John Piper & W ayne Grudem, compiladores, Hom em e M ulher: seu p a p e l b íblico no lar, na igreja e na sociedade, p. 39).

491 A Septuaginta traduz por (3ori0òv, proveniente de povGóç, “útil”, “auxiliador", “aju­dador" (*Hb 13.6).

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Deus suplicam sua ajuda na batalha e nas aflições (Dt 33.7; SI 20.2; 30.10; 79.9; 109.26; 119.86). O rei Uzias tornou-se internacional­mente famoso porque por trás de todos os seus empreendimentos estava a maravilhosa ajuda de Deus (2Cr 26.15). Por outro lado, quando Israel deixou de confiar no sustento de Deus e buscou alian­ça com os egípcios para a sua proteção, Deus diz que isso de nada adiantaria contra Babilônia (Is 30.5, 7; 31.3; Os 13.9). Somos então desafiados a confiar em Deus, porque ele cuida de nós; é nosso amparo (SI 33.20; 70.5; 72.12; 115.9-11; 124.8; Is 44.2): de Deus vem nosso socorro (SI 121.1-2). Israel é feliz porque tem a Deus como aquele que o socorre (Dt 33.26, 29). Felizes são todos aqueles que têm a Deus por auxílio (SI 146.5). Devido ao seu socorro, deve­mos entoar louvores ao seu nome (SI 28.7).

Dentro das profecias messiânicas de Isaías, vemos a confiança do Ungido do Senhor. Certo do socorro do Senhor, sabe que não será envergonhado (Is 50.7, 9).

Harriet e Gerard fazem uma bela e real aplicação: “Que papel importante Deus dá à mulher. Ela se coloca ao lado de seu marido com o auxiliadora, assim como Deus se coloca ao lado de seu povo.”492

b ) Idônea:i im (keneged), “idônea”, tem o sentido de “correspondente a

ele”, “conforme”, “aquilo que corresponde“, “sua contrária”. Sig­nifica também “estar em frente”, “defronte” (Ex 19.2; Js 3.16; 6.5, 20; D n 6 .l l ) .

A mulher foi formada como uma “contraparte” do homem; é uma semelhança perfeita dele, ainda que lhe seja oposta, no sentido de complemento. O homem aprovou a criação de Deus, porque pôde perceber a mulher “não como sua rival, mas como sua companhei­ra; não como uma ameaça, mas como a única capaz de realizar seus desejos íntimos.”493

492 Harriet & Gerard van Groningen, A Fam ília da A liança, São Paulo, Editora Cultura Cristã, 1997, p. 99.

493 Raymond C. Ortlund, Jr., Igualdade M asculino-Fem inina e Liderança M asculina: In:

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Robertson analisa:“O propósito da existência do homem como ser criado não é ser um

auxílio para a mulher no casamento. Mas o propósito da existência da mulher como ser criado é glorificar a Deus sendo um auxílio para o ho­mem.

“.... A mulher deve ser, na verdade, uma auxiliadora do homem. Mas deve ser auxiliadora 'correspondente a ele’. O todo da criação de Deus serviria de auxílio ao homem de uma ou outra maneira. Mas em parte alguma da criação poder-se-ia achar um auxiliar ‘correspondente’ ao ho­mem (Gn 2.20). Somente a mulher, como ser criado do homem, corres­pondeu a ele de tal maneira que fez dela o auxílio adequado de que ele necessitava.

“Este traço distintivo da mulher indica que ela não é menos significativa do que o homem com respeito à pessoa dela. De maneira igual ao homem, ela traz em si mesma a imagem e semelhança de Deus (Gn 1.27). Somente como igual em pessoalidade podia a mulher ‘corresponder’ ao homem.”494

1.4.2. A Igualdade Entre o Homem e a Mulher

Os textos também revelam a prioridade social do homem, não sua superioridade essencial (Ef 5.22; ICo 11.3-12; IPe 3.6, 7). É preciso que não confundamos a primazia e liderança com o domí­nio tirânico. “A masculinidade e a feminilidade identificam seus respectivos papéis. Conforme Deus determinou, o homem, em vir­tude de sua masculinidade, é chamado a liderar; e a mulher, em virtude de sua feminilidade, é chamada a ajudar. (...) Mas, observe: dominação masculina é uma falha pessoal e moral, não uma doutri­na bíblica.”495

Deus, ao criar a mulher, não a fez inferior; ela também foi feita conforme à imagem e semelhança de Deus (Gn 1.27). A ordem divina quanto ao povoar a terra, dominar, guardar e cultivar é da responsabilidade de ambos. Os dois partilham dos deveres e res­John Piper & W ayne Grudem, compiladores, H om em e M ulher: seu p a p e l b íb lico no lar, na igreja e na soc iedad e , p. 39.

4,4 O. Palmer Robertson, C risto dos P actos , p. 69.495 Raymond C. Oitlund, Jr., Igualdade M asculino-Fem inina e Liderança Masculina: In:

John Piper & W ayne Grudem, compiladores, Hom em e M ulher: seu p a p e l b íblico no lar, na igreja e na soc iedad e , p. 40.

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ponsabilidades conferidos por Deus. Sozinhos, ambos são insufi­cientes para cumprir o propósito de Deus em sua vida.

Harriet e Gerard comentam:“A passagem [Gn 1.26-31] claramente indica que em sua origem a fê­

mea foi criada da mesma substância do macho; ela não é inferior quanto a seu ser ou pessoa. Ela não é inferior como portadora da imagem, represen­tante ou espelho de Deus na vida diária. A mulher é uma pessoa tanto quanto o homem. Assim como o macho é, a fêmea é feita à imagem e semelhança do Deus triúno, e conseqüentemente tem seu próprio relacio­namento pessoal e espiritual com Deus. Neste particular ela é absoluta­mente igual ao homem. Ela também recebeu o mesmo mandato que seu marido recebeu. Ela deveria cultivar o jardim com ele, dominar sobre ele e, com o marido, ser frutífera e povoar a terra. N o capítulo 2 ela, junta­mente com o seu marido, recebeu o mandato espiritual de continuar a andar com Deus. Ela e seu marido são proibidos de comer do fruto da árvore. Ambos recebem o m andato social de ser frutíferos.”496

1.5. Significado dos Termos: Imagem e Semelhança

Os termos imagem (Çêlém)497 e semelhança n-lül (Demü- th),498 usados no texto de Gênesis, são entendidos como sinônimos, sendo empregados para se referirem, de forma enfática, ao ser hu­mano como um todo, com todas as suas características essenciais; uma “verdadeira imagem”.

Calvino (1509-1564), após criticar àqueles que procuravam fa­zer uma distinção inexistente entre palavras, diz: “Quando, pois, Deus decretou criar o homem à sua imagem, porque não era tão claro, explicitamente o repete nesta breve locução: à semelhança, como se estivesse a dizer que iria fazer um homem no qual, medi­ante insculpidas marcas de semelhança, se haveria de a si Próprio representar como em uma imagem. Por isso, referindo o mesmo pouco depois, Moisés repete duas vezes a frase imagem de Deus, omitida a menção de semelhança.”499 “A segunda [palavra] inter­

4,6 Harriet & Gerard van Groningen, A Fam ília da A liança, p. 94.457 A LX X traduz aqui por eliccov.4,8 A LX X traduz aqui por ó|xotcoaiç.455 J. Calvino, A s Institutos, São Paulo, Casa Editora Presbiteriana, 1 9 8 5 ,1.15.3.

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preta a primeira, salientando a noção de correspondência e de se­melhança.”500

Portanto, as duas palavras são simplesmente explicativas uma da outra; uma define a outra,501 denotando uma semelhança exata, correspondendo ao original divino. Por isso, imagem e semelhança são usadas indistintamente nas Escrituras, referindo-se ao homem (vejam-se: Gn 5.1, 3; 9.6; ICo 11.7; Cl 3.10; Tg 3.9).

1.6. A Imagem e Semelhança Criadas

Aqui, a título de advertência, devemos frisar que temos algu­mas pistas bíblicas - suficientes, é verdade - para orientar-nos quanto ao significado da imagem e semelhança de Deus no homem; no entanto, estas indicações não são sistemáticas ao ponto de possibi­litar um estudo exaustivo e definitivo sobre o assunto.

Como vimos, o homem foi criado por Deus segundo o próprio modelo divino (Ef 4.24);502 isto não significa que o homem seja fisicamente igual a Deus; Deus não tem forma, é espírito (Jo 4.24), nem significa que seja da mesma essência, visto que esta é incomu­

500 Gerhard von Rad, Teologia do A ntigo Testamento, São Paulo, ASTE, 1986, Vol., I, p. 152. D o m esm o m odo, vd. Gerhard von Rad, El L ibro del G enesis, Salamanca, Siguem e, 1977 (Gn 2.22), p. 69.

501 Vd. C.F. Keil & F. D elitzsch, Com m entary on the O ld Testament, Grand Rapids, M i­chigan, Eerdmans (s.d.), Vol. I, p. 63; Victor P. Hamilton, Dãmâ: In: R. Laird Harris, ed. Theological W ordbook o f the O ld Testament, Vol. I, pp. 191-192; Charles Hodge, System a­tic Theology, Vol. II, p. 96; Herman Hoeksem a, Reform ed D ogm atics, 3“ ed. Grand Rapids, M ichigan, Reformed Free Publishing Association, 1976, p. 204; A.H. Strong, System aticTheology, p. 521; L. Berkhof, Teologia Sistem ática, p. 203; James Oliver B usw ell, A Syste­m atic Theology o f the Christian Religion, Grand Rapids, M ichigan, Zondervan Publishing House, 1962, Vol. 1, p. 232; C.F.H. Henry, Imagem de Deus: In: Walter A. E lw ell, ed. Enciclopédia H istórico-Teológica da Igreja Cristã , Vol. II, p. 310; J. Calvino, A s Institu­ías, 1.15.3; Idem, Com m entaries on The F irst Book o f M oses C a lled Genesis, Grand Rapi­ds, M ichigan, Baker Book House, 1981 (reprinted), Vol. 1, p. 93ss.; Gordon J. Spykman, Teologia Reform acional: Un Nuevo Paradigm a p a ra H acer la D ogm ática , Jenison, M ichi­gan, The Evangelical Literature League, 1994, p. 248; Anthony A. Hoekem a, C riados à Im agem de Deus, pp. 25-26, 27 [para uma visão panorâmica e bibliográfica das diversas interpretações de Gn 1 .26 ,27 , vd. Claus Westermann, Genesis 1-11: An C om m entaiy, Men- neapolis, Augsburg Publishing H ouse, 1987 (reprinted), p. 142ss],

5°2 “D eus é o protótipo do qual o homem e a mulher são meras cópias, réplicas {Selem, ‘estátua ou cópia lavrada ou trabalhada’) e fac-sím iles (d‘müt, ‘sem elhança’)” (Walter C. Kaiser Jr. Teologia do A m igo Tesíamenío, p. 78).

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nicável.503 A imagem e semelhança refletem, em Adão, caracterís­ticas próprias através das quais ele poderia se relacionar consigo mesmo, com o mundo e com Deus. A imagem de Deus é uma pré- condição essencial para seu relacionamento com Deus, e expressa também sua natureza essencial: o homem é o que é por ser a ima­gem de Deus: não existiria humanidade senão pelo fato de ser a imagem de Deus; esta é nossa existência autêntica e todo-inclusiva. ”Ser humano é ser a imagem de Deus. Portanto, imago Dei descre­ve nosso estado normal. Não assinala algo que está dentro de nós, ou algo acerca de nós, senão nossa humanidade”.504 “A imagem de Deus é intrínseca à humanidade. Não seríamos humanos sem ela. De toda a criação, somente nós somos capazes de ter um relaciona­mento pessoal consciente com o Criador e de reagir a ele.”505 Por­tanto, o homem não simplesmente possui a imagem de Deus, como algo externo ou acessório, antes ele é a própria imagem de Deus.

A Confissão de Westminster (1647), capítulo IX, seção 2, declara:“Depois de haver feito as outras criaturas, Deus criou o homem, macho

e fêmea, com almas racionais e imortais, e dotou-os de inteligência, reti­dão e perfeita santidade, segundo sua própria imagem, tendo a lei de Deus escrita em seus corações e o poder de cumpri-la, mas com a possibilidade de transgredi-la, sendo deixados à liberdade de sua própria vontade, que era mutável. Além dessa escrita em seus corações, receberam o preceito de não comerem da árvore da ciência do bem e do mal; enquanto obede­ceram a este preceito, foram felizes em sua comunhão com Deus e tiveram domínio sobre as criaturas.”

Estudemos algumas características do homem como imagem de Deus:

1) Personalidade: O homem foi criado como um ser pessoal que tem consciência e determinação própria; diferentemente de to­

50:1 Vd. R. L. Dabney, Lectures in System atic Theology, Grand Rapids, M ichigan, Baker Book H ouse, 1985, p. 293.

s04 Gordon J. Spykman, Teologia Reform acional: Un Nuevo P aradigm a pa ra H acer la D og m ática , pp. 248-249.

505Millard J. Erickson, Introdução à Teologia S istem ática, São Paulo, Vida N ova, 1997, p. 207.

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dos os outros animais, faz distinção entre o eu, o mundo e Deus; daí a capacidade de se relacionar com Deus (Gn 3.8-14) e com seu semelhante (Gn 3.6), podendo entender a vontade de Deus, fazer-se entender e avaliar todas as coisas (Gn 1.28-30; 2.18, 19).

2) Justiça e Santidade: O homem não foi criado como um ser neutro entre o bem e o mal; ele foi formado bom, santo, como Deus o é de forma absoluta. Daí que, segundo a própria avaliação de seu Autor, tudo “era muito bom” (Gn 1.31). A santidade e retidão origi­nais do homem não significam simplesmente inocência, mas, sim, o desejo inerente de ter maior comunhão com Deus e agradar-lhe, havia uma perfeita harmonia entre seu ser e a Lei Divina; a santida­de dependia fundamentalmente desta sua comunhão com o Criador (Ef 4.24; Ec 7.29). O homem é a “expressão mais nobre e suma­mente admirável de sua justiça, e sabedoria e bondade.”506

3) Liberdade: Adão dispunha de plena liberdade para escolher o melhor para si, não havendo em sua natureza a semente do pecado para influenciá-lo à desobediência. A liberdade pressupõe a res­ponsabilidade; Deus criou o homem livre e responsável por seus atos (Gn 2.16, 17; 3.6-24).507 Agostinho (354-430) coloca a questão em termos poéticos: “A pena me acompanha, porque me deste li- vre-arbítrio. Se, pois, não me tivésseis dado o livre-arbítrio, e desta forma não me tivesses feito melhor do que os animais, não sofreria justa condenação ao pecar. Então, pelo livre-arbítrio me elevaste, e por justo juízo me derrubaste.”508

4) Conhecimento Espiritual: Cl 3.10.509 Adão, antes de pecar, tinha uma compreensão genuína a respeito de Deus. No entanto, “após sua rebelião, ficou privado da verdadeira luz divina, na au­sência da qual nada há senão tremenda escuridão.”510 E bom lem­brar que a compreensão não era exaustiva, visto ser Deus infinito e

50<i João Calvino, Aç Institu ías, 1.15.1.507 Vd. Confissão de Westminster, IX. 1-2.sos Agostinho, Com entário aos Salmos, São Paulo, Paulus (Patrística, 9/3), 1998, [SI

(102)101.11], Vol. 111, p. 22.50‘J Vd. Anthony A. Hoekem a, Criados à Im agem de Deus, pp. 40-41.51(1 João Calvino, Efésios, São Paulo, Parakletos, 1998 (E f4 .1 8 ), p. 137.

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inesgotável, e também que Adão ignorava, em seu primeiro esta­do, aspectos do Ser de Deus, tais como seu amor redentor, seu plano salvífico, sua misericórdia etc. O pecado traz, num outro es­tágio, a idolatria, visto que o homem sozinho não consegue rela- cionar-se com Deus, e até mesmo ignora o Deus verdadeiro (At17.22-29).

João Amós Comênio (1592-1670) comenta:“Ê evidente que todo homem nasce apto para adquirir conhecimento

das coisas: Primeiro, porque é imagem de Deus. Com efeito a imagem, se é perfeita, apresenta necessariamente os traços do seu arquétipo, ou então não será uma imagem. Ora, uma vez que, entre os atributos de Deus, se destaca a onisciência, necessariamente brilhará no homem algo de sem e­lhante a ela. (...) A tal ponto a mente do homem é de capacidade inesgo­tável que, no conhecimento, se apresenta como um abismo....

“ [No entanto] após a queda, que o obscurece e confunde, é incapaz de se libertar por seus próprios meios; e aqueles que deveriam ajudá-lo não contribuem senão para aumentar o embaraço em que se encontra.”5"

O Catecismo de Heidelberg (1563), à pergunta 6, responde:“Deus criou o homem bom e à sua imagem, isto é, em verdadeira justiça

e santidade, a fim de que ele conhecesse corretamente a Deus, seu Cria­dor, o amasse de todo o coração e vivesse com ele em eterna bem-aventu- rança, louvando-o e glorificando-o.”

5) Imortalidade: O homem foi criado para viver eternamente - corpo e alma - ; 512 ele teve princípio, mas não teria fim. Fomos cria­dos para viver eternamente em comunhão com Deus (Gn2.17; 3.19; Rm 5.12; 6.23; ICo 15.20,21).

6) Espiritualidade: (Gn 2.7). O homem não é apenas corpo, ele

511 João A m ós Com énio, D idáctica M agna, 3a ed. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenki- an (1985), pp. 102-103.

512Pensam de igual modo, entre outros: Agostinho, A Cidade de D eu s , Petrópolis, RJ/São Paulo, Vozes/Federação Agostiniana Brasileira, 1990, Vol. 11, Livro X IV .l. p. 131; Francis Turretin, Institu tes o fE len ctic Theology, Phillipsburg, NJ., P & R Publishing, 1992, Vol. I, V. 10.23. pp. 469-47Ò; J. Gresham M achen, El H om bre, p. 158; L. Berkhof, Teologia S iste­m ática, pp. 675-676; Lorainc Boettner, La Im ortalidad , Grand Rapids, M ichigan, TELL (s.d.), p. 18ss.

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foi criado e dotado de corpo e alma, com anseios espirituais que se concretizam em sua comunhão com o Criador. O homem, como parte da criação, é tomado do pó da terra; todavia, como imagem de Deus, recebe deste uma alma eterna e imortal, a qual retornará ao seu Criador513 (Ec 12.7).

7) Domínio Sobre a Natureza: Um dos aspectos da imagem de Deus no homem é seu domínio legítimo, pacífico e prazeroso sobre a natureza (Gn 1.26, 27; SI 8.5-8).514 A criação estava naturalmente sob seu domínio. Deus demonstrou o poder concedido ao homem, partilhando com ele o direito de dar nome (classificando as espéci­es) aos animais (Gn 2.19, 20).515

1.7. Há Dois Elementos Distintos na Natureza Humana

Conforme a Bíblia nos ensina, e já o mencionamos, o homem foi formado do pó da terra (Gn 2.7; 3.19), matéria já existente, con­tudo igualmente criada por Deus; entretanto, ele recebeu de Deus o fôlego da vida, o qual foi uma nova obra de Deus. O homem, como parte da criação, é tomado do pó da terra; todavia, como imagem e semelhança de Deus, recebe deste uma alma eterna e imortal, a qual retornará a seu Criador; e o corpo, como matéria, voltará ao pó, até que as almas e seus respectivos corpos sejam unidos outra vez para o juízo (Gn 3.19; Ec 12.7; Mt 10.28; Lc 8.55; 2Co 5.1-8; Fp 1.22-24).

1.8. A Posição Elevada do Homem

Desde a criação, o homem foi colocado numa posição acima das outras criaturas, cabendo-lhe o domínio sobre os outros seres criados, sendo abençoado por Deus com a capacidade de procriar-

513 Vd. Agostinho, As Confissões, 1.1.514 Aqui não acompanho Calvino, em sua compreensão de que o dom ínio sobre a natureza

é apenas uma pequena porção da imagem de Deus no homem [cf. John Calvin, Com m enta­ries on The F irst Book o f M oses C alled Genesis, Vol. 1 (Gn 1.26), p. 94],

515 “O homem constitui o auge da grande obra de criação de Deus. Não há nada superior ao hom em . O hom em foi feito ‘senhor da criação’, o ser supremo na terra, depois de D eus” (D.M . Lloyd-Jones, O Com bate Cristão, São Paulo, PES, 1991, p. 72).

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190 EU CREIO.

se (Gn 1.22)516 e dispondo de grande parte da criação para seu ali­mento (Gn 1.26-30; 2.9), Como indicativo da posição elevada em que o homem foi colocado, o Criador compartilha com ele do poder de nomear os animais - envolvendo neste processo inteligência e não arbitrariedade e também de dar nome a sua mulher (Gn 2.19, 20, 23; 3.20).

Ao homem, portanto, foi concedido o privilégio responsabiliza- dor de raciocinar, escolher livremente seu caminho de vida,517 ver­balizar seus pensamentos e emoções, podendo, assim, dialogar com seu próximo (Gn 3.6) e com Deus (Gn 3.9-13), sendo entendido por ele e entendendo sua vontade. Portanto, desde o início estava cons­tituída uma comunidade, já que: “Comunicar é uma maneira de compreensão mútua.”518Comunicar, etimologicamente, significa “tornar comum”. Neste ato de comunicar, formamos uma comuni­dade constituída por aqueles que sabem, que partilham do mesmo conhecimento; assim, a comunicação é uma quebra de isolamento individual, para que haja uma comunhão.519 “A ‘comunhão’ encon- tra-se em códigos partilhados mutuamente”,520 porque somente as­sim poderá o “código” ser “decodificado”, estabelecendo-se desse modo a comunicação.

A comunicação é ontológica e, portanto, existencialmente neces­sária; no entanto, todo homem permanecerá como ilha até que resol­va fazer parte do continente; isto ele concretiza através da comunica­ção. O homem “é a única criatura na terra capaz de colocar a comuni­cação em forma de símbolos sem nenhuma relação com seus referen­tes, além daquela que a mente humana lhes atribui. Além disso, trans­

5,6 “Embora aos hom ens seja de natureza infundido o poder de procriar, D eus quer, entre­tanto, que seja reconhecido sua graça especial que a uns deixa sem progénie, a outros agra­cia com descendência, pois que dádiva sai é o fruto do ventre” [SI 127.3], (João Calvino, Aç Instituías, 1.16.7).

517 Vd. Confissão cle W estminster, IX. 1-2.518 R ollo May, P oder e Inocência, Rio de Janeiro, Artenova, 1974, pp. 57-58.5|,J Vd. José Marques de M elo, Com unicação Pessoal: Teoria e P esqu isa, 6 “ ed. Petrópo-

lis, RJ Vozes, 1978, p. 14.520 David J. H esselgrave, A Com unicação Transcultural do Evangelho, São Paulo, Vida

N ova, 1994, Vol. I, p. 39.

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V - O Deus Criador 191

cendendo o tempo e o espaço, ele consegue passar informações a outros em lugares remotos ou àqueles que ainda vão nascer.”521

O filósofo protestante522 G.W. Leibniz (1646-1716) interpreta:“Tendo criado o homem para ser uma criatura sociável, Deus não só lhe

inspirou o desejo e o colocou na necessidade de viver com os de sua espé­cie, mas outorgou-lhe igualmente a faculdade de falar, faculdade que de­veria constituir o grande instrumento e o laço comum desta sociedade. É daí que provêm as palavras, as quais servem para representar, e até para explicar as idéias.”523

O conceito de cultura também estava presente na criação de Deus. Pedagogicamente considerada, a comunicação consiste na passagem da alma, de uma geração a outra, através da perpetuação de seus valores e da modelagem intencional de seu caráter. Neste processo, dá-se a integração social entre o passado, o presente e o futuro, visto que a nova geração é o meio de consolidação e trans­missão desses valores. Neste sentido, a comunicação é sempre in­tencional. É a partir dessa intencionalidade comunicativa que se produz a educação e a cultura.524 “A cultura é o resultado da comu­nicação entre os homens, um vagaroso processo de construção, um resultado ganho com dificuldade que exige dezenas de milhares de anos.”525 A educação pode ser vista, neste processo, como a mode­

521 David J. H esselgrave, A Com unicação Transcultural do Evangelho, Vol. 1, p. 23.522Cf. Colin Brown, Filosofia e Fé Cristã, p. 41; Francisco de P. Samaranch, em P rólogo

y N otas à obra de G.W. Leibniz, La Profesion de Fe dei Filosofo, 3a ed. Buenos Aires, Aguilar, 1978, p. 17.

523 G.W. Leibniz, N ovos Ensaios, São Paulo, Abril Cultural (O s Pensadores, Vol. XIX), 1974, III. 1.1.

524 “Cultura” tem o sentido aqui de conjunto de valores, crenças e m anifestações que caracterizam um povo. Deste modo, não existe povo “sem cultura”. “A cultura, em seu sentido mais amplo, é uma característica peculiar da humanidade; em qualquer tempo e lugar onde há agrupamentos humanos, há um grau, ainda que m ínimo e rudimentar, de cultura (...). Toda a sociedade tem o mérito e a responsabilidade de seu desenvolvim ento, de seu avanço ou de seu estancamento, de seus progressos ou regressos” (R. M ondolfo, Uni- versidad: Pascido y Presente, Buenos Aires, E U D E B A Editorial Universitaria de Buenos Aires, 1966, p. 57). Louis Luzbetak, assim definiu: “Cultura é uma maneira de pensar, sentir, crer. É o conhecim ento do grupo armazenado para uso futuro” (A p u d D avid J. H es­selgrave, A C om unicação Transcultural do Evangelho, p. 60).

525 R ollo May, P oder e Inocência, p. 60.

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192 EU CREIO.

lagem dos indivíduos segundo a norma da comunidade.526 E a ne­cessidade de comunicação nos conduz, invariavelmente, à educa­ção como meio de perpetuação do saber.

O homem tem autoconsciência: ele não se limita a seu corpo; ele tem um corpo, mas não é simplesmente seu corpo, como os animais inferiores o são. Curiosamente, o homem é o único animal que tem consciência de sua nudez.527 Paralelamente a isso, encon­tramos o homem, no momento do nascimento, com certas desvan­tagens em relação aos outros animais, os quais já desde bem cedo aprendem a sobreviver sem a intervenção necessária de suas mães... Entretanto, esses animais não evoluem, não transformam, não mo­dificam suas “culturas”... Houve alguma época em que o joão-de- barro construía sua casa de forma diferente, usando outra matéria- prima, com diferentes normas arquitetônicas? Os cães e os gatos produziram algum tipo de acordo de convivência pacífica e digni­dade das espécies? A resposta a tais questões é um retumbante não. Isso porque todos eles já têm em suas estruturas biológicas a pro­gramação de sua vida e “culturas”.528 Os limites dos animais estão delimitados por seu corpo; os nossos ultrapassam em muito a nossa imaginação...

O homem está acima de toda a criação; ele talvez seja o mais frágil de tudo o que foi criado; todavia ele sabe quem e o que é; é um “caniço pensante”;529 por isso mesmo o homem é o milagre mais portentoso de todos:530é a obra-prima de Deus,531e os salvos têm seu “homem interior” criado de novo em Cristo Jesus: “Pois somos feitura (7COÍr||aa = “obra de arte”)532 dele, criados (ktíÇcü)533 em Cris­

526 Vd. W. Jaeger, P aidéia: A Form ação do Homem- Grego, 2a ed. São Paulo, Martins Fontes, 1989, p. 10.

527 Maurice Merleau-Ponty, The Structure ofB ehavior, Boston, Beacon Press, 1968, p. 174.528 Vejam-se: Peter L. Berger & Thomas Luckmann, A Construção Social da R ealidade,

5“ ed. Petrópolis, RJ, Vozes, 1983, pp. 69-71; Peter L. Berger, O D ossel Sagrado: Elem en­tos pa ra uma Teoria Sociológica da R eligião, São Paulo, Paulinas, 1985, pp. 17-18; Erich Fromm, A nálise do Homem, São Paulo, Circulo do Livro (s.d.), p. 48.

5211 B. Pascal, Pensam entos, V I.347. p. 127510 Sófocles, A Antígone, 2° ed. Petrópolis, RJ, Vozes, 1968, 330.531 W. Shakespeare, H am let, São Paulo, Abril Cultural (Obras Primas), 1978,11.2.532 n o ír p a , quer dizer “o que é feito”, “obra”, “criação”, “obra-prima”, “obra de arte”,

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V - O Deus Criador 193

to Jesus para as boas obras...” (Ef 2.10). Somos filhos de Deus, cri­ados não por qualquer um, mas pelo próprio Deus (SI 100.3). Com base no texto de Efésios podemos dizer que o homem é o mais belo poema de Deus, criado em Cristo Jesus nosso Senhor!

Ao homem coube, por determinação de Deus, o domínio sobre toda a criação inferior. Em outro lugar escrevemos: “O homem foi coroado como rei da criação divina; foi-lhe dado domínio sobre todas as criaturas inferiores. Como tal foi seu dever e seu privilégio fazer com que toda a natureza e todas as coisas criadas colocadas sob seu governo servissem a sua vontade e a seu propósito, para que ele e todo seu glorioso domínio glorificassem o Todo-Poderoso Criador e Senhor do Universo.”534

1.9. As Limitações do Homem

O homem partilha de duas identidades: uma divina e outra ani­mal. Em certo sentido nós não somos diferentes dos cães, gatos, macacos e de outros animais, visto que todos nós fomos criados porespecialmente um produto poético. O nome da obra de Aristóteles (384-322 a.C.) que foi traduzida para o português com o título de “Poética”, em grego, intitula-se, n ep t jioirixiKtjç. Aliás, são estas as palavras com as quais Aristóteles inicia sua obra (vejam -se entre outros: F.F. Bruce, The Epistle to the Ephesians, a Verse-by-verse Exposition, Londres, Pickering& Inglis, 1961, in loc; M. Barth, The A nchor Bible: Ephesians, Garden City, N ew York, Doubleday, 1974, Vol. I, in loc\ I lo ir p a : In: William F. Arndt & F.W. G ingrich ,/! Greek- English Lexicon o f the N ew Testament and O ther Early Christian Literature, 2a ed. Chica­go, University Press, 1979, p. 689; rioir||ia: A Lexicon A b rid ged from L iddell an d S c o tt’s Greek-English Lexicon, London, Clarendon Press, 1935, p. 568). Para um estudo mais detalhado do verbo Ttoiéco e de seus cognatos, vejam -se H. Braun, ranécu: ln: G. Kittel & G. Friedrich, eds. Theological D ictionary o f the N ew Testament, Vol. VI, pp. 458-484; C. F. Thiele, Trabalhar: In: Colin Brown, cd. ger. O Novo D icionário Internacional de Teologia do N ovo Testamento, Vol. IV, pp. 649-652.

533 KtíÇco indica uma nova criação de Deus efetuada em Cristo (*M c 13.19; Rm 1.25; IC o 11.9; E f 2.10, 15; 3.9; 4.24; Cl 1 .1 6 (2 vezes); 3.10; lTs 4.3; Ap 4 . 11; 10.6). Nesta palavra, com o bem observa Lenski, temos o equivalente ao verbo hebraico i 0 3 , “chamar à existência do nada” (R.C.H. Lenski, The Interpretation o f St. P aul's E pistles to the Ephe­sians, Peabody, M assachusetts, Hendrickson Publishers, 1998, p. 425). Para um estudo m ais detalhado, vejam-se: W. Foerster, ktíÇco: In: G. Kittel & G. Friedrich, eds. Theologi­ca l D iction ary o f the N ew Testament, Vol. Ill, pp. 1000-1035; H.H. Esser, Criação: In: Colin Brown, cd. gcr. O Novo D icionário Internacional de Teologia do N ovo Testamento, Vol. I, pp. 536-544).

534 Hermisten M .P. Costa, Reflexões Antropológicas, Campinas, SP, 1979, p. 13.

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194 EU CREIO.

Deus; neste sentido há, digamos assim, uma igualdade: toda a cria­ção é proveniente da vontade de Deus.

Salomão, na velhice, mostrando a nulidade da sabedoria do ho­mem e a fragilidade da vida humana,535 escreve: “Porque o que su­cede aos filhos dos homens, sucede aos animais; o mesmo lhes su­cede: como morre um, assim morre o outro, todos tem o mesmo fôlego de vida, e nenhuma vanglória tem o homem sobre os ani­mais; porque tudo é vaidade. Todos vão para o mesmo lugar; todos procedem do pó, e ao pó tornarão” (Ec 3.19, 20).

Se por um lado o homem partilha com os outros animais de uma identidade de criação, por outro estabelece-se biblicamente uma grande distância entre o homem e o resto da criação, porque, como já estudamos, fomos criados à imagem de Deus, por isso somos seres pessoais como Deus é, temos uma personalidade que permite não nos limitarmos ao nosso corpo, embora este faça parte de nós e não lhe seja algo mau, inferior ou desprezível: a alma e o corpo são criações de Deus, e ele mesmo, por seu poder, ressuscitará nosso corpo na vinda gloriosamente triunfante de Jesus Cristo.

Entretanto, o homem tem seus limites físicos, intelectuais, mo­rais e espirituais; isto se deve basicamente por ser ele criatura e não criador, e também em decorrência de seu pecado que trouxe como conseqüência a morte (Rm 6.23).536 A Bíblia apresenta com fre­

535 Vd. Hermisten M.P. Costa, E clesiastes: Uma Investigação da Vida, B elo Horizonte, MG, 1980, passim .

53(. “D euSi ao criar o hom em , deu uma demonstração de sua graça infinita e mais que amor paternal para com ele, o que deve oportunamente extasiar-nos com real espanto; e embora, mediante a queda do hom em , essa feliz condição tenha ficado quase que totalmente em ruína, não obstante ainda há nele alguns vestígios da liberalidade divina então demonstrada para com ele, o que é suficiente para encher-nos de pasmo" [João Calvino, O Livro dos Salm os, São Paulo, Parakletos, 1999, Vol. 1 (SI 8.7-9), pp. 173-174], “O gênero humano, depois que foi arruinado pela queda de Adão, ficou não só privado de um estado tão distinto e honrado, e despojado de seu prim evo dom ínio, mas está também mantido cativo sob uma degradante e ignom iniosa escravidão” [João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1 (SI 8.6), p. 171]. “E verdade que ela não foi totalmente extinta; mas, infelizm ente, quão ínfima é a porção dela que ainda permanece em m eio à miserável subversão e ruínas da queda” [João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1 (SI 8.5), p. 169], Quanto à morte física com o conse­qüência do pecado, vejam-se: Louis Berkhof, Teologia Sistem ática, pp. 675-676; Loraine Boettner, L a Inm ortalidad, Grand Rapids, M ichigan, TELL. (s.d), p. 15ss; J. Gresham Ma-

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V - O Deus Criador 195

qüência as limitações do homem, e muitas vezes nossa debilidade é manifestada em decorrência da comparação feita entre nós, criatu­ras, e Deus, Criador e Senhor de todas as coisas. Assim, a Bíblia apresenta o homem como:

1) Mortal. Hb 9.27.2) Injusto e impuro: Jó 4.17; 9.2; Is 6.5; lJo 1.9.3) Propenso ao cansaço: Jz 8.4; Is 40.28-31; Mt 11.28; Jo 4.6.4) De vida breve: Jó 7.1; 14 .1 ,2 ,10; SI 90.10; 103.14-15; 144.4.5) M enor do que Deus: Jó 33.12; SI 8.4, 5.6) Invejoso: SI 37.1; Pv 3.31; 14.30; Mt 27.18; Fp 1.15.7) Sujeito ao engano: Gn 3.13; Dt 11.16; Mt 24.24; lJo 3.7; Pv

16.25.8) Sujeito ao esquecimento: Gn 40.23; Pv 3.1; 4.5; Mt 16.5.9) Ignorante: Lv 4.2; Ec 9.12. At 3.17; lTm 1.13.10) Não confiável: Jr 17.5 - porque, em determinadas circuns­

tâncias, ele pode nos trair (SI 41.9), e também, em outras, ele nada poderá fazer (SI 108.12)

11) Corruptível: Rm 1.27.12) Pervertido: 2Tm 3.13.13) Incapaz de prolongar sua vida\ Mt 6.27; SI 39.4-6.14) Incapaz de se salvar: Mt 19.25, 26; Ef 2.8.Resumindo o que estamos estudando, podemos observar que

Deus criou o homem com sua face voltada para o céu, e também voltada para a terra; com isso queremos dizer que o homem é umchen, El H om bre, p. 158; Anthony A. Hoekema, A B íblia e o Futuro, São Paulo, Editora Cultura Cristã, 1989, pp. 105-114 (todos esses autores entendem que a morte física foi uma conseqüência do pecado; eu os acompanho neste ponto). Quanto a uma posição contrária, vejam-se: Karl Barth, Church D ogm atics, Edimburgo, T & T. Clark, 1960,111/2. p. 596ss e Reinhold Niebuhr, The Nature and D estiny o fM an , N ew York, Scribner, 1941, Vol. 1, pp. 175-177. No passado, o bispo C eléstio , discípulo de Pelágio, foi mais longe do que seu mestre, defendendo que Adão foi criado mortal e, portanto, teria morrido, quer tivesse pe­cado, quer não (vd. J.N. D. Kelly, D outrinas C entrais da Fé Cristã: origem e desen volvi­m ento, São Paulo, Vida Nova, 1994, p. 273; W illiston Walker, H istória da Igreja Cristã, São Paulo, ASTE, 1967, Vol. 1, p. 243; K.S. Latourette, H istoria de i Cristianism o. 4“ ed. Buenos Aires, Casa Bautista de Publicaciones, 1978, Vol. 1, p. 96). Há também, aqueles que não se definem , com o, por exem plo: L.L. Morris, Morte: ln: J.D. D ouglas, ed. org. O Novo D icionário da B íblia , Vol. 11, p. 1073 e Ray Summers, A Vida no A lém , 2a ed. R io de Janeiro, JUERP, 1979, p. 25.

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196 EU CREIO.

ser capaz, e ao mesmo tempo limitado; nós somos uma mescla de poder e impotência, fraqueza e força, possibilidade e impossibili­dade. Por isso, se por um lado a história da humanidade é marcada pelos grandes avanços e conquistas científicas e tecnológicas, por outro, de forma não menos viva, nossa vida é caracterizada pela transitoriedade e senso de impotência diante dos grandes desafios com os quais nos deparamos, especialmente os desafios morais e espirituais, e a sociedade como todo tem demonstrado sua frustra­ção e fraqueza diante dos grandes problemas sociais que vão desde a fome até os dependentes de drogas de todas as classes sociais, passando também pela violência urbana generalizada ocasionando mais insegurança e violência num círculo malignamente vicioso que tem como fim a destruição humana... Entretanto, em Cristo en­contramos a possibilidade concreta do que antes parecia impossível (Mc 10.25-27); nossa suficiência (Jo 15.1-5; 2Co 3.5; Fp 4.13).2. O CRISTOCENTRISMO DA CRIAÇÃO

Todo o universo - o mundo visível e o invisível - foi criado por Deus, tendo como objetivo último a glória de Deus em Cristo: Jesus Cristo é a causa instrumental e final da criação (Jo 1.3; ICo 8.6; Cl 1.16-20; Hb 1.1-4).

A Bíblia expressa constantemente o testemunho da criação re­ferente à Glória de seu Criador. Nas Escrituras, lemos: “Os céus proclamam a glória de Deus e o firmamento anuncia as obras de suas m ãos” (SI 19.1). “Os céus anunciam sua justiça, e todos os povos vêem sua glória” (SI 91.6).“Grandes são as obras do Senhor, consideradas p o r todos os que nelas se comprazem. Em suas obras há glória e majestade, e sua justiça permanece para sempre” (SI 111.2-3).

O próprio Deus revela seu propósito, dizendo: “A todos os que são chamados por meu nome, e os que criei para minha glória, e que form ei e f iz ” (Is 43.7; vd. Ef 1.6, 12).

Deus criou todas as coisas, inclusive a Igreja, para sua glória. A glória de Deus é a “excelência manifestada. A excelência dos atri­

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V - O Deus Criador 197

butos de Deus se manifesta por sua operação.”537 Deus manifesta sua glória através dos eleitos que compõem sua Igreja. Ele mesmo “nos predestinou para ele, para a adoção de filhos, por meio de Jesus Cristo, segundo o beneplácito de sua vontade, para louvor da glória de sua graça, que ele nos concedeu gratuitamente no Am a­do” (Ef 1.5-6).538 O Catecismo de Genebra (1541/2), escrito por Calvino, diz que Deus nos criou “e nos pôs neste mundo para ser glorificado em nós. E é coisa justa que toda nossa vida se enderece a sua glória”.539

Desta forma, o homem como criatura de Deus só se realiza quan­do vive para a glória de Deus, que é também seu fim último (2Co 5.8; G1 2.20; Fp 1.21, 23). O Catecismo M enor de Westminster, à pergunta n° 1, “Qual é o fim principal do homem?", responde: “O fim principal do homem é glorificar a Deus e gozá-lo para sempre” (ver: Is 43.7; 60.21; 61.3; Rm 11.36; 14.7-8; ICo 10.31; Ef 1.5-6).

Agostinho (354-430), de forma poética, retrata este mesmo sen­timento, dizendo: “Porque nos criastes para Vós e o nosso coração vive inquieto, enquanto não repousa em Vós.”540

Jesus Cristo desafia a Igreja a assumir sua identidade: “Vós sois o sal da terra; ora, se o sal vier a ser insípido, como lhe restaurar o sabor? Para nada mais presta senão para, lançado fora, ser pisado pelos homens. Vós sois a luz do mundo. Não se pode esconder a cidade edificada sobre um monte; nem se acende uma candeia para colocá-la debaixo do alqueire, mas no velador, e alumia a todos os que se encontram na casa. Assim brilhe também a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem a vosso Pai que está nos céus" (Mt 5.14-16).

A Igreja, como criação de Deus, é conclamada a viver de forma

537 A .A. Hodge, E sboços de Theologia, p. 223.538 Vd. também: Confissão de W estminster, III.3, 5, 7; V .l; XXXIII.2; Catecism o M aior,

Pergs. 12 e 18; C atecism o M enor, Perg. 7.539 Catecism o de G enebra, Perg. 2. In: Catecism os de la Iglesia Reform ada, Buenos

Aires, La Aurora, 1962, p. 29.mo Agostinho, Confissões, São Paulo, Abril Cultural (Os Pensadores, Vol. VI), 1973,1.1.

p. 25.

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19 8 EU CREIO.

intencional para a glória de Deus, sendo um sinal luminoso que aponta de forma efetiva para seu Criador, a fim de que todos, atra­vés de nosso testemunho, possam glorificar a Deus.3. O CARÁTER SOTERIO LÓ GICO DA CRIAÇÃO

O pecado corrompeu o intelecto, a vontade e a faculdade moral do ser humano; ele está morto espiritualmente, sendo escravo do pecado (Gn 6.5; 8.21; Jo 8.34, 43-44; Rm 3.23; 6.6, 23; Ef 2.1; Cl 1.13; 2.13).541 Como se isso não bastasse, o pecado humano (não de Satanás e de seus anjos, lTm 3.6; Jd 6)542 trouxe conseqüências danosas para o resto da criação (Gn 3.17-19; Hb 6.8). Por isso Pau­lo escreve aos romanos: “Porque sabemos que toda a criação a um só tempo geme e suporta angústias até agora” (Rm 8.22).

O “sabemos” usado por Paulo se refere àqueles que têm as “P ri­mícias do Espírito” (Rm 8, 18, 23). “Só a fé pode discernir, nos fatos, o movimento que os orienta para um fim que os trans­cende.”543 A natureza geme aguardando a manifestação daquilo que os filhos de Deus serão na glorificação (Rm 8.30; 1 Jo 3.2). Confor­me corretamente escreveu L. Berkhof (1873-1957):

“A obra expiatória de Cristo resultará também num novo céu e numa nova terra em que habita a justiça, habitação própria para a nova e glorifi­cada humanidade, e na gloriosa liberdade da qual a criação inferior tam ­bém participará, Rm 8.19-22.”544

A natureza em sua totalidade não se encontra nem no estado em que foi criada, nem no estado que a aguarda, daí a “grandiosa sinfo­nia de gemidos”, anelando por sua completa “auto-expressão ou ‘liberdade’”,545 quando então será “libertada da maldição sob a qual tem labutado.”546

541 Vd. Confissão de Westminster, V1.2; 1X.3.542 Vd. Confissão de W estminster, V.4.543 F.J. Leenhardt, E pístola aos Rom anos, São Paulo, ASTE, 1969, p. 220.544 Louis Berkhof, Teologia S istem ática, p. 400.545 W illiam Hendriksen, A Vida Futura: Segundo a B íblia , São Paulo, Casa Editora Pres­

biteriana, 1988, p. 234.546 Anthony A. Hoekema, A B íblia e o Futuro, p. 377.

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V - O Deus Criador 199

O sofrimento presente é fruto do pecado; entretanto, dentro do propósito de Deus, daquele que faz todas as coisas conforme sua vontade (SI 115.3; Ef 1.11), é também pedagogicamente teleológi- co; nós sofremos na esperança de que já está assegurada pelo Espí­rito (Rm 8.23-25), pela nova expectativa aberta em Jesus Cristo. Calvino (1509-1564) recorre a uma analogia usada por Jesus Cristo em contexto diverso,547 dizendo:

“Visto que as criaturas estão sujeitas à corrupção, não por sua inclinação natural, senão pela determinação divina, tendo a esperança de no futuro apagar todo e qualquer vestígio de corrupção, deduzimos que gemem como uma parturiente até que sejam finalmente libertados. Esta é uma com pa­ração muitíssimo apropriada para informar-nos que o gemer de que o após­tolo fala não é debalde nem sem efeito. Ele finalmente produzirá frutos de deleite e felicidade.”548 (Vd. também: Is 65.17; 66.22; 2Pe 3.13; A p 21.1.)

Concluo este tópico com as palavra de Hoekema (1913-1988):“N o princípio da história Deus criou os céus e a terra. N o fim da história

vemos os novos céus e a nova terra, que ultrapassarão, em muito, o esplen­dor de tudo que temos visto antes. N o centro da história está o Cordeiro que foi morto, o primogênito dentre os mortos, e o governador dos reis da terra. Um dia lançaremos perante ele todas as nossas coroas, ‘perdidos em admiração, amor e louvor'.”549

O Deus Criador recriará novos céus e nova terra, onde a justiça reinará para sempre, e ali viverá eternamente seu povo que foi re­criado em Cristo Jesus (Is 65.17; 66.22; Ef 2.10; 2Pe 3.13; Ap 21.1).

* * *

Nesta altura, parece-nos oportuno o comentário de Lloyd-Jones (1899-1981), quando observa que Jesus Cristo viveu séculos depois de um período de exuberância intelectual, marcado pelos maiores luminares do pensamento grego - Sócrates, Platão e Aristóteles - , no entanto, diante de um auditório de formação modesta e em geral

547 Vd. Jo 16.21. Leia também, Gn 3.16; Is 26.17.548 João Calvino, Exposição de Rom anos (Rm 8.22), pp. 285-286.549 Anthony A. Hoekema, A B íblia e o Futuro, p. 383.

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200 EU CREIO.

de recursos débeis, Jesus diz: “Vós sois a luz do mundo" (Mt 5.14).550 Na realidade, e isto é extremamente estimulante, a Igreja como povo de Deus é desafiada em sua própria existência e testemunho a ser o sal da terra e luz do mundo; e isso ela faz, não pelo acúmulo de conhecimento - que sem dúvida, através da história, tem revelado de modo indelével a “graça comum” de Deus - , mas no discerni­mento dado por Deus para agir no mundo, com a sabedoria do alto, aquela que dá sentido e utilidade eficaz ao conhecimento. Sem a sabedoria concedida por Deus, o conhecimento humano torna-se motivo de pretensão frívola ou um fardo que nos permite ver me­lhor aspectos da realidade sem, contudo, ter a solução definitiva. O iluminismo sobre muitos aspectos trouxe não a luz, mas as trevas. Ele propôs uma autonomia que jamais poderia ser alcançada, visto que a genuína “autonomia” exige a coragem da “teonomia”, a sub­missão aos princípios de Deus expressos em sua Palavra.

Portanto, a esperança para o mundo, em última instância, não está na ciência, mas nos homens fiéis a Deus, que usam dos recur­sos fornecidos por Deus para sua glória. Desse modo, a Igreja como luz do mundo e sal da terra se constitui numa bênção inestimável para toda a humanidade.

IM PLICAÇÕES DOUTRINÁRIAS E PRÁTICAS

1) Conhecer a Deus significa, entre outras coisas, conhecer sua criação;

2) Se queremos conhecer a Deus, devemos deixar que ele mes­mo nos fale através de sua Palavra (Os 6.3; Jo 5.39; Rm 10.17; 2Pe 3.18);

3) Deus é o único que pode criar do nada todas as coisas, e também nos recriar em Cristo, restaurando-nos à sua Imagem (Gn 1.1; Ef 2.10; Hb 11.3);

4) Deus realiza todas as suas obras com sabedoria e majestade.

550 D.M. Lloyd-Jones, Estudos no Sermão do Monte, São Paulo, FIEL, 1984, p. 151.

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V - O Deus Criador 201

5) De que maneira você tem olhado a criação? Você já parou para pensar que todos nós, homens e mulheres, animais, plantas, insetos etc., fomos criados pelo mesmo Deus?

6) Você e eu fomos criados para a glória de Deus. De que forma podemos e devemos glorificar a Deus e conduzir outros homens a fazê-lo? (Mt 5.14-16).

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VI - A VINDA DE JESUS CRISTO-------------------------------------- --------------------------------------------------------

IN TRO D U ÇÃO

“...Jesus, que se chama Cristo” (Mt 1.16). Jesus é denominado, em todo o Novo Testamento, de “Cristo”, sendo chamado com fre­qüência nas Epístolas “Jesus Cristo” e “Cristo Jesus”. Mas, o que significa o nome “Cristo”? Este nome corresponde, no hebraico, a rPBJB (Mãshíha), derivado da forma nt£>íp (Mãshah), que significa: “espalhar alguma coisa sobre”, “untar”, “ungir”, “friccionar com óleo” etc.

Nossa palavra “Cristo” vem por derivação do latim (Christus), que por sua vez é decorrente do grego xp icróç. O termo “M essias” é transliteração do grego M eccríaç que, por sua vez, translitera o aramaico Mesíhã’.

Cristo e M essias são palavras sinônimas (vd. Jo 1.41; 4.25), que significam “ungido”. A palavra, quando usada para uma pessoa, denota que a mesma foi cerimonialmente ungida para um cargo. “O sentido primário do título (Messias) é ‘rei’, como homem ungido de Deus, mas também sugere eleição, ou seja, o rei era eleito e honrado.”551 Quando aplicada a Jesus, equivale a uma confissão de que Jesus é o Ungido (= Messias) de Deus.1. O SIGNIFICADO E A PRÁTICA DA UNÇÃO NO ANTIGO

TESTAMENTO

No Antigo Testamento, os reis e sacerdotes eram regularmente551 D avid H. W allace, M essias: In: E.F. Harrison, ed. D iccionario de Teologia, M iehigan,

T.E.L.L., 1985, p. 339.

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VI - A Vinda de Jesus Cristo 203

ungidos (Ex 28.41; 29.7; Lv 4.3; 6.22; Jz 9.8; ISm 9.16; 10.1; 24.10; 2Sm 23.1; 2.4; 5.3; Lm 4.20).

Ao rei se chamava “O Ungido de Jeová” (ISm 24.10), e, curio­samente, tal designativo é aplicado a um rei pagão, como no caso do rei Ciro (Is 45.1), indicando, no caso, que Deus o separou para uma missão específica. Não nos esqueçamos de que Deus é sobera­no para usar o quê e quem ele quiser.

A unção do rei parece estar associada à dádiva e à transferência de autoridade, poder e honra, trazendo sobre a pessoa ungida uma posição e o direito de exercê-lo. Além disto, conferia-lhe o respeito apropriado, juntamente com honra e, no momento próprio, as ri­quezas também.552

A unção dos sacerdotes era, em primeiro lugar, uma purificação ritual, tendo por objeto a capacitação dos sacerdotes para levarem a efeito um culto válido.553 De modo geral, a unção significava a capa­citação, a graça divina para o cumprimento de sua tarefa; a autorida­de e o poder para executá-la eram decorrentes do Deus que os voca­cionara e os ungira.554 “Os seres humanos não podem fazer nada mais que ungir com óleo, mas o Senhor unge com seu Espírito, o único que pode equipar uma pessoa para desempenhar seu encargo.”555

Há um único exemplo de um profeta ungido, que é o caso de E liseu(lR s 19.16); contudo, há referência a essa prática (SI 105.15; Is 61.1).

O azeite usado para a unção dos oficiais simbolizava o Espírito de Deus (Is 61.1; Zc 4.1-6), e a unção representava a transferência do Espírito à pessoa consagrada (ISm 10.1, 6, 10; 16.13-14). “O óleo da unção, quando se empregava no culto, era um símbolo do

552 Vd. K.H. Rengstorf, Jesus Cristo: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo D icionário Interna­cional de Teologia do N ovo Testamento, São Paulo, Vida Nova, 1981-1983, Vol. 11, p. 490.

553 Vd. K.H. Rengstorf, Jesus Cristo: ln: Colin Brown, ed. ger. O N ovo D icionário Inter­nacional de Teologia do N ovo Testamento, Vol. 11, p. 490.

554 Vd. L. Morris, O Senhor do C éu , Queluz, N úcleo, 1979, p. 42 e George E. Ladd, Teologia do N ovo Testamento , Rio de Janeiro, JUERP, 1985, p. 128.

555 J. Ridderbos, Isaías: Introdução e Com entário, São Paulo, Mundo Cristão/Vida Nova, 1986, p. 488.

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204 EU CREIO.

Espírito divino; na consagração dos reis, porém, assinalava a dádi­va do Espírito de Deus para ajudar o rei de Israel a administrar seu reino”.556

É importante que nos lembremos de que o designativo “ungido” não representava necessariamente a unção com o óleo da consagra­ção, mas, sim, que tais pessoas foram colocadas à parte, separadas para dar cumprimento ao propósito divino (Is 45.1; SI 105.15; Hc3.13). E, por outro lado, a “unção” é usada metaforicamente para se referir à obtenção do favor divino (SI 23.5; 92.10).557

Resumindo o que foi dito, podemos observar que a unção era um sinal visível de:558

(1) Designação para um ofício;559(2) O estabelecimento de uma relação sagrada e a conseqüente

consagração da pessoa ou coisa ungida: Gn 28.18; Ex. 30.22-33; ISm 26.16; 26.9; 2Sm 1.14, 21; Is 21.5;

(3) Uma comunicação do Espírito ao que foi ungido: ISm 10.1, 9; 16.13. Compare com 2Co 1.21-22.2. A V IN D A DO MESSIAS

2.1. A Promessa de Deus

No texto anterior fizemos menção da promessa de Deus concer­nente ao Salvador (Gn 3.15). Pois bem, a Bíblia, no registro da re­velação progressiva de Deus, nos mostra que aquele que viria é o Messias, o Cristo, o Ungido de Deus (Is 61.1-2; Lc 4.16-21; Dn 9.25-26; SI 21-2; At 4.24-28).

556 Walter C. Kaiser Jr. Teologia do Antigo Testamento, São Paulo, Vida N ova, 1980, p. 152. Vd. Também, Herman Hoeksem a, Reform ed D ogm atics, 3a ed. Grand Rapids, M ichi­gan, Reformed Publishing Association, 1976, p. 340.

557 Quanto à importância da solenidade de “unção”, vd. J. A. Motyer, Unção, Ungido: ln: J.D. D ouglas, ed. org. O N ovo D icionário da B íblia, São Paulo, Junta Editorial Cristã, 1966, Vol. I ll , p. 1640.

558 Consulte L. Berkhof, Teologia Sistem ática, Campinas, SP, Luz para o Cam inho, 1990, pp. 312-313.

559 Quanto à utilização não religiosa da “unção”, consulte R. Laird Harris, Ungimiento: fn: E.F. Harrison, ed. D iccion ario de Teologia, p. 536.

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VI - A Vinda de Jesus Cristo 205

2.2. Antecedentes Históricos de Sua Vinda

“Vindo, porém, a plenitude do tempo, Deus enviou seu Filho..." (G1 4.4). “A plenitude do tempo” assinala o momento em que o “cronos”560 está completo; o tempo atingiu sua plena medição: é o tempo preciso. Paulo está dizendo que o grande ponto central da História é chegado.561

Como temos insistido, fazendo eco aos ensinamentos bíblicos, Deus age sempre no tempo certo, dirigindo a História para os even­tos estabelecidos por ele mesmo. Antes da vinda de Cristo, o cená­rio político, econômico, cultural e social passou por grandes trans­formações, as quais se constituíram numa preparação para a vinda do Messias.

Passemos em revista algumas dessas contribuições:2.2.1. Contribuições dos Gregos

Os gregos, liderados por Alexandre, o Grande (356-323 a.C.), levaram a cultura grega a quase todo o mundo conhecido. Os povos conquistados, além de suas línguas maternas, passaram a falar o grego, uma língua riquíssima, constando de 200 mil palavras.562 Este fato veio facilitar posteriormente a difusão do evangelho, visto que os missionários poderiam ir às regiões mais longínquas certos de que a mensagem transmitida no idioma grego seria entendida.

Outro fator importante foi a filosofia grega, que através dos três maiores filósofos da antigüidade - Sócrates (469-399 a.C.), Platão (427-347 a.C.) e Aristóteles (384-322 a.C.) - a palavra tornou-se um instrumento eficiente na elaboração e transmissão de um pensa­mento mais apurado e preciso. Não nos esqueçamos de que o Novo

560 póyoç = tempo, período de tempo. Esta palavra grega - de onde vem “cronômetro”, “cronologia” - enfatiza a expansão qualitativa e seqüencial do tempo. Ocorre 54 vezes no N ovo Testamento. É traduzida quase que impreterivelmente por “tem po”. A lgum as das exceções: “Vezes” : Lc 8.29; “Prazo”: Lc 20.9; “Demora”: Ap 10.6.

561 Vd. A. A. Hoekem a, A B íblia e o Futuro, São Paulo, Casa Editora Presbiteriana, 1989, p. 27.

562 W illiam Barclay nos informa que o vocabulário hebreu dispunha de m enos de 10 mil palavras e o grego de 200 mil (W. Barclay, El N uevo Testamento Com entado, Buenos A i­res, La Aurora, 1974, Vol. 5, p. 35).

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206 EU CREIO.

Testamento foi escrito em grego, usando termos com uma gama rica de significado para aquele povo; todavia, em muitos casos, os escritores do Novo Testamento, inspirados por Deus, dão às pala­vras já conhecidas sentido novo e mais profundo, que ultrapassa em muito os limites de seu emprego comum, daí a necessidade de estu­dar os termos não apenas na literatura clássica, mas também dentro de seu emprego comum nas Escrituras.

2.2.2. Contribuições dos Romanos

O espírito meditativo e reflexivo dos gregos foi substituído pelo pragmatismo executivo romano. A partir de 146 a.C., os romanos consolidaram seu domínio sobre a Grécia e a Macedônia, tornan­do-as Províncias Romanas. Os romanos se impuseram pela força; todavia, a cultura grega permaneceu em todo o grandioso Império Romano, ao ponto do poeta sátiro Juvenal (607-140 AD) escrever: “Am igos romanos, não posso suportar uma cidade inteiramente grega.”563

Todavia, as contribuições romanas foram muito importantes:a) Estradas: Os romanos foram pródigos na construção de boas

estradas. “Os romanos construíram suas estradas tão direitas quan­to possível, fazendo cortes através dos montes e usando viadutos para transpor vales e rios. Na construção de suas estradas, escava­vam o solo e enchiam o leito da estrada com três camadas diferen­tes de material, elevando o centro para escoamento das águas e pa­vimentando a parte superior com pedra. As estradas tinham, por vezes, uma largura superior a cinco metros, mas eram lisas e durá­veis. Algumas delas ainda hoje são usadas.”564

Além dessas boas estradas, os romanos praticamente elimina­ram os ladrões das estradas e os piratas dos mares, facilitando a unificação do Império, e também melhorando as condições de lo­comoção dos paladinos do evangelho que empunhavam o estandar­

5M Juvenal, Sátira, III, 60, 61. A pud Merrill C. Tenney, O N ovo Testamento: Sua O rigem e A nálise, 2a ed. São Paulo, Vida Nova, 1972, p. 44.

564 Merrill C. Tenney, O N ovo Testamento: Sua O rigem e A nálise, p. 91.

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VI - A Vinda de Jesus Cristo 207

te da mensagem salvífica de Deus pelas regiões mais distantes que até então eram praticamente inatingíveis.

b) A í L eis: As leis romanas são conhecidas e admiradas até os nossos dias pela sua precisão e imparcialidade. Foram estas leis, por exemplo, que facultaram liberdade a Paulo, como cidadão ro­mano (cf. At 16.35-40; 22.22-30) e também seu “apelo a César” (At 25.11, 12).565

c) A Paz Romana\ No início do cristianismo encontramos um dos poucos momentos da história em que o mundo estava quase que totalmente em paz: O Império Romano era a grande potência que controlava quase todo o mundo conhecido. Este fato facultava aos missionários cristãos viajarem sem maiores problemas: Se porven­tura houvesse uma guerra na Europa, isso impediria que eles viajas­sem por aquelas regiões com segurança.

Resumindo: Quando o Messias veio e evangelizou o mundo, havia, pela providência de Deus, condições favoráveis para a trans­missão da mensagem: assim, seus discípulos puderam transmitir, num único idioma, viajando com segurança através de diversas ci­dades e países, não sendo o cristianismo, durante cerca de três dé­cadas, molestado pelos governantes romanos.

Surpreendentemente, encontramos em Orígenes (c. 185-255) uma clara compreensão de que Deus preparou a situação mundial para o advento do cristianismo. Em 248, ele escreveu:

“Porque ‘a justiça surgiu em seus dias, e abundância de paz começou com seu nascimento; Deus estava preparando os povos para sua instrução, de modo que estivessem sob o governo de um imperador, para que a hosti­lidade entre os povos, por serem muitos reinos, não dificultasse aos apósto­los de Jesus cumprir a ordem: ‘Ide por todo o mundo’. Está bem claro que Jesus nasceu no reino de Augusto, aquele que uniu todos os reinos na terra em um só império. Se houvesse muitos reinos, isto teria atrapalhado a difusão do ensino de Jesus por todo o mundo, não só pela razão m enciona­da, mas porque em todos os lugares os homens estariam sendo obrigados a prestar serviço militar e lutar para defender seu país. Isto era assim antes do tempo de Augusto. Por esta razão, como poderia este ensino, que prega

565 A carta de Festo se constitui num bom exem plo da justiça romana (At 25 .13-22).

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208 EU CREIO.

a paz e não permite nem mesmo que as pessoas se vinguem de seus inimi­gos, ter sucesso, se a situação internacional não tivesse mudado em termos globais, fazendo surgir uma atmosfera menos hostil, que Jesus encontrou quando nasceu?”.566

2.3. Expectativas Judaicas Quanto à Vinda do Messias

O povo judeu, após o cativeiro babilónico - iniciado em 587/ 586 a.C., tendo o povo começado a retornar apenas em 537 a.C. chefiado por Zorobabel (cf. Ed 2.1ss) teve vários dominadores estrangeiros (Persas, Gregos, Sírios, Romanos). A razão do interes­se estrangeiro pela Palestina era simples: ela era uma região estra­tégica; por seu território passavam estradas que levavam a todas as partes do mundo. Os romanos, por exemplo, dominando a Palesti­na, tinham a “chave para o Meio Oriente”; por isso, sucessivos go­vernadores romanos permaneceram na Síria e Palestina, já que ali estava a fronteira oriental do Império Romano, divisando com o seu grande rival, o Império dos Partas.

Essas sucessivas invasões e o silêncio por parte de Deus - visto que Deus não levantou nenhum profeta depois de Malaquias e a idéia dominante era que o Espírito Santo de Deus se apagara devido ao pecado de Israel; e agora Deus só falava pelo eco de sua voz567 - contribuíram fortemente para a intensificação das esperanças mes­siânicas. Mesmo não havendo unidade e coerência no pensamento judeu quanto à figura do Messias - falavam do Messias como profe­ta, ou como sacerdote ou como rei e até mesmo como um anjo568 ao que parece, “a esperança de um Messias militar predominava”,569 o qual libertaria o povo das mãos dos opressores estrangeiros, sub­

566 Orígenes, A gainst Celsus, 11.30. in: Alexander Roberts & James Donaldson, eds. Ante- N icene-F athers, 2a ed. Peabody, M assachusetts, Hendrickson Publishers, 1995, Vol. IV, pp. 443-444 .

567 Vd. Hermisten M.P. Costa, A L iteratura A pocalíp tica Judaica, São Paulo, Casa Edi­tora Presbiteriana, 1992, p. 27ss.

“ “Quanto à identificação da figura do M essias com um anjo, vd. H .l. Hester, Introducci- on ao Estúdio de l Nuevo Testamento, 2a ed, Buenos Aires, Casa Bautista de Publicaciones, 1980, p. 76.

5f" F. F. Bruce, N ew Testament H istory, N ew York, Doubleday & Company, Inc., 1971, p. 133.

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VI - A Vinda de Jesus Cristo 209

vertendo a ordem estabelecida no dia chamado “Dia do S en h o r .510Otto Borchert faz uma interessante analogia a respeito da con­

cepção judaica e da realidade do Messias:“O Rei Messiânico havia sido prometido, e desta forma o mundo tomou

conhecimento dele. Mas a concepção que os homens faziam dele era a de pessoas nascidas em uma mina, e que ouvem falar do sol. Essa raça, viven­do debaixo da terra, imaginaria o sol como algo semelhante às suas peque­nas lâmpadas, ou como a luz de todas elas que conseguissem reunir. Eles se reuniram contentes ao redor desse monte de lâmpadas de mineiros, gri-

. tando jubilosos: ‘É com isto que o sol se parece!’ No entanto, o sol no céu parece-se com qualquer coisa, menos com este sonho irreal a seu respeito, concebido bem abaixo da superfície da terra. Foi desta forma que o povo dos tempos de Jesus sonhava com o Messias, enquanto que Jesus era o verdadeiro sol.”571

O apóstolo João declara: “Veio para o que era seu, e os seus não o receberam” (Jo 1.11); e o próprio Jesus Cristo disse ao povo, de­safiando-o a uma reformulação de seus conceitos à luz das Escritu­ras: “Examinais as Escrituras, porque julgais ter nelas a vida eter­na, e são elas mesmas que testificam de mim. Contudo não quereis vir a mim para terdes vida” (Jo 5.39-40). A imagem criada em suas mentes era mais forte do que todo o esplendor da realidade: “Rode­aram-no, pois, os judeus, e o interpelaram: Até quando nos deixa­rás a mente em suspenso ? Se tu és o Cristo, dize-o francamente. Respondeu-lhes Jesus: Já vo-lo disse, e não credes. A í obras que eu faço em nome de meu Pai testificam a meu respeito. Mas vós não credes, porque não sois das minhas ovelhas. A í minhas ovelhas ou­vem a minha voz; eu as conheço e elas me seguem” (Jo 10.24-27).

Observem as discrepâncias existentes na opinião do povo quan­to à identidade de Jesus de Nazaré (Mt 16.13-16).3. A UN ÇÃO DE JESUS

Como já vimos, o nome “Cristo” significa “ungido”. Uma per­gunta que se faz necessária é: Quando Jesus foi ungido?

570 Vd. Hermisten M.P. Costa, A L iteratura A pocalíptica Judaica, p. 36ss.571 Otto Borchert, O Jesus H istórico , São Paulo, Vida Nova, 1985, p. 275.

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210 EU CREIO.

Entendemos biblicamente que Jesus Cristo foi ungido desde a eternidade; há referências no Antigo Testamento que falam de sua capacitação eterna para o cumprimento de sua obra (Is 1 ] .2; 42.1; 61.1).572 Todavia, historicamente, tal unção teve lugar por ocasião da geração e santificação do “Filho de Deus” em Maria (Lc 1.35) e também no Batismo (Mt 3.16; Mc 1.10; Lc 3.22; Jo 1.32; 3.34; At 10.38). A demonstração histórica foi apenas uma representação vi­sível daquilo que era eterno. Jesus, o Cristo, fora eternamente capa­citado por Deus para ser o salvador de seu povo, comprando-o com seu próprio sangue (At 20.28; IPe 1.18-20), cumprindo assim o Pacto da Graça, firmado entre o Deus Pai, como representante da Trindade, e o Deus Filho, representando seu povo.4. A CO N SCIÊN CIA DE JESUS DE SER O MESSIAS DE DEUS

Por que me procuráveis? Não sabíeis que me cumpria estar na casa de meu Pai?” (Lc 2.49).

Muitos perguntam: “Se Jesus era de fa to o M essias e tinha cons­ciência disso, por que então ele não se autodesignou assim ?”

A luz do que já estudamos, podemos afirmar que Jesus rara­mente se designou como Cristo de Deus, por certo para evitar o mal-entendido que seu emprego teria provocado. Como vimos, o povo judeu aguardava de modo especial um Messias militar; se Je­sus proclamasse ser o Cristo (= Messias), seria o mesmo que convi­dar o povo a interpretações das mais diversas, e, o pior, todas erra­das. Se Jesus, procedendo com cautela, não impediu que houvesse sentimentos “messiânicos” por parte do povo em momentos de eufo­ria de “barriga cheia” (cf. Jo 6.11-15); se ele agisse de forma diferen­te, dizendo ser o Messias, “todo judeu que ouvisse a palavra ficaria a pensar em termos duma eventual revolta contra Roma e da gloriosa consumação quando o império judeu substituiria o romano”.573

Todavia, Jesus, em algumas ocasiões - atestando a consciência que tinha de ser o Messias - , identificou-se como o Cristo (Mc 9.41;

572 Vd. J. Ridderbos, Isaías: Introdução e Com entário (11.2), pp. 134-135.573 L. Morris, O Senhor do Céu , p. 44.

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VI - A Vinda de Jesus Cristo

Lc 24.44-49); não se esquivou de tal identificação (Lc 7.19-22; Mc 8.29; Mc 14.61-62; Mt 16.16-17) - ao contrário de João Batista que quando inquirido disse não ser o Cristo, Jo 1.19-27 embora orde­nasse a seus discípulos que não contassem isso a ninguém (Mc 8.29- 30; Lc 9.20-22), usando para si mesmo a expressão “Filho do Ho­mem”, como no contexto de Lucas, equivalente a “Cristo” (Lc 9.20- 22; Lc 24.44-49). Algo que nos chama atenção é o fato de que após a confissão de Pedro e a proibição de Cristo de não se divulgar ser ele o Messias, “começou Jesus Cristo a mostrar a seus discípulos que lhe era necessário seguir para Jerusalém e sofrer muitas coi­sas dos anciãos, dos principais sacerdotes e dos escribas, ser mor­to e ressuscitado no terceiro dia” (Mt 16.21. Cf. também Mc 8.31 e Lc 9.22). No texto fica evidenciado que, para Jesus, o Messiado não era o caminho da glória, fama ou poder, mas, sim, da dor, do sofri­mento, da humilhação, do abandono e da ressurreição,574 conferindo assim à palavra um significado superior jamais imaginado por um judeu.

A condenação de Jesus se deve ao fato de ser ele acusado de querer passar por Cristo (cf. Mt 26.63, 64, 68; Mc 14.61-64; Lc 22.66-71); sua crucificação demonstra de forma cabal que ele não quis contrariar a realidade desta acusação, assumindo, quer por pa­lavras, quer por eloqüente silêncio, a realidade de o ser!5. O TESTEMUNHO DOS PRIMEIROS CRISTÃOS

Simeão, pelo Espírito de Deus, reconheceu no bebê de pouco mais de quarenta dias, chamado Jesus, “o Cristo do Senhor”; proferindo então um poema profético (Lc 2.25-35). A piedosa profetiza Ana tem o mesmo sentimento quanto àquela criança (Lc 2.36-38).

574 “Seu ministério, coroado por sua paixão, foi caracterizado pela adesão constante à vereda que lhe fora destinada pelo Pai; e, em conseqüência disso, Jesus deu ao vocábulo ‘M essias’ um novo significado, que transcende todas as conotações que esta palavra ante­riormente tivera” (F. F. Bruce, M essias: In: J.D. D ouglas, cd. org. O N ovo D icionário da Bíblia , Vol. II, p. 1038). Vd. também George E. Ladd, Teologia do N ovo Testamento, pp. 132-134 e L. Morris, O Senhor do Céu, pp. 42-46.

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212 EU CREIO.

A visão messiânica dos escritores do Novo Testamento é uma visão cristológica; em outras palavras: para eles, Jesus é o Cristo. A confissão de Pedro é a confissão da Igreja, que por obra do Pai reco­nhece e professa a identidade do Filho (Mt 16.13-17;Mt 11.27).Por isso, os primeiros cristãos fazem de “Jesus, o Cristo”, sua primeira confissão de fé, e “todos os dias, no templo e de casa em casa, não cessavam de ensinar e de pregar Jesus, o Cristo” (At 5.42).

Isso significa que o messianismo já não faz parte da expectativa futura, mas, sim, da realidade vivencial deles. “Os escritos, sem dúvida, também olham para o futuro, e às vezes de modo intensivo, mas Aquele que é aguardado virá como sendo Aquele que já veio. Não é uma pessoa desconhecida àqueles que o aguardam. Ele é tão bem conhecido por eles como eles são para ele (cf. Jo 10.14).”575 (Vd. também Jo 20.30, 31; At 2.36; 18.5; 18.28; 28.31, etc.)

O título Messias (= Cristo) tornou-se logo um nome próprio. Je­sus passou a ser chamado Jesus Cristo ou Cristo Jesus, indicando des­se modo o reconhecimento pleno da Igreja de que Jesus é o Cristo.”576

IM PLICAÇÕES DOUTRINÁRIAS E PRÁTICAS

1) Jesus como o Cristo de Deus veio para cumprir a vontade do Pai. Nós somos santificados em Cristo para fazer sua vontade (leia lTs 4.1-8).

2) Todos aqueles que pelo Espírito crêem em Jesus Cristo fo­ram ungidos por Deus com seu Santo Espírito de forma permanente e irrevogável (2Co 1.21-22; 5.5; Ef 1.14; 4.30).

3) Nós olhamos a História de forma fragmentada; Deus a dirige dentro da perspectiva da eternidade. Assim, alguns fatos que nos parecem muitas vezes acidentais, tendo diversas explicações histó­ricas, são direcionados por Deus para a realização de seu plano re­dentor.

575 K.H. Rengstorf, Jesus Cristo: ln: Colin Brown, ed. ger. O N ovo D icionário Interna­cional de Teologia do N ovo Testamento, Vol. 11, p. 491.

576 Vd. George E. Ladd, Teologia do N ovo Testamento, p. 127.

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VI - A Vinda de Jesus Cristo 213

4) Todos os nossos conceitos devem ser verificados à luz da Palavra. Um crente maduro e sincero não deve ter medo de avaliar sua fé. Lembremo-nos mais uma vez de que foram os conceitos judeus, formados dentro de circunstâncias históricas - contudo, dis­tantes da plenitude da revelação do Antigo Testamento - , que os impediu de ver em Jesus o Cristo (leia Jo 5.39-40).

5) Jesus Cristo veio ao mundo salvar seu povo, sabendo o que lhe aguardava: a rejeição, a morte e o sofrimento. Entretanto, ele veio para nos dar vida (Jo 10.10). É nossa responsabilidade não menosprezar a salvação que ele nos oferece (Hb 2.1-4), vivendo de modo digno dele (Cl 1.10; lTs 2.12).

Page 211: Eu Creio no Pai no Filho e no Espírito Santo - Hermisten Maia Pereira

VII-A PESSOA DE CRISTO-------------------------------------------------------------------------------— — —

"Devemos precaver-nos para oue, cedendo ao desejo de adeouar Cristo às nossas próprias invenções, não o mudemos tanto (como fazem os papistas), Que ele se torne dissemelhante de si próprio. Não nos é permitido inventar tudo ao sabor de nossos gostos pessoais, senão oue pertence exclusivamente a Deus ins­truir-nos segundo o modelo oue te foi mostrado [Ex 25.40]." - |oão Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo, Parakletos, 1997 (Hb 8.5), p. 209.

IN TRO D U ÇÃO

No Credo Apostólico confessamos: “Creio em Jesus Cristo seu único Filho, nosso Senhor, o qual foi concebido por obra do Espírito Santo...”.

O homem moderno é levado a ter um “alto” conceito da Pessoa de Jesus Cristo; chamam-no de “grande mestre”, “grande revoluci­onário”, “líder religioso”, “humanitário”, “profeta”, “um homem quase divino”, “homem cheio de Deus” etc. Todavia, devemos no­tar que qualquer juízo a respeito de Cristo que em primeiro lugar não reconheça o fato de ele ser o próprio Deus encarnado é, na realidade, não um “elogio”, mas, sim, uma diminuição de seu Ser; por isso, uma ofensa, uma blasfêmia.

E você, o que pensa de Cristo? Hoje, a pergunta de Cristo con­tinua com a mesma relevância: “Mas vós, quem dizeis que eu sou ?”. A verdadeira compreensão do Mistério de Deus: Jesus Cristo é um milagre de Deus; é uma obra da graça de Deus em nós, visto que conhecer a Deus é questão de sua livre graça. Por isso, após a res- posta-confissão de Pedro — “Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo” (Mt 16.16) - , Jesus lhe diz: “Bem-aventurado és, Simão Barjonas,

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porque não fo i carne e sangue que to revelaram, mas meu Pai, que está nos céus” (Mt 16.17; Mt 11.25-27).

Debrucemo-nos sobre a Palavra, sob a iluminação do Espírito, para conhecermos um pouco mais sobre a Pessoa do Deus-Homem: Jesus Cristo.1. A DIVINDADE DE CRISTO

A Bíblia declara e demonstra com clareza que Jesus Cristo é Deus. Vejamos o que a Palavra nos diz a respeito:

1.1. Sua Divindade Profetizada

Leia e compare os textos: SI 45.6-7; Hb 1.8-9; SI 110.1; At 2.32- 36; Hb 1.13; Is 9.6-7; Lc 1.31-33; Jr 23.6; Mq 5.2; Ml 3.1.

1.2. Sua Divindade Reconhecida

1.2.1. Pelo Pai e pelo Espírito Santo

Mt 3.16-17; Is 42.1.1.2.2. Por Ele Mesmo

Mt 11.27; 16.16, 17; 25.31; 27.63-65; 28.18; Jo 5.17, 18; 6.37- 40, 57; 8.34-36; 10.17, 18, 30, 35-38; 14.7-9; 19.7.

1.2.3. Por Seus Discípulos

Jo 1.1-3, 14,18; 20.28; Mt 14.33; Rm 9.5; 1Co 2.8;2C o 12.8-9; Cl 2.9; 1.19; lTm 3.16; Tt 2.13.

1.2.4. Pelos Próprios Demônios

Mt 8.29; Mc 1.23, 24.1.3. Sua Divindade Demonstrada

1.3.1. Títulos Divinos

Jesus Cristo recebeu designações aplicáveis somente a Deus. Jo1.1, 18; 20.28; Rm 9.5; 2Ts 1.12; lTm 3.16; Tt 2.13; Hb 1.8; 2Pe1.1; lJo 5.20.

VII - A Pessoo de Cristo 215

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216 EU CREIO.

1.3.2. Perfeições Divinas

A Palavra atribui a Cristo diversas perfeições que são próprias do Ser de Deus:

1) Onisciência: Mt 9.4; 1 í .27; 24.1, 2, 14; Mc 2.8; Lc 6.8; 9.47; Jo 1.48; 2.24, 25; 4.17, 18, 39; 6.64; 11.14; 13.37,38; 16.30; 21.17; Cl 2.3. Devemos observar aqui que o fato de Jesus dizer que não sabia o dia de sua volta (Mc 13.32) não anula o que afirmamos acima. Entendemos que o Verbo encarnado, durante seu estado de humilhação, não tinha conhecimento disso porque não era da von­tade de seu Pai, e Jesus Cristo limitava-se a fazer e a conhecer aqui­lo que era do agrado do Pai; todavia, em seu estado de exaltação, a partir de sua ressurreição, isso já era conhecido, entretanto ele não quis revelar (At 1.6, 7).577Em seu estado de humilhação, ainda que não saibamos compreender adequadamente isso, sua onisciência foi usada de forma restrita (vd. Mc 2.8; 5.32; 9.21, 33-34; 10.33-34;11.12-13).578

2) Onipresença: Mt 18.20; 28.20; Jo 1.18; 3.13. A encarnação do Verbo não significa o encarceramento do Logos no corpo de Jesus; a Segunda Pessoa da Trindade está de fato encarnada, mas também continua presente em todos os lugares sustentando todas as coisas com seu poder.579

3) Onipotência: Mt 11.27; 28.18; Lc 7.14; Jo 5.26-29; 10.18;11.43, 44; Ef 1.22; Hb 1.3; Ap 1.8; 11.17.

4) Eternidade: Is 9.6; Mq 5.2; Jo 1.1,2, 15, 30; 6.62; 8.58; 13.3; 16.28; 17.5, 24; 2Co 8.9; Cl 1.17; Ap 1.8, 17, 18; 22.13.

5) Imutabilidade: Hb 1.11, 12; 13.8.577 Vd. J.l. Packer, O Conhecimento de D eus , São Paulo, Mundo Cristão, 1980, p. 53.578 Vejam-se: John Calvin, H arm ony o f the Evangelists, Grand Rapids, M ichigan, Baker

Book House (C a lv in ’s Com mentaries, Vol. XVII), 1996, pp. 153-154; R.C.H. Lenski, The Interpretation o f St. M a rk’s G ospel, Peabody, Massachusetts (C om m entary on the N ew Testam ent), 1998 (M e 13.32), pp. 590-591; Guillerm o Hendriksen, El Evangelio Segun San M arcos, Grand Rapids, M ichigan, Subcom isión Literatura Cristiana, 1987 (M e 13.32), pp. 552-553;

575 Vd. C atecism o de H eidelberg, Pergs. 47 e 48; W ayne A. Grudem, Teologia Sistem áti­ca, p. 462.

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6) Santidade: Lc 4.34; Jo 6.69; 8.46; 2Co 5.21; Hb 7.26; IPe 2.22.

7) Víí/a em si mesmo e “Im ortalidade”: Jo 1.4; 2.19-22; 5.26; 10.17-18; 11.25; Hb 7.16.

1.3.3. Obras Divinas

A Palavra atribui a Jesus Cristo a realização de obras que são prerrogativas divinas:

1) Autoridade para perdoar pecado: Mt 9.6; 26.28; Mc 2.5-12; Lc 24.46, 47; Jo 1.29; At 10.43; Cl 1.14.

2) Cura miraculosa: Mt 8.13, 15; 9.23-26; 11.4, 5.3) Poder sobre os demônios: Mt 8.31, 32.4) Poder sobre a natureza: Mt 8.23-27.5) Autoridade sobre o sentido do “sábado”: Ex 20.8-11; Mc

2.27-28.6) Criação e preservação: Jo 1.3, 10; ICo 8.6; Cl 1.16, 17; Hb

1.3, 8, 10.7) Autor da salvação: objeto da fé: Mt 1.21; Lc 19.10; Jo 3.16,

18, 36; 8.24; 10.9, 27, 28; 11.26; 12.44, 45; 14.1; 15.5, 6; 17.3; 20.31; At 4.12; 16.31; A p7.10.

8) Eleição: Jo 13.18; 15.16; Ef 1.4.9) O envio do Espírito Santo: Jo 16.7, 14.10) A santificação: Ef 5.25, 26.11) A ressurreição de seu povo: Jo 6.40.12) Juízo Final: Mt 7.21-23; 25.31-46; At 10.42; 2Co 5.10; Jo

5.22-29.Um outro fato que atesta a divindade de Cristo é a adoração

tributada a ele, bem como as orações. Biblicamente, somente Deus deve ser adorado, e o próprio Jesus em seu confronto com Satanás, cita o texto de Dt 6.13, dizendo: “Ao Senhor teu Deus adorarás, e só a ele darás culto” (Mt 4.10). Entretanto, ele aceita ser adorado, e o Novo Testamento ensina esta prática explicitamente [Mt 14.33;

VII - A Pessoa de Cristo 217

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218 EU CREIO.

15.25; 28.9, 17; ICo 1.2; Fp 2.9-11 (compare com Lc4.8; At 10.25, 26; Ap 19.10; 22.8, 9; outros textos: Lc 24.52; Jo 5.22, 23; 20.28; At 7.59, 60; Hb 1.6; Ap 5.11, 14)].2. A HUMANIDADE IMACULADA DE JESUS CRISTO

A Bíblia declara e demonstra de forma enfática que Jesus Cristo é também perfeitamente homem; ou seja, ele viveu como um ho­mem sujeito aos mesmos limites do ser humano. Todavia, o que em geral causa muita confusão em nossas mentes, é o fato de nos es­quecermos que ele era um homem sem pecado (Jo 8.46; 2Co 5.21; Hb 4.15); e também, porque todo o nosso referencial existencial para analisar isto, é vivido e conhecido dentro de um contexto pe­caminoso; ou seja, nós não sabemos o que é ser homem sem o estig­ma do pecado, já que todos pecaram (Rm 3.23; 5.12). Consideran­do este ponto, vejamos de forma esquemática algumas afirmações e demonstrações da verdadeira Humanidade de Cristo.

2.1. Sua Humanidade Profetizada

Ao lado da afirmação da divindade do Messias, o Antigo Testa­mento igualmente indica sua humanidade (Gn 3.15; Is 7.14; Mt 1.22, 23; Is 53.1-12; At 8.29-35; IPe 2.21-25).

2.2. Sua Humanidade Reconhecida

2.2.1. Ele Chamou-se Homem e Assim Também Foi Chamado

Mt 4.4; 8.20; Jo 8.40; At 2.22; Rm 5.15; ICo 15.21; lTm 2.5.2.2.2. Ele Veio em Carne

Jo 1.14; lTm 3.16; Hb 5.7; lJ o4 .2 .2.3. Sua Humanidade Demonstrada

2.3.1. Ele é Contada Genealagicamente como Hamem

Mt 1.1, 16, 17; Lc 3.23.

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VII - A Pessoa de Cristo 219

2.3.2. Nascido de Mulher

Mt 1.18; 2.11; Lc 2.6, 7; G! 4.4.2.3.3. Tem Corpo e Alma (= Espírito), Elementos que Com­

põem a Natureza Humana

Mt 26.26, 28, 38; 28.9; Mc 14.34; Lc 23.46; 24.39-43; Lc 2.52; Jo 11.33; 12.27; 13.21; 19,30; 20.20, 27.

2.3.4. Esteve Sujeito às Leis Ordinárias na Natureza Humana

1) Nascimento e crescimento: Mt 2.1; Lc 2.6, 7, 11, 40, 42, 52.Jesus nasceu como uma criança normal - após cumprirem-se os

dias -; não sabendo falar, nem andar; desenvolveu-se como uma criança comum, tendo que ser trocado, banhado, amamentado, cui­dado, conduzido, tomado nos braços, enfim passou por todas as experiências possíveis a uma criança normal (vd. Lc 2.5-7, 22, 27, 28). Teve também que ser educado pelos pais.

2) Obediência: Lc 2.51; Hb 5.8.3) Morte: Mt 27.50; Jo 19.30; At 3.15; 5.30; ICo 15.3.2.3.5. Necessidades, Características e Sentimentos Humanos

1) Teve fome: Mt 4.2, 11; 21.18.2) Teve sede: Jo 19.28.3) Sentiu cansaço: Jo 4.6; Lc 23.26.4) Simpatia: Jo 11.33.5) Sentiu sono: Mt 8.24.6) Chorou: Lc 19.41; Jo 11.35.7) Sofreu: Lc 22.44;24.46; Hb 2.18; 5.8.8) Indignou-se: Mc 3.5; 10.14.9) Compadeceu-se: Mt 9.36; Mc 1.41.10) Admirou-se: Mt 8.10.11) Amou: Mc 10.21; Jo 13.23.12) Alegrou-se: Jo 15.11.

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220 EU CREIO.

13) Foi tentado: Mt 4.1; Hb 2.18;4.15; Tg 1.13.14) Orou: Mt 14.23; Lc 6.12; Hb 5.7.Grudem comenta: “Ele era tão plenamente humano que mesmo

os que viveram e trabalharam com ele por trinta anos, mesmo os irmãos que cresceram na casa dele, não percebiam que era um tanto superior a outros seres humanos muito bons. Ao que parece, não tinham idéia de que ele fosse Deus vindo em carne.”580

Jesus era, indiscutivelmente, um homem como todos nós; toda­via sem pecado (Jo 6.69; 8.46; 2Co 5.21; Hb 4.15; 7.26; 9.14; 2Pe 2.2; 1 Jo 3.5). Por isso, por não pecar, não precisava pedir perdão.

IMPLICAÇÕES DOUTRINÁRIAS E PRÁTICAS1) “A doutrina da Trindade declara que o homem Jesus é verda­

deiramente divino; a da encarnação declara que o divino Jesus é verdadeiramente humano. Juntas, elas proclamam a plena realida­de do Salvador que o Novo Testamento apresenta, o Filho que veio da parte do Pai, pela vontade do Pai, para tornar-se o substituto do pecador sobre a cruz.”581

2) Jesus Cristo é perfeitamente Deus e perfeitamente homem; qualquer tentativa de valorizar uma de suas naturezas em detrimen­to da outra implica em perdermos de vista a plenitude da revelação bíblica.

3) Jesus Cristo é homem que pode entender nossas necessida­des, e é Deus que pode nos socorrer eficazmente (Hb 2.17, 18; ICo10.13). Calvino (1509-1564), comentando o texto de Jo 11.33, refe- re-se à simpatia de Cristo, dizendo: “Quando o Filho de Deus vestiu nossa carne, também concordou voluntariamente em vestir as emo­ções humanas.”582

580 W ayne A. Grudem, Teologia Sistem ática, p. 440.581 Encarnação: In: J.I. Packer, Teologia Concisa, Campinas, SP, Luz para o Caminho,

1999, p. 98.582 John Calvin, G ospel Accordin to John, Grand Rapids, M ichigan, Baker Book House

Com pany (C a lv in ’s Com mentaries, Vol. XVII), 1996, p. 440.

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VII - A Pessoa de Cristo 221

4) Nossa salvação só poderia vir de Deus. Deus cumpriu sua promessa (Gn 3.15; G1 4.4-5), providenciando de forma definitiva nossa salvação em Cristo Jesus.

5) Que conceito você tem de Cristo? Basicamente, não importa o que os outros acham; a questão é sua diante de Deus (Rm 14.12; 2Co 5.10).

6) Nós só conseguimos entender a obra de Cristo quando acei­tamos pela fé o mistério glorioso de suas duas naturezas, “A glória das duas naturezas de Cristo numa única pessoa é tão imensa que o mundo incrédulo não pode ver a luz e a beleza que irradiam dela”, concluiu John Owen.583

581 John Owen, A Glória de Cristo, São Paulo, PES, 1989, p. 24.

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VIII - A UNIDADE E A NECESSIDADE DAS DUAS NATUREZAS DE CRISTO

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“A mente piedosa não sonha para si um Deus QualQuer; ao contrário, contempla somente o Deus único e verdadeiro; nem lhe atribui o Que Quer oue à imaginação haja acudido, mas se contenta com tê-lo tal Qual ele próprio se manifesta e, com a máxima diligência, precavém-se sempre, para Que não venha, mercê de ousada temeridade, a vaguear errática, trespassados os limites de sua vontade." - 1. Calvi- no, As Institutas, 1.2.2.

"...Não há nada oue Satanás mais tente fazer do Que levantar névoas para obscurecer a Cristo; pois ele sabe oue dessa forma o caminho está aberto para todo tipo de falsidade. Assim, o único meio de manter e também de restaurar a doutrina pura é colocar Cristo diante de nossos olhos, exatamente como ele é, com todas as suas bênçãos, para oue seu poder possa ser verdadeiramente perce­bido." - |ohn Calvin, Commentary on the Epistle to the Co/oss/ans, Grand Rapids, Michigan, Baker Book House (Calvin's Commentaries, 1981 (reprinted), Vol. XXI (Cl 1.12), pp. 145-146.

INTRODUÇÃO

No capítulo anterior estudamos a realidade das duas naturezas de Cristo, afirmando que Jesus Cristo é plenamente homem e plenamente Deus. Por natureza entendemos os elementos essenci­

ais para que uma coisa seja o que é (a concreta substância de uma espécie); desta forma, quando falamos em natureza humana nos referimos a um corpo mortal e uma alma (= espírito) imortal, os quais a constituem.

Neste texto estudaremos algumas questões que são levantadas na história, as quais ainda hoje são debatidas por muitos, e que de­vem despertar nosso interesse; não por vã especulação, mas para conhecermos melhor nosso Senhor Jesus Cristo (2Pe 3.18). Algu-

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VIII - A Unidade e a Necessidade das Duas Naturezas. 223

mas das questões são: Por que era necessário que o Redentor fosse Deus? Por que era necessário que ele fosse humano? Qual a relação existente entre as duas naturezas de Cristo?

Antes de adentrarmos este estudo, faz-se necessário entender que este assunto tem seus mistérios, os quais pertencem a Deus; todavia, é importante notar que a Bíblia nos fala da realidade da encarnação; por isso temos o dever de estudá-lo, visto que o que Deus revelou em sua Palavra pertence a nós, para estudo e prática (Dt 29.29). Atentemos para a recomendação de Agostinho (354- 430): “Ignoremos de boa mente aquilo que Deus não quis que sou­béssemos.”584 Em suma, resumindo nossa postura: Devemos nos limitar à Palavra, para que não façamos afirmações que a Bíblia desconhece.1. A NECESSIDADE DA DIVINDADE DO REDENTOR

No Catecismo M aior, à pergunta 38, lemos:“Por que era indispensável que o Mediador fosse Deus?”

“R : .... para poder sustentar a natureza humana e guardá-la de cair sob a ira infinita de Deus e o poder da morte; para dar valor e eficácia aos seus sofrimentos, obediência e intercessão; e para satisfazer a justiça de Deus, conseguir seu favor, adquirir um povo peculiar, dar a este povo seu Espíri­to, vencer todos os seus inimigos e conduzi-lo à salvação etem a.”

De forma resumida, podemos dizer que a divindade do Reden­tor era necessária para que:

1) Pudesse cumprir perfeitamente a lei: E impossível a qual­quer homem cumprir totalmente a Lei de Deus (Rm 7.14-25).

2) Revelasse Deus e sua salvação aos homens: Em Cristo nós conhecemos o Pai e temos a salvação eterna (Mt 11.27; Jo 1.18; 14.11-18; ICo 2.9-11).

584 Agostinho, Com entário aos Salm os, São Paulo, Paulus (Patrística, 9 /1), 1998 (SI 6), Vol. I, p. 60. D e igual modo, Calvino: “Tudo o mais que pesa sobre nós e que devem os buscar é nada sabermos senão o que o Senhor quis revelar à sua igreja. Eis o limite de nosso conhecim ento” [João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, São Paulo, Parakletos, 1995 (2Co 12.4), pp. 242, 243].

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224 EU CREIO.

3) Derrotasse definitivamente a Satanás, tirando de seu domí­nio os pecadores escravizados (Hb 2.14-15; Jo 12.31; 16.11; Jo 14.30).

4) Suportasse o peso da culpa do pecado de seu povo, bem como a ira de Deus que cairia sobre ele, como representante dos eleitos, libertando assim os seus da maldição decorrente do não compri­mento da Lei (Is 53.1-12; Mt 27.46; G1 3.10-13).

5) Pudesse constituir-se num caminho perfeito e imaculado, con­duzindo o homem a Deus. Esta obra ninguém poderia fazer, ne­nhum dos filhos de Adão, nem mesmo um anjo585 (Jo 14.6; lTm 2.5;lPe 3.18).

6) Para que pudesse apresentar-se como sacrifício perfeito e aplicasse de forma eterna seus méritos a seu povo eleito (Hb 7.3, 24-28; 9.24-25).2. A NECESSIDADE DA HUMANIDADE DE CRISTO

À pergunta 39 do Catecismo Maior, lemos:“Por que era indispensável que o Mediador fosse homem?

“R: .... para poder soerguer nossa natureza e possibilitar a obediência àlei, sofrer e interceder por nós em nossa natureza e solidarizar-se com nos-sas enfermidades, para que recebêssemos a adoção de filhos e tivéssemosconforto e acesso, com confiança, ao trono da graça.”

Seguindo a mesma linha de pensamento, podemos, resumida­mente, dizer que a humanidade de Cristo era necessária:

1) Para ser um exemplo humano perfeito para seus discípulos (Mt 11.29; Jo 13.13-15; Rm 8.29; Fp 2.5-8; Hb 12.2-4; IPe 2.21; lJo 2.6).

2) Cumprisse o propósito de Deus para o homem em relação a sua criação. O homem, ao pecar, perdeu o domínio sobre a criação; Jesus Cristo demonstra, em sua vida, o domínio sobre ela (Ef 1.22; Hb 2.8-9).586

585 Ver: JoãoC alvino, A s Instituías, 11.12.1.586 Cf. W ayne A. Grudem, Teologia Sistem ática , p. 446.

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VIII - A Unidade e a Necessidade das Duas Naturezas... 225

3) Representar genuinamente seu povo - sendo o segundo Adão através de quem Deus trata com os eleitos, tornando-se o único

Mediador entre Deus e os homens (Rm 5.15-19; ICo 15.21-23; 46- 49; lTm 2.5). Se Jesus veio salvar os homens, teria que tornar-se homem, não um anjo.

4) Para que estivesse sob a Lei, a fim de poder cumpri-la por seu povo (G1 4.4-5).

5) Para que pudesse arcar moral, física e espiritualmente com as conseqüências do pecado de seu povo, já que o pecado trouxe graves prejuízos sobre estas três áreas. Todavia, tinha que ser homem sem pecado para que pudesse apresentar-se a si mesmo como oferta santa e imaculada (Hb 7.26-27; 9.14). Desta forma morresse pelos pecado­res eleitos, visto que somente a carne pode morrer (IPe 1.18-20).

6) Para simpatizar com os seus, já que ele estaria sujeito às mesmas tentações (Hb 2.16-18; 4.15-16).

7) “Para ser o padrão de nosso corpo redimido”.587 A ressurrei­ção de Cristo revela o padrão de nosso corpo redimido para todo o sempre (IC o 15.21-23; 42-44; Cl 1.18).3. A NECESSIDADE DAS DUAS NATUREZAS NUMA SÓ

PESSOA

Em resposta à questão 40 do Catecismo M aior - “Por que era indispensável que o Mediador fosse Deus e homem em uma só pes­soa?”, responde:

para que as obras próprias de cada natureza pudessem ser aceitas por Deus a nosso favor e que nós confiássemos nelas como obras da pessoa inteira”.

Era necessário que o homem levasse sobre si a culpa do pecado, cumprindo o aspecto condenatório da Lei; e, ao mesmo tempo, que fosse Deus para poder cumpri-la, suportando a justa ira de Deus, conferindo um valor eterno ao seu sacrifício (Hb 9.23-28).

587 W ayne A. Grudem, Teologia S istem ática, p. 446.

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226 EU CREIO.

João Calvino escreveu sobre isso:“Visto, então, que Deus por si só não poderia provar a morte, e que o

homem por si só não poderia vencê-la, ele tomou sobre si a natureza hu­mana em união com a natureza divina, para que sujeitasse a fraqueza da­quela a uma morte expiatória, e que pudesse, pelo poder da natureza divi­na, entrar em luta com a morte e ganhar para nós a vitória sobre ela.”588

4. A UNIPERSONALIDADE DE CRISTO

4.1. A Visão dos Escritores do Novo Testamento

Os escritores do Novo Testamento, em nenhum momento, de­monstraram estar preocupados com as implicações metafísicas (transcendentes) concernentes à Pessoa de Cristo. Quando eles fa­lam de Cristo, fazem-no preocupados em demonstrar que a divin­dade e a humanidade dele são verdades que constituem a condição básica e essencial para sua obra expiatória (Rm 8.3; Fp 2.6-11; ve­jam-se, também: Jo 1.18; Cl 1.13-22; Hb 1 e 2; 4.4-5.10; 7.1-10.18; lJo 1.1-2.2).

Todavia, já na metade do primeiro século da Era Cristã, surgi­ram alguns homens dispostos a negar a verdadeira humanidade de Cristo, contra os quais João escreveu veementemente (cf. Jo 1.14; 4.1-6).

4.2. Erros Concernentes à Compreensão das Duas N a­turezas de Cristo

Como resultado da não compreensão das duas naturezas de Cris­to, nos primeiros séculos da Era Cristã surgiram diversas heresias concernentes à Pessoa de Cristo. Essas concepções ora negavam a divindade, ora negavam a humanidade de Cristo. Alguns teólogos, no afã de combater alguma forma de erro, caíram com freqüência em outro; passando a existir daí, não mais uma heresia, mas duas!. Segundo Grudem, essas heresias surgiram da negação de um desses princípios fundamentais, a saber: a) Deus é três pessoas; b) cada

588 João Calvino, /4í Instituías da Religião C ristã , edição abreviada por J.P. W iles, São Paulo, PES, 1984,11.12, p. 182.

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VIII - A Unidade e a Necessidade das Duas Naturezas... 227

pessoa é plenamente Deus; e c) só há um Deus.589Notemos também que, nos primeiros séculos, a Igreja confessou direta e indiretamen­te a Santíssima Trindade, a divindade do Filho e do Espírito; isto estava implícito de várias formas: no batismo, na “bênção apostóli­ca” e na recitação do Credo Apostólico. O problema surge na ela­boração desta verdade de modo compreensível. Na elaboração da doutrina é que a Igreja se viu em sérias dificuldades: como tornar compreensível doutrinas entremeados de mistérios? Este foi um dos problemas. Na tentativa de verbalizar a doutrina é que muitas here­sias surgiram.Vejamos abaixo apenas os principais erros.

4.2.1. O Ebionismo

Heresia surgida nos círculos judaicos, no final do primeiro sé­culo. O nome é derivado do hebraico: pilK ( ‘ebheyôn), que signifi­ca “pobre”, “necessitado”, “miserável”, “mendigo”, “pedinte de esm olas”.590 Eusébio de Cesaréia (c. 262-339), com uma dose de maldade, diz que este nome “manifesta a pobreza de sua inteli­gência”.591 Informa que eles tinham a respeito de Cristo “pensamen­tos pobres e de baixa estima”.592 Criam que a fé não era suficiente para a salvação, sendo preciso que os homens observassem a Lei.593 De­terminado grupo de ebionitas, “heterodoxo”, cria que Jesus era um mero homem, filho de José e Maria, porém um sincero observador da Lei 594 Ele foi qualificado através do batismo pela descida do Espírito Santo para ser um profeta e mestre; porém o Espírito Santo o abando­nou no Calvário (vd. lJo 5.6-12). No entanto, como Messias predes­tinado, ele voltaria à terra para reinar.595

5S‘JWayne A. Grudem, Teologia S istem ática, p. 177.5511 Apesar de haver alusões (H ipólito e Tertuliano) a um suposto Ebião com o fundador da

seita, esta palavra relembra o título com que a igreja judaico-cristã de Jerusalém gostava de ser reconhecida (vd. Rm 15.26; G1 2.10; cf. J.N.D. Kelly, D outrinas C entrais da F é Cristã: O rigem e D esenvolvim ento , p. 103),

5,1 Eusébio de Cesarea, H istoria E clesiastica , Madrid, La Editorial Católica (Biblioteca de Autores Cristianos, Vols. 349-350), 1973, III.27.6 (doravante citada com o HE).

552 Eusébio, HE., III.27.1.5,3 Eusébio, H E., 111.27.2.594 Eusébio, HE., II1.27.2/VI. 17.595 J.N .D . Kelly, D outrinas Centrais da Fé Cristã: O rigem e D esenvolvim ento, p. 103.

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228 EU CREIO.

Este grupo desejava manter a qualquer preço o monoteísmo do Antigo Testamento - preservando a Lei mosaica e uma forma de ascetismo: todos os cristãos deveriam ser circuncidados nem que para isso tivessem que negar a divindade de Cristo e sua concepção virginal... o que de fato fizeram. Na tentativa de preservar o mono­teísmo bíblico, os ebionitas sacrificaram todos os textos que falam da divindade e eternidade do Filho.

Rejeitavam os escritos de Paulo, chamando-o de “apóstata da lei”;596 todavia, honravam a Tiago e Pedro.

Devemos acentuar que todo o ebionismo é subordinacionista. A divindade do Filho, quando aceita, é menor que a de Deus. O Filho é ontologicamente subordinado ao Pai.

4.2.2. O Gnosticismo

Nome derivado do grego yvcüaiç, “conhecimento”. Este grupo extremamente “amorfo”597 surgiu provavelmente no primeiro sécu­lo.598 Os gnósticos pretendiam ter um conhecimento esotérico, se­creto e especulativo de Deus. Na busca de um conhecimento maior, o gnosticismo se caracterizava por ser altamente especulativo, fa­zendo um sincretismo de elementos gregos, judeus, cristãos e ori­entais, buscando uma explicação peculiar para a origem do mal. Irineu (c. 130- c. 200) os retrata como hereges que corromperam a doutrina cristã, mesclando-a com a filosofia pagã.599 No entanto, ao que parece, muitos dos mestres gnósticos eram cristãos sinceros,

596 Eusébio, # £ . , 111.27.4.TO7 Conforme expressão de C.H. Dodd, A in terpretação do Q uarto E vangelho, São Paulo,

Paulinas, 1977, p. 134 e de J.N.D. Kelly, D outrinas C entrais da Fé Cristã: O rigem e D e­senvolvim ento, p. 16. D o m esm o modo entende A.F. W alls, Gnosticismo: ln: J. D . D ouglas, ed. ger. O N ovo D icionário da B íblia , São Paulo, Junta Editorial Cristã, 1966, Vol. 11, p. 674.

598 Há um certo consenso por parte dos Pais da Igreja em atribuírem a Sim ão, o M ágico (At 8.9ss), a origem do gnosticism o (vd., por exem plo, Irineu, Irineu de L ião , São Paulo, Paulus, 1995,1.23.2 . p. 99s.); todavia, nos detalhes são divergentes, devido à variedade de grupos gnósticos (vd. J.N.D. Kelly, D outrinas Centrais da Fé Cristã: O rigem e D esenvol­vim ento, p. 16ss; B. Hãgglund, H istória da Teologia, Porto Alegre, R S, Concórdia, 1973, p. 27).

M‘J Irineu, Irineu de Lião, 11.14.1. p. 161 ss.

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VIII - A Unidade e a Necessidade das Duas Naturezas. 229

desejosos de expressar o evangelho de forma que parecesse satisfa­tório a seus contemporâneos. Contudo, foram infelizes em sua ten­tativa, sacrificando o conceito bíblico do Logos divino em prol de seus pressupostos filosóficos.600

Uma das preocupações dominantes nos sistemas gnósticos era com a questão da dualidade, caracterizada pela miséria e futilidade da vida humana neste mundo: vida aprisionada pelo corpo material, e o contraste com a ordem superior, inteiramente espiritual, que não se comunica com a matéria.

A matéria é má, e Deus, o Pai supremo (Bythos), é o Éon perfei­to; por isso Deus não pode ter criado o mundo; “o que Deus fez foi lançar uma série de emanações [30].601 Cada uma dessas emana­ções distanciou-se mais de Deus, até que por último houve uma emanação tão distante que pôde tocar a matéria. Esta emanação [Demiurgo, identificado como o Deus do Antigo Testamento] foi a que criou o mundo (...). Os gnósticos sustentavam que cada emana­ção conhecia cada vez menos a Deus, até chegar a um ponto que as emanações não só ignoravam a Deus, mas que lhe eram hostis. As­sim chegaram, finalmente, à conclusão de que o deus criador não só era distinto do Deus verdadeiro, mas que o ignorava e lhe era ativa­mente hostil” .602

Para os gnósticos, Deus (Bythos) não tinha nada a ver com este universo, daí, possivelmente, a afirmação de João: “Todas as coisas foram feitas por intermédio dele, e sem ele nada do que fo i feito se fe z” (Jo 1.3).

A respeito da Pessoa de Cristo, havia dentro do gnosticismo uma variedade de idéias, a saber:

600 Vd. J.N.D. Kelly, Doutrinas Centrais da Fé Cristã: Origem e D esenvolvim ento , p. 20.601 Irineu, Irineu de Lião, 1.1.3. p. 33. “Esses trinta éons constituem o Pleroma, ou a

plenitude da D ivindade” (J.N.D. Kelly, D outrinas Centrais da Fé Cristã: O rigem e D esen­volvim ento, p. 17).

602 W illiam Barclay, Juan I, Buenos Aires, La Aurora (El Nuevo Testamento C om enta­do), 1974, Vol. 5, p. 20. Para uma descrição mais detalhada desse processo de emanações, vejam-se: J.N.D. Kelly, D outrinas Centrais da Fé Cristã: O rigem e D esenvolvim ento, p. 17ss; B. Hãgglund, H istória da Teologia, pp. 29-30; L. Berkhof, H istória das D outrinas C ristãs, São Paulo, PES, 1992, pp. 45-47.

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230 EU CREIO.

a) Jesus era uma das trinta emanações, “aeons”, do Deus bom, “Bythos”, emitidas para entrarem em contato com a matéria que é má. Assim sendo, Jesus não é divino, é apenas uma espécie de semi­deus, uma entidade entre Deus e os homens.

Deus - Bom Deus - Bom

Jesus Cristo seria uma das emanações

Matéria má Matéria má

b) Partindo do princípio filosófico de que a matéria é essencial­mente má, afirmavam que Jesus não tinha corpo real; desse modo ele era uma espécie de fantasma, sem carne e sangue reais. Jesus era uma ilusão; parecia homem, mas não era (docetismo);603 o filho de Deus, que era real, apenas usava o Jesus humano como meio de expressão; a encarnação, portanto, era apenas uma ilusão.604Por trás desse conceito estava a concepção de que Deus não pode sofrer;

603 C om o sabemos, este nom e é derivado do verbo grego SoK éco = “parecer, ter a aparên­cia de” . Este ensinam ento foi primariamente difundido por volta do ano 85, por Cerinto, natural de Alexandria, discípulo de Fílon.

fi()4 Vd. M.C. Tenney, Docetism o: In: E.F. Harrison, ed. D iccion ario de Teologia, Grand Rapids, M ichigan, T.E.L.L., 1985, p. 175; Docetism o: ln: R.N. Champlin & João M. Ben- tes, E nciclopédia de Bíblia, Teologia e Filosofia, São Paulo, Editora e Distribuidora Can­deia, 1991, Vol. 2, pp. 203-205; J.N.D. Kelly, D outrinas Centrais da Fé Cristã: O rigem e D esenvolvim ento , pp. 104-105.

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VIII - A Unidade e a Necessidade das Duas Naturezas. 231

logo, se Cristo sofreu, ele não era Deus; e se ele era Deus, não poderia sofrer. Então, o sofrimento de Cristo teria sido apenas na aparência, não real. Inácio, bispo de Antioquia, no início do segun­do século (c. 110), combateu ferrenhamente o docetismo, afirman­do a divindade e a humanidade de Cristo.605 Do mesmo modo, Poli- carpo (c. 75-c. 160), bispo deEsmima, escreve aos filipenses: “Qual­quer que não confesse que Jesus Cristo veio em carne é um anticris- to. E quem não confessa o testemunho da cruz é do diabo.”606

Alguns diziam que quando ele andava não deixava pegadas, por­que seu corpo não tinha peso nem substância. João, de modo especi­al, combateu esse tipo de conceito em seus escritos, evidenciando que negar a verdadeira humanidade de Cristo equivalia a negar um dos pontos centrais da fé cristã (vd. Jo 1.14; Uo 4.1-3, Hb 2.14).607

c) Jesus era um homem comum que foi usado pelo Espírito de Deus e abandonado no Calvário, não havendo de fato encarnação (vd. Jo 1.14; 20.31; Cl 1.19; 2.9; Uo 2.22; 4.1-3,15; 5 .1 ,5 ,6 ; 2Jo 7).

4.2,3. Monarquicmismo

O nome é derivado de duas palavras gregas, |ióvoç & daí, “Um só Princípio”, “Um só Deus”. O monarquianismo modalista foi a heresia mais influente do terceiro século.608

Sua preocupação era a defesa do monoteísmo, negando toda e605 Vd. suas Cartas: A os Efésios, 7 ,1 8 ,1 9 , 20; A os M agnésios, 11; A os Tralianos, 9; Aos

E sm irnenses, 1 -3 ,7 (vd. a coleção de Cartas ln: C a n as de Santo Inácio de Antioquia, 3“ ed. Petrópolis, RJ, Vozes, 1984). D evem os mencionar que, apesar de Inácio combater os “do- cetas”, este nome só iria aparecer com o designação deste tipo de pensamento por volta do ano 200, em Serapião, que denomina este grupo de Aoictidòí; (cf. Eusébio, HE., VI. 12.6).

<i06Polycarp, The E pistle o f P olycarp to the Philippians, V il. In: Alexander Roberts & James Donaldson, eds. The Ante-N icene Fathers, 2“ ed. Peabody, M assachusetts, Hendri- ckson Publishers, 1995, Vol. I, p. 34 (doravante citado com o ANF). Quanto a um testem u­nho antigo sobre o procedimento de Policarpo, vd. lrineu, Irineu de Lião, 111.1.3. pp. 251 - 252).

61,7 Notem os que nem todo “docetism o” era gnóstico, no entanto, com o esta era uma das características do gnosticism o, os termos foram identificados.

608 Compare as informações de L. Berkhof, H istória das D outrinas C ristãs, p. 71, com as de J.N.D. Kelly, Doutrinas Centrais da Fé Cristã: Origem e Desenvolvim ento, p. 89. Berkhof diz, que foi Tertuliano o primeiro a dar este designativo (monarquiano) a este tipo de con­cepção (H istória das Doutrinas C ristãs, p. 71).

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232 EU CREIO.

qualquer idéia de diversidade no Ser divino, daí a tentativa de con­ciliar a doutrina do “Logos” com a unicidade de Deus.

Os monarquianos criam numa espécie de divindade de Jesus (monarquianismo dinâmico),609 contudo afirmavam ser a Trindade irreconciliável com a unidade de Deus. Dentro dessa perspectiva não há relação trinitária, e está totalmente fora de questão a doutri­na da expiação e da intercessão do Espírito.

a) Monarquianismo dinâmicoTambém conhecido como “humanitariano”. O mais destacado

defensor desta doutrina foi Paulo de Samosata, bispo de Antioquia, por volta do ano 260.

Paulo de Samosata ensinava que Jesus era originariamente um mero homem,610 sendo elevado a uma posição superior no batismo, quando recebeu o poder (“ô^vajuç”) do céu. Este poder, que pas­sou a residir na pessoa humana de Jesus - como um mero recipiente

qualificou-a para uma tarefa especial. Assim Jesus foi elevado a uma posição intermediária entre Deus e os homens, no entanto Je­sus não é essencialmente divino. A consciência de ser o portador do Logos foi crescendo gradativãmente em Jesus a partir de seu batis­mo. O Logos o capacitou a exercer um ministério especial e era ele que controlava todas as palavras e obras de Jesus.

Jesus era o filho adotivo de Deus; portanto, sua “divindade” era apenas de honra, de adoção, e não de essência; ela ocorre pela graça.

Essa teologia adopcionista foi condenada no Sínodo de Antio­quia (268), sendo ele excomungado.611

b) Monarquianismo modalistaseu principal representante foi Sabélio, presbítero de Ptolemai-

da (250), tendo ensinado em Roma por volta do ano 215.

609 força propulsora por trás do m odalism o era a dupla convicção, defendida com vigor, da unicidade de D eus e da plena divindade de Cristo” (J.N.D. Kelly, D outrinas Cen­tra is da Fé Cristã: O rigem e D esenvolvim ento, p. 89)

610 Eusébio, HE., V.28.2; V ll.27 .2 .611 Eusébio, HE., VII.29.1.

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VIII - A Unidade e a Necessidade das Duas Naturezas. 233

Esta forma de modalismo foi conhecida no Ocidente como “Pa- tripassianismo” (O Pai se encarnou e também sofreu),612 e no Ori­ente como “Sabelianismo”.

Para Sabélio não havia Trindade; Pai, Filho e Espírito Santo eram apenas nomes diferentes para a mesma realidade; desse modo, os três eram apenas (IIpòcramaTa, semblantes, faces), e não seres independentes.613 Ele considerava as três Pessoas da Trindade como três diferentes modos de ação ou manifestação divina, os quais Deus assume sucessivamente, revelando-se como Pai na criação e na doação da Lei', como Filho na encarnação6'4e como Espírito na regeneração e santificação. Desse modo há apenas uma única Pes­soa; ficando a Trindade reduzida a três modos de manifestação.

Epifânio, bispo de Salamis, descrevendo os ensinamentos do Sabelianismo, escreveu, por volta do ano 375:

“Ensinam que o Pai, o Filho e o Espírito Santo são uma só e a mesma essência, três nomes apenas dados a uma só e a mesma substância” . A dian­te Epifânio cita uma analogia utilizada: “Tome-se o sol: o sol é uma só subs- tância, mas com tríplice manifestação: luz, calor e globo solar. O calor... é (análogo a) o Espírito; a luz, ao Filho; enquanto o Pai é representado pela verdadeira substância. Em certo momento, o Filho foi emitido como um raio de luz; cumpriu no mundo o que cabia à dispensação do evangelho e à salvação dos homens, e retirou-se para os céus, semelhante ao raio envi-

6,2 Em sua obra contra Práxeas (c. 213), Tertuliano escreveu: “O dem ônio tem lutado contra a verdade de muitas maneiras, inclusive defendendo-a para melhor destruí-la. Ele defende a unidade de Deus, o onipotente criador do universo, com o fim exclusivo de torná- la herética. Afirma que o próprio Pai desceu ao seio da Virgem, dela nascendo, e que o próprio Pai sofreu; que o Pai, em suma, foi pessoalm ente Jesus Cristo,... Práxeas foi quem trouxe esta heresia da Á sia para Roma.... Ele afugentou profecia e trouxe heresia; expulsou o Paráclito e crucificou o Pai” (A gainst Praxeas, 1. in: Alexander Roberts & James D onal­dson, eds. The Ante-N icene Fathers, 2a ed. Peabody, M assachusetts, Hendrickson Publi­shers, 1995, Vol. I ll , pp. 597-598). D evido à obscuridade da pessoa de Práxeas, pensa-se que este nome era apenas um apelido (“intrometido”), dado a algum proponente dessas idéias, tais com o Noeto, Epígono ou o papa Calixto (217-222; vd. J.N.D. Kelly, D outrinas C entrais da Fé Cristã: Origem e D esenvolvim ento, p. 90).

613 Vd. P. Tillich, H istória do Pensamento C ristão, São Paulo, ASTE, 1988, p. 73.614 Boettner comenta: “A encarnação foi reduzida a ser sim plesm ente uma união tempo­

rária das naturezas divina e humana no hom em Jesus Cristo” (Loraine Boettner, Studies in Theology, 9a ed. Philadelphia, The Presbyterian and Reformed Publishing Company, 1970, p. 128).

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234 EU CREIO.

ado pelo sol que é novamente incorporado a ele. O Espírito Santo é envi­ado mais sigilosamente ao mundo e, sucessivamente, aos indivíduos dig­nos de o receberem...”615

MONARQUIANISMO MODALISTA:

Implicações desta doutrina:1) Não há Trindade.2) As três formas de Revelação não são co-eternas.3) Há apenas três MODOS da mesma Pessoa, e não três Pessoas.4.2.4. Arianismo

Nome derivado de seu maior representante, Ário (c. 250-C.336), natural da Líbia e educado em Antioquia da Síria, tendo como mes­tre a figura enigmática de Luciano de Antioquia (t 312), que teria sido discípulo de Paulo de Samosata.616

Ário teve seus ensinamentos condenados em Antioquia (02/325); e no Primeiro Concílio Ecumênico de Nicéia (20/05/325) sendo então deportado para o Ilírico. Mesmo no exílio, ele continuou escrevendo, aumentando consideravelmente sua influência, con­tando sempre com um bom número de amigos fiéis, sendo o gran­de articulador político do grupo ariano, o bispo Eusébio de Nico- média (t 342). Em 335, num encontro com Constantino (274-337), Ário subscreveu uma confissão considerada pelo Imperador “or­

615 In: H. Bettenson, D ocum entos da Igreja C ristã , p. 71.616 Cf. J.N.D. Kelly, D outrinas C entrais da Fé Cristã: O rigem e D esenvolvim ento, p.

174.

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VIII - A Unidade e a Necessidade das Duas Naturezas... 235

todoxa”, que na realidade é mais eloqüente em seu silêncio.517 Em 336/337, quando jazia em seu leito de morte em Constantinopla, foi solenemente readmitido à comunhão da Igreja pelo Sínodo de Jeru­salém.618

O Arianismo, a despeito de sua condenação em Nicéia, junta­mente com os anátemas emitidos por este Concílio, desfrutou de ampla aceitação no quarto século, só começando a perder força no Concílio de Constantinopla (381), quando a posição de Nicéia foi reafirmada; no entanto, o arianismo permaneceu vivo até o final do século sétimo. Se por um lado o arianismo desfrutou de boa aceita­ção devido ao grande número de seguidores influentes e a tolerân­cia explícita do imperador - que desejava a todo custo manter a unidade do império - , 619 ele encontrou um adversário perseverante que, apesar da pequena estatura, tornou-se um gigante na defesa da ortodoxia bíblica: Atanásio (c 296-373), o jovem bispo de Alexan­dria (328-373),620que mesmo sendo perseguido e exilado conseguiu exercer poderosa influência na teologia ocidental, preservando a

m Vd. o texto de sua confissão In: Socrates Scholasticus, The E cclesiastical H istory , 1.26. ln: P. Schaff & H. Wace, eds. Nicene and P ost-N icene Fathers o f the Christian Chur­ch (Second Series), Grand Rapids, M ichigan, Eerdmans, 1978, Vol. II, pp. 28-29 (doravan­te citado com o N PNF2); Salaminus Hermias Sozom en, The E cclesiastical H istory, 1.27. In: NPNF2, II, pp. 277-278; o texto grego está reproduzido In: Philip Schaff, The Creeds o f Christendom , 6a ed. R evised and Enlarged, Grand Rapids, M ichigan, Baker B ook House (1931), Vol. 11, pp. 28-29 (doravante citado com o C O Q . Vd. também Carlos Ignacio Gon­zalez, El D esarrollo D ogm ático en los Concilios C risto logicos, Santafé de Bogotá, CE- LAM ., 1991, p. 316.

<il8Cf. V.L. Walter, Arianismo: In: Walter A. E lw ell, ed. Enciclopédia H istórico-Teológi- ca da Igreja C ristã , São Paulo, Vida N ova, 1988-1990, Vol. I, p. 105 (doravante citado com o EHTIC) e Eusebius o f Nicom edia: In: Philip Schaff, ed. R eligious Encyclopaedia: or D ictionary o f Biblical, H istorical, D octrinal, and P ractical Theology, Chicago, Funk Wag- nalls, Publishers, 1887 (revised edition), Vol. I, pp. 772-773.

6|,J Vd. Philip Schaff, H istory o f the Christian Church, Peabody, M assachusetts, Hendri­ckson Publishers, 1996, Vol. I ll, § 119, p. 621; Atanásio: In: Tony Lane, Pensam ento C ris­tão: D os Prim órdios à Idade M édia, São Paulo, Abba Press Editora, 1999, Vol. 1, p. 45; P. Tillich, H istória do Pensam ento C ristão , pp. 75-76.

620 D esses 45 anos, 17 foram passados em cinco exílios diferentes (cf. Sam uel J. M iko- laski, Atanasio: In: W ilton M. Nelson, ed. ger. D iccionario de H istoria de la Eclesai, M ia­mi, Florida, Editorial Caribe, 1989, p. 100 e Atanásio: In: Tony Lane, Pensam ento Cristão: D os Prim órdios à Idade M édia, Vol. 1, p. 45).

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236 EU CREIO.

unidade da igreja e uma sã teologia bíblica, sustentando a divinda­de e a humanidade de Jesus.621

O ponto focal de Ário é de que há um só Deus (Pai) não-gerado, sem começo, único, verdadeiro, único detentor de imortalidade. Para os arianos, Jesus Cristo não era da mesma substância do Pai (ójiootí a io ç , “da mesma natureza”), mas, sim, de uma substância similar (ójio ióvaioç, “de natureza semelhante”). Esse “iota” grego fazia toda a diferença entre um cristianismo bíblico e um cristianismo forjado pela imaginação do homem.622

Desta premissa, como observa Kelly,523 decorrem quatro outras:1) O Filho é uma criatura; uma criatura perfeita, distinta da cri­

ação, mas que veio à existência pela vontade do Pai;2) Como criatura, o Filho teve um começo. Logo, a afirmação

de que ele era co-eterno com o Pai implicaria na existência de dois princípios, o que assinalaria uma negação do monoteísmo;

3) O Filho não tem nenhuma comunhão substancial com o Pai. Ele é uma criatura que recebeu o título de “Palavra” e “Sabedoria” de Deus porque participa da Palavra e Sabedoria essenciais;

4) O Filho está sujeito a mudanças e ao pecado, tendo podido cair como o diabo caiu, Contudo Deus, prevendo sua firmeza de caráter, agiu preventivamente com sua graça.

Ário e seus discípulos, buscando apoio em textos tais como Jo 1.14; 3.16, 18; Cl 1.15; lJo 4.9, ensinavam que Deus o Pai criou o Filho primeiro, e, através do Filho, criou o Espírito, os homens e o mundo; portanto: Jesus é o primogênito do Pai e o Espírito é o primo­gênito do Filho. O Filho foi criado do nada; ele veio à existência antes da fundação do mundo, mas não é eterno, porque foi criado. Daí o “chavão” ariano: “Tempo houve em que ele não existia.”624

621 Vd. Samuel J. M ikolaski, Atanasio: In: W ilton M. N elson, ed. ger. D iccion ario de H istoria de la E clesai, pp. 99-100.

622 Vd. W ayne A. Grudem, Teologia Sistem ática, pp. 179-180; P. Tillich, H istória do Pensam ento C ristão, pp. 73-74.

623 Vd. J.N.D. Kelly, D outrinas Centrais da Fé Cristã: O rigem e D esenvolvim ento , pp. 172-174.

624 Cf. J.N.D. Kelly, Doutrinas Centrais da F é Cristã: Origem e Desenvolvimento, p. 173.

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Portanto, sendo o Filho criado, não é Deus. Conseqüentemente, Jesus não é da mesma essência ou natureza do Pai. A atribuição de títulos “Deus” e “Filho”, feita a Jesus, era apenas de cortesia, resul­tante da graça.

Quando perseguido em 321, Ário buscou ajuda em seu antigo e poderoso amigo, o bispo Eusébio de Nicomédia (t 342) - que bati­zaria o imperador Constantino, moribundo em maio de 337 - , es­crevendo: “Somos perseguidos porque afirmamos que o Filho tem um início, enquanto que Deus é sem início (ávotp%oç)”.625

O historiador W. Walker resume a posição de Ário:“Para Ário, Cristo era, na verdade, Deus, em certo sentido, mas um

Deus inferior, de modo algum uno com o Pai em essência ou eternidade.N a encarnação, esse Logos entrou em um corpo humano, tomando o lugardo espírito racional hum ano.”626

Tillich especula que “A vitória do arianismo teria transformado o cristianismo em apenas mais uma entre as religiões já existen­tes.”627

r

O Pai criou o Filho \ primeiro e através do ] Filho criou o Espírito

Santo

4.2.5. O Apolinarismo

Nome derivado de Apolinário, o jovem (c. 310-C.390), bispo de Laodicéia na Síria (c. 360), tendo seus ensinamentos condena­dos em vários Concílios: Alexandria (362) (aqui somente o apoli­narismo, não Apolinário; seu nome não foi mencionado);628 Roma

625 Ário a Eusébio, ln: Sócrates Scholasticus, E cclesiastical History, 1.5. NPNF2., Vol. 2, p. 3. Ver também: H. Bettenson, D ocum entos da Igreja Cristã , p. 72 e Carlos Ignacio Gonzalez, El D esarrollo D ogm ático en los Concílios C risto logicos, p. 314.

626 W. Walker, H istória da Igreja Cristã, São Paulo, ASTE, 1967, Vol. I, p. 158.627 p Tillich, H istória do Pensamento C ristão, p. 77.<l28 Cf. Herzog, Appolinarianism: In: Philip Schaff, ed. R eligious Encyclopaedia: o rD ic -

tinnary ofB ib lica l, H istorical, Doctrinal, an d P ractical Theology, Vol. I, p. 109.

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238 EU CREIO.

(377)629 (Apolinário e o apolinarismo); Antioquia (378), no 2o Con­cílio Ecumênico de Constantinopla (381) (Apolinário e o apolina­rismo). Atanásio (c 296-373) mais uma vez foi o campeão da orto­doxia do século IV, escrevendo contra esta heresia (371 ).630 Ainda que alguns apolinaristas voltassem à Igreja, Apolinário conseguiu adeptos que perseveram em seus ensinamentos;631 um de seus discí­pulos, Vitális, fundou uma congregação em Antioquia (375), sendo sagrado bispo por Apolinário. “Os apolinarianos tiveram pelo me­nos um sínodo em 378, e há evidência no sentido de ter ocorrido um segundo sínodo. Depois da morte de Apolinário, seus seguidores dividiram-se em dois partidos, os vitalianos e os polemeanos ou sinusiatos. Por volta de 420, os vitalianos já estavam reunidos com a Igreja Grega. Pouco mais tarde, os sinusiatos fundiram-se no cis­ma monofisita.”632

Devido à sua concepção tricotômica do homem, bem como seu desejo de preservar a divindade e a unipersonalidade de Cristo, ter­minou por concebê-lo como sendo totalmente divino e apenas 2/3 humano. Baseando-se supostamente em Jo 1.14, admitiu que Jesus era uma unidade composta de elementos divinos e humanos; o Ver­bo divino teria assumido apenas a carne humana, não toda a huma­nidade; desse modo Jesus, ainda que humano fisicamente, não o era psicologicamente.633Esta compreensão pode ser comparada com a idéia de uma alma humana sendo implantada num leão; a pergunta é: quem governaria quem? No caso, a alma humana governaria o leão em seu corpo.634

A idéia de total humanidade envolvia o conceito de pecamino-

619 Em 376 foi censurado pelo Papa Dam aso I. Foi então que Atanásio desenvolveu sua obra, D em onstração da Encarnação D ivin a , firmando sua posição.

630 Cf. Herzog, Appolinarianism: ln: Philip Schaff, ed. Religious Encyclopaedia: o r D ic­tionary o f Biblical, H istorical, D octrinal, an d P ractica l Theology, Vol. I, p. 109.

01 Cf. Herzog, Appolinarianism: in: Philip Schaff, ed. R eligious Encyclopaedia: o r D ic­tionary o f B iblical, H istorical, D octrinal, an d P ractical Theology, Vol. I, p. 109.

632 V.L. Walter, Apolinarismo: ln: EHTIC., 1, p. 98.633 Vd. Millard J. Erickson, Introdução à Teologia Sistem ática, São Paulo, Vida Nova,

1997, p. 291.634 Vd. Loraine Boettner, Studies in Theology, p. 263.

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VIII - A Unidade e a Necessidade das Duas Naturezas. 239

sidade, por isso sua tentativa de resguardar o Filho.635 Para ele, o homem era constituído de Zcò|ia (carne ou corpo); 4/,u%rí (alma animal) e I lv ev iia (alma racional). O Ilve-uiia é que torna o ho­mem o que ele é. Aplicando estes conceitos a Jesus, Apolinário dizia que Jesus tinha Zcò|ia e XF'U%YÍ iguais a de um homem comum; já o nvEÍ>|ia fora substituído pelo Aóyoç; assim, Jesus possuía um corpo, uma alma, mas não possuía um espírito humano.

Kelly acentua que Apolinário deixa claro seu pensamento nas seguintes considerações:

“A carne, por depender de algum outro princípio de movimento e ação (qualquer que seja este princípio) para se movimentar, não é por si só uma entidade viva completa, mas, a fim de se tornar uma, entra em fusão com alguma outra coisa. Dessa maneira, ela se uniu ao princípio celestial gover­nante [isto é, o Logos] e fundiu-se com ele... Assim, a partir do movimen­to do motor, foi composta uma única entidade viva - não duas entidades, nem uma única composta de dois princípios completos e automáticos.”636

Assim, para Apolinário há uma única vida; uma perfeita fusão do homem (carne) com o divino, sendo a carne de Jesus glorificada pelo Logos, daí falar ele de “carne divina”, “carne de Deus”, “natu­reza encarnada da Palavra divina”.637

HOMEM JESUS CRISTO

ALMA RACIONAL

ALMA ANIAAAL

CORPO

635 Cf. Louis Berkhof, H istória das D outrinas Cristãs, p. 94.636 A pud J.N.D. Kelly, D outrinas Centrais da F é Cristã: O rigem e D esenvolvim ento , p.

220.

07 Vd. J.N.D. Kelly, D outrinas Centrais da Fé Cristã: O rigem e D esenvolvim ento, pp. 221- 222.

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240 EU CREIO.

Os ensinamentos de Apolinário foram censurados por este fato: se o Logos não tomou sobre si a integridade da natureza humana - estando toda ela afetada pelo pecado esta natureza não poderia ser redimida, visto que aquilo que o Filho não levou sobre si não pode ser alvo de sua redenção.638

4.2.6. Nestorianismo

Nome proveniente de Nestório (380-451), Bispo de Constanti­nopla (428-431). Adversário voraz do arianismo, seu primeiro ato oficial como patriarca foi incendiar uma capela ariana.639

Nestório, numa série de sermões proferidos em 428, combateu uma designação popular dada a Maria de “ © e o t ó k o ç ” (“Mãe de Deus”).640Esta fórmula seria usada pouco depois pelo Concílio de Éfeso (431), alcunhada por Cirilo de Alexandria. O Concílio de Éfeso utilizou esta expressão, não como uma atribuição de majesta­de a Maria,641 mas, sim, como reconhecimento de que o que dela nasceu, por obra do Espírito Santo, era o Filho de Deus, o Deus encarnado desde a concepção. Nestório, por sua vez - fugindo do que considerava o extremo oposto, que dizia ser Maria “ôcuOpoítOTÓ k o ç ” (“Mãe do homem”)642- , entendia que a expressão correta se­ria “ XpiaTOTOKOç” (“Mãe de Cristo”), ou mesmo “0eo8ó%oç” (“que recebe643 a Deus”), por considerar distintas as qualidades da divin­dade e da humanidade. Desse modo, aceitando sua posição, pode­mos perceber logo de início o problema da encarnação do Verbo: o menino que nasceu de Maria era Deus-Homem?

638 Vd. Louis Berkhof, H istória das Doutrinas C ristãs, pp. 94-95; W ayne A. Grudem, Teologia S istem ática, p. 458.

639 Cf. H. Griffith, Nestório, Nestorianismo: In: EHTIC., III, p. 18.640 Cf. H. Griffith, Nestório, Nestorianismo: In: EHTIC., III, p. 18.641 O que viria a acontecer por volta do sexto século, quando Maria começaria a ser

adorada (cf. W.C.G. Proctor, Madre de Dios: In: E.F. Harrison, ed. D iccion ario de Teolo­gia, p. 325).

642 Cf. Lorenzo Perrone, D e N icéia (325) a Calcedônia (451): In: G iuseppe Alberingo, org. H istória dos Concílios Ecum ênicos, São Paulo, Paulus, 1995, p. 74 (doravante, citado com o HCE).

643 Proveniente de “Ao^tl”, “recipiente”, “vasilha”, “depósito” [a palavra é usada no NT com o sentido de “banquete” (*Lc 5.29; 14.13)].

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VIII - A Unidade e a Necessidade das Duas Naturezas... 241

Nestório, tentando refutar o eutiquianismo, ensinava (?)644que Jesus Cristo era constituído de duas pessoas e duas naturezas. Sus­tentava que cada uma das duas naturezas de Jesus tinha sua própria subsistência e personalidade; a união entre elas não era ontológica, mas apenas moral, simpática e afetiva.

NESTORIANISMO: DUAS PESSOAS E DUAS NATUREZAS

Seus ensinamentos foram rejeitados no Concílio de Éfeso (431) e de Calcedônia (451). Ele foi mandado para um mosteiro em Anti­oquia, depois exilado (435/436) na distante cidade de Petra, na Ará­bia, e finalmente foi para o oásis de Upper, no Egito, onde passaria o resto de seus dias.645

O nestorianismo permaneceu na Pérsia, onde seus seguidores estabeleceram um eficiente trabalho missionário que permitiu sua proliferação na Arábia, índia, Turquestão e China, espalhando-se por diversas regiões da Ásia. Ainda hoje sobrevive o nestorianismo

644 Em 1895 descobriu-se na Síria um escrito de Nestório, O Livro de H eraclides (publi­cado em 1910) no qual e le ensina algo que vai justamente de encontro à heresia que supu­nham que ele sustentava. Referindo-se a Cristo, Nestório afirma que “o m esm o que é um é duplo”; e le também se dizia satisfeito com a Cristologia de Calcedônia. Na atualidade, os estudiosos estão divididos quanto à interpretação de seu pensamento e, conseqüentemente, se foi justo ou não condená-lo (vd. H. Griffith, Nestório, Nestorianismo: In: EHTIC., Vol. Ill, p. 19; J.N.D. Kelly, D outrinas Centrais da F é Cristã: O rigem e D esenvolvim ento , pp. 235-240; B. Hagllund, H istória da Teologia, pp. 79-82; G.C. Berkouwer, A P essoa de Cristo, São Paulo, ASTE, 1964, p. 54; Wayne A. Grudem, Teologia S istem ática, pp. 458, 469; Johannes Quasten, P atrology, 7“ ed. Westminster, Maryland, Christian Classics. INC.,1994, Vol. I ll, p. 516).

645 Cf. Justo L. Gonzalez, A Era das Trevas, São Paulo, Vida Nova (Um a História Ilustra­da do Cristianismo), 1980-1988, p. 96; W, Möller, Nestorius: In: Philip Schaff, ed. R eli­gious Encyclopaedia: o r D ictionary o f Biblical, H istorical, D octrinal, a n d P ractica l The­ology, Vol. II, p. 1630b.

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242 EU CREIO.

(“Caldeus Uniatos”) na Mesopotâmia, Pérsia e Síria, havendo um grupo alinhado com a Igreja de Roma e outro independente (“Igreja Nestoriana Não-Unida”).646 .

4.2.7. Eutiquianismo

Nome derivado de Êutico (= Eutiques, Eutíquio) (c.378-454), arquimadrita647 de um mosteiro em Constantinopla, discípulo de Cirilo de Alexandria. Sua doutrina consiste numa reação ao nesto- rianismo. Ele sustentou que a encarnação é o resultado da fusão do divino com o humano em Jesus, sendo a natureza humana absorvida pela divina, ou que desta fusão surgisse uma nova substância “hí­brida”;648 um “terceiro tipo de natureza.”649 Assim, sua posição en­volvia uma pessoa e uma natureza. Ele foi o fundador do “Monofi-^ sismo”: Cristo tem uma única natureza; a divina revestida de carne humana. Observem que dentro desta perspectiva Jesus não salvaria ninguém, já que ele não seria verdadeiro homem nem verdadeiro Deus...

EUTIQUIANISMO:

646 Vd. mais detalhes em Nestorianos: ln: EBTF., IV, p. 489; Kenneth S. Latourette, H is­toria de i C ristianism o, 3a ed. Buenos Aires, Casa Bautista de Publicaciones, 1977, Vol. 1, pp. 218-219; Justo L. Gonzalez, A Era das Trevas, p. 116ss.

647 Arquimadrita significava, na Igreja oriental, o chefe de um ou mais mosteiros. O titulo também se aplicava aos padres celibatários de destaque.

648 Cf. Millard J. Erickson, Introdução à Teologia Sistem ática, p. 303.649 W ayne A. Grudem, Teologia S istem ática, p. 459.

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VIII - A Unidade e a Necessidade das Duas Naturezas. 243

O eutiquianismo foi condenado no Sínodo Permanente de Con­stantinopla (22/11/448).650 Todavia, em outro Concílio, convocado pelo imperador Teodósio II (408-450), realizado em Éfeso (08/449), Êutico foi reabilitado.651 Isso ocorreu à revelia do bispo de Roma Leão I, “o Grande”,652 que havia elaborado uma “Carta Dogm áti­ca” ou “Tomo”653( 13/06/449), combatendo a doutrina da natureza única de Cristo. Dióscoro, sucessor de Cirilo (t 444) como patriar­ca de Antioquia, foi quem presidiu este Concílio - com plenos po­deres imperiais654- , impedindo inclusive que os três legados do bis­po de Roma lessem sua “Carta Dogmática” perante o Concílio.655

No entanto, dois anos depois, foi convocado o Concílio de Cal- cedônia (23/05/451 )656 pelo imperador Marciano, que casou-se com Pulquéria [irmã do imperador Teodósio II, falecido prematuramen­te numa queda de cavalo (28/07/450)]. Calcedônia anulou a deci­são de Éfeso e o invalidou como Concílio verdadeiramente ecumê­nico, condenando o eutiquianismo, exilando Êutico e Dióscoro. Contudo, o eutiquianismo continuou vigorando como ensinamento genuíno na Igreja Egípcia.

650 Lorenzo Perrone, D c N icéia (325) a Calcedônia (451): In: HCE., p. 87. Quanto às articulações políticas de D ióscoro, patriarca de Antioquia, neste C oncílio, vd. Ibidem ., p. 88ss.; Justo L. G onzalez, A Era das Trevas, p. 98.

Vd. Lorenzo Perrone, D e N icéia (325) a Calcedônia (451): ln: H CE., pp. 89-90.“ 2 Latourette diz que Leão I “foi um dos hom ens mais capazes que já ocuparam o chama­

do trono de Pedro” (Kenneth S. Latourette, H istoria de i Cristianism o, 1, p. 220).653 Este “Tomo", que Berkhof chama de “um com pêndio da cristo log ia ocidental”, con­

tribuiria decisivam ente para a formulação de Calcedônia (vd. Louis Berkhof, H istória das D outrinas Cristãs, pp. 97-98). D o m esm o m odo, declara Perrone: “O Tomus ad Flavianum representa uma contribuição decisiva para a solução da questão cristológica, tal com o to­mará forma na definição de Calcedônia” (Lorenzo Perrone, D e N icéia (325) a Calcedônia (451): In: H CE., p. 88). Boa parte deste “Tomo” encontra-se ln: H. Bettenson, Docum entos da Igreja C ristã , pp. 83-86.

“ 4 Vd. Justo L. G onzalez, A Era das Trevas, p. 98.655 Este C oncílio seria conhecido na História com o o “Sínodo dos L adrões”, alcunha

dada por Leão, bispo de Roma, em carta dirigida a Pulquéria, irmã do imperador TeodósioII, em 20 /07 /451. Isto porque sua decisão não coincidia com a ortodoxia da Igreja, e tam­bém porque seu docum ento não foi lido (vd. mais detalhes, In: J.N .D . Kelly, D outrinas C entrais da F é Cristã: O rigem e D esenvolvim ento, pp. 249-252; Éfeso, C oncílios de: ln: EBTF., II, p. 289a; Justo L. G onzalez, A Era das Trevas, pp. 98-99).

656 O C oncílio foi convocado primariamente para realizar-se em Nicéia, todavia, em 22/ 0 9 /451 , transfere-o para Calcedônia (cf. Lorenzo Perrone, D e N icéia (325) a Calcedônia (451): ln: HCE., p. 93).

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244 EU CREIO.

4.3. A Posição Bíblico-Reformada

Na história da Igreja houve dois Concílios que foram funda­mentais para definir a questão das duas naturezas de Cristo; o pri­meiro deles foi o de Nicéia, reunido em 325, e o segundo - o mais importante - foi o de Calcedônia, reunido de 8 a 31 de outubro de 451, com a presença de mais de 500 bispos e vários delegados pa­pais que, como de costume, o representavam. Calcedônia ratificou o Credo de Nicéia (325) e o de Constantinopla (381). Seu objetivo era estabelecer uma unidade teológica na Igreja.

Seu Credo foi rascunhado em 22 de outubro por uma comissão presidida por Anatólio de Constantinopla ( f 458), encontrando sua redação final, possivelmente, na 5a Sessão, na quinta-feira de 25 de outubro.657 Calcedônia rejeitou o nestorianismo (duas pessoas e duas naturezas) e o eutiquianismo (uma pessoa e uma natureza), afir­mando que Jesus Cristo é uma Pessoa, sendo verdadeiro Deus e verdadeiro homem (uma pessoa e duas naturezas). “....Calcedônia pronunciou-se não só contra a separação como contra a fusão”658 das duas naturezas de Cristo. Todavia, a noção de mistério esteve pre­sente nesta confissão, por isso ela não tentou explicar o que as Es­crituras não esclareciam .659

JESUS CRISTO: UMA PESSOA E DUAS NATUREZAS:

651 Compare as informações de J.N.D. Kelly, D outrinas C entrais da Fé Cristã: O rigem e D esenvolvim ento , p. 257; P. Schaff, CO C., I, p 29; Lorenzo Perrone, D e N icéia (325) a Calcedônia (451): ln: HCE., pp. 97-98.

658 G. C. Berkouwer, A Pessoa de C risto , p. 55.659 Vd. G.C, Berkouwer, A P essoa de C risto , p. 67ss.; Cari E. Braaten, A Pessoa de Jesus

Cristo: In: Cari E. Braaten & Robert W. Jenson, eds. D ogm ática C ristã , São Leopoldo, RS. Sinodal, 1990, Vol. I, p. 492.

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VIII - A Unidade e a Necessidade das Duas Naturezas. 245

L. Berkhof (1873-1957) resume as “mais importantes implica­ções” da declaração teológica de Calcedônia, como segue:660

1) A s propriedades de ambas as naturezas podem ser atribuídas a uma só Pessoa, como, por exemplo, onisciência e conhecimento limitado;

2) Os sofrimentos do Deus-Homem podem ser reputados como real e verdadeiramente infinitos, ao mesmo tempo que a natureza divina não é passível de sofrimento;

3) E a divindade, e não a humanidade, que constitui a raiz e a base da personalidade de Cristo;

4) O Logos não se uniu a um indivíduo distinto, e, sim, à natureza hu­mana. N ão houve primeiro um homem já existente com quem se teria associado a Segunda Pessoa da Deidade. A união foi efetuada com a subs­tância da humanidade no ventre da virgem.

Um decreto ou uma declaração teológica, por mais relevante que seja, não põe fim imediatamente a um sistema; a ortodoxia, por sua vez, não é criada através de pronunciamentos oficiais, embora saibamos que todos eles sejam necessários e relevantes para nortear a Igreja. Com isso estamos apenas querendo indicar que, do mesmo modo que Nicéia não colocou um ponto final na questão Trinitária, Calcedônia não determinou o fim dos problemas cristológicos. Como já indicamos, as heresias permaneceram em diversas regiões, espe­cialmente na Igreja Oriental.661 Contudo, Calcedônia se constitui num marco decisório na vida da Igreja, estabelecendo uma compreensão cristológica que, se não é a final, é a que pôde ser alcançada pelo Espírito dentro da Revelação. No entanto, a Palavra é a fonte de toda a genuína teologia, portanto, se Calcedônia estabeleceu balizas, e graças a Deus por isso, devemos permanecer sempre atentos à Pala­vra de Deus, à luz da qual nós e nossa teologia seremos julgados.

660 Louis Berkhof, H istória das D outrinas C ristãs, p. 98. Esquema bem parecido pode ser encontrado também em Charles Hodge, System atic Theology, Grand Rapids, M ichigan, Eerdmans, 1976 (reprinted), Vol. II, pp. 391-392.

661 A lém das indicações já feitas, vd. Louis Berkhof, H istória das D outrinas Cristãs, pp. 99-102; J.N .D . Kelly, Doutrinas Centrais da F é Cristã: O rigem e D esenvolvim ento , p. 258; B. Lohse, A F é C ristã A través dos Séculos, 2a ed. São Leopoldo, RS, Sinodal, 1981, pp. 101-106; P. Tillich, H istória do Pensam ento C ristão, São Paulo, ASTE, 1988, p. 91ss.; J.L. G onzalez, A Era das Trevas, p. 102ss.; Cari E. Braaten, A Pessoa de Jesus Cristo: In: Cari E. Braaten & Robert W. Jenson, eds. D ogm ática Cristã, Vol. I, p. 492ss.

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246 EU CREIO.

Ainda que os Reformadores do século XVI tenham aceitado a decisão de Calcedônia, houve uma diferença entre eles quanto a alguns detalhes que não eram de somenos importância, mas que escapam em muito ao escopo destas anotações.

Calvino (1509-1564) foi o Reformador que mais de perto se­guiu o pronunciamento de Calcedônia; ele escreveu:

“Com efeito, que se diz o Verbo haver-Se feito carne (Jo 1.14), não se deve assim entender que se haja sido ele ou convertido cm carne, ou con­fusamente misturado à carne; ao contrário, porque no ventre da Virgem para si escolheu um templo em que habitasse, e Aquele Que era o Filho de Deus Se fez o Filho do Homem, não mediante confusão de substância, mas mercê de unidade de pessoa. Pois, na verdade, afirmamos ser a Divindade assim associada e unida à humanidade que a cada natureza permaneça inte­gral sua propriedade e, todavia, dessas duas constitua um Cristo único.”662

Também as Confissões Reformadas seguiram a mesma inter­pretação de Calcedônia, apresentando obviamente novas contribui­ções que esclareciam certas questões da época.663

A Confissão de Westminster (1647), a mais madura Confissão Reformada, declara:

“O Filho de Deus, a segunda Pessoa da Trindade, sendo verdadeiro e eterno Deus, da mesma substância do Pai e igual a ele, quando chegou o cumprimento do tempo, tomou sobre si a natureza humana com todas as suas propriedades essenciais e enfermidades comuns, contudo sem peca­do, sendo concebido pelo poder do Espírito Santo no ventre da Virgem Maria, e da substância dela. A s duas naturezas, inteiras, perfeitas e distin­tas - a Divindade e a Humanidade - foram inseparavelmente unidas em uma só pessoa, sem conversão, composição ou confusão; essa pessoa é ver­dadeiro Deus e verdadeiro homem, porém um só Cristo, o único Mediador entre Deus e o homem.” (Capítulo VIII.2)

Do mesmo modo, o Catecismo M enor de Westminster (1647):“21. Quem é o Redentor dos eleitos de Deus?"

“O único Redentor dos eleitos de Deus é o Senhor Jesus Cristo, que, sen-

662 J. Calvino, A s Institutos, II. 14.1.661 Vejam-se, por exemplo; Catecism o de H eidelberg, Pergs. 35 e 48; A Segunda Confissão

H elvética, Cap. XI; A Confissão Escocesa, Cap. VI; A Confissão Belga, Arts. 9, 10, 18, 19.

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VIII - A Unidade e a Necessidade das Duas Naturezas. 247

do o etem o Filho de Deus, se fez homem, e assim foi e continua a ser Deus e homem em duas naturezas distintas, e uma só pessoa, para sempre”.664

“22. Com o Cristo, sendo o Filho de Deus, se fez homem?”

“Cristo, o Filho de Deus, fez-se homem tomando um verdadeiro corpo e uma alma racional, sendo concebido pelo poder do Espírito Santo no ven­tre da virgem Maria, e nascido dela, mas sem pecado” .663

4.3.1. O Significado da Unipersonalidade de Cristo

Com esse nome, queremos dizer que Jesus Cristo mesmo, tendo duas naturezas, possuía apenas uma personalidade, a qual reunia perfeitamente suas duas naturezas, sem haver fragmentação em seu comportamento. Jesus Cristo sempre agiu como Deus-Homem.

4.3.2. Evidências da Unipersonalidade de Cristo

1) Jesus Cristo fala de si mesmo como uma única pessoa; não havendo o intercâmbio entre um “Eu” e um “Tu” entre as duas na­turezas (Jo 17.1, 4, 5, 22, 23).

2) Os pronomes pessoais atribuídos a ele são sempre referentes a uma pessoa.

3) Jesus Cristo é verdadeiro Deus e verdadeiro homem, não ha­vendo uma preponderância do divino sobre o humano nem do hu­mano sobre o divino. Não podemos falar biblicamente - como mui­tas vezes somos tentados a pensar - em Jesus agindo, pensando e falando como homem em alguns textos, e em outros como Deus. Jesus é o Verbo de Deus encarnado que vive, sofre, morre e ressus­cita como tal. Jesus Cristo não tem personalidade fragmentada, sendo em alguns momentos Deus e em outros homem. Por isso, os atribu­tos de sua divindade, bem como de sua humanidade, são atribuídos a uma só Pessoa. Leia com atenção os seguintes textos:♦ Lc 1.43 - Mãe do Senhor.♦ Lc 2.11 - Nasceu o Senhor.♦ Jo 3.13 - O Filho do Homem está aqui e no céu (vd. Jo

1. 18; 6 .62).664 M esm o teor da Perg. 36 do Catecism o M aior.665 M esm o teor da Perg. 37 do C atecism o M aior.

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248 EU CREIO.

♦ At 3.15 - Mataram o Autor da vida.♦ At 20.28 - Sangue de Deus.♦ Rm 9.5 - Cristo, Deus bendito.♦ ICo 2.8 - Crucificaram o Senhor da Glória.♦ G1 4.4 - O Filho foi enviado para nascer.♦ Hb 1.1-2 - O Filho é herdeiro de todas as coisas.♦ Cl 1.13-20 - “Nos libertou do império das trevas e nos trans­

portou para o reino do Filho de seu amor.... Ele é a imagem do Deus invisível.... havendo feito a paz pelo sangue de sua cruz....”.

♦ Cl 2.8-9 - Em Cristo habita a plenitude da divindade.Além dos textos citados, leia também: Mt 1.21; Lc 1.31-33;

Fp 2.6-11, entre outros.4) Todos os que se referiam a Jesus Cristo faziam menção de

uma só pessoa (Mt 16.16; lJo 4.2).

IM PLICAÇÕES DOUTRINÁRIAS E PRÁTICAS

1) Não podemos compreender exaustivamente esse assunto. Todavia, faremos bem em deixar que nossa mente e nosso coração sejam guiados pela Palavra. Somente Deus, pela iluminação do Espírito e através de sua Palavra, poderá nos instruir a respeito de si mesmo (leia SI 119.18; Jo 14.26; 16.13).666

2) Deus deseja que o conheçamos, não para nossa vaidade inte­lectual, mas, sim, para que o adoremos melhor.

3) A natureza divina de Cristo não foi humanizada, nem a natu­reza humana foi divinizada. Jesus Cristo continuou sendo homem com todas as suas propriedades não pecaminosas, e continuou sen­do Deus com todo o seu poder; porém, sem fazer uso necessário do mesmo (Mt 26.53-54).

4) A encarnação tem sua origem na bondade de Deus; entretan­to, ela se tornou necessária devido ao nosso pecado. Todo o sofri­mento de Jesus Cristo tem como causa motora seu eterno amor pe­los pecadores eleitos (Jo 3.16).

666 Veja-se também Confissão de Westminster, Cap. I.

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VIII - A Unidade e a Necessidade das Duas Naiurezas. 249

5) “O grande amor de Deus para com a humanidade é demons­trado pelo fato de o Filho de Deus não ter vindo à terra como um anjo, e, sim, como homem - o homem Cristo Jesus - tendo natureza humana como a nossa.”667

6) A encarnação jamais será desfeita: Jesus Cristo permanece para sempre verdadeiro homem e verdadeiro Deus.668

7) “Todo aquele que ultrapassa a doutrina de Cristo, e nela não permanece, não tem Deus; o que permanece na doutrina, esse tem assim o Pai como o Filho” (2Jo 9).

8) Estamos convencidos de que a genuína piedade bíblica (Eucrépeia)669 começa pela compreensão correta do mistério de Cris­to, conforme nos diz Paulo: “Evidentemente, grande é o mistério da piedade: Aquele que fo i manifestado na carne fo i justificado em espírito, contemplado por anjos, pregado entre os gentios, crido no mundo, recebido na glória” (ITm 3.16). Todo o conhecimento cris­tão deve vir acompanhado de piedade: “Paulo, servo de Deus e após­tolo de Jesus Cristo, para promover a fé que é dos eleitos de Deus e o pleno conhecimento da verdade segundo a piedade” (Tt 1.1).

Calvino comenta: “Ela [a doutrina] só será consistente com a piedade se nos estabelecer no temor e no culto divino, se edificar nossa fé, se nos exercitar na paciência e na humildade e em todos os deveres do amor.”670 Portanto, devemos indagar sempre a respeito de doutrinas consideradas evangélicas, se elas, de fato, contribuem para a piedade. A ortodoxia genuína será plena de vida e piedade.

667 John O w en, A G lória de Cristo, São Paulo, PES, 1989, p. 8.668 Vd. W ayne A. Grudem, Teologia S istem ática, p. 447.

*At 3.12; ITm 2.2; 3.16; 4 .7 , 8; 6.3, 5, 6, 11; 2Tm 3.5; Tt 1.1; 2Pe 1.3, 6, 7; 3.11.670João Calvino, A s P astorais, São Paulo, Parakletos, 1998 (IT m 6.3), pp. 164-165. Em

outro lugar: “Visto que todos os questionamentos supérfluos que não se inclinam para a edificação devem ser com toda razão suspeitos e m esm o detestados pelos cristãos piedosos, a única recomendação legítim a da doutrina é que ela nos instrui na reverência e no temor de Deus. E assim aprendemos que o hom em que mais progride na piedade é também o melhor discípulo de Cristo, e o único hom em que deve ser tido na conta de genuíno teólogo é aquele que pode edificar a consciência humana no temor de D eus” [João Calvino, A s P astorais (Tt 1.1), p. 300],

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IX - O FILHO UNIGÉNITO DE DEUS-------------------------------------------- ---------------------------------------------------------------

IN TRO D U ÇÃO

Na lição referente à Paternidade de Deus, falamos sobre nossa filiação como sendo adotiva - todos os que crêem em Cristo como seu único Salvador são filhos de Deus, Jo 1.12; G13 .2 6 - , isto

porque somente Jesus Cristo é por natureza o eterno Filho de Deus. O Catecismo de Heidelberg (1563), à pergunta 33 - “Por que é ele chamado Filho UNIGÉNITO DE DEUS, se nós também somos f i ­lhos de Deus?” - responde: “Porque só Cristo é o Filho eterno de Deus, ao passo que nós, por sua causa, e pela graça, somos recebi­dos como filhos de Deus.”

Resumindo, podemos dizer: o que para nós é uma questão de graça, para Jesus Cristo é uma questão de natureza eterna.1. CON SIDERAÇÕES PRELIMINARES

1.1. A Idéia de Filiação Divina no Mundo Pagão

Na antigüidade não era raro ou anormal um homem ser chama­do “filho de deus”. O mundo estava cheio de homens considerados divinos, semideuses e heróis nascidos de “casamentos” dos deu­ses com os mortais. Tais homens se diziam filhos de deus, e por isso eram, em alguns casos, até mesmo adorados como manifesta­ções da divindade. Mesmo o Novo Testamento apresenta alguns indícios desse costume entre os pagãos (At 8.9-11; 12.21,22; 14.11, 12; 28.6).

O episódio narrado por Lucas em Atos 14.8-18 ilustra bem a crença do povo. E neste caso há algo curioso: Júpiter e Mercúrio, os

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!X - O Filho Unigénito de Deus 251

quais foram identificados pelo povo como sendo Barnabé e Paulo, respectivamente (At 14.12), eram associados à região pela literatu­ra latina. Ovídio (42 aC-18 dC), em sua obra principal, M etamorfo­ses, narra que o pobre casal, Filemon e Báucis, hospedou em sua humilde casa Júpiter e Hermes (= Mercúrio), que vieram à sua ci­dade disfarçados de mortais a procura de uma hospedagem, e que não conseguiram pousada em nenhuma das mil casas da região, exceto na do casal. Filemon e Báucis, por este ato de hospitalidade, conta-nos Ovídio, foram recompensados, sendo poupados do dilú­vio que destruiu as casas de seus vizinhos não hospitaleiros; tendo, inclusive, num ato simultâneo, sua pequena casa transformada num templo, e, a pedido, receberam a incumbência de ser sacerdotes e guardiães do santuário de Júpiter, e, conforme solicitaram, Filemon e Báucis morreram juntos.671

Esta lenda, que já era bem conhecida nos tempos de Paulo e Barnabé, esclarece por que tão prontamente o povo os identificou com tais divindades após o milagre realizado por Deus através de­les672... Além disso, a idéia de que as divindades assumiam tempo­rariamente uma forma humana já fazia parte da religiosidade do povo. Homero, o grande poeta grego, em sua Odisséia, escrita por volta do século IX a.C., disse:

“O s deuses tomam às vezes a figura de estrangeiros, vindos de longes terras e, sob aspectos diversos, vão de cidade em cidade, a fim de ficarem conhecendo quais os homens soberbos e quais os justos.’’671

Em outra passagem, na mesma obra, Homero narra como a deu­sa Palas Atena, filha de Zeus (= Júpiter), se aproximou, em deter­minado momento, de seu protegido, Ulisses.

671 Vd. O vídio, A.ç M etam orfoses, Rio de Janeiro, Editora Tecnoprint, 1983, Livro VIII, pp. 214-216.

612 Além disso, “duas inscrições e um altar de pedra foram encontrados perto de Listra, e eles indicam que Zeus e Hermes eram adorados juntos, com o divindades padroeiras locais” [John R.W. Stott, A M ensagem cle A tos: a té os confins da terra, São Paulo, A B U , 1994 (At 14.11-15a), p. 258],

673 Homero, O disséia, São Paulo, Abril Cultural, 1979, XVII, p. 162.

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252 EU CREIO.

“Dele se abeirou Atena, sob o aspecto de um adolescente pastor de ove- lhas, gentil como são os filhos dos príncipes, os ombros recobertos de dupla e fina capa, trazendo nos pés reluzentes sandálias e na mão um cajado ."m

Ulisses, no diálogo que se sucede após a identificação da deusa,diz:

“Deusa, quando te aproximas de um mortal, muito dificilmente este te reconhecerá, por hábil que seja, porque tomas todos os aspectos.”675

O fato é que na antigüidade a história estava repleta de interven­ções divinas, e, de certa forma, o povo era governado pela divinda­de, visto que, especialmente no oriente, o rei era tido como filho de algum deus. No Egito, o monarca reinante era considerado divino, sendo concebido como uma geração física do deus supremo, cha­mado Ré; o rei era uma espécie de epifania (manifestação) do pró­prio deus. Na Arábia, o rei era adorado como se fosse deus. Para os sumerianos, babilônios e árabes, o rei era visto como filho adotivo de um ou de vários deuses.

Os colonizadores gregos, em suas conquistas chefiados por Fi­lipe da Macedônia (c. 382-336 a.C.) e posteriormente por seu filho, Alexandre o Grande (356-324 a.C.), assimilaram tais idéias m es­clando-as com sua mitologia tradicional, que por si só já era bastan­te complexa... Dentro desse sincretismo religioso encontramos o imperador romano, sendo chamado de Divi Filius; os gregos criam que muitos homens descendiam fisicamente dos deuses; a ascen­dência divina é que determinava a existência dos reis, filósofos, sacerdotes e justos.

Tais crenças proliferavam, assumindo particularidades em cada cidade e até mesmo em cada família, crescendo ainda mais o núme­ro de divindades e sendo somado a isso um processo intenso de “canonização” dos homens. O historiador Fustel de Coulanges es­creveu sobre este processo:

674 Homero, O disséia, X lll . P. 123.<75 Homero, O disséia, XIII. P. 125.

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IX- O Filho Unigénito de Deus 253

“Todo homem, tendo prestado algum grande serviço à cidade, desde aquele que fundara até outro que lhe conseguira alguma vitória ou aperfei- çoara suas leis, tornava-se um deus para essa cidade. Nem sequer se torna necessário ter sido grande homem ou benfeitor; bastava haver impressio­nado vivamente a imaginação de seus contemporâneos e ter-se tornado alvo de tradição popular para qualquer indivíduo tornar-se herói, isto é, um morto poderoso cuja proteção fosse desejada e cuja cólera temida (...). O s mortos, fossem quais fossem,'eram os guardas do país, sob condição de se lhes prestar culto.”676

Por isso que, por mais que recuemos na história, sempre achare­mos no oriente povos, tribos e famílias que alegam ser provenientes de um ancestral divino.677

Havia também homens que eram considerados como que possuidores de habilidades divinas para realizar milagres, sendo chamados de homens divinos. Existiam os círculos dos “espirituais” que entendiam que uma pes­soa podia tornar-se divina mediante o desenvolvimento do conhecimento de Deus. Em síntese, a idéia de filho de deus refletia uma confusão exis­tente no conceito de divindade e humanidade, acarretando, via de regra, uma diminuição da idéia de deus e, também, por outro lado, uma elevação do homem.678

1.2. A Idéia de Filiação Divina no Contexto Bíblico-Ju- daico

Conforme já estudamos, o judeu reconhecia a paternidade de Deus como sendo exclusiva sobre o povo de Israel (cf. Dt 7.6-8;14.1, 2; 32.6 etc.). Esta paternidade estava fundamentada num ato histórico de salvação: O Êxodo do Egito. Deus libertou seu povo como um pai liberta seu filho (Ex 4.22, 23). Portanto, Deus é Pai de Israel! (vd. Is 63.16; Jr 31.9; Ml 2.10).

676 N.D. Fustel de Coulanges, A Cidade Antiga, São Paulo, Hemus, 1975, pp. 117-118. O autor apresenta substancial documentação que demostra as afirmações supra.

677 Cf. J. Jerem ias,/! M ensagem C entral do Novo Testamento, 2“ ed. São Paulo, Paulinas.1979, p. 11.

6,8 Cf. C.H. Dodd, A Interpretação do Q uarto Evangelho, São Paulo, Paulinas, 1977, pp. 335-336.

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254 EU CREIO.

2. A FILIAÇÃO DE JESUS CRISTO

2.1. A Eternidade do Filho e de Filho

Quando estudamos sobre as duas naturezas de Cristo, mostra­mos biblicamente que o Filho é eterno (Is 9.6; Mq 5.2; Jo 1.1,2, 15, 30 etc.). O que dificulta nossa compreensão é o fato de entender­mos sempre a filiação e a paternidade como tendo um princípio; ou seja, sou pai somente a partir do momento que tenho um filho, e obviamente um filho é filho porque tem um pai: A paternidade está para a filiação como esta para aquela. Ambos (pai e filho) são o que são, só enquanto são um para o outro. Todavia, há certas expressões empregadas pela própria Bíblia que se constituem numa forma fi­gurada de falar: Tiago e João são chamados “filhos do trovão” (Mc3.17); José é chamado “filho da exortação ou consolação” (At 4.36); Jesus fala de “filho da paz” (Lc 10.6); Paulo fala dos “filhos da luz” (Ef 5.8) etc. Estes exemplos não significam que um trovão gerou Tiago e João, mas, sim, que eles procediam como tal (vd. Lc 9.54); o mesmo se aplica a Barnabé, que era de fato um consolador (vd. At 9.26, 27) e exortador (At 11.23). De semelhante modo, os filhos da luz e da paz são aqueles que procuram viver em paz (Rm 12.18) e refletir a luz de Cristo em seu comportamento diário (Jo 8.12; Mt 5.14-16).

Quando falamos da eternidade do Filho, queremos dizer tam­bém de sua eternidade como Filho; a relação filial entre o Deus Filho e o Deus Pai sempre foi e sempre será assim; não foi forjada, criada ou assumida. Não houve na eternidade nenhum “momento” em que o Filho não fosse Filho, o Pai não fosse Pai e o Espírito não fosse Espírito. A Trindade coexiste eternamente como tal.

Calvino (1509-1564), seguindo a interpretação de Agostinho (354-430), escreve:

“Cristo com respeito a si mesmo é chamado Deus, e em relação ao Pai é chamado Filho. Assim, o Pai com respeito a si mesmo é chamado Deus, e em relação ao Filho se chama Pai. Enquanto em relação ao Filho é cham a­do Pai, ele não é Filho; da mesma forma o Filho, com respeito ao Pai, não é Pai. Mas enquanto que o Pai com respeito a si mesmo é cham ado Deus,

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IX - O Filho Unigénito de Deus 255

e o Filho com respeito a si mesmo é também chamado Deus, trata-se do mesmo Deus. Assim quando folamos do Filho simplesmente sem relação ao Pai, afirmamos reta e propriamente que tem seu ser de si mesmo; e por esta causa o chamamos único princípio; porém quando nos referimos à relação que tem com o Pai, com razão dizemos que o Pai é princípio do Filho”.679

A totalidade deste assunto escapa à nossa compreensão, e reco­nhecemos também que os termos empregados são falhos; todavia, o que a Bíblia nos diz a respeito do Filho é que ele é tão eterno quanto o Pai e o Espírito (Jo 1.1, 14, 18; 17.5; Ap 1.8; 21.6; 22.13).680 Sua glória é tão eterna quanto a do Pai eterno (Jo 17.5).

É oportuno lembrar que, quando a Bíblia nos fala de Jesus Cris­to como primogênito de Deus, obviamente não se refere à sua su­posta criação, mas, sim, à sua honra. A primogenitura também é usada desta forma, e no caso de Jesus Cristo indica sua prioridade, supremacia, honra, herança e governo (Ex 4.22; SI 89.27; Jr 31.9; Rm 8.29; Cl 1.15-18; Hb 1.1,2).

Por isso, os cremes são chamados “primogênitos”, porque al­cançaram a primogenitura em Cristo (Hb 12.23). Os crentes em Cristo uniram-se a uma família de primogênitos, da qual Cristo é o Filho maior e eterno (Hb 1.5-8), sendo o modelo do que seremos (Rm 8.29).

2.2. O Relacionamento íntimo do Filho com o Pai

Como já vimos acima, os judeus estavam convictos da paterni­dade de Deus sobre Israel. Entretanto, o que mais nos chamou a atenção é o fato de não ser encontrado no judaísmo nenhum exem­plo convincente da utilização da expressão “meu pai” para Deus.681 Os judeus podiam dirigir-se a Deus, liturgicamente, como ’IN ( ‘abhi’, “Meu Pai”); mas nunca empregavam a forma familiar ION (’abhã’)682 (grego: àpj3â, abba), que soaria desrespeitoso.

67‘' J. Calvino, A s Institu ías, 1.13.19.são y j Confissão de Westminster, II.3.681 J. Jeremias, A M ensagem Central do N ovo Testamento, p. 20.682 Cf. Alan Richardson, Introdução à Teologia do Novo Testamento, São Paulo, ASTE,

1966, p. 149ss.

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256 EU CREIO.

Agostinho (354-430) resume a questão, dizendo:“ .... Quem quer que leia a Sagrada Escritura poderá encontrar tais lou­

vores de modo variado e extenso. Entretanto, em parte alguma encontra- se algum preceito ordenando ao povo de Israel que se dirigisse a Deus como Pai e o invocasse como Pai nosso.”685

Portanto, o surpreendente para o judeu foi o fato de Jesus refe- rir-se ao Pai de uma forma nunca vista, jamais praticada. Acontece que Jesus, em suas orações, não usava de um artifício para criar impacto ou para presumir, diante de seus ouvintes, ter ele uma rela­ção inexistente com o Pai. Não. Jesus apenas revelou o fato de seu relacionamento íntimo e especial com o Pai. Isto ele fez, usando a expressão aramaica ’abba, que foi tomada por empréstimo do lin­guajar das crianças, equivalendo mais ou menos ao nosso “papai” ou “paizinho”.684 O Talmud diz que “quando uma criança saboreia o trigo (isto é, quando é desmamada), aprende a dizer ‘abba’ e ‘imma’ (Papai e mamãe)”.685 Com o passar do tempo, o uso desta expressão também tornou-se comum entre os jovens e adultos para se referi­rem a seus pais.686

Abba era um designativo tão familiar e íntimo que nenhum ju­deu ousaria usá-lo para Deus. Tal emprego, feito por Jesus, impres­sionou de tal forma os discípulos, que eles não traduziram a expres­são para o grego.

Com exceção da oração de Mt 27.46, que seguiu a forma do SI22.1, em todas as suas orações Jesus dirigiu-se a Deus como Abba.687

A gostinho, O Sermão da M ontanha, São Paulo, Paulínas, 1992,11.4. p. 115.684 «Q em preg 0 inteiramente novo e, pal a os judeus, nunca imaginado, do termo infantil e

familiar ‘abbã’ na oração, é uma expressão de confiança e obediência ao Pai (M c 14.36), com o também de sua autoridade incomparável (Mt I1 .25ss.)” (O. H ofius, Pai: In: Colin Brown, ed. ger. O N ovo D icionário Internacional de Teologia do N ovo Testamento, Vol.III, p. 383).

1,85 J. Jeremias, O P ai Nosso, pp. 36, 37; O. H ofius, Pai: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo D icionário Internacional de Teologia do N ovo Testamento, 111, p. 382.

686 Cf. O. H ofius, Pai: ln: Colin Brown, ed. ger. O N ovo D icionário Internacional de Teologia do N ovo Testamento, III, p. 382.

687 J. Jeremias, A M ensagem Central do N ovo Testamento, p. 20ss.

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IX - O Filho Unigénito de Deus 25 7

Permita-me mais uma vez usar as palavras de J. Jeremias, que pinta este quadro de forma singular:

“Jesus dirigia-se a Deus como uma criancinha a seu pai, com a mesmasimplicidade íntima, o mesmo abandono confiante (...). Jesus consideravaeste modo infantil de falar como a expressão do conhecimento único deDeus que o Pai lhe dava, e de seus plenos poderes de Filho."688

Isso implica dizer que Jesus tinha plena consciência de ser, de modo único e singular, o Filho de Deus (Mt 11.27; Mc 13.32; 14.36). Quando a Igreja professou sua fé na filiação divina de Jesus, o fez respaldada pelo próprio testemunho de Jesus, de ser o Filho de Deus. O que para os ouvintes foi uma novidade, a afirmação de sua filia­ção divina por ocasião do batismo, para ele foi apenas o testemunho público daquilo que ele sempre soubera. Jesus Cristo é o Filho eter­no, amado eprazeroso do Pai (Mt 17.5; Jo 3.35; 5.20), e e l e s - o Pai e o Filho - se conhecem como mais ninguém (Mt 11.27; Jo 1.18).

2.3. Aspectos da Filiação Única de Jesus Cristo

Através do estudo da filiação de Cristo podemos conhecer mais acerca de sua Pessoa e Obra. Vejamos agora, de forma apenas indi­cativa, alguns desses elementos:

2.3.1. A igualdade Essencial Entre o Pai e o Filho

1) O Batismo é ministrado em nome da Trindade: Mt 28.19.2) Igualmente eternos: Jo 17.5, 24; Jo 1.1.3) Iguais em honra e glória: Jo 5.23; 17.1, 4, 5.4) Iguais em poder criador e redentor. Jo 1.3; 5.21.5) Iguais em domínio: Lc 10.22; 22.29; Jo 16.15; 17.10.6) Iguais em perfeição: Hb 7.28; Mt 5.48.7) Igualmente auto-existentes: Jo 5.26; Jo 1.4; 14.6.8) Igualmente dignos de adoração'. Mt 14.33; Mt 4.10.

688 J. Jeremias, O Pai N osso, p. 37. Vd. também, G. Kittel, Aßß& ln: G. Kittel & G. Friedrich, eds. Theological D ictionary o f the N ew Testament, Vol. I, p. 6.

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258 EU CREIO.

2.3.2. O Poder do Filho

1) Poder sobre a natureza: Mt 4.3; Mt 14.15-33.2) Poder sobre Satanás e seus demônios: Mc 5.11, 12; Lc 4.41;

lJo 3.8.3) Poder sobre a m orte: Jo 5.21; 6.40.4) Poder para ju lgar: Jo 5.22.5) Poder para libertar definitivamente seu povo do pecado : Jo

8.32-36.6) Pode purificador: lJo 1.7.2.3.3. A Santidade Gloriosa do Filho

1) Santo: Lc 1.35; Jo 10.36.2) O Pai glorifica e honra o Filho: Jo 17.5; 2Pe 1.16-18;3) Herdeiro de todas as coisas: Hb 1.2.4) Seu reino permanece para sempre: Hb 1.5-8.2.3.4. O Reconhecimento da Filiação de Jesus Cristo

1) Pelo próprio Pai: Mt 3.17; lJo 5.9.2) Pelo Anjo Gabriel: Gabriel anuncia seu nascimento, como

sendo do Filho de Deus (Lc 1.30-33).3) Pelo próprio Filho: Mt 26.63, 64; Mc 14.61, 62.4) Por seus discípulos: Jo 1.14, 18, 34; 11.27; Mt 16.15-17.5) Por seus algozes: Mt 27.54.6) Pelos demônios: Mt 8.29; Mc 3.11; 5.7; Lc 4.41.2.4. O Filho Eterno e o Povo de Deus

2.4.1. Nossa Relação com o Filho

1) Tudo que recebemos é através do Filho: Rm 8.32; E f 1.3, 4.2) Fomos chamados à sua comunhão: ICo 1.9; G1 2.20; lJo

1.3.3) Ele é o modelo de nossa glorificação futura: Rm 8.28-30.4) O Filho nos amou e se entregou por nós: G1 1.3, 4; 2.20.5) Recebemos o Espírito do Filho: G1 4.4-7; Jo 14.26; 15.26;

16.13.

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IX- O Filho Unigénito de Deus 259

6) Fomos transportados para o reino do Filho: Cl 1.13. Os sal­vos estão em um novo estado, em uma nova condição de vida.

7) Ele é a propiciação por nossos pecados: U o 4.10; interce­dendo efetiva e eficazmente por nós (Hb 4.14-16; Jo 17.9; Rm 8.34; Hb 7.25-28).

8) O Filho nos dá discernimento: lJo 5.20.9) Nossa vida está nele: lJo 4.9; 5.10-12.10) Ele nos livra da ira vindoura: lTs 1.10.11) Sua manifestação fo i para nos libertar das obras do diabo:

U o 3.7-10.2.4.2. Nossa Atitude para com o Filho

1) Adorá-lo: Mt 14.33.2) Honrá-lo juntamente com o Pai: Jo 5.23.3) Crer nele: Jo 3.16, 18, 36 (vd. também Jo 6.40; 20.30, 31;

lJo 5.13).4) Confessá-lo: Uo 2.22, 23.5) Ser batizado em seu nome: At 8.36-38; Mc 16.15, 16; Mt

28.19.6) Conhecê-lo cada vez mais: Ef 4.11-14.1) Atentar para sua Palavra: Mt 17.5; Tg 1.22-25.8) Proclamá-lo: At 9.20; 2Co 1.19; G1 1.15, 16.Reconhecer a filiação divina de Cristo significa reconhecê-lo

como de fato ele é, o Filho de Deus, Aquele em quem se cumpre de forma completa e triunfante o destino do Israel de Deus, a Igreja de Cristo (SI 2.7; 2Sm 7.12-14; At 13.33; Hb 1.5; 5.5).

Aquele que nega a filiação divina de Cristo nega o próprio Deus e sua Palavra. Esta é uma das manifestações próprias do anticristo (cf. U o 2.22, 23).

IMPLICAÇÕES DOUTRINÁRIAS E PRÁTICAS1) Jesus Cristo foi condenado e morto justamente por dizer o

que ele realmente era: o Filho de Deus (Jo 10.33; Mt 26.63-68).2) A filiação de Jesus Cristo é uma união única e especial (Mt

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2Ó0 EU CREIO.

11.27; Jo 20.17). Por isso ele não profere a oração do “Pai Nosso” em conjunto com seus discípulos; ele os ensina: “Vós orareis as­sim: Pai nosso..." (Mt 6.9). Nós, por outro lado, nos tornamos fi­lhos de Deus pela fé em Cristo (Jo 1.12; G1 3.26); e ele não se envergonha de ter-nos como irmãos (Hb 2.11; Rm 8.17, 29).

3) Você já pensou no privilégio e responsabilidade de vivermos neste mundo, como filhos de Deus e irmãos de Cristo?

4) Se nos envergonharmos do Filho, ele se envergonhará de nós diante do Pai (Mc 8.38).

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X - JESUS CRISTO, NOSSO SENHOR-------------------------------------------------------- ^ m^ — ---------------------------------------------

INTRODUÇÃO

Algumas palavras com o passar do tempo perdem seu sentido originário e, em alguns casos, mesmo tendo-se ciência deste sentido, emprega-se com uma conotação diferente. Entre as pala­

vras que passaram por esta transformação podemos citar o termo “senhor”, o qual é utilizado em nossa cultura, via de regra, como forma de tratamento, embora saibamos também que não se desco­nhece o sentido de propriedade.

A Bíblia, por outro lado, não ignora a forma de tratamento em­pregada para “senhor” - além de reconhecer outras - , todavia, quan­do os discípulos e os autores sagrados a utilizam para Deus, ela significa posse absoluta. Como veremos, o mesmo acontece na con­fissão e proclamação do Senhorio de Cristo.1. O SENHORIO DESCRITO NO ANTIGO TESTAMENTO

A palavra “Senhor”, que aparece em nossas traduções, geral­mente é a tradução do tetragrama hebraico mrp (YHWH), que é reconhecido como sendo o nome pessoal de Deus. Como bem sabe­mos, o texto hebraico original não constava de vogais, entretanto, com o decréscimo do conhecimento da língua hebraica, tomou-se ainda mais difícil a compreensão dos textos, visto que a introdução mental de uma vogal errada conduziria o leitor a uma interpretação equivocada. Por isso, desde a antigüidade várias tentativas foram feitas para se introduzir as vogais, o que finalmente ocorreu de for­ma satisfatória pelos judeus da escola massorética de Tiberías, por volta do ano 950 da Era Cristã.

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262 EU CREIO.

No caso do nome mrp (YHWH), que ocorre 5.321 vezes no AT,689 há algumas particularidades curiosas: Por volta do ano 300a.C., ou um pouco antes, os judeus devido 1) à sua reverência para com Deus; 2) à sua interpretação de Lv 24.16 e Ex 3.15, e 3), com medo de serem culpados do pecado de profanação, deixaram de pronunciar o nome YHWH. O que eles passaram a fazer foi o se­guinte: Todas as vezes que liam o nome YHWH em voz alta, este nome era substituído por "OHN ( ‘âdônây, “Senhor”).690 “Para indi­car que esta substituição se devia fazer, os Massoretas691 intercalavam as vogais de ‘aDõNãY692 sob as consoantes de JaHWeH, daí surgiu a palavra JeHowah ou ‘Jeová’ ,”693

O certo é que hoje não temos condições de saber qual era a pronúncia correta do tetragrammaton694 divino, daí pronunciar-se de diversas formas: Yavé, Javé, Jeová, entre outras.

“É especialmente no nome Yhwh que o Senhor se revela comoo Deus da graça”.695 Aqui, de modo especial, encontramos a afirma­ção da imutabilidade de Deus, a confirmação do eterno cumpri­mento de suas promessas decorrentes do Pacto (Ex 3.13, 14; 6.2, 3; 15.3; SI 83.18; Is 42.8; Os 12.5-6); Deus não muda em seu relacio­namento com seu povo.696

689 Cf. Gottfried Quell, Ktípioç: In: G. Kittel & G. Friedrich, eds. Theological D ictionary o f the N ew Testament, Vol. Ill, p. 1067.

6.0 Palavra usada exclusivam ente para Deus. Cf. G esenius' H ebrew -C haldee Lexicon to the O ld Testam ent, 13“ ed. Grand Rapids, M ichigan, Eerdmans, 1978, p. 12b.

6.1 Sobre os Massoretas, vd. G leason L. Archer Jr., M erece Confiança o Antigo Testa­m ento, São Paulo, Vida Nova, 1974, p. 65ss,

m Ainda que em menor escala, os Massoretas também intercalavam com o tetragram ­maton as vogais de ‘Elohim. Cf. L. Berkhof, Teologia Sistem ática, Campinas, SP, Luz para o Caminho, 1990, p. 51; G. Hendriksen, El Evangelio Segun San M ateo, Grand Rapids, M ichigan, Subcom ision Literatura Cristiana, 1986, p. 343.

m G leason L. Archer Jr., M erece Confiança o A n tigo Testamento, p. 66.m Cf. L. Berkhof, Teologia S istem ática, p. 51; H. Bavinck, The D octrine o f G od, 2a ed.

Grand Rapids, M ichigan, W. M. Eerdmans Publishing Co., 1955, p. 102ss.; A.R. Crabtree, Teologia do Velho Testamento, 2a ed. Rio de Janeiro, JUERP, 1977, p. 64; J. Barton Payne, mn: In: R. Laird Harris, et. al., eds. D icionário Internacional de Teologia do Antigo Testa­m ento, São Paulo, Vida Nova, 1998, p. 485. Vd. também: J. Barton Payne, The Theology o f the O lder Testament, Grand Rapids, M ichigan, Zondervan, 1962, pp. 147-149.

695 Herman Bavinck, The D octrine o f G od, p. 103. Cf. também, L. Berkhof, Teologia Sistem ática, p. 51.

6% Vd. Walter C. Kaiser, Jr., Teologia do Antigo Testamento, São Paulo, Vida Nova,

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X-Jesus Cristo, Nosso Senhor 263

Deus se revela no Antigo Testamento como Senhor; e seu Se­nhorio envolve alguns aspectos distintivos:

1) Deus é o Senhor da terra: ele criou o céu e a terra, enchendo- os todos com sua glória, tendo, portanto, todo o domínio (Gn 1.1; Js 3.11, 13; SI 93.1-2; 95.3-5; Is 6.3; Mq 4.1-3); conseqüentemente,

2) Ele é o Senhor de Israel. Deus criou seu povo e o adquiriu ainda, num segundo estágio, quando o livrou da escravidão do Egi­to (Ex 19.4-6; SI 100.3; Is 1.24; 6.1, 8; 43.1, 21; 60.21);

3) Deus é o Senhor da história'. Deus exerce ativamente seu poder sobre o mundo e os homens, dirigindo a História para a reali­zação de seu propósito eterno. Em alguns momentos, a sucessão dos eventos históricos pode nos deixar perplexos, como aconteceu com o profeta Habacuque, entretanto a mão poderosa de Deus rege todos os acontecimentos; Deus dirige a história, fazendo com que todas as coisas contribuam para o bem de seu povo, de sua Igreja (Rm 8.28). “Toda nação da terra está sob a mão divina, porque não há poder neste mundo que, em última instância, não seja por ele controlado. (...) Deus é o Senhor da história. (...) Ele começou o processo histórico, controla-o e pôr-lhe-á um fim. Jamais devemos perder de vista este fato decisivo”.697

4) Deus é o Senhor da graça: O Antigo Testamento é o registro infalível da historificação da graça de Deus; os homens são compe­lidos a se estribarem única e simplesmente em sua graça: “No to­cante a mim, confio em tua graça” (SI 13.5); graça esta que deve ser compartilhada e proclamada (SI 40.10; vd. SI 63.3; 69.16; 85.9-12; 89.14; Is 60, 10; Dt 7.6-8, etc).2. O EMPREGO COMUM DO NOME "SENHOR" NA ANTI­

GÜIDADEA palavra grega equivalente ao hebraico miT (YHWH) é Ktípioç

1980, pp. 111-112. G. Aulén: “A fé entende a imutabilidade com o expressão da direção inalterável da vontade de Deus e com o a afirmação de que essa vontade, sob todas as cir­cunstâncias e em toda sua atividade, caracteriza-se pelo amor” (G. Aulén, A F é Cristã , São Paulo, ASTE, 1965, p. 131).

ml D. Martyn Lloyd Jones, D o Temor à Fé, M iami, Vida, 1985, p. 21.

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264 EU CREIO.

(“Senhor”). K/úpioç, antes mesmo de ser usado na Septuaginta (tra­dução grega do Antigo Testamento), já contava com um rico em­prego, quer secular, quer religioso, passando posteriormente a ser usado como um título, como no caso de Augusto (31 aC-14 d.C.), imperador romano, que foi chamado no Egito, em 12 a.C. de 0 eòç Kori Ktípioç (“Deus e Senhor”).698

Vejamos agora, de forma esquemática, o amplo emprego de Ktípioç na antigüidade:

1) Para demonstrar respeito e cortesia, como “senhor” em por­tuguês, “sir” em inglês. O Novo Testamento apresenta alguns exem­plos desse uso (vd. Mt 20.33; 21.29).

2) Estimado ou prezado, conforme nos dirigimos a algum ami­go, parente, ou ainda apenas como formalidade.

3) Para indicar o proprietário de algum bem (de uma vinha, de escravos etc.). Mt 13.27; 20.8; 21.40; Lc 13.8; 19.34; Cl 3.22.

4) O pai, como chefe da casa, da família. IPe 3.6.5) O protetor de uma pessoa necessitada.6) Para dirigir-se a anjos. At 10.4; Ap 7.14.7) Para os reis e magistrados. At 25.26.8) Tornou-se também a palavra que antecedia o nome dos deu­

ses, assim encontramos: Kyrios Serapis, Kyrios Asklepios, Kyria ísis etc. (vd. ICo 8.5, 6).3. JESUS CRISTO É O SENHOR

3.1. O Nome "kyrios" Aplicado a Jesus CristoSe todo aquele que confessar e invocar o nome do Senhor será

salvo (Rm 10.9, 13), como então Jesus diz: “Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor! entrará no reino dos céus...” (Mt 7.21)? Isto pode parecer contraditório; todavia, não o é; vejamos então como o designativo era empregado para Jesus Cristo.

No NT Jesus é chamado Senhor com dois sentidos básicos:698 Suetônio, Vida dos Doz.e Césares, Rio de Janeiro, Tecnoprint, [s.d.], p. 349.

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X- Jesus Cristo, Nosso Senhor 265

1) Como uma forma cortês de trato, equivalendo a rabbi (= mestre), o senhor dos discípulos (vd. por exemplo: Mt 17.4; Mc 9.5; Lc 9.33; Jo 4.14, 15, 19; 5.7; 6.34; 13.6).

2) No sentido de Messias exaltado, com suprema autoridade espiritual, correspondendo a YHWH no AT (vd. por exemplo: Mc 12.36, 37; Lc 1.43; 2.11; 3.4; Jo 20.28; At 2.36; 10.36; Rm 10.9; ICo 2.8; 8.6; 12.3; Fp 2.11, Tg 2.1; Ap 19.16 etc).

A idéia de icópioç, quando aplicada a Jesus no sentido mais profundo e denso, correspondia não ao grego comum, mas, sim, ao m n1 do Antigo Testamento. É oportuno realçar que muitas das refe­rências feitas a Jesus como Senhor consistem em citações de textos do Antigo Testamento que referiam-se a Deus (vejam-se At 2.20- 21; Rm 10.13 [J1 2.31-32]; 2Ts 1.7-10; 1Co 5.5;2T s 1.7-10 [Is 66.6] IPe 3.15 [Is 8.13], Por isso, em diversos textos do Novo Testamen­to a identificação de Cristo com o Pai é tão evidente, que não se tem certeza se o título “Senhor” está sendo empregado para o Pai ou para o Filho (At 1.24; 2.47; 8.39; 9.31; 11.21; 13.10-12; 16.14; 20.19; 21.14; Rm 14.11).699

Devemos lembrar também que o título ictípioç só foi alcançado plenamente depois de sua ressurreição, quando então não houve mais dúvida quanto a ser ele Jesus, o Senhor e Cristo; por isso, Pedro pôde falar ousadamente diante do povo e das autoridades judaicas: “Esteja absolutamente certa, pois, toda a casa de Israel de que a este Jesus, que vós crucificastes, Deus o fez Senhor e Cris­to''' (At 2.36). Esta certeza por parte dos discípulos de Cristo os impulsionou a testemunhar com firmeza que Jesus era o Cristo (At 5.42) e Senhor (At 10.36).

É digno de nota, entretanto, que antes mesmo da morte de Cris­to, seus discípulos dão prova de reconhecer seu Senhorio; o que por certo contribuiu para isto foi a própria interpretação feita por Jesus Cristo do Salmo 110.1 (Mt 22.41-45 e paralelos),700 embora saiba-

(m Cf. Millard J. Erickson, Introdução à Teologia S istem ática , São Paulo, Vida Nova, 1997, p. 280.

700 Cf. C. H. Dodd, Segundo as Escrituras, São Paulo, Paulinas, 1979, pp. 31 -32.

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266 EU CREIO.

mos que os rabinos também aceitavam o caráter messiânico deste salmo.701 Todavia, ninguém havia dito que o “Filho de Davi” era também “Senhor de Davi”. Os escritores do Novo Testamento se­guiram esta interpretação, a começar de Pedro em seu sermão (vd. At 2.31-36; ICo 15.25; Hb 1.3, 10, 13).

3.2. Características do Senhorio de Cristo1) É o Único Senhor: A ênfase aqui deve ser dada ao fato de que

Jesus Cristo é o Senhor dos senhores; os senhores humanos, por mais poderosos que sejam, em sua relação com Deus são apenas servos (ICo 8.4-6; Ef 4.5; Cl 4.1; Jd 4; Ap 17.14; 19.16).

2) E o Senhor Todo-Poderoso: Ap 1.5, 8.3) E o Senhor Eterno: seu reino é eterno (2Pe 1.11). Por isso,

sua Palavra permanece eternamente (IPe 1.24, 25).4) É Senhor sobre todas as coisas: At 10.36; 17.24; Rm 10.12;

14.8,9.5) E o Senhor misericordioso: 2Tm 1.15-18; Jd 21.6) É o Senhor bondoso: IPe 2.3; SI 34.8; Rm 10.12.7) É o Senhor longânimo: 2Pe 3.9, 15.8) É o Senhor que ju lga retamente: 2Tm 4.8, 14; Jo 5.26, 27;

ICo 4.4, 5.9) É o Senhor da Glória: ICo 2.8; Tg 2.1; Jo 17.1-5. Ele fez-se

pobre por amor de seu povo (2Co 8.9).O Senhorio de Cristo sobre seu povo é um Senhorio Pastoral;

ele não apenas nos governa, mas também nos protege, ensina, dis­ciplina, sustenta etc. Por isso, o escritor da Carta aos Hebreus es­creveu: “Ora, o Deus da paz, que tornou a trazer dentre os mortos a Jesus nosso Senhor, o grande Pastor das ovelhas..." (Hb 13.20; vd. também Jo 10.11; IPe 5.4).

701 Cf. G. Hendriksen, El Evangelio Segun San M ateo, p. 852. Vd. também, H. Biete- nhard, Senhor: ln: Colin Brown, ed. ger. O Novo D icionário Internacional de Teologia do N ovo Testamento , Vol. IV, p. 427.

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X - Jesus Cristo, Nosso Senhor 267

3.3. Manifestações do Senhorio Pastoral de Cristo1) Faz a Igreja crescer: At 2.47; At 9.31.2) Livra, fortalece e sustenta os seus: At 12.11, 17; Rm 14.4; Ef

6.10; 2Ts 3.3; 2Tm 3.11; 4.17, 18; 2Pe 2.9.3 ) Abençoa nosso trabalho'. At 11.20, 21.4) Confirma-nos: At 14.23; ICo 1.4-9; 2Ts 3.3. Os que crêem

são confiados ao Senhor, visto que ele mesmo começou a obra da salvação em nós, regenerando-nos, concedendo-nos o arrependi­mento e a fé. O próprio Senhor concluirá sua obra salvadora em nós (vd. Fp 1.6).

5) Abre nosso coração para entender sua mensagem: At 16.14, nos salvando: At 15.11; At 16.31; 2Tm 2.7.

6) Manifesta sua graça nos dando a paz: Esta paz é o resultado da reconciliação efetuada por Jesus Cristo entre nós e Deus (Rm5.1, 11; Rm 1.7; 16.20, 24; ICo 1.3).

7) Dá-nos o dom da vida: Estávamos mortos como conseqüên­cia de nossos pecados; entretanto, nosso Senhor veio para nos con­ceder vida em abundância (Rm 6.23; Rm 6.11; Jo 10.10).

8) Justifica e santifica os seus: ICo 6.11.9) Salva-nos conforme o decreto eterno de Deus: ITs 5.9.10) Alimenta e cuida de sua Igreja: Ef 5.29.11) Está perto de nós: Fp 4.5. O texto de Filipenses, por certo,

se refere à vinda de Cristo;702 todavia, sua aplicação é cabível den­tro da visão bíblica, que nos mostra que Deus está perto de seus servos, nos guardando e nos preservando em todas as situações (vd. SI 145.18; Mt 28.20). Deus está perto de sua Igreja. Devemos lem­brar que a situação da Igreja entre os pagãos não era tranqüila; as incertezas e perseguições eram constantes. Os próprios crentes fili­penses enfrentavam perseguições, padecendo por sua fidelidade a Cristo (Fp 1.29). Numa atmosfera assim, é difícil manter a tranqüi­lidade. No entanto, é isso que Paulo recomenda, considerando o fato da presença do Senhor.

702 W illiam Hendriksen, Exposição de F ilipenses, São Paulo, Casa Editora Presbiteriana, 1992 (Fp 4.5a), p. 249.

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268 EU CREIO.

12) Concede-nos dons para servi-lo: ICo 12.4, 5, 7.13) Atende nossas orações: IPe 3.12.14) Encoraja e estimula seus servos: At 18.9; 23.11; Fp 1.14. A

vitalidade da Igreja depende do Senhor; o que muitas vezes pode parecer um motivo a mais para nosso desânimo, constitui-se num instrumento útil usado por Deus para despertar e estimular sua Igreja. Paulo esteve preso, e isso estava longe de desanimá-lo, e também à Igreja, serviu de alerta para os filipenses e outros irmãos proclama­rem com maior intrepidez a Palavra (vd. também At 4.23-31).

15) Disciplina-nos: Hb 12.4-6; ICo 11.32.16) Vocaciona e dá autoridade a seus ministros: At 9.15-17;

2Co 10.8; 13.10; ICo 5.1-5; lTm 1.12.17) Faz crescer reciprocamente o amor fraterno da Igreja: lTs

3.12-13.3.4. Efeitos Escatológicos do Senhorio de Cristo1) Recebe o espírito (= alma) dos seus: At 7.59.2) Outorga a coroa da justiça (= glória e vida) aos seus: 2Tm

4.8; Tg 1.12; lP e5 .4 ; Ap 2.10.3) A vitória final: ICo 15.57; 2Co 2.14; Hb 8.37.4) A salvação eterna: Rm 10.9-13.3.5. Atitudes para com Nosso Senhor Jesus CristoA Bíblia nos ensina que somente pelo Espírito Santo podemos

de fato reconhecer o Senhorio de Cristo (ICo 12.3). A confissão sincera do Senhorio de Cristo é uma obra do Espírito em nossos corações e lábios. A Palavra também nos diz que aqueles que con­fessam o Senhor estão unidos a ele (At 11.24; ICo 6.17). Estude­mos agora como viver de forma coerente a confissão do Senhorio de Cristo sobre nós, bem como suas implicações.

1) Reconhecê-lo como Senhor de nossos corações, confessando-o como tal: IPe 3.15; ICo 10.21; Mt 6.24; Rm 10. 9, 13; Fp 2.11.

2) Crer nele: E f 1.15.

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X- Jesus Cristo, Nosso Senhor 269

3) Adorá-lo: Jo 9.35-38.4) Reconhece-lo em todos os nossos planos: ICo 16.7; Fp 2.19,

24; lTs 3.11; Tg 4.13-15; Pv 3.5, 6; SI 37.5.5) Alegrar-nos nele: Fp 3.1; 4.4; At 16.25; 2Co 8.2; lTs 1.6.6) Ensinar e pregar sua palavra: At 13.46-49; 15.36; 28.31;

2Co 4.5.7) Procurar conhecê-lo cada vez mais: Fp 3.8; 2Pe 1.2, 8; 3.18.8) Professar nossa fé e ser batizado: At 19.5; At 8.36-38; 16.31-

34.9) Permanecer firm es nele, aguardando e orando por sua vinda

gloriosa: Fp 3.20; 4.1; lTs 1.3; 3.8; Ap 22.20; Hb 2.1; 2Pe 3.17.10) Colocar nossa vida a seu serviço, servindo-o de todo o co­

ração, através da Igreja: At 15.26; 20.17-21, 24; At 21.13,14; ICo 15.58; Cl 3.23, 24.

11) Andar dignamente, em humildade e santificação, procuran­do conhecer sua vontade: At 9.31; E f 5.18-21; Cl 1.10; 2.6, 7; Hb 12.14; Tg 4.10; ICo 6.13, 19, 20; lTs 4.3.

IMPLICAÇÕES DOUTRINÁRIAS E PRÁTICAS1) A vontade de Jesus Cristo deve ter a primazia em nossa vida,

inclusive sobre a nossa (Mt 6.33; 26.39).2) A vontade de Deus sempre se concretizará a despeito das

tentativas satânicas e humanas de frustrá-la.3) Podemos não entender circunstancialmente o propósito de

Deus; todavia, o que nos deve guiar é a certeza de sua Pastoral Soberania sobre nós (Hb 13.20; IPe 5.4).

4) A afirmação do Senhorio de Cristo significa reconhecê-lo presente e decisivo em todas as nossas atitudes e projetos.

5) Deus nos deu talentos para servi-lo através da Igreja. Como você tem utilizado o seu? (ICo 12.4-7; ICo 4.7; 2Co 3.5). Jesus é o Senhor de nossos talentos; ele no-los deu para usarmo-los confor­me sua vontade.

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XI - O MINISTÉRIO TERRENO DE JESUS CRISTO--------------------------------------- ------------------------------------------------------------------- ----------------- -----------------

INTRODUÇÃO

Quando pensamos no ministério terreno de Jesus Cristo, somos muitas vezes levados a polarizar (concentrar) seus feitos: em

sua encarnação e em sua “paixão” e morte. Esquecemo-nos com certa freqüência das demonstrações evidentes que os Evangelhos registram, a amplitude de seu ministério que culminou aqui na terra com sua morte em favor de seu povo. Estudemos agora apenas al­gumas das muitas facetas do ministério terreno de Cristo.1. MINISTÉRIO DOCENTE

Jesus Cristo é o mestre perfeito. Em todos os seus feitos e pro­nunciamentos, encontramos um modelo a ser imitado, um exemplo a ser seguido. Não era sem razão que seus discípulos, e mesmo aqueles que não se enfileiravam entre os seus, assim se dirigiam a ele, reconhecendo-o como Mestre (ver Mt 19.16; Jo 3.2 etc.).

Quando Jesus terminou de proferir o “Sermão do Monte”, re­gistra Mateus: “Estavam as multidões maravilhadas de sua doutri­na; porque ele as ensinava como quem tem autoridade, e não como os escribas" (Mt 7.28-29).

Vejamos alguns aspectos da docência de C risto:1) Autoridade: Jesus ensinava com a autoridade própria de quem

conhecia, vivia e, mais ainda, era a própria encarnação da verdade. A autoridade de Jesus Cristo era derivada da sua própria Pessoa: ele é o Deus encarnado. Entretanto, essa autoridade ôntica (própria do

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XI - O Ministério Terreno de Jesus Cristo 271

ser) se harmonizava perfeitamente com sua vida e seus ensinamen­tos (vd. Mt 7.28, 29; 22.16; Mc 1.22; Jo 14.6; Jo 8.46).

2) Sabedoria e poder: O povo se admirava de sua sabedoria e poder (Mt 13.54).

3) Incansável: Jesus era incansável em seu labor, no ensino da verdade. Esta é uma característica daquele que crê naquilo que en­sina, e também acredita nos efeitos do ensino (Mt 4.23; 9.35; 11.1; 26.55; Mc 1.21; 2.13; 4.1, 2; Lc 19.47).

4) Coragem e determinação: Apesar da incredulidade de mui­tos, inclusive da parte de seus irmãos, e as autoridades judaicas quererem matá-lo, Jesus continuava a ensinar, dando testemunho da verdade (Mc 6.6; Lc 19.47, 48; Jo 7.1-9).

5) Discernimento: Ao lado de sua coragem estava também o seu discernimento para saber a hora certa de agir (Mt 10.16; Jo 7.1- 9; 8.58-59; 10.39-42; 12.23; 16.32; 17.1).

6) Realista e sincera: Jesus ensinava, não apenas mostrando as delícias do reino; ele apresentava a verdade, mesmo que isso em algumas ocasiões decepcionasse seus ouvintes. Jesus não queria e ainda não quer discípulos enganados, iludidos, que foram ou são convencidos por falsas promessas... Ele quer discípulos que, mes­mo conscientes das dificuldades, o sigam. Por isso, com freqüência Jesus falava de seu martírio e das perseguições vindouras. Ele não enganou ninguém, e nós também não temos o direito de fazê-lo; não podemos apresentar um evangelho esvaziado de seu sentido real e bíblico (Mt 5.11, 12; 10.16-22; Mc 8.31, 35; 9.31, 32; Jo 16.32,33).

7) Sensível às necessidades de seus ouvintes: Jesus Cristo não estava simplesmente disposto a dar o que o povo queria; mas, sim, o que seus ouvintes necessitavam. Ele era sensível não apenas às suas petições, mas às suas reais necessidades (Mc 6.30-44; Lc 11.1- 4; Jo 6.22-40).

8) Fiel à vontade do Pai: Jesus ensinava a verdade que o Pai lhe confiara a ensinar (Jo 7.14-18). O conteúdo de sua mensagem era o Evangelho do Reino (Lc 4.42-44; 8.1), o qual tinha como centro a

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272 EU CREIO.

figura do Rei Eterno, que é o próprio Cristo (Mt 13.41; 16.28;20.21; 25.31-40).

9) Atenta para a perpetuação de seus ensinamentos: Jesus de­monstrou claramente sua atenção para com a transmissão fiel de seus ensinamentos por parte dos discípulos. Para tanto, sua Palavra e feitos foram registrados (Jo 20.30-31; Rm 15.4); ele mandou que seus discípulos ensinassem todas as coisas que lhes havia ordenado (Mt 28.18-20; At 20.27) e enviou, juntamente com o Pai, o Espírito Santo, o qual anunciaria sua Palavra, guiando os seus a toda verda­de (Jo 14.26; 16.7-15).2. MINISTÉRIO UTÚRGICO

Nossa palavra “liturgia” provém do grego, passando pelo latim. No grego temos ^fjüov703 (Lêiton, “concernente ao povo ou à co­munidade nacional”) & èpyov (ergon, “serviço”), tendo, portanto, o sentido primário de “serviço público”. No grego antigo era em­pregado de várias formas, sendo porém o sentido cultual pouco fre­qüente.704

No Novo Testamento, À.euoDpYÍoi (leitourgia) e seus cognatos que ali aparecem, À,£ixo\)pyóç (leitourgos, “ministro”, “auxiliar”), À,eixo\)pYéco (leitourgeõ, “serviço sagrado”) e À.EiToupyiKÓç (lei- tourgikos, “ministrador”) ocorrem cerca de 15 vezes, tendo uma relação direta ou indireta com o serviço religioso.

Resumindo, podemos dizer que este conjunto de palavras tem três significados especiais no NT, a saber:

a) Serviço de um ser humano aos outros: Rm 15.27; 2Co 9.12; Fp 2.17, 30.

b) Serviço especificamente religioso: Lc 1.23; At 13.2; Hb 8.2,6.c) Aquele que está a serviço de seu Senhor: Rm 13.6; 15.16.O escritor de Hebreus, referindo-se ao ministério de Cristo, nos

diz:703 Esta palavra é oriunda de X aóç e kecòç que significam “povo”.704 Cf. I.-H. Dalm ais, et. al., Liturgia: In: Angel D i Berardino, dir. D iccionario P atristico

y de la A n tigüedad C ristiana, Salamanca, Ediciones Siguem e, 1992, Vol. II, p. 1279a.

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XI - O Ministério Terreno de Jesus Cristo 273

“Ora, o essencial das coisas que temos dito é que possuímos tal sumo sacerdote que se assentou à destra do trono da M ajestade nos céus, como ministro (X eiT O upyòç) do santuário e do verdadeiro tabernáculo que o Senhor erigiu, não o homem” (Hb 8.1-2).

“Agora, com efeito, obteve Jesus ministério (XewoDpyía) tanto mais excelente, quanto é ele também m ediador de superior aliança instituída com base em superiores prom essas” (Hb 8.6).

O escritor sagrado enfatiza a superioridade do ministério de Cristo sobre o de Arão, porque “ele é o Intérprete e Mediador de um superior pacto”.705

Jesus Cristo, consciente de sua missão, agiu em todos os mo­mento de sua vida e ministério, como o exegeta (intérprete) do Pai (Jo 1.18), revelando o Pai aos homens (Mt 11.27; Jo 17.6-8) e con­duzindo seu povo ao Pai (Jo 14.6; lTm 2.5).

O ministério terreno de Jesus caracterizou-se por um ato de cul­to (liturgia) a Deus, no qual o homem pecador e indigno é introdu­zido à presença do Deus Santo e Justo, a fim de reconciliar-se com ele, através dos méritos de Cristo (2Co 5.18-21; IPe 3.18).

Através do ministério de Cristo, Deus foi glorificado (Jo 17.4). Uma das formas de cultuar a Deus é fazendo sua vontade! “Pode­mos até chegar a dizer que a verdadeira glorificação de Deus na terra - que constitui a perfeita adoração - foi cumprida por Jesus Cristo em seu ministério.”7063. MINISTÉRIO DIACONAL

O termo “diácono” e suas variantes provêm do grego Ôiòíkovoç (diáconos), Suxkovíoc (diaconia) e SuxKovéco (diakoneõ), palavras que significam, respectivamente, “servo”, “serviço” e “servir”.

Essas palavra apresentam três sentidos especiais, com uma pe­sada conotação depreciativa: a) servir à mesa; b) cuidar da subsis­tência; c) servir: no sentido de “servir ao amo”.

705 João Cal vino, E xposição de H ebreus, São Paulo, Parakletos, 1997 (Hb 8.6), p. 209.706 J.J. von Allm en, O Culto Cristão: Teologia e Prática , São Paulo, ASTE, 1968, p. 21.

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274 EU CREIO.

Para os gregos, servir era algo indigno. Os sofistas chegavam a afirmar que o homem reto só deve servir a seus próprios desejos, com coragem e prudência.

Platão (427-347 a.C.) e Demóstenes (384-322 a.C.), um pouco mais moderados, admitiam que o serviço (SiocKovía) só tinha al­gum valor quando prestado ao Estado. Portanto, “a idéia de que existimos para servir a outrem não cabe, em absoluto, na mente grega.”707

No Novo Testamento isso já não acontece, pois as palavras são empregadas para designar um serviço prestado de forma inteira­mente pessoal, sendo usadas, inclusive, para os serviços dos profe­tas (IPe 1.10-12), dos anjos (Mt 4.11; Mc 1.13; Hb 1.14), do Espí­rito Santo (2Co 3.8-9) e também para o ministério de Jesus Cristo. Foi ele mesmo quem disse: “Pois o próprio Filho do homem não veio para ser servido (ô iaK O véco), mas para servir (SuxK O vécc) e dar sua vida em resgate por muitos..." (Mc 10.45).

Jesus Cristo, em seu ministério terreno, estava consciente de que sua missão consistia em servir diaconalmente em favor de seu povo, culminando com sua voluntária entrega em sacrifício pela Igreja (At 20.28; IPe 1.18-19).

Jesus Cristo é o diácono por excelência. Ele deixou para nós o exemplo de seu ministério e a orientação de seu ensino: “... O mai­or entre vós seja como o menor; e aquele que dirige seja como o que serve (ôicXKOvécú). Pois qual é maior: quem está à mesa, ou quem serve ? Porventura não é quem está à mesa ? Pois, no meio de vós, eu sou como quem serve (SiaKOvéco)” (Lc 22.26-27).4. MINISTÉRIO PASTORAL

Mateus cita a profecia registrada por Miquéias (Mq 5.2) unin­do-a, ao que parece, com 2Sm 5.2, dizendo: “E tu, Belém, terra de Judá, não és de modo algum a menor entre as principais de Judá; porque de ti sairá o Guia que há de apascentar a meu povo, Israel”

707 Hermann W. Beyer, Servir, Serviço: ln: G. Kittel, ed. A Igreja do N ovo Testam ento , São Paulo, ASTE, 1965, p. 275.

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XI - O Ministério Terreno de Jesus Cristo 275

(Mt 2.6). O próprio Jesus se identifica como o Bom Pastor de seu povo (Jo 10.11). Mais adiante, prevenindo seus discípulos a respei­to de sua morte e ressurreição, diz: “Esta noite todos vós vos escan­dalizareis comigo; porque está escrito: Ferirei o pastor, e as ove­lhas do rebanho ficarão dispersas” (Mt 26.31).

Deixemos agora que o próprio Pastor nos ensine algumas carac­terísticas de seu pastorado.

1) Pastor que conhece suas ovelhas (Jo 10.2, 3, 14, 27). Jesus Cristo conhece pessoal e afetivamente suas ovelhas. O conhecimento de Deus em relação a seu povo sempre denota uma relação íntima e amorosa, pela qual ele distingue os seus.708 Ele conhece os que lhe pertencem (2Tm 2.19). Ele sabe que há ovelhas que ainda não fa­zem parte deste aprisco, mas que, no momento certo, serão reuni­das por ele mesmo, o Bom Pastor (Jo 10.16).

2) Pastor que é reconhecido por suas ovelhas: A voz de Cristo é plenamente identificada por seu rebanho, e somente por ele (Jo 10.3-5, 8, 14, 16, 27). Jesus Cristo fala sempre de forma clara e objetiva; não existe ambigüidade em seus ensinos; entretanto, aque­les que não fazem parte de seus escolhidos nada entendem (Jo 10.24- 26; ICo 1.18-25).

3) Pastor que guia com segurança: Suas ovelhas não apenas re­conhecem sua voz, mas também o seguem tranqüilamente, porque sabem que seu Pastor as conduz em segurança (Jo 10.4; SI 23).

4) Pastor vivificador: Ele concede vida a suas ovelhas; vida abundante e eterna. Somos alimentados por sua Palavra (Jo 10.10, 28; Jo 6.68; Jo 14.6; Cl 3.4).

5) Pastor que se sacrifica por suas ovelhas: Ele se dá por suas ovelhas; e apenas por elas, mesmo por aquelas que circunstancial­mente o traem, como foi o caso de Pedro, e por certo também o nosso, infelizmente, em muitas circunstâncias (Jo 10.11, 15).

6) Pastor preservador: Se somos seu povo, não temos o que temer; ninguém pode nos arrebatar de sua mão (Jo 10.27-29).

7ns y j a .W . Pink, Os A tributos de Deus, São Paulo, PES, 1985, p. 23ss.; João Calvino, Exposição de R om anos, São Paulo, Parakletos, 1997 (Rm 8.29), p. 295.

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7) Pastor que compartilha com seus servos o privilégio respon- sabilizador do pastorado (Jo 21.16). Jesus Cristo confia aos ho­mens que ele mesmo vocacionou o alimento (Jo 21.15, 17)709e o pastoreio de suas ovelhas (Jo 21.16),710 sendo os próprios ministros ovelhas do mesmo rebanho, tendo-o como Pastor (vd. At 20.28; Ef 4.11; IPe 5.4).

8) Pastor Eterno: Jesus Cristo conduzirá seu povo em seguran­ça à eternidade, sendo desde agora e para sempre seu Pastor (Ap7.17).5. MINISTÉRIO TERAPÊUTICO

Como já dissemos em outro lugar, Jesus se preocupava com o homem por inteiro; sua salvação é integral; por isso, em diversas circunstâncias ele, além de proclamar a mensagem redentora, cura­va os enfermos, evidenciando assim que Deus salva o homem em sua integridade: corpo e alma (ver Mt 4.23, 24; 8.16; 9.35; 14.14).

Por outro lado, não podemos esquecer que as curas e milagres serviam como sinais evidentes da chegada do Reino de Deus e de seu Rei (Mt 10.7, 8, 12.28; Lc 9.1-2); confirmar sua mensagem (Jo 14.11); e evidenciar ser ele o Messias prometido (Is 35.5; 53.4-5; 61.1; Mt 11.2-6).7"6. MINISTÉRIO INTERCESSÓRIO

É algo emocionante observar a atitude de Jesus Cristo em rela­ção a seus discípulos, mesmo em relação àqueles que ainda viriam a crer, quer num futuro próximo, quer num futuro distante, como é nosso caso. A Palavra registra que Jesus, provavelmente na noite de quinta-feira anterior ao seu martírio,712 intercede por seus primeiros

709 O verbo usado para “apascentar” (póaKCO, boskõ) tem o sentido de “alimentar com o pastor”, “cuidar de” (*M t 8.30, 33; Mc 5.11, 14; Lc 8.32, 34; 15.15; Jo 21.15, 17).

7,110 verbo que é aqui traduzido por “pastoreia” (jtoijiaívco, poimaino) significa também “levar ao pasto”, “liderar” , “guiar” , “cuidar de”, “vigiar” (*M t 2.6; Lc 17.7; Jo 21.16; At 20.28; IC o 9.7; IPe 5.2; Jd 12; Ap 2.27; 7.17; 12.5; 19.15).

711 Vd. G. Hendriksen, El Evangelio Segun San M ateo, Grand Rapids, M ichigan, SLC., 1986, p. 263.

712 Cf. S.L. Watson & W.E. A llen, H arm onia dos Evangelhos, 4a ed. R io de Janeiro, Casa

276 EU CREIO...

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discípulos e também por todos aqueles que viriam a crer no mo­mento em que ele os chamasse, cumprindo o eterno decreto da elei­ção (Jo 17.9-21; Lc 22.31-32; Jo 11.41-42). Isto demonstra de for­ma sensibilizante o cuidado de Jesus Cristo para com toda sua Igre­ja. Em meio a seus próprios sofrimentos, ele tem em mente sua Igre­ja, e em sua intercessão estão envolvidas pessoas como Paulo, A gos­tinho, Lutero, Calvino, Simonton, Blackford, Conceição e todos os redimidos. O Senhor cuida de nós! (Mt 6.25, 34; 10.28-31).

IM PLICAÇÕES DOUTRINÁRIAS E PRÁTICAS

1) Todo o ministério terreno de Cristo estava comprometido com a glória de Deus e a salvação de seu povo.

2) Devemos pregar com a certeza de que a Bíblia é a Palavra de Deus, o poder de Deus para a transformação dos pecadores (Rm1.16).

3) Não devemos desanimar-nos mesmo que não consigamos ver de imediato os frutos de nosso trabalho; baste-nos a certeza de que, no Senhor, nosso trabalho nunca será em vão (IC o 15.58).

4) Uma das formas de cultuar a Deus é obedecendo a seus pre­ceitos. Isto implica no fato de que em todas as áreas de nossa vida podemos e devemos cultuar a Deus, agindo conforme sua vontade.

5) Nossa preocupação na igreja não deve ser quanto ao cargo qué ocupamos, mas, sim, em como podemos servir melhor a nosso Deus.

6) O pastorado de Cristo nos enche de conforto, porque ele é o nosso Pastor, bem como o Pastor de nosso pastor (Hb 13.20; IPe 5.4).

Publicadora Batista, 1964, pp. 186-187.

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XII - OS SOFRIMENTOS DE CRISTO----------------------------------------------------------------------------------------------------------

IN TRO D U ÇÃO

O Credo Apostólico, referindo-se aos sofrimentos de Jesus Cris­to, diz: “Padeceu sob o poder de Pôncio Pilatos, foi crucifica­

do, morto e sepultado...”. Esta confissão, feita historicamente pela Igreja até os nossos dias, é ampla e fortemente embasada nas Escri­turas Sagradas. Sua fundamentação bíblica, no entanto, não impe­diu que homens e sistemas teológicos a negassem de forma direta ou indireta, ora afirmando a impossibilidade de Deus sofrer, logo Jesus Cristo não é Deus, ora afirmando que os fatos narrados nos Evangelhos não são de fato como ocorreram; as descrições, dizem, estariam mais próximas da fé dos evangelistas do que da realidade...

Para nós, entretanto, conforme já estudamos, a Bíblia é o registro fiel, inerrante e infalível da Palavra de Deus, sendo nossa fé gerada e amparada pelo Espírito através da Palavra (Rm 10.17; Ef 2.8).

Estudemos agora o que a Bíblia nos ensina a respeito dos sofri­mentos de Cristo, nosso Senhor.1. AS CAUSAS DO SOFRIMENTO DE CRISTO

1 . 1 . 0 Pecado Humano

O pecado de nossos primeiros pais, bem como o de toda a hu­manidade, visto que todos pecaram (Rm 3.23; 5.12), trouxe sobre toda a natureza um estado de maldição e juízo (Gn 3.17-19; Rm 8.20-23); tendo agora o homem que arcar com as conseqüências de sua escolha, estando irremediavelmente perdido, já que nele estava o símbolo da total impossibilidade de agradar a Deus, reconcilian­

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XII - Os Sofrimentos de Cristo 279

do-se com ele. Agora ele tornou-se escravo do pecado, tendo sua vontade governada por esse tirano (Jo 8.34).

A impossibilidade do homem realça a possibilidade de Deus; o possível para o homem o é por Deus; contudo, é na impossibilidade do homem que muitas vezes ele se lembra do Deus Todo-Poderoso. O pecado do homem, permitido por Deus, pôs em andamento a execução histórica do Plano eterno e sábio de Deus para salvar seu povo escolhido desde a eternidade. Sem o pecado não seria neces­sário o sacrifício de Cristo, e, por outro lado, o pecado não obriga Deus a enviar seu Filho para morrer por seu povo; Deus não é obri­gado a nos salvar; ele o faz por sua graça. Com isso, não chegamos ao ponto de afirma que “Deus seja a vítima do mal”,713 mas que as conseqüências do pecado foram levadas voluntariamente por Cris­to na cruz, a fim de conduzir seu povo de forma definitiva a vencer o mal.

1.2. A Justiça e o Amor Reconciliador de Deus

Deus não é obrigado a salvar pessoa alguma; todavia ele o faz! Somos todos igualmente devedores à graça de Deus.

Deus sempre age em harmonia com seu Ser. O homem é peca­dor, e por isso precisa ser punido por seu ato de rebelião contra Deus; a disciplina faz parte da execução da justiça eterna de Deus. Por outro lado, Deus, em seu amor eterno, infinito e causado em si mesmo - visto que não há nada em nós que mereça ou mesmo des­perte o amor de Deus - , deseja salvá-lo (Jr 31.3; Ef 1.3-14). A jus­tiça de Deus é santa e seu amor é real; a graça de Deus não é barata; ela tem sempre um alto preço para Deus. A graça é a própria fonte do evangelho; sem a graça de Deus não haveria boas-novas de sal­vação; todos nós herdaríamos as conseqüências eternas de nossos pecados. Todavia, a graça reina e Jesus Cristo é a personificação da graça; ele encarna a graça e a verdade (Jo 1.17; 14.6). Ele é a causa, o conteúdo e a manifestação da graça de Deus; falar de Cristo é

713 Cf. Millard J. Erickson, Introdução à Teologia S istem ática, São Paulo, Vida Nova, 1997, pp. 190-191.

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2 8 0 EU CREIO.

falar da graça. Desse modo, Deus tornou-se um de nós (Jo 1.14; GI4.4, 5) a fim de resgatar-nos do poder e maldição do pecado.

Os sacrifícios do Antigo Testamento denotam a iniciativa do Deus justo e amoroso que providencia a reconciliação de seu Povo pecador - porém igualmente amado e eleito - consigo mesmo, en­contrando esse processo sua plenitude e ápice em Jesus Cristo: o Verbo Encarnado. “Em suma, ‘tudo é de D eus’: o desejo de perdoar e reconciliar, os meios indicados, a provisão da vítima vindo de seu próprio seio, mediante preço infinito. Tudo acontece dentro da pró­pria vida de Deus: pois se tomamos a cristologia do Novo Testa­mento, temos de afirmar que ‘Deus estava em Cristo’ neste grande sacrifício expiatório, e que o Sacerdote e a Vítima eram o mesmo Deus.”714

É importante observar que a Bíblia não faz distinção entre o amor de Deus Pai, do Deus Filho e do Deus Espírito Santo; o sacri­fício do Filho revela o amor do Trino Deus: o Pai não passou a nos amar porque seu Filho morreu por nós; antes, o Filho morreu por nós porque o Deus Trino eternamente nos amou e confiou-nos ao Filho (Jo 3.16; 10.22-30; 15.16; 17.6-26; R m 5.8; 1 Jo 4.9).

1.3. A Voluntariedade do Filho

A vinda de Jesus Cristo e todos os seus atos foram norteados por sua obediência ao Pai e pela consciência de que era necessário assim fazê-lo, tendo sempre como meta glorificar a Deus e salvar seu povo (Jo 4.34; 5.30; 6.38, 39; 10.10-18; 17.1-8).

Desta forma, a obra de Cristo foi feita com espírito voluntário; ele assumiu nosso lugar morrendo sob o estigma da maldição, res­gatando-nos da decorrente condenação, por sua livre graça (G1 3.13,14). Assim, o que era impossível ao homem - ter acesso a Deus e expiar seu próprio pecado - , Jesus realizou perfeita e vicariamente! (IPe 3.18; Hb 8.26-28; 9.23-28; 10.10-18). Voltaremos a este as­sunto em outro tópico.

7,4 Donald M. Baillie, Deus Estava em Cristo, p. 215.

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XII - Os Sofrimentos de Cristo 281

2. A CO N SCIÊN CIA DE JESUS CRISTO

Jesus Cristo não veio enganado; ele tinha perfeita consciência do que teria de passar (Is 53). Ele sabia que sua vida de obediência espontânea ao Pai tinha como rota obrigatória a cruz. Ele sempre soube que não havia desvios nem atalhos; a cruz era sua missão; não que houvesse com isso um prazer na própria morte, mas, sim, a certeza de ser esta a única alternativa para a salvação de seu povo. As profecias do Antigo Testamento na esteira de Gn 3.15 já indica­vam as dores do Messias, e ele as conhecia bem, já que essas profe­cias foram reveladas pelo Espírito de Cristo (vd. Lc 24.26, 46; Is 53.1-12; At 3.18; Jo 17.1-3; IPe 1.10, 11). Por isso, após a identifi­cação por parte de Pedro de ser ele o Cristo (= Messias, Ungido; cf. Mt 16.13-17), registra Mateus: “Desde esse tempo, começou Jesus Cristo a m ostrar a seus discípulos que lhe era necessário seguir para Jerusalém e sofrer muitas coisas dos anciãos, dos principais sacerdotes e dos escribas, ser morto e ressuscitado no terceiro dia” (Mt 16.21;Mt 17.12; Lc 17.25). Jesus Cristo não tinha ilusões quanto a isso; por isso ele administrava o tempo do qual era Senhor, levan­do adiante sua obra, tendo ciência perfeita de sua hora, do momento de se revelar, ser preso, torturado, morrer e ressuscitar (Cf. Lc 22.14- 16; Jo 7.1-9; 12.23-33; 16.32; 17.1).3. A OBEDIÊNCIA PERFEITA DE CRISTO

E possível que alguém assuma uma missão sem saber o alcance, os perigos e as implicações da mesma; todavia, caso tais dados te­nham sido ocultados propositadamente, ao tomarmos ciência disso, a tendência do ser humano é de revoltar-se contra aquele que o enganou, colocando-o numa situação difícil. Como já vimos, este não foi o caso de Jesus Cristo; ele sabia perfeitamente o que teria de realizar e os sofrimentos pelos quais passaria; contudo, ele veio as­sim mesmo para cumprir sua missão cabalmente, conforme o Pacto selado na eternidade entre ele mesmo, como representante dos elei­tos, e o Pai, como representante da Trindade Excelsa.

O escritor da Carta aos Hebreus nos diz: “Embora sendo Filho, aprendeu a obediência pelas coisas que sofreu” (Hb 5.8). A obedi­

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2 8 2 EU CREIO.

ência de Cristo foi em favor de seu povo; ele viveu em constante harmonia com a vontade do Pai; o preço da obediência era o sofri­mento; assim nosso Senhor foi batizado, submeteu-se às leis do povo, foi ultrajado, torturado, contado entre os transgressores, morto e sepultado. O próprio Senhor Jesus diz: “A minha comida consiste em fa zer a vontade daquele que me enviou, e realizar a sua obra” (Jo 4.34). Seu alimento e alegria consistiam em realizar a obra do Pai (vd. Is 50.4-7; 53.4-7).

Como comentaremos adiante, a obediência de Cristo não signi­fica que ele foi apenas uma vítima que deixou passivamente que os fatos conduzidos pelos homens, sob o olhar irado de Deus, o condu­zissem ao martírio; não: ele, antes, ativamente se dispôs a salvar seus eleitos através de seu sacrifício remidor. Por isso ele afirma em diferentes ocasiões: “Por isso o Pai me ama, porque eu dou a m i­nha vida para a reassumir. Ninguém a tira de mim; pelo contrário, eu espontaneamente a dou. Tenho autoridade para a entregar e também para reavê-la (Jo 10.17,18). “Ninguém tem maior amor do que este; de dar alguém a própria vida em favor dos seus amigos” (Jo 15.13; vd. também Is 53.10-12; At 2.22, 23; 4.27, 28).715

A obediência de Cristo foi voluntária e ativa; se ele não se dis­pusesse a cumprir as demandas da Lei em nosso lugar, apresentan­do um sacrifício perfeito, expiando nossos pecados, a graça de Deus não seria diminuída; entretanto, não haveria salvação para ninguém. A Confissão de Westminster (1647) declara:

“Este ofício o Senhor Jesus empreendeu mui voluntariamente. Para que pudesse exercê-lo, ele se fez sujeito à lei, a qual cumpriu perfeitamente, padeceu imediatamente em sua alma os mais cruéis tormentos, e em seu corpo os mais penosos sofrimentos...” (VIII.4).

Jesus Cristo foi o único homem que não precisava padecer, to­davia ele voluntariamente o fez por nós (Jo 10.17, 18; Hb 2.9), dei­xando-nos o exemplo (IPe 2.21) a fim de nos conduzir a Deus em santidade (Hb 13.12; IPe 3.18).

715 Vd. Abraham Kuyper, The Work o f the H oly Spirit, Chattanooga, AM G. Publishers,1995, p. 113s.

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XII - Os Sofrimentos de Cristo 283

4. A INTENSÂO E EXTENSÃO DO S SOFRIM ENTOS DE CRISTO

Somos muitas vezes levados a pensar que os sofrimentos de Cristo se deram apenas no Calvário; quando assim imaginamos, nos esquecemos da extensividade terrena de seus sofrimentos, como bem disse Calvino (1509-1564): “Com toda verdade se pode dizer que não somente passou toda sua vida em perpétua cruz e aflição, senão que toda ela não foi senão uma espécie de cruz contí­nua.”716 (Hb 5.8) “Toda sua vida foi uma cruz perpétua”.717

O que já foi estudado neste capítulo serve para realçar ainda mais a extensão e intensidade de seus sofrimentos; basta que recor­demos o fato de que o Logos eterno sempre soube de seus futuros sofrimentos na carne (IPe 4.1). Durante todo seu ministério terreno Jesus convivia numa atmosfera pecaminosa e hostil; Satanás o ten­tou por mais de uma vez, inclusive usando o próprio Pedro (Lc 4.1- 13; Mt 16.21-23; Hb 2.18); a incredulidade do povo e até mesmo de seus familiares (Mt 17.17; Jo 7.5); as armadilhas das autoridades judaicas (Jo 11.47-52); a traição de Judas, a omissão de Pedro e o abandono de todos os seus discípulos (Mt 26.14-16, 20-25, 35, 56; Jo 18.1-11; 15-18; 25-27); o tipo de morte que teria, fazendo-se maldição em nosso lugar (G1 3.13, 14) etc. Todos estes elementos contribuíram para intensificar sua dor e sofrimento.

Jesus Cristo morreu como um maldito condenado, sendo santo (2Co 5.21); morreu em sacrifício por aqueles que nem ainda criam nele (Jo 1.29; Jo 17.20,21; ICo 5.7; Ef 5.2; Hb 7.14, 27; 9.23, 26; 10.12).

Os sofrimentos de Cristo foram físicos e espirituais (Mt 26.36- 42; IPe 4.1); no Getsêmani, horas antes de seu martírio, ele sente o peso ainda mais forte da aproximação da experiência mais temida: a separação de Deus, que é a morte; a ira de Deus sendo derramada sobre ele, o Justo (Is 53.3), como representante de seu povo; toda­via, Jesus se abandonou na vontade do Pai a qual é a vontade deter­

716 J. Calvino, Institu tion , 111.8.1.717 João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, São Paulo, N ovo Século, 2000, p. 45.

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minante para ele e para seu ministério; e nessa auto-entrega está a vitória de Deus sobre o pecado e sobre Satanás, redimindo para si um povo comprado com o “sangue de Deus” (At 20.28; ICo 6.20; IPe 1.18, 19). “O amor de Cristo é, para a fé, o amor do próprio Deus. Onde Cristo está, lá está Deus. Onde Cristo age, lá age o próprio Deus. O amor de Cristo, que se sacrifica e se entrega, é o amor do próprio Deus. Sua luta contra o mal é a luta do próprio Deus. Sua vitória é a vitória do próprio Deus. No evento de Cristo, Deus efetiva sua vontade amorosa.”718

Meus irmãos, é impossível descrever de forma perfeita os sofri­mentos de Cristo; ninguém jamais poderá aquilatar de forma com­pleta as dores do Messias; elas foram únicas e suficientes! Entre­tanto, todos os eleitos, desde os mais humildes até os mais sábios, desfrutam dos benefícios salvadores da obra sacrificial de Cristo. A Igreja é o resultado efetivo e histórico do ministério sacrificial; o sacrifício de Cristo não foi em vão.

O Catecismo de Heidelberg (1563), à pergunta de n° 37, “Que entendes pela palavra ‘sofreu’?”, responde:

“Que durante toda a sua vida na terra, e especialmente no fim dela, ele suportou no corpo e na alma a ira de Deus contra os pecados de todo o gênero humano, de modo que, pelo seu sofrimento, como o único sacrifí­cio expiatório, ele redimisse o nosso corpo e a nossa alma da maldição eterna, e para nós conseguisse de Deus a graça, a justiça e a vida eterna.”

IM PLICAÇÕES DOUTRINÁRIAS E PRÁTICAS

1) Através de Cristo aprendemos que a vitória sobre o sofri­mento está na plena submissão à vontade de Deus.

2) A Igreja é conclamada a participar dos sofrimentos e das vi­tórias de Cristo (IPe 4.12-19).

3) “Na cruz, a misericórdia e a justiça divina foram igualmente expressas e eternamente reconciliadas. O santo amor de Deus foi ‘satisfeito’.”719

718 Gustaf Aulén, A Fé Cristã, São Paulo, ASTE, 1965, p. 186.715 John R.W. Stott, A Cruz de Cristo, Miami, Editora Vida, 1991, p. 79.

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XII - Os Sofrimentos de Cristo 285

4) “Visto que nos reconciliamos com Deus, em Cristo, através de seu verdadeiro sacrifício, somos, todos nós, por sua graça, feitos sacerdotes com o fim de podermos consagrar-nos a ele como sacri­fício vivo e tributar-lhe toda a glória por tudo o que temos e somos. Não resta mais nenhum sacrifício expiatório para se oferecer, e não se pode fazer tal coisa sem trazer grande desonra para a cruz de Cristo.”720

»5) Jesus Cristo sofreu e morreu para nos trazer benefícios espi­rituais (2Co 1.5), santificando seu povo (Hb 13.12). Sua vida tem sido digna do sacrifício de Cristo e de seu propósito?

6) De forma direta ou indireta, todos nós somos responsáveis pelos sofrimentos de Cristo. De forma direta, Jesus Cristo é respon­sável por nossa salvação. Se isso é assim, qual deve ser a nossa atitude diante dele?

7) O estudo a respeito dos sofrimentos e morte do Messias não deve ser apenas para motivar nossa compaixão; antes, pelo contrá­rio, deve conduzir-nos a ver de forma mais real e concreta o amor de Deus, o qual carece de uma resposta de seu povo em obediência, fé e amor.

™ }oãoCai\iao, Exposição de Romanos, São Paulo, Parakletos, 1997 (Rm 12.1), p. 424.

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XIII - JESUS, O SALVADOR------------------------------ -------------------------------------------------

IN TRODUÇÃO

A salvação é pelas obras! Sem as obras da Trindade, jamais seria­mos salvos pela graça. A graça de Deus, que é personificada em Cristo, é apenas um lado das obras redentoras do Deus Triúno.

Toda a Trindade está comprometida na salvação de seu povo, tendo cada uma das Pessoas da Santíssima Trindade, conforme o Conse­lho trinitário, um papel fundamental.

De forma simplificada, podemos falar do Pai como Criador; do Filho como Redentor e do Espírito Santo como Santificador. Ou, como escreveu A.W. Pink:

“Cada uma das três pessoas da Santíssima Trindade desempenha um papel em nossa salvação: o Pai, quanto à predestinação; o Filho, quanto à propiciação; e o Espírito Santo, quanto à regeneração. O Pai nos escolheu; o Filho morreu por nós; o Espírito Santo nos vivifica. O Pai se preocupou conosco; o Filho derramou seu sangue por nós; e o Espírito Santo realiza sua obra em nós.”721

A salvação dos eleitos foi planejada pelo Pai, pelo Filho e pelo Espírito Santo desde a eternidade; por isso, quando falamos de nos­sa salvação, devemos ter sempre em mente que ela nos é propiciada

721 A.W. Pink, Deus é soberano, São Paulo, Fiel, 1977, pp. 75-76 (vejam -se também: Abraham Kuyper, The Work o f the H oly Spirit, pp. 18-22; R.B. Kuiper, E vangelização Teocêntrica, São Paulo, PES, 1976, pp. 7-14; Idem, El Cuerpo G lorioso de Cristo, Grand Rapids, M ichigan, SLC., 1985, pp. 169-175; A.W. Pink, D eu séS o bera n o , p. 49ss; J. Owen, P or Quem C risto M orreu?, São Paulo, PES, 1986, pp. 19-22; J.l. Packer, O “A n tig o ” E vangelho , São Paulo, Fiel, 1986, p. 9; Loraine Boettner, Studies in Theology, 9“ ed. Phila­delphia, The Presbyterian and Reformed Publishing Company, 1970, pp. 117-118).

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XIII - Jesus, o Salvador 287

pelo trabalho conjunto do Deus Trino (leia Jo 14.16-17, 26; 15.26; 16.13-15; 17.2-4, 9-26; At 9.31; ICo 12.3; G1 3.13; 4.1-7; E f 1.3- 14; Fp 2.6-8; IPe 1.18-20 etc.).

O Deus Triúno é o autor e o executor de nossa salvação; do princípio ao fim, a salvação é obra de Deus (Fp 1.6).722

No que se refere ao Espírito Santo, podemos dizer que ele torna efetivo em nós aquilo que Cristo realizou definitivamente por nós. Portanto, sem as operações do Espírito, o Ministério Sacrificial de Cristo não teria valor objetivo para os homens, visto que os méritos redentores e salvadores de Cristo não seriam comunicados aos pe­cadores. Calvino (1509-1564) afirmou corretamente que é necessá­rio que Cristo habite em nós para que compartilhe conosco o que recebeu do Pai. Ele conclui dizendo que “O Espírito Santo é o elo pelo qual Cristo nos vincula efetivamente a si.”723 Em outro lugar, declara: “Sabemos que nosso bem, nossa alegria e repouso é estar unido ao Filho de Deus.”724

Cristo cumpriu perfeitamente as demandas da Lei e adquiriu todas as bênçãos que envolvem a salvação. A obra do Espírito con­siste em aplicar os merecimentos de Cristo aos pecadores, capaci­tando-os a receberem a graça da salvação. Somente através do Es­pírito “recebemos todos os bens e dons que nos são dados em Jesus Cristo.”725 É ele que derrama sobre nós as bênçãos da graça, obtidas pela obra eficaz de Cristo. Dessa forma podemos dizer que o minis-

722 “... Em sua inteireza, nossa salvação procede do Senhor. É sua realização. Ele m esm o apresenta sua noiva a si m esm o porque ninguém mais pode fazê-lo, ninguém mais é com pe­tente para fazê-lo. Som ente ele pode fazê-lo. Ele fez tudo por nós, do princípio ao fim, e concluirá a obra apresentando-nos a si m esm o com toda esta glória aqui descrita” [D.M. Lloyd-Jones, Vida N o Espírito: No Casamento, no L ar e no Trabalho, São Paulo, PES, 1991 (E f 5.27), p. 137]. D o m esm o m odo acentua Murray: “A salvação é do Senhor, tanto em sua aplicação com o em sua concepção e realização” (John Murray, R edenção: Consu­m ada e A plicada, São Paulo, Editora Cultura Cristã, 1993, p. 98). Vejam-se, R .B. Kuiper, El C uerpo G lorioso de C risto , p. 169ss.; 177ss.; C.H. Spurgeon, Serm ões Sobre a Salva­ção, São Paulo, PES, 1992, p. 12ss.

723 João Calvino, A s Institutas, III. 1.1.724 Juan Calvino, Sermones Sobre La O bra Salvadora D e Cristo, Jenison, M ichigan,

T.E.L.L., 1988, “Sermon n°2" , p. 23.725 J. Calvino, C atecism o de G enebra (1541), Pergunta 91.

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tério soteriológíco do Espírito se baseia nos feitos de Cristo, e que o ministério sacrificial de Cristo reclama a ação do Espírito (Jo 7.39; Jo 14.26; 16.13-14). “A obra do Espírito na aplicação da redenção de C risto é descrita com o tão e ssen c ia l com o a própria redenção.”726 “A condição prévia indispensável para a outorga do Espírito é a obra de Cristo.”727

Todavia, a lição de hoje trata da obra do Filho como Autor de nossa salvação; por isso, nos deteremos mais especificamente em seus feitos salvadores, lembrando-nos sempre de que o que foi de graça para nós custou um preço muitíssimo alto para Jesus Cristo (At 20.28; ICo 6.20; IPe 1.18-21).

Abraham Booth (1734-1806), escrevendo sobre este assunto, assim se expressou:

“A graça de Deus está fundamentada na obediência perfeita e meritória de Cristo.”728

“Ainda que este perdão seja gratuito para os pecadores, nunca devemos esquecer-nos de que Cristo pagou um alto preço por ele. Perdão para a menor de nossas ofensas só se tornou possível porque Cristo cumpriu as mais aflitivas condições - sua encarnação, sua perfeita obediência à lei divina e sua morte na cruz. O perdão que é absolutamente gratuito ao pecador teve um alto custo para o Salvador.”729

De fato devemos tudo a Deus, à “doçura de sua graça.”7301. A NECESSIDADE DE SALVAÇÃO

Todos os homens necessitam da salvação por causa de seus pe­cados. Vejamos o que a Bíblia nos diz:

1 . 1 . 0 Significado do Pecado

O Catecismo Menor de Westminster define bem a questão: “Pe­726Charles Hodge, Teologia S istem ática, São Paulo, Editora Hagnos, 2001, p. 390.127Frederick D. Bruner, Teologia do E spírito Santo, São Paulo, Vida N ova, 1983, p. 179.128 A. Booth, Som ente pe la G raça, São Paulo, PES, 1986, p. 15.729 A. Booth, Somente p e la G raça, p. 31. Vd. J.I. Packer, O Conhecimento de Deus, São

Paulo, Mundo Cristão, 1980, p. 121.730 João Calvino, O Livro dos Salm os, São Paulo, Parakletos, 1999 (6.1), Vol 1, p. 125.

288 EU CREIO...

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XIII - Jesus, o Salvador 289

cado é qualquer falta de conformidade com a lei de Deus, ou qual­quer transgressão desta lei”731 (vd. Tg 2.10; 4.17; lJo 3.4).

Pecar significa agir de maneira contrária aos princípios expres­sos por Deus em sua Palavra.732

1.2. O Pecado é Universal

Todos pecaram. O homem, além de não querer, nada pode fazer para deixar de pecar. Após a queda, a natureza humana se corrom­peu total e intensamente, estendendo-se essa contaminação a todas as áreas de sua vida. O pecado trouxe um quadro de irreversibilida- de pecaminosa que se perpetuou em todos os seres humanos devido ao seu pecado (Gn 6.5; 8.21; ls 64.6; Jo 8.34; Rm 3.9-12, 23).

1.3. A Comunhão com Deus Foi Interrompida

O pecado gerou a separação entre o homem e o Deus Santo, Justo, Puro e Sublime (Is 59.2). O homem encontra-se num estado de rebelião contra Deus (Is 65.2).

1.4 . O Homem Está Morto

0 pecado como algo universal trouxe como justo pagamento a morte de todos: o salário do pecado é a morte (Rm 5.12; 6.23). A Bíblia nos fala de três tipos de morte decorrentes do pecado:

1 )A Morte Física: Separação da alma e corpo, pela qual todos os homens - com exceção dos que estiverem vivos quando Cristo retor­nar em glória - terão de passar (Ec 12.7; ICo 15.51-52; Hb 9.27).

2) A M orte Espiritual: Interrupção da comunhão com Deus. Como já vimos, o pecado gerou a quebra de nossa comunhão com Deus; isso significa nossa morte espiritual, pois a vida está em Deus, e sem comunhão com ele estamos mortos (Is 59.2; Ef 2.1, 5; Cl 2.13).

731 Catecism o M enor , Perg. 14.132 “O pecado não é um lapso lamentável de padrões convencionais; sua essência é a

hostilidade para com Deus (Romanos 8.7), manifesta em rebeldia ativa contra e le” (John R.W. Stott, A Cruz. de C risto , Florida, Editora Vida, 1991, p. 80).

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290 EU CREIO.

3) A Morte Eterna: A interrupção eterna e definitiva da comu­nhão com Deus. Os homens que morrem fisicamente, estando mor­tos espiritualmente, estão mortos eternamente para Deus, não tendo mais oportunidade de arrependimento (Hb 9.27).

Em síntese, o pecado lançou o homem num estado de miséria espiritual contra o qual ele nada pode fazer (Mt 19.25, 26; Ef 2.9; G1 2.16). Isso torna todos os homens dependentes única e exclusi­vamente da salvação de Deus manifestada em Cristo.2. JESUS CRISTO O ÚN ICO SALVADOR

2.1. Salvador Prometido pelo Próprio Deus

Após o pecado de nossos primeiros pais, e sua decorrente puni­ção, Deus faz uma promessa: “Porei inimizade entre ti (serpente = Satanás, cf. Ap 12.9; 20.2) e a mulher, entre a tua descendência e o seu descendente. Este te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calca­nhar” (Gn 3.15; Gn 17.7). Como dizLaw, “estas foram as primeiras palavras da graça a um mundo perdido”.733 De fato, aqui temos o protoevangelium, o primeiro vislumbre histórico do evangelho de Jesus Cristo (Mc 1.1), Aquele que viria em graça restaurar seu povo à comunhão com Deus. Ele viria, como de fato veio, da “semente” da mulher (Mt 1.18-25; Lc 1.35), constituindo-se no segundo Adão. Caso Jesus Cristo não se constituísse em descendência do primei­ro casal, a promessa de Deus teria falhado, e também Cristo não poderia ser o representante legítimo de seu povo. Por outro lado, se Jesus Cristo pecasse, seu sacrifício não teria valor vicário, pois ele mesmo precisaria, nesta hipótese, ter seus pecados expiados. Entretanto, a Bíblia afirma que Jesus veio da semente da mulher, sendo verdadeiramente homem - não obstante ser verdadeiro Deus

todavia sem pecado (Jo 8.46; 2Co 5.21; Hb 2.17-18; 7.22-28; 9.23-28).

Jesus Cristo cumpriu o propósito de Deus a despeito de todas as tentativas de Satanás para frustrá-lo, e apesar da gravidade do peca-

733 Henry Law, O Evangelho em Gênesis, São Paulo, Editora Leitor Cristão, 1969, p. 33.

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XIII - Jesus, o Salvador 291

do humano e de suas conseqüências, Jesus venceu. A graça de Deus é mais forte do que a obra pecaminosa do homem: a vida é mais forte do que a morte (Rm 5.12-15; ICo 15.20-28; 45-49; 67, 58). Como escreveu Calvino (1509-1564): “Cristo suplantou a Adão, o pecado deste é absorvido pela justiça de Cristo. A maldição de Adão é destruída pela graça de Cristo, e a vida que Cristo conquistou tragou a morte que procedeu de Adão.”734

2.2. A Salvação Proporcionada por Cristo

“Por que é o Filho de Deus chamado JESU S, isto é, SA LV A D O R?”

“Porque ele nos salva de nossos pecados e porque a salvação não podeser buscada ou encontrada em nenhum outro".735

A salvação é uma prerrogativa única e exclusiva de Deus: ele tem poder e total liberdade para salvar a quem ele quiser; a Palavra diz que a salvação pertence a Deus (Hb 2.10; 5.9; Tg 4.12; Ap 7.10; 19.1). Por isso nossa salvação repousa unicamente em Deus. A B í­blia nos diz que a salvação

1) É oferecida por Deus unicamente através de Cristo, median­te a pregação da Palavra : Jesus Cristo é o único Salvador. A Igreja anuncia a Palavra porque é através da Palavra que Deus produz a fé salvadora em seus escolhidos (At 2.47; 4.4, 12; Rm 10.13-17; Hb 7.25; U o 4.14; Jd 25; Tg 1.18; IPe 1.23).

2) É resultado de nossa eleição: Deus nos escolheu na eternida­de para a salvação em Cristo Jesus (Ef 1.4; lTs 5.8, 9; 2Ts 2.13; 2Tm 2.10).

3) É obra da graça de D eus: Nossa salvação é decorrente do Pacto da Graça, através do qual Deus confiou seu povo a seu Filho para que este viesse entregar sua vida por seus escolhidos. Cristo deu sua vida em favor de todos aqueles que o Pai lhe confiara na eternidade (SI 89.2, 3; Is 42.6; 2Tm 1.9; Jo 6.39; 17.1, 6-26).736As-

734 João Calvino, Exposição de Romanos, São Paulo, Parakletos, 1997 (5.17), pp. 194-195.7,5 C atecism o de H eidelberg, perg. 29.736 Vd. John Gill, A Com plete B ody o f D octrinal and P ractical D ivinity, Arkansas, The

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292 EU CREIO.

sim, todos os homens que creram, tanto no Antigo como no Novo Testamento, foram salvos pela graça (At 15.11).

Mérito e graça são conceitos que se excluem (Rm 11.6). “A graça divina e o mérito das obras [humanas] são tão opostos entre si que, se estabelecermos um, destruiremos o outro”, conclui Calvino (1509-1564).737 De fato, a graça tem sempre como pressuposto a indignidade daquele que a recebe.738 A graça brilha nas trevas do pecado; desta forma, a idéia de merecimento está totalmente exclu­ída da salvação por graça (Ef. 2, 8, 9; 2Tm 1.9). A Palavra de Deus nos ensina que nossa salvação é de Deus, porque é ele que faz tudo; por isso, o homem não pode criar a graça, antes, ela lhe é outorgada, devendo ser recebida sem torná-la vã em sua vida (2Co 6.1; 8.1; ICo 15.10).

4) E efetivada pelo poder soberano de Deus: Nossa salvação é decorrente primeiramente da vontade soberana de Deus (Mt 19.23- 36; Hb 7.25; Tg 4.12). Deus age através de sua poderosa Palavra (Rm 1.16; 9.16-18; 10.17; ICo 1.18), conduzindo-nos a Cristo (Jo 6.44,65), confessando-o como nosso Senhor (ICo 12.3). Deus mes­mo nos dá a certeza de que fomos salvos pelo poder de sua graça (Jo 10.27-29); confirmando (Rm 16.25-27);739 selando (Ef 1.13; 4.30), edificando (At 20.32); santificando (2Ts 2.13); e preservando-nos

Baptist Standadar Bearer, 1989 (reprinted), 1.13. p. 83 [John G ill, “A Com plete Body o f Doctrinal and Practical Divinity,” The C ollec ted W ritings of: John G ill [CD-ROM ], (Al- bany, OR: A ges Software, 2000), 1.13].

737 J. Calvino, E xposição de Rom anos (11.6), p. 388. Adiante, Calvino continua: “É pre­c iso lembrar que sempre que atribuímos nossa salvação à graça divina, estam os confessan­do que não há mérito algum nas obras; ou, antes, devem os lembrar que sempre que fazem os m enção da graça, estamos destruindo a justiça procedente das obras” [E xposição de R om a­nos (11.6), p. 389],

738 Vd. A. Booth, Somente p e la G raça, p. 13.™ Calvino (1509-1564), comentando o texto de Rm 16.25, diz que Paulo ensina aqui a

perseverança final. “E para que descansem (os romanos) e se apoiem neste poder, indica que e le nos foi assegurado pelo evangelho. Por isso não só nos promete a graça presente, ou seja, atual, senão também nos dá a certeza de uma graça eterna. Pois D eus nos anuncia que não som ente é nosso Pai agora, senão para sempre, e o que e mais ainda, sua adoção sobre- passa a morte porque nos conduz à herança eterna” (J. Calvino, La E pistola D el A postol P ablo A Los Rom anos, Grand Rapids, M ichigan, Subcom ision Literatura Cristiana de la Iglesia Cristiana Reformada, 1977, p. 393).

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XIII - Jesus, o Salvador 293

(Jd 24, 25), até à conclusão de seu propósito em nós: a salvação eterna para a glória de Deus (Fp 1.6; 2Ts 1.11, 12; IPe 1.3, 5; 2Pe 1.3).

5) É segundo sua m isericórdia: A misericórdia de Deus é uma demonstração de sua bondade para com aqueles que estão em misé­ria e pecado: misericórdia sempre pressupõe necessidade daquele em quem ela é exercitada. Este é o estado do homem até que Deus o salve (Ef 2.4-5; Tt 3.5).

6) E fruto da longanimidade de Deus: Deus é paciente na exe­cução de seu juízo, oferecendo tempo para que o homem se arre­penda de seus pecados e seja salvo (2Pe 3.9, 15).

2.3. A Extensão da Salvação Proporcionada por Jesus Cristo

2.3.1. Jesus Salvará Todo o Seu Povo

, Jesus veio morrer por seu povo, cumprindo as demandas da Lei, sofrendo em lugar daqueles que ele representava, conseguindo as­sim, de forma inexorável, a salvação de todos os eleitos, conforme o Pacto feito entre ele e o Pai na eternidade (Is 53.10-11; Mt 1.21; Jo6 .37-40,44,65; 10.14,15; 24-29; 17.6-26; Rm 5.12-21; Ef 5.25-27).

A Confissão de Westminster (1647) declara:“... O s que, portanto, são eleitos, achando-se caídos em Adão, são remi­

dos por Cristo, são eficazmente chamados para a fé em Cristo, pelo seu Espírito que opera no tempo devido, são justificados, adotados, santifica­dos e guardados pelo seu poder, por meio da fé salvadora. Além dos eleitos não há nenhum outro que seja remido por Cristo, eficazmente chamado, justificado, adotado, santificado e salvo.”740

2.3.2. Jesus Salva o Homem Todo

A Bíblia declara que Jesus veio salvar o que estava perdido (Mt 18.11; Lc 19.10), os pecadores (Jo 3.16-17; 12.47; lTm 1.15). Je­sus salva seu povo por inteiro. A Bíblia não apresenta, como muitos

740 Confissão de W estm inster, 111.6. Vd. também os capítulos VII e VIII; C atecism o M aior de Westminster, Pergs. 30-36, 41; C atecism o M enor de Westminster, Pergs. 20-21.

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294 EU CREIO.

imaginam, uma espiritualização da salvação, como se o corpo fosse mau e a alma (= espírito) fosse boa, conforme geralmente os filóso­fos gregos pensavam. A redenção de Cristo é para o homem inteiro, pois todo ele é carente da libertação do poder do pecado.

Alguns elementos são fundamentais para nossa compreensão desse ponto:

1) A Escritura usa indistintamente as palavras “salvação ” e “cura”: O verbo salvar (EdjÇco), o substantivo salvação (Ecoxepía) e o adjetivo salvador (Hamíp) são usados de forma intercambiável para referir-se à salvação eterna bem como ao livramento ( - cura, libertação, segurança).

a) Salvar (Ec&co): Mt 1.21; 9.21-22; Mc 6.56; 8.35; 10.26, 52; At 4.9; 27.30; ICo 1.18; Jd 5, etc.

b) Salvador (Zornríp) e salvação (Ecmepía): Lc 1.47, 69, 71, 77; 2.11; At 4.12; 27.34; Fp 1.19, etc.

2) A encarnação do Verbo de Deus: Sendo o corpo (matéria) mau - conforme os gnósticos criam - , o Verbo de Deus não poderia ter assumido uma forma humana (Jo 1.14).

3) A ressurreição física de Jesus, bem como sua ascensão (Jo 20.26-29; At 1.9-11).

4) A ressurreição final: Se o corpo é mau, não deveríamos ter um corpo na eternidade; entretanto, a Palavra nos ensina que, quan­do Cristo retornar, os mortos ressuscitarão, e os que estiverem vi­vos terão seus corpos transformados, adaptados à eternidade (Rm 8.11; ICo 15.20-23; 35-43; 50-58; Fp 3.21). O “corpo espiritual741 que teremos (ICo 15.44) não deve ser entendido como uma incor- poreidade, mas, sim, “uma existência humana total, alma e corpo incluídos, que será criada, penetrada e controlada pelo Espírito de Cristo.”742 Um corpo “totalmente pertencente à nova era, totalmen­te sob a direção do Espírito”.743 Ou, nas palavras de Calvino (1509-

741 “Xcò(ia jtvEuncaiKóv” .742 Hendrikus Berkhof, La D octrina dei Espíritu Santo, Buenos Aires, Junta de Publica-

ciones de las Iglesias Reformadas/Editorial La Aurora, 1969, p. 120.743 J.D.G. Dunn, Espírito: In: Colin Brown, ed. ger. O N ovo D icionário Internacional de

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XIII - Jesus, o Salvador 295

1564), um corpo no qual “O Espírito será muito mais predominante (...) será muito mais pleno....”744

A salvação de Jesus Cristo é para o homem todo; Jesus se inte­ressa com a inteireza do homem (corpo e alma).

2.3.3. Jesus Salva o Hamem Eternamente

A salvação efetuada por Jesus começa aqui e agora e jamais terá fim: é uma salvação eterna (Jo 3.16; 3.36; 6.47; lTm 6.12; 2Tm 4.18; Hb 9.28; IPe 1.5).3. CO N D IÇÕ ES PARA NOS APROPRIARMOS DA SALVAÇÃO

PROPORCIONADA POR JESUS CRISTO1) Arrependimento: Deus nos conduz ao arrependimento since­

ro de nossos pecados, imprimindo nova direção em nossa vida, fa­zendo com que desejemos a salvação oferecida por Jesus Cristo (2Co 7.9-10).

2) Fé em Jesus Cristo: A fé é a boa obra do Espírito em nós, como resultado de nossa eleição eterna. Nós não fomos escolhidos porque um dia teríamos fé; Deus nos escolheu e por isso é que te­mos fé. A fé é a causa instrumental de nossa salvação (Mc 16.16; Jo 3.16; At 16.30-31; 13.48; 2Tm 3.15; Tt 1.1; IPe 1.9).

3) Regeneração: Os salvos são aqueles que nasceram de novo pelo poder de Deus (Jo 3.3, 5; Tt 3.5).

Teologia do Novo Testamento, Vol. II, p. 144. D e igual forma, interpretam: F. Baumgärtel, nveC|xa: In: G. Friedrich & G. Kittel, eds. Theological D ictionary o f the New Testament, Vol. VI, p. 421; A .A . Hoekem a, A B íblia e o Futuro, São Paulo, Casa Editora Presbiteriana, 1989, pp. 88-90; Idem., C riados à Imagem de Deus, São Paulo, Editora Cultura Crista, 1999, p. 268; W. Hendriksen, A Vida Futura Segundo a B íblia , São Paulo, Casa Editora Presbiteriana, 1988, p. 193; Ray Summers, A Vida no Além, 2a ed. Rio de Janeiro, JUERP, 1979, pp. 90-91; Wayne A. Grudem, Teologia Sistem ática, p. 520. Charles H odge, sem aludir ao texto, faz uma distinção entre o céu e o inferno, dizendo: “O céu é um lugar e estado em que o Espírito reina com absoluto controle. O inferno é um lugar ou estado em que o Espírito já não refreia nem controla. A presença ou ausência do Espírito estabelece toda a diferença entre céu e inferno” (Charles Hodge, Teologia S istem ática, São Paulo, Editora Hagnos, 2001, pp. 983-984).

744João Calvino , Exposição de I Coríntios, São Paulo, Parakletos, 1 9 9 6 (IC o 15.44), pp. 483-484 .

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29ó EU CREIO.

4) Obediência: Jesus é o autor da salvação daqueles que lhe obedecem (Hb 5.9).

5) Santificação: A salvação dos eleitos é mediante a santifica­ção e fé (Ef 1.4; 2Ts 2.13).

6) Perseverança: Os salvos não são aqueles que creram durante dez ou vinte anos; mas, sim, aqueles que creram perseverantemente até o fim (Mt 10.22; 24.13; Ap 2.10). Deus, por sua inefável graça, nos capacita a perseverar até o fim, pois foi ele mesmo quem ini­ciou a boa obra em nós e a concluirá em glória (Rm 8.29-30; Fp 1.6; 2Ts 3.3).

7) Confessá-lo como Senhor: A confissão sincera do Senhorio de Cristo é operada pelo Espírito em nós (Rm 10.9-10; ICo 12.3).

IM PLICAÇÕES DOUTRINÁRIAS E PRÁTICAS

1) Jesus morreu por nós, não porque tivéssemos grande valor a seus olhos, mas porque ele nos amou.

2) Por outro lado, você já pensou no valor que Deus confere a cada um de nós, ao ponto de providenciar nossa salvação desde a eternidade? (Jr 31.3; Ef 1.4). Qual o lugar que ele ocupa em sua vida?

3) A segurança de nossa salvação não está amparada em nossas frágeis obras, mas nos feitos salvadores da Trindade.

4) Tenha a preocupação em confirmar sua salvação; desta for­ma, você terá certeza de sua eleição (Fp 2.12).

5) Não se preocupe com os motivos insondáveis de sua eleição; medite, sim, no propósito de Deus em nos eleger (Ef 1.4; 2Ts 2.13).

6) A certeza de que fomos salvos, longe de nos conduzir a um estado de indolência espiritual, deve nos levar a proclamar a gran­diosa salvação oferecida por Deus (Mc 16.15; Rm 10.13-15; ICo9.16).

7) Se você tem certeza de sua salvação e ainda não fez sua Pú­blica Profissão de Fé, você já pensou no porquê dessa omissão? (Mt 10.32; Rm 10.9-10).

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XIV - O SACERDÓCIO DE CRISTO------------------------------------------------------------------------------------------------------

IN TRO D U ÇÃO

O Antigo Testamento apresenta com freqüência aspectos de tran­sição que apontam para sua concretização no Novo Testamen­

to. O AT aponta para além de si mesmo, extrapolando seus limites históricos, tendo em seu cerne a semente da esperança que germina e frutifica no Novo Testamento.

O sacerdócio é uma dessas sementes que encontram seu verda­deiro e definitivo significado em Jesus Cristo: o grande Sumo Sa­cerdote, Aquele que conferia sentido aos sacrifícios do AT, e que cumpriu definitiva e completamente a necessidade de sacrifícios, através de seu próprio sangue.

É necessário enfatizar, contudo, que nossa salvação não se deve exclusivamente ao ofício sacerdotal de Cristo, mas, sim, à sua obra Sacerdotal, Profética e Real. “A obra mediatória é sempre realizada pela pessoa completa; nem uma só pode ser limitada a qualquer dos ofícios.”7451. DEFINIÇÃO DOS TERMOS

A palavra hebraica para sacerdote é 103 (kõhén), que é um cog­nato do árabe “kahin”, que significa “vidente” e “adivinhador”.746 No entanto a etimologia da palavra hebraica é desconhecida.747 A pala­

745 Louis Berkhof, Teologia Sistemática, Campinas, SP, Luz para o Caminho, 1990, p. 358.746 Vd. G esen ius’ H ebrew -C haldee Lexicon to the O ld Testament, 13° ed. Grand Rapids,

M ichigan, Eerdmans, 1978, p. 385; J. Baehr, Sacerdote: In: Colin Brown, ed. ger. O N ovo D icionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, Vol. IV, p. 287.

747 Cf. J. Barton Payne, kãhan: In: R. Laird Harris, ed. Theological Wordbook o fth e O ld

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298 EU CREIO.

vra não estava restrita ao uso religioso, podendo referir-se a um oficial do governo (2Sm 8.18); no entanto, seu sentido fundamental é de um “ministro autorizado de Deus”, aquele que serve no altar (cf. Hb 5.4).748

Os termos gregos para sacerdote e sumo sacerdote são, respec­tivamente: lepetíç (hiereús) e àp%i8p£i5ç (archiereús).

A palavra portuguesa “sacerdote” é proveniente do latim “sa- c e r d o t i s “sacerdócio” é derivado do latim “Sacerdoíium ”.2. DISTINÇÃO ENTRE O MINISTÉRIO PROFÉTICO E O MI­

NISTÉRIO SACERDOTAL

O profeta era um homem escolhido por Deus para ser seu porta- voz aos homens; sua fidelidade consistia em declarar aos homens a Palavra autêntica de Deus. O profeta não criava nem adaptava a mensagem; a ele competia transmiti-la como havia recebido (Ex 4.30; Dt 4.2, 5). Portanto, o que se exige do profeta é fidelida­de.749 Esta declaração dos desígnios de Deus envolvia a admoesta­ção, a exortação, a repreensão e a apresentação das gloriosas pro­messas do Senhor (Ex 7.1; Nm 12.6-8; Dt 18.18; Jr 1.4-10). O pro­feta é, de certo modo, filho de seu tempo - sem dúvida chamado e capacitado por Deus mas que fala a seu povo, estimulando, exor­tando e repreendendo, dentro de um locus temporal e histórico, no qual o povo vive e atua.750

O sacerdote era também escolhido por Deus para representar-se a si mesmo (como parte integrante do povo) e aos homens diante de Deus, oferecendo sacrifícios, fazendo intercessão e abençoando oTestament, Chicago, M oody Press, 1980, Vol. 1, p. 431a.

148 Cf. J. Barton Payne, The Theology o f the O lder Testament, Grand Rapids, M ichigan, Zondervan Publishing House (c) 1961, p. 372.

749 Stott resume bem a tarefa do profeta: “A característica essencial do profeta não era prever o futuro nem interpretar a atividade presente de Deus, mas falar as palavras de D eus” (J.R.W. Stott, O Perfil do P regador, São Paulo, SEPAL, 1989, p. 12).

150 “O profeta é sempre produto do seu tempo, m esm o criticando-o e especialm ente por isso, porque, seja com o for, é em relação ao seu tempo que e le se situa” (A lphonse M aillot & A. Lelièvre, A tualidade de M iquéias: Um G rande "Profeta M enor", São Paulo, Pauli­nas, 1980, p. 23).

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XIV - O Sacerdócio de Cristo 299

povo (Lv 9.22; Hb 5.1 -4; 7.1, 25, 27; Lv 9.7). Sua função era medi­adora entre Deus e os homens. Resumindo: “O profeta fala da parte de Deus ao povo; mas é o sacerdote que fala da parte do povo a Deus.”7513. A NECESSIDADE DO SACERDÓCIO

O Sacerdócio foi criado por Deus devido ao seu beneplácito, à sua bondade e amor atuantes que se manifestam como um ato vo­luntário e doador (Is 53.10; Jo 3.16; Rm 5.8; G1 1.4; Cl 1.19, 20), considerando o pecado do homem que o distanciou de Deus e, por isso, se encontra em profunda miséria espiritual. O sacerdócio pres­supõe uma relação rompida; por isso mesmo, ele tem uma função mediadora entre o homem e Deus, através dos sacrifícios que eram oferecidos por seus pecados.

Desta forma, podemos dizer que o sacerdócio é necessário por causa do pecado e tornou-se uma realidade pelo amor misericordi­oso de Deus.4. CARACTERÍSTICAS DO SACERDOTE JUDAICO

O Sacerdote deveria ser:1) Escolhido dentre os homens para ser seu legítimo represen­

tante: Ex 28.9, 12, 21, 29; Hb 5.1, 2. Ele se aproximaria de Deus para oferecer sacrifícios, abençoar e fazer intercessão pelo povo (Ex 19.23-24; Nm 6.22-26; Lv 16.3,7, 12, 15; Lc 1.8-10; Hb 5.3);

2) Escolhido por Deus: Ex 28.1; Hb 5.4.3) Santo, íntegro e consagrado ao Senhor: Ex 39.30, 31; Lv

21 .6 .

4) Compassivo: Hb 5.2 (|AETpiO7ta0éa> = “moderado nas pai­xões ou nos sentimentos”). O sacerdote deveria ser paciente com os seus irmãos, tendo consciência de suas próprias fraquezas, mas, ao mesmo tempo, deveria ser firme na aplicação da Palavra de Deus. A palavra grega indica um meio termo entre o excesso de entusias­

751 J. Barton Payne, The Theology of the Older Testament, p. 372.

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300 EU CREIO.

mo e a indiferença absoluta; entre a indiferença e o sentimentalis­mo melindroso.5. JESUS CRISTO: O SACERDOTE PERFEITO

O Livro de Hebreus - “A Epístola do Sacerdócio” - retrata com detalhes o Sacerdócio de Cristo, mostrando sua excelência e quão superior ele é ao sacerdócio arônico. O Sacerdócio de Cristo, con­forme nos mostra Hebreus, é definitivo, não precisando ser suple­mentado nem aperfeiçoado. Por isso, Cristo é chamado “grande sa­cerdote” (iepéa |iéYocv; Hb 10.21).

Na realidade, os sacrifícios oferecidos no AT eram apenas som­bras daquele sacrifício perfeito que seria oferecido definitivamente (Hb 5.9-10; 8.2, 6 , 13; 9.11, 23, 24, 28; 10.1; 13.11, 12; Cl 2.16,17). Cristo de fato representou uma aliança superior (Hb 8.6; 9.11), cumprindo de forma muitíssimo mais elevada o que os sacrifícios do AT se propunham fazer. As ofertas feitas sob a Lei foram aceitá­veis ao Senhor porque - conforme ele mesmo as instituiu prefi­guravam a oferta perfeita de Cristo. Também, os sacrifícios eram auxílios que visavam a conduzir os homens à obediência e piedade.752

No capítulo 8 de Hebreus, o escritor sagrado faz um resumo do Sacerdócio de Cristo, dizendo:

“Ora, o essencial (K£(|)á^ouov = “principal”) das coisas que temos dito é que possuímos tal sumo sacerdote, que se assentou à destra do trono da Majestade nos céus, como ministro do santuário do verdadei­ro tabernáculo que o Senhor erigiu, não o homem” (Hb 8.1-2).

Cristo ministra no verdadeiro tabernáculo (Hb 8.2; 9.24), aque­le que não é cópia de um modelo melhor; antes, é o eterno, estabe­lecido por Deus, é o tabernáculo real (Hb 8.2; ò(X.T)0ivóç). O sacer­dócio anterior, obviamente, não era falso; ele era apenas um sinal do verdadeiro representado por Jesus Cristo.

Resumindo, podemos dizer que Cristo, como Sacerdote1) Ofereceu a Deus um sacrifício perfeito para satisfazer a justi­

752 Cf. João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo, Parakletos, 1999, Vol. 2 (SI 40.6),p. 226.

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XIV - O Sacerdócio de Cristo 301

ça divina, reconciliando seu povo com Deus (Rm 3.26; Hb 2.17; 9.14, 28);

2) Intercede continuamente por seu povo, fundamentado em seus méritos redentores (Jo 17.6-24; Rm 8.34; Hb 7.25; 9.24).

Analisemos agora alguns aspectos do Sacerdócio de Cristo.5.1. Características do Ofício Sacerdotal de Jesus Cristo

Jesus é o Mediador da Nova Aliança (Hb 12.24), que é superior (Hb 8.6). Como tal, ele se identificou com os sacerdotes da antiga aliança, apresentando, contudo, um único sacrifício, de real valor, no Tabernáculo Celestial, do qual o terreno era apenas uma sombra (Hb 7.18, 19; 8 .1 ,2; 9.11-12, 24).

5.1.1. Em Relação a Deus1) Escolhido por Deus dentre os homens (Hb 5.1-5, 10; Jo 1.14;

Hb 3.1-2).No Sacerdócio de Cristo, o encontramos como sacerdote e como

oferta: ele se oferece a si mesmo; sendo escolhido por Deus e, con- comitantemente, agindo voluntariamente: Deus o escolheu e ele es­pontaneamente se deu (Mc 10.45; Jo 10.17-18; Ef 5.2; G1 1.4). Daí a necessidade de o Mediador ser homem (Jo 1.14; lTm 2.5). So­mente um homem poderia ser sacerdote, mas somente o Deus en­carnado poderia sê-lo perfeito.

“Por que era indispensável que o Mediador fosse homem?”, in­daga o Catecismo M aior de Westminster (1647).

“Era indispensável que o Mediador fosse homem, para poder soerguer a nossa natureza e possibilitar a obediência à lei, sofrer e interceder por nós em nossa natureza, e solidarizar-se com as nossas enfermidades, para que recebêssemos a adoção de filhos, e tivéssemos conforto e acesso, com con­fiança, ao trono da graça.”753

2) Fiel (Hb 3.1-2; 2.17).A fidelidade de um enviado é avaliada através do cumprimento

155 C atecism o M aior de W estminster, Perg. 39. Vd. também, as perguntas 38 e 40.

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302 EU CREIO..

de sua missão. Jesus Cristo cumpriu seu ministério terreno glorifi­cando o Pai (Jo 17.4; Jo 19.30).

3) Piedoso (Hb 5.7).754

Jesus Cristo, em seu ministério terreno, cuidou de cada detalhe de seu ministério com o sentimento adequado, correspondente à sua grande responsabilidade. Jesus tinha perfeita consciência das implicações de sua obra, e também de que a cruz era sua rota obri­gatória.

4) Obediente (Hb 5.8).O aprendizado de Cristo não consistiu em uma passagem da

desobediência à obediência; antes, significa que Jesus Cristo - como perfeitamente homem e perfeitamente Deus - , conforme crescia, amadurecia, tomava sobre si maiores responsabilidades, desenvol­vendo sua natureza humana.755 “Quanto mais velho ficava, tanto mais seus pais podiam exigir dele obediência, e tanto mais seu Pai celes­tial podia atribuir-lhe tarefas na força de sua natureza humana. Com cada tarefa, cada vez mais difícil, mesmo quando implicava algum sofrimento (como especifica Hb 5.8), aumentava a habilidade mo­ral de Jesus, sua capacidade de obedecer sob circunstâncias cada vez mais difíceis. Podemos dizer que essa ‘espinha moral’ foi forta­lecida por exercícios cada vez mais difíceis. Mas em tudo isso ele jamais pecou .” 756

Como já vimos, a obediência de Cristo foi em favor de seu povo; ele viveu em constante harmonia com a vontade do Pai; o preço da obediência era o sofrimento; assim, ele foi batizado, submeteu-se às leis do povo, foi ultrajado, torturado, contado entre os transgres­sores, morto e sepultado. O próprio Jesus diz: “A minha comida consiste em fazer a vontade daquele que me enviou, e realizar a sua obra” (Jo 4.34). Seu alimento e alegria consistiam em realizar a obra do Pai (vd. Is 50.4-7; 53.4-7).

5) Sem pecado (Hb 4.15; Hb 5.1-3; Hb 9.28; Lv 9.7).754 EtiXápeia - “temor piedoso”, “reverência”.755 Vd. Abraham Kuyper, The Work o f the H oly Spirit, p. 102.156 W ayne A. Grudem, Teologia Sistem ática, p. 439.

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XIV - O Sacerdócio de Cristo 303

Se Cristo tivesse pecado, poderia ser sacerdote (Hb 5.2); não poderia, contudo, ser a oferta imaculada (IPe 1.18, 19), nem seu sacrifício teria um valor eterno.

6) Santo (Hb 7.26;757 At 2.27; 13.35).Na Septuaginta, esta palavra traduz com freqüência IDíl (hãsid),

palavra que é aplicada a Deus (Dt 32.4; SI 147.17) e também ao homem que aceita conscientemente as obrigações decorrentes de seu relacionamento com Deus; é o “leal”, “o piedoso”, “o fidedig­no” (Dt 33.8). Hãsid se relaciona com "1017 (hesedh). A idéia princi­pal desta palavra é a de que Deus manifesta seu amor ativamente na forma de uma relação de um pacto; Hesedh é um “amor de Pacto” (Dt 7.9, 12; Jr 31.3).758 O Pacto de Deus é unilateral no que concer­ne às suas demandas e provisões; compete ao homem aceitá-lo ou não, porém não pode modificar seus termos. O Hesedh é a causa e o efeito do Pacto; Deus fez o Pacto por misericórdia; ele revela sua misericórdia de acordo com o Pacto (lR s 8.23; Is 55.3).

Devido ao seu Hesedh, Deus voluntariamente elege seu povo, mantendo-se fiel nesta relação independentemente da fidelidade circunstancial de seus eleitos (Dt 7.6-11; 2Sm 2.6; SI 36.5; 57.3; 89.49; Is 54.10; 55.3).

O Hesedh de Deus não é barato; Deus não age movido por um sentimento incontrolável e incoerente; antes, ele encontra um justo caminho para estabelecer uma relação sólida com o homem pecador. O fundamento desta nova relação é o próprio Cristo. Assim sendo, a santidade de Jesus Cristo se revela em sua determinação fiel em cumprir o Pacto da Graça (Jo 17.4). No Antigo Testamento, o hãsid (fiel, piedoso) é aquele que pratica o hesedh759 (vd. Hb 2.17; 4.15).

757 ôcnoç - “devoto”, “piedoso”, “reverente temor”.758 Van Groningen, comentando o Salm o 111.1, chama a expressão de “fidelidade pac­

tuai”; no Salm o 118.1, designa de “amor pactuai” (Gerard Van Groningen, R evelação M es­siân ica no Velho Testamento, Campinas, SP, Luz para o Caminho, 1995, pp. 351, 363). Packer, a traduz por “Amor constante” (J.I. Packer, Vocábulos de Deus, São Paulo, FIEL, 1994, p. 88); Eichrodt, chama de “amor solicito” (Walther Eichrodt, Teologia d e lA n tigu o Testamento, I, p. 213).

7W Vejam-se, Ernst Jenni & Claus Westermann, D iccionario Teologico M anual d e lA n ti-

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304 EU CREIO.

7) Inculpável (Hb 7.26).760Esta palavra foi usada na Septuaginta para descrever o caráter

de Jó (Jó 2.3; 8.20. Vd. também: SI 25.21; Pv 2.21; 8.5). Ela é apli­cada ao homem que não foi possuído pela maldade; em seus pensa­mentos e atos não há malícia.

8) Sem mácula (Hb 7.26).761Esta palavra descreve uma pureza ética; a idéia predominante é

a ausência de qualquer coisa que se constituiria em corrupção dian­te de Deus. Ela denota, portanto, o que o cristão deve ser diante de Deus.

As Escrituras declaram que foi assim que Jesus Cristo se ofere­ceu vicariamente por nós (Hb 9.14; IPe 1.19), sem mancha, sem pecado. O Cordeiro de Deus foi imolado por nós (1 Co 5.7) a fim de nos tornar sem mácula, nem ruga, nem impureza alguma (Ef 5.25- 28), cumprindo assim parte do objetivo de nossa eleição eterna (Ef1.4).762

9) Perfeito (Hb 7.28).763Cristo, como sacerdote, cumpre perfeitamente seu objetivo; sua

obra é suficiente para satisfazer as necessidades de seu povo, dentro de um critério divino de avaliação (Hb 2.10; 5.9; 7.19; 10.14). Por isso é que a Igreja no céu é descrita como sendo a dos “espíritos dos justos aperfeiçoados” (TE^Eidca; Hb 12.23). Jesus, o Sacerdote per­feito cumpre, seu propósito aperfeiçoando seu povo.

5.1.2. Em Relação ao Seu PovoO que Jesus Cristo é em relação a seu povo é decorrente daquilo

que ele é em si mesmo e na relação com seu Pai. Daí que sua obra é decorrência daquilo que analisamos no tópico anterior.

guo Testamento, Madrid, Ediciones Cristiandad, 1978, Vol. I, p. 857; Hermisten M.P. C os­ta, A G raça de Deus: Comum ou Exclusiva?, São Paulo, 2000, passim .

160 ócKotKoç - “sem maldade”, “inocente”, “intocado pelo mal”.761 óqoicmoç - “ imaculado” , “puro” .762 Vd. Hermisten M.P. Costa, A Eleição de Deus, São Paulo, 2000.763 xeXeióto - “aperfeiçoar”, “tornar perfeito”, “levar até seu objetivo”.

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XIV - O Sacerdócio de Cristo 305

1) Intercessor (Hb 7.25; 6.19, 20; 8.1, 2).A intercessão de Cristo não é feita através de evasivas, que pro­

cure olhar para nossa “boa intenção” ou para nossa “inocência”; ao contrário, ela é objetivamente respaldada nos merecimentos de Cris­to. Como bem expressou Calvino (1509-1564): “A intercessão de Cristo é uma contínua aplicação de sua morte para nossa salva­ção .”764 A intercessão de Cristo fundamenta-se em seus merecimen­tos, obtendo para seus eleitos os frutos de sua obra expiatória (Rm 8.34; Hb 7, 25; lJo 2.1).765

2) Salvador (Hb 7.25; Hb 5.9; 2.10).Jesus tem poder, e de fato salva a todos os que crêem nele como

o único meio de salvação. Como só os eleitos crêem, a salvação propiciada por Cristo é suficiente e eficiente apenas para seu povo (Jo 6.37, 38 ,44 , 65; 8.43-47; 10.16, 25-29; 17.2,9, 24; At 13.48; Tt 1. 1).

3) Caminho para o Pai (Hb 7.25; Jo 14.6; lTm 2.5).É impossível chegar ao Pai sem o conhecimento gracioso e su­

ficiente de Jesus Cristo, o Mediador. Fora de Cristo não há cami­nho; ele é o único.

4) M isericordioso e simpático (Hb 2.17766e Hb 4.15).767Jesus se identificou existencialmente conosco, com nossas fra­

quezas e tentações. Esta identificação foi possível porque ele se tornou “semelhante aos irmãos” [ò|J,oiócd = “comparar”, “em for­ma de” (vd. At 14.11). Hb 2.17]. Cristo se identificou completa­mente com o homem.

764 John Calvin, The F irst Epistle o f John, Grand Rapids, M ichigan, Baker B ook House (C a lv in ’s Com m entaries), 1981, Vol. 22 (1 Jo 2.1), p. 171.

765 “Não tem os com o medir esta intercessão por nosso critério carnal, pois não podem os pensar no Intercessor com o humilde suplicante diante do Pai, com os joelhos genuflexos e com as mãos estendidas. Cristo, contudo, com razão intercede por nós, visto que comparece continuam ente diante do Pai, com o morto e ressurreto, que assume a posição de eterno intercessor, defendendo-nos com eficácia e vívida oração para reconciliar-nos com o Pai e levá-lo a ouvir-nos com prontidão” [J. Calvino, Exposição cle R om anos , São Paulo, Para- kletos, 1997 (8 .34), p. 304],

766 èAefyicov - “misericordioso”, “com passivo”.767 £u|irca0éco - “simpatizai' com ”, “compartilhar da experiência de alguém ”.

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306 EU CREIO.

5) Propiciador (Hb 2.17).768O escritor de Hebreus emprega uma figura comum ao Antigo

Testamento para mostrar que Deus mesmo é quem providencia a reconciliação de seu povo consigo mesmo através de Jesus Cristo, e o recebe (vd. Hb. 10.19-23; 13.15).

6) Am parador (Hb 2.17, 18).769Cristo é o sacerdote adequado para todas as nossas necessida­

des (vd. 2Co 6.2).7) Precursor (Hb 6.19, 20; Hb 4.14).770A palavra era usada para referir-se às tropas ou homens que iam

adiante para descrever o avanço do inimigo. Uma palavra que tem o mesmo sentido figurado em nossa língua é “batedor”.

Jesus foi adiante de nós, abrindo-nos definitivamente o cami­nho para o céu - em comunhão com Deus - , preparando-nos lugar, sendo sua vitória a manifestação concreta de uma abundante co­lheita, resultante de seu trabalho (Is 53.11; Jo 14.1-3; 17.24).

8) Representante (Hb 9.24).Cristo comparece diante de Deus, face a face, como represen­

tante de seu povo. Ele é nosso único Mediador (lT m 2.5).9) Santificador (Hb 10.10, 14; 13.11, 12).O sacrifício de Cristo é suficiente para nos santificar, cumprin­

do assim o propósito de nossa eleição (2Ts 2.13). Sem a santifica­ção jamais veríamos a Deus (Hb 12.14).

10) Aperfeiçoador (Hb 10.14).771O sacrifício único de Cristo é suficiente para levar a cabo o

processo de aperfeiçoamento de seu povo. Sua oferta foi única, po­rém seus resultados são contínuos. Aqui vemos mais uma vez um contraste entre as ordenanças da lei e a obra de Cristo: a lei não podia propiciar aperfeiçoamento (Hb 7.17-19); Jesus, o Filho, é

768 U ,ò (0 K O |x ai - “ p r o p ic i a r ” , “ e x p ia r ” , “ r e c o n c i l i a r ” .769 por|9écü - “ajudar”, “socorrer alguém em necessidade”.770 jtpò8po|Xoç - “ ir antes” .771 'ceX eióco - “ c o m p le ta r ” , “ c u m p r i r o o b je t iv o ” .

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XIV - O Sacerdócio de Cristo 307

perfeito para sempre (Hb 7.28) e nos aperfeiçoa dentro de seu pro­pósito eterno (vd. Ef 1.11-14; Fp 1.6; IPe 1.3-5).

5.2. A Eficácia do Sacerdócio de Cristo

1) Eterno e imutável (Hb 5.6; 6.20; 7.3, 17, 21-24).A eternidade do valor do sacrifício de Cristo, é decorrente da

dignidade daquele que Se ofereceu a si mesmo por nós.2) Único (Hb 7.24, 27; 9.11, 12, 23-26, 28; 10.10, 12, 14).A unicidade do sacrifício de Cristo se deve ao fato de sua obra

ter sido suficiente para salvar a todos aqueles que pela graça se arrependem dos seus pecados, e crêem em Cristo como seu único e suficiente Salvador. Tentar acrescentar algo à sua obra, significa invalidá-la. A nossa salvação é pela graça somente, que emana das obras da Trindade Santa.

3) Poderoso (H b2.17, 18).Jesus Cristo é perfeitamente suficiente e adequado para socor­

rer o seu povo (vd. ICo 10.13; Fp 4.13). “Visto que nos reconcilia­mos com Deus, em Cristo, através de seu verdadeiro sacrifício, so­mos, todos nós, por sua graça, feitos sacerdotes com o fim de po­dermos consagrar-nos a ele como sacrifício vivo e tributar-lhe toda a glória por tudo o que temos e somos. Não resta mais nenhum sacrifício expiatório para se oferecer, e não se pode fazer tal coisa sem trazer grande desonra para a cruz de Cristo.”772

5.3. O s Frutos do Sacerdócio de Cristo

Esses frutos consistiram na plena obtenção daquilo que ele veio fazer: Reconciliar-nos com Deus.

Didaticamente, podemos apresentar alguns aspectos desta re­conciliação, que de certa forma já foram tratados em outros pontos deste estudo.

1) Aniquilou o poder do pecado (Hb 9.26, 28; Jo 1.29; 8.32-36; Rm 5.21).

772 João Calvino, Exposição de Romanos (Rm 12.1), p. 424.

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3 0 8 EU CREIO.

2) Redenção eterna (Hb 9.12).Fomos reconciliados definitivamente com Deus (Rm 5.10, 11 ;

2Co 5.18-21).3) Justificação (Rm 3.24-25).A redenção está associada à justificação. Fomos redimidos pela

justiça de Cristo que nos declarou justos diante de Deus. Como resultado disto, temos paz com Deus (Rm 5.1, 10, 11; IPe 1.18,19).

4) Purificou nossa consciência (Hb 9.14).A oferta repetida pelos pecados renovava e tornava atuante a

consciência do pecado (Hb 10.1-4). Os sacrifícios da antiga dispen- sação tinham um alcance apenas exterior, sendo ineficazes no que concerne à consciência (Hb 9.9; 10.1, 11). O sacrifício de Cristo nos purifica totalmente; somente ele realiza uma mudança radical em nós. A purificação exterior deve ser um reflexo de uma transfor­mação interior. É precisamente esta purificação que foi realizada por Cristo.6. ATITUDES PARA CO M JESUS CRISTO, O SACERDOTE

PERFEITO

Nós, como povo redimido por Cristo, considerando sua obra sacerdotal, devemos estar atentos ao que a Bíblia requer de nós, como fruto do penoso trabalho de nosso Salvador.

1) Fé (Hb 4.16; 10.21,22; 11.6).Confiança sem reservas na obra de Cristo como a única sufici­

ente para nos restaurar à presença de Deus.2) Adoração sincera (Hb 9.14; 12.28; 13.11-15).Fomos reconciliados com Deus a fim de que lhe prestemos uma

liturgia agradável, conforme seus preceitos. “O culto é a essência e o coroamento da atividade cristã” .773 A Igreja é uma comunidade litúrgica porque sua vocação inexorável é adorar a Deus, narrando seus atos heróicos e salvadores; portanto, o culto é um testemunho

773 C.F.D. Moule, As Origens do Novo Testamento, São Paulo, Paulinas, 1979, p. 45.

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XIV - O Sacerdócio de Cristo 3 0 9

solene e público das “virtudes de Deus” (IPe 2.9-10; Hb 13.15).7743) Glorificá-lo (Hb 3.1-3; Jo 17.5, 9, 10; 2Ts 1.10-12).A Igreja glorifica a Cristo, sendo-lhe obediente. Na obediência

da Igreja testemunhamos a glória de Deus (Mt 5.16).4) Confessá-lo (Hb 3.1; 4.14; ICo 12.3; Rm 10.9, 10).A Igreja confessa que ela é o que é pelos méritos de Cristo. Esta

confissão é um testemunho público de sua consciência, de sua iden­tidade (IPe 2.9-10).

C O N C LU SÃ O

Cristo executou seu ofício sacerdotal, entregando-se a si mes­mo, voluntariamente, como sacrifício vicário, para satisfazer a jus­tiça divina, reconciliando-nos com Deus, e hoje continua exercen­do seu ofício sacerdotal, fazendo contínua e eficaz intercessão por seu povo .775 A ele, pois, toda a honra e toda a glória!

774 Vd. Hermisten M.P. Costa, O Culto C ristão, São Paulo, 1998.775 Vd. C atecism o M aior de W estminster, Perg. 44.

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XV - A RESSURREIÇÃO DE CRISTO— ------------------------------------------------ ---------------------------------------------------------------------------------------

IN TRO D U ÇÃO

A ressurreição de Cristo é o coroamento de seu ministério terre­no. Ela é repleta de significado para o ministério de Cristo e, conseqüentemente, para a vida da Igreja, que é seu Corpo. Sem a

ressurreição a obra de Cristo seria nula, a Igreja não existiria, não haveria salvação, estaríamos todos perdidos para sempre! “Mas de fa to Cristo ressuscitou dentre os mortos...” (ICo 15.20); esta é a fé da Igreja;776 é nossa certeza. Estudemos agora este tema de tão grande importância.1. A RESSURREIÇÃO DE CRISTO FOI PREDITA

1.1. Predita pelos Profetas

A doutrina da ressurreição encontra no Antigo Testamento ape­nas pequenos vislumbres, sendo aclarada totalmente no N ovo Tes­tamento, especialmente após a ressurreição de Jesus Cristo.777 To­davia, ali temos indícios suficientes da morte e ressurreição do M essias. Tais referências tornam-se mais claras à luz da interpre­tação dada por Jesus e pelos apóstolos, os quais, juntamente com os profetas, constituem o modelo perene e fiel de interpretação da Palavra.

Davi escreve profeticamente: “Pois não deixarás a minha alma776 “A Cristandade descansa na certeza da ressurreição de Jesus com o uma ocorrência no

espaço-tem po da história” (J.I. Packer, Teologia Concisa, Campinas, SP, Luz para o Cami­nho, J 999, p. 119).

777 Vd. Hermisten M.P. Costa, A Literatura A pocalíp tica Judaica, passim .

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XV - A Ressurreição de Cristo 311

na morte, nem permitirás que o teu Santo veja corrupção” (SI 16.10). Pedro, interpretando778 esta passagem, diz: “Irmãos, seja-me perm i­tido dizer-vos claramente, a respeito do patriarca Davi, que ele morreu efo i sepultado e o seu túmulo permanece entre nós até hoje. Sendo, pois, profeta, e sabendo que Deus lhe havia jurado que um dos seus descendentes se assentaria no seu trono; prevendo isto, referiu-se à ressurreição de Cristo, que nem fo i deixado na morte, nem o seu corpo experimentou corrupção. A este Jesus Deus res­suscitou, do que todos nós somos testemunhas” (At 2.29-32).

Como indicativo das referências veterotestamentárias alusivas à ressurreição de Jesus Cristo, à luz das interpretações de Jesus e dos apóstolos, leia e compare: SI 16.10; Is 26.19; Os 6.2; Lc 24.27, 44-46; At 2.29-31; 13.32-37; 26.22, 23.

1.2. Predita pelo Próprio Jesus

Como já demonstramos em outros capítulos, Jesus Cristo tinha perfeita consciência de sua missão; e esta consciência envolvia tam­bém a certeza de sua ressurreição; por isso ele a anunciou como fato que se sucederia à sua morte, a qual também era evidentemente certa (ver Mt 16.21; 17.22-23; 20.19; 26.31-32; Mc 9.9; Lc 9.22).2. A RESSURREIÇÃO DE CRISTO CO M O FATO IN C O N ­

TESTÁVEL

A primeira tentativa de se negar a ressurreição de Cristo foi feita pelos próprios sacerdotes judaicos. Justamente aqueles que deveriam arrepender-se de seus erros, tentam, diante das evidênci­as dos fatos, ocultar a verdade mediante suborno (cf. Mt 28-11-15). Entretanto, eles nada podiam fazer de eficaz contra a realidade do Senhor Jesus ressurreto.

Aqui não nos ocuparemos com as tentativas dos incrédulos em778 “A fé cristã primitiva reinterpretou o Antigo Testamento à luz dos novos eventos

revelatórios de Cristo. Isto não equivale, necessariamente, a que haja uma relação matemá­tica - uma por uma - entre a profecia e seu cumprimento. S ignifica que a corrente inteira da história e a profecia do Antigo Testamento se eumprem em Cristo” (G eorge E. Ladd, Creo en la R esuneccion de Jesus, Miami, Florida, Editorial Caribe, 1977, p. 142).

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312 EU CREIO.

negar o fato da ressurreição; para nós, basta o que a Bíblia nos diz; todavia, apresentaremos alguns elementos bíblicos que manifestam com clareza a realidade da ressurreição de Cristo.

2 . 1 . 0 Túmulo Vazio

Mateus registra que um anjo do Senhor removeu a pedra (de cerca de duas toneladas)779 que fechara o sepulcro de Jesus (Mt 28.2-4); certamente isso não foi feito para que Jesus pudesse sair, visto que a matéria não servia de impecilho para o corpo glorificado do Senhor ressurreto (cf. Jo 20.19, 26); todavia, isto foi feito, segundo me parece, a fim de que, primeiramente, Maria Madalena e Maria mãe de Tiago e de José (Jo 27.56, 61; 28.1) pudessem constatar com seus próprios olhos o túmulo vazio (Lc 24.1-3), e posterior­mente também o fizessem João e Pedro (Jo 20.1-10). O túmulo con­tinuou vazio como evidência concreta da ausência do corpo de Je­sus. Todavia, o túmulo vazio pode ser explicado de três formas: 1) Os discípulos de Jesus levaram o corpo; 2) os inimigos de Jesus levaram o corpo; ou 3) ele realmente ressuscitou.

Analisemos rapidamente as possibilidades: Quanto à primeira, podemos observar que não aconteceu, pois eles ficaram desanima­dos e desesperados com a morte de Jesus, não esperando ressurrei­ção alguma (cf. Lc 24.17-21 ;36, 37); e mesmo que eles tentassem raptar o corpo de Jesus, isto seria impossível visto que havia uma escolta guardando o túmulo (cf. Mt 27.62-66). O mesmo é válido para a possibilidade de os inimigos de Jesus tentarem roubar seu corpo; e ainda, por que eles fariam isso? Para dar uma pista errada aos crédulos? Ora, se fosse assim, e o rapto tivesse ocorrido, quan­do os discípulos começassem a proclamar a ressurreição de Cristo, eles viriam a público apresentando o corpo morto de Cristo ou al­guma evidência irrefutável, silenciando definitivamente a pregação apostólica e pondo fim à Igreja de Cristo; entretanto, eles silencia­ram; tentaram pela força fazê-los calar, visto que não tinham como

Cf. Josh M cD ow ell, A í E vidências da Ressurreição de Cristo, São Paulo, Candeia, 1985, pp. 77-78.

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XV - A Ressurreição de Cristo 313

argumentar contra a evidência do túmulo vazio. Jesus realmente ressuscitou!

2.2. As Aparições de Jesus

O Senhor ressurreto apareceu durante quarenta dias (At 1.3) a várias pessoas em cerca de 13 ocasiões diferentes, dando prova evi­dente de sua ressurreição. Paulo faz um sumário das aparições de Jesus ressurreto (ICo 15.3-8).780

2.3. A Transformação dos Discípulos

Os discípulos, diante da prisão de Jesus, fogem deixando-o em mãos de seus algozes (Mt 26.56). Após sua crucificação, estão ate­morizados, às portas trancadas (Jo 20.19, 26); agora, após a res­surreição de Cristo, Pedro - que antes negou a Cristo três vezes - , juntamente com João, dá testemunho corajoso diante das autorida­des judaicas (At 4 .13,18-20; 5.29). Esta transformação só pode ser explicada pela certeza da presença confortadora do Cristo vivo en­tre eles (Mt 28.20). Os apóstolos jamais extrairiam esta coragem de uma mentira por eles inventada; esta ousadia era fruto do Espírito de Cristo que neles habitava (2Tm 1.7).

2.4. A Pregação Apostólica

A certeza e o significado da ressurreição de Cristo estavam tão nítidos na mente e nos corações dos discípulos, que todos os seus sermões tinham como clímax histórico a ressurreição. A mensa­gem apostólica apontava para a vitória de Deus sobre o pecado e a morte, através da ressurreição de Cristo. A pregação apostólica se baseava nas Palavras e nos atos salvadores de Deus na História; e a ressurreição foi um fato histórico (ver At 1.22; 2.24; 3.15; 4.10, 33. 5.30; 10.39-41; 17.2, 3, 17, 18; 26.23; ICo 15.12).

Paulo, em Atenas, “pregava (exxxyyeMÇoií.ou)781 a Jesus e a res­

780 Ver também: M t28 .9 , 16, 17; Mc 16.9;L c 24.13-15; 36-50; Jo 20.24-29; 21.1, 14; At 2.32; 3.15.

781 Vd. Hermisten M.P. Costa, Teologia da Evangelização, São Paulo, PES, 1996.

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314 EU CREIO.

surreição” (At 17.18). A ressurreição era a tônica de toda mensa­gem apostólica; sem a ressurreição de Cristo não haveria pregação, nem fé, nem esperança. No livro de Atos, não encontramos nenhum sermão em que a ressurreição não fizesse parte da proclamação (At 8.5; Rm 10.8-10; ICo 15.1, 3, 4, 12; 2Tm 2.8).

2.5. A Conversão de Muitos Sacerdotes

Humanamente falando, os sacerdotes judeus, para aceitarem a pregação de Jesus como o Cristo, precisavam estar certos da reali­dade de sua ressurreição, já que tudo parecia ser o oposto (por exem­plo, a crença predominante de um Messias militar, o boato forjado pelos principais sacerdotes de que os discípulos de Jesus roubaram seu corpo etc.). Entretanto, o Deus que age mediante a verdade agiu em suas mentes e corações, através da realidade da ressurreição histórica de Cristo (cf. At 6.7).

2.6. A Conversão de Saulo

Saulo teve sua vida transformada pelo confronto com o Cristo ressurreto (At 9.1-6). Saulo, o perseguidor, agora é Paulo, o perse­guido, disposto a dar sua vida - como de fato deu - por amor ao Cristo vivo (ver At 20.22-24; 21.13; 2Tm 4.6-8). Paulo transforma- se no pregador efetivo do Cristo ressurreto que lhe aparecera no caminho de Damasco e era uma realidade viva em sua existência (At 22.6-10; 26.8-18). Vinte anos depois de seu encontro com Se­nhor vivo, Paulo se inclui entre aqueles que viram o Senhor ressur­reto, dizendo: “E, afinal, depois de todos, fo i visto também por mim, como por um nascido fora de tempo” (ICo 15.8).

2.7. A Observância do Domingo782

É fato que no Novo Testamento não encontramos nenhuma or­dem ou mesmo ensinamento para a Igreja se reunir no domingo; se isto é assim, por que então a Igreja substituiu o sábado pelo domin­

782 Vd. Hermisten M.P. Costa, Â Guarda do Dom ingo: O solene descanso do p o vo de D eus, São Paulo, 2000.

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XV - A Ressurreição de Cristo 315

go? A resposta para esta pergunta encontra-se nas páginas do Novo Testamento e também na história da Igreja dos séculos posteriores. O Novo Testamento nos mostra que a ressurreição de Cristo deu-se “no primeiro dia da semana” (domingo), e que algumas de suas aparições se deram também no domingo (cf. Mc 16.2, 9; Jo 20.1, 19, 26).

O sábado está relacionado ao evento histórico da libertação do povo do Egito (Dt 5.15). Além, obviamente, da lembrança desse fato histórico, o sábado assume um caráter de gratidão a Deus por sua libertação e preservação; é um convite irrestrito a meditarmos na bondade e misericórdia de Deus para com seu povo. Guardar o sábado significa preservar a aliança (Ex 31.16).

No Novo Testamento, a associação do dia de descanso com a ressurreição de Cristo foi mais do que natural, visto que é em Cristo que encontramos a verdadeira e total liberdade (Jo 8.32, 36) e o padrão que assinala “antecipadamente a perfeição da obra recria- dora” .783 “Na ressurreição, Deus trouxe ao cumprimento final seu programa criativo/redentivo. A criação original produziu o mundo. Mas a criação-ressurreição trouxe o mundo à sua destinada perfei­ção .”784

A Igreja do Novo Testamento era primordialmente composta de judeus, os quais jamais mudariam a guarda do sábado - que era um sinal da aliança feita entre Deus e o povo (Ex 31.13; Ez 20.12, 20)- pelo domingo, se não tivesse um motivo bastante consistente e, mais ainda, se não estivessem convictos da aprovação divina. Deve- se mencionar que mesmo as Igrejas estando sempre com um grande número de judeus, em Atos e nas Epístolas, não encontramos ne­nhuma discussão ou mesmo menção de problemas relacionados com a substituição gradual do sábado pelo domingo.

O único motivo que nos parece plausível para essa mudança é a7113 Gerard Van Groningen, O Sábado no Antigo Testamento: Tempo para o Senhor, Tem­

po de Alegria N ele (11): In: Fides Reform ata , 4/1 (1999), p. 132.784 O. Palmer Robertson, C risto dos Pactos, Campinas, SP, Luz para o Caminho, 1997,

pp. 66-67. Vd. Gerard Van Groningen, O Sábado no Antigo Testamento: Tempo para o Senhor, Tempo de Alegria N ele (11): In: F ides Reform ata, 4/1 (1999), p. 136.

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316 EU CREIO.

certeza de que Cristo ressuscitou no primeiro dia da semana, pas­sando aos poucos os cristãos a se reunirem em casas, no primeiro dia da semana, já que ainda não havia templo cristão (At 20.7; ICo 16.2). Mais tarde, já no final do primeiro século, João, narrando a visão que teve do Senhor, diz que a recebeu no “dia do Senhor” (Ap 1.10), provavelmente se referindo ao dia que a Igreja reservara para o culto cristão.

Um outro documento que atesta a antigüidade da guarda do do­mingo por parte da Igreja Cristã é o Didaquê (c. 120 AD), documento anônimo, o qual usa a mesma linguagem de João se referindo ao domingo como o “dia do Senhor”. Assim, aludindo à reunião da Igre­ja, diz: “Reunindo-vos no dia do Senhor, parti o pão e dai graças....” .785

Do mesmo modo, em outro documento escrito por Justino (100- 167 AD), por volta do ano 150 - no qual temos a mais completa descrição do culto na Igreja Primitiva - , temos a mesma referência.

“N o dia que se chama do sol [domingo],786celebra-se uma reunião de todos os que moram nas cidades ou nos campos, e aí se lêem, enquanto o tempo o permite, as Memórias dos apóstolos [quatro Evangelhos] 787ou os escritos dos profetas....” .788

Justino, explicando o motivo por que a Igreja se reunia para cultuar a Deus no domingo, diz:

“Celebramos essa reunião geral no dia do sol, porque foi o primeiro dia em que Deus, transformando as trevas e a matéria, fez o mundo, e também o dia em que Jesus Cristo, nosso Salvador, ressuscitou dos mortos.”789

785 D idaquê, XIV. In: j.G . Salvador, ed. O D idaquê, São Paulo, Imprensa Metodista, 1957, p. 75.

786 Cf. Justino de Roma, I A pologia , São Paulo, Paulus, 1995, 67.7. pp. 83-84. Essa prática que tornou-sc comum no N ovo Testamento perpetuou-se na Igreja Cristã, e já no segundo século encontramos farto material atestando o culto dominical. [Vd. The E pistle o f Barnabas, XV. In: Alexander Roberts & James Donaldson, eds. The A nte-N icene Fathers, Peabody, M assachusetts, Hendrickson Publishers, 1995, Vol. I, p. 147; Carta aos M agnési­os, 9. In: Cartas de Santo Inácio de Antioquia, 3“ ed. Petrópolis, RJ, Vozes, 1984, p. 53.]

787 Esta expressão de Justino refere-se aos Evangelhos, conforme ele m esm o diz: “Foi isso o que os Apóstolos nas M emórias por eles escritas, que se chamam E vangelhos...” (Justino de Rom a, l A pologia , 66.3. p. 82).

788 Justino de Roma, / A pologia, 67. p. 83.71wJustino de Rom a, 1 Apologia , 67. pp. 83-84.

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XV - A Ressurreição de Cristo 317

Portanto, meus irmãos, a observância do primeiro dia da sema­na é um sinal evidente de que a Igreja sempre creu na ressurreição de Jesus Cristo.

2.8. Outras Evidências

2.8.1. A Existência da Igreja

A Igreja Cristã só pode ser explicada e compreendida à luz da ressurreição de Cristo, porque se Cristo não ressuscitou é vã a nossa fé (IC o 15.14, 17).

2.8.2. A Crença na Divindade de Cristo

Um dos elementos que atestam a divindade de Cristo é o cum­primento de suas promessas. Se Cristo não tivesse ressuscitado, os discípulos jamais aceitariam sua divindade, pois assim Cristo teria sido o motivo de suas decepções (vd. Lc 24.13-21).

2.8.3. A Existência do Novo Testamento

Se Cristo não tivesse ressuscitado, não haveria história a ser contada, visto que o Novo Testamento é a narrativa do cumprimen­to das promessas de Deus em Jesus Cristo nosso Senhor.

Estas são apenas algumas evidências que a Bíblia apresenta da ressurreição de Cristo. A ressurreição para nós é um fato que en­contra seu apoio no registro infalível da Palavra de Deus, e isto nos basta; por isso, nossa confissão é como a de Paulo: “Mas de fa to Cristo ressuscitou dentre os mortos...” (ICo 15.20).3. O PODER DO TRINO DEUS NA RESSURREIÇÃO DE

CRISTO

O NT declara que a ressurreição de Cristo se deu pelo poder do Trino Deus; estas afirmações ora se referem simplesmente a Deus - denotando assim o trabalho da Trindade - , ora se referem às Pesso­as distintamente. Em alguns textos das Escrituras encontramos esta obra de modo discriminado:

1) Poder do Pai (Rm 6.4; G1 1.1; Ef 1.17-20).

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318 EU CREIO.

2) Poder do Espírito Santo (IPe 3.18; Rm 8.11). O mesmo Es­pírito que gerou em Maria a Pessoa Divino-Humana de Cristo, acom- panhando-o e fortalecendo-o em todo seu ministério, agiu decisiva­mente em sua ressurreição,790 a qual assinala a vitória de Deus so­bre o pecado, a morte e Satanás (Mt 1.18; Lc 1.35; M 14.1; Lc 4.1; Is 11.1-2; Lc 4.18-19; Lc 3.31-32; 4.14; Mt 12.28; Jo 3.34; Hb9.14).791

3) Poder do Filho (Jo 2.18-22; 10.17-18). O verbo divino dis­punha de todo o poder para ressuscitar o Cristo encarnado, o que realmente fez.

A Trindade é responsável pela ressurreição de Jesus Cristo; o Pai, o Filho e o Espírito Santo manifestam seu poder na ressurrei­ção de Cristo; por isso, o Novo Testamento com mais freqüência atribui a ressurreição ao poder de Deus, sem mencionar a Pessoa (ver At 2.24; 3.15; 4.10; 5.30; 10.40; 13.30, 37; Rm 10.9; 1Co 6.14; Cl 2.12 etc.).4. A SINGULARIDADE DA RESSURREIÇÃO DE CRISTO

A Bíblia apresenta alguns exemplos de pessoas que foram vivi­ficadas, tanto no Antigo como no Novo Testamento; ei-las: O filho da viúva de Serepta (lR s 17.17-24); o homem que foi jogado na sepultura de Eliseu (2Rs 13.20-21); o filho da sunamita (2Rs 4.17- 37); a filha de Jairo (Mt 9.18, 23-26); o filho da viúva de Naim (Lc7.11-17). Lázaro (Jo 11.1-46); Dorcas (At 9.36-43) e Êutico (At20.7-12). Por certo, todos estes voltaram a envelhecer e a morrer; contudo, a ressurreição de Cristo foi definitiva, constituindo-se no modelo conclusivo de nossa futura ressurreição. Cristo não voltou a morrer, nem nós voltaremos após a ressurreição (Rm 6.9).

Na ressurreição de Cristo observamos alguns aspectos que, to­mados em conjunto, tornam-se misteriosos para nós.

790 Vd. Francis Turretin, Institutes ofE len ctic Theology, Phillipsburg, N ew Jersey, P & R Publishing, 1994, Vol. 111, V l.x v ii, p. 316.

751 Vd. Hermisten M. P. Costa, A P essoa e O bra do E spírito Santo, São Paulo, 2000.

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XV - A Ressurreição de Cristo 319

4.1. Seu Corpo Era Real

O corpo de Jesus Cristo, após a ressurreição, não era anormal no que se refere ao aspecto de visibilidade de um corpo humano - daí não haver nenhum espanto ou comentário a respeito - , todavia ele não era fácil ou prontamente reconhecido por todos (cf. Lc 24.13- 16, 28-33, 36-43; Jo 20.11-18; 21.1-7), embora isso não fosse im­possível de imediato (cf Mt 28.9, 10). Seu corpo apresentava as marcas da crucificação, podendo ser tocado (Mt 28.9; Lc 24.39-40; Jo 20.20, 27); era visível (Mc 16.14; Jo 20.18; ICo 9.1; 15.4-8); audível (Mt 28.18-20); e mesmo sem precisar podia alimentar-se (Lc 24.41-43; Jo 21.5, 9, 12-15; At 10.41). Estes textos indicam que o corpo de Jesus Cristo era real.

4.2. Seu Corpo Era Transcendente

Apesar da realidade e tangibilidade do corpo de Cristo, a Bíblia descreve o fato de ele poder aparecer e desaparecer aos olhos de seus discípulos, conforme sua determinação (Lc 24.31,36; Jo 20.19, 26).792E com este mesmo corpo foi assunto aos céus, tendo vencido definitivamente a morte (Rm 6.9; 2Tm 1.10; Ap 1.18).5. O SIGNIFICADO DA RESSURREIÇÃO DE CRISTO

5.1. Significado Teológico

A ressurreição de Cristo revela alguns aspectos do caráter do Trino Deus:

1) O poder de Deus: A ressurreição de Cristo constitui o clímax da manifestação do poder de Deus nesta era (2Co 13.4; Ef 1.19, 20; Cl 2.12; Fp 3.10; At 2.24; 3.15; 4.10; 5.30; Rm 10.9).

2) O cumprimento das Escrituras: Deus é o Autor das Escritu­ras. Como já vimos acima, a ressurreição de Cristo foi anunciada pelo Espírito através dos profetas. Caso Cristo não ressuscitasse, a Escritura teria falhado em seu testemunho a respeito do Filho, o que

7,2 Vd. boa discussão sobre este ponto em Wayne A. Grudem, Teologia Sistem ática, pp. 510-513.

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320 EU CREIO.

é impossível (Jo 5.39; 10.35). A ressurreição se manifesta como uma demonstração palpável de que Deus sempre cumpre eficaz e completamente suas promessas (vd. SI 16.10; Is 26.19; Os 6.2; Lc 24.44-46; At 13.32-37).

3) O cumprimento das palavras de Cristo: Conforme já estuda­mos, Jesus Cristo anunciou sua morte e ressurreição como fatos que se sucederiam. O acontecimento da ressurreição vem confir­mar a veracidade de suas palavras (cf. Mt 28.6-7; Mc 14.27-28; 16.6, 7, 14; Lc 24.6-8).

4) A afirmação de sua filiação divina: Jesus, em seu ministério, reivindicava para si uma filiação única e especial de Deus, demons­trando isso de forma distintiva em seu relacionamento afetivo com o Pai793 (cf. Mt 11.27; Mc 14.36; Jo 20.17). Sua ressurreição reafir­ma a realidade de sua filiação eterna (cf. Rm 1.4).

5) O cumprimento eficaz da sua obra terrena: A ressurreição significou o cumprimento de seu ministério terreno; o que Cristo afirmara ter vindo fazer, fez de forma completa e eficaz (Lc 24.44- 46; Hb 9.23-28; 10.1-14; IPe 3.18). A ressurreição sela sua obra de forma definitiva!

6) A aprovação de Deus: A não ressurreição de Cristo, entre outras coisas, significaria a não aceitação do sacrifício do Filho por parte do Pai. A ressurreição consiste na declaração por parte do Pai- como representante da Trindade - de que as demandas do Pacto foram cumpridas em seu aspecto sacrificial pelo Filho, como repre­sentante de seu povo eleito; portanto, o Filho não deveria permane­cer morto. A ressurreição é o “amém” do Pai à obra sacrificial e expiatória do Filho (2Co 1.20). “Se afinal a obra expiatória de Cris­to devia ser eficaz, tinha que terminar, não na morte, mas na vida. Ademais, foi o selo do Pai aplicado à obra consumada de Cristo; foi a declaração de que ele a aceitou” 794 (At 2.22-24).

7) O triunfo de Deus: A ressurreição de Cristo assinala a vitória793 Vd. Hermisten M.P. Costa, Os N om es do Verbo Encarnado, São Paulo, 2000.7,4 Louis Berkhof, Teologia Sistem ática, Campinas, SP, Luz para o Caminho, 1990, p.

350; vd. também: W ayne A. Grudem, Teologia Sistem ática, pp. 514-515.

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XV - A Ressurreição de Cristo 321

de Deus sobre o pecado, a morte e Satanás. Cristo venceu a todos por nós a fim de nos dar a vida eterna, a começar aqui, em liberdade (Jo 10.10). Por isso, o pecado já não mais nos domina (Rm 6.14; Jo 8.32-34); Satanás e seus demônios estão sob o domínio de Cristo (Ef 1.20-22; Hb 2.14); e a morte foi transformada, significando agora não mais o fim, mas, sim, o ingresso na eternidade (2Tm 1.10).

5.2. Significado Soteriológico

A ressurreição de Cristo tem - como já se depreende - rico sig­nificado redentor. Isso é o que veremos agora.

1) Nossa regeneração: Pela regeneração, Deus infunde em nós uma nova disposição que nos conduz, sob a influência do Espírito, em direção à vontade de Deus, em uma santa e prazerosa obediên­cia .795 A ressurreição de Cristo é o fundamento de nossa regenera­ção (IPe 1.3). “Quando Jesus ressurgiu dos mortos, tinha uma nova qualidade de vida, uma ‘vida ressurreta’ em um corpo e em um espírito humanos perfeitamente adequados à comunhão e à obedi­ência eterna a Deus. Em sua ressurreição, Jesus obteve para nós uma nova vida semelhante à sua. (...) Assim, é por meio de sua ressurreição que Cristo nos conquistou o novo tipo de vida que re­cebemos quando ‘nascemos de novo ’ ”796 (Ef 2.5-6; Cl 3.1).

2) Nossa justificação'. A morte de Cristo foi para expiar nossos pecados; e a ressurreição assegura de forma eterna e efetiva nossa justificação (Rm 4.25; 8.33-34; ICo 15.17). A morte e a ressurrei­ção se completam num ato salvador (Rm 5.9-10). A morte de Cristo só teria valor remidor se ele ressuscitasse - como de fato ressusci­tou - , visto que sua morte sem ressurreição indicaria apenas sua condenação. Como poderia um condenado justificar alguém? A res­surreição de Cristo é sinal de nossa justificação (Rm 4.25).

795 « a regeneração consiste na implantação do princípio da nova vida espiritual no ho­mem, numa radical mudança da disposição dominante da alma que, sob a influência do Espírito Santo, dá nascim ento a uma vida que se m ove em direção a D eus” (L. Berkhof, Teologia S istem ática , p. 470).

7% W ayne A. Grudem, Teologia Sistem ática, pp. 513-514.

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322 EU CREIO.

A Confissão de Westminster (1647), discorrendo sobre a justifi­cação, fala sobre o que chamo de fases da mesma:

“Deus, desde toda a eternidade, decretou justificar todos os eleitos; e Cristo, no cumprimento do tempo, morreu pelos pecados deles e ressusci­tou para a justificação deles; contudo, eles não são justificados até que o Espírito Santo, no tempo próprio e de fato, comunica-lhes Cristo.”797

3) O perdão de nossos pecados'. Este ponto é decorrente do an­terior, visto que a justificação consiste em Deus perdoar nossos pe­cados, considerando-nos e nos aceitando como justos pelos méritos de Cristo.798 Sem a ressurreição, não haveria perdão; por isso, Paulo diz: “Se Cristo não ressuscitou (...) ainda permaneceis nos vossos pecados” (ICo 15.17). A ressurreição assinala que há perdão para todos os que pela graça crêem em Cristo.

4) O sentido de nossa fé: A ressurreição de Cristo dá sentido à nossa fé. Se Cristo não tivesse ressuscitado, nossa fé, por mais inten­sa que fosse, estaria fundamentada numa mentira; por isso, tudo o que vimos nesta lição seria nulo... Todavia, o Senhor ressuscitou, sendo este fato o cerne de nossa fé (1 Co 15.14,17,20; Rm 10.9, 10).

5.3. Significado Kerigmático (Proclamante)

A ressurreição de Cristo dá sentido à genuína pregação da Igre­ja. Como já observamos, a pregação apostólica enfatizou a realida­de histórica da ressurreição. Paulo nos diz que era corrente tal teste­munho (ICo 15.12), sendo ele mesmo um dos pregadores desta verdade (IC o 15.14, 15; At 17.18) que, por sua vez, além de ser testemunha ocular, havia recebido esta informação de outros que, ao que parece, constituía um credo cristão primitivo (ICo 15.3-4). Pois bem, se Cristo não ressuscitou, toda esta pregação está funda­mentada num erro, numa mentira... Entretanto, Cristo ressuscitou; portanto, toda a proclamação tem sentido; sem a ressurreição, não haveria boa-nova, não haveria evangelho nem atos salvadores de Deus para serem anunciados.

7,7 Confissão de Westminster, 11.4.758 Cf. Confissão de Westminster, 11.1.

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A ressurreição de Cristo dá sentido à pregação fiel da Igreja (ICo 15.14). A pregação da Igreja não se baseia em fábulas e mitos por ela inventados (vd. 2Tm 4.3, 4), mas, sim, naquilo que Deus disse e realizou, conforme registrado nas Escrituras.

5.4. Significado Vivencial

A ressurreição de Cristo é associada por Paulo à nossa respon­sabilidade de viver diariamente na presença do Cristo vivo, frutifi­cando para Deus. Nosso velho homem morreu com Cristo, e atra­vés de sua ressurreição surgiu um novo homem que se consagra inteiramente a seu Senhor. Assim, a santificação encontra sua real possibilidade na ressurreição de Cristo, sendo este fato um estímu­lo constante para vivermos dignamente para Deus (ver Rm 6.4-14;7.4).

O fato de morrermos e ressuscitarmos com Cristo traz, portan­to, como implicação fundamental, a responsabilidade de vivermos a ética do reino nesta vida. Nossa ressurreição com Cristo implica em valores novos, celestiais, os quais devem ser sempre considera­dos em nossos pensamentos, decisões e atitudes (Cl 3.1-4; Rm 6.11- 14). Após argumentar acerca da veracidade da morte e ressurreição de Cristo, Paulo exorta: “Portanto, meus amados irmãos, sede f ir ­mes, inabaláveis e sempre abundantes na obra do Senhor, sabendo que, no Senhor, o vosso trabalho não é vão” (ICo 15.58).

5.5. Significado Escatológico

A ressurreição de Cristo é o fundamento da esperança futura de nossa ressurreição (ICo 15.19). Biblicamente, nós não podemos separar a ressurreição de Cristo da nossa; ou aceitamos as duas ou as negamos; não podemos dissociá-las. Parece que era este o pro­blema de alguns membros da Igreja de Corinto. Pelo que Paulo es­creve, deixa entender que alguns irmãos aceitavam a ressurreição de Cristo; porém, negavam a ressurreição dos crentes. Paulo argu­menta que negar a ressurreição futura dos crentes equivale a negar a historicidade da ressurreição de Cristo (ICo 15.12-19). O fato é que a ressurreição de Cristo dá sentido à nossa esperança; a história

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324 EU CREIO.

da ressurreição de Cristo é o fundamento e prenúncio de nossa res­surreição futura (vd. Rm 6.5; 8.11; ICo 6.14; 15.20; 2Co 4.14). Cristo é as primícias daqueles que virão posteriormente através dele; em Cristo temos o penhor do Espírito, a garantia de nossa ressurrei­ção. Esta é nossa esperança; e para ela fomos regenerados pela res­surreição de Jesus Cristo (cf. IPe 1.3).

O corpo do Cristo ressurreto é o modelo do corpo glorioso que teremos na eternidade (cf. Fp 3.21; lJo 3.2; ICo 15.42-44, 50-56).

IM PLICAÇÕES DOUTRINÁRIAS E PRÁTICAS

1) A certeza da ressurreição de Cristo está alicerçada em seu coração? (leia Rm 10.9-10). “Declaramos positivamente que nin­guém tem feito nenhum progresso na escola de Cristo, a menos que espere rejubilante o dia de sua morte e ressurreição final.” 799

2) A ressurreição de Cristo é o selo que garante nossa salvação e ressurreição para a vida eterna (At 26.23; ICo 15.20, 23).

3) O Cristianismo é uma religião de ressurreição; a ressurreição é o ponto de convergência de nossa fé; negar a veracidade histórica da ressurreição de Cristo significa tirar toda a razão de ser histórica e transcendente do Cristianismo. Sem a ressurreição de Cristo é vã nossa fé, vã nossa pregação, vã nossa esperança, vã nossa vida... A ressurreição de Cristo dá sentido à nossa vida e morte, fé e esperan­ça (ICo 15.12-16, 32). A conclusão da argumentação de Paulo é: “Se Jesus não ressuscitou, os crentes não têm esperança da ressur­reição e podem apelar para as filosofias hedonistas da vida.” 800

4) A ressurreição de Cristo indica de forma definitiva sua filia­ção divina (Rm 1.4).

5) “A fé dos cristãos não é louvável porque eles crêem no Cristo que morreu, mas no Cristo que ressuscitou. Pois também o pagão acredita que ele morreu e te acusa como de um crime teres acredita­

m João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, São Paulo, N ovo Século, 2000, p. 66.800 G.R. Habermas, Ressurreição de Cristo: In: Walter A. E lw ell, ed. Enciclopédia Histâ-

rico-T eológica da Igreja Cristã, São Paulo, Vida Nova, 1990, Vol. Ill, p. 290.

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do num morto. Que tens, portanto, de louvável? Teres acreditado que Cristo ressuscitou e esperar que hás de ressuscitar por Cristo. Nisto consiste uma fé louvável. ‘Se confessares com tua boca que Jesus é Senhor e creres em teu coração que Deus o ressuscitou den­tre os mortos, serás salvo’ (Rm 10.9). (...) Esta é a fé dos cristãos.” 801

6) A certeza da presença do Cristo vivo em nosso meio deve ser um estímulo a uma vida consagrada a Deus (Rm 6 .8-7.6).

7) “Sem a ressurreição não podemos consolar-nos de nenhuma maneira; todos os argumentos possíveis serão insuficientes para ale­grar-nos.”802

801 A gostinho, C om entário aos Salm os, São Paulo, Paulus (Patrística, 9 /3), 1998 (SI 101), Vol. III, pp. 32-33.

802 Juan Calvino, Se Deus fuera nuestro Adversário: ln: Sermones Sobre Job, Jenison, M ichigan, T.E.L.L., 1988 (Sermon n° 6), p. 79.

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XVI - A ASCENSÃO DE JESUS CRISTO----------------------------------------------- -----------------------------------------------------------------

IN TRO D U ÇÃO

A ascensão de Cristo é um fato que tem alta relevância para a fé cristã; a ascensão é uma decorrência natural de sua ressurrei­ção, constituindo o selo do cumprimento de sua obra expiatória.

O Catecismo M aior de Westminster, respondendo à pergunta de n° 53, “Como Cristo foi exaltado em sua ascensão?”, diz:

“Cristo foi exaltado em sua ascensão em ter, depois de sua ressurreição, aparecido algumas vezes aos apóstolos e conversado com eles, falando - lhes das coisas pertencentes ao reino de Deus, impondo-lhes o dever de pregar o Evangelho a todos os povos, e em subir aos mais altos céus, no fim de quarenta dias, levando a nossa natureza, e, como nosso Cabeça, triun­fando sobre os inimigos, para ali, à destra de Deus, receber dons para os homens, elevar nossos afetos para lá e preparar-nos um lugar, onde ele está e estará até a sua segunda vinda, no fim do mundo.”

1. A NARRATIVA BÍBLICA

Após a ressurreição, Jesus Cristo apareceu aos seus discípulos em ocasiões diferentes, no período de quarenta dias (At 1.3; ICo 15.3-7). A ascensão deu-se justamente após esses quarenta dias.

O episódio da ascensão é descrito por Marcos (Mc 16.19-20) e Lucas (Lc 24.50-53; At 1.9-12). Paulo e o escritor de Hebreus tam­bém mencionam o fato (Ef 1.20; 4.8-10; lTm 3.16; Hb 1.3; 4.14; 9.24). Os detalhes diferem; mas não há contradições nas narrativas.

A essência das descrições feitas por Marcos e Lucas é que Jesus foi elevado às alturas na presença de seus discípulos. Creio ser inú­til e leviano discutirmos a “velocidade” em que Jesus foi assunto

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XVI - A Ascensão de Jesus Cristo 327

aos céus ou o tempo gasto por ele para chegar ao seu destino. Char­les Erdman (1866-1960) afirmou corretamente: “Não devemos, porém, pensar que ele transitou por espaços infinitos e agora está numa distância enorme, em alguma região remota. É que no uni­verso não existem ‘alturas’ nem ‘baixuras’. Só por simples conven­ção de linguagem, aliás correta, é que dizemos ter ele ‘ascendido’. E o modo próprio de dizer que desapareceu das vistas humanas, afastou-se das condições materiais para penetrar nas celestiais e espirituais.” 803

Devemos ressaltar que de fato Jesus partiu de um lugar para o outro:804Ele veio da parte de Deus e retornou para Deus (Jo 6.62), e que na ascensão a natureza humana de Cristo passou para “a pleni­tude da glória celeste e foi perfeitamente adaptada à vida do céu .” 805

2. A ASCENSÃO CO M O PRESSUPOSTO TEO LÓ G ICO

Ainda que somente Marcos e Lucas descrevam a ascensão de Cristo, a veracidade deste acontecimento é um pressuposto funda­mental em outros escritos do Novo Testamento, quando se referem, por exemplo, ao regresso do Filho e ao fato de estar ele assentado à direita de Deus (At 2.32-36; 7.55, 56; Rm 8.34; E f 1.20-23; Cl 3.1; lTs 3.13; 4.14-17; Hb 1.3, 4; 8.1; 10.12; 2Pe 3.10-12; Ap 3.21). Pedro, Paulo e João estavam convictos de que Jesus Cristo foi as­sunto ao céu, estando à direita de Deus, de onde retornaria para nos levar com ele e julgar todos aqueles que não crêem em seu nome.3. O SIGNIFICADO E PROPÓSITO DA ASCENSÃO

Quando lemos a narrativa feita no Evangelho de Lucas, da as­censão de Cristo, um fato que se destaca, e que a princípio pode parecer estranho, é o júbilo dos discípulos (Lc 24.52). A alegria descrita por Lucas por parte dos discípulos obviamente não era de-

803 Charles B. Erdman, Atos dos A póstolos, São Paulo, Casa Editora Presbiteriana, 1960, p. 19. D o m esm o modo, ver: Millard J. Erickson, Introdução à Teologia S istem ática, São Paulo, Vida Nova, 1997, p. 315.

804 Vd. Wayne A. Grudem, Teologia Sistem ática, pp. 516-517.805 L. Berkhof, Teologia Sistem ática, Campinas, SP, Luz para o Caminho, 1990, p. 351.

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vido simplesmente à partida de Cristo, mas, sim, pela compreen­são, ainda que não plena, do significado e propósito da ascensão de seu Senhor e pelo amor que sentiam por ele (Jo 14.28). Estudemos então o significado e propósito da ascensão de Cristo.

3.1. Responsabilidade da Igreja

A ascensão denota nossa grande responsabilidade de vivermos como o Corpo de Cristo no mundo. A Igreja é o sinal da presença de Cristo no mundo, através de seu Espírito que em nós habita (ICo 6.19; G1 4.6; Fp 1.19). Por isso a Igreja, no calor do Espírito, pro­clama o evangelho, tendo a responsabilidade de transmiti-lo a ou­tros como fiel despenseira da verdade (Mc 16.19, 20; 1 Co 4.1, 2). Uma parte fundamental da proclamação da Igreja consiste em viver ela diariamente como Corpo de Cristo, guiado e alimentado pela Cabeça que é Cristo (Ef 1.22, 23; 5.23).

A Igreja é o testemunho da presença e da atuação de Deus entre os homens. A Igreja é o reflexo da presença de Deus.

A Igreja diz ao mundo, através de sua realidade histórica e tes­temunho, que ainda há esperança de salvação. A Igreja, como luz do mundo e sal da terra, se constitui numa bênção inestimável para toda a humanidade.806

“A Igreja, portanto, é a presença de Jesus Cristo por meio de seu povo, em prol do mundo. Embora provisória, essa presença é real, humana e histórica. Cristo age por meio da Igreja realizando sua obra e confirmando sua vitória. Nesse sentido, não há salvação fora da Igreja, desde que esta se disponha a servir e glorificar Jesus Cristo.”807

Dietrich Bonhoeffer (1906-1945), falando da “pessoalidade” da Igreja, disse:

“Após a ascensão, o espaço que Jesus Cristo ocupava no mundo passou a ser ocupado por seu corpo, a Igreja. A Igreja é o próprio Cristo presente em pessoa.”808

806 Vd. R.B. Kuiper, El Cuerpo G lorioso de C risto , Grand Rapids, M ichigan, Subcom isi- on Literatura Cristiana de la Iglesia Christiana Reformada, 1985, pp. 242-247.

80,Jacques de Senarclens, H erdeiros da Reform a , São Paulo, ASTE, 1970, p. 357.808 D. Bonhoeffer, D iscipulado, 2a cd. São Leopoldo, RS, Sínodal, 1984, p. 147.

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A Igreja como Corpo de Cristo vive para a glória de Deus - que é o maior de todos os privilégios que teremos, quer aqui, quer no céu (Jo 17.24) - e como meio para que os homens glorifiquem a Deus (Mt 5.14-16; Fp 2.15). “Cumpre-nos viver de tal modo que, quando homens e mulheres olharem para nós, constituamos para eles um problema. E então perguntarão entre si: ‘Que é isso? Por que esses crentes são tão diferentes de nós, diferentes em sua con­duta e comportamento, diferentes em suas reações? Existe nesses crentes alguma coisa que não podemos compreender, que não so­mos capazes de explicar’. E assim nossos semelhantes serão impe­lidos à única explicação verdadeira, a saber, que somos o povo de Deus, os filhos de Deus, os ‘... herdeiros de Deus e co-herdeiros com Cristo’ (Rm 8.17). Nós nos teremos feito refletores de Cristo, cópias de Cristo. Da mesma forma que ele é a ‘luz do mundo’, tam­bém nos teremos tornado ‘a luz do mundo’ .” 809

A ascensão de Cristo é um estímulo a perseverarmos firmes na fé, sabendo que o Senhor que foi entronizado reina e nos socorre em todas as circunstâncias (Hb 4.14-16).

3.2. A Vitória do Filho

Os textos bíblicos referentes a Jesus Cristo como estando à di­reita de Deus indicam sua vitória, honra, poder e glória; por isso, ele mesmo disse: “Ao vencedor, dar-lhe-ei sentar-se comigo no meu trono, assim como também eu venci, e me sentei com meu Pai no seu trono" (Ap 3.21). O regresso de Jesus ao Pai evidencia a reali­zação completa de toda a obra a qual viera realizar.810

A ascensão do Filho ressalta o cumprimento de sua missão, re­velando seu estado de Glória (Mc 16.19; At 2.32-36; 7.55; Cl 3.1; lTm 3.16; Hb 1.1 -4) e Poder (Ef 1.20, 21; IPe 3.22).

Na realidade, Jesus Cristo retornou ao seu estado anterior à en-

809D. Martyn Lloyd-Jones, Estudos no Serm ão do M onte, São Paulo, Fiel, 1984, pp. 167- 168.

810 Vd. Herman Bavinck, O ur R easonable Faith, 4 “ ed. Grand Rapids, M ichigan, Baker B ook House, 1984, p. 396.

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330 EU CREIO.

carnação quando ele, espontaneamente, renunciara à glória e à dig­nidade divinas que faziam parte de seu Ser (2Co 8.9; Fp 2.5-11; Jo 1.1-3; 17.1-5; Jo 3.13; 6.62; 7.33; 16.5; Ef 4.10). Sua humilhação e sua exaltação não afetaram a essência de sua natureza divina. “Quan­do tomou sobre si a forma de um servo em nossa natureza, ele se tornou aquilo que nunca havia sido antes, mas não deixou de ser aquilo que sempre tinha sido em sua natureza divina. Ele, que é Deus, não pode deixar de ser Deus. A glória de sua natureza divina estava velada, de forma que aqueles que o viram não acreditaram que ele fosse Deus. Suas mentes não podiam entender algo que eles nunca haviam conhecido antes, que uma e a mesma pessoa pudesse ser Deus e homem ao mesmo tempo. Todavia, aqueles que crêem sabem que ele, que é Deus, humilhou-se ao assumir nossa natureza a fim de salvar a Igreja para a eterna glória de Deus.” 811

Vemos aqui, de passagem, a necessidade da ascensão: Aquele que veio num determinado momento histórico, no “estado de humi­lhação”, fazendo-se pobre (2Co 8.9), agora, após cumprir cabal­mente sua obra sacrificial, volta, no momento preciso, publicamen­te, no “estado de exaltação”, para Deus. A ascensão é uma das mai­ores evidências históricas da volta de Cristo ao seu estado de glória (Jo 17.5, 24).

3.3. O Cumprimento das Escrituras e das Palavras de Cristo

O Antigo Testamento profetizara a vitória de Cristo, assentan­do-se à direita de Deus (SI 110.1). Hebreus indica o cumprimento da profecia em Cristo (Hb 1.3). Jesus Cristo fez, em ocasiões dife­rentes, referência à sua volta ao Pai; indicando com isso a certeza que ele tinha do cumprimento de sua missão bem como de sua tra­jetória; desta forma, sua ascensão constitui uma demonstração de sua onisciência e fidelidade (Jo 6.62; 7.33; 14.2, 12, 28; 16.5, 10, 17,28; 17.11; 20.17).

811 John O wen, A G lória de Cristo, São Paulo, PES, 1989, p. 30. Vd. W ayne A. Grudem, Teologia S istem ática, p. 465.

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XVI - A Ascensão de Jesus Cristo 331

3.4. A Continuidade de Seu Corpo Físico

A ascensão demonstra que o Senhor ressurreto, que comeu com os discípulos e podia ser visto e tocado por eles (Mt 28.9; Mc 16.14; Lc 24.39-40; Jo 20.18, 20, 27; ICo 15.4-8), foi assunto ao céu com esse mesmo corpo, de onde retornará para julgar os vivos e os mor­tos (Jo 16.28; 17.11; Lc 24.50-51; At 1.9-11).

Grudem comenta:“Jesus continua existindo nesse corpo humano no céu, conforme a a s­

censão tem o propósito de ensinar’’.812

3.5. O Sumo Sacerdote Eterno

Jesus Cristo, no Céu, cuida dos interesses de seu povo ,813 apre­sentando-se como Rei-Sacerdote que intercede pelos seus, tendo como respaldo seu sacrifício único, perfeito e eficaz, cujos benefí­cios são oferecidos e aplicados a seu povo (Hb 8.1; 9.23-28; 10.10, 12, 14; Rm 8.34; Hb 7.25; lJo 2.1). Nossa comunhão com Deus é em Cristo, através de Cristo e com Jesus Cristo.814

3.6. A Certeza de que Ele nos Conduzirá ao Céu

Jesus Cristo prometeu preparar-nos lugar na casa de seu Pai, onde seríamos recebidos (Jo 14.2, 3). Sua ascensão indica que ele garante para seu povo o lugar eterno no céu, onde pessoalmente nos receberá (Jo 14.3; lTs 4.17). Ele foi nosso precursor (Hb 6.20). Jesus adentrou o céu não apenas por si mesmo, mas por seu povo, proclamando o cumprimento de sua obra redentora, tendo como colheita todos os eleitos.815 “O fato de que Jesus já ascendeu ao céu e atingiu o alvo que lhe havia sido estabelecido nos dá a grande segurança de que um dia também iremos para lá.” 816

812 W ayne A. Grudem, Teologia Sistem ática, p. 438.813 Vd. W ayne A. Grudem, Teologia Sistem ática , p. 518.814 Boanerges Ribeiro, O Senhor que Se Fez. Servo, São Paulo, O Semeador, 1989, p. 75.815 Vd. João Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo, Parakletos, 1997 (Hb 6.20), pp.

173-174; F.F. Bruce, La Epistola a los H ebreos, Grand Rapids, M ichigan, Nueva Creacion,1987, pp. 133-134.

8,6 W ayne A. Grudem, Teologia S istem ática, p. 519.

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332 EU CREIO.

3.7. A Vinda do Espírito Santo

Jesus Cristo estabeleceu uma relação causal entre sua partida e o envio do Espírito Santo (Jo 16.7). A vinda do Espírito Santo para batizar definitivamente a Igreja (At 2.1-4; ICo 12.13) pressupõe a ascensão triunfante de Cristo e consiste no cumprimento das pala­vras de Cristo. “A doação do Espírito assim anuncia a exaltação divina de Cristo à destra do Pai. É a expressão pública de sua coro­ação.” 817 Ele de fato, juntamente com o Pai, enviou o Espírito Santo (Jo 14.16, 26; 15.26; 16.7);818 ele não nos deixou órfãos (Jo 14.16-18), sendo o Espírito o penhor de nossa herança até o resgate final (Ef 1.13, 14; 2Co 1.22; 5.5).

O Espírito assinala a vitória de Cristo, visto que ele aplica em nossos corações os méritos gloriosos de Cristo. E por esta razão que o Espírito opera em nós de forma jamais vista antes da ascensão de Cristo (Jo 7.39; At 2.1-4; 2.33, 34). “O envio do Espírito era essen­cial, pois enquanto Jesus só podia atuar nos discípulos por meio de ensinos externos e exemplos, o Espírito Santo poderia trabalhar dentro deles (Jo 14.17).”819

Cristo cumpriu perfeitamente as demandas da Lei e adquiriu todas as bênçãos que envolvem a salvação. A obra do Espírito con­siste em aplicar os merecimentos de Cristo aos pecadores, capaci­tando-os a receberem a graça da salvação. Desta forma podemos dizer que o ministério soteriológico do Espírito se baseia nos feitos de Cristo, e que o ministério sacrificial de Cristo reclama a ação do Espírito (Jo 7.39; Jo 14.26; 16.13-14). A ascensão é que propicia esta transição.

3.8. O Regresso de Cristo

A ascensão ratificou o que Cristo dissera a respeito de ir para o Pai; ele também falou de seu retorno glorioso para junto dos seus.

817 Sinclair B. Ferguson, O E spírito Santo, São Paulo, Editora os Puritanos, 2000, p. 90.818 “A primeira obra que Cristo realizou depois de sua exaltação à mão direita do Pai foi

o envio do Espírito Santo” (Herman Bavinck, O ur Reasonable Faith, p. 386).819 Millard J. Erickson, Introdução à Teologia Sistem ática, p. 315.

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Ele foi assunto ao céu entre nuvens, e da mesma forma voltará so­bre as nuvens com poder e glória (Mt 24.30; Mc 14.62; Lc 21.27, 28; Ap 1.7).

Desde a ascensão de Cristo, a Igreja aguarda e apressa sua vinda (2Pe 3.12), e em momento algum deve esquecer-se de sua presença real e confortadora através de seu Espírito que nos deu (Rm 8.9; G1 4.6; Fp 1.19). O Espírito em nós nos revela as venturas futuras que agora apenas vislumbramos pela fé, e que já desfrutamos apenas embrionariamente. Quando Cristo regressar, teremos a plenitude, inclusive a plenitude do Espírito (Rm 8.23; ICo 15.44).

IM PLICAÇÕES DOUTRINÁRIAS E PRÁTICAS

1) Jesus Cristo sempre cumpre sua Palavra. Portanto, devemos confiar inteiramente em suas promessas.

2) “Ao termos em mente a ascensão, não devemos confinar nos­sa visão ao corpo de Cristo, mas nossa atenção é direcionada para o resultado e fruto dela, ao sujeitar ele céu e terra ao seu governo.” 820

3) À Igreja compete viver como despenseira dos mistérios de Deus; sendo ela mesma o testemunho da presença de Cristo no mundo. A Igreja somos nós; portanto, a responsabilidade da Igreja é a nossa.

4) Já nesta vida somos mais do que vencedores através de Cris­to (Rm 8.34-37).

5) A intercessão de Cristo em nosso favor é eterna e eficaz; todavia, os que são de Cristo não se servem deste fato para dar ocasião ao pecado (lJo 2.1).

A Igreja deve estar preparada para encontrar-se com seu Se­nhor.

820 João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo, Parakletos, 1999, Vol. II (SI 68.18), pp.660-661.

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XVII - A SEGUNDA VINDA DE CRISTO-----------------------------------------------------------— -------------------------------------------------------------------

IN TRO D U ÇÃO

As doutrinas bíblicas não dependem necessariamente de uma ter­minologia bíblica precisa; antes, as doutrinas dependem essen­cialmente de seu conteúdo ser ou não fundamentado nos ensina­

mentos da Palavra. Por exemplo, a palavra “Trindade” não ocorre nas Escrituras; nem por isso podemos deixar de admitir que esta doutrina seja eminentemente bíblica. A doutrina da “Providência” encontra uma terminologia frágil nas Escrituras para representar o significado do assunto; todavia, todos hão de convir que a doutrina da “Providência de Deus” está estampada em toda a Palavra de Deus.821 Na doutrina da “Segunda Vinda de Cristo” temos uma ques­tão análoga: O Novo Testamento não usa a expressão “segunda vin­da” ,822 contudo sabemos que esta doutrina é ensinada com vigor no Novo Testamento, havendo mais de 250 referências explícitas a este assunto, sendo, portanto, um ensinamento eminentemente bíblico e um dos mais evidentes nas páginas do Novo Testamento.

A vinda de Cristo inaugurou uma nova era: a era do Reino de Deus. A Igreja vive no Reino, já desfrutando de sua realidade e presença, aguardando, contudo, o regresso de Cristo, quando ele dará início a uma nova era, decorrente da anterior: a era da consu­mação do Reino.

821 Vd. Hermisten M.P. Costa, A Providência de Deus: G overno ou F atalism o?, São Paulo, 2001, p. 16.

822 Justino, em m eados do segundo século, falava de “duas vindas de C risto” (Justino de Roma, 1 A polog ia , São Paulo, Paulus, 1995, 52. p. 67).

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XVII - A Segunda Vinda de Cristo 335

Neste texto vamos estudar a respeito da Segunda Vinda de Cris­to, considerando-a como elemento de transição entre o “já” (a rea­lidade do Reino presente) e o “ainda-não” (a consumação plena do Reino). Vamos ao assunto.1. A TENSÃO DA IGREJA

A Igreja de Cristo vive o presente tempo, usufruindo das bên­çãos do Reino de Deus, esperando, por sua vez, a consumação do Reino. A Igreja vive entre as duas vindas de Cristo: o “já” (fatual) e o “ainda-não” (esperança). Essa tensão existencial encontra seu res­paldo no “já” histórico, pois este é o fundamento do “ainda-não”, não-histórico, mas esperado. A Igreja vive o agora do Reino com­partilhando de suas bênçãos - tem as “primícias do Espírito” como amostra da colheita futura (Rm 8.23). As “primícias do Espírito” que temos trazem consigo a promessa da abundante colheita que teremos no futuro e, ao mesmo tempo, é o antegozo dela. O Espírito é uma realidade presente que nos fala de nossa salvação passada (justificação) e presente (santificação), indicando também a con­sumação futura de nossa salvação (glorificação; Rm 8.23-24). A amostragem que temos hoje pelo Espírito indica a superioridade do que teremos no porvir (Rm 8.18). O Espírito em nós nos revela as venturas futuras que agora apenas vislumbramos pela fé, e que já desfrutamos apenas embrionariamente. Portanto, a Igreja vive no Reino, contudo anela por sua manifestação completa na irrupção, na consumação do Reino, na vinda de Cristo. O que a Igreja tem agora - “umas poucas gotas do Espírito” ,823 como disse Calvino (1509-1564) - a satisfaz, todavia ela sabe que sua pátria está nos céus, onde o que Deus tem preparado para ela é incomparavelmen­te melhor. A Igreja é filha da eternidade, não do tempo (Rm 8.18; ICo 15.19; Fp 1.23; 3.20; Hb 11.14-16). A Igreja no “já” do Reino milita ativamente contra Satanás, o pecado e o mundo; e, mesmo ela usufruindo das bem-aventuranças do Reino, não pode relaxar, transigir, visto que ela será, até a volta de Cristo, a arena do conflito

823 J. Calvino, Exposição de Romanos, São Paulo, Parakletos, 1997 (Rm 8.23), p. 287.

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336 EU CREIO.

entre o bem e o mal, entre Deus e Satanás. O Espírito em nós é o selo de propriedade divina, até o resgate final (2Co 1.22; 5.5; E f 1.13, 14; IPe 2.9). Somos o Templo do Espírito (ICo 3.16; 6.19). Fomos comprados pelo precioso sangue de Jesus e agora pertence­mos ao Senhor (At 20.28; ICo 6.20; 7.23; IPe 1.18-19). O Espírito é o sinal de nossa total libertação futura da influência de Satanás, do pecado e da carne. “Nossa redenção ainda não se completou, mas está assegurada”.824Por isso, nessa luta, da qual a Igreja já é vencedora por Cristo (Rm 8.31 -39; 1 Jo 5.4-5), ela ora pela vinda de seu Senhor para consumar seu Reino, dizendo: “Venha o teu Rei­no”. “Vem, Senhor Jesus”.2. A CERTEZA DA VINDA DE CRISTO

Jesus ensinou de forma definitiva a respeito de sua Segunda Vinda. Ele se valeu de afirmações diretas e de parábolas para trans­mitir esta verdade a seus discípulos, confortando-os e os alertando quanto à necessidade de estarem sempre vigilantes para receber seu Senhor (vd. Mt 19.28; 24.32-44; 45-51; 25.1-13; Lc 17.24; Jo 14.1-3, etc.).

Essa certeza está expressa em todas as partes do Novo Testa­mento: os apóstolos ensinaram esta doutrina - fazendo parte essen­cial de sua pregação - como fruto de suas convicções, e a Igreja vivia na expectação da bendita esperança do regresso glorioso de Cristo (vd. At 1.11; Fp 1.6, 10; 3.20; lTs 1.9, 10; 4.13-18; 2Ts 1.7, 10; Tt 2.13; Tg 5.7-9; Hb 9.28; 10.37; IPe 1 .7 ,13;2Pe 1.16; 3.1-10, 12; lJo 2.28). Alimentada por esta fé, fundamentada na palavra de Cristo, a Igreja nunca duvidou de sua vinda; esta é a porção dos incrédulos escarnecedores (2Pe 3.3-9).

Os escritos do Novo Testamento, quando olham para o futuro, para o regresso do Messias (= Cristo), falam da vinda daquele que já veio; “não é uma pessoa desconhecida àqueles que o aguardam. Ele é tão bem conhecido por eles como eles o são para ele (cf. Jo 10.14).”825

824 Waller T. Conner, A O bra do E spírito Santo, R io de Janeiro, Casa Publicadora Batis­ta, 1961, p. 114.

825 K.H. Rengstorf, Jesus Cristo: In: Colin Brown, ed. ger. O N ovo D icionário Interna­

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XVII - A Segunda Vinda de Cristo 337

3. O TEMPO E O M ODO DA VINDA DE CRISTO

3.1. Será Repentina

Ninguém sabe quando se dará a vinda de Cristo. Mesmo Jesus Cristo, tendo falado de alguns sinais que precederão sua volta, isso não indica que ela poderá ser adivinhada ou predita; não há estudo que possa ser feito, que estabeleça com precisão o dia do regresso do Senhor, eliminando a surpresa. Lembremo-nos de que no Antigo Testamento havia profecias a respeito da vinda do Messias; mas nem por isso o momento de sua vinda, de seu nascimento, deixou de ser surpresa para os judeus. Qualquer tentativa de se marcar a data da volta de Cristo é uma afronta à Palavra de Deus, nossa única e suficiente fonte de conhecimento a respeito do assunto (Mc 13.32; At 1.7; Dt 29.29).

A Bíblia nos ensina que as pessoas serão tomadas de surpresa em suas lides diárias, em seus afazeres e prazeres cotidianos. A analogia feita por Jesus indica também que muitos estarão vivendo impiamente (Lc 17.28-30; 2Pe 2.6, 7), e outros, menosprezando deliberadamente a pregação do Evangelho, como nos dias de Noé, falando de uma paz que para eles inexistirá (vd. Mt 24.36-44; 25.13; Lc 12.39,40; 17.26,27; 2 P e2.5; lTs 5.1 -3; 2P e3.10; Ap 3.3; 16.15).

Jesus virá conforme a época por ele determinada e conhecida somente pelo Deus Trino (lT m 6.14, 15). “O Senhor está sempre preparado para sua volta. O momento exato pertence à escala per­feita de D eus.” 826

3.2. Será Decisiva e Definitiva

Jesus Cristo foi assunto ao céu uma vez e também voltará defini­tivamente para os seus (At 1.11), vindo assim o fim (1 Co 15.24). Sua vinda decidirá definitivamente a história; não haverá outra chance; quer queiramos quer não, creiamos ou não, a volta de Cristo não será em caráter provisório ou temporário, mas sim, de fato e finalmente.

cional de Teologia do N ovo Testamento, São Paulo, Vida Nova, 1981-1983, Vol. 11, p. 491.826 Bruce M ilne, Conheça a Verdade, São Paulo, A B U , 1987, p. 267.

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338 EU CREIO.

3.3. Será Pessoal

O texto de At 1.11 enfatiza a identidade pessoal de Cristo como Aquele que partiu e voltará. O que foi de forma pessoal também retornará pessoalmente, e ele mesmo nos receberá (vd. Jo 14.3; At 3.19-21; Fp 3.20; Cl 3.4; lTs 2.19; 3.13; 4.16).

3.4. Será Visível e Audível

Todos ouvirão e verão a vinda de Cristo. Ela não será apenas para a Igreja (embora tenha um caráter especial para esta), ou às escondidas, para um grupo escolhido. Jesus Cristo declara: “Então aparecerá no céu o sinal do Filho do homem; todos os povos da terra se lamentarão e verão o Filho do homem sobre as nuvens do céu com poder e muita glória. E ele enviará os seus anjos, com grande clangor de trombeta, os quais reunirão os seus escolhidos dos quatro ventos, de uma a outra extremidade dos céus" (Mt 24.30, 31; vd. também, Mt 26.64; Mc 13.26; Lc 21.27; At 1.11; Cl 3.4; lTs 4.16; Tt 2.13; Hb 9.28; Ap 1.7).

Quando Cristo regressar, todos os homens, os fiéis e os incrédu­los, todos se curvarão diante de Cristo e confessarão seu Senhorio (Fp 2.11; Rm 14.11).

3.5. Será Física

Jesus Cristo voltará com o mesmo corpo com que foi assunto ao céu (At 1.11; 3.20, 21; Hb 9.28; Ap 1.7).

3.6. Será Triunfante, Gloriosa e Glorificante

A primeira vinda de Cristo foi em humildade. Ele fez-se pobre por nós, deixando sua glória eterna para conviver conosco (Is 52.2- 3; Jo 17.5; Fp 2.7-8; 2Co 8.9); na segunda vez, Cristo virá em poder e glória, manifestando a todos sua vitória que foi adquirida para seu povo, sobre Satanás, a morte e o pecado. Ele virá em companhia de seus anjos e das almas dos fiéis que já tiverem morrido (Mt 16.27; lTs 3.13; 4.14). As almas dos que morreram se juntarão a seus cor­pos ressuscitados (IC o 15.52). A glória de Cristo será reconhecida

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XVII - A Segunda Vinda de Cristo 339

por todos (Fp 2.11). A salvação de sua Igreja será o troféu de sua vitória (Jo 17.10; 2Ts 1.10, 12). Paulo fala que a Igreja será glorifi­cada em Cristo (2Ts 1.12; Rm 8.17; Cl 3.4), significando com isso que a Igreja participará da glória de Cristo. Calvino (1509-1564), interpretando o texto de 2Ts 1.12, diz: “São Paulo declara que nos­so Senhor Jesus Cristo não virá para guardar sua glória para si mes­mo, mas para que seja derramada sobre todos os membros de seu corpo.” 827 Cristo virá como Rei dos reis e Senhor dos senhores (vd. Mt 19.28; 24.30; 25.31; Cl 3.4; Tt 2.13; IPe 4.13).4. O PROPÓSITO DA VINDA DE CRISTO

4.1. Manifestar Seu Reino

Sua presente e eterna soberania será plenamente manifestada em seu glorioso regresso (Mt 24.30, 31; ICo 15.24-28). “O Servo que a si mesmo se humilhou perante todos se manifestará como o Rei.”828

Os tópicos subseqüentes são decorrentes dessa manifestação:4.2. Consumar a Salvação de Seu Povo

O Reino de Deus foi inaugurado por Cristo, tendo como um de seus principais propósitos a salvação dos eleitos (Jo 3.16). A nova era do Reino, inaugurada pelo segundo advento, assinala a consu­mação desse propósito (Rm 13.11, 12; Fp 1.6; Hb 9.28; IPe 1.3-9), manifestando sua graça (IPe 1.3), concedendo galardão aos fiéis (Mt 25.21-23; ICo 4.5; 2Tm 4.8; IPe 5.4; Ap 3.11).

Quando o Filho retornar em glória, ele se alegrará no fruto de seu penoso e vitorioso trabalho, sendo glorificado em seus santos (Is 53.11; 2Ts 1.10-12), e o Espírito poderá dizer que cumpriu sua obra, e que nenhum daqueles pelos quais o Filho morreu se perdeu (Fp 1.6).

827 Juan Calvino, Sermones Sobre la Obra Salvadora de Cristo, Jenison, M ichigan, TELL.,1988, p. 225.

828 Herman N. Ridderbos, O Testemunho de M ateus A cerca de Jesus Crista, Patrocínio, MG, CE1BEL, 1980, p. 79.

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340 EU CREIO.

4.3. Ressuscitar os Mortos e Transformar os Vivos

Jesus Cristo, por seu poder, ressuscitará a todos os homens; os que estiverem vivos serão transformados. Nossos corpos serão os mesmos de antes, mas com qualidades distintas; os salvos terão seus corpos adaptados à bem-aventurança eterna; os ímpios, à con­denação eterna (Jo 5.28, 29; At 24.15; ICo 15.42-44;51-52; Fp 3 .2 1).829

4.4. Julgar Todos os Homens

Todos comparecerão diante do tribunal de Cristo, sem exceção. “A revelação de Cristo também significa a revelação da justiça, em seu significado tanto redentor quanto retributivo” 830 (Mt 16.27; At 10.42; 17.31; Rm 2.3-16; 14.10; ICo 4.5; 2Co 5.10; 2Tm 4.1, 8; IPe 4.5; Jd 14, 15; Ap 20.11-15).

4.5. Libertar a Igreja

Um dos sinais que antecederão a vinda de Cristo é a grande tribulação pela qual a Igreja passará, sendo perseguida, caluniada, traída e hostilizada. Parte desse sofrimento será causado pelos após­tatas, aqueles que abandonarão a fé; isso porque nunca tiveram de forma real a genuína fé salvadora (Mt 24.9-13, 21, 22; 2Ts 2.3; Ap 6.9-11). Assim, a vinda de Cristo assume um papel de libertação da opressão sofrida pela Igreja.

4.6. Destruir Todos os Inimigos de Deus

Deus destruirá definitivamente o poder da morte, do pecado e de Satanás (ICo 15.22-28; 42-57; 2Ts 1.8; 2.7, 8; Ap 12.7-11; 20.1-14).

4.7. Restaurar o Cosmos

Jesus Cristo libertará todo o universo da influência deletéria de Satanás e do pecado, fazendo tudo novo (Ef 1.8-10; Cl 1.19, 20). O

829 Vd. Confissão de Fé de Westminster, XXXII, 2 e 3.830 Herman N. Ridderbos, El Pensam iento del A postol P ablo, Buenos Aires, La Aurora,

1987, Vol. 2, pp. 276-277.

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XVII - A Segunda Vinda de Cristo 341

novo céu e a nova terra serão caracterizados pela justiça de Deus (Rm 14.17). “O Reino de Deus implica redenção cósmica (...). Sig­nifica nada menos que a renovação completa de todo o cosmos, culminando nos novos céus e nova terra” 831 (ver Rm 8.19-21; Ap 21.5).5. ATITUDES PARA COM A SEGUNDA VINDA DE CRISTO

5.1. Atitudes Errôneas

5.1.1. Indiferença

Podemos estar tão envolvidos com os negócios deste mundo, que perdemos a dimensão da eternidade, detendo-nos no agora que é apenas a infância da eternidade, e assim não atentando para a importância da segunda vinda de Cristo, testemunhada pelas Escri­turas (Lc 17.26-32; 2Pe 2.5).

5.1.2. Desconfiança e Inércia

Há o perigo de começarmos a achar que o Senhor está demoran­do, e por isso passarmos a viver e a agir como se ele não mais fosse voltar, aceitando, desta forma, as insinuações maldosas a respeito da “fragilidade” do alvo de nossa fé. Esse equívoco acarretará fatal­mente uma postura relapsa diante de Deus e de sua Palavra (Mt 24.48-51; 2Ts 2.1-2; 2Pe 3.3-4, 9).

5.1.3. Excitação

Em oposição aos sentimentos anteriores, podemos ficar tão fas­cinados com o estudo deste assunto - a exemplo dos tessalonicen- ses, que interpretavam erroneamente a verdade, deixando de traba­lhar para esperar o Senhor (lT s 2.1-2; 2Ts 3.10-11) - , cometendo o mesmo equívoco, ou similar, ficando nervosos, ansiosos, excita­

831 Anthony A. Hoekem a, A B íblia e o Futuro , São Paulo, Casa Editora Presbiteriana,1989, p. 73. Ver também: Anthony A. Hoekem a, A Bíblia e o Futuro, p. 383; W illiam Hendriksen, A Vida Futura: Segunda a Bíblia, São Paulo, Casa Editora Presbiteriana, 1988, pp. 233-235; Fred van Dyke, et. al., A C riação R edim ida, São Paulo, Editora Cultura Cris­tã, 1999, p, 90ss.

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342 EU CREIO.

dos, marcando hora, local e data para a vinda de Jesus, assumindo uma postura de superioridade sobre os demais irmãos devido ao nosso suposto conhecimento escatológico. Devemos ter a humilda­de necessária para agir dentro do âmbito da Revelação de Deus e não fazer ouvir o som de nossa voz, onde seria uma heresia (Dt 29.29; At 1.7).

William Hendriksen (1900-1982), exemplificando esta “excita­ção”, diz:

“Hoje, semelhantemente, há muitos crentes excitados que vivem envol­vidos em questões futurísticas, esquecidos de suas obrigações terrenas. São sensacionalistas. ‘Adoram’ perambular em busca de expositores de assun­tos proféticos, particularmente se são do tipo que lhes diga que, ‘segundo a profecia’, vai haver tal e tal guerra, que tal e tal nação será invicta e que Cristo voltará nesta ou naquela data específica. (...) Esses crentes preci­sam lembrar o que Paulo escreveu aos filipenses: ‘Perto está o Senhor. N ão andeis ansiosos de coisa alguma’ (Fp 4-5-6).”83Z

5.2. Atitudes Corretas

5.2.1. Paciência e Firmeza

Jesus Cristo voltará no tempo certo, determinado por ele mes­mo (At 1.7; lT m 6.14, 15; 2Pe 3.8-9). Nossa paciência é fortalecida pelo conhecimento das Escrituras (Rra 15.4; Tg 5.7-9; Hb 10.36, 37; 2Pe 3.17).

Devemos suportar as aflições sem recorrermos a um comporta­mento anticristão de violência, vingança ou ressentimento. D eve­mos permanecer firmes no cumprimento dos princípios bíblicos, vivendo aqui a ética do Reino, ensinada e vivenciada por Cristo Jesus.

5.2.2. Oração Intercessória

Devemos orar para que os nossos irmãos permaneçam firmes na graça de Deus até a vinda de Cristo (Fp 1.9-11; IPe 4.7).

832 W illiam Hendriksen, A Vida Futura: Segunda a B íb lia , p. 123.

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XVII - A Segunda Vinda de Cristo 343

5.2.3. Vigilância

A vigilância denota uma prontidão moral e espiritual para nos en­contrar com o Senhor, em qualquer tempo. Essa vigilância não é indo­lente, mas, sim, ativa, envolvendo, entre outras, as seguintes atitudes:

1) Usar nossos talentos no Reino de Deus. Tudo o que temos, o temos pela graça de Deus; devemos usar os recursos (espirituais, intelectuais, morais e materiais) no serviço do Reino de Deus (Mt 25.14-30; Lc 19.11-27).

2) Viver em comunhão com Deus. A melhor forma de nos prepa­rarmos, para nos encontrarmos com o Senhor, é vivendo diariamente com ele, tendo uma vida santa e irrepreensível (Rm 13.12-14; ICo 1.4-8; lTm 6.14; Tt 2.11-13; IPe 1.13-15; lJo 2.27-28; 3.2-3).

3) Amar e servir aos súditos do Reino que passam necessida­des'. A certeza do regresso de Cristo é um estímulo ao amor fraterno que se manifesta na assistência a nossos irmãos (Mt 25.31-46; IPe4.7-10).

4) Promover a paz. Uma das características do Reino de Deus é a paz (Rm 14.17). Nossa responsabilidade no aguardo do regresso de Cristo é viver em paz com todos, sendo agenciadores da paz pela Palavra (SI 34.14; Mt 5.9; Rm 12.18; 2Co 13.11; Ef 4.3; Cl 3.15; 2Tm 2.22; Hb 12.14; 2Pe 3.14). A certeza da vinda de Cristo deve conduzir-nos à paz com todos, ao invés de discussões intermináveis e em geral estéreis sobre detalhes escatológicos, muitos dos quais não são suficientemente claros nas Escrituras para satisfazer nossa curiosidade pecaminosa.

5) Crescer espiritualmente (2Pe 3.18). Quanto mais se aproxi­ma o dia da vinda de Cristo maior empenho devemos ter em crescer em sua graça e conhecimento, visto que conhecer a Deus é um ato da graça do próprio Deus (Mt 11.27) que se realiza através da Pala­vra, a qual deve ser buscada, tendo prioridade sobre todas as coisas (IPe 2.2; Ef 4.15; 2Pe 1.5-8; Fp 3.8).

5.2.4. Alegre Expectativa

A consciência da vinda de Cristo, de sua iminência e de seu

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344 EU CREIO.

significado glorioso gera nos servos de Deus uma alegre expectati­va (Lc 21.28; IPe 4.12-13). Calvino estabelece uma relação entre o governo providencial de Deus e a vinda de Cristo, dizendo: “As coisas neste mundo não são governadas de uma maneira uniforme. (...) Deus reserva uma grande parte dos juízos que propõe executar para o dia final, para que estejamos sempre em suspenso, esperando a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo.” 833

5.2.5. Urgenciar Sua Vinda

Pedro nos diz: “Esperando e apressando a vinda do dia de Deus, por causa do qual os céus incendiados serão desfeitos e os elemen­tos abrasados se derreterão” (2Pe 3.12).

A palavra traduzida por “apressar” (cmeriSco)834 indica um de­sejo intenso pelo que virá, envolvendo a idéia de diligenciar com zelo, solicitude, urgência etc. Ela revela uma pressa prazerosa da­quilo que terá de ocorrer.835 Não significa também uma simples pressa para que aconteça de uma vez aquilo que terá de acontecer, como, por exemplo, no caso de alguém que diz: “Já que tenho de ser ope­rado, vou logo”; ou, “se tenho mesmo que ir, vou de uma vez...”. A idéia aqui é totalmente diferente; denota uma urgência prazerosa de que Cristo venha.

A Igreja, mesmo sem poder alterar o dia da Vinda de Jesus - e devemos dar graças a Deus por isso - , faz parte do cronograma relativo ao regresso glorioso e triunfante de Cristo. Somos intima­dos a levar adiante os eventos que devem ocorrer antes do dia de Deus. A questão é: Como a Igreja, dirigida pelo Espírito, pode ma­nifestar esse desejo expectante pelo Advento de Cristo? A Palavra de Deus nos fornece a resposta:

833 Juan Calvino, El U so Adecuado de la Afliccion: In: Sermones Sobre Job, Jenison, M ichigan, T.E.L.L., 1988 (Sermon n° 19), p. 226.

834O verbo “cntettôco” ocorre 6 vezes no N ovo Testamento, a saber: Lc 2.16; 19.5, 6; At 20.16; 22.18; 2Pe 3.12.

835 A única possível exceção está em At 22.18; todavia, talvez possam os interpretar o texto entendendo o prazer de D eus em preservar a vida de Saulo, que seria seu instrumento especial na proclamação do evangelho (cf. At 9.15).

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XVII - A Segunda Vinda de Cristo 345

5.2.5.1. Participando da Santa Ceia

Participar dignamente da Ceia do Senhor, além de anunciar a morte de Cristo, é ao mesmo tempo a proclamação da bendita espe­rança de seu regresso vitorioso. “Porque todas as vezes que comer­des este pão e beberdes o cálice, anunciais a morte do Senhor, até que ele venha” (ICo 11.26).

Na Ceia, a Igreja declara sua fé e sua esperança no regresso triunfante de Cristo. A participação da Ceia é um ato de testemunho e renovação de nossa esperança na promessa de Cristo.

Na Santa Ceia declaramos ao mundo que a História tem sentido, porque ela caminha de forma realizante para a volta majestosa de Cristo. Neste ato está embutida a certeza de que Cristo é o centro da História para onde tudo converge; que os fatos não ocorrem por aca­so, mas que são dirigidos por Deus para seu propósito final.

Sem a Pessoa de Cristo, a História permaneceria um enigma para todos nós. Jesus Cristo é o centro não apenas do calendário; ele é de fato o centro significativo da História (G1 4.4), assinalando que o grande evento, o evento central da História, aconteceu: o tempo se cumpriu (IIA,^pco|J,a xov xpóvou). “Jesus Cristo é o centro para o qual tudo converge. Quem o conhece, conhece a razão de todas as coisas” .836

O evento de Cristo como fato inconteste dá significado históri­co ao nosso hoje existencial; à esperança dos que o antecederam em sua peregrinação histórica (Hb 11) e à nossa esperança que se fun­damenta na vida, morte e ressurreição de Cristo, conforme o regis­tro inspirado do evangelho (IC o 15.1-19). A expectativa do futuro está fundamentada nos eventos do passado que hoje fazem uma di­ferença qualitativa em nossa perspectiva da vida. Por isso Paulo diz: “Se Cristo não ressuscitou, é vã a vossa fé, e ainda perm ane­ceis nos vossos pecados. E ainda mais: os que dormiram em Cristo pereceram (...). Se os mortos não ressuscitam, comamos e beba­mos, que amanhã morreremos" (ICo 15.17, 18, 32). Todavia, Paulo

836 B laise Pascal, Pensam entos, São Paulo, Abril Cultural (Os Pensadores, Vol. 16), 1973, VIII, 556. p. 178.

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não trabalha com esta hipótese, porque ele crê no fato da ressurrei­ção de Cristo, que foi o coroamento de seu ministério terreno: “An­tes de tudo vos entreguei o que também recebi; que Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras, que fo i sepultado, e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras. (...) Mas de fato Cristo ressuscitou dentre os mortos, sendo ele as prim ícias dos que dormem” (ICo 15.3, 4, 20).

O teólogo reformado G. C. Berkouwer comenta:“A promessa do futuro está inextricavelmente conectada com eventos

do passado. A expectação cristã é algo muito diferente de uma generaliza­ção tal como: ‘as sementes do futuro estão no presente’. E algo com pleta­mente determinado pela relação única entre o que está por vir e o que já aconteceu no passado. Toda a certeza da nossa expectação está fundamen­tada nesta relação peculiar....

“Escatologia verdadeira, portanto, ocupa-se sempre com a expectação do Cristo que já foi revelado e que ‘aparecerá segunda vez.... aos que o aguardam para a salvação’ (Hb 9,28). ”837

Sem Cristo não há futuro para nenhum de nós: nosso futuro ampara-se nos feitos de Cristo; na Ceia declaramos nossa esperan­ça no regresso de Cristo, amparados e radicados em sua Promessa.

5.2.5.2. Atitude de Arrependimento

O arrependimento consiste numa mudança de mente, ocasio­nando um sentimento de tristeza por nossos pecados, que se carac­teriza de forma concreta em seu abandono. O arrependimento sin­cero é uma “concessão” de Deus: Porque a tristeza segundoDeus produz arrependim ento (jieTÓcyoia) para a salvação...” (2Co 7.10; 2Tm 2.25).“....a bondade de Deus é que te conduz ao arre­pendim ento (iiETdama)” (Rm 2.4; Hb 12.17). “A fé e o arrependi­mento não devem ser reputados como sendo coisas meritórias me­diante as quais merecemos o perdão. Pelo contrário, são os meios pelos quais nos apropriamos da graça de D eus.” 838

837 G.C. Berkouwer, The R etum o f Christ, Grand Rapids, M ichigan, Eerdmans, 1975 (reimpressão), pp. 12-13.

838 Leon Morris, Perdão: In: J.D. D ouglas, ed. org. O N ovo D icionário da Bíblia , Vol. III, p. 1268a.

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A longanimidade de Deus é exercitada a fim de que todos aque­les que constituem seu povo escolhido se arrependam de seus pe­cados (2Pe 3.9, 15). Nosso desejo ardente pelo regresso de Cristo deve concretizar-se em uma atitude de arrependimento por nossos pecados.

O conceito de arrependimento, envolvendo uma mudança radi­cal na vida do homem, é um conceito cristão sem paralelo na litera­tura grega.839 O arrependimento bíblico consiste em voltar-se total e integralmente para Deus. O arrependimento, portanto, envolve a atitude de abandono do pecado e a prática da Palavra de Deus. Esta prática consiste nos “frutos do arrependimento”. Paulo, testemu­nhando diante do rei Agripa a respeito de seu ministério, diz: “Pelo que, ó rei Agripa, não fu i desobediente à visão celestial, mas anun­ciei primeiramente aos de Damasco e em Jerusalém, por toda a região da Judéia, e aos gentios, que se arrependessem e se conver­tessem a Deus praticando obras dignas de arrependimento (laetá v o ia )” (At 26.19, 20; vd. também: At 20.21).

Positivamente considerando, Pedro exorta: “Visto que todas es­sas coisas hão de ser assim desfeitas, deveis ser tais como os que vivem em santo procedim ento e piedade (ócyíaiç òcvaaxpo^aí ç Kat e ik rep eía iç)” (2Pe 3.11).

1) “Santo procedimento”:Tanto o substantivo “procedimento” (òcyacrcpo^) quanto o verbo

(àvaaxpé(|)Co)840 têm o sentido literal de: “volta para trás”, “entor- n a f \ “derrubar". O sentido figurado, conforme o emprego de Pe­dro, é de “comportamento”, “condução”, “modo de vida”, “estilo de vida”, “conversação”, “conduta” etc. Como o verbo e o substan­tivo são neutros, o adjetivo é que vai qualificar o procedimento.

Paulo, por exemplo, fala de sua vida pregressa como sendo um modo de vida errôneo: “Porque ouvistes qual fo i o meu proceder

839 Cf. J. Goetzmann, Conversão: In: Colin Brown, ed. ger. O N ovo D icionário Interna­cional de Teologia do N ovo Testamento, São Paulo, Vida Nova, 1981-1983, Vol. I, p. 499.

840 Ver: G. Ebel, Andar: In: Colin Brown, ed. ger. O N ovo D icionário Internacional de Teologia do N ovo Testamento, São Paulo, Vida N ova, 1981-1983, Vol. I, pp. 205-207.

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(ávacrcpO(|)f|) outrora no judaísmo, como sobremaneira perseguia eu a igreja de Deus e a devastava” (G1 1.13). “.... todos nós anda­mos (àvotcrcpétjxo) outrora, segundo as inclinações da nossa carne, fazendo a vontade da carne e dos pensamentos; e éramos por natu­reza filhos da ira...” (Ef 2.3).

Por isso é que Pedro fala de um “santo p r o c e d im e n to a Igreja se prepara para encontrar-se com Cristo, vivendo santamente, de­monstrando em sua vida os valores próprios daquele que crê que se encontrará com o Senhor vitorioso.

Devemos, portanto, abandonar o modo de viver antigo, contrá­rio à Palavra de Deus: “No sen tido de que, quanto ao tra to (àvaaxpo^fi) passado, vos despojeis do velho homem, que se cor­rompe segundo as concupiscências do engano, e vos renoveis no espírito do vosso entendimento, e vos revistais do novo homem, cri­ado segundo Deus, em justiça e retidão procedentes da verdade" (Ef 4.22-24). Isso porque Deus nos resgatou em Cristo desses pro­cedimentos pecaminosos: “Sabendo que não fo i mediante coisas corruptíveis, como prata ou ouro, que fostes resgatados do vosso fú til procedim ento (p m a ía ç 841 í)|aâ)v (ÍMxenpotjyfiç) que vossos pais vos legaram, mas pelo precioso sangue, como de cordeiro sem de­feito e sem mácula, o sangue de Cristo” (IPe 1.18-19).

Sobre esse último texto, duas observações devem ser feitas:1. Pedro diz que aqueles irmãos herdaram de seus pais um com­

portamento tolo e vão. E interessante que quando Paulo e Barnabé ■pregaram em Listra (At 14.8ss.), e aquele povo pensou que eram deuses - devido à cura de um paralítico que efetuaram - , eles, argu­mentando contra essa idolatria, dizem: “Senhores, por que fazeis isto? Nós também somos homens como vós, sujeitos aos mesmos

841 M áxaioç = Vão, fútil, tolo, sem valor (*A t 14.15; ICo 3.20; 15.17; Tt 3.9; T g 1.26; IPe 1.18). MaraiÓTriç = Vaidade, futilidade, vacuidade (*Rm 8.20; E f 4.17; 2Pe 2.18). “N a literatura grega, m ataios e seus cognatos têm com o pano de fundo certos valores esta­belecidos, padrões morais, realidades religiosas, verdades c fatos reconhecidos. A conduta de qualquer pessoa que os deixa passar despercebidos, deliberadamente ou sem ser cons­ciente disso, cai sob o julgam ento de ser m ataios” (E. Tiedtke, Vazio: In: Colin Brown, ed. ger. O N ovo D icionário Internacional de Teologia do N ovo Testamento, Vol. IV, p, 692).

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sentimentos, e vos anunciamos o evangelho para que destas coisas vãs (Márouoç) vos convertais ao Deus vivo ...” (At 14.15). Portan­to, o evangelho, com seu poder transformador (Rm 1.17), visa a fazer com que o homem abandone as coisas vãs, como, por exem­plo, a idolatria e as crendices pagãs, colocando toda sua confiança em Deus e em suas promessas.

2. Vimos também no texto de Pedro o alto preço pago por Deus para que fôssemos libertados do poder do pecado e vivêssemos agora para ele. O preço de nossa justificação, para nós gratuita, fo i o sangue de Cristo Jesus.842

Deus nos resgatou e se nos apresenta como modelo a ser imita­do e seguido: “....segundo é santo aquele que vos chamou, tornai- vos santos também vós mesmos em todo o vosso procedim ento (àmaTpoíj)^), porque escrito está: Sede santos, porque eu sou san­to. Ora, se invocais como Pai aquele que, sem acepção de pessoas, ju lga segundo as obras de cada um, portai-vos (ávaaxpé^cü) com temor durante o tempo da vossa peregrinação" (IPe 1.15-17).

Somos desafiados em Cristo a ser o padrão dos fiéis: “....torna- te padrão dos fiéis, na palavra, no procedim ento (ávaaxpo^fj), no amor, na fé, na pureza” (lT m 4.12).

Pedro diz que a forma como vivemos a fé cristã é o modo mais eficaz de calar aqueles que injustamente caluniavam a Igreja: “Man­tendo exemplar o vosso procedim ento (ávaai;po(|)f|) no meio dos gentios, para que, naquilo que falam contra vós outros como de malfeitores, observando-vos em vossas boas obras, glorifiquem a Deus no dia da visitação. (...) Porque assim é a vontade de Deus, que, pela prática do bem, façais emudecer a ignorância dos insen­satos" (IPe 2.12, 15). “Santificai a Cristo, como Senhor, em vosso coração, estando sempre preparados para responder a todo aquele

842 Ver: J.l. Packer, O Conhecimento de Deus, p. 121. “Ainda que este perdão seja gratui­to para os pecadores, nunca devem os esquecer que Cristo pagou um alto preço por ele. Perdão para a menor de nossas ofensas só se tornou possível porque Cristo cumpriu as mais aflitivas condições - sua encarnação, sua perfeita obediência à lei divina e sua morte na cruz. O perdão que é absolutamente gratuito ao pecador teve um alto custo para o Salvador” (A. Booth, Somente p e la G raça, p. 31).

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que vos pedir razão da esperança que há em vós, fazendo-o, toda­via, com mansidão e temor, com boa consciência, de modo que, naquilo em que falam contra vós outros, fiquem envergonhados os que difamam o vosso bom procedimento em Cristo (x r |v à y a S f jv i v Xpicnxü òa/aa-Tpo(|)íív)” (IPe 3.15-16).

Pedro, particularizando a questão, orienta as mulheres crentes sobre como conquistar para Cristo seus maridos incrédulos: “Mulhe­res, sede vós, igualmente, submissas a vossos próprios maridos, para que, se alguns deles ainda não obedecem à palavra, sejam ganhos, sem palavra alguma, por meio do procedimento (àvaaxpo(|)f|) de suas esposas, ao observarem o vosso honesto comportamento (àyvrjv843 àvaaxpo^fiv újioòv) cheio de temor” (IPe 3.1-2).

A palavra “honesto” pode ser também traduzida por puro e san­to comportamento. Para poderem viver assim, as esposas precisam pedir sabedoria a Deus, visto que a sabedoria de Deus apresenta esta qualidade: “A sabedoria, porém, lá do alto é primeiramente pura (ócyvòç)...” (IPe 3.17).

2) Piedade:E ú aép eia 844 pode ser traduzida por piedade, respeito, reverên­

cia. A palavra caracteriza a atitude correta para com Deus, engloban­do temor, reverência, adoração e obediência. Ela é a palavra para a verdadeira religião.845 A palavra envolve as idéias de: a) Reverência; b) Submissão e c) Obediência a Deus. Paulo diz que a piedade para tudo é proveitosa, não havendo contra-indicação (lTm 4.8); por isso Timóteo deveria exercitá-la com a perseverança de um atleta (yujxvá Çcü; lTm 4.7)846e segui-la como alguém que persegue um alvo, com a convicção e zelo com os quais o próprio Paulo perseguia a Igreja de

843 ócyvóç, = Santo, puro, casto, inocente (*2Co 7.11; 11.2; Fp 4.8; lT m 5.22; Tt 2.5; Tg 3.17; IP e 3.2; lJo 3.3). A palavra que era empregada para a pureza ritual e cerimonial passou a ser utilizada dentro da esfera ética, indicando a pureza e honestidade morais.

844 *At 3.12; lT m 2.2; 3.16; 4.7 , 8; 6 .3, 5, 6, l l ; 2 T m 3 .5 ; T t 1.1; 2Pe 1 .3 ,6 , 7; 3.11.845 Ver W illiam Barclay, P alavras Chaves do N ovo Testamento, pp. 73-80.S46ru|iváÇco é aplicada ao exercício próprio de alleta. No Novo Testamento a palavra é

usada metaforicamente, indicando o treinamento que pode ser utilizado para o bem ou para o mal ( * lT m 4.7; Hb 5.14;12.11; 2Pe 2.14).

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XVII - A Segunda Vinda de Cristo 351

Deus (ôioÒKCo; lTm 6 . I I ).847 O tempo presente do verbo indica a progressividade que deve caracterizar essa busca pela piedade.

É possível forjar uma aparente piedade - conforme os falsos mestres o faziam pensando em obter lucro (lT m 6.5) no entanto, esta carece de poder e da alegria resultantes da convicção de que Deus supre nossas necessidades (2Tm 3.5; lTm 6 .6). Todo o co­nhecimento cristão deve vir acompanhado de piedade (lT m 3.16; lTm 6.3; Tt 1.1). Calvino comenta: “Ela [a doutrina] só será con­sistente com a piedade se nos estabelecer no temor e no culto divi­no, se edificar nossa fé, se nos exercitar na paciência e na humilda­de e em todos os deveres do amor.” 848 A piedade deve estar associ­ada a diversas outras virtudes cristãs (2Pe 1.6-7). Nossa certeza é que Deus nos concedeu todas as coisas que nos conduzem à pieda­de; portanto, devemos utilizar de todos os recursos que Deus nos forneceu (2Pe 1.3).849

A piedade não é restritiva, antes se revela e se fortalece asso­ciada à fraternidade e ao amor (2Pe 1.6-7). Barclay (1907-1978), resume esse ponto:

“O cristão não convive com Deus a fim de evitar seu próximo, mas, pelo contrário, a fim de se tornar mais capaz de solucionar o problema do con­vívio.”850

847 Aicókcú é utilizada sistematicam ente para aqueles que perseguiam a Jesus, os discípu­los e a Igreja (Mt 5.10-12; L c21 .1 2 ; Jo 5.16; 15.20). Lucas emprega este m esm o verbo para descrever a perseguição que Paulo efetuou contra a Igreja (A t 22.4; 26.11; ICo 15.9; G1 1.13, 23; Fp 3.6), sendo também a palavra utilizada por Jesus Cristo quando pergunta a Saulo a razão de sua perseguição (At 9.4-5; At 22.7-8; At 26 .14-15). Paulo diz que prosse­guia para o alvo (Fp 3.12, 14). O escritor de Hebreus diz que devem os perseguir a paz e a santificação (Hb 12.14). Pedro ensina o m esm o a respeito da paz (IP e 3.11).

848 João Calvino, A s Pastorais ( lT m 6.3), pp. 164-165. Em outro lugar: “Visto que todos os questionam entos supérfluos que não se inclinam para a edificação devem ser com toda razãó suspeitos e m esm o detestados pelos cristãos piedosos, a única recomendação legíti­ma da doutrina é que ela nos instrui na reverência c no temor de Deus. E assim aprendemos que o hom em que mais progride na piedade é também o melhor discípulo de Cristo, e o único hom em que deve sei’ tido na conta dc genuíno teólogo é aquele que pode edificar a consciência humana no temor de Deus” [João Calvino, A s Pastorais (Tt 1.1), p. 300],

849 Ver Hermisten M.P. Costa, A Palavra c a Oração com o M eios de Graça: In: Fid.es R efom a- ta, São Paulo, Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper, 5/2 (2000), 15-48.

850 W illiam Barclay, P alavras Chaves do N ovo Testamento, p. 80.

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A piedade, que é o resultado de nosso relacionamento com Deus, deve ter seu reflexo concreto dentro de casa, sendo revelada através do tratamento que concedemos a nossos pais e irmãos: “....se alguma viúva tem filhos ou netos, que estes aprendam primeiro a exercer piedade (cijcepéoo) para com a própria casa e a recompensar a seus progenitores; pois isto é aceitável diante de Deus” (lTm 5.4).851 Nunca nosso trabalho, por mais relevante que seja, poderá vir a ser um em­pecilho para ajudarmos nossos familiares. A genuína piedade é ca­racterizada por atitudes condizentes com Deus (reverência) e com nosso próximo (fraternidade). Curiosamente, quando o Novo Testa­mento descreve Cornélio, diz que ele era um homem “piedoso (Eúaep^ç) e temente a Deus (...) e que fazia muitas esmolas ao povo e de contínuo orava a Deus” (At 10.2). A piedade é, portanto, uma relação teologicamente orientada do homem para Deus em sua devo­ção e reverência, e sua conduta biblicamente ajustada e coerente com seu próximo. A piedade envolve comunhão com Deus e o cultivo de relações justas com nossos irmãos. “A obediência é a mãe da pieda­de”, resume Calvino.852

A piedade é desenvolvida através de nosso crescimento na gra­ça. A graça de Deus é educativa: “Porquanto a graça de Deus se manifestou salvadora a todos os homens, educando-nos (naiSetxD) para que, renegadas a impiedade e as paixões mundanas, vivamos no presente século, sensata, justa e piedosam ente (eúaepcòç)” (Tt2.11-12). A piedade autêntica traz consigo os perigos próprios re­sultantes de uma ética diferente deste século, moldada pelos princí­pios da Palavra: “Ora, todos quantos querem viver piedosam ente (eijaepóòç)853 em Cristo Jesus serão perseguidos” (2Tm 3.12). No entanto, há o conforto expresso por Pedro às Igrejas perseguidas: “....o Senhor sabe livrar da provação [7t£ ip a c |ió ç = “tentação”] os piedosos (eticEp^ç)...” (2Pe 2.9).

851 “Seria uma boa preparação treinar-se para o culto divino, pondo em prática deveres dom ésticos piedosos em relação a seus próprios fam iliares” [João Calvino, A s P astorais, São Paulo, Parakletos, 1998 (lT m 5.4), p. 131].

852 John Calvin, Com m entaries o f the Four L ast Books o f M oses, Vol. 1 (D t 12.32), p. 453.

853 Este advérbio só ocorre em dois textos do N ovo Testamento: 2Tm 3.12; Tt 2.12.

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Toda a ética cristã tem como ingrediente fundamental a certeza da volta de Cristo, que se constitui em seu princípio orientador: O Senhor vem!

Resumindo este tópico, devemos enfatizar que a Igreja demons­tra seu anseio pela volta do Senhor vivendo em “santo procedimen­to ep ied a d e” (2Pe 3.11).

3) Vivendo em paz:Pedro, partindo da certeza dos acontecimentos finais, extrai do

fato algumas responsabilidades da Igreja. O pressuposto está na con­fiança expectante da Igreja: “Esperando (upoaSoKÓío) estas coisas”. O verbo tem o sentido de olhar com expectação, “antever alguém ou algo”. Pedro emprega a mesma palavra nos versos 12, 13 e 14.

Pedro diz: “empenhai-vos” (aran)8áÇ(o):854 Ser diligente, esfor- çar-se, ser solícito, ser zeloso com entusiasmo ardente. O termo empregado é da mesma raiz da palavra usada no verso 12, traduzida por “apressando” (ARA). ErajuSáiÇctí denota uma diligência, um “entusiasmo ardente” que se esforça por fazer todo o possível para alcançar seu objetivo. Apenas para ampliar a compreensão da pala­vra, cito o fato de que Paulo, preso em Roma, pede a Timóteo esta urgência em encontrá-lo (2Tm 4.9, 21). Depois, em outro contexto, solicita o mesmo a Tito (Tt 3.12). Esta palavra tem também uma implicação ética, visto que está associada, por exemplo, ao esforço que os crentes devem despender em manter a unidade (Ef 4.3), ao zelo em socorrer a outros irmãos (G1 2.10; 2Co 8.7, 8, 16) e em corrigir uma injustiça (2Co 7.11-12).

Por sua vez, é recomendado que aquele que lidera (preside), deve fazê-lo com empenho (diligência, zelo; Rm 12.8). Pedro de­monstrou esta mesma diligência em ensinar o evangelho às Igrejas (2Pe 1.15). Judas revela o mesmo ao escrever sua epístola (Jd 3).

Toda a nossa expectação deve traduzir-se em uma vida que se854 Conform e já citam os supra, atouSáÇo) ocorre 11 vezes no NT (*G1 2.10; E f 4.3; lTs

2.17; 2Tm 2.15; 4 .9 , 21; Tt 3.12; Hb 4.11; 2Pe 1.10, 15; 3.14), tendo o sentido de “correr” , “apressar-se”, “fa zer todo o esforço e empenho po ssíve l”, “urgenciar", “ser zeloso, d ili­gen te”, “esforço”, “aplicação".

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caracterize pela paz. “Em paz” (èv eipf|vri). Paz, nas Escrituras, descreve um estado de reconciliação com Deus, sendo mantida atra­vés de nossa comunhão com Cristo (Jo 16.33; Fp 4.7; IPe 5.14).

Estudemos um pouco o que a Bíblia nos ensina sobre a paz, especialmente o Novo Testamento:

1. Sua origem:A origem de nossa paz está em Deus; por isso, é totalmente

inútil procurar a paz fora dele. Paulo escreve aos romanos: “E o Deus da paz (elpT\vri) seja com todos vós” (Rm 15.33); “E o Deus da paz (eip^vri), em breve, esmagará debaixo dos vossos pés a Sa­tanás...” (Rm 16.20; ver também ICo 14.33; Ef 4.3). Barclay resu­me bem:

“Em última análise, a paz não é algo que o homem alcança - é algo queele aceita.”855

A paz é de Deus porque dele procede, e também porque o mo­delo da paz temos em Deus, Aquele que não vive em ansiedade.856

2. Seu fundamento:a. Pela graça de Deus em Cristo:Nas saudações iniciais de Paulo em suas epístolas, encontramos a

relação entre “graça” e “paz”. Ele diz: “Graça a vós outros e paz (eípf|VT|) da parte de Deus, nosso Pai, e do Senhor Jesus Cristo” (ICo 1.3). Paulo toma essas duas palavras - Graça (%ápiç = saúde), que era a saudação dos gregos, e Paz, saudação dos judeus confe­rindo-lhes um sentido teológico: a paz é o resultado da graça de Deus. Notemos que nas saudações de Paulo ele nunca inverte esta ordem: a paz com Deus é o resultado de sua própria graça. Devemos observar, contudo, que a paz aqui deve ser entendida como o equivalente he­braico nfrítf (shãlôm), “prosperidade espiritual” .857 A paz é resultante

855 W illiam Barclay, A s O bras da Carne e o Fruto do Espírito , São Paulo, Vida N ova, 1985, p. 85.

856 Vd. F.F. Bruce, F ilipenses, Florida, Editora Vida, 1992 (Fp 4 .7 ), p. 154.857 Shãlôm , que ocorre certa de 250 vezes no Antigo Testamento, tem o sentido de: “intei­

reza, integridade, harmonia e realização”. Na forma de saudação, podem os observar que desejar shãlôm é o m esm o que abençoar (2Sm 15.27); retê-lo equivale a amaldiçoar ( lR s

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de nossa comunhão com Deus, implicando nossa total confiança em sua promessa: “Não há nenhuma paz genuína que seja desfruta­da neste mundo senão na atitude repousante nas promessas de Deus. Os que não lançam mão delas podem ser bem sucedidos por algum tempo em abafar ou expulsar os terrores da consciência, mas sem­pre deixarão de desfrutar do genuíno conforto íntimo.” 858

b. Mediante a obra de Cristo:A graça de Deus concretiza-se em Cristo, através de seu sacrifí­

cio vicário. Paulo diz que ele é a nossa paz: “Em Cristo Jesus, vós [gentios], que antes estáveis longe, fostes aproximados pelo sangue de Cristo. Porque ele é a nossa p a z (EÍpt]vr|), o qual de ambos fez um; e, tendo derribado a parede da separação que estava no meio, a inimizade, aboliu, na sua carne, a lei dos mandamentos na form a de ordenanças, para que dos dois criasse, em si mesmo, um novo homem, fazendo a paz (eipr^vri), e reconciliasse ambos em um só corpo com Deus, por intermédio da cruz, destruindo p o r ela a ini­mizade. E, vindo, evangelizou p a z (eipfjvri) a vós outros que está­veis longe [gentios] e p a z (slp^vri) também aos que estavam perto [judeus]; porque, por ele, ambos temos acesso ao Pai em um Espí­rito” (Ef 2.13-18; ver Cl 1.20-22).

Paulo nos ensina que em Cristo passamos a ter paz com Deus e também com nosso próximo. Dentro do propósito imediato de Pau­lo, ele demonstra que os gentios, distantes das promessas de Israel e dos judeus, agora têm livre acesso a Deus, em Cristo, pelo mesmo e único Espírito.

Notemos que em tudo isso a iniciativa é de Deus: “Tudo provém de Deus, que nos reconciliou consigo mesmo por meio de Cristo2.6). “Shalõm realmente significa tudo quanto contribui para o bem do hom em , tudo o que faz com que a vida seja verdadeiramente vida” (W illiam Barclay, As O bras da Carne e o Fruto do E sp írito , São Paulo, Vida N ova, 1985, pp. 82-83). No entanto, o principal sentido da palavra está relacionado à atividade de Deus na aliança da graça: “Em quase dois terços de suas ocorrências, shâlôm descreve o estado de plenitude e realização, que é resultado da presença de D eus” [Garry G. Lloyd, Shãlêm: In: R. Laird Harris, et. al., eds. D icionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, São Paulo, Vida Nova, 1998, pp. 1573], A origem desta paz está em Deus mesmo.

858 João Calvino, O Livro dos Salm os, Vol. 2 (SI 51.8-9), p. 436.

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356 EU CREIO.

(...). Deus estava em Cristo reconciliando consigo o m undo...” (2Co 5.18, 19).

3. Propiciação:a. Pelo evangelho:A paz proveniente de Deus, revelada na obra de Cristo, chega a

nós pelo evangelho. Pedro, anuciando o evangelho na casa de Cor- nélio, diz: “Esta ê a palavra que Deus enviou aos filhos de Israel, anunciando-lhes o evangelho da p a z (eipf|vr|), por meio de Jesus Cristo. Este é o Senhor de todos” (At 10.36; E f 6.15).

O evangelho é uma mensagem de paz. Os homens são concla­mados a arrepender-se e a crer no evangelho.

b. Pela justificação:Deus, pela justiça de Cristo, nos declara justos, e através deste

ato temos paz com Deus: “Justificados, pois, mediante a fé, temos p a z (eipiivri) com Deus por meio de nosso Senhor Jesus Cristo” (Rm 5.1). “Os homens, pois, só serão bem-aventurados depois que forem gratuitamente reconciliados com Deus e reputados por ele como justos.” 859

4. Natureza:a. É diferente:Jesus consola seus discípulos: “Deixo-vos a p a z (eip^vri), a

minha pa z (eipi1vr|) vos dou; não vo-la dou como a dá o mundo” (Jo 14.27). Adiante, acrescenta: “Estas coisas vos tenho dito para que tenhais p a z (sípf|vr|) em mim. No mundo passais por aflições; mas tende bom ânimo; eu venci o mundo” (Jo 16.33). Paulo, em sua oração em favor dos tessalonicenses, demonstra de forma prática a experiência desse ensinamento: “Ora, o Senhor da paz (eipf|vr|), ele mesmo vos dê continuamente a paz (eipr^vri) em todas as circunstân­cias. O Senhor seja com todos vós” (2Ts 3.16). Do mesmo modo, Judas roga a Deus que multiplique a sua paz sobre a Igreja: “A mise­ricórdia, a p a z (£Ípf|vr|) e o amor vos sejam multiplicados” (Jd 2).

8WJoão Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1 (SI 32.1), p. 39.

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XVII - A Segunda Vinda de Cristo 357

b. Excede nosso entendimento:A paz de Deus não pode ser explicada com argumentos; ela está

além de nossa capacidade de planejamento - vejam-se os esforços ainda que notáveis, porém fracassados, de paz no Oriente - e com­preensão. Daí Paulo falar à igreja que passava por perseguição, e ao mesmo tempo enfrentava dissenções internas: “E a p a z (eip^vri) de Deus, que excede todo o entendimento, guardará o vosso coração e a vossa mente em Cristo Jesus” (Fp 4.7).

A paz de Deus é uma característica do Reino de Deus. Portanto, vivenciá-la significa antegozar o Reino: “O reino de Deus não é comida nem bebida, mas justiça, e paz (sipi^vr)), e alegria no Espí­rito Santo” (Rm 14.17). Isto se torna possível pelo Espírito, já que ele mesmo produz esse fruto em nós: “O fruto do Espírito é: amor, alegria, pa z (eipf|vr|), longanimidade, benignidade, bondade, f id e ­lidade, mansidão, domínio próprio” (G1 5.22-23).

S. Nossa responsabilidade:Falando a rigor, este é o ponto do qual Pedro está tratando mais

especificamente em sua epístola. Qual é nossa responsabilidade? A resposta é simples: viver em paz. A paz, como todo nosso bem- estar espiritual, está relacionada à nossa submissão ao Espírito San­to. “O pendor da carne dá para a morte, mas o do Espírito, para a vida e paz (eip^vri)” (Rm 8.6).

Nossa paz com Deus deve refletir-se em nossa paz com nosso próximo, cultivando-a e preservando-a. Paulo assim se despede da igreja de Corinto: “Quanto ao mais, irmãos, adeus! Aperfeiçoai-vos, consolai-vos, sede do mesmo parecer, vivei em paz (eiprivetíoo); e o Deus de amor e de paz (eip^vr|) estará convosco” (2Co 13.11).

Devemos manifestá-la em nosso viver cotidiano. No entanto, a paz deve ser perseguida, visto que nem sempre é fácil preservá-la. Ao jovem Timóteo, Paulo exorta: “Foge ( < j )E Ú y a ) ) , 860 outrossim, das paixões da mocidade. Segue ( S i g ò k c ú ) 861 a justiça, a fé, o amor e a

860 o verb0i no presente imperfeito, indica uma ação que deve tornar-se um hábito de vida.

8610 verbo está no presente imperfeito ativo. Associando-se o fu g ir ao seguir, temos um

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358 EU CREIO.

p a z (eipf|vr|) com os que, de coração puro, invocam o Senhor” (2Tm 2.22; do mesmo modo Hb 12.14). “Se possível, quanto depender de vós, tende p a z (eipr|V£\3co) com todos os homens” (Rm 12.18; vd. SI 34.14).

Paulo apresenta uma recomendação preventiva: “Sejaapaz (£Ípf| vr|) de Cristo o árbitro (PpaP£\3co)&62em vosso coração, à qual tam­bém fostes chamados em um só corpo; e sede agradecidos” (Cl3.15). Nossas atitudes, decisões e escolhas devem ser dirigidas pela paz de Cristo que arbitra, governa e lidera nosso coração.

Paulo recomenda aos efésios que se esforcem por preservar a unidade no vínculo da paz (Ef 4.3). O próprio tempo verbal de “es­forçando-vos” (EítouSáÇoú; particípio presente) apresenta o conceito de um esforço contínuo, sem esmorecimento.

Jesus Cristo considerou bem-aventurado os promotores da paz: “Bem-aventurados os pacificadores (eiprivoiioióç,)*63 porque serão chamados filhos de Deus” (Mt 5.9). Tiago diz que a sabedoria con­cedida por Deus, “lá do alto”, “é primeiramente pura; depois p a c í­fic a (£Ípr|ViKóç)”864 (Tg 3.17).

A Igreja, portanto, deve estar comprometida com a paz: procu­rar a paz, evitar as contendas e as atitudes que provocam dissenções.

Pedro então diz que a Igreja deve esforçar-se para que, quando Cristo voltar, a encontre em paz com Deus e com seu semelhante.

comportamento constante e complementar que deve fazer parte da conduta cristã. Conforme já vimos em nota supra, Aicòkcü é utilizado sistematicamente para aqueles que perseguiam a Jesus, os discípulos e a Igreja (Mt 5.10-12; Lc 21.12; Jo 5,16; 15.20). Lucas emprega este mesm o verbo para descrever a perseguição que Paulo efetuou contra a Igreja (At 22.4; 26.11; IC o 15.9; G1 1.13, 23; Fp 3.6), sendo também a palavra utilizada por Jesus Cristo quando pergunta a Saulo a razão de sua perseguição (At 9.4-5; At 22.7-8; At 26.14-15). Paulo diz que prosseguia para o alvo (Fp 3 .1 2 ,1 4 ). O escritor de Hebreus diz que devem os perseguir a paz e a santificação (Hb 12.14). Pedro ensina o m esm o a respeito da paz (IP e 3,11).

862 Esta palavra só ocorre aqui. Ela tem o sentido também de “dar prêm ios”, “julgar”, “reger” . N o grego clássico , o ppape-úm funcionava com o juiz de um jogo. N o entanto, a palavra também era empregada de forma metafórica, significando “liderar”, “reger” e “de­terminar”. A forma ppapeiov ocorre 2 vezes no NT, sendo traduzida por “prêm io” (IC o 9.24 e F p 3.14).

8<,:* Esta palavra só ocorre aqui.864 Esta palavra ocorre duas vezes no NT, Hb 12.11; T g 3.17.

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XVII - A Segunda Vinda de Cristo 359

Devemos procurar a paz, não a divisão e os mexericos que cau­sam tanto mal à vida da Igreja. Lembremo-nos, contudo, de que o fundamento da paz está em Cristo Jesus, não na acomodação ao erro.

Temos um exemplo importante em Calvino. Mesmo desejando a paz e a concórdia, Calvino entendia que essa paz nunca poderia ser em detrimento da verdade. Conforme já citamos, comentando ICo 14.33, escreve:

“Naturalmente, há uma condição para entendermos a natureza desta paz, ou seja, a paz da qual a verdade de Deus é o vínculo. Pois se temos de lutar contra os ensinamentos da impiedade, mesmo se for necessário m o­ver céu e terra, devemos, não obstante, perseverar na luta. Devemos, cer­tamente, fazer que a nossa preocupação primária cuide para que a verdade de Deus seja mantida em qualquer controvérsia; porém, se os incrédulos resistirem, devemos terçar armas contra eles, e não devemos temer sermos responsabilizados pelos distúrbios. Pois a paz, da qual a rebelião contra Deus é o emblema, é algo maldito; enquanto que as lutas, indispensáveis à defesa do reino de Cristo, são benditas.”865

Portanto, zelemos por nossa Igreja, estejamos atentos para nos en­contrarmos com o Senhor; esforcemo-nos para que ele nos encontre em paz: Em paz com Deus e com os homens, fundamentados na verdade.

4) Sem mácula e irrepreensíveis:Notemos que o “empenho” (GTtouõáÇco) ensinado por Pedro para

referir-se à busca da Igreja por preservar a paz aplica-se também a essas recomendações (2Pe 3.14). Ambas as palavras são parecidas, apresentando apenas uma intensidade da proposição de Pedro, de que a Igreja deve aguardar o retorno de Cristo de forma irrepreensível.

Os dois termos empregados aqui ocorrem juntos em outro texto, referindo-se ao sacrifício de Cristo em prol de sua Igreja: “Sabendo que não fo i mediante coisas corruptíveis, como prata ou ouro, que fostes resgatados do vosso fútil procedimento que vossos pais vos legaram, mas pelo precioso sangue, como de cordeiro sem defeito ((4100|ioç) e sem mácula (ácmX,oç),8650 sangue de Cristo" (IPe 1.18-19).

865 J. Calvino, Exposição de 1 C oríntios (IC o 14.33), p. 437.m * lT m 6.14; Tg 1.27; IPe 1.19; 2Pe 3.14.

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360 EU CREIO.

Usando uma terminologia bem semelhante, Paulo escreve: “M a­ridos, amai vossas mulheres, como também Cristo amou a igreja e a si mesmo se entregou por ela, para que a santificasse, tendo-a purificado por meio da lavagem de água pela palavra, para a apre­sentar a si mesmo igreja gloriosa, sem mácula (jari__crrcíXoç),867nem ruga, nem coisa semelhante, porém santa e sem defeito (ájico- (loç)” (Ef 5.25-27).

Em suma podemos dizer que Jesus Cristo deseja que a Igreja seja tal qual foi ele em sua entrega por nós; ele morreu justamente para que fôssemos assim.

Considerando isso, vejamos agora o significado de cada palavra:I . “Sem mácula” :ácm;iÀ,oç868 significa “imaculado”, “incontaminado”. Ela é an­

tônimo de contaminação.A Igreja aguarda a vinda de Cristo empenhando-se por viver de

forma limpa, sem mácula, sem contaminação, cumprindo assim o propósito do Senhor. Notemos que este é um desafio constante. A vida cristã não é algo acabado, completo e final. Estamos em Cris­to, somos salvos pela graça de Deus; no entanto, continuamos a ser desafiados a proceder de forma imaculada diante de todo e cada desafio que se nos apresente. O crente é chamado a uma caminhada constante. No Novo Testamento, os cristãos eram reconhecidos como aqueles que eram do Caminho. Saulo, antes de converter-se, pediu cartas ao sumo sacerdote “a fim de que, caso achasse alguns que eram do Caminho, assim homens como mulheres, os levasse presos para Jerusalém” (At 9.2). Lucas relata que Priscila e Áquila, após ouvirem uma pregação de Apoio, o chamaram e “com mais exati­dão lhe expuseram o caminho de Deus” (At 18.26).

O cristianismo é essencialmente um caminho de vida, funda­mentado na prática do evangelho, conforme ensinado por Jesus Cristo. A santificação é, portanto, um desafio a perseguirmos este

867 *Ef 5.27; 2Pe 2.13. A palavra, sem o advérbio de negação, significa “mancha”, “nó­doa”. Tem também o sentido figurado de “vergonha” .

8,18 * lT m 6.14; Tg 1.27; IPe 1.19; 2Pe 3.14.

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XVII - A Segunda Vinda de Cristo 361

Caminho, nos empenhando por fazer a vontade de Deus. Por isso, a santificação nos fala de caminharmos sempre em direção ao alvo proposto por Deus, com nossos corações humildes, desejoso de agra­dar a Deus, de fazer sua vontade com o sentimento adequado. Daí a exortação de Pedro para que nos esforcemos por ser achados pelo Senhor “sem mácula

2. “ Irrepreensível” :ájxcú|-L0ç ,869 sem mancha, imaculado, sem nódoa, inocente. Essa

palavra, comum no ritual judaico, era empregada para indicar os animais usados para o sacrifício; eles não podiam ter defeito (Ex 29.1;L v 1.3, 10; 3.1, 6).870 Esta palavra descreve uma pureza ética; a idéia predominante é a ausência de qualquer coisa que se constitui­ria em corrupção diante de Deus. Ela denota, portanto, o que o cristão deve ser diante de Deus. Esta palavra concebe toda a vida humana - em suas multifárias dimensões - , como uma oferenda a Deus.

Fomos eleitos na eternidade para vivermos deste modo: “Assim como nos escolheu, nele, antes da fundação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis (ájico|aoç) perante ele" (Ef 1.4). Nossa re­conciliação teve também esse propósito: “....vos reconciliou no cor­po da sua carne, mediante a sua morte, para apresentar-vos perante ele santos, inculpáveis (ájjxo|ioç) e irrepreensíveis’’’ (Cl 1.22).

O desafio da Igreja é de esforçar-se por viver assim no meio de uma geração pervertida e corrupta: “Fazei tudo sem murmurações nem contendas, para que vos tomeis irrepreensíveis (ájJ,£|aíti;oç)87' e sinceros (àK.épaioç),H12filhos de Deus inculpáveis (ájJ.co|U.oç) no meio de uma geração pervertida (EkoXióç)873 e corrupta (Àiacrcpé <j>co),874 na qual resplandeceis como luzeiros (Ocoaxfip) 875 no mun­

869 E f 1.4; 5 .27 [F p2.15 . Aqui há uma variante textual, que indica um sinônim o, ôí|j.a>jj.r|xá (am ôm êta), talvez por seguir a LX X, Dt 32.5]; Cl 1.22; Hb 9.14; IPe 1.19; Jd 24; Ap 14.5.

870 Em todos esses textos, a LX X usa <ü)ico|xoç.871 *Lc 1.6; Fp 2.15; 3.6; lT s 3.13; Hb 8.7.872 * M t 10.16; Rm 16.19; Fp 2.15.873 *Lc 3.5; At 2.40; Fp 2.15; IPe 2.18. X k o Xi ó ç , Sentido literal: “torto”, “encurvado”.

Sentido figurado: perverso, malvado, desonesto, inescrupuloso.874 *M t 17.17; Lc 9.41; 23.2; At 13.8, 10; 20.30; Fp 2.15. AiaaxpÉijxo, Sentido literal:

“entortar”. Sentido figurado: Pervertido, depravado, distorcido, dividido. Denota uma situ­

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362 EU CREIO.

do” (Fp 2.14-15). Paulo diz então que nosso comportamento deve luzir como estrelas no firmamento (Gn 1.14).

Nosso consolo é que Deus, por seu poder, nos preservará assim para o encontro com o Senhor Jesus: “... Aquele que é poderoso para vos guardar de tropeços e para vos apresentar com exultação, imaculados (áji.co|j,oç) diante da sua glória” (Jd 24).

Se dependesse unicamente de nossos poderes, diante da glória de Deus jamais a Igreja poderia ser vista como imaculada, no en­tanto é Deus mesmo quem nos apresentará assim em Cristo. Deus nos preserva intocáveis, para que possamos ser apresentados diante do Senhor Jesus, na manifestação de sua glória. Ninguém tem do que nos acusar; já fomos justificados por Cristo (Rm 8.31, 33).

5.2.5.3. Orando

A Oração que Jesus ensinou a seus discípulos consiste, entre outras coisas, numa manifestação sincera do desejo de que ele ve­nha (M t6.10; Ap 22.17, 20).

Jesus nos ensinou a suplicar: “Venha o teu reino...” (Mt 6 .10). O Reino de Deus é o coração da mensagem de Cristo, bem como dos apóstolos. O crente no Antigo Testamento aguardava a chegada do Reino de Deus que estava associada à figura do Filho do Homem, descrita por Daniel (Dn 7.13-14; Mt 16.27, 28; 17.12, 22; Lc 9.58; Jo 3 .13,14). Jesus Cristo, o Filho do Homem, inaugurou o Reino de Deus; por isso, o Reino está indissoluvelmente ligado à sua Pessoa. Jesus Cristo, sua mensagem e atos incorporam a presença do Reino que chegara. Ele inaugurou o Reino de Deus (Lc 11.20). Orígenes (c. 185-254), corretamente, disse que Jesus Cristo era a “autobasi-

ação anormal. Os filipenses deveriam ter uma vida singular no m eio de uma sociedade dissimulante, com um ética tortuosa, e por isso m esm o perversa.

875 Ococjxi^p (*Fp 2.15; Ap 21.11). A palavra é proveniente de Oociç. Ococrcrjp, estrela, esplendor, radiância, brilho, Iuminário. O tempo presente indica a ação contínua. A palavra originalm ente está associada ao brilho do so l (Ap 22.5: à luz das lâm padas (Lc 8.6; 11.33; 15.8; At 16.29), ao ca lo r da fog u eira (M c 14.54; Lc 22.56). [Em todos esses exem plos, as palavras empregadas são 4>coç ou Oonriç (ver H. C. Hahn e Colin Brown, Luz: ín: Colin Brown, ed. ger. O Novo D icionário Internacional de Teologia do N ovo Testamento, São Paulo, Vida N ova, 1981-1983, Vol. UI, pp. 101-107).]

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XVII - A Segunda Vinda de Cristo 363

leia", o reino em pessoa.876 “A relação entre o Reino de Deus e a revelação messiânica passa a ser uma correlação de força tal que quase se poderia falar de identificação de Jesus Cristo com o Reino de Deus; ele não apenas proclama, mas é, em sua pessoa, o Reino que está entre nós.” 877 Por isso é que o Novo Testamento nos ensina que pregar o Reino é o mesmo que pregar a Jesus Cristo (Mt 19.29; Mc 10.29-30; Lc 18.29; At 8.12; 28.31).

Portanto, o Reino de Deus é o reinado de Deus, o governo triun­fante de Cristo sobre todas as coisas, visíveis e invisíveis. Falar do Reino é apontar para a concretização do propósito de Deus em Cristo, libertando os homens do poder de Satanás, conduzindo-os à liber­dade concedida por Cristo, o Senhor.

5.2.5.4. Evangelizando

Evangelizar significa confrontar os homens com as reivindica­ções de Cristo, decorrentes do caráter de Deus.878

A Igreja evangeliza porque anseia pelo regresso triunfante de Cristo. Desta forma, a evangelização tem em seu conteúdo uma conotação escatológica.

Compete à Igreja atuar dentro de sua esfera de ação, com vista à concretização do programa da volta de Cristo. Neste sentido, a evan­gelização faz parte desse cronograma. A expansão missionária, além da obediência à ordem de Cristo, deve refletir em cada coração o desejo de que Cristo venha. Evangelizar é uma das formas práticas de dizer: “Venha o teu Reino” (vd. Mt 28.19; Mt 24.14).

Anthony A. Hoekema (1913-1988) observou que:“O período entre a primeira e a segunda vinda de Cristo é a era missio­

nária por excelência. Este é o tempo da graça, um tempo em que Deus convida e insta com todos os homens para serem salvos.”879

876 O rígenes, Com entário de M ateus, 14.7. A pud M. Green, Evangelização na Igreja Prim itiva, São Paulo, Vida Nova, 1984, p. 58.

877 J. Blauw, A N atureza M issionária da Igreja, São Paulo, ASTE, 1966, p. 72.878 Para uma abordagem mais com pleta deste ponto, vd. Hermisten M.P. Costa, Breve

Teologia da E vangelização , passim .879 A.A. H oekem a , A B íblia e o Futuro, p. 187.

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364 EU CREIO.

IM PLICAÇÕES DOUTRINÁRIAS E PRÁTICAS

1) A certeza da vinda de Cristo nos enche de alegria cristã, ge­rando uma postura de vida inteiramente de acordo com os princípi­os do nosso Senhor.

2) “É estulto e temerário de coisas desconhecidas mais profun­damente indagar do que Deus nos permita saber.” 880

3) “Embora possa haver diferenças entre nós acerca dos diver­sos aspectos da escatologia, todos os cristãos deveriam aguardar ansiosamente pela volta de Cristo e deveriam viver à luz desta ex­pectação renovada cada dia.” 881

4) A Igreja já é vitoriosa em Cristo; contudo ela atenta para a Palavra de Deus a fim de viver dignamente no “já” do Reino, aguar­dando a consumação de sua salvação que já lhe está assegurada.

5) Nossas decisões de valor eterno são tomadas na história; hoje é o dia aceitável da salvação. Após a vinda de Cristo, a história chegará a seu fim; e o que fará diferença de fato é se temos ou não a Jesus como nosso Salvador.

6) “Ora, a morte está para cada indivíduo como a segunda vinda está para a humanidade inteira” .882

7) “Nosso Senhor tem que aparecer procedente do céu. Este é um dos principais artigos de nossa fé. Sua vinda não será inútil. Em conseqüência, temos que esperar essa vinda, aguardando nossa re­denção e salvação. Não temos que duvidar dela. Porque isso viola­ria tudo o que nosso Senhor Jesus Cristo fez e sofreu. Pois, por que desceu a este mundo? Por que foi vestido com carne humana? Por­que foi exposto à morte? Por que foi levantado da morte e elevado

880 João Calvino, A? Institu ías, III.25.6. “Porque são mui poucos entre a ingente multidão de hom ens que existe no mundo os que pretendem saber qual é o caminho para ir ao céu; porém todos desejam antes do tempo conhecer o que é que se faz nele” (João Calvino, Av Institu ías , 111.25.11). D o m esm o modo, diz Agostinho: “Ignoremos de boa mente aquilo que D eus não quis que soubéssem os” [Agostinho, C om entário ao s Salm os, São Paulo, Paulus (Patrística, 9 /1), 1998 (SI 6), Vol. I, p. 60],

881 A .A . H oekem a, A B íblia e o Fuiuro, p. 149.882 C.S. L ew is, P eso de G lória, 2a ed. São Paulo, Vida N ova, 1993, p. 50.

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XVII - A Segunda Vinda de Cristo 3ó5

ao céu? Assim, que esta vinda de nosso Senhor é para selar e ratifi­car tudo o que fez e sofreu para nossa salvação. Portanto, isto deve­ria ser o suficiente para nos fazer resistir a todas as tentações deste mundo.” 883

8) “Se Jesus admite ignorância da data de sua volta, então evi­dentemente ninguém ousará alegar tal conhecimento. Uma confis­são sincera de ignorância não será, portanto, simplesmente permis- sível e prudente, mas um reflexo da mente de Cristo.”884

883 Juan Calvino, Sermones Sobre la O bra Salvadora de C risto , p. 218.884 Bruce M ilne, Conheça a Verdade, p. 267.

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XVIII-O JUÍZO FINAL------------------------ ------------------------------------------

IN TRO D U ÇÃO

Vivemos num mundo marcado por valores contraditórios e ambi­valentes: O secularismo, em que os valores limitam-se apenas

a este século (mundo), nutrindo profundo menosprezo ou simples desinteresse condenatório pelo transcendente; e a mistificação da fé , que faz com que o homem projete sua “fé” de forma enganosa, infantil e irracional, falando candidamente de “energia”, “fluidos”, “pensamento positivo”, “energia das pirâmides” e de outras cren­dices semelhantes. Ambos os conceitos parecem ter em comum a idéia de não haver um juízo final de Deus. O primeiro, por negar o transcendente ou simplesmente não se importar com isso; o se­gundo, por crer, de alguma forma, num tipo de “purificação da alma”, ou na “bondade opcional do ser humano”. Assim, todos se­rão de alguma forma “salvos” de uma condenação que na prática não existe.

Uma outra idéia que amiúde caminha de mãos dadas com estas é a de que o juízo final se realiza todos os dias (A. Camus), confor­me a escolha voluntária do homem, que é senhor de seus atos, sen­do o tempo (“Tribunal do Tempo”, Sólon)885 ou a história o tribunal do mundo (F. Schiller). De fato, o juízo de Deus também se realiza na história (Dilúvio, Sodoma e Gomorra, exílio assírio e babilónico etc); todavia, a Bíblia também nos fala de um Juízo Final, quando haverá a consumação da história, tendo todos os homens que pres-

885 Cf. Werner Jaeger, L a Teologia de los Prim eiros Filosofas G riegos, M éxico, Fondo de Cultura Económ ica, 3a reimpresión, 1992, p. 41.

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XVIII - O Juízo Final 367

tar a Deus contas de seus atos, palavras e pensamentos.886Este é o assunto desse capítulo; vamos ao estudo.1. A NECESSIDADE E O PROPÓSITO DO JUÍZO FINAL

O pecado trouxe consigo a necessidade da manifestação do juí­zo de Deus. Adão e Eva, ao desobedecerem a Deus, tiveram sua sentença de morte decretada. Eles morreram espiritual e imediata­mente - ficando separados de Deus -; todavia, a morte física, que veio também como conseqüência do pecado (Gn 2.16,17; 3.11-24; Rm 5.12), não foi imediatamente executada, porque Deus usou de sua “Graça Comum”, protelando a execução de sua sentença (Gn 3.15); entretanto, seu juízo entrou em processo de concretização, tornando a vida uma caminhada para a morte.

Desde então, o pecado sujeitou o homem ao juízo histórico e eterno (Mt 5.21-22; 12.36; Rm 5.16; lTm 5.24); por isso, parte des­te juízo já é manifesto nesta vida (Jo 3.16-18), mas não totalmente; daí a perplexidade de alguns servos de Deus em determinados mo­mentos da história, quando o mal parece oprimir e esmagar o bem (SI 73.1-14; Hc 1.1-17; Ml 3.14-15).887Desta forma, podemos dizer que o Juízo Final tem como propósito:

1.1. Manifestar a Glória de Deus

“O fim que Deus tem em vista, determinando esse dia, é manifes­tar sua glória - a glória de sua misericórdia na eterna salvação dos eleitos, e a glória de sua justiça na condenação dos réprobos, que são perversos e desobedientes”888 (Rm 2.5-6; 9.20-23; E f 2.4-7).

886 «As proposições sobre o julgam ento futuro são tão freqüentes e tão fundamentais para o pensam ento dos escritores bíblicos que nenhuma teologia que deixe de fazer justiça a isso pode ser considerada coerente com a fé do N ovo Testamento» (Leon Morris, A Doutrina do Julgamento na Bíblia: ln: Russel P. Shedd & Alan Pieratt, eds. Im ortalidade, São Paulo, Vida N ova, 1992, pp. 52-53).

881 Vejam -se João Calvino, A t ínstitu tas, II.10.17ss. D .M . Lloyd-Jones, P or Que P rospe­ram os ím pios? , São Paulo, Publicações Evangélicas Selecionadas, 1983, p. 145.

888 Confissão de Westminster, 33.2. “Quando o D eus santo se m anifesta em justo ju ízocontra os m alfeitores, e le é ‘santificado’, isto é, sua santidade é revelada e vindicada. Essesatos de poder e de justiça declaram a grandeza de Deus e manifestam sua glória perante os

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370 EU CREIO.

tado para fazê-lo (IPe 4.5).894 Apesar de muitos não lhe terem feito justiça em sua primeira vinda (Is 53.7-8; At 8.32-33), rejeitando-o juntamente com sua mensagem de salvação, Cristo julgará integra­mente, sendo seu juízo:

1) Justo■ Jo 5.30; At 17.31; Rm 2.5; Ap 16.7; 19.2.2) Verdadeiro: Jo 8.16; Rm 2.2; Ap 16.7; 19.2.3) Reto: 2Ts 1.5; 2Tm 4.8; IPe 2.23.4) Sem acepção de pessoas: IPe 1.17.5) Revelador: ICo 4.5.O juízo de Cristo será íntegro devido à sua própria natureza, e

também devido à sua onisciência: nada ficará oculto diante do seu escrutínio (Mt 10.26; Lc 8.17; Rm 2.16; ICo 4.5). Todavia, como acentua Bavinck (1854-1921), “.... quando Cristo começar a julgar, nós sabemos que tipo de julgamento será esse: misericórdia e gra­ça, e ao mesmo tempo perfeita justiça. Ele conhece a natureza do homem e tudo o que há nela; ele conhece os lugares secretos do coração e pode detectar nele todo mal e corrupção, mas ele vê tam­bém o menor vestígio de fé e de amor que estiver presente ali. Ele não julga de acordo com a aparência, nem de acordo com pessoas, mas de acordo com a verdade e com a justiça.” 895

4. A AMPLITUDE DO JULGAMENTO

Veremos, neste capítulo, quem passará pelo Juízo Final:4.1. Todos os Homens Individualmente

Deus é o Juiz de todos (Hb 12.23). Portanto, todos os homens comparecerão diante de Cristo, e cada um dará contas de si mesmo; nossa responsabilidade é pessoal e intransferível (Mt 12.36-37; Rm 3.6; 14.10-12; 2Co 5.10; 2Tm 4.1; Jd 14-15; Ap 20.12-13). Nin­guém escapará (Rm 2.3);896o juízo será extremamente meticuloso e

894 Este é o sentido do advérbio utilizado por Pedro: étoíiküç (* At 21.13; 2C o 12.14; IPe 4.5).

895 Herman Bavinck, O ur Reasonable Faith, 4a ed. Grand Rapids, M ichigan, Baker Book House, 1984, p. 564.

896 Calvino (1509-1564) interpretando o salmo de D avi, diz que inutilmente “....Os maus

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revelador (Rm 2.16; ICo 4.5). Os eleitos serão julgados não para condenação - visto que já não há condenação para os que estão em Cristo: seus pecados foram perdoados (Rm 8.1, 33-34) - , mas o serão no que se refere ao galardão (Jo 5.24; ICo 3.10-15; 4.5; Hb 10.30; Ap 11.18).

4.2. Os Anjos Réprobos897

Todos os anjos que se rebelaram contra Deus serão condenados juntamente com seu chefe, Satanás. Falando a rigor, sua condena­ção será apenas executada: Satanás já foi julgado e condenado (Mt 8.29; Jo 12.31; 16.11; ICo 6.3; 2Pe 2.4; Jd 6).898

5. O CRITÉRIO DE JULGAMENTO E A DURAÇÃO DA BEM- AVENTURANÇA E DA SENTENÇA

5.1. O Critério de Julgamento

O critério fundamental do Juízo Final será a vontade revelada de Deus, tendo como elemento decisório a aceitação ou rejeição de Cristo como Salvador pessoal. Os homens que, tendo ouvido a men­sagem do evangelho, rejeitaram deliberada e definitivamente a Cris­to, terão sua sentença de condenação homologada, visto que rejei­tar a Cristo já implica condenação ainda nesta vida (Jo 8.18-19; 12.48; At 4.12; 2Ts 2.12; Jo 14.6).

George E. Ladd (1911-1984) diz:“Para os que crêem, o juízo com efeito já aconteceu e eles foram absolvi-

dos e encontrados justos. Para os que não crêem, seu destino está selado,seu juízo é certo, e a razão é que eles foram colocados face a face com a luz,

pensam em escapar em sua iniqüidade, mas que D eus os lançará abaixo. (...) Em nossa própria época, vem os tantos caracteres profanos que exibem uma desm edida audácia escu­dados na certeza de que a mão de Deus jam ais os alcançará. Não só buscam a impunidade, mas fundamentam suas esperanças de êxito em seus malfeitos e se animam em intensificar a perversidade nutrindo a opinião de que excogitarão uma via de escape da própria adversida­de” [João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo, Parakletos, 1999, Vol. 2 (SI 56.7), p. 499].

81,7 Não tem os base bíblica suficiente para afirmar que todos os anjos serão julgados. O texto de IC o 6.3 não nos parece autorizar a considerar todos os anjos.

898 Vd. C atecism o M aior de Westminster, 33.1.

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372 EU CREIO.

mas a rejeitaram. Portanto, o juízo final será na realidade a execução dodecreto de juízo que já se passou.”899

Lembremo-nos: A Palavra de Deus é discernidora (Hb 4.12-13).Já vimos que o julgamento dos eleitos não será condenatório.

Todavia, a questão que persiste é: como será então seu julgamento? E os ímpios terão todos os mesmos critérios?

5.2. A Gradação da Bem-aventurança e da Penalidade

Nós somos salvos pela graça de Deus mediante a fé (Ef 2.8). Isto distingue os salvos dos condenados: os salvos pela graça rece­beram a Cristo como Senhor (Jo 1.12; G1 3.26); os condenados o rejeitaram (Jo 1.11; 3.19).

A Bíblia também nos diz que todos serão julgados por suas obras, nada ficando encoberto; o homem responderá diante do Juiz por suas palavras (Mt 12.36; Jd 15), obras (Hb 13.4; IPe 1.17; Jd 15; Ap 20.12-13; Ec 12.14) e desígnios do coração (Rm 2.16; 1Co4.5), tornando-se tudo público (Mc 4.22; Lc 8.17; 12.2-3). Só não temos condições de precisar se os pecados dos eleitos serão ou não publi­cados; todavia, se isso acontecer, será apenas para realçar ainda mais a glória do Salvador.900 (Vejam-se Mt 6.4, 6 , 18; 10.26; 25.35- 40; Ef 6 .8; lTm 5.24-25; Hb 6.10.)

5.2.1. Os ímpios

Na promulgação do juízo daqueles que o rejeitaram, o Juiz le­vará em conta o grau de conhecimento que tiveram da verdade re­velada de Deus, avaliando as oportunidades que tiveram. Maiores oportunidades, maior rigor. Ninguém será salvo por “ignorância” do evangelho; todavia, isto será levado em consideração; não para a salvação, mas para a atenuação da pena.

Os homens que viveram a partir da nova dispensação (a partir dos dias de Cristo), em princípio estarão sujeitos a maior severida­

899 G eorge E. Ladd, Teologia do N ovo Testamento, p. 292.900 L. Berkhof, Teologia Sistem ática, p. 740; A .A . Hodge, Esboços de Theologia, Lisboa,

Barata & Sanches, 1895, p. 541; W ayne A. Grudem, Teologia Sistem ática , p. 978.

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XVIII - O Juízo Final 373

de no juízo, devido à possibilidade de acesso à Revelação escrita completa de Deus. “Aqueles que receberam a revelação completa da vontade de Deus, tanto no Velho Testamento como no Novo Tes­tamento, serão julgados por sua reação a toda a Bíblia. Aqueles que tiveram apenas a revelação do Velho Testamento serão julgados por sua reação ao Velho Testamento. Em apoio a isso, podemos lem­brar que os profetas do Velho Testamento advertiram repetidamen­te a seus ouvintes a que vivessem de acordo com o que Deus lhes tinha revelado, e dessa forma encontrassem paz, felicidade e sal­vação.” 901

Aqueles que desfrutaram de maiores estímulos externos para o conhecimento salvador de Cristo, mas que permaneceram rebeldes, serão condenados com maior gravidade (Mt 10.15; 11.22, 24; Mc 6.11; Lc 10.11; 12.48; Rm 2.12). Do mesmo modo os falsos mestres que induziram o povo ao erro (Tg 3.1; 2Pe 2.1-3). Calvino argu­menta: “Aqueles a quem Deus tem poupado nesta vida receberão sobre si a aplicação de um castigo mais severo, visto que têm adici­onado sua rejeição do convite paternal de Deus a suas demais per- versidades. Ainda que todos os favores divinos sejam inumerá­veis provas de sua paternal bondade, todavia, visto que às vezes ele tem diferentes objetivos em vista, os ímpios se equivocam ao vanglo- riar-se de sua prosperidade, como se fossem os bem-amados de Deus, ao mesmo tempo que este paternal e liberalmente os sustenta.” 902

Por outro lado, os que não tiveram conhecimento da Palavra de Deus escrita serão julgados e condenados, tendo como base o grau de revelação que possuíam. A Revelação Geral de Deus tornou os

A .A . Hoekema, A B íblia e o Futuro, p. 346. Na m esm a linha de pensamento, temos: A .A . Hodge, E sboços de Theologia, p. 541; W. Hendriksen, A Vida Futura: Segundo a B íblia , pp. 212-213; George E. Ladd, Teologia do N ovo Testamento, p. 522; R.L. Dabney, Lectures in System atic Theology, p. 848; G.E. Ladd, Escatologia: In: J.D, D ouglas, ed. ger.O N ovo D icionário da B íblia , São Paulo, Junta Editorial Cristã, 1966, Vol. I, p. 513; Char­les H odge, System atic Theology, Grand Rapids, M ichigan, Eerdmans, 1976 (reprinted), Vol. I ll, p. 850; Bruce M ilne, Conheça a Verdade, São Paulo, A B U , 1987, pp. 279, 281; R.C. Sproul, R azão p a ra Crer, São Paulo, Mundo Cristão, 1986, pp. 39-40; J.I. Packer, Teologia Concisa, São Paulo, Editora Cultura Cristã, 1999, p. 236.

902 João Calvino, Rom anos, T ed. São Paulo, Parakletos, 2001 (Rm 2.4), p. 81.

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homens indesculpáveis (Rm 1.18-25; Rm 2.12, 14-16; ler também Lc 12.47-48; Jo 9.41; 15.22).

A Revelação de Deus na natureza é tão eloqüente (SI 19.1; At 14.17; Rm 1.18-20) que “até os mais incultos e rudes, somente com a ajuda dos olhos, não podem ignorar a excelência desta tão mara­vilhosa obra de Deus, que por si mesma se manifesta de tantas ma­neiras.” 903 Calvino (1509-1564) continua: “O homem foi criadopara ser um espectador do mundo criado, e que ele foi dotado com olhos com o propósito de ser guiado por Deus mesmo, o Autor do mundo, para a contemplação de tão magnificente imagem .”904 Desta forma, os homens poderão alegar ignorância a respeito da obra de Cristo, mas não ignorância do Pai, visto que a Criação não ficou sem dar o testemunho de sua existência e bondade (At 14.17).

Na Antigüidade, Cícero (106-43 a.C.), Plutarco (50-125 AD) e outros constataram este fato. Cícero observou que não há povo tão bárbaro, não há gente tão brutal e selvagem, que não tenha em si a convicção de que há Deus.905 Calvino (1509-1564) acentua que “A aparência do céu e da terra compele até mesmo os ímpios a reco­nhecerem que algum criador existe. (...) Certamente que a religião nem sempre teria florescido entre todos os povos, se porventura as mentes humanas não se persuadissem de que Deus é o Criador do mundo.” 906 “Portanto, até os próprios ímpios são para exemplo de que vige sempre na alma de todos os homens alguma noção de D eus.”907

Calvino (1509-1564), discorrendo sobre a revelação de Deus na Natureza, diz: “Em toda a arquitetura de seu universo, Deus nos imprimiu uma clara evidência de sua eterna sabedoria, munificên-

903 João Calvino, Ar Instituías, 1.5.2.904 João Calvino, E xposição cle Rom anos, São Paulo, Parakletos, 1997 (Rm 1.19), p. 65.

“A s mentes humanas são cegas a essa luz, a qual resplandece em todas as coisas criadas, até que sejam ilum inados pelo Espírito de Deus e com ecem a compreender, pela fé, que jamais poderão entendê-lo de outra forma” [João Calvino, Exposição de H ebreus, São Paulo, Pa­rakletos, 1997 (Rm 11.3), p. 299],

905 Vd. Cicero, The Nature o fT h e G ods, England, Pinguin Books, 1972,1.17; 11.4.906 João Calvino, Exposição de H ebreus (Hb 11.3), p. 299.907 João Calvino, A t Insliíuías, 1.3.2.

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XVIII - O Juízo Final 375

cia e poder; e embora em sua própria natureza nos seja ele invisível, em certa medida se nos faz visível em suas obras. O mundo, portan­to, é com razão chamado o espelho da divindade, não porque haja nele suficiente clareza para que os homens alcancem perfeito co­nhecimento de Deus, só pela contemplação do mundo, mas porque ele se faz conhecer aos incrédulos de tal maneira que tira deles qual­quer chance de justificarem sua ignorância. (...) O mundo foi fun­dado com esse propósito, a saber: para que servisse de palco à gló­ria divina.” 908 “.... Este mundo é semelhante a um teatro no qual o Senhor exibe diante de nós um surpreendente espetáculo de sua glória.”909 Ele entende que “o princípio da religião” que é implanta­do nos homens é uma das evidências de sua “preeminente e celesti­al sabedoria” .910 Em outro lugar, observando que “no coração de todos jaz gravado o senso da divindade” ,911 argumenta que a tentati­va humana de negar a Deus nada mais é do que uma revelação do “senso da divindade que, tão ardentemente, desejariam extinto” .912 Conclui que é impossível haver verdadeiro ateísmo.

O evangelho da graça de Deus é uma espada de dois gumes; significando vida para os que o recebem e morte com agravantes para aqueles que o rejeitam. O conhecimento que temos de Deus é responsabilizador!

Este assunto traz consigo o problema da “blasfêmia contra o Espírito Santo”. Este pecado, para o qual não há perdão, consiste

908 João Calvino, E xposição de H ebreus (Hb 11.3), pp. 300-301. “Nas coisas que ele criou, D eus, portanto, mantém diante de nós nítido espelho de sua esplendorosa sabedoria. Em resultado, qualquer indivíduo que desfrute de pelo m enos uma minúscula fagulha de bom senso, e atenta para a terra e outras obras divinas, se vê aturdido por candente admira­ção por Deus. Se os hom ens chegassem a uma genuíno conhecim ento de Deus, pela obser­vação de suas obras, certamente que viriam a conhecer a Deus de uma forma sábia, ou daquela forma de adquirir sabedoria que lhes é natural e apropriada” [João Calvino, E xpo­sição de I C oríntios, São Paulo, Parakletos, 1996 (IC o 1.21), p. 62].

909 João Calvino, Exposição de I Coríntios (IC o 1.21), p. 63.910 João Calvino, O Livro dos Salm os, Vol. 1 (SI 8.5), p. 167.911 João Calvino, A s Instituías, 1.3.1. “Sabem os, aliás, que todos os hom ens possuem

algum senso da religião impresso em seus corações, de m odo que ninguém ousa desvenci­lhar-se pública ou totalmente de seu culto” [João Calvino, O L ivm dos Salm os, Vol. 2 (SI 40 .6), p. 224],

912 João Calvino, A.v Instituías, 1.3.3.

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376 EU CREIO.

no abandono deliberado da fé evangélica por parte daqueles que desfrutaram de sua realidade e de seus privilégios, atribuindo a Sa­tanás, de forma consciente, deliberada, arrogante e despreocupada,0 que é obra do Espírito Santo de Deus, tornando-se frontal e posi­tivamente inimigo de Deus. Este pecado é imperdoável, porque Deus entregou tais homens a si mesmos (Mt 12.31-32; Hb 6.4-6; 10.26, 27, 29; lJo 5.16).913 Creio que para estes a penalidade será a mais severa de todas.

5.2.2. Os Salvos

Já vimos que nossa salvação é obra da graça de Deus. Nossos pecados foram cancelados pelos méritos de Cristo (Rm 8.1, 33, 34; Cl 2.13-14). Todavia, o modo como vivemos aqui na terra, usando os talentos que Deus nos confiou para seu serviço, bem como nossa fidelidade integral à Palavra de Deus, redundará no “galardão” (re­compensa) que será também “não um salário ganho por méritos humanos, mas uma recompensa da graça”914(Lc 17.10; ICo 4.7;

513 Vd. Hermisten M.P. Costa, A Pessoa e O bra do E spírito Santo, São Paulo, 2002, passim . Sugestões para leitura: H.W. Beyer, B>.aa<f>r||xía: In: G. Kittel & G. Friedrich, eds. T heological D ictionary o f the N ew Testam ent, Vol. I, pp. 621 -625; G. Hendriksen, El Evan- gelio Segun San M ateo, Grand Rapids, M ichigan, Subcom ision Literatura Cristiana, 1986, pp. 553-555; O. Hofius, BXacr<|)r||xia: In: Horst Balz & Gerhard Schneider, eds. Exegetical D ictionary o f N ew Testament, Grand Rapids, M ichigan, Eerdmans, 1978-1980, Vol. I, pp. 219-221; W. Währisch & C, Brown, Blasfemar: In: Colin Brown, ed. ger. O N o v o D icioná­rio Internacional de Teologia do N ovo Testamento, São Paulo, Vida N ova, 1981-1983, Vol.1 pp. 312-316; P.H. D avis, Blasfêm ia e Blasfêm ia contra o Espírito Santo: In: Walter A. E lw ell, ed. E nciclopédia H istórico-Teológica da igreja Cristã, São Paulo, Vida Nova, 1990, Vol. 1, pp. 196-198; R.P. Martin, Blasfêmia: In: J.D. Douglas, ed. org. O N ovo D icionário da B íblia , Vol., I, pp. 221-222; Frank Stagg, Mateus: In: Clifton J. A lien, ed. ger. C om entá­rio B íblico Broadm an, R io de Janeiro, JUERP, 1983, Vol. VIII, p. 190; Russel N. Champ- lin, O N ovo Testamento Interpretado, Guaratinguetá, SP, A Voz Bíblica (s.d.), Vol. I, pp. 391-392; J.A. Broadus, Com entário do Evangelho de M ateus, 3" ed. R io de Janeiro, Casa Publicadora Batista, 1966, Vol. I, pp. 356-358; Alexander B. Bruce, The Synoptic Gospels: In: W. Robertson, N icoll, ed. The E x posito r’s G reek Testament, Grand Rapids, M ichigan, Eerdmans, 1983 (reprinted), Vol. I, pp. 188-190; W illiam Barclay, El N uevo Testamento Comentado, Buenos Aires, La Aurora, 1973, Vol. II, pp. 48-53; J.I. Packer, Teologia Concisa, pp. 225-226; Sinclair B. Ferguson, O Espírito Santo, São Paulo, Editora Os Puritanos, 2000, pp. 65-66; Herman Bavinck, O ur Reasonable Faith, pp. 252-254; Edwin H. Palmer, El Espi- ritu Santo, Edinburgh, El Estandarte de la Verdad (s.d.), Edição Revista, pp. 226-238.

914 G. Hendriksen, El Evangelio Segun San M ateo, p. 295. Veja-se também D. Martyn Lloyd-Jones, Estudos no Sermão do M onte, São Paulo, FIEL, 1984, p. 133ss.

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XVIII - O Juízo Final 3 77

2Co 3.5; ICo 15.10; M t5 .l l , 12, 19; 25.23; Mc 9.41; Lc 6.35; ICo 3.8-15). Do mesmo modo, Calvino escreve: “Uma recompensa se encontra reservada para as obras, sim, mas não com base nos méritos, e, sim, com base na livre e espontânea generosidade divina, e mesmo essa graciosa recompensa das obras não ocorre senão depois de ser­mos recebidos na graça por meio da misericórdia de Cristo.” 915

Deus deseja que seus filhos mostrem sua fé através das obras, já que as obras evidenciam a fé (Tg 2.14-26). Foi para as “boas obras” que Deus nos destinou (Ef 2 .10).916 Onde não há fé, não existem boas obras.917

5.3. A Duração da Bem-aventurança e da CondenaçãoA salvação e a condenação promulgadas por Cristo serão eter­

nas: a categoria “tempo” já não existirá. Não haverá oportunidade de retrocesso, nem nova chance. Tudo estará definitivamente con­sumado! (Mt 25.41, 46; Mc 9.43; Jo 3.15-16; 5.24; Hb 9.27).6. ATITUDES PARA COM A CERTEZA DO JUÍZO FINAL

O estudo desta doutrina, longe de ocasionar nosso temor, deve conduzir-nos à glorificação de Deus, considerando seu grande amor com que nos amou, levando-o a executar seu plano até o fim, con­cluindo definitivamente a salvação de seu povo, escolhido desde toda a eternidade, libertando-o da influência do pecado e de Sata­nás. Assim, nossa atitude hoje deve ser de:

6.1. Arrependimento dos Pecados PassadosA mensagem do evangelho sempre nos desafia ao arrependi­

mento e à submissão a Cristo (At 17.30-31). Preparamo-nos para o juízo tendo uma vida de arrependimento. “As coisas neste mundo não são governadas de uma maneira uniforme. (...) Deus reserva uma grande parte dos juízos que ele propõe executar para o dia

1J15 João Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo, Parakletos, 1997 (Hb 6.10), p. 159.9,6 Vd. Hermisten M. P. Costa, A Salvação e as Boas O bras, São Paulo, 1991, passim .,n Vd. Agostinho, Com entário aos Salm os, São Paulo, Paulus (Patrística, 9/1), 1997 [SI

(32)31 .4], Vol. 1, pp. 352-353.

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378 EU CREIO.

final, para que nós estejamos sempre em suspenso, esperando a vin­da de nosso Senhor Jesus Cristo.” 918

6.2. Confiante Expectativa de Nossa Completa RedençãoA proximidade da volta de Cristo e a execução do juízo reves­

tem-se para nós de grande alegria visto que ali o Senhor consumará sua salvação em nós (Hb 9.28).

No Juízo, “os crentes e eleitos (...), serão coroados de honra e glória. O Filho de Deus confessará seus nomes diante de Deus, seu Pai (Mt 10.32), e de seus anjos eleitos, e Deus lhes enxugará dos olhos toda lágrima (Ap 21.4). E reconhecer-se-á que sua causa, hoje condenada por muitos juizes e autoridades como herética e ímpia, é a causa do Filho de Deus. E como galardão pela graça o Senhor os fará possuir tamanha glória que o coração humano jamais poderia imaginar. Por isto esperamos por aquele grande dia com forte an­seio para gozar plenamente das promessas de Deus em Jesus Cris­to, nosso Senhor.” 919

6.3. Confiança: 1Jo4.17O Dia do Juízo é o dia da “premiação” dos escolhidos de Deus

(Ap 11.18);920por isso, é para nós, os crentes em Cristo, uma grande fonte de conforto.

No Catecismo de Heidelberg, lemos na pergunta 52:"Que conforto a volta de Cristo 'para julgar os vivos e os mortos’ te oferece?"

Resposta: “Q ue em toda aflição e perseguição posso esperar, de cabeça erguida, o verdadeiro Juiz do céu, que já se submeteu ao julgamento de Deus por mim e de mim removeu toda a maldição; que ele lançará todos os seus e os meus inimigos na condenação eterna, mas, juntamente com todos os eleitos, me tomará para si mesmo na alegria e glória celestial.”921

918 Juan Calvino, El U so Adecuado de la Afliccion: In Sermones Sobre Job, Jenison, M ichigan, T.E.L.L., 1988 (Serm on n° 19), p. 226.

9,9 Confissão Belga, Art. 37.920 Vd. W ayne A. Grudem, Teologia Sistem ática, p. 977.921 y er também: C atecism o M aior de Westminster, Perg. 90.

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XVIII - O Juízo Final 379

6.4. Usar Nossos TalentosDeus nos pedirá conta de tudo o que nos confiou como servos a

quem compete administrar os bens que lhe foram entregues (Mt 25.14-30).

6.5. AlegriaA perspectiva do Juízo Final deve encher-nos de alegria. Jesus

Cristo fará justiça (Ap 18.20)6.6. Entregar a Deus Todas as Injustiças SofridasNão pertence a nós a vingança; a justiça pertence a Deus, Aque­

le que julga com justiça (Rm 12.17-19; lP e2 .23; Ap 18.20). D eve­mos aprender com Cristo seu exemplo de submissão e perdão (IPe 2.22-23).922 Comentando o Salmo 62, Calvino (1509-1564) escreve: “O Deus que governa o mundo por sua providência o julgará com justiça. A expectativa disto, devidamente apreciada, terá um feliz efeito na disposição de nossa mente, acalmando a impaciência e restringindo qualquer disposição ao ressentimento e retaliação em face de nossas injúrias.” 923

6.7. Proclamar o JuízoA doutrina do Juízo Final é um estímulo à evangelização. A

proclamação do Juízo não consiste numa tentativa de “converter” o homem pelo temor, mas, sim, no testemunho real do desígnio final de Deus, quando ele consumará todas as coisas. Paulo declara que o juízo de Deus se manifestaria conforme o evangelho por ele anun­ciado, indicando assim que o anúncio do evangelho engloba a de­claração do justo juízo de Deus (cf. Rm 2.16; 1.17).

O juízo vindouro faz parte essencial da proclamação cristã. Pe­dro, quando vai a Cesaréia pregar ao centurião Cornélio, durante

'm Vd. W ayne A. Grudem, Teologia Sistem ática , p. 981.<m João Calvino, O Livro dos Salm os, Vol. 2 (SI 62 .12), p. 584. Em outro lugar: “Embora

Deus, por algum tempo, permaneça quieto e delongue seus juízos, contudo o m om ento da vingança certamente virá” [João Calvino, O Livro dos Salm os, Vol. 1 (SI 11.6), p. 242],

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380 EU CREIO.

sua exposição diz que Jesus, depois da ressurreição, “nos mandou pregar ao povo e testificar que ele é quem fo i constituído p o r Deus Juiz de vivos e de mortos" (At 10.42). Paulo, pregando em Atenas (At 17.18) no Areópago, declara que Deus “estabeleceu um dia em que há de ju lgar o mundo com justiça por meio de um varão que destinou e creditou diante de todos, ressuscitando-o dentre os mor­tos” (At 17.31; Mt 12,18, 20). Da mesma forma, Lucas registra que diante de Félix, Paulo, falando a respeito da fé em Cristo, dissertava “acerca da justiça, do domínio próprio e do juízo vindouro” (At24.25). A paciência de Deus visa também a dar oportunidade para que os homens se arrependam de seus pecados (2Pe 3.9).

IMPLICAÇÕES DOUTRINÁRIAS E PRÁTICAS1) “... pois nada parece mais rápido do que tudo aquilo que já

passou. Quando vier o dia do juízo, então os pecadores perceberão não ser longa a vida que passa” .924

2) A história caminha de forma irreversível para o Dia do Juízo, quando Cristo, o Senhor da História, julgará a todos os homens. “O conceito grego de história, como um processo cíclico, trancava os homens num moinho onde eles podiam lutar com todas as forças, mas nem deuses nem homens conseguiam avançar. O conceito cris­tão do julgamento indica que a história caminha rumo a um objeti­vo .” 925

3) O Juízo Final revelará de forma plena a Cristo como o Rei Eterno.

4) Jesus Cristo julgará conforme sua Palavra registrada nas Es­crituras. Nós, que temos a Escritura completa, dispomos de todo o desígnio de Deus revelado. Este privilégio nos torna mais responsá­veis diante de Deus (Mt 11.20-24).

5) Não sabemos ao certo no que consistirá o “galardão”; porém1.24 Agostinho, Com entário aos Salm os, São Paulo, Paulinas, 1 9 9 7 ,1X/1, 13, p. 70.1.25 Leon Morris, A Doutrina do Julgamento na Bíblia: In: Russel P. Shedd & Alan Pieratt,

eds. Im ortalidade, p. 62.

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XVIII - O Juízo Final 381

é possível que seja um grau de responsabilidade maior, fruto da nossa fidelidade a Deus (Mt 25.14-30).

6) Nossa responsabilidade diante de Deus é individual. D eve­mos viver de modo justo e santo diante de Deus.

7) Diante do Tribunal de Cristo, seria impossível ao homem ser salvo; todavia, nós o seremos pelos méritos redentores de Cristo.

8) Deus nos julga hoje, disciplinando-nos, para que, agora cor­rigidos, não sejamos condenados com o mundo (IC o 11.31-32; Hb12.4-13; Ap 3.19).

9) “O julgamento de vivos e mortos é a finalização de sua obra como Mediador, o último passo em sua exaltação. Desse julgamen­to se tornará manifesto que ele realizou plenamente todas as coisas que o Pai lhe confiara para que ele as realizasse, que ele colocou todos os seus inimigos debaixo de seus pés, e que ele perfeita e eternamente redimiu toda a sua Igreja.” 926

10) “O medo não abre as portas do céu, e quem por receios quiser fazer a vontade de Deus certamente não o fará. Somente cum­prirá a vontade de Deus aquele que ama o Senhor de todo o cora­ção, confia inteiramente nele e em sua misericórdia” .927

11) “Quando, pois, a fraude, a astúcia, a traição, a crueldade, a violência e a extorsão reinam no mundo; em suma, quando todas as coisas são arremessadas em total desordem e escuridão, pela injus­tiça e perversidade, que a fé sirva como uma lâmpada a capacitar- nos para visualizarmos o trono celestial de Deus, e que essa visão nos seja suficiente para fazer-nos esperar pacientemente pela res­tauração das coisas a um melhor estado.” 928

m Herman Bavinck, O ur Reasonable Faith, p. 564.‘J27 Emil Brunner, N ossa Fé, 2“ ed. São Leopoldo, R S, Sinodal, 1970, pp. 118-119.m João Cal vino, O Livro dos Salm os, Vol. 1 (SI U .4), p. 240.

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XIX - CREIO NO ESPÍRITO SANTO: SUAS PERFE1ÇÕES E DIVINDADE929------------------------------------------- -------------------------------------------------------------

“A graça do Espírito é verdadeiramente necessária para tratar do Espírito Santo; não a fim de oue possamos falar dele como corresponde - poroue isso é impossível

senão para oue possamos atravessar este tema sem perigo, dizendo o Que está contido nas divinas Escrituras.” - Cirilo de (erusalém (c. 3 15-386), The Cateche­tical Lectures, XVI. 1.93°

INTRODUÇÃO

A Pessoa e Obra do Espírito Santo têm sido esquecidas!! Talvez nosso século tenha sido um dos mais omissos quanto ao Espíri­to Santo. Paradoxalmente, quando consultamos os catálogos de li­

vros evangélicos, “navegamos” na “internet” ou adentramos livra­rias de material evangélico,931 nos surpreendemos com a quantida­de de livros, opúsculos, sermões, apostilas, cursos, fitas de vídeo, “K7” e outros meios semelhantes sobre o Espírito. De fato, reafir­mo, o Espírito tem sido esquecido!

O Espírito tem sido esquecido porque os discursos modernos sobre ele parecem não estar sendo “elaborados” no Espírito, em submissão ao Espírito. Parece-me que a tentação humana é de ir “além” do que o Espírito vai e, portanto, quer de nós, e, curiosa-

m Uma abordagem mais ampla sobre o assunto, apresentamos em outro trabalho: A Pessoa e O bra do E spírito Santo, São Paulo, 2000 (trabalho mimeografado).

M0In: NPNF2., Vol. VII, p. 115.1,31 Esta é também uma preocupação do movimento carismático dentro da Igreja Católica.

Vd. Hermann Brandt, O R isco do Espírito: Um Estudo Pneum atológico, São Leopoldo, RS, Sinodal, 1977, pp. 7-8.

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XIX- Creio no Espírito Santo: Suas Perfeições e Dividade 383

mente, essas tentativas são permeadas por um discurso “libertador” do Espírito. No entanto, segundo nos parece, todas as vezes que tratamos do Espírito alheados de seu próprio desejo - conforme registrado nas Escrituras nos esquecemos do Espírito; ele passa a ser o tema de nossas cogitações, não de sua revelação. Temos nos esquecido do Espírito!

O ministério do Espírito só pode ser compreendido e avaliado de modo correto dentro da perspectiva cristocêntrica; um enfoque sem esta consideração consiste num esquecimento do Espírito por maior que seja nosso desejo de “reabilitá-lo” à igreja. Quando a igreja compreende adequadamente quem é Cristo e seu ministério, ela honra o Espírito, porque este conhecimento só pode ser alcança­do por obra de Deus (Mt 11.27; 16.17), e é o Espírito de Deus que nos conduz à verdadeira compreensão de Cristo. A confissão de Cristo por parte da Igreja é, de certa forma, a glória do Espírito (Jo 14.26; 15.26; 16.13-15; ICo 12.3). Bruner, analisando a atitude de Paulo em relação a alguns discípulos em Éfeso que nada sabiam sobre o Espírito Santo (At 19.1-7), mostra que o apóstolo passou a ensinar-lhes sobre o batismo de Jesus (At 19.4). Conclui: “Este fato é relevante. O remédio para aqueles que sabem pouco ou nada acer­ca do Espírito Santo não é instrução especial sobre ele, nem o co­nhecimento sobre o acesso ao Espírito, nem uma nova coleção de condições, um novo regime de esvaziamento, de obediências adici­onais, de dedicação mais profunda, ou de orações ardentes, mas, pelo contrário, simplesmente o grande fato: o evangelho da fé no Senhor Jesus Cristo e o batismo em seu nome.” 932

O Espírito - como Deus - deve ser estudado dentro da perspec­tiva de sua Palavra, em harmonia com seus propósitos. Qualquer esforço que ultrapasse ou diminua isto, significa esquecer o Espíri­to, alhear-se de sua vontade.

Lembremo-nos do Espírito, considerando-o tão-somente a par­tir de sua revelação, dentro do dimensionamento dado por ele mes­mo a respeito de si. O limite de nosso conhecimento está configura-

‘m Frederick D. Bruner, Teologia do Espírito Santo, São Paulo, Vida Nova, 1983, p. 160.

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384 EU CREIO.

do nos parâmetros da revelação; tentar ultrapassá-los, além de in­frutífero, é loucura (Dt 29.29).933

Quando Cristo é compreendido dentro da dimensão do revela­do, isto significa que o Espírito tem sido considerado, porque seu testemunho foi aceito: “Quando, porém, vier o Consolador, que eu vos enviarei da parte do Pai, o Espírito da verdade, que dele proce­de, esse dará testemunho de mim”, disse Jesus Cristo (Jo 15.26).

No entanto, a observação de Kuyper, feita em 1888, permanece como um alerta para todos nós:

“Ainda que honremos o Pai e acreditemos no Filho, vivemos muito pou­co no Espírito Santo! Parece-nos algumas vezes até que somente para a nossa santificação o Espírito Santo é acrescentado acidentalmente à gran- de obra redentiva.

“Esta é a razão por que nossas mentes se ocupam tão pouco com o Espí­rito Santo; porque no ministério da Palavra ele é pouco honrado; porque o povo de Deus, quando se curva suplicante diante do Trono da Graça, faz dele tão pouco o objeto de sua adoração. Sente-se involuntariamente que ele recebe uma porção muito exígua de nossa piedade, que já é bastante pequena.”934

1. UM PANORAMA HISTÓRICONo final do segundo século, Irineu (c. 130-200 AD) testemunha

que a Igreja de Deus, espalhada por toda face da terra, declarava sua fé trinitária - conforme recebera dos discípulos - , a saber: “a fé em um só Deus, Pai onipotente, que fez o céu e a terra, o mar e tudo quanto nele existe; em um só Jesus Cristo, Filho de Deus, encarna-

1,33 Tenho aqui em mente as oportunas observações de Calvino: “A s cousas que o Senhor deixou recônditas em secreto não perscrutemos, as que pôs a descoberto não negligencie­m os, para que não sejamos condenados ou de excessiva curiosidade, de uma parte, ou de ingratidão, de outra" (As Institutas, 111.21.4). “Tudo o mais que pesa sobre nós e que deve­mos buscar é nada sabermos senão o que o Senhor quis revelar à sua igreja. Eis o lim ite de nosso conhecim ento” [João Calvino, Com entário à Sagrada Escritura: E xposição de 2 C oríntios, São Paulo, Edições Parakletos, 1995 (2C o 12.4), pp. 242-243]. “....Que esta seja a nossa regra sacra: não procurar saber nada mais senão o que a Escritura nos ensina. Onde o Senhor fecha seus próprios lábios, que nós igualmente impeçamos nossas mentes de avançar sequer um passo a m ais” [J. Calvino, Exposição de Rom anos, São Paulo, Parakletos, 1997 (Rm 9.14), p. 330],

934 Abraham Kuyper, The Work o f th e H oly Spirit, pp. X V -X V I.

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XIX - Creio no Espírito Santo: Suas Perfeições e Dividade 385

do para nossa salvação; e no Espírito Santo que, pelos profetas, anunciou a economia de Deus.”935 Ainda segundo ele, esta prega­ção era comum na Igreja: “Unanimemente as prega, ensina e entre­ga, como se possuísse uma só boca.” 936

O Credo Apostólico, ao ser analisado estatística e teologicamente, evidencia de modo contundente que as declarações a respeito da Pessoa e Obra de Cristo são mais expressivas e mais completamen­te elaboradas do que as referentes ao Pai e ao Espírito. O Credo - ainda que suas três divisões sejam dedicadas a cada uma das Pesso­as da Trindade - demonstra de forma eloqüente ser a Pessoa de Cristo o seu tema. Isto se torna ainda mais evidente, quando apre­sentamos o Credo Apostólico de forma sinótica:“Creio em Deus Pai Todo-

Poderoso, Criador do Céu e da Terra

"Creio em Jesus Cristo seu único Filho, nosso Se­nhor, o Qual foi concebi­do...

"Por obra do Espírito San­to,

"nasceu da virgem Maria, padeceu sob o poder de Pôncio Pilatos, foi cruci­ficado, morto e sepulta­do; no terceiro dia ressur­giu dos mortos, subiu ao Céu e está sentado à mão direita de

“Deus Pai Todo-Poderoso,“de onde há de vir a julgar os vivos e os mortos.

“Creio no Espírito Santo...”

935 lrineu, Irineu de L ião , São Paulo, Paulus, 1985,1 .10 .1 . pp. 61-62.936 Irineu, lrineu de L ião , 1.10.2. p. 62. Sobre o trabalho trinitário, vd. Ibidem , IV .20.I, 3;

V.6.1.

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386 EU CREIO.

De semelhante modo, o Credo Niceno (325) procede: após falar do Pai, e mais exaustivamente do Filho, diz: “[cremos] no Espírito Santo” .937

Este quase silêncio quanto à doutrina do Espírito Santo938 pode ser explicado pelo fato de que, nos primórdios da história da igreja cristã, poucos movimentos levantaram questões consideradas séri­as a respeito de sua Pessoa,939 e, menos ainda, a respeito do Pai. Para ser mais preciso, podemos mencionar Orígenes (c. 184-254) que, inspirando-se em Tertuliano (c. 155-220), foi mais longe do que ele, dizendo que o Filho era subordinado ao Pai940 e o Espírito subordinado ao Filho.941 Por volta do ano 360 encontramos Ataná- sio (c. 296-373), bispo de Alexandria (328-373), combatendo um grupo de cristãos egípcios, que ele chamou de “tropicianos” (deri­vado de Tpórcoç = “figura”, “forma”), pelo modo figurado de inter-

937 Curiosamente, o Credo formulado por Cirilo de Jerusalém (c. 315-386) por volta de 350, para ser recitado pelos Catecúmenos, era um pouco mais completo neste ponto, dizen­do: “nia-íe\k)ia.EV (...) elç êv &yiov ttveí(xa, xòv napÓKXr\xov, % òXaXr\aav èv toíç Jtpoij) xa iç .” "[C rem os] em um Espírito Santo o Consolador, que fa lou através dos profetas” [vd. o texto grego do Credo de Cirilo c o de Nicéia ln: NPNF2., Vol. VII, p. xlvii. Do mesmo modo, vd. P. Schaff, C O C Vol. II, pp. 32e 57],

938 Notemos que o “silêncio” era quanto a uma doutrina do Espírito mais elaborada, não à sua realidade, presença e direção (vd., por exemplo, Clemente de Roma, E pístola aos Coríntios, XXII. 1; D idaquê, VII. 1 Inácio de Antioquia, C arta aos M agnésios, IX.2; XIII. 1 - 2; XV; C arta aos F iladélfios, Introdução, VII.1-2; Carta aos Efésios, IX.I; XVIII.2; Iri- neu, C ontra as H eresias, 111.11.9; 12.1-2; 17.1-4; 19.2). Robert W. Jensondizquelrineu (c. 120-202) foi “uma figura-chave no período em que a pneumatologia patrística se cristali­zou” (Robert W. Jenson, O Espírito Santo: ln: Cari E. Braaten & Robert W. Jenson, eds. D ogm ática C ristã , São Leopoldo, RS, Sinodal, 1995, Vol. 11, p. 134).

939 Kelly diz que mesmo o Credo Niceno declarando “simplesmente” sua crença no Espí­rito Santo, “transcorreriam muitos anos antes que houvesse alguma controvérsia pública acerca de sua posição na Divindade” (J.N.D. Kelly, D outrinas Centrais da F é Cristã: o ri­gem e desenvolvim ento, p. 190). Adiante acrescenta: “Embora o problema do Espírito não tenha sido levantado em Nicéia, percebe-se a partir daí um aumento de interesse pelo assun­to” (Ibidem , p. 192). Boettner comenta: “Tão absorvido esteve o Concílio com a formula­ção da doutrina da Pessoa de Cristo, que omitiu fazer uma declaração formal a respeito do Espírito Santo” (Loraine Boettner, Studies in Theology, 9“ ed. Philadelphia, The Presbyte- rian and Reformed Publishing Company, 1970, pp. 127-128).

940 Vd. Carlos Ignacio Gonzalez, El D esarrollo D ogm ático en los Concílios Cristo logi- cos, Santafé de Bogotá, CELAM., 1991, p. 47ss.

941 Vd. J.N.D. Kelly, D outrinas C entrais da Fé Cristã: origem e desenvolvim ento, p. 198.

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XIX- Creio no Espírito Santo: Suas Perfeições e Dividade 387

pretar as Escrituras. Este grupo que, ao que parece, teve uma influ­ência apenas local, com uma hermenêutica tendenciosa de Am 4.13; Zc 1.9 (LXX) e lTm 5.21, cria ser o Espírito meramente um anjo hierarquicamente superior aos outros.942

Ainda no 4o século, apareceu o macedonismo,943 uma das fac­ções do arianismo,944 ensinando que o Espírito Santo era uma cria­ção do Filho, sendo-lhe, desta forma, subordinado.945 Esta heresia

1,42 Cf. J.N.D. Kelly, Doutrinas Centrais da Fé Cristã: Origem e Desenvolvimento, pp. 193-194. Escrevendo a seu amigo Serapião, bispo de Tmuis, no delta do Nilo, Atanásio comenta a respeito destes hereges: "... fomentam pensamentos hostis contra o Espírito San­to, pretendendo-o não apenas criatura mas até um dos espíritos servis, distinto dos anjos tão-somente por grau” [Atanásio, 1“ Carta a Serapião, ln: C. Folch Gomes, Antologia dos Santos Padres, 2“ ed. (revista e aumentada), São Paulo, Paulinas, 1980, p. 209],

943 Nome derivado de Macedônio, bispo de Constantinopla (c. 341-360). Este grupo era também denominado de nveuiicttoixcíçcri (“lutadores contra o Espírito”, nveCixa & |xá XO|aai) (|aóçi(,0|ia i e |ióiCT *Jo 6.52; At 7.26; 2Co 7.5; 2Tm 2.23, 24; Tg 4.1, 2).

1,44 Nome derivado de Ário (c. 250-C.336) - bispo de Alexandria (311-312) natural da Líbia e educado em Antioquia da Síria, tendo como mestre a figura enigmática de Luciano de Antioquia ( t 312), que teria sido discípulo de Paulo de Samosata. Ário teve seus ensina­mentos condenados em Antioquia (02/325); e no Primeiro Concílio Ecumênico de Nicéia (20/05/325), sendo então deportado para o Ilírico. Mesmo no exílio, ele continuou escre­vendo, aumentando consideravelmente sua influência, contando sempre com um bom nú­mero de amigos fiéis, sendo o grande articulador político do grupo ariano, o bispo Eusébio de Nicomédia (f 342). Em 335, num encontro com Constantino (274-337), Ário subscre­veu uma confissão considerada pelo Imperador “ortodoxa” (vd. o texto de sua confissão In: Sócrates Scholasticus, The Ecclesiastical History, 1.26: ln: NPNF2., II, pp. 28-29; Salami- nus Hermias Sozomen, The Ecclesiastical History, 1.27: In: NPNF2., II, pp. 277-278; o texto grego está reproduzido In; P. Schaff, COC., II, pp. 28-29). Em 336/337, quando jazia em seu leito de morte em Constantinopla, foi solenemente readmitido à comunhão da Igreja pelo Sínodo de Jerusalém.

O arianismo, a despeito de sua condenação em Nicéia, juntamente com os anátemas emitidos por este Concílio, desfrutou de ampla aceitação no quarto século, só começando a perder força no Concílio de Constantinopla (381), quando a posição de Nicéia foi reafirma­da; no entanto, o arianismo permaneceu vivo até o final do século sétimo.

945 Esta concepção se harmonizava com a de Orígenes (c. 185-254; cf. L. Berkhof, A História das Doutrinas Cristãs, São Paulo, PES, 1992, p. 83; J.N.D. Kelly, Doutrinas Centrais da Fé Cristã: Origem e Desenvolvimento, p, 198). A perspectiva subordinacio- nista a respeito do Espírito parecc ser comum na época, ainda que rejeitada pela Igreja. “Os erros subordinacionistas sobre o Espírito Santo dominavam o campo da história, com mais violência e mais demoradamente, do que os mesmos erros sobre o Logos” (O. Semmelroth, Espírito Santo: ln: H. Fries, dir. Dicionário de Teologia, 2“ ed. São Paulo, Loyola, 1983, Vol. 11, p. 99 (doravante citado como DDT)].

O ponto focal de Ário é de que há um só Deus não-gerado, sem começo, único, verdadei­ro, único detentor de imortalidade.

Page 383: Eu Creio no Pai no Filho e no Espírito Santo - Hermisten Maia Pereira

388 EU CREIO.

foi condenada pelo Concílio de Constantinopla em 381, que estabe­leceu definitivamente a identidade do Espírito. Este Concílio to­mou o Credo Niceno e o ampliou; na cláusula sobre o Espírito, afirmou:

“ [cremos] no ESPÍRITO SA N T O , o Senhor e Vivificador, o que proce­de do Pai [e do Filho],946 e que juntamente com o Pai e o Filho é adorado e glorificado, o que falou através dos profetas....” .947

Entre o Concílio de Nicéia (325) e o de Constantinopla (381), a declaração explícita de que o Espírito é Deus foi apenas sugerida, porém não declarada. Em 372, Basílio Magno (c. 330-379), defen­sor ardoroso da divindade do Filho, também sustentou a divindade do Espírito, porém não foi tão incisivo ao ponto de identificá-lo como Deus;948 mesmo posteriormente (373), quando ampliou seu pensamento, declarou que o Espírito deve ser honrado juntamente com o Pai e com o Filho.949 Gregório de Nissa (c. 335-C.394), outro dos “pais capadócios”, seguiu os passos de seu irmão Basílio, sem, contudo, apresentar maior contribuição, enfatizando apenas a uni­cidade das três pessoas.950

946 A expressão “e do Filho", em latim “F ilioque”, foi acrescentada no III Concílio local de Toledo (589), e ao que parece posteriormente no Quarto Sínodo de Braga (675) e em Hatfield (680). [Cf. O. Semmelroth, Espírito Santo: In: D D T., Vol. 11, p. 100; J.N.D. Kelly, P rim itivos Credos Cristianos, pp. 426,429-430.] Todavia, esta cláusula já havia sido usada no Primeiro (400) e Segundo (477) Concílios de Toledo (vd. H. Bettenson, Docum entos da Igreja Cristã, p. 56; P. Schaff, COC., I, p. 26; Earle E. Cairns, O C ristianism o A través dos Séculos, São Paulo, Vida Nova, 1984, p. 109; G.W. Bromiley, Filioque: In: E.F. Harrison, cd. D iccion ario de Teologia, Grand Rapids, Michigan, T.E.L.L., 1985, p. 242 (Doravante citado como DT); L. Boff, A Trindade e a Sociedade, 3“ ed. Petrópolis, RJ, Vozes, 1987, p. 93; J.N.D. Kelly, P rim itivos Credos C ristianos, p. 427).

947 Quanto a maiores detalhes a respeito destes Credos primitivos, bem como sua trans­crição integral, vd. Hermisten M.P. Costa, A Igreja P resbiteriana e os Sím bolos de Fé, São Paulo, 2000.

948Basil, L etters, 113 e 114 In: NPNF2., VIII, pp. 189-190; vd. Gregório de Nazianzo, E pístola, 58.

949Basil, Letters, 125.3; 159.2. In: NPNF2., VIII, pp. 195-196; 212.950 O ração C atequética , 3s. Gregório de Nissa, no entanto, foi de grande relevância na

questão da procedência do Espírito (vd. Contra Eunômio, 1.42; Contra M acedonia, 2.10, 12, 24), ainda que tenha deixado aberta uma fresta para a compreensão equivocada de que o Espírito procede do Pai através do Filho...

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O terceiro destes pais, Gregório de Nazianzo (329-390),951 ami­go de ambos, foi, segundo expressão de Daniélou, “o pensador tri- nitário por excelência”. De fato, com ele a divindade do Espírito é declarada com todas as letras:

“ ... Sem confusão, existem Três Pessoas na Única natureza e dignidade da Divindade.

“Por conseguinte, o Filho não é o Pai (é um só o Pai), mas é exatamente aquilo que o Pai é. Nem o Espírito é o Filho, por vir de Deus (um só é o Unigénito), é, porém, exatamente aquilo que o Filho é. Estes três são um pela Divindade, e, na unidade, são três por suas propriedades.

“Desse modo não são o Um de Sabélio nem os três da péssima divisão de hoje [modalismo].

- E, então? O Espírito é Deus?- Perfeitamente, sem dúvida alguma.- E é consubstanciai?- Sim, já que é Deus.”952

Modernamente, a heresia ariana foi retomada pela seita anti- cristã das Testemunhas de Jeová, que afirmam ser o Espírito apenas uma força impessoal e ativa sem ser dotado de inteligência.933

951 Devido à sua eloqüência e profundidade teológica, deram-lhe o título de “o teólogo” (homologado em Calcedônia, 451) e, de “o Demóstenes cristão” (cf. W.C. Weinrich, Gregó­rio de Nazianzo: In: EHTIC., Vol. U, p. 226; C. Folch Gomes, Antologia dos Santos Padres, p. 245 e Gregório Nazianzeno: ln: R.N. Champlin & J.M. Bentes, Enciclopédia de Bíblia Teolo­g ia e Filosofia, São Paulo, Candeia, 1991, Vol. 11, p. 979 (doravante citada como EBTF). O livro de Tillich diz que o designativo “o teólogo” foi dado a Gregório de Nissa (P. Tillich, H istória do Pensamento Cristão, São Paulo, ASTE, 1988, p. 81. A impressão que tenho é que este lapso foi um erro de revisão...). Gregório de Nazianzo presidiu durante um período o Sínodo de Constantinopla em 381; quando se despediu, pronunciou o famoso “D iscurso de adeus” (vd. Lorenzo Perrone, De Nicéia (325) a Calcedônia (451): ln; Giuseppe Alberigo, org. H istória dos Concílios Ecumênicos, São Paulo, Paulus, 1995, pp. 65-66).

952 São Gregório de Nazianzo, D iscursos Teológicos, Petrópolis, RJ, Vozes, 1984, XXXI.9- 10. p. 98.

953 Cf. citação extraída do documento das Testemunhas de Jeová, L et Your Nam e Be Sanctified (Santificado Seja o Teu Nome), 1961, p. 269 A pud A. Hoekema, Testigos de Jehova, Grand Rapids, Michigan Subcomision Literatura Cristiana de la Iglesia Cristiana Reformada, 1978, p. 37. Hoekema também ressalta que a concepção tida do Espírito como algo inferior é evidenciada na tradução que as Testemunhas de Jeová fazem das Escrituras, colocando o “Espírito” sempre com a inicial minúscula (vd. Ibidem , pp. 21-23). Veja-se também, J.K. Van Baalen, O Caos das Seitas, 3“ ed. São Paulo, Imprensa Batista Regular, 1977, p. 193.

XIX - Creio no Espírito Santo: Suas Perfeições e Dividade 389

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390 EU CREIO.

As Testemunhas de Jeová reconhecem em Ário um precursor de Charles Taze Russel (1852-1916), o iniciador de sua seita.

Ao estudarmos este assunto, não devemos esquecer que as Es­crituras falam mais “do” Filho do que “do” Espírito: A natureza do Espírito - e não poderia ser diferente - é menos explicitada, tratando mais especificamente de seu ministério, que consiste, após a ascensão de Cristo, em dar testemunho dele. A obra do Filho re­clama as operações do Espírito; e esta ampara-se naquela. Nossa teologia, portanto, nada mais é do que uma reflexão interpretativa da Palavra, não seu “complemento” ;954 ela é o estudo da Revelação Pessoal de Deus conforme registrada nas Escrituras Sagradas.

Nas páginas que seguem não pretendemos ficar discutindo com os arianos ou neo-arianos (Testemunhas de Jeová), nem com nos­sos irmãos pentecostais ou carismáticos. Cremos na verdade e no poder de Deus, que age através da verdade; assim, vamos usar do espaço de que dispomos para estudar as Escrituras Sagradas e dei­xar que Deus fale de si mesmo a nós. Ouçamo-lo, pois!2. O ESPÍRITO SANTO NO ANTIGO TESTAMENTO

O Antigo Testamento emprega a palavra (ITn, riiah), para “espí­rito”, sendo traduzida por “vento”, “espírito”, “alento”, “hálito”, “sopro” etc. A idéia básica é de “ar em movimento” (Gn 2.7; Ex 10.13, 19; 14.21; Dt 32.11; Jó 1.19; Is 7.2).955 Entretanto, “não é tanto o movimento por si que desperta a atenção, mas, sim, a ener­gia que semelhante movimento manifesta.” 956 “Não expressa ima-

954 “Teologia é o conhecimento de Deus derivado da revelação bfblica. (...) Cada vez mais tenho chegado à conclusão de que o ensino de teologia jamais deve estar separado da B í­blia” (D.M. Lloyd-Jones, Uma Escola Protestante Evangélica: In: D iscern indo os Tempos, São Paulo, PES, 1994, p. 389. “Discurso proferido na inauguração do Seminário Teológico de Londres, em 6 de outubro de 1977”).

555 J. Barton Payne, ITri: ln: R. Laird Harris, ed. Theological Wordbook o f the O ld Testa- ment, 2a ed. Chicago, Moody Press, 1981. Vol. 2, p. 836a.

936 E. Kamlah, et. al., Espírito: ln: Colin Brown, ed. ger. O N ovo D icionário Internacio­nal de Teologia do N ovo Testamento, São Paulo, Vida Nova, 1981-1983, Vol. II, p .124 (doravante citado como NDITNT). “O pensamento implícito em ruah é que a ‘respiração’, com o movimento do ar que ela acarreta, é a expressão externa da força vital inerente em todo o comportamento humano” (Idem, Ibidem, II, p. 124). Por outro lado, recorrendo à

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terialidade, mas a energia da vida em Deus”, resume Vos.957 Fazen­do eco a Vos, Ferguson enfatiza: “O que está em vista é energia em vez de imaterialidade. (...) A ênfase é posta, antes, em sua esmaga­dora energia.” 958 (Is 25.4; 40.7; 59.19; Hc 1.11). Payne e Ferguson nos chamam a atenção para o episódio da rainha de Sabá que, mara­vilhada com a sabedoria prática de Salomão, “não tinha mais rüah” (lR s 10.5);959 ou seja: ficou com a “respiração suspensa” .960 Quan­do n n é empregado para Deus, denota seu poder incorruptível e preservador.961 Portanto, a idéia de vento aponta para o poder sobe­rano de Deus que se movimenta livremente, figuradamente, como uma tempestade, um tufão incontrolável, daí a impossibilidade de prender, domesticar ou dominar o Espírito de Deus.

Das 389 ocorrências do substantivo no Antigo Testamento,962 136 se referem ao Espírito, o qual é chamado de “Espírito de Deus” (Gn1.2) e, principalmente, “Espírito do Senhor” (mn1)963 (cf. Jz 6.34; ISm 16.13; Is 11.2). Estas designações não sugerem nenhum tipo de su-figura do vento, podemos dizer que: "... Os hebreus conheciam muito bem o poder do vento. Uma tempestade de areia no deserto é uma potência que pode destruir até homens. Tremen­do poder! Quando falam do Espírito de Deus estão pensando no poder de Deus, seu alento, aquilo que se emite dele e que sai ao mundo para cumprir seus propósitos. Na realidade, este é o conceito do Espírito no Antigo Testamento, o poder de Deus que sai ao mundo para realizar algum propósito determinado que Deus tem” (Hoke Smith, Teologia B iblica dei Espiritu Santo, Buenos Aires, Casa Bautista de Publicaciones, 1976, pp. 14-15. Vd. tam­bém, A.B. Davidson, The Theology o f the O ld Testament, Edinburgh, T. & T. Clark, 1904, p. 193; A.B. Crabtree, Teologia do Antigo Testamento, 2a ed. Rio de Janeiro, JUERP, 1977, pp. 65-66; Sinclair B. Ferguson, O E spírito Santo, pp. 16-19).

957 Geerhardus Vos, B iblical Theology: O ld and New Testaments, Grand Rapids, Michi­gan, Eerdmans, 1985 (reprinted), p. 238.

958Sinclair B. Ferguson, O E spírito Santo, pp. 17, 18'm ARA: “ficou com o fora de s i B J e ACR: “f ico u fo ra de A R C (1911): “não houve

m ais esp írito n ela”.960 J. Barton Payne, n il: ln: R. Laird Harris, ed. Theological Wordbook o f the O ld Testa­

m ent, Vol. 2, p. 836; Sinclair B. Ferguson, O E spírito Santo, p. 17.961 F. Baumgärtel, 1 lv£\>|ia: In: G. Friedrich & G. Kittel, eds. T heological D iction ary o f

the N ew Testament, VI, p. 364.962 378 vezes em hebraico e 11 em aramaico (cf. Hans W. Wolff, A ntropologia do Antigo

Testamento, 2a ed. São Paulo, Loyola, 1983, p. 51).963 Como sabemos, o tetragrama YHWH é o nome pessoal de Deus, considerado pelos

judeus como o nome por excelência de Deus; ele é usado 5321 vezes no Antigo Testamento. “É especialmente no nome Yhwh que o Senhor se revela como o Deus de Graça” (Herman Bavinck, The D octrine o f God, 2a ed. Grand Rapids, Michigan, Eerdmans, 1955, p. 103).

XIX - Creio no Espírito Santo: Suas Perfeições e Dividade 391

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392 EU CREIO.

bordinação, antes são apenas nomes que expressam o Deus que exe­cuta seu querer; são, portanto, nomes “executivos” de Deus.964

Algumas vezes n-H também indica os maus espíritos enviados da parte de Deus (Jz9.23; ISm 16.14-16,23; 18.10; 19.9; lRs 22.21- 23; Jó 1.6-12; Is 19.14; 29.10) e os anjos (lR s 19.11, 12; SI 104.4; Ez 1.12, 20).

ITn em diversos textos refere-se ao “espírito humano”, sempre evidenciando sua dependência de Deus,965 visto ser o Espírito de Deus o poder vitalizador e gerador de toda criação966 (Gn 1.2; 6.3; Jz 3.10; 13.15; 14.6; ISm 10.6; Jó 26.13; 33.4; 34.14-15; SI 104.29- 30; 146.4; Ec 12.7; Is 40.7), inclusive dos animais (Gn 6.17; 7.15, 22; Ec 3.19-21).

O Antigo Testamento dá mais ênfase à atividade do Espírito do que à sua natureza; no entanto, nem por isso deixa de evidenciar sua personalidade e divindade (SI 51.11; Is 4 8 .16;967 63.10, 11; Zc 3.9; Zc 4.6, 10;968Mq 2.7),969 bem como sua distinção de Deus (Nm 11.17; Ez 37.9), temas que serão melhor desenvolvidos no Novo Testamento. Abrindo um parêntese podemos usar a figura do emi­nente teólogo de Princeton, B.B. Warfield (1851-1921), que, refe­rindo-se à doutrina da Trindade, disse:

964 Vd. B.B. Warfield, /t Doutrina B íblica da Trindade, Leiria, Edições Vida Nova (s.d.), p. 165.

‘*5 W olff acentua que: “A maioria dos textos que tratam daruach de Deus ou dos homens mostra Deus e o homem em relação dinâmica. O fato de que um homem como rüach é vivo, quer o bem e age com autorização que não vem dele mesmo” (H.W. Wolff, A n tropologia do A ntigo Testam ento, p. 60).

Vd. Walther Eichrodt, Teologia D elA n tigu o Testamento, Madrid, Ediciones Cristian- dad, 1975, Vol. 1, p. 196; vd. também, Vol. II, p. 56ss; Sinclair B. Ferguson, O E spírito Santo, pp. 20-24.

967 O profeta aqui alude a si mesmo e ao Espírito, indicando sua inspiração profética (cf. Is 61.1; Ez 2.2; 11.5; 37.1; Zc 7.12; vd. A.R. Crabtree, A Profecia de Isaías, Rio de Janeiro, Casa Publicadora Batista, 1967, Vol. I, p. 166; C.F. Keil & F. Delitzsch, Com m entary on the O ld Testament, Grand Rapids, Michigan, Eerdmans, Vol. VII/2, 1969, pp. 252-253).

,J68 Aqui Zacarias fala de forma poética do Espírito de Deus como sendo os “sete olhos”. Figura análoga é empregada em Ap 4.5 (vd. J. Barton Payne, The Theology o f the O ld Testament, Grand Rapids, Michigan, Zondervan, © 1961, p. 174).

'm Um contraste revelante é feito quando é dito que os ídolos não têm n n (Jr 10.14; Hc2.19).

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“Podemos comparar o Velho Testamento com um salão ricamente mobi- lado, mas muito mal iluminado; a introdução de luz nada lhe traz que nele não estivesse antes; mas apresenta mais, põe em relevo com maior nitidez muito do que mal se via anteriormente, ou mesmo não tivesse sido aperce­bido. O mistério da Trindade não é revelado no Velho Testamento; mas o mistério da Trindade está subentendido na revelação do Velho Testamen­to, e aqui e acolá é quase possível vê-lo.”970

Do mesmo modo, Ferguson conclui:“.... a história do Espírito permanece incompleta quando limitada às

páginas do Antigo Testamento. O Evangelho de João torna isso bem claro: ‘pois o Espírito até esse momento não fora dado, porque Jesus não havia sido ainda glorificado’ (Jo 7.39). Toda a revelação veterotestamentária tem um ‘ainda não’ escrito como a olhar para seu alvo em Cristo.”971

Esta constatação nos serve de alerta para que consideremos a Bíblia como um todo harmonioso e orgânico; toda ela procede de Deus (2Tm 3.16; 2Pe 1.20-21);972e também para o fato de que não podemos esquecer que muitos dos textos veterotestamentários ga­nham um sentido mais eloqüente para nós, justamente por dispor­mos das “luzes” do Novo Testamento, direcionadas pelo Espírito Santo.

A atividade do Espírito é demonstrada mais amplamente no homem, ainda que não exclusivamente, visto ser ele o agente e sus- tentador da criação (Gn 1.2; Jó 4.9; 26.13; 33.4; 34.14,15; SI 33.6; 104.30; Is 40.7; 42.5).973 Há em todas as criaturas a sustentação de Deus; nada existe sem a manutenção constante de Deus.974

O Antigo Testamento mostra o Espírito como onisciente (Is40.13), onipresente (SI 139.7) e onipotente (Is 34.16), evidencian­do assim, a impotência e inércia dos ídolos, visto que estes não têm espírito, não têm vida (Hc 2.19). Somente Deus pode conceder vi-

m B .B . W arfield, A Doutrina Bíblica da Trindade, pp. 130-131.971 Sinclair B. Ferguson, O Espírito Santo, p. 40.972 Vd. Hermisten M.P. Cosia, A Inspiração e Inerrância das Escrituras, São Paulo,

Editora Cultura Cristã, 1998; Idem, A Harmonia dos Evangelhos, São Paulo, 1995, p. 10; Idem, Unidade e Coesão das Escrituras, São Paulo, 1995, p. 7.

973 Vd. Hermisten M.P. Costa, Teologia do Espírito Santo, São Paulo, 1986, pp. 1-5.974 Cf. Abraham Kuyper, The Work o f the Holy Spirit, p. 27.

XIX- Creio no Espírito Santo: Suas Perfeições e Dividade 393

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talidade, já que a vida pertence a Deus (Ez 37.14; Hc 3.2; rpn, hãyãh).975

Apresentando a questão d & form a didática, podemos dizer que o Antigo Testamento descreve o Espírito agindo no homem em três níveis, a saber:

2.1. Nível Físico e Intelectual

O Espírito concede ao homem conhecimento e habilidade para tarefas específicas. Esta concessão não implica, necessariamente, na transformação espiritual, como bem observou Hodge, “Todas estas operações são independentes das influências santificadoras do Espírito.” 976 Esta presença pode ser tão marcante, que não passa despercebida, mesmo de um pagão, como no caso de Faraó em re­lação a José (Gn 40.8; 41.16, 38, 39; Ex 28.3; 31.1-5; 35.30- 36.2;977 Nm 11.17, 25; 22.38; 24.2; Jó 32.8; Dn 4.8-9; 5.11-14).

Neste mesmo aspecto, encontramos o Espírito agindo na capa­citação de seus servos, concedendo-lhes autoridade (para coman­dar, julgar) e vitória sobre todos os desafios (Nm 11.17,25-29; 27.18- 21; Dt 34.9; Jz 3.10; 6.34; 11.29; 13.25; 14.6; 15.14; ISm 10.6; 11.6; lCr 12.18).

2.2. Nível Religioso-moral

Aqui vemos o Espírito de Santidade, Aquele que produz no ho­mem o caráter moral de Deus, esquadrinhando o coração humano, entristecendo-se com seu pecado, testificando contra ele, condu- zindo-o através da regeneração (Ez 11.19; 36.26, 27), ao arrependi­mento, à fé e à santidade (Ne 9.20, 30; SI 32.2; 51.11; 143.10; Is

975 Este verbo e seus derivados ocorrem no Antigo Testamento cerca de 800 vezes, sendo traduzido normalmente por “viver” e “vida”. Sua origem etimológica ainda não foi explica­da satisfatoriamente. Biblicamente, ri'n tem o sentido de: a) Cham ar à existência o que não existia'. [Gn 2.7 (adjetivo: ’n “vivente”); Jó 33.4; 2Rs 5.7], e b) P reservar vivo (Gn 7.3; 19.32; SI 33.19; 41.2; vd. mais detalhes In: Hermisten M.P. Costa, A vivam ento B íblico, São Paulo, 1994, 3 p).

976 Charles Hodge, Syslem atic Theology, Grand Rapids, Michigan, Eerdmans, 1976 (Re- printed), Vol. 1, p. 531.

977 Vd. Sinclair B. Ferguson, O Espírito Santo, p. 26.

394 EU CREIO...

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59.21; 63.10, 11; Ez 39.29; Ag 2.5), que se revelam no fervor religi­oso (Is 26.9; Zc 12.10). O Antigo Testamento ensina claramente que as operações do Espírito Santo envolviam uma renovação mo­ral e espiritual de seu povo .978

Após o cativeiro babilónico, Deus encoraja o povo, dizendo que seu Espírito permanecia no meio dele; aqui vemos a manifestação do Deus do Pacto (Ag 2.4, 5), cuja presença por si só é altamente estimulante (vd. Ex 29.45,46; 33.14; Dt 31.6-8; Js 1.9; Is 41.10,13; 43.2; 2Tm 1.7; Hb 13.5). “A certeza da promessa de Deus e o fato do Espírito sempre presente seriam suficientes para acalmar os te­mores da comunidade.” 979 O particípio ativo do verbo hebraico “ha­bitar” (“lütt, ‘ãmadh; Ag 2.5) indica a idéia de que Deus sempre esteve presente no meio de seu povo, mesmo durante o cativeiro (Ed 9.9; Ne 9.17, 18, 20, 28); a presença de Deus não é algo ponti­lhado, durante determinados eventos da história, antes é contínua, ininterrupta.980 “Se o exílio aparentemente tinha anulado a aliança, agora o povo se certificava de que Deus ainda estava entre eles em Espírito, como estivera durante todo o êxodo (Ex 29.45).”981 O fun­damento do Pacto está na “palavra da aliança” e no “Espírito” pre­sente. Aliás, a Aliança sempre está ligada à Palavra misericordiosa de Deus e a seu Espírito (Is 54.10; 55.3; 59.21; Ag 2.5; Dt 7.9; lRs 8.23; Dn 9 .4).9820 Espírito dirige a história de forma poderosa,

978 Vd. Sinclair B. Ferguson, O E spírito Santo, pp. 26-31.979 Gerard Van Groningen, R evelação M essiânica no Velho Testamento, Campinas, SP,

Luz para o Caminho, 1995, p. 784.980 Davidson nos orienta que “o particípio representa uma ação ou condição em sua coe­

são contínua...” (A.B. Davidson, An Introductory H ebrew Gram m ar, 24“ ed. Edinburgh, T.& T. Clark (reprinted), 1936, § 46, p. 159). O autor continua mostrando que, enquanto o im perfeito sugere sucessão, uma multiplicidade de ação e de pontos, o pa rtic íp io indica uma linha que se prolonga sem quebra em sua continuidade (Ibidem , p. 159). Isto indica que a “história não saiu das mãos de Deus” (D. Martyn Lloyd-Jones, As Insondáveis R ique­zas de Cristo, São Paulo, PES, 1992, p. 64 (sobre os variados conceitos de História e a perspectiva cristã, vd. Hermisten M.P. Costa, E scatologia: O Sentido da H istória à Luz da Sua Consum ação, São Paulo, 2000).

981 Joyce G. Baldwin, Ageu, Zacarias e M alaquias, São Paulo, Vida Nova/Mundo Cris­tão, ã americana, 1972, p. 37. Mesmo no exílio, Israel continuava sendo o povo eleito de Deus (ls 41.8-14; 43.1-7).

982 Vd. Francis Turretin, Institutes ofE len ctic Theology, Phillipsburg, New Jersey, P & RPublishing, 1994, Vol. 11, X V .xvi.lO -il.

XIX- Creio no Espírito Santo: Suas Perfeições e Dividade 395

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396 EU CREIO.

“transpondo os obstáculos”, fazendo com que - de uma forma mis­teriosa para nós - Deus sempre cumpra a “palavra da aliança”.

2.3. Nível Profético-revelacional

O Espírito é o agente de Deus na revelação de sua vontade, co­locando-a nos lábios dos profetas. O Espírito é apresentado como “o veículo comunicador de toda a plenitude criativa dos poderes divinos” .983 O Espírito revela, inspira e ilumina os profetas (Nm 11.25, 26; ISm 10.6; 2Rs 2.9, 15; lCr 12.19; 2Cr 15.1; 20.14; Is11.2; 42.1; 48.16; 59.21; Ez 2.2; 3.24; 8.3; 11.24; Zc 7.12; Am 3.7; Mq 3.8; 2Sm 23.2). Por isso, sua mensagem consiste no anúncio fiel da revelação de Deus. Os profetas, conscientes disso, insisten­temente traziam como preâmbulo à sua mensagem os dizeres: “A s­sim diz o Senhor...", “Ouvi a Palavra do Senhor...", “Veio a Palavra do Senhor..." (cf. Jr 27.1; 30.1, 4; Ez 31.1; Os 1.1; J1 1.1; Am 1.3; 2.1; Ob 1.1; Mq 1.1). Por sua vez, os profetas “especulativos” eram qualificados de “falsos”, por proferirem suas próprias palavras, fru­to de seus desejos, e não a Palavra de Deus (vd. Jr 14.14; 23.16; 29.9; Ez 13.2, 3, 6).984

Tanto neste nível como no anterior, podemos dizer que, “O Es­pírito, um poder capacitador, reveste aquele sobre o qual repousa com as qualidades que o próprio Espírito possui.”985

Do que foi visto até aqui depreende-se que a experiência do profeta com o Espírito não era comum a todos em Israel (Nm 11.29). Todavia, o Antigo Testamento aponta para o futuro, quando o Espí­rito seria derramado sobre todos em Israel - homens e mulheres, jovens e velhos - , e também sobre todos os homens indistintamente (Ez 36.27;37.14; J12.28-32; Zc 12.10).986 O cumprimento desta pro-

1,8:1 C.F. Keil & F. Delitzsch, Com mentary on the O ld Testament, VII/1, p. 282.084 Vd. Hermisten M.P. Costa, A Inspiração e Inerrância das E scrituras, passim . Stott

resume bem a tarefa do profeta: “A característica essencial do profeta não era prever o futuro nem interpretar a atividade presente de Deus, mas falar as palavras de Deus” (J.R.W. Stott, O Perfil do Pregador, São Paulo, SEPAL, 1989, p. 12).

1,85 Gerard Van Groningen, Revelação M essiânica no Velho Testamento, p. 508.986 A. A. Hoekema, A B íblia e o Futuro, São Paulo, Casa Editora Presbiteriana, 1989, pp.

15-16.

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messa estava relacionado com a obra do Messias que viria - como de fato veio - na plenitude do tempo e do Espírito Santo (Is 11.2; 42.1; 48.16; 61.1-11;987 Lc 4.16-21; Jo 3.34; 14.16, 17,26; 15.26).

O profeta Isaías descreve o Messias como aquele que “pode cumprir todos os seus deveres porque é ungido por Yahwéh por meio da dádiva do Espírito” .988 Foi o próprio Senhor que “designou, equipou e autorizou seu escolhido” para ministrar a tarefa que lhe competia como profeta, sacerdote e rei.9893. O ESPÍRITO SANTO NO JUDAÍSMO POSTERIOR

No judaísmo interbíblico predominava a idéia, com algumas poucas exceções, de que o Espírito Santo se apagara devido ao pe­cado do povo .990 Esta concepção trazia consigo sérias conseqüênci­as, visto que, para a sinagoga, “a posse do Espírito Santo, isto é, o Espírito de Deus, era a marca por excelência da profecia. Possuir o Espírito de Deus significava ser profeta” ;991 logo, a asserção de que o Espírito se apagara implicava na inexistência de um autêntico profeta992 e também na “convicção de que o tempo presente está alienado de Deus. Tempo sem o Espírito é tempo sob o julgamento de Deus. Deus se cala” .993

Segundo J. Jeremias, os rabinos explicavam da seguinte forma o fato de o Espírito ter se apagado:

“Ao tempo dos patriarcas, todos os piedosos e justos possuíam o Espírito de Deus, Quando Israel prevaricou com o bezerro de ouro, Deus limitou o Espírito a homens escolhidos, aos profetas, sumo sacerdotes e reis. Com a morte dos últimos profetas escritores, Ageu, Zacarias e Malaquias, o Espí­rito se apagou por causa do pecado de Israel. Desde então, acreditava-se,

XIX- Creio no Espírito Santo: Suas Perfeições e Dividade 397

587 Vd. G. Van Groningen, R evelação M essiânica no Velho Testamento, pp. 602-603.988 G. Van Groningen, R evelação M essiânica no Velho Testamento, p. 604. m Cf. G. Van Groningen, R evelação M essiânica no Velho Testamento, pp. 602-603.'m Vd. Hermisten M.P. Costa, A Literatura A pocalíptico-Judaica, p. 27ss.IJ1JI J. Jeremias, Teologia do N ovo Testamento, São Paulo, Paulinas, 1977, pp. 124-125ml O livro de Macabeus reflete esta idéia: “Levantou-se uma tão grande tribulação em

Israel, que não se tinha visto outra assim desde o tempo do desaparecimento dos profetas de Israel” (IM ac 9.27. Vejam-se também IMac 4.46; 14.41).

'm J. Jeremias, Teologia do N ovo Testamento, p. 129.

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398 EU CREIO.

Deus continuava falando apenas pelo ‘eco da sua voz’ (bat qol = eco994),um pobre substituto.”995

Apesar dessa desolação, admitia-se a esperança de que no tempo messiânico o Espírito Santo traria de novo o profetismo e a renova­ção dos corações: esta era a aspiração do povo, a vinda do Espírito.996

É a partir do Novo Testamento que a obra do Espírito - quase que totalmente restrita à nação de Israel no Antigo Testamento - se tornará mais abrangente, através da nova aliança que, pela instru- mentalidade da Igreja, unirá judeus e gentios (Ef 2.22; IPe 2.5).4. AS PERFEIÇÕES DO ESPÍRITO SANTO: UMA ABORDA­

GEM BÍBLICA

Nas páginas do Novo Testamento encontramos uma gama mai­or de referências ao Espírito Santo, as quais revelam mais detalha­damente sua Pessoa e Obra, ao mesmo tempo em que lançam luz sobre diversos textos do Antigo Testamento.

Analisaremos agora toda a Escritura, tendo como perspectiva a Pessoa do Espírito Santo.

4.1. Unicidade

Há um só Espírito Santo de Deus no qual todos os crentes em Cristo foram batizados (Ef 4.3-4; ICo 12.11, 13).

994 *71 p na (Bath qôl). Literalmente, “Filha da voz” ou “Filha de uma voz”. O conceito é derivado de Dn 4 .3 1 .0 Novo Testamento menciona algumas vezes uma voz que veio do céu (vd. Mt 3.17; 17.5; Jo 12.28; At 9.4; 22.7; 26.14; 10.13, 15).

995 J. Jeremias, Teologia do N ovo Testamento, p. 128. Esta voz vinda do céu, geralmente consistia na declaração do juízo de Deus dirigido a indivíduos, grupos, governos, cidades ou todas as nações (vd. Otto Betz, í>mvf|: ln: TDNT., IX, p. 288 e A.K. Helmbold, Bath Kol: ln: ZPEB., I, p. 492; vejam-se também A.C. Schultz, Voz: In: E.F. Harrison, ed. D iccion ario de Teologia, Grand Rapids, Michigan, TELL., 1985, p. 556 (doravante citado como DT); Bath Kol: ln; EBTF., I, p. 456; A.K. Helmbold, Bath Kol: ln: ZPEB., 1. p. 492; Otto Betz, OcovtV ln; TDNT., IX, especialmente, p. 285ss.; J.R. Van Pelt, Bath Kol: ln: ISBE., I, pp. 438-439).

996 Cf. J. Jeremias, Teologia do N ovo Testamento, p. 130 e P. Van Imschoot, Espírito: ln: A. Van Den Born, redator, D icionário E nciclopédico da B íblia, 2“ ed. Petrópolis, RJ, Vo­zes, 1977, p. 485.

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4.2. Personalidade

O Espírito é um Ser Pessoal, sendo distinto do Pai e do Filho. A Bíblia o apresenta como sendo dotado de três elementos essenciais à personalidade. Isto indica que ele não é apenas uma força impes­soal e ativa de D eus1, o Espírito é o próprio Deus ativo que se agen­cia deliberadamente através de si mesmo. Estudemos o que a Pala­vra nos diz a respeito da Personalidade do Espírito:

4.2.1. Possui os Elementos Essenciais à Personalidade997

1) Tem inteligência (mente, intelecto): Is 40.13, 14; Jo 14.26; 15.26; At 15.28; Rm 8.27; ICo 2.10-12. Sobre este texto diz C. Hodge: “A consciência de Deus é a consciência do Espírito” .998

2) Tem vontade: SI 106.32-33; ls 34.16; At 13.2; 16.7; 21.11; ICo 12.11; lTm 4.1 .999

3) Tem sensibilidade: Mq 2.7 (irritação); Rm 15.30 (amor); Is 63.10; Ef 4.30 (entristece-se).

4.2.2. Ele é o Autor de Toda Vida Intelectual1000

Como já vimos, no Antigo Testamento encontramos com fre­qüência a ação do Espírito associada à vida intelectual de diversos homens (vd. Jó 32.8; 35.10, 11; Gn 2.7; Ex 31.2-6; 35.31-35; Nm11. 17, 25-29; 27.18-21; Dt 34.9; Jz 3.10; 6.34; 11.29; 13.25; 14.6; 15.14; ISm 10.6; 11.6). O Espírito é o autor de toda vida intelectual e artística; nele temos o sentido do belo e sublime como expressão da santa hormonia procedente de Deus, que é perfeitamente belo em sua santidade. Referindo-se à obra de Bezalel e Aoliabe, Fergu­son escreve:

XIX - Creio no Espírito Santo: Suas Perfeições e Dividade 399

997 Embora Charles Hodge (1797-1878) não julgue necessário nem prudente tratar sepa­radamente dos atributos pessoais do Espírito, considerando que os textos que tratam de um também referem-se aos outros (C. Hodge, Systematic Theology, 1, pp. 523-524), procedere­mos diferentemente por questões didáticas.

998 Charles Hodge, Teologia Sistemática, São Paulo, Editora Hagnos, 2001, p. 393.999 A comunicação do Espírito a respeito do futuro de Paulo, bem como dos “últimos

tempos”, denota a liberdade de sua vontade na revelação destes eventos.1000 D evo este tópico às observações de Charles Hodge, Systematic Theology, Vol. I, pp.

530-531.

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400 EU CREIO.

“A beleza e a simetria da obra executada por esses homens na constru­ção do tabernáculo não só deram prazer estético, mas um padrão físico no coração do acampamento que serviu para restabelecer expressões concre­tas da ordem e glória do Criador e suas intenções em prol de sua criação.”1001

Cal vi no entendia que a arte e as demais coisas que servem ao uso comum e conforto desta vida são dons de Deus; portanto, deve­mos usá-las de forma legítima a fim de que o Senhor seja glorifica­do.1002 Quanto mais o homem se aprofunda nas “artes liberais” e investiga a natureza, mais se aproxima “dos segredos da divina sa­bedoria” .1003

Bavinck (1854-1921) escreve de modo magistral, mostrando que a arte provém de Deus:

“A arte também é um dom de Deus. Com o o Senhor não é apenas ver­dade e santidade, mas também glória, e expande a beleza de seu nome sobre todas as suas obras, então é ele também que, pelo seu Espírito, equi­pa os artistas com sabedoria e entendimento e conhecimento em todo tipo de trabalhos manuais (Ex 31.3; 35.31). A arte é, portanto, em primeiro lugar, uma evidência da habilidade humana para criar. Essa habilidade é de caráter espiritual, e dá expressão aos seus profundos anseios, aos seus altos ideais, ao seu insaciável anseio pela harmonia. Além disso, a arte em todas as suas obras e formas projeta um mundo ideal diante de nós, no qual as discórdias de nossa existência na terra são substituídas por uma gratifican- te harmonia. Desta forma a beleza revela o que neste mundo caído tem sido obscurecido à sabedoria, mas está descoberto aos olhos do artista. E por pintar diante de nós um quadro de uma outra e mais elevada realida­de, a arte é um conforto para nossa vida, e levanta nossa alma da conster­nação, e enche nosso coração de esperança e alegria.” 1004

Na nova dispensação, o Espírito continua atuando, concedendo dons aos homens para ensinar e dirigir a Igreja na Palavra (ICo 12.11; E f 4.4-6, 11-14).

1001 Sinclair B. Ferguson, O Espírito Santo, p. 26.1002 João Calvino, A í Instituías, 1.11.12; John Calvin, Calvin’s Commentaries, Grand

Rapids, Michigan, Baker Book House Company, 1996 (reprinted), Vol. 1 (Gn 4.20), pp. 217-218; Vol. 01 (Ex 31.2), p. 291.

,aB João Calvino, As Institutas, 1.5.2.1004 Herman Bavinck, Our Reasonable Faith, p. 21. Vd. Wayne Grudem, Teologia Siste­

mática, p. 551, 552-553.

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XIX- Creio no Espírito Santo: Suas Perfeições e Dividade 401

4.2.3. Pronomes Pessoais São Usados para Referir-se a Ele

Jesus Cristo se refere ao Espírito usando um pronome pessoal masculino, èKEivoç, embora o substantivo grego, nv£Íi|U.a, seja neu­tro (Jo 14.17; 16.8, 13,14). O Espírito prometido é o “Santo Espíri­to da Promessa” (Ef 1.13, 14).

4.2.4. O Espírito é Chamado Consolador

Se este designativo (napáKÀ,tTtoç) é aplicado a Cristo, indican­do sua Personalidade (Jo 14.16; Uo 2.1), o mesmo é viável em relação à Pessoa do Espírito Santo. No texto de Jo 14.16, Jesus Cristo se refere a uma pessoa que viria substituir outra; um Conso­lador semelhante a ele1005 (vd. também Jo 14.26; 15.26; 16.7).

O Consolador é Aquele que conforta, exorta, guia, instrui e de­fende; é um amigo que assiste a seus amigos;1006 essas atividades são próprias de uma pessoa não de uma mera força ou influência.

4.2.5. Atos Pessoais São-lhe Atribuídos

1) Trabalha: ICo 12.11.2) Intercede: Rm 8.26, 27.3) Proíbe: At 16.7A) Decide: At 15.28.5) Perscruta: 1 Co 2.10.6) Fala: At 13.2; Ap. 2.7.7) Testifica: Jo 15.26; At 5.32; Rm 8.16.8) Ensina: Ne 9.20; Jo 14.26; ICo 12.3.9) Consola: At 9.31.10) Reprova: Jo 16.8-11.11) Regenera: Jo 3.5; Tt 3.5.12) Ora: Rm 8.26.13) Guia à verdade: Jo 16.13.14) Glorifica a Cristo: Jo 16.14.

lons v d , Richard C. Trench, Synonyms ofthe New Testament, T ed. revised and enlarged, London, Macmillan and Co., 1871, § xcv, p. 337.

1006 Vd. William Barclay, El Nuevo Testamento Comentado, Buenos Aires, La Aurora, 1974, Vol. 15 (D o 2.1-2), pp. 45-48.

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402 EU CREIO.

15) Chama os homens ao trabalho, dirigindo-os nessa ativida­de (Is 61.1; At 13.2-4; 16.6, 7; 20.28).

4.2.6. É Relacionado com as Outras Pessoas

O Espírito é relacionado com seres pessoais, não sendo confun­dido com ninguém, nem com o Pai, nem com o Filho. “A própria associação do Espírito, em tal conexão, com o Pai e com o Filho, visto que se admite serem eles pessoas distintas, prova que o Espí­rito Santo é uma Pessoa” 1007 (Mt 28 .19;I008Lc 1.35; Jo 14.26; 15.26;16.7, 13, 14; At 15.28; 2Co 13.13;1009E f 1.3-14; 2.13-22; 2Ts 2.13, 14; IPe 1.1-2; Jd 20-21).

4.2.7. Em Alguns Textos o Espírito é Distinto de Seu Poder

O Espírito não é confundido com seu poder nem com o daque­les aos quais ele capacita eficazmente (Lc 1.35; 4.14; At 1.8; 2.4; 10.38; Rm 15.13; ICo 2.4; 12.4, 8,11).

4.2.8. Blasfêmia Contra o Espírito

Independentemente da interpretação que dermos a este texto (Mt 12.31-32), o fato é que a blasfêmia é um pecado cometido contra uma pessoa. Aqui o Espírito é relacionado com o Filho no mesmo nível de honra e glória, destacando-se ainda, como imperdoável, a blasfêmia contra o Espírito. “A linguagem aqui usada implica que é impossível cometer um pecado contra uma maior divindade que o

1007 Charles Hodge, Teologia Sistem ática, São Paulo, Editora Hagnos, 2001, p. 391.1008 <*por m ej0 j o batismo professam os reconhecer o Espírito com o reconhecem os o Pai e

o Filho, e nos unimos a um assim com o aos outros. Se quando o Apóstolo diz que os coríntios não foram batizados e í ç -tò õvo|xa naü X ou c quando lhes diz que os hebreus foram batizados em nome de M oisés, sua intenção era mostrar que os coríntios não haviam sido feitos discípulos de Paulo, enquanto os hebreus foram de M oisés; então, quando somos batizados em nome do Espírito, o significado é que no batismo professamos ser seus discípu­los; comprometemo-nos em receber suas instruções e submeter-nos ao seu controle. Coloca- mo-nos na mesma relação com ele que temos com o Pai e com o Filho; reconhecendo-o com o uma Pessoa de maneira tão distinta quanto reconhecemos a personalidade do Filho, ou a do Pai” (Charles Hodge, Teologia Sistemática, São Paulo, Editora Hagnos, 2001, p. 391).

m» iíQ Hspirito Santo é colocado cm igualdade absoluta com o Pai e com o Filho, com o Deus, c é considerado, de maneira idêntica com cies, com o origem de todo o poder e de todas as bênçãos” (Loraine Boettner, Studies in Theology, p. 87).

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Espírito Santo, e que, de todos os pecados, o pecado contra o Espí­rito Santo é o maior, tanto em sua natureza, quanto por suas conse­qüências; tudo isso implica sua dignidade e divindade eternas”, con­clui Boettner.1010

4.3. Divindade

Vimos que o Espírito é uma pessoa; demonstraremos agora que ele é uma Pessoa Divina.

No Antigo Testamento não encontramos a afirmação explícita de que Deus seja um Espírito ou Ser espiritual ou imaterial; toda­via, sugere a idéia de que o Espírito é uma Pessoa distinta de Trin­dade.10" Também, as oposições feitas entre homem-carne e Deus- espírito evidenciam que Deus é Espírito e que seu Espírito é Deus (Is 31.3). Assim temos:

► O homem/carne representa tudo o que é frágil e transitório: Jó10.4-5; SI 78.39; Is 40.6.

► Deus/Espírito representa o poder,1012 a eternidade e a impere- cibilidade: Gn 6.3; Jó 10.4-5; Jr 17.5-8.

Estas sugestões veterotestamentárias recebem maior força e cla­reza no Novo Testamento quando a divindade do Espírito é apre­sentada de forma mais límpida e enfática (cf. Jo 4.24; 2Co 3.17- 18;,013Ef. 2 .22).1014

10l0Loraine Boettner, Studies in Theology, p. 88. Turretini argumenta: “... Como a blasfê­mia dirigida contra o Pai e o Filho supõe que eles são pessoas, do m esm o modo a blasfêmia contra o Espírito Santo” (F. Turretin, Institutes ofE lenctic Theology, Vol. J, IJ1.30.9. p. 305).

1011 Cf. J. Barton Payne, The Theology o f th e O lder Testament, p. 173.1012 Vd. Geerhardus Vos, B iblical Theology: O ld an d N ew Testaments, p. 238; Sinclair B.

Ferguson, O E spírito Santo, p. 18.10,3 Quanto às possíveis interpretações desse texto, vd. Sinclair B. Ferguson, O E spírito

Santo, p. 72. Vd. também H. Bavinck, Our R easonable Faith, pp. 387-388.1014 Peço licença aqui para recordar a analogia feita por B.B . Warfield (1851-1921), já

aludida nestas anotações: “Podem os comparar o Velho Testamento com um salão ricamente m obilado, mas muito mal iluminado; a introdução de luz nada lhe traz que nele não estives­se antes; mas apresenta mais, põe em relevo com maior nitidez muito do que mal se via anteriormente, ou m esm o não tivesse sido apercebido. O mistério da Trindade não é revela­do no Velho Testamento; mas o mistério da Trindade está subentendido na revelação do Velho Testamento, e aqui e acolá é quase possível vê-lo” (B .B . Warfield, A Doutrina B íbli­ca da Trindade, pp. 130-131).

XIX- Creio no Espírito Santo: Suas Perfeições e Dividade 403

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404 EU CREIO.

No Catecismo M aior de Westminster (1648), pergunta 11, lemos:“Como podemos saber se o Filho e o Espírito Santo são Deus, iguais ao Pai?"

“A s Escrituras revelam que o Filho e o Espírito são Deus iguais ao Pai, atribuindo-lhes os mesmos nomes, atributos, obras e culto, os quais só a Deus pertencem” (grifos m eus).1015

Nossa abordagem será circunstancialmente diferente, embora envolva os elementos mencionados no Catecismo.

4.3.1. O Espírito é Chamado Deus: At 5.3-4

4.3.2. Recebe Nomes Divinos

Podemos observar que as expressões “Palavra de Deus” e “Pa­lavra do Espírito” são normalmente usadas de forma intercambiá- vel (Ex 17.7; Hb 3.7-9; Nm 12.6; 2Pe 1.21; SI 95.7-11; Hb 3.7-11; Is 6.3, 8-10; At 28.25; SI 78.17, 21; At 7.51; Jr 31.31-34; Hb 10.15- 17; vd. também Nm 20.2-13; SI 106.32-33).

4.3.3. Perfeições Divinas São-lhe Atribuídas

1) Santidade'. Jo 14.26; Is 63.10.2) Onipresença e imensidão: SI 139.7-10; Jr 23.24.3) Onipotência: Lc 1.35; Rm 15.19.4 ) Onisciência: Is40.13-14;Rm 11.34; 1Co2.10-11;1016 Jo 16.13;

2Pe 1.21.5) Liberdade Soberana: Is 40.13; ICo 12.11;,017Hb 2.4.

10ls Francis Turretini (1623-1687), o campeão da ortodoxia calvinista no século XVII, m esm o sem indicar o C atecism o M aior , segue esta m esm a ordem em sua exposição a res­peito da D ivindade do Espírito (vd. F. Turretin, Institutes o f E lenctic Theology, Vol. I,111.30.12. p. 305ss.).

1016 “O Espírito aqui aparece com o substrato da autoconsciência divina, o princípio do conhecim ento de D eus acerca de si m esmo. Em resumo, e le c sim plesm ente o próprio Deus, na essência do mais recôndito de seu Ser. Tal com o o espírito do homem é o centro da vida humana, assim também o Espírito de Deus é seu próprio elem ento vital. Com o se pode, pois, pensar que está subordinado a Deus, ou que recebe seu Ser de D eus?” (B .B . Warfield, A D outrina B íblica da Trindade, p. 166).

1017 Calvino comenta: “A não ser que o Espírito fosse algo subsistente em Deus, de modo nenhum outorgar-se-lhe-iam arbítrio e vontade” (As Institutas, 1.13.14).

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XIX- Creio no Espírito Santo: Suas Perfeições e Dividade 405

6) Eternidade: Hb 9.14; Gn 1.2.1018

7) Glória: IPe 4.14.8) Graça: Hb 10.29.9) Vida: ICo 15.45; Rm 8.11.4.3.4. Realiza Obras Divinas

O Espírito Santo como Ser Pessoal é o agente executivo da Trinda­de: “Tudo quanto Deus faz, ele o faz por meio Espírito” .1019 Toda­via, deve-se ressaltar que ele é o agente, não uma agência.1020

1) Criação: Gn 1.2-3; Jó 33.4; SI 33.62) Preservação e governo: Jó 26.13; 33.4; SI 104.30.3) Inspiração das Escrituras: 2Pe 1.20, 21; 2Tm 3.16.4) Regeneração: Jo 3.5-6; Tt 3.5.5) Revela os eventos futuros: Lc 2.26; Jo 16.13; At 11.28; lTm 4.1.6) Ressurreição: Rm 8.11; 1 Pe 3.18.7) Confere dons: ICo 12.4-11.8) Governa a Igreja:

a) Decisões: At 15.28.b) Vocação de seus servos: At 13.2; 20.28.

9) Iluminação: Ef 1.17, 18.102110) Santificação: 2Ts 2.13; IPe 1.2.11) Milagres: Mt 12.28.4.3.5. É Adorado: Lc 2.25-29; At 4.23-25; At 1.16, 20; Ef

2.18

Nos textos de Atos fica claro que o Deus adorado é identificado com o Espírito Santo que proferiu as Escrituras. Há o reconheci-

1018 O fato de o Espírito preceder à criação de todas as coisas aponta para sua eternidade (cf. F. Turretin, Institutes o fE len c tic Theology, Vol. 1, III.30.12. p. 306.

1019 Charles Hodge, Teologia Sistem ática, São Paulo, Editora Hagnos, 2001, p. 394.1020 C. Hodge, System atic Theology, Vol. 1, p. 447.1021 A palavra “espírito” aqui tem sido entendida por diversos comentaristas com o refe­

rindo-se ao Espírito Santo, ou à sua influência (vd. Vincent, Alford, Wuest, Foulkes, Russel Shedd, Champlin, Salmond, Hendriksen, entre outros).

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406 EU CREIO.

mento de que o Senhor é o Espírito. “O culto religioso deve ser prestado a Deus o Pai, o Filho e o Espírito Santo - e só a e le ....” .1022

4.3.6. É Colocado em Igualdade com o Pai e o Filho: Mt 28.19; 2Co 13.13

O fato de as Escrituras relacionarem as Três Pessoas da Trinda­de no Batismo e na Bênção Apostólica atesta a igualdade substan­cial da Trindade em poder e glória.1023 Ser batizado no nome do Pai, do Filho e do Espírito equivale a ser entregue a eles para a remissão dos pecados. “Quando o nome de Deus se junta com o do Filho e do Espírito Santo, assume o caráter de perfeição e plenitude (Mt 28.19); trata-se de pensamento trinitariano, ainda que falte aqui uma for­mulação trinitariana precisa.” 1024

4.3.7. Peca-se Contra o Espírito: Mt 12.31-321025

A imperdoabilidade deste pecado envolve o fato de ele ser Deus. Se o Espírito fosse apenas uma força, não se pecaria contra ele; se

1022 Confissão de Westminster, X X I.2.1023 Vd. Catecism o M enor de Westminster, Pergunta 6; Catecism o M aior de W estminster,

Perg. 91024 H. Bietenhard, Nome: ln: NDITNT., 111, p. 2811025 O substantivo que aparece neste texto (duas vezes), BÀacr<j>r||iícc, ocorre também em

Mt 15.19; 26.65; M c 2.7; 3.28; 7.22; 14.64; Lc 5.21; Jo 10.33; E f 4.31; Cl 3.8; lT m 6 .4 ; Jd 9; Ap 2.9; 13.1, 5 , 6; 17.3. O verbo BXaa<[>r||iécD é empregado mais vezes no N ovo Testa­mento (35 vezes) e aquele que blasfema, BA.áa<|>r||ioç, é utilizado 5 vezes (A t 6.11, 13; lT m 1.13 (aqui de forma substantivada); 2Tm 3.2; 2Pe 2.11).

O verbo BA.aa<j>r||iéoí>, que tem o sentido de “injuriar”, “difam ar", “insultar”, “caluni­ar", “m aldizer”, “fa lar mal", “fa lar pa ra danificar” etc. é formado de duas palavras, BX.A v|/iç, derivada de BM jtkü = “injuriar", “prejudicar" (*M c 16.18; Lc 4.35) e <E>r]|ií = “fa ­la r”, “afirmar", “anunciar", “contar", “da r a entender". A Blasfêm ia tem sempre uma conotação negativa de “maldizer”, “caluniar”, “causar má reputação” etc., contrastando com Eü<|>rinícc (“boa fama” *2Co 6.8) e Eti<j>r||ioç (“boa fama” *Fp 4.8; Eti & <|>i1|ir|). No Fragmento 177 de Dem ócrito lemos: “Nem a nobre palavra encobre a má ação, nem é a boa ação prejudicada pela má palavra (BXací<|>r||iía).”

O pecado da blasfêm ia surge no coração do homem (Mt 15.19; M c 7 .2 1 ,2 2 ); e le consis­te, entre outras coisas, em presumir-se com prerrogativas divinas ou ser o próprio Filho de D eus (M t 9.1-3; Mc 2.7; Lc 5.21; Jo 10.33, 36; Mc 14.60-64). A blasfêm ia entristece o Espírito, por isso sua prática deve estar distante de nós (Ef 4.25-32; Cl 3.8; Tt 3.2; lP e 4 .1 - 4). A falsa doutrina propicia a prática da blasfêm ia (IT m 6.3, 4), bem com o os falsos mestres (2Pe 2.1-2 , 10-12). Esta será uma das características dos hom ens nos últimos tem­pos (2Tm 3.1-2). Paulo diz que sua perseguição aos cristãos fora tão pesada, que estes

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XIX- Creio no Espírito Santo: Suas Perfeições e Divídade 407

foram obrigados a blasfemar (At 26.11); sendo ele m esm o um blasfem o (1 Tm 1.13). O mal testemunho dos judeus contribuía para que os gentios blasfem assem o nom e de Deus (Rm 2.24, citando Is 52.5; compare com a orientação de Paulo, lT m 6.1; Tt 2.5). N o entanto, não devem os entristecer-nos se som os blasfemados por causa de nossa fidelidade a Deus; esta é uma evidência de que o Espírito glorioso de D eus repousa sobre nós (IP e 4.14). A blasfêm ia é uma prática própria da “besta”, que blasfema contra o nome de Deus (Ap 13.1, 5, 6; 17.3). Parece que os efésios estavam combatendo Paulo sob a insinuação de que e le havia blasfemado contra a deusa Diana (At 19.32, 37). Alguns hom ens foram subornados para dizer que ouviram Estêvão blasfemar contra Deus e M oisés (At 6.11 -13). BXáff<t>r)|ioç “expressa o ‘caluniar’ de uma pessoa; é a expressSo mais forte da difamação pessoal” (H. W ahrisch & C. Brown, Blasfêmia: In: NDITNT., I, p. 312). Xerxes, quando convoca seus soldados a marcharem contra Atenas, diz que os atenienses “blasfemaram” (injuriaram, insultaram) contra seu pai e seu povo (Heródoto, H istória, VII.8).

Em Platão (427-347 a.C.) é considerada blasfêm ia atribuir aos deuses determinadas for­mas humanas, conform e fizeram primariamente os poetas e as mães que assim aprendiam e transmitiam a seus filhos estas estórias (A República , 7“ ed. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, II, 38 le).

N o N ovo Testamento, este grupo de palavras é usado predominantemente no sentido religioso: “c a l u n i a i “difam ar” . O verbo BXaa<J>T)|iéco, empregado de forma absoluta, in­dica uma blasfêm ia contra D eus (cf. M t 26.65a; M c 2.7; lo 10.36); do m esm o m odo ocorre com o substantivo BA.ao(j)T||ita (cf. Mt 26.65b; Mc 14.64; Lc 5.21; Jo 10.33 etc.). “N o NT o conceito de blasfêm ia é controlado completamente pelo pensamento de violação do poder e majestade de Deus. Blasfêm ia pode ser dirigida imediatamente contra Deus (Ap 13.6; 16.11, 21; A t 6.11), contra o nome de Deus (Rm 2.24; lT m 6.1; Ap 16.9), contra a Palavra de Deus (Tt 2.5), contra M oisés e Deus e, conseqüentemente, contra o fundamento da reve­lação na Lei (At 6.11)” (H.W. Beyer, BA.aa<t>r||iía: In: TDNT., I, pp. 622-623). Na LXX este pensam ento é predominante: a blasfêmia é contra a majestade e glória de Deus. Para o judeu, falar de forma ímpia contra M oisés ou a Lei significa blasfemar (vd. At 6.11). Para o judaísm o do período anterior ao Cristianismo - conform e interpretação que faziam de Dt 21.22-23 - , morrer numa cruz significava uma blasfêmia, sendo este tipo de morte uma m aldição divina (vd. Gl 3.13; cf. O. Hofius, BXaa<t>r||iía: In: Horst Balz & Gerhard Schnei- der, eds. Exegetical D ictionary o f N ew Testament, Grand Rapids, M ichigan, Eerdmans, 1978-1980, Vol. I, p. 221 (doravante citado com o EDNT).

Hendriksen, que traduz “blasfêm ia” com o sendo uma “irreverência desafiante” , com en­tando Mt 10 .3 1 ,32 , diz: “A blasfêm ia contra o Espírito Santo é o resultado de um progresso gradual no pecado. Entristecer o Espírito (E f 4.30), se não há arrependimento, conduz a resistir o Espírito (At 7.51), o qual, a persistir nele, se desenvolve até apagar o Espírito (lT s5 .19 )” (G. Hendriksen, El Evangelio Segun San M ateo, Grand Rapids, M ichigan, SLC., 1986, p. 555).

Seja qual for as nuanças interpretativas, este pecado, segundo nos parece, é resultado de uma rejeição consciente, deliberada, arrogante e despreocupada da obra do Espírito em Cristo, atribuindo-a de forma provocativa, e por isso blasfema a Satanás. Este pecado é imperdoável porque quem o com ete não está disposto a arrepender-se e, portanto, não dese­ja ser salvo. Rejeitar o Espírito de Cristo significa rejeitar os atos salvadores da Trindade: do Pai, do Filho e do Espírito Santo. O Espírito procede do Pai e do Filho; sua obra consiste em dar testemunho do Pai e do Filho; rejeitá-lo significa repudiar seu O fício (sugestões para leitura: H.W. Beycr, BAaaijrriuía: In: TDNT., I, 621-625; G. Hendriksen, El Evangelio Segun San M ateo, pp. 553-555; O. Hofius, BA.aa<t>r||iía: ln: EDNT., 1, pp. 219-221; W. W ahrisch & C. Brown, Blasfemar: In: NDITNT., I, pp. 312-316; P.H. D avis, B lasfêm ia e

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408 EU CREIO.

por outro lado fosse apenas um ser pessoal finito, o pecado contra ele não seria imperdoável... “Se não fosse Deus, o pecado cometido contra ele seria considerado menos odioso do que quando cometido contra o Pai ou o Filho”1026(vd. Is 63.10; At 5.3).

Bavinck comenta enfaticamente, apresentando também um tom pastoral:

“O pecado do endurecimento alcança sua expressão máxima na blasfê­mia contra o Espírito Santo. Jesus fala sobre isso em um contexto de séria desavença com os fariseus. Quando ele curou um homem que era cego e mudo e que estava possuído por um demônio, as multidões ficaram tão maravilhadas que clamaram: ‘Esse não é o Filho de Davi, o Messias, pro­metido por Deus a nossos pais?’.

“Mas essa honra dada a Cristo levantou ódio e inimizade entre os fari­seus e eles declararam o contrário, dizendo que Cristo expulsava demônios por Belzebu, o príncipe dos demônios. Dessa forma eles assumiram uma posição diametralmente oposta a Cristo. Em vez de reconhecê-lo como o Filho de Deus, o Messias, que expulsa os demônios pelo Espírito de Deus e que estabelece o reino de Deus na terra, eles disseram que Cristo é um cúmplice de Satanás e que sua obra é diabólica. Contra essa terrível blas­fêmia Jesus preserva sua dignidade, refutando a afirmação dos fariseus e m ostrando sua insensatez, e ao final de sua réplica ele acrescenta essa gra­ve adm oestação: ‘Todo pecado e blasfêmia serão perdoados aos homens; mas a blasfêmia contra o Espírito não será perdoada. Se alguém proferir alguma palavra contra o Filho do Homem, ser-lhe-á isso perdoado; mas se

Blasfêm ia contra o Espírito Santo: ln: EHTIC., I, pp. 196-198; R.P. Martin, Blasfêmia: In: J.D. D ouglas, ed. org. O N ovo D icionário da B íblia, São Paulo, Junta Cristã Editorial, 1966, Vol., 1, pp. 221-222 (doravante citado com o NDB); Frank Stagg, Mateus: In: Clifton J. A llen, ed. ger. Com entário B íblico Broadm an, R io de Janeiro, JUERP, 1983, Vol. VIII, p. 190 (doravante citado com o CBB); Russel N . Champlin, O N ovo Testamento Interpretado, Guaratinguetá, SP, A Voz Bíblica (s.d.), Vol. 1, pp. 391-392 (doravante citado com o NT1); S.A. Broadus, C om entário do Evangelho de M ateus, 3“ ed. R io de Janeiro, Casa Publicado- ra Batista, 1966, Vol. I, pp. 356-358; Alexander B. Bruce, The Synoptic Gospels: ln: W. Robertson, N icoll, ed. The Expositor's G reek Testament, Grand Rapids, M ichigan, Eerd- mans, 1983 (reprinted), Vol. I, pp. 188-190; W illiam Barclay, El N uevo Testamento C o­m entado, Buenos Aires, La Aurora, 1973, Vol. II, pp. 48-53; J.I. Packer, Teologia Con­cisa, Campinas, SP, Luz para o Cam inho, 1999, pp. 225-226; Sinclair B . Ferguson, O E spí­rito Santo, pp. 65-66; Herman Bavinck, O ur R easonable Faith, pp. 252-254; Edwin H. Palmer, El Espiritu Santo, Edinburgh, El Estandarte de la Verdad (s.d.), edição revista, pp. 226-238).

1026 John L. D agg, M anual de Teologia, São Paulo, FIEL, 1989, p. 192.

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XIX- Creio no Espírito Santo: Suas Perfeições e Dividade 409

alguém falar contra o Espírito Santo, não lhe será isso perdoado, nem nes­te mundo nem no porvir’ (Mt 12.31, 32).

“A s próprias palavras e o contexto no qual elas aparecem claramente indicam que a blasfêmia contra o Espírito Santo não acontece no começo nem no meio do caminho do pecado, mas no fim. Ela não consiste de uma dúvida ou de incredulidade a respeito do que Deus revelou, nem de uma resistência ou de uma murmuração contra o Espírito Santo, pois esses pe­cados podem ser cometidos também pelos crentes. M as a blasfêmia contra o Espírito Santo acontece somente quando ele se apresenta à consciência humana com uma rica revelação de Deus e com uma poderosa iluminação espiritual que o homem fica completamente convencido em seu coração e em sua consciência da verdade da divina revelação (Hb 6.4-8; 10.25-29; 12.15-17).

"O pecado consiste em que essa pessoa, apesar de toda a revelação obje­tiva e da iluminação subjetiva, a despeito do fato de que ela tem conheci­do e provado a verdade como verdade, de forma consciente e com intento deliberado diz que a verdade é mentira e castiga Cristo como instrumento de Satanás. Nesse pecado o humano se torna diabólico. Não, isso não con­siste de dúvida e incredulidade, mas de um rompimento total da possibili­dade de arrependimento ( l jo 5.16). Esse pecado vai muito além da dúvi­da, da incredulidade e do arrependimento. Apesar do fato de que o Espíri­to Santo é reconhecido como sendo o Espírito do Pai e do Filho, ele é, em um testemunho diabólico, blasfemado. Nesse ápice o pecado se torna tão descaradamente demoníaco que lança fora todo vestígio de vergonha, des­faz-se de toda vestimenta e se apresenta nu e cru, despreza todas as apa­rentes razões, manifesta todo o seu prazer no mal e se levanta contra a vontade e a graça de Deus. E, portanto, uma grave adm oestação essa que Jesus dá em seu ensino sobre a blasfêmia contra o Espírito Santo. Mas nós não devemos esquecer o conforto que está contido nesse ensino, pois se esse pecado é o único pecado imperdoável, até mesmo os maiores e os mais seve­ros podem ser perdoados. Eles podem ser perdoados não através de exercíci­os penitenciais humanos, mas pelas riquezas da graça de Deus.”1027

4.3.8. O Templo do Espírito é o Templo de Deus: Rm 8.9-10;1 Co 3.16; 6.19

O que nos qualifica como “templos de Deus” é a habitação do Espírito Santo em nós. Logo, somos “Templo do Espírito”, porque Deus habita em nós.

io2? Herman Bavinck, Our Reasonable F aith , pp. 253-254.

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410 EU CREIO.

4.4. Espírito de Justiça e Purificador: Is 4 .4 ; Jo 16.8

A manifestação do Espírito indica a presença do Reino de Deus. Uma das características do Reino é ajustiça no Espírito (Rm 14.17).

4.5. Espírito da Promessa: Ef 1.13; At 1.4, 5; 2.33

O Espírito cumpre as promessas de Cristo em nós, sendo ele mesmo parte do cumprimento daquilo que Jesus prometeu (Jo 14.26; 16.7).

4.6. Espírito da Verdade: Jo 15.26; 16.13

O Espírito dá testemunho de Cristo, que é a verdade (Jo 15.26; Jo 14,6); nos guia à verdade (= Cristo, Jo 16.13; Jo 14.6) e age através da Palavra, que é a verdade de Deus, criando em nós a fé salvadora e nos conduzindo à santificação (Jo 17.17,19; Rm 10.17; 2Co 3.18; 2Ts 2.13; IPe 1.2).

4.7. Espírito da Vida: Rm 8.2

Temos vida através do Espírito que nos regenerou (Tt 3.5), con­duzindo-nos a Cristo (Jo 10.10). Dele receberemos a vida eterna.

4.8. Espírito da Graça: Hb 10.29

Ele aplica a graça de Deus em nossos corações, fazendo-nos acei­tar os merecimentos de Cristo que graciosamente nos são oferecidos.

4.9. Espírito da Glória: 1 Pe 4.13-14

O Espírito é glorioso: toda a Trindade é gloriosa na beleza har­moniosa de suas eternas perfeições. A glória do Pai permanece invisível a todos nós até que ela se torne visível em Cristo; isto acontece pelo Espírito, que nos conduz a ele: o Filho nos revela o Pai, o Espírito nos revela o Filho. O Espírito glorifica a Cristo (Jo16.14) e é em nós o embrião da glória futura (Rm 8.18; 2Co 4.17).

4.10. Espírito Consolador: Jo 14.26

Ele nos consola de várias maneiras. Creio que ele o faz de modo

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XIX - Creio no Espírito Santo: Suas Perfeições e Dividade 411

efetivo, testificando continuamente'028 em nós que somos filhos de Deus (Rm 8.16).

4.11. Espírito Santo: Mt 3.11; Lc 12.12; Jo 1.33; At 5 .32; 7.51; 8.15 etc.

Este é o nome que tem primazia nas Escrituras para referir-se ao Espírito. Isto ocorre “para indicar tanto sua natureza quanto suas operações. Ele é absolutamente santo em sua própria natureza e a causa da santidade das criaturas.” 1029

5. A PROCEDÊNCIA DO ESPÍRITO SANTO

O Espírito Santo é chamado Espírito do Pai (Mt 10.20; Lc 11.13; ICo 6.19; lTs 4.8) e Espírito do Filho (GI 4.6; Fp 1.19; IPe 1.11), sendo enviado por Deus (At 5.32) Pai (Jo 14.26; G14.6) e Filho (Jo15.26).

Segundo me parece, o texto que mais especificamente trata des­ta relação Trinitária é o de Romanos, quando Paulo diz: “Vós, p o ­rém, não estais na carne, mas no Espírito, se de fa to o Espírito de Deus habita em vós. E se alguém não tem o Espírito de Cristo, esse tal não é dele” (Rm 8.9).

Paulo estabelece uma relação de identificação entre o Espírito de Deus e o Espírito de Cristo, que é um e o mesmo Espírito que habita em nós e nos identifica como propriedade de Deus e de Cris­to (vd. também 2Co 1.21, 22; 5.5; Ef 1.13, 14; 4.4, 30). “O mesmo Espírito é comum ao Pai e ao Filho, o qual é com eles de uma só essência e possui a mesma Deidade eterna.” 1030

A relação Trinitária foi compreendida pela Igreja da seguinte forma: Quando falamos do Filho em relação ao Pai, dizemos que aquele é gerado (y£Vvr)0évTa) do Pai e quando nos referimos ao Espírito, declaramos que ele é procedente (èK7iopst)ó(ievov)1031 do

iras y d . A.A. Hoekema, Salvos pela G raça , São Paulo, Editora Cultura Cristã, 1997, p. 36. 10M Charles Hodge, Teologia S istem ática , São Paulo, Editora Hagnos, 2001, p. 389.1030 João Cal vino, E xposição de Rom anos (Rm 8.9), p. 271.1031 YEwr|0 é w a e èK7topE\)ó|XEVov são expressões usadas no Credo Niceno-Constantino-

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412 EU CREIO.

Pai e do Filho.1032 Esta relação ocorre eternamente, sem princípio nem fim, jamais havendo qualquer tipo de mudança na essência (oÜ0Ía) divina, 1033 nem qualquer tipo de subordinação ontológica; “a subordinação pensada é somente aquela concernente ao modo de subsistência e operação, sugerida naquelas ocorrências na Escritura que o Filho é do Pai, e o Espírito é do Pai e do Filho, e que o Pai opera através do Filho, e o Pai e o Filho, através do Espírito.” 1034 Portanto, a subordinação não é ontológica, mas, sim, existencial (econômica). Deste modo, a nomenclatura Pai, Filho e Espírito Santo é apenas um designativo que implica uma correlação intertrinitária que é necessária e eterna, não uma primazia de essência, no que resultaria em diferenças de honra e glória.1035

O Quarto Concílio Ecumênico, realizado em Calcedônia (8-31/ 10/451) ratificou 0 Credo de Nicéia (325) e o de Constantinopla (381). Seu objetivo era estabelecer uma unidade teológica na Igre­ja. Apesar de sua preocupação dominante ser concernente às ques-politano (381). Quanto à distinção das expressões, e o significado da “procedência”, con­fesso minha ignorância, juntamente com A gostinho (354-430) e João D am asceno (c. 675- 749; vd. F. Turretin, Institutes o f Elenctic Theology, Vol. I, 111.31.3; J. Oliver B usw ell, A System atic Theology o f the Christian R eligion, Grand Rapids, .Michigan, Zondervan, ã 1962,1 , pp. 119-120).'

1032 Com o já m encionam os supra, a expressão “e do F ilho”, em latim “Filioque”, foi acrescentada no Concílio local de Toledo (589).

1033 “o Pai é entendido com o o primeiro princípio (archê) da Trindade e, por conseguinte, com o o princípio unificador da hypostases [iSjtóaToteriç]. O Filho é gerado do Pai, e o Espírito é procedente do Pai através do Filho” (Trinitas: ln; Richard A. Muller, D ictionary o fL atin and G reek Theological Terms, 4a ed. Grand Rapids, M ichigan, Baker B ook House, 1993, p. 308). N o entanto, a expressão do autor, “o Espírito procedente do Pai através do Filho”, não corresponde à compreensão de N icéia e Constantinopla, visto que esta fórmula, de certo m odo inspirada em Gregório de N issa (c. 335-C.394) - que m odelou a teologia oriental fo i rejeitada por Agostinho (354-430), para evitar qualquer tipo de subordinação (Agostinho, A Trindade, São Paulo, Paulus, 1994, V.14.15. pp. 208-210). (Vd. J.N.D. Ke­lly, D outrinas C entrais da Fé Cristã, p. 198.)

10:14 Charles Hodge, System atic Theology, Vol. 1, p. 461.io35 “a propriedade peculiar e pessoal da terceira pessoa é expressa pelo título Espírito,

Esse título não pode expressar sua essência, visto que sua essência é também a essência do Pai e do Filho. Ele deve expressar sua eterna relação pessoal com as outras pessoas divinas, visto ser e le uma pessoa constantemente designada com o o Espírito do Pai e o Espírito do Filho” (Archibald A. Hodge, Confissão de Fé Westminster C om entada p o r A.A. H odge, São Paulo, Editora os Puritanos, 1999, Capítulo 11, p. 91; vd. também, A .A . H odge, E sbo­ços de Theologia, Lisboa, Barata & Sanches, 1895, pp. 151-152).

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tões referentes ao Filho, encontramos em sua declaração termos que se tornaram padrão dentro da teologia para se referirem à Trindade.

Retornando à nossa linha mestra, devemos enfatizar que a rela­ção Trinitária tem sido compreendida pela Igreja como uma proce­dência eterna e necessária do Espírito, da parte do Pai e do Filho. As palavras de Agostinho (354-430) tornaram-se basilares na com­preensão Ocidental: “O Espírito Santo, conforme as Escrituras, não é somente o Espírito do Pai, nem somente o Espírito do Filho, mas de ambos.”1036Daí a Confissão de Westminster (1647), refletindo esta compreensão bíblica conforme a tradição teológica ocidental, dizer: “O Espírito Santo é eternamente procedente do Pai e do Fi­lho” (II.3; Jo 15.26; G1 4.6).

Edwin H. Palmer coloca a questão da “procedência” do Espíri­to nos seguintes termos:

“Sua procedência não quer dizer que seja inferior ao Pai e ao Filho, do mesmo modo que pelo fato de o Filho ser gerado tampouco significa que não esteja num plano de igualdade com o Pai. O segredo está no fato de que o Espírito foi ETER N A M EN TE espirado, do mesmo modo que o Fi­lho foi eternamente gerado. Nunca houve um tempo em que o Espírito não fosse espirado. Tem coexistido eternamente com o Pai e o Filho. Dizer que procedeu de, ou foi espirado do Pai e do Filho não implica que seja menos Deus; só fala da relação que sustenta eternamente com as outras duas Pessoas da Trindade.”1“ 7

Nossos termos serão sempre limitados, meras alusões à com-1016 Agostinho, A Trindade, São Paulo, Paulus, 1994, XV.17.27. p. 522. Vd. também:

IV.20.29; V.14.15; XV.17.29; 26.47; 27.50.1037 Edwin H. Palmer, El Espiritu Santo, p. 15. Berkhof coloca desta forma: “O eterno e

necessário ato da primeira e da segunda pessoas da Trindade pelo qual elas, dentro do Ser D ivino, vêm a ser a base da subsistência pessoal do Espírito Santo, e propiciam à terceira pessoa a posse da substância total da essência divina, sem nenhuma divisão, alienação ou mudança” (L. Berkhof, Teologia Sistem ática, Campinas, SP, Luz para o Caminho, 1990, p. 98; vd. também, A.H. Strong, System atic Theology, 35a ed. Valley Forge, Pa., Judson Press, 1993, pp. 340-343; F. Turretin, Institu tes o f E lenctic Theology, Vol. I, Iíí.31 .3ss. pp. 308- 310; A .A . H odge, E sboços de Theologia, pp. 151-152; Charles Hodge, Teologia Sistem áti­ca, São Paulo, Editora Hagnos, 2001, p. 394; Loraine Boettner, Studies in Theology, pp. 122-124; Herman Bavinck, The D octrine o fG o d , p. 310ss; L. Berkhof, Teologia S istem á­tica, pp. 97-98; R.L. Dabney, Lectures in System atic Theology, Grand Rapids, M ichigan, Baker Book House, 1985 (reprinted), XIX, pp. 210-211).

XIX - Creio no Espírito Santo: Suas Perfeições e Dividade 413

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414 EU CREIO.

plexidade do Ser divino,1038 por isso podemos no máximo trabalhar dentro dos limites da Revelação, ter uma compreensão pálida deste mistério, que certamente ultrapassa em muito nossa percepção e, mais ainda, à nossa linguagem, no esforço de expressar o que percebemos;1039 no entanto, se a doutrina da Trindade nos foi reve­lada nas Escrituras, fazendo parte do desígnio de Deus, tem por certo “utilidade” para a vida da Igreja;1040 nada na Escritura é ocioso (At 20.27; 2Tm 3.16); ocioso e ingrato1041 é deixar de considerar “todo o desígnio de Deus” 1042 ou tentar ultrapassá-lo. Quanto a este último perigo, talvez mais tentador para nós teólogos, cabe a advertência de Calvino (1509-1564), ao encerrar o capítulo sobre a Trindade:

“Espero que pelo que temos dito, todos os que temem a Deus verão que ficam refutadas todas as calúnias com que Satanás tem pretendido até o dia de hoje perverter e obscurecer nossa verdadeira fé e religião. Final- mente confio em que toda esta matéria haja sido tratada fielmente, para que os leitores refreiem sua curiosidade e não suscitem, mais do que é lícito, molestas e intrincadas disputas, pois não é minha intenção satisfazer aos que colocam seu prazer em suscitar sem medida algumas novas espe­culações.

1038 Este tipo de comentário poderia induzir o leitor à com preensão de que desvaloriza­mos os termos teológicos; o que estaria extremamente distante de nossa convicção e pers­pectiva. Os termos teológicos, em grande parte, são expressões humanas na elaboração da fé conform e revelada nas Escrituras; portanto, limitados; no entanto, servem de referências para expressar a com preensão bíblica formulada através da história. Desprestigiar gratuita­mente as expressões teológicas tem, em geral, contribuído para o empobrecimento da dou­trina bíblica e, conseqüentemente, o enfraquecimento da vida cristã.

"m “A linguagem é a primeira tentativa do homem para articular o mundo de suas per­cepções sensoriais. Esta tendência é uma das características fundamentais da linguagem humana” (Ernst Cassirer. A ntropologia Filosófica, 2“ ed. São Paulo, M estre Jou, 1977, p. 328).

im o í ‘q artjg0 s o b r e a santa Trindade é o coração e o núcleo de nossa confissão, a marca registrada de nossa religião e o prazer e conforto de todos aqueles que verdadeiramente crêem em Cristo,

“Essa confissão foi a âncora na guerra de tendências através dos séculos. A confissão da santa Trindade é a pérola preciosa que foi confiada à custódia da Igreja Cristã” (Herman Bavinck, O ur R easonable Faith, p. 145).

1041 Vd. J. Calvino, A í Instituías, 111.21.4.,<m Calvino também aqui tem algo a dizer: “A Escritura c a escola do Espírito Santo, na

qual, com o nada é om itido não só necessário, mas também proveitoso de conhecer-se, as­sim também nada é ensinado senão o que convenha saber” (J. Calvino, A s Instituías, III.21.3).

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"Certamente, nem conscientemente nem por malícia omiti o que pode­ria ser contrário a mim. Mas, como meu desejo é servir à Igreja, me pare­ceu que seria melhor não tocar nem revolver outras muitas questões de pouco proveito e que resultariam enfadonhas aos leitores. Porque, de que serve discutir se o Pai gera sempre? Tendo como indubitável que desde a eternidade há três Pessoas em Deus, este ato contínuo de gerar não é mais que uma fantasia supérflua e frívola.”1043

Por outro lado, se os termos são imperfeitos e imprecisos, deve­mos sempre lembrar que somente a Escritura é inspirada e infalível, não nossos termos e interpretações. O ponto, portanto, que deve ser priorizado é a realidade por trás dos termos. Procede esta compre­ensão?, deve ser sempre a pergunta do estudante sincero, desejoso de conhecer mais a Palavra de Deus. Bavinck mais uma vez nos é imprescindível em suas observações a respeito da elaboração dou­trinária da Igreja:

“Para satisfazer a essa exigência a Igreja Cristã e a teologia cristã primiti­va fizeram uso de várias palavras e expressões que não podem ser encon­tradas literalmente nas Sagradas Escrituras. A Igreja começou a falar da essência de Deus e de três pessoas nessa essência do Ser divino. Ela falava de características triúnas e trinitárias, ou essenciais e pessoais, da eterna gera­ção do Filho e da procedência do Espírito Santo do Pai e do Filho, e outros termos semelhantes.

“N ão há razão pela qual a Igreja Cristã e a teologia cristã não devam usar esses termos e expressões, pois as Sagradas Escrituras não foram dadas por Deus à Igreja para ser desconsideradamente repetida, mas para ser enten­dida em toda a sua plenitude e riqueza, e para ser reafirmada em sua pró­pria linguagem para que dessa forma possa proclamar os poderosos feitos de Deus. Além disso, tais termos e expressões são necessários para manter a verdade da Escritura contra seus oponentes e colocá-la em segurança contra equívocos e erros humanos. E a história tem mostrado através dos séculos que a despreocupação com esses nomes e a rejeição deles conduz a vários afastamentos da confissão.

“Ao mesmo tempo nós devemos, no uso desses termos, lembrar-nos de que eles são de origem humana, e portanto limitados, sujeitos a erro e falíveis. Os Pais da Igreja sempre reconheceram isso. Por exemplo, eles afirmavam que o termo pessoas, que foi usado para designar as três formas

XIX - Creio no Espírito Santo: Suas Perfeições e Dividade 415

,m J. Calvino, Institución, 1.13.29.

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416 EU CREIO.

de existência no Ser divino não fazem justiça à verdade, mas servem de ajuda para manter a verdade e eliminar o erro. A palavra foi escolhida, não porque fosse a mais precisa, mas porque nenhuma outra melhor foi encon­trada. Nesse caso a palavra está atrás da idéia, e a idéia está atrás da reali­dade. Apesar de não poder preservar a realidade a não ser dessa forma, nós nunca devemos esquecer que é a realidade que conta, e não a palavra. Certam ente na glória outras e melhores palavras e expressões serão colo­cadas em nossos lábios.”1044

Na procedência do Espírito da parte do Pai e do Filho temos uma relação trinitária ontológica e econômica; em outros termos, partindo do princípio de que a revelação de Deus alude à essência de Deus, através da manifestação da Trindade, vemos, limitada­mente, aspectos da relação essencial da Trindade. Privar-nos desta compreensão (procedência do Pai e do Filho) equivale a empobre­cer nossa compreensão de Deus conforme nos foi dado conhecer na Palavra e definitivamente em Jesus Cristo. Corremos o risco de cair parcialmente num agnosticismo teológico.1045

IM PLICAÇÕES DOUTRINÁRIAS E PRÁTICAS

1) “Que é o que crês a respeito do ‘Espírito santo’?”“R. Primeiro, que com o Pai e o Filho é ele igualmente Deus

eterno; segundo, que ele me é dado também, e, mediante a verda­deira fé me faz participante em Cristo e de todos os seus benefícios, que ele me conforta e ficará comigo para sempre.” 1045

2) O Espírito é um Ser Pessoal, que age livremente em harmo­nia com o Pai e com o Filho.

3) O Pai, o Filho e o Espírito Santo são iguais em Poder, Honra e Glória. “A Divindade do Pai, do Filho e do Espírito Santo é uma: a glória igual e majestade co-eterna.” 1047

l044 Herman Bavinck, O ur Reasonable Faith , pp. 157-158.nus Y(j Sinclair B. Ferguson, O E spírito Santo, p. 102.1046 C atecism o de H eidelberg, Perg. 53.1047 O C redo A tanasiano, Art. 6.

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XIX- Creio na Espírito Santo: Suas Perfeiçães e Dividade 41 7

4) A Trindade é gloriosa. Quando cultuamos a Deus sincera­mente, dentro dos preceitos bíblicos, estamos glorificando a Deus: Pai, Filho e Espírito Santo. Como tem sido sua participação no culto?

5) Todos os crentes em Cristo têm em si o Espírito Santo, que é o selo de nossa salvação. Nosso corpo é templo do Espírito (ICo 6.19; Ef 2.21-22). Desonrar nosso corpo é o mesmo que desonrar o templo de Deus.

6) “O Espírito Santo verdadeiramente procede de um (Pai) e outro (Filho), desde a eternidade e deve ser com ambos adorado.” 1048

104S A Segunda Confissão H elvética, 111.

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XX-A IGREJA DE DEUS: UNA, SANTA E UNIVERSAL--------------------------------------------------------------------------------

IN TRO D U ÇÃO

ACristologia consiste na compreensão da Igreja a respeito da Pessoa e Obra de Cristo. Na Eclesiologia, deparamo-nos com o estudo concernente ao Corpo de Cristo, do qual somos parte inte­

grante. Na Teologia Reformada, esta compreensão - Cristológica e Eclesiológica - é buscada na Palavra de Deus, em submissão ao Espírito, considerando também as contribuições formuladas pela igreja através da história. Nesta consideração histórica, devemos ter em mente que: a) somente as Escrituras são infalíveis, não as interpretações das Escrituras, quer pretéritas, quer presentes;1049 b) o Espírito age na igreja e através dela, na interpretação da verdade revelada, conduzindo-a à verdade (Jo 14.26; 16.13-15; 2Pe 1.3-15). Por isso, de modo algum podemos desconsiderar gratuitamente as contribuições históricas, sem corrermos o risco de anular o que o Espírito tem feito através de seus servos.1050 Portanto, c) a fé nunca pode estar dissociada dessa pesquisa.'051

O que Tillich (1886-1965) diz a respeito da “Teologia” também se aplica à Cristolo- gia e à Eclesiologia: “A tarefa da teologia é m ediação, mediação entre o critério eterno da verdade m anifesto na figura de Jesus, o Cristo, e as experiências mutáveis dos indivíduos e dos grupos, suas variadas questões e suas categorias de percepção da realidade. Quando se rejeita a tarefa mediadora da teologia, rejeita-se a própria teologia; pois o termo ‘teo-logia’ pressupõe, em si, uma m ediação, a saber, entre o mistério, que é theos, e a compreensão, que é logos” (Paul Tillich, A Era Protestan te, São Paulo, Instituto Ecum ênico de Pós- Graduação em Ciências da R eligião, 1992, p. 15; vd. Hermisten M.P. Costa, A Inspiração e Inerrância das Escrituras: Uma P erspectiva Reform ada).

1050 Vd. Hermisten M.P. Costa, A Igreja Presbiteriana e os Símbolos de Fé, São Paulo, 2000.1051 Com o bem observou Cari E. Braaten, “A Cristologia não é uma disciplina científica

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XX-A Igreja de Deus: Una, Santa e Universal 419

A Cristologia constitui o cerne de toda a Teologia Cristã'052 Ela é o eixo da Teologia Bíblica: uma visão defeituosa da Pessoa e Obra de Cristo determina a existência de uma “teologia” divorcia­da da plenitude da Revelação bíblica. A consciência deste fato deve nortear nosso labor cristológíco e também servir como referência e ponto de partida teológico... Não podemos falar do corpo em detri­mento ou à revelia de sua cabeça.1053 Fazer esta separação significa dilacerar o Corpo de Cristo e, conseqüentemente, a Cabeça. A vi­são correta a respeito da Igreja passa, necessariamente, pela correta compreensão de quem é o Cristo, o Filho de Deus.

Quando tratamos da Igreja, é natural que alguém pergunte: de qual igreja estamos falando? De fato, com a variedade de denomi­nações e seitas supostamente cristãs, que amiúde se dizem detento­ras da verdade, torna-se difícil identificar a “verdadeira Igreja de Deus”, distinguir o joio do trigo. Quando isso acontece, há a ten­dência de se generalizar, repudiando todas as igrejas ou passando a olhá-las com ceticismo e ironia.que possa ser perseguida apropriadamente à parte do discipulado da fé. (...) Ninguém pode chamar Jesus de o Cristo puramente com o resultado de pesquisa científica histórica” (C.E. Braaten, A Pessoa de Jesus Cristo: ln: Cari E. Braaten & Robert W. Jenson, eds. D ogm ática C ristã , São Leopoldo, RS, Sinodal, 1990, Vol. I, p. 462).

1052 Vd. Wolfhart Pannenbcrg, Fundam entos de C risto logia , Barcelona, Ediciones Sígue- me, 1973, pp. 27-28; Donald M. B aillie, Deus E stava em Cristo, São Paulo, ASTE, 1964, p. 51. Após redigir estas linhas, li o conhecido teólogo luterano Braaten, que diz: “Cristolo­gia é a doutrina da Igreja acerca da pessoa de Jesus com o o Cristo. Ela sempre ocupa lugar central num sistema dogmático que reivindica ser cristão. Toda tentativa de remover a cris­tologia de seu lugar central ameaça o cerne da fé cristã. O princípio cristocêntrico da teolo­gia não rivaliza com um ponto de vista teocêntrico. Quem quer que olhe para Jesus, o Cristo, a partir da perspectiva do N ovo Testamento, estará inevitavelm ente situado dentro de um quadro de referência teocêntrico. Quanto mais profundamente a teologia sonda o significado de Jesus com o o Cristo dc Deus, tanto mais diretamente é levada ao próprio Deus de Cristo....

“A dogmática cristã é cristocêntrica na medida em que nenhuma doutrina pode ser cha­mada de cristã se não contém uma conexão significativa com a revelação definitiva de Deus na pessoa de Jesus, o Cristo” (Cari E. Braaten, A Pessoa de Jesus Cristo: In: Cari E. Braaten & Robert W. Jenson, eds. D ogm ática Cristã, São Leopoldo, RS, Sinodal, 1990, Vol. 1, p. 459). D o m esm o m odo, Erickson: “Quando passamos a estudar a pessoa e a obra de Cristo, estam os bem no centro da teologia cristã” (M illard J. Erickson, Introdução à Teologia Sistem ática, São Paulo, Vida N ova, 1997, p. 275).

1053 Vd. as pertinentes observações de Jacques de Senarclens, H erdeiros da Reform a, São Paulo, ASTE, 1970, pp. 330-331.

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Neste capítulo pretendemos apresentar algumas evidências bí­blicas, teológicas e históricas que revelam a identidade da Igreja Cristã.1. A IGREJA DE DEUS

1.1. Considerações Gramaticais

Nossa palavra “Igreja” é uma tradução do grego èKKÀ/riGÍa, que no grego antigo significava uma assembléia de cidadãos con­vocados pelo pregoeiro; a assembléia legislativa (At 19.32 ,39 ,40). A palavra èKKÀ,r|CTÍa é formada por duas outras: èK (“fora de") & KaÀ,éco (“chamar”, “convocar"), significando: “Chamar para fora”. èKKÀ/r|aía ocorre cerca de 114 vezes no Novo Testamento.

Tomando o sentido etimológico de èKKÀ,r|aía podemos dizer que “Deus em Cristo chama os homens ‘para fora’ do mundo” .1054 A Igreja é constituída por aqueles que estavam mortos, mas que rece­beram vida - regeneração - pelo Espírito.1055Portanto, o ponto em comum entre todos os cristãos é o fato de termos sido chamados por Deus: a Igreja se reúne porque Deus a convocou; e ela também o faz para ouvir a voz de seu Senhor1056 (vd. At 10.33).

De modo geral, ÈKK^riaía apresenta diversas significações su­bordinadas no Novo Testamento:

1) O círculo dos crentes reunidos num lugar específico para cultuar a Deus: uma comunidade local (At 5.11 ; 8.1; 11.22,26;12.1, 5; ICo 11.18; 14.19.28, 35; Rm 16.4; G1 1.2; Cl 4.16 ITs 2.14). Denotando em alguns casos uma “Igreja doméstica”, que se reunia na casa de algum irmão (Rm 16.5, 23; ICo 16.19; Cl 4.15; Fm 2).

2) Um conjunto de igrejas locais (At 9.31; At 14.23; 15.41; 16.4- 5; ICo 16.1; G1 1.2; Ap 1.4, 11). Algumas vezes, mesmo não sendo a palavra Igreja empregada no plural, subentende-se que faz alusão

1054 Karl L. Schmidt, Igreja: In: Gerhard Kittel, ed. A Igreja no N ovo Testamento, p. 31.1055 y d . Archibald A . Hodge, Confissão de Fé W estminster C om entada p o r A.A. H odge,

p. 422.I05r’ Vd. William Barclay, Palavras Chaves do Novo Testamento, São Paulo, Vida Nova,

1988 (reimpressão), p. 46.

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a diversas pequenas comunidades, já que havia centenas ou mesmo milhares de membros, como o caso da Igreja de Jerusalém (At 8.1;11.22).

3) O corpo daqueles que através do mundo professam sua fé em Cristo e que constituem sua Igreja (ICo 10.32; 11.22; 12.28; Ef 1.22; 3.10, 21; 5.23-25, 27, 32; Cl 1.18, 24; Hb 12.23).

1.2. Definição de Igreja

Podemos definir a Igreja como sendo a comunidade de pecadores regenerados que, pelo dom da fé, concedido pelo Espírito Santo, fo­ram justificados, respondendo positivamente ao chamado divino, o qual foi decretado na eternidade e efetuado no tempo, e agora vivem em santificação, proclamando, quer por sua vida, quer por suas pala­vras, o evangelho da graça de Deus, até que Cristo venha.2. AS MARCAS DA VERDADEIRA IGREJA

Foi com o surgimento das heresias que se tornou necessário es­tab elecer “um padrão de verdade ao qual a igreja deve corresponder” ,1057 sendo os Credos uma resposta da Igreja à situa­ção de ameaça à teologia considerada bíblica.1058

Como expressão dessa preocupação - em identificar a verda­deira igreja - , encontramos na obra Commonitorium, de Vicente de Lérins (f 450 AD), escrita em 434, o seguinte:

“Eis por que dediquei, constantemente, meus maiores desvelos e mi­nhas diligências a investigar, entre o maior número possível de homens eminentes em saber e santidade, a maneira de achar uma norma de princí­pios fixos e, se possível, gerais e orientadores, para distinguir a verdadeira fé católica das degradantes corruptelas da heresia....” .1059

1057 Louis Berkhof, Teologia S istem ática, p. 579.1058 Entre os anos de 264 e 268, três Sínodos reuniram-se sucessivam ente em Antioquia,

tendo com o objetivo julgar a conduta e os ensinam entos de Paulo de Samosata, bispo de Antioquia desde 260. O último dos três sínodos (268) o condenou e o excom ungou por “heterodoxia" (è-cepoSoÇíav). Sua doutrina e conduta foram classificadas com o sendo uma “apostasia do cânon” (“ótrcocrcàç xoC ravóv oç”; vd. Eusébio de Cesarea, H istoria E clesiás­tico, V II.30.6); ou seja, o abandono da fé ortodoxa.

1059 Vicente de Lérins, Commonitorium, 11.4. In: Philip Schaff & Henry Wace, eds. A

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422 EU CREIO.

Apenas em caráter indicativo, apresentaremos um esboço his­tórico da preocupação da Igreja em estabelecer os “Sinais” ou “Mar­cas” através dos quais a Igreja de Cristo pudesse ser identificada e distinta das falsas igrejas.

No Credo Apostólico, lemos: “Creio no Espírito Santo; na santa Igreja, católica; na comunhão dos santos....”. Aqui se destacam duas marcas da Igreja: SANTIDADE E CATOLICIDADE (= Universa­lidade).

O Credo Niceno-Constantinopolitano, elaborado no Concílio de Nicéia (325) e revisto no Concílio de Constantinopla (381), diz: “(...) E numa só Igreja Santa, Católica e Apostólica”. Desta afirma­ção, quatro marcas tornam-se evidentes: UNIDADE, SANTIDA­DE, CATOLICIDADE E APOSTOLICIDADE.

Na Reforma Protestante do Século XVI, a Igreja foi compreen­dida dentro da perspectiva de “povo de Deus”, não simplesmente como um edifício ou uma organização institucional,1060 mas, sim, como povo de Deus que se reúne para adorar a Deus, sendo a Igreja caracterizada pela ministração correta da Palavra e dos Sacramen­tos.1061 Calvino (1509-1564), tratando desse assunto, insistiu no fato de que as marcas da Igreja são: A verdadeira pregação da Palavra de Deus e a correta administração dos Sacramentos.1062 Esta con-Select L ibrary o f N icene And Post-N icene Fathers o f The Christian Church (second seri­es), Grand Rapids, M ichigan, W m. Eerdmans Publishing House Co., 1978, Vol. 11, p. 132.

leso L utero (1483-1546) enfatizou que, “nem trabalho em pedra, nem boa construção, nem ouro nem prata tornam uma igreja formosa e santa, mas a Palavra de D eus e a sã pregação. Pois onde é recomendada a bondade de Deus e revelada aos hom ens, e almas são encorajadas para que possam depender de Deus e chamar pelo Senhor em tem pos de perigo, aí está verdadeiramente uma santa igreja” [Jaroslav Pelikan, ed. L uther’s Works, Saint Louis, Concordia Publishing House, 1960, Vol. 11 (Gn 13.4), p. 332], O em inente teólogo puritano John O w en (1616-1683) escreveu: “Quão pouco pensam os homens sobre Deus e seus cam inhos, se imaginarem que um pouco de tinta e de verniz fazem uma beleza aceitável!” [W iiliam H. G oold, ed. The Works o f John Owen, 4a ed. London, The Banner o f Truth Trust, 1987, Vol. IX, p. 78). Vd. João Calvino, As Institu tas, Carta ao Rei Francisco I, p. 28.

loci y c| John H. Leith, A Tradição Reform ada: Uma m aneira de ser a com unidade cris­tã, São Paulo, Pendão Real, 1997, p. 330ss.

1062 J. Calvino, A s Institu tas (Dedicatória: Carta ao Rei Francisco, X ), Livro IV. Capítulo 1, Seções 9-12; Livro IV, Capítulo 2, Seção 1. D o m esm o modo a C onfissão de A ugsburgo (1530), escrita por M elanchton, Art. 7.

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cepção pode ser resumida na afirmação de que Cristo é a marca essencial da Igreja, visto ser ele “o centro da Palavra e o cerne dos sacramentos.” 1063

Os reformadores vão enfatizar o estudo da Palavra, visto que este fora ofuscado pela preocupação filosófica: A Razão havia to­mado o lugar da Revelação. Na Reforma, o ponto de partida não é o homem; ele não é considerado “a medida de todas as coisas”; antes, sua dignidade consiste em ter sido criado à imagem de Deus.1064

Na Resposta ao Cardeal Sadoleto (01/09/1539), Calvino declara que a igreja é:“...A assem bléia de todos os santos, a qual, espalhada por todo o mundo, está dispersa em

todo tempo, unida sem dúvida por uma só doutrina de Cristo, e que por um só Espírito guarda e observa a união da fé, junto com a concórdia e caridade fraterna” (Juan Calvino, R espuesta a l C ardeal Sadoleto, pp. 30-31). E le diz que os membros da Igreja são reconhe­cidos “por sua confissão de fé, pelo exem plo de vida e pela participação nos sacramentos”, sendo estes sinais indicativos de que tais pessoas “reconhecem ao m esm o Deus e ao m esm o Cristo que nós” (A? Instituías, IV. 1.8).

A santidade e firmeza da Igreja, segundo Calvino, repousam principalmente em “três coisas”, a saber: “doutrina, disciplina e sacramentos, vindo em quarto lugar as cerimônias para exercitar o povo no dever da piedade” (Juan Calvino, Re.spue.ua a l C ardeal Sadoleto, p. 32). De m odo mais informal, diz: “Onde se professava o Cristianismo, se adorava um único D eus, se praticavam os Sacramentos e se exercia algum gênero de ministério, ali permaneciam as marcas da Igreja” [João Calvino, G álatas (G1 1.2), p. 25],

hm B luce M ilne, Conheça a Verdade, São Paulo, A B U , 1987, p. 227 (veja-se, D.M . Lloyd-Jones, O C om bale Cristão, São Paulo, PES, 1991, p. 128).

l064O hom em deve ser respeitado, amado e ajudado porque é a imagem de Deus [ver João Calvino, A Verdadeira Vida C ristã , pp, 37-38], Por mais indigno que seja, devem os consi­derar: “A imagem de D eus nele é digna de dispormos a nós m esm os e nossas posses a e le” [João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, p. 38], “Não tem os de pensar continuam ente nas maldades do hom em , mas, antes, darmos conta de que ele é portador da imagem de D eus” [João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã , p. 38],

“Deus, ao criar o hom em , deu uma demonstração de sua graça infinita c mais que amor paternal para com e!e, o que deve oportunamente extasiar-nos com real espanto; e embora, mediante a queda do hom em , essa fe liz condição tenha ficado quase que totalmente em ruína, não obstante ainda há nele alguns vestígios da liberalidade divina então demonstrada para com ele, o que é suficiente para encher-nos de pasm o” [João Calvino, O L ivro dos Salm os, Vol. 1 (SI 8.7-9), pp. 173-174], “AEscritura nos ajuda com um excelente argumen­to, ensinando-nos a não pensar no valor real do homem, mas só em sua criação, feita con­forme a im agem de Deus. A ele devem os toda honra e o amor de nosso ser” [João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã , p. 37]. Ver também: J. Calvino, As Institutas, 1.15.3-4; 1II.7.6; Francis A. Schaeffer, A M orte da Razão, São Paulo, ABU/FIEL, 1974, p. 20ss. André Biéler, A F orça O culta dos Protestantes, São Paulo, Editora Cultura Cristã, 1999, p. 47. É digna de nota a observação do filósofo católico Ém ile Bréhier (1876-1952): “A Reforma opõe-se tanto à teologia escolástica, quanto ao humanismo. N ega a teologia escolástica, porque nega, com Ockham, que nossas faculdades racionais possam conduzir-nos da natu-

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A Reforma teve como objetivo precípuo uma volta às Sagradas Escrituras, a fim de reformar a Igreja que havia caído, ao longo dos séculos, numa decadência teológica, moral e espiritual. A preocu­pação dos reformadores era principalmente “a reforma da vida, da adoração e da doutrina à luz da Palavra de Deus” .1065 Desta forma, a partir da Palavra, passaram a pensar acerca de Deus, do homem e do mundo! “A reforma foi acima de tudo uma proclamação positiva do evangelho Cristão.” 1066

O calvinismo, com sua ênfase na centralidade das Escrituras, é mais do que um sistema teológico, é sobretudo uma maneira teo- cêntrica de ver, interpretar e atuar na história.1067

Aliás, a Reforma teve como um de seus marcos fundamentais o “reavivamento” da pregação da Palavra.1068 À Igreja foi confiada a Palavra de Deus, a qual ela deve preservar em seus ensinamentos e prática (Rm 3.2; ITm 3.15). Calvino entendia que “a verdade, po­rém, só é preservada no mundo através do ministério da Igreja. Daí, que peso de responsabilidade repousa sobre os pastores, a quem se tem confiado o encargo de um tesouro tão inestimável !” .1069 Em outroreza ao seio de Deus. Renega o humanismo, m enos por seus erros do que por seus perigos, posto que as forças naturais não podem comunicar qualquer sentido religioso” (É. Bréhier, H istória da F ilosofia, São Paulo, Mestre Jou, 1977-1978 ,1 /3 , p. 209).

"“ Colin Brown, F ilosofia e F é C ristã , São Paulo, Vida N ova, 1983, p, 36.1066 John H. Leith, A Tradição Reformada: Uma maneira de ser a com unidade cristã, p. 36.1067 D o m esm o modo, diz J.D. Douglas: “O Calvinismo era mais do que um credo; era uma

filosofia compreensiva que abrangia toda a vida” (J.D. Douglas, A contribuição do Calvinis­mo na Escócia; In; W. Stanford Reid, ed. Calvino e sua Influência no M undo Ocidental, São Paulo, Casa Editora Presbiteriana, 1990, p. 290 (doravante citada com o CSIMO).

1068 vd. John H. L eith ,A Tradição Reform ada: Uma m aneira de s e r a com unidade cris­tã, p. 125; Roland H. Bainton, M artin Lutero, 3" ed. M éxico, Ediciones C U PSA , 1989, p. 391. Podem os dizer que na Reforma houve uma revitalização da Pregação Bíblica. A Pala­vra de Deus passou a ser pregada com ênfase e a pregação passou a ser estudada, conside­rando-se sua natureza e propósito. N o período da Renascença e da Reforma houve diversas contribuições neste campo (para uma amostragem destas, veja-se Vernon L. Stanfield, The History o f Hom iletics: In: Ralph G. Turnbull, ed. Baker's D iction ary o f P ractical Theolo­gy, T ed. M ichigan, Baker B ook H ouse, 1970, pp. 52-53).

1069 João Calvino, A s P astorais (IT m 3.15), p. 97. Calvino, comentando a expressão “coluna da verdade”, continua falando da responsabilidade dos pastores: “Deus m esm o não desce do céu para nós, nem diariamente nos envia m ensageiros angelicais para que publi­quem sua verdade, senão que usa as atividades dos pastores, a quem destinou para esse propósito” (Ibidem , p. 97). “.... Em relação aos hom ens, a Igreja mantém a verdade porque,

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lugar, comentando Gálatas 5.9, insiste: “Essa cláusula os adverte de quão danosa é a corrupção da doutrina, para que cuidassem de não negligenciá-la (como é costumeiro) como se fosse algo de pouco ou nenhum risco. Satanás entra em ação com astúcia, e obviamente não destrói o evangelho em sua totalidade, senão que macula sua pureza com opiniões falsas e corruptas. Muitos não levam em conta a gravidade do mal, e por isso fazem uma resistência menos radical. (...) Devemos ser muito cautelosos, não permitindo que algo (estra­nho) seja adicionado à íntegra doutrina do evangelho.” 1070

Escrevendo a Cranmer (jul/1552?), diz: “A sã doutrina certa­mente jamais prevalecerá até que as igrejas sejam melhor providas de pastores qualificados que possam desempenhar com seriedade o ofício de pastor.” 1071 Calvino, fiel à sua compreensão da relevância da pregação bíblica,1072 usou de modo especial o método de expor e aplicar1073 quase todos os livros das Escrituras à sua congregação. Sua mensagem constitui um monumento de exegese, clareza e fide­lidade à Palavra, sabendo aplicá-la com maestria a seus ouvintes. De fato, não deixa de ser surpreendente o conselho de Jacobus Ar- minius (1560-1609): “Eu exorto aos estudantes que depois das Sa­

por m eio da pregação, a Igreja a proclama, a conserva pura e íntegra, a transmite à posteri­dade” (Ibidem , p. 98). Comentando sobre a necessidade do bispo ser apegado à Palavra fiel, diz: “Este é o principal dote do bispo que é eleito especificam ente para o magistério sagra­do, porquanto a Igreja não pode ser governada senão pela Palavra” [J. Calvino, A.? P asto ­rais (Tt 1.9), p. 313], Vd. também, A s Institutos, IV.1.5; João Calvino, E fésios (E f 4 .12), pp. 124-125. “A erudição unida à piedade e aos demais dotes do bom pastor, são com o uma preparação para o ministério. Pois, aqueles que o Senhor escolhe para o ministério, equipa- os antes com essas armas que são requeridas para desem penhá-lo, de sorte que lhe não venham vazios e despreparados” (João Calvino, A í Institutos, IV .3.11). “Não se requer de um pastor apenas cultura, mas também inabalável fidelidade pela sã doutrina, ao ponto de jam ais apartar-se dela” [J. Calvino, A s P astorais (Tt 1.9), p. 313].

1070 João Calvino, G álatas (G1 5 .9), pp. 158-159.1071 Calvin to Cranmer, L etter 18. In: John Calvin C ollection, The AGES Digital Library,

1998. D o m esm o modo, Letters o f John Calvin, Selected from the Bonnet Edition, pp. 141- 142.

1072 Ele escreveu: “.... Quão necessária é a pregação da Palavra, e quão indispensável é que a m esm a seja realizada continuamente” [João Calvino, E xposição de 1 C oríntios (IC o 3.6), p. 103],

1073 v d . T.H.L. Parker, C alvin ’s Preaching, Westminster/John Knox Press, Louisville, Kentucky, 1992, p. 79ss.

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426 EU CREIO.

gradas Escrituras leiam os Comentários de Calvino, pois eu lhes digo que ele é incomparável na interpretação da Escritura.” 1074

A fecundidade exegética de Calvino tinha sempre uma preocu­pação primordialmente pastoral.1075 Sua preocupação não era sim­plesmente acadêmica. A convergência de sua interpretação era a vida da Igreja, entendendo que as Escrituras foram dadas visando à nossa obediência aos mandamentos de Deus. Ele entendia que “a pregação é um instrumento para a consecução da salvação dos cren­tes” e que, “embora não possa realizar nada sem o Espírito de Deus, todavia, através da operação interior do mesmo Espírito, ela revela o ação divina muito mais poderosamente.”1076Estima-se que Calvi­no, durante seus trinta e cinco anos de Ministério - pregando dois sermões por domingo e uma vez por dia em semanas alternadas - , tenha pregado mais de três mil sermões.1077

Calvino entendia que Deus, em sua Palavra, “se acomodava à nossa capacidade” ,1078 balbuciando sua Palavra a nós como as amas fazem com as crianças.1079 “... Deus acomoda-se ao nosso modo

1074 Carta escrita a Sebastian Egbertsz, publicada em 1704. Vd. F.F. Bruce, The History o f N ew Testament Study. In: l.H . Marshall, ed. N ew Testament Interpretation; E ssays on P rin­c ip les an d M ethod, Exeter, The Paternoster Press, 1979, p. 33. A. M itchell Hunter, The Teaching o f Calvin: A M odern Interpretation, 2“ ed. revised, London, James Clarke & Co. Ltd. 1950, p. 20; P. Schaff, H istory o f the Christian Church, Vol. V lll , p. 280.

1075 “o m ajor exegeta de seu tempo sempre manifestou em seus sermões preocupação nitidamente pastoral” (Henri Strohl, O Pensam ento da Reforma, São Paulo, ASTE, 1963, p. 222). Vd. também: W. Gray Crampton, What Calvin Says, Maryland, The Trintiny Foun­dation, 1992, p. 28.

1076 João Calvino, Rom anos, 2" ed. São Paulo, Parakletos, 2001 (Rm 11.14), p. 407.1077 Cf. J.H. Leith, A Tradição Reform ada: Uma m aneira de se r a com unidade cristã , p.

126; Tim othy George, Teologia dos Reform adores, p. 187. Bouwsm a calcula que Calvino tenha pregado cerca de 4 mil sermões depois que voltou para Genebra em 1541 (W illiam J. B ouwsm a, John Calvin: A Sixteenth-Century P ortrait, N ew York/Oxford, Oxford Univer­sity Press, 1988, p. 29). Em 11/9/1542, o Conselho decidiu que Calvino, aos dom ingos, não pregasse mais do que um sermão (cf. W. Greef, The W ritings o f John Calvin: An Introduc­tory Guide, Grand Rapids, M ichigan, Baker B ook House, 1993, p. 110).

1078 J. Calvino, E xposição de IC orin tios (IC o 2 .7), p. 82.io7'j“pois quem, mesmo que de bem parco entendimento, não percebe que Deus assim co­

nosco fala com o que a balbuciar, com o as amas costumam fazer com as crianças? Por isso, formas de expressão que tais não exprimem, de maneira clara e precisa, tanto quê Deus seja, quanto lhe acomodam o conhecimento à paucidade da compreensão nossa. Para que assim se dê, necessário lhe é descer muito abaixo de sua excelsitude” (J. Calvino, A s Instituías, 1.13.1).

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ordinário de falar por causa de nossa ignorância, às vezes também, se me é permitida a expressão, gagueja.” 1080 Portanto, quando le­mos as Escrituras, “somos arrebatados mais pela dignidade do con­teúdo que pela graça da linguagem .” 1081 Esses pontos tornam o ho­mem inescusável e realçam a relevância das Escrituras para a vida cristã. Ele diz: “Ora, primeiro com sua Palavra nos ensina e instrui o Senhor; então, com os sacramentos no-la confirma; finalmente, com a luz de seu Santo Espírito a mente nos ilumina e abre acesso em nosso coração à Palavra e aos sacramentos, que, de outra sorte, apenas feririam os ouvidos e aos olhos se apresentariam, mas, lon­ge estariam de afetar-nos o íntimo.” 1082 Aqui temos um paradoxo: A Palavra acomodatícia de Deus permanece, entretanto, como algo misterioso para os que não crêem ou que desejam entendê-la por sua própria sabedoria, pois os “tesouros da sabedoria celestial” se acham fora “do alcance da cultura humana.” 1083 Todos somos inca­pazes de entender os “mistérios de Deus” até que ele mesmo, por sua graça, nos ilumine.1084 “A Palavra de Deus é uma espécie de sabedoria oculta, a cuja profundidade a frágil mente humana não pode alcançar. Assim, a luz brilha nas trevas, até que o Espírito abra os olhos ao cego ” 1083 Portanto, quando o Espírito aplica a Palavra

1080 John Calvin, Com m entary on lhe G ospel Accordin to John, Grand Rapids, M ichigan, Baker B ook House (C alvin’s Commentaries, Vol. XVIII), 1996 (reprinted), (Jo 21 .25), p. 299.

1081J. Calvino, A s Instituías, 1.8.1. Calvino, continua: “Ora, e não sem a exím ia providên­cia de Deus isto se faz, que sublim es mistérios do reino celeste fossem , em larga medida transmitidos em termos de linguagem apoucada e sem realce, para que houvessem eles de ser adereçados em mais esplendorosa eloqüência, os ímpios não alegassem cavilosam ente que a só força desta aqui impera.

“Agora, quando essa não burilada e quase rústica sim plicidade provoca maior reverência de si que qualquer eloqüência de retóricos oradores, que é dc julgar-se, senão que a pujança da verdade da Sagrada Escritura tão sobranceira se estadeia, que não necessite do artifício das palavras?” (J. Calvino, A? Instituías, 1.8.1).

N o entanto, e le também entendia que “alguns Profetas têm um m odo de dizer elegante e polido, até m esm o esplendoroso, assim que a eloqüência lhes não ccde aos escritores profa­nos” (J. Calvino, A? Instituías, 1.8.2).

1082 J. Calvino, A s Institutos, IV. 14.8. Vd. também J. Calvino, Exposição de Rom anos (10 .16), pp. 373-374.

1083 J. Calvino, Exposição de Rom anos (16 .21), p. 522.ws4 Q f J0 ão Calvino, A s Instituías, 11.2.21.1083 João Calvino, Exposição de 1 Coríntios (1 Co 2.11), p. 89.

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428 EU CREIO.

ao nosso coração, ele produz sua boa obra em nós, gerando a fé salva­dora que se direciona para Cristo e para os feitos de sua redenção.1086

O Comentário de Romanos não foge a este princípio, o reco­nhecimento de que é o Espírito que deve nos guiar na compreensão das Escrituras. E o conselho que o próprio Calvino emitiu no Prefá­cio à edição francesa das Institutas (1541) permanece para todas as suas obras também como princípio avaliador de qualquer labor hu­mano: “Importa em tudo quanto exponho recorrer ao testemunho da Escritura, que aduzo para ajuizar da procedência e justeza do que afirmo.”

Em 28 de abril de 1564, um mês antes de morrer, tendo os minis­tros de Genebra sua volta, Calvino despede-se;1087 a certa altura diz:

“A respeito de minha doutrina, ensinei fielmente e Deus me deu a graça de escrever. Fiz isso do modo mais fiel possível e nunca corrompi uma só passagem das Escrituras, nem conscientemente as distorci. Quando fui tentado a requintes, resisti à tentação e sempre estudei a simplicidade.1088

“N unca escrevi nada com ódio de alguém, mas sempre coloquei fiel­mente diante de mim o que julguei ser a glória de Deus.”1089

Na seqüência, acrescenta:“ .... Esquecia-me de um ponto: peço-lhes que não façam mudanças, nem

inovem. A s pessoas muitas vezes pedem novidade.

“N ão que eu queira por minha própria causa, por ambição, a permanên­cia do que estabeleci, e que o povo o conserve sem desejar algo melhor; mas porque as mudanças são perigosas, e às vezes nocivas....”.1090

loas Y(j q Hendriksen, El Evangelio Segun San Juan, Grand Rapids, M ichigan, SLC, 1981 (Jo 17.20), p. 636.

1087 Vd. Theodore Beza, Life ofJohn Calvin: In: Tracts an d Treatises on the Reform ation o f the Church, Grand Rapids, M ichigan, Eerdmans, 1958, Vol. I, p. cxxxi; J.T. M cN eill, The H istory an d C haracter o f Calvinism , p. 227. Após sua morte (27 /05/1564), Beza, queo acompanhou duranle todo o (empo, escreveu: “N essa dia, com o crepúsculo, a mais bri­lhante luz que já houve no mundo para a orientação da Igreja de D eus foi levada de volta para os céus” (A pu d J.T. M cN eill, The H istory and C haracter o f Calvinism , p. 227).

i°88 Aliás, Calvino desde cedo aprendeu a desprestigiar o estilo pom poso sem objetividade. 'om Calvin , Textes C hoisis par Charles Gagnebin, E gloff, Paris, © 1948, pp. 42-43 (há

tradução em inglês, Letters o f John Calvin, Selected from the Bonnet Edition, Carlisle, Pennsylvania, The Banner o f Truth Trust, 1980, pp. 259-260).

mo Calvin, Textes C hoisis par Charles Gagnebin, p. 43 (na tradução em inglês, L etters o f

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XX-A Igreja de Deus: Una, Santa e Universal 429

De forma figurada, Calvino diz que “o coração de Deus é um ‘Santo dos Santos’, inacessível a todos os homens”, sendo o Espíri­to aquele que nos conduz a ele .1091 Ele entendia que “com a oração encontramos e desenterramos os tesouros que se mostram e desco­brem à nossa fé pelo evangelho”, e l092que “a oração é um dever compulsório de todos os dias e de todos os momentos de nossa vida” 1093 e: “Os crentes genuínos, quando confiam em Deus, não se tornam por essa conta negligentes à oração.” 1094 Portanto, este te­souro não pode ser negligenciado como se “enterrado e oculto no so lo !” .1095 Aqui está o segredo da Palavra de Deus, segundo a per­cepção de Calvino: Estudo humilde1096 e oração, atitudes que se revelam em nossa obediência a Cristo.1097 Schaff resume: “Absolu-John Calvin, p. 260).

1091 João Calvino, Exposição de 1 Coríntios (1 Co 2.11), p. 88.1091 J. Calvino, A s lnstitu tas, 111.20.2. Era outro lugar escreve: “Se devem os receber al­

gum fruto de nossas orações, devem os também crer que os ouvidos de D eus não se fecha­ram contra elas” [João Calvino, O Livro dos Salm os, Vol. 1 (SI 6 .8-10), p. 133], “A genuína oração provém, antes de tudo, de um real senso de nossa necessidade, e, em seguida, da fé nas promessas de D eus” (João Calvino, O Livro dos Salm os, Vol. 1, p. 34). “N ossas orações só são aceitáveis quando as oferecem os em subm issão aos mandamentos de Deus e som os por elas animados a uma consideração da promessa que ele tem formulado” [João Calvino,O Livro dos Salm os, Vol. 2 (SI 50.15), p. 412]. Comentando Rm 12.12, enfatiza que “a diligência na oração é o melhor antídoto contra o risco de soçobrarmos” [João Calvino, Exposição de Rom anos (Rm 12.12), p. 438],

1093 João Calvino, O Livro dos Salm os, Vol. 2 (SI 50 .14-15), p. 410.1094 João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1 (SI 30.6), p. 633. “Quando a segurança

carnal se haja assenhorado de alguém, tal pessoa não pode entregar-se alegremente à oração até que seja feita maleável pela cruz e completamente subjugada. E esta é a vantagem primordial das aflições, ou seja, enquanto nos tornam conscientes de nossa miséria, nos estimulam novamente para suplicarmos o favor divino” [João Calvino, O Livro dos Salm os, Vol. 1 (SI 30.8), p. 635].

1095 João Calvino, As lnstitu tas, 111.20.1.I09fi Calvino cita Agostinho: “Se m e interrogues acerca dos preceitos da religião cristã,

primeiro, segundo e terceiro, aprazer-me-ia responder sempre: a humildade” (J. Calvino, As lnstitu tas, 11.2.11). “Ao cultivarmos a bondade fraternal, é mister que com ecem os com a humildade. (...) Será inútil a mansidão, a m enos que tenhamos iniciado com a hum ildade” [João Calvino, E fésios (E f 4.1), p. 108],

1097 “Sempre que a carne, ou seja, a corrupção natural, governa uma pessoa, ela toma posse de sua mente para que a sabedoria divina não logre entrada. Em razão disto, se por­ventura desejam os lograr algum progresso na escola do Senhor, devem os antes renunciar nosso próprio entendimento e nossa própria vontade” [João Calvino, Exposição de 1 C o­ríntios (IC o 3.3), p. 100], “Os filósofos pagãos põem a razão com o o único guia de vida, de sabedoria e conduta, porém a filosofia cristã demanda que rendamos nossa razão ao Espíri-

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430 EU CREIO.

ta obediência de seu intelecto à Palavra de Deus, e obediência de sua vontade à vontade de Deus: esta foi a alma de sua religião.” 1098 “A oração tem primazia na adoração e no serviço a Deus.”1099Daí o seu conselho: “A não ser que estabeleçamos horas definidas para a oração, facilmente negligenciaremos a prática.” 1100 No entanto, de­vemos ter sempre presente o fato de que é o Espírito “que deve prescrever a forma de nossas orações.” 1101

Ele observou que, na oração, “a língua nem sempre é necessá­ria, mas a oração verdadeira não pode carecer de inteligência e de afeto de ânimo” ,1102 a saber: “O primeiro, que sintamos nossa po­breza e miséria, e que este sentimento gere dor e angústia em nos­sos ânimos. O segundo, que estejamos inflamados com um vee­mente e verdadeiro desejo de alcançar misericórdia de Deus, e que este desejo acenda em nós o ardor de orar.” 1103

Seu grande consolo e estímulo é saber que o Deus soberano, de forma misteriosa a nós, utiliza-se de nossas orações na concretiza­ção de seus propósitos: “Deus responde aos verdadeiros crentes quando mostra através de suas operações que ele leva em conta suas súplicas.” 1104

Retomando nossa rota principal, constatamos que outros teólo­gos reformados1105 acrescentaram aos dois sinais indicados por Cal- vino um terceiro: O Exercício Fiel da Disciplina.

to Santo, o que significa que já não mais vivem os para nós m esm os, senão que Cristo vive e reina em nós. Ver Rm 12.1; E f 4.23; G1 2 .20” (John Calvin, Golden B ooklet o f the True Christian Life, p. 22).

1098 Philip Schaff, H istory o f the Christian Church, Vol. VIII, p. 310. Vd. também, P. Schaff, The Creeds o f Christendom , 1, p. 448.

João Calvino, O Profeta D aniel: 1-6, São Paulo, Parakletos, 2000, Vol. 1 (Dn 6.10), p. 371.

1100 João Calvino, O Profeta D aniel: 1-6 (Dn 6 .10), p. 375.1101J. Calvino, E xposição de Rom anos, São Paulo, Parakletos, 1997 (Rm 8.26), p. 291.1102 J. Calvino, Catecism o de G enebra, Perg. 240.I,in J. Calvino, Catecism o de G enebra, Perg. 243.1104 João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1 (SI 28.1), p. 600.1105 Com o já vim os, teólogos tais como: Andrew G. Hyperius (1511-1564); Peter Martyr

Vermigli (1500-1562); John Knox (c .1514-1572); Zacharias Ursinus (1534-1583); JohannH. Heidegger (1633-1698); Marcus F. W endelinus (1584-1652), entre outros.

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XX-Algrejo de Deus: Uno, Sonto e Universol 431

A Confissão Belga (1561), no Artigo XXIX, diz:“Os sinais para conhecer a Igreja verdadeira são estes: a pregação pura

do evangelho; a administração pura dos Sacramentos, tal como foram ins­tituídos por Cristo; a aplicação da disciplina cristã, para castigar os peca­dos.”1106

D e forma restrita, podemos falar da Verdadeira Pregação da Palavra como a marca distintiva da Igreja, decorrendo daí as outras duas marcas indicadas.1107

3. A UNIDADE DA IGREJA

Todos os crentes estão unidos pela fé comum em Jesus Cristo, tendo sido selados pelo mesmo Espírito que atua em nós, tornando- nos em seu Templo (1 Co 3.16; 6.19; Ef 1.13). No Antigo Testamen­to, “o santuário era o penhor ou emblema do pacto de Deus” ;1108 era o sinal concreto e visível da presença de Deus que, obviamente, ultrapassava em muito os limites do templo.

A Igreja, por sua vez, é constituída de todos os eleitos de Deus. Participar da Igreja é participar da unidade e da comunhão do Espí­rito (2Co 13.13; Fp 2.1), no qual todos nós temos acesso ao Pai (Ef 2.18). Esta comunidade tem como lema de vida o amor, que carac­teriza a Igreja de Cristo.1109

A harmonia multifacetada da Igreja está no fato de que toda a diversidade cumpre seu papel específico dentro do Corpo vivo de Cristo. Esta é uma das facetas da obra do Espírito na Igreja (ICo 12.4, 12, 13, 14, 25; Ef 4.3). Na Igreja há a igualdade e a diferença convivendo conjuntamente. Todos estamos unidos pela fé comum e obediência ao cabeça, que é Cristo Jesus.

1106 Essa posição é também encontrada na Confissão E scocesa (1560), Cap. XVIII, que acrescenta: “Onde quer que essas marcas se encontrem e continuem por algum tempo - ainda que o número de pessoas não cxceda de duas ou três - ali, sem dúvida alguma, está a verdadeira Igreja de Cristo, o qual, segundo sua promessa, está no m eio dela.”

1107 Cf. L. Berkhof, Teologia S istem ática, p. 580; Herman Hoeksem a, Reform ed Dogm a- ties, 3a ed. Grand Rapids, M ichigan, Reformed Publishing Association, 1976, p. 620. Vd. João Calvino, As P astorais (lT m 3.15), p. 99.

1108 João Calvino, O Livro dos Salm os, Vol. 1 (SI 28.1), p. 601.11(19 Vd. H. Emil Brunner, O E quívoco da Igreja, São Paulo, N ovo Século, 2000, p. 59.

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432 EU CREIO.

No capítulo 17 do Evangelho de João, versos 20-23, encontra­mos Jesus orando para que seu povo permanecesse unido. F.F. Bru- ce (1910-1990) comenta que, “a unidade pela qual ele ora é uma unidade de amor, na verdade trata-se da participação deles na uni­dade de amor que existe eternamente entre o Pai e o Filho.” 1110

Analisemos agora alguns aspectos desta unidade:3.1. A Natureza da Unidade

3.1.1. O que a Unidade Não É

1) Unidade não é simplesmente companheirismo social:A Igreja não é um grupo social que se reúne para lazer, diversão

ou preservação da vida.1111 Na realidade, na relação cristã há um elemento vital que transcende a todas as outras relações humanas comuns (ICo 1.9).

2) Unidade não é uniformidade de organização:A Igreja não precisa necessariamente manter em todos os tempos

e lugares a mesma forma de organização. Sem dúvida a organização é muito importante, todavia ela deve estar a serviço do evangelho com vistas ao estabelecimento da comunhão cristã (vd. At 6.1-7).

3) Unidade não é uniformidade de vida:A experiência comum dos crentes é a transformação de sua vida

pelo Espírito; contudo, isto não implica que tenhamos uma vida “uni­formizada”; Deus transforma nossa personalidade,1112 todavia não nos

1110 F.F. Bruce, João: Introdução e Com entário, São Paulo, Vida Nova/M undo Cristão, 1987, p. 285.

1,11 Quanto ao conceito de que a organização social visa a preservar o indivíduo dele m esm o, Vejam-se: T. Hobbes, L eviatã, São Paulo, Abril Cultural (O s Pensadores, XIV), 1974,1.13; p, 79; J. Locke, Segundo Tratado Sobre o G overno, São Paulo, Abril Cultural (Os Pensadores, XVIII), 1973, U l.ló ss . p. 46ss.; IX. 124ss., p. 88ss. e J.J. Rousseau, O C ontrato Social, 3“ ed. São Paulo, Cultrix, 1975, III.9. p. 88. Quanto a um sumário com pa­rativo entre estes três autores, vd. Hermisten M.P. Costa, L iberdade e P oder - N as Idéias F ilosóficas de H obbes, Locke e Rousseau - , São Paulo, 1992, p. 16.

1111 Vd. Jay A. Adams, Conselheiro Capaz, São Paulo, F iel, 1977, pp. 37ss.; 84ss. C.S.Lew is, observou que “Só ganharemos nossa verdadeira personalidade quando consentir­m os em que D eus nos coloque no lugar que nos compete. Som os mármore esperando ser

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XX - A Igreja de Deus: Una, Santa e Universal 433

coloca dentro de uma forma. Deus transformou Jacó em Israel, Si- mão em Pedro, Saulo em Paulo, mas não converteu Pedro em Paulo, nem Jacó em Pedro. Nós somos livres em Cristo para fazer sua von­tade, dentro das características próprias que ele mesmo nos concedeu.

4) Unidade não existe em detrimento da verdade:Podemos estar tão desejosos de que haja unidade - o que sem

dúvida é um nobre desejo - , que nos esquecemos da verdade. Na realidade não podemos fazer concessões com aquilo que não nos pertence. Muitas vezes fechamos nossos olhos à verdade a fim de criar uma unidade artificial, erguida sobre o frágil fundamento da mentira e do engano. A “unidade” que se “consegue” em detrimen­to da verdade não é produzida pelo Espírito, portanto não é unidade - pelo menos não a do Espírito é apenas um ajuntamento circuns­tancial, formado de partes desconexas sem um elemento central que os preserve ali.1113

Calvino (1509-1564) entende que a divergência em questões secundárias não deve servir de pretexto para a divisão da Igreja; afinal, todos, sem exceção, estão envoltos de “alguma nuvenzinha de ignorância” .1114

Calvino entende que Satanás muitas vezes se vale de nossos bons sentimentos para fazer com que quebremos a unidade da Igre­ja, supostamente em busca de uma Igreja ideal. Para este mister,esculpido, metal esperando ser vertido no m olde” (C.S. Lewis, P eso de G lória, 2“ ed. São Paulo, Vida N ova, 1993, p. 46).

1113 Vd. D.M . Lloyd-Jones, A U nidade Cristã, São Paulo, PES, 1994, pp. 209-220.II14J. Calvino, A s lnstitu tas, IV. 1.12, 15; João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo,

Parakletos, 1999, Vol. 2 (SI 50.4), p. 401 . Em outvo lugar Calvino diz: “Deus só é correta­mente servido quando sua lei for obedecida. Não se deixa a cada um a liberdade de codificar um sistem a de religião ao sabor de sua própria inclinação, senão que o padrão de piedade deve ser tomado da Palavra de D eus” [João Calvino, O Livro dos Salm os, São Paulo, Para­kletos, 1999, Vol. 1 (SI 1.1), p. 53], Ainda: “Onde se professava o Cristianismo, se adorava um único D eus, se praticavam os Sacramentos e se exercia algum gênero de ministério, ali permaneciam as marcas da Igreja. Nem sempre encontramos nas igrejas tal pureza com o era de se desejar. Ainda a mais pura tem suas máculas, e algumas têm não só umas poucas manchas aqui e ali, mas são quase que completamente deformadas. Não devem os ficar tão desconcertados pelo ensino e vida de alguma sociedade que, se não ficam os satisfeitos com tudo o que se procede ali, então prontamente negam os ser ela uma igreja” [João Calvino, G álatas (G1 1.2), p. 25],

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434 EU CREIO.

somos capazes até de reunir textos que falam da santidade da Igreja como pretexto para nossa atitude.1" 5

Após argumentar contra aqueles que chamavam os reformados de hereges, ressalta que a unidade cristã deve ser na Palavra:

“Com efeito, também isto é de notar-se: que esta conjunção de amor assim depende da unidade de fé que lhe deva ser esta o início, o fim, a regra única, afinal. Lembremo-nos, portanto, quantas vezes se nos reco­menda a unidade eclesiástica, isto ser requerido: que, enquanto nossas mentes têm o mesmo sentir em Cristo, também entre si conj ungidas nos hajam sido as vontades em mútua benevolência em Cristo. E, assim, Pau­lo, quando para com ela nos exorta, por fundamento assume haver um só Deus, uma só fé e um só batismo [Ef 4.5]. De fato, onde quer que nos ensina o Apóstolo a sentir o mesmo e a querer o mesmo, acrescenta im e­diatamente: em Cristo [Fp 2 .1 ,5] ou: segundo Cristo [Rm 15.5], significan­do ser conluio de ímpios, não acordo de fiéis a unidade que se processa à parte da Palavra do Senhor.”1116

Em outro lugar, instrui: “A melhor forma de promover a unida­de é congregar [o povo] para o ensino comunitário....” .1117

Para os irmãos refugiados em Wezel (Alemanha), que sofriam diversas pressões de luteranos e sobreviviam numa pequena Igreja Reformada, Calvino, em 1554, os consola mostrando que, apesar dos grandes problemas pelos quais passava o mundo, Deus lhes havia concedido um lugar onde poderiam adorar a Deus em liber­dade. Também os desafia a não abandonarem a Igreja por pequenas divergências nas práticas cerimoniais, sendo tolerantes a fim de pre­servar a unidade. Contudo, os exorta a jamais fazerem acordos em pontos doutrinários.1" 8

11,5 Cf. John Calvin, C a lv in ’s Com m entaries, Grand Rapids, M ichigan, Baker Book Hou­se Company, 1996 (reprinted), Vol. XV (A g 2 .1-5), p. 351.

1116 J. Calvino, A s Institutos, 1V.2.5. Calvino entendia que “onde os hom ens amam a disputa, estejam os plenamente certos de que Deus não está reinando ali” [J. Calvino, E xpo­sição de IC orín tios, São Paulo, Edições Parakletos, 1996 (IC o 14.33), p. 436]. T. George comenta com acerto que “Calvino não estava disposto a comprometer pontos essenciais em favor de uma paz falsa, mas ele tentou chamar a igreja de volta à verdadeira base de sua unidade em Jesus Cristo” (T. George, Teologia do s Reform adores, pp. 182-183).

1,17 João Calvino, Efésios, São Paulo, Parakletos, 1998 (E f 4 .12 ), p. 125.1118John Calvin, To the Brethren o f W ezel, “Letter, ” John Calvin C ollection [CD-ROM ],

(Albany, OR: A ges Software, 1998), n° 346, pp. 32-34.

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XX - A Igreja de Deus: Una, Santa e Universol 435

Portanto, mesmo desejando a paz e a concórdia, Calvino enten­dia que essa paz nunca poderia ser em detrimento da verdade, pois, se assim fosse, essa dita paz seria maldita:

“Naturalmente, há uma condição para entendermos a natureza desta paz, ou seja, a paz da qual a verdade de Deus é o vínculo. Pois se temos de lutar contra os ensinamentos da impiedade, mesmo se for necessário m o­ver céu e terra, devemos, não obstante, perseverar na luta. Devemos, cer­tamente, fazer que nossa preocupação primária cuide para que a verdade de Deus seja mantida em qualquer controvérsia; porém, se os incrédulos resistirem, devemos terçar armas contra eles, e não devemos temer sermos responsabilizados pelos distúrbios. Pois a paz, da qual a rebelião contra Deus é o emblema, é algo maldito; enquanto que as lutas, indispensáveis à defesa do reino de Cristo, são benditas.”1119

Em 20 de março de 1552, Thomas Cranmer (1489-1556)1!20es­creveu a Calvino - bem como a Melanchthon (1479-1560)1121e a Bullinger ( 1504-1575)1122- , convidando-o para uma reunião no Pa­lácio de Lambeth com o objetivo de preparar um credo que fosse consensual para as Igrejas Reformadas.1123 Cranmer tinha em vista

ll,IJ J. Calvino, E xposição de lC orín tio s (IC o 14.33), p. 437.ii2° Arcebispo de Canterbury, que em 1549 havia elaborado o Livro de O ração Comum,

no qual dava ênfase ao culto em inglês, à leitura da Palavra de Deus e ao aspecto congrega- cional da adoração cristã.

1,21 Melanchton, m esm o sendo luterano e am igo pessoal de Lutero, desfrutou também de boa amizade com Calvino, mantendo com este ampla correspondência. Nos dizeres de Schaff, M elanchton “permaneceu com o um homem de paz entre dois hom ens de guerra” (Philip Schaff, H istory o fth e Christian Church , Peabody, M assachusetts, Hendrickson Publishers, 1996, Vol., VIII, p. 260). Seu principal trabalho teológico foi L oci Com munes (abril de 1521). Este tratado fo i a primeira obra de teologia sistemática protestante do período da Reforma, marcando época, portanto, na história da teologia. N ele Melanchton segue a or­dem da Epístola aos Rom anos (Ver: Philip Schaff, H istory o f the Christian Church, Vol. VII, 368-370).

1122 Bullinger foi am igo, discípulo e sucessor de Zuínglio (1484-1531), tendo escrito cer­ca de 150 obras, entre elas, A Segunda Confissão H elvética (1562- L566).

1123 Cranmer, na carta a Calvino, diz: “Com o nada mais tende a separar as igrejas de Deus que as heresias e diferenças sobre as doutrinas da religião, assim nada mais eficazm ente os une, e fortalece a obra de Cristo mais poderosamente, que a doutrina incorrupta do evange­lho e união em opiniões reconhecidas. Eu tenho freqüentemente desejado, e agora desejo que esses hom ens instruídos e piedosos que superam outros em erudição e julgam ento, constituíssem uma assembléia em um lugar conveniente, onde se realizasse uma consulta mútua, e comparando suas opiniões, e les poderiam discutir todas as principais doutrinas da igreja.... N ossos adversários estão agora organizando seu concílio em Trento, no qual cies

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436 EU CREIO.

também a realização do Concílio de Trentom4que estava em anda­mento, estando preocupado de modo especial com a questão da Ceia do Senhor.

Calvino então responde (abril de 1552), encorajando a Cran- mer1125 em seu objetivo. A certa altura diz:

“ ...Estando os membros da Igreja divididos, o corpo sangra. Isso me pre­ocupa tanto que, se pudesse fazer algo, eu não me recusaria a cruzar até dez mares, se necessário fosse, por essa causa.” " 26

Calvino, por experiência própria, sabia quão difícil é doutrinar uma igreja e quantos anos são necessários para fazer este serviço, ainda que de modo imperfeito:

“A edificação de uma igreja não é uma tarefa tão fácil que se torne pos­sível fazer com que tudo seja imediata e perfeitamente completado. (...) Hoje sabemos pela própria experiência que o que se requer não é o labor de um ou dois anos para levantar as igrejas caídas a uma condição mais ou

podem estabelecer os seus erros. E devem os nós negligenciar convocar um sínodo piedoso que nos possibilite refutar os erros deles e purificar e propagar a verdadeira doutrina?” [Thomas Cranmer to Calvin, “Letter, ” John Calvin Collection [CD-ROM ], (Albany, OR: A ges Software, 1998), 16].

1124 Cranmer era um teólogo e estadista; sua preocupação com Trento era pertinente e a história já demonstrou amplamente esse fato.

H25 o próprio Cranmer com pôs no Livro de O ração Comum uma oração paia o culto anual anglicano, quando se comemorava a coroação do monarca. A oração diz:

“Ó D eus, Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, nosso único Salvador, o Príncipe da Paz: Dá- nos a graça para com seriedade nos compenetrarmos dos grandes perigos em que nos en­contramos por causa de nossas lamentáveis d ivisões, retira todo o ódio e preconceito e tudoo mais que possa impedir-nos de ter uma união e concórdia piedosas; para que, com o existe som ente um só corpo e um só Espírito e uma só esperança de nossa vocação, um só Senhor, uma só fé , um só batismo, um só D eus e Pai de todos nós, assim possam os de agora em diante ser todos de um só coração, de uma só alma, unidos em um único e santo vínculo de verdade e paz, de fé e caridade, e possam os de uma só mente e com uma só boca glorificar- te: por m eio de Jesus Cristo, nosso Senhor. A m ém ” (A pud Mark A. N oll, M om entos D eci­sivos na H istória do Cristianism o, São Paulo, Editora Cultura Cristã, 2000, p. 204).

1126 L etters o fJohn Calvin, Selected from the Bonnet Edition, Edinburgh, The Banner o f Truth Trust, 1980, pp. 132-133. Schaff comenta: “A Igreja de D eus era sua casa, e aquela Igreja não conhece nenhum limite de nacionalidade e idioma. O mundo era sua paróquia. Tendo rompido com o papado, ele ainda permaneceu um católico na melhor acepção da palavra, e orou e trabalhou para a unidade de todos os crentes” (Philip Schaff, H istory o f the Christian Church , Vol. VIII, p. 799).

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XX - A Igreja de Deus: Una, Santa e Universal 437

menas funcional. Aqueles que têm alcançado diligente progresso por mui- tos anos devem ainda preocupar-se em corrigir muitas coisas.”1127

Nosso conforto é que é o Espírito mesmo quem edifica sua Igre­ja através de sua Palavra, cabendo a nós a responsabilidade de trans­miti-la com fidelidade.

3.1.2. O Fundamento da Unidade

A unidade da Trindade é a base e o fundamento da unidade cris­tã; em outras palavras, a unidade da Igreja existe porque Deus a tornou possível (Jo 17.22-24). A unidade da Igreja existe porque a Igreja é o Corpo de Cristo; portanto, ela está fundamentada em Cristo que a criou, a alimenta e dirige (Rm 12.5; Ef 1.23; Cl 1.24).1128Por­tanto, a unidade cristã passa necessariamente pela união mística: estamos unidos definitivamente a Cristo. Calvino (1509-1564) tal­vez tenha sido o teólogo que mais deu ênfase a este fato. Para ele, toda a vida cristã inicia-se com nossa união com Cristo: “Em pri­meiro lugar, devemos lembrar-nos de que a obra da redenção de Cristo de nada nos aproveita enquanto não estivermos unidos a ele, enquanto ele não estiver em nós.” 1129 A meta de todã vida cristã é nossa total união com Cristo:1130 “Nossa verdadeira plenitude e per­feição consiste em estarmos unidos no Corpo de Cristo.” 1131

Jesus disse: “Aquele que tem os meus mandamentos e os guar­da, esse é o que me ama; aquele que me ama, será amado por meu

1127 João Calvino, A s P astorais, São Paulo, Parakletos, 1998 (Tt 1.5), p. 306.1128 Vd. Herman Bavinck, Our R easonable Faith, 4 “ ed. Grand Rapids, M ichigan, Baker

B ook H ouse, 1984, p. 397.II2!IJ. Calvino, A.f Institu ías da R eligião C ristã , São Paulo, PES, 1984, III. 1. p. 205 (edi­

ção abreviada por J.P. W iles). “Por m eio da fé, Cristo nos é com unicado, através de quem chegam os a D eus, e através de quem usufruímos os benefícios da adoção” (João Calvino, E fésios (E f 1.8), p. 30]. “A os olhos de D eus só som os verdadeiramente gerados quando som os enxertados em Cristo, fora de quem nada é encontrado senão morte” [João Calvino, E xposição de I Coríníios (IC o 4.15), p. 143],

ii3°“o genuíno descanso dos fiéis, o qual dura por toda a eternidade, é segundo o descan­so de Deus. C om o a mais sublime bem-aventurança humana é estar o hom em unido com D eus, assim deve ser também seu propóstio último, ao qual todos os seus planos e ações devem ser dirigidos” [João Calvino, E xposição de H ebreus, São Paulo, Parakletos, 1997 (Hb 4 .3), p. 103],

1131 João Calvino, Efésios (E f 4.12), p. 124.

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438 EU CREIO.

Pai, e eu também o amarei e me manifestarei a ele. (...) Se alguém me ama guardará a minha palavra; e meu Pai o amará, e viremos para ele e farem os nele morada” (Jo 14.21, 23). Observem a rela­ção estabelecida: Quem ama o Filho é amado pelo Pai e pelo Filho, e este amor de Deus se manifestará na vinda do Pai e do Filho para habitarem em nós através do Espírito (cf. Jo 14.26).

3.1.3. O que a Unidade É

1) Produzida pelo Espírito:A unidade só é possível em Cristo. “Assim também nós, con­

quanto muitos, somos um só corpo em Cristo e membros uns dos outros” (Rm 12.5). O Espírito de Cristo produz esta unidade: “Es-

forçando-vos diligentemente p o r preservar a unidade do Espírito no vínculo da paz” (Ef 4.3). Por mais que tentemos produzir esta unidade, não conseguiremos; daí isso não ser requerido de nós, mas, sim, sua preservação, já que ela é obra do Espírito. “Onde reina o Espírito, ali há unidade.”1132E é em Cristo que temos o “vínculo” dessa união.1133

2) É uma unidade essencial:É uma unidade entre aqueles que nasceram de novo, que rece­

beram a Palavra e a guardam (Jo 17.6-8).Herman Bavinck (1854-1921) comenta:

“A unidade entre Cristo es os crentes é como a da pedra angular e o templo, entre o homem e a mulher, entre a cabeça e o corpo, entre a videira e os ramos. Os crentes estão em Cristo da mesma forma que todas as coisas, em virtude da criação e da providência, estão em Deus. Eles vivem em Cristo como os peixes vivem na água, os pássaros vivem nos ares, o homem em sua vocação, o erudito em seu estudo. Juntamente com Cristo os crentes foram crucificados, mortos e sepultados, e juntamente com ele eles ressuscitaram e estão assentados à mão direita de Deus e glorificados."34 O s crentes assumem a forma de Cristo e mostram em seu

1,32 D.M . Lloyd-Jones, A U nidade Cristã, p. 36.1133 J. Calvino, E xposição de Rom anos, São Paulo, Parakletos, 1997 (Rm 12.4-5), p. 429.1134 Rm 6.4 ss.; G1 2.20; 6.14; E f 2.6; Cl 2.12, 20; 3.3.

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corpo tanto o sofrimento quanto a vida de Cristo e são aperfeiçoados (com­pletados) nele. Em resumo, Cristo é tudo em todos.1135 ”1136

3) É uma unidade de propósito:O Espírito constitui a Igreja com o propósito de glorificar a Deus,

proclamando seus atos heróicos e salvadores (IPe 2.9-10). A Igreja por sua vez glorifica a Deus sendo-lhe obediente (Jo 14.21; Jo 17.4).

Mesmo que não consigamos uma unidade organizacional devi­do a métodos e estilos diferentes, devemos, no entanto, estar com­prometidos com a glória de Deus, que é nossa vocação incondicio­nal e suprema (ICo 10.31).

3.2. A Unidade e Nossa Responsabilidade

“A ajuda mútua que as diferentes partes do corpo oferecem umas às outras não é considerada pela lei da natureza como um favor, mas, sim, como algo lógico e normal, cuja negativa seria cruel.” " 37 A unidade da Igreja é uma realidade em Cristo; entretanto, cabe à Igreja preservá-la mediante um comportamento fundamentado nos princípios bíblicos. Leiamos mais uma vez o que Paulo escreveu aos efésios: “Esforçando-vos diligentemente (ZTtouSáÇco)1 m por preservar a unidade do Espírito no vínculo (2w 8ea |lioç)n39 da p a z”

1,35 Rm 13.14; 2 C o 4 .1 1 ;G l 4.19; Cl 1.24; 2.10; 3.11.1136 Herman Bavinck, O ur R easonable Faith, p. 398.1137 João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, São Paulo, N ovo Século, 2000, p. 39.1138 SjtowStííÇco, que é bem traduzido por “esforçando-vos diligentem ente” (ARA), tem sua

ênfase enfraquecida em ACR, A R C e BJ, que o traduzem por “procurando” . XnouSáÇcú ocorre 11 vezes no NT (*G 12.10; E f 4.3; 1 Ts 2.17; 2Tm 2.15; 4 .9 ,2 1 ; Tt 3.12; Hb 4.11; 2Pe 1.10, 15; 3.14), tendo o sentido de “correr", “apressar-se”, “fazer todo o esforço e em pe­nho possível" , “urgenciar" , “ser zeloso , d iligen te” , “esforço”, “ap lica çã o ”. EtcouSóiÇcú denota uma diligência que se esforça por fazer todo o possível para alcançar seu objetivo. Paulo, preso em Roma, pede a Tim óteo esta urgência em encontrá-lo (2Tm 4.9, 21). D e­pois, em outro contexto, solicita o m esm o a Tito (Tt 3.12). Esta palavra tem também uma im plicação ética, visto que está associada, por exem plo, ao esforço que os crentes devem despender em manter a unidade (E f 4 .3), ao zelo em socorrer a outros irmãos (G 12.10; 2Co 8.7, 8, 16) e em corrigir uma injustiça (2Co 7.11-12). Por sua vez, é recomendado que aquele que lidera (preside) deve fazê-lo com em penho (diligência, zelo; Rm 12.8). Pedro demonstrou esta mesma diligência em ensinar o evangelho às Igrejas (2Pe 1.15). Judas revela o m esm o ao escrever sua Epístola (Jd 3).

1139 I w S e a n o ç , “aquilo que une, vincula, mantém as coisas ligadas”, “ligaduras”, “e los”

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440 EU CREIO.

(Ef 4.3). Não devemos permitir que a “unidade do Espírito” seja abalada em nosso relacionamento. A unidade é obra do Espírito, mas cabe a nós viver sua plenitude no vínculo da paz (Rm 12.18) e no amor de Cristo (Jo 13.34-35; 15.12,17). O próprio tempo verbal de “esforçando-vos” (EflxnjSáÇcü; particípio presente) apresenta o conceito de um esforço contínuo, sem esmorecimento.1140

Comentando sobre o egoísmo humano que gera divisões na Igreja e ao mesmo tempo a falta de tolerância, Calvino escreve, exortan­do-nos a amar nossos irmãos:

“H á tanta rabugice em quase todos esses indivíduos que, estando em seu poder, de bom grado fariam para si suas próprias igrejas, porquanto se tor­na difícil acomodarem-se aos modos das demais pessoas. Os ricos invejam uns aos outros, e raramente se encontra um entre cem que acredite que os pobres são também dignos de ser chamados e incluídos entre seus irmãos. A menos que haja similaridade em nossos hábitos, ou alguns atrativos pes­soais, ou vantagens que nos unam, será muitíssimo difícil manter uma pe­rene comunhão entre nós. Essa advertência, pois, se torna mais que neces­sária a todos nós, a fim de sermos encorajados a amar, antes que odiar, e não nos separarmos daqueles a quem Deus nos uniu. Tom a-se urgente que abracemos com fraternal benevolência àqueles que nos são ligados por uma fé incomum. E indubitável que a nós compete cultivar a unidade da forma a mais séria, porque Satanás está bem alerta, seja para arrebatar-nos da Igreja, ou para desacostumar-nos dela de maneira furtiva.’’1141

A unidade da Igreja revela ao mundo o fato de que Deus nos ama como ama a seu Filho unigénito, e que este amor se revelou de forma insofismável na vinda de seu Filho amado para morrer pelos pecadores (Jo 3.16; Jo 17.21-23). Desta forma, a Igreja é o testemu­nho histórico do amor de Deus.(*A t 8.23; E f 4.3; Cl 2.19; 3.14).

1140 Lloyd-Jones, interpretando o emprego de E tcouSòíÇcú no texto, diz: “D evem os apres­sar-nos a fazer alguma coisa, a mostrar grande interesse, a expressar solicitude - ‘esforçan­do-vos para guardar’. Acim a de tudo mais, diz o apóstolo, com o cristãos nesta vocação para a qual vocês foram chamados, apressem-se a fazer isto, sejam diligentes quanto a isto, nunca o esqueçam , seja esta a coisa principal de sua vida; acima de todas as outras coisas, mostrem grande interesse e solicitude com respeito a unidade que existe entre vocês” (D.M . Lloyd-Jones, A U nidade Cristã, pp. 36-37).

1141 João Calvino, E xposição de H ebreus, São Paulo, Parakletos, 1997 (Hb 10.25), pp. 272-273.

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XX - A Igreja de Deus: Una, Santa e Universal 441

Francis Schaeffer (1912-1984), comentando sobre nossa respon­sabilidade, diz:

“N ão podemos esperar que o mundo creia que o Pai mandou o Filho, que as reivindicações de Jesus sejam verdadeiras, e que o cristianismo seja verdadeiro, a não ser que o mundo veja alguma realidade na unidade de cristãos verdadeiros”.1142

3.3. A Unidade VivenciadaA comunhão com o Espírito é ao mesmo tempo uma comunhão

com nossos irmãos. A comunhão do Espírito não é individualista (eu e o Espírito) ou mesmo de “elites sociais”. O Espírito, pela Pa­lavra, “quer arrancar-nos de nossa solidão e colocar-nos em comu­nhão recíproca” .1143 A comunhão proporcionada pelo Espírito é so- cializante, porque revela que todos nós, sem exceção, somos inteira e absolutamente dependentes da graça de Deus. Somos todos em Cristo conduzidos ao Pai pelo mesmo Espírito (Ef 2.18).4. A SANTIDADE DA IGREJA

À primeira vista parece estranho falar da santidade da Igreja, visto ela ser composta de homens pecadores. A Confissão de West- minster (1647), acertadamente, diz:

“A s igrejas mais puras debaixo do céu estão sujeitas à mistura e ao erro; algumas têm degenerado ao ponto de não serem mais igrejas de Cristo, mas sinagogas de Satanás; não obstante, haverá sempre sobre a terra uma igreja para adorar a Deus segundo a vontade dele.” (X X Y 5).1'44

De fato, entre os doze apóstolos de Cristo havia um traidor; a Igreja primitiva, com toda sua vitalidade e testemunho, tinha em seu seio Ananias e Safira; a Igreja presente não é diferente: ela tam­bém não é perfeita!

1142 F.A. Schaeffer, O Sinal do C ristão, Goiânia, GO, AB U B/A PL IC ., 1975, p. 24. Vd. também, A. Richardson, Introdução à Teologia do N ovo Testamento, São Paulo, ASTE, 1966, pp. 286-287.

1143 Emil Brunner, N ossa Fé, 2a ed. São Leopoldo, RS, Sinodal, 1970, p. 105.1144 Vd. J. Calvino, A.ç Institutos, IV.1.2, 7.

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442 EU CREIO.

A Igreja é santa e pecadora; este é um dos paradoxos da Igreja. Com isso não queremos dizer que a Igreja Santa seja apenas uma abstração de nossa mente e que a Igreja Pecadora seja de fato a única realidade histórica. Não. A santidade e a pecaminosidade fa­zem parte da vida da Igreja, não simplesmente como ideal, mas como algo real e concreto.

A santidade da Igreja não pode ser negada pelo fato de ela não estar demonstrando isso. A Igreja é santa porque foi santificada, separada para si por Cristo Jesus. A santidade é um dom de Deus, resultante de nossa comunhão com ele (santidade posicionai). Por outro lado, o fracasso da Igreja em viver santamente aponta para a necessidade de assim fazê-lo (Rm 1.7), sendo coerente com sua natureza. " 45

4.1. A Santidade da Igreja e a Graça“A Igreja se atribui a santidade sem que ela seja uma qualidade

da Igreja.” 1146 A Igreja é composta por pecadores regenerados (Jo 3.3; Tt 3.5). O pecado já não tem domínio sobre nós (Rm 6.14), todavia ainda exerce sua influência; por isso, o apóstolo João escre­veu: “Se dissermos que não temos pecado nenhum, a nós mesmos nos enganamos, e a verdade não está em nós” (1 Jo 1.8).

Assim, a Igreja Santa, que é composta por pecadores, revela o triunfo da graça de Deus sobre o poder do pecado. A graça é que começa, aperfeiçoa e conclui em nós a obra da salvação (Fp 1.6). Como bem disse Spurgeon (1834-1892): “A graça começa, continua e termina a obra da salvação no coração de uma pessoa.” 1147 Aquele que nos regenerou e justificou também nos santifica, modelando- nos conforme a imagem de Cristo (Rm 8.29).1148

Falar da santidade da Igreja significa declarar os atos salvado­res de Deus em Cristo Jesus, o qual morreu por seu povo, amando-

1145 Vd. B ill J. Leonard, La N atureza de la Iglesia, Buenos Aires, Casa Bautista de Publi- caciones, 1989, p. 126ss.

1146 Karl L. Schmidt, Igreja: In: Gerhard Kittel, ed. A Igreja no N ovo Testamento, p. 30.1147 C.H. Spurgeon, Serm ões Sobre a Salvação, São Paulo, PES, 1992, p. 45.1148 Vd. Sinclair B. Ferguson, O Espírito Santo, São Paulo, Os Puritanos, 2000, p. 156.

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o apesar de seus pecados (Rm 5.8; lJo 4.10). “.... A Igreja (...) tem sua origem na graça celestial. Pois os filhos de Deus nascem, não da carne e do sangue, mas pelo poder do Espírito.” 1149

Deus olhou para nós, vendo nossa nudez e miséria espirituais, vestiu-nos com as vestes de sua justiça e santidade manifestas em Cristo. Desse modo, nossa santidade consiste na participação da retidão de Cristo.1150

A santidade da Igreja realça a graça de Deus em Cristo. “Graça (...) é o amor de Deus em poder e formosura, brilhando contra o obscuro fundo do demérito humano.” 1151

4.2. A Santidade e Cristo4.2.1. O Fundamento da Santidade da Igreja

A Igreja é santa porque seu Cabeça é santo e santificador. A santificação do Filho é em favor da Igreja (Jo 17.19). A Obra de Cristo é o fundamento da santidade da Igreja. Cristo se entregou por seu povo a fim de nos santificar: “Maridos, amai vossas mulhe­res, como também Cristo amou a igreja, e a si mesmo se entregou por ela, para que a santificasse, tendo-a purificado por meio da lavagem de água pela palavra, para a apresentar a si mesmo igreja gloriosa, sem mácula, nem ruga, nem coisa semelhante, porém santa e sem defeito” (Ef 5.25-27; destaque meu).

A santidade da Igreja repousa na santidade de Cristo e no valor eterno de seus merecimentos. “A eternidade do valor do sacrifício de Cristo é decorrente da dignidade daquele que se ofereceu a si mesmo por nós” (Hb 4.15; 5.6; 6.20; 7.3, 17, 21-26).

D. Martyn Lloyd-Jones (1899-1981) comenta:“Aqui está a Igreja em seus farrapos, em sua imundície e vileza! Cristo

morreu por ela, salvou-a da condenação. Ele a toma de onde estava e a

1,45 João Calvino, G álatas, São Paulo, Parakletos, 1998 (G1 4 .26 ), p. 144.1150 Vd. D.M . Lloyd-Jones, A Vida no Espírito: no Casam ento, no L ar e no Trabalho, São

Paulo, PES, 1991, p. 139.1151 James Moffatt, G race in The N ew Testament, N ew York, Ray Long & Richard R.

Stnith Inc. 1932, p. 5.

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444 EU CREIO.

separa para si (...). Ela é removida do mundo para a posição especial que, como Igreja, deve ocupar.”1152

“Enquanto a Igreja caminha neste mundo de pecado e vergonha, ela se suja de lama e lodo. Portanto, há manchas e nódoas nela. E é muito difícil livrar-se delas. Todos os medicamentos que conhecemos, todos os produ­tos de limpeza são incapazes de remover estas manchas e nódoas. A Igreja não é limpa aqui, não é pura; embora esteja sendo purificada, ainda há muitas manchas nela.

“Entretanto, quando ela chegar àquele estado de glória e glorificação, ficará sem uma única mancha; não haverá nódoa alguma nela. Quando ele a apresentar a si mesmo, com todos os principados e poderes, e com todas as compactas fileiras de potestades celestes e contemplar esta coisa maravilhosa, a sondá-la e a examiná-la, não haverá nela nenhuma m ácu­la, nenhuma nódoa. O exame mais cuidadoso não será capaz de detectar a menor partícula de indignidade ou de pecado.’’1153

A Palavra de Deus demonstra que através da única e suficiente oferta de Cristo fomos santificados: “Nessa vontade é que temos sido santificados, mediante a oferta do corpo de Jesus Cristo, uma vez por todas (...). Porque com uma única oferta aperfeiçoou para sempre quantos estão sendo santificados” (Hb 10.10, 14). “... Je­sus, para santificar o povo, pelo seu próprio sangue, sofreu fora da porta” (Hb 13.12).

A Santidade de Cristo em favor da Igreja nos é comunicada pelo Espírito Santo. Ingressar na Igreja significa fazer parte consti­tutiva do Corpo de Cristo: Aquele que é Santo.

Quando olhamos para nós mesmos, vemos nossos pecados e nossa depravação que nos distanciam de Deus; quando, porém, olha­mos para a obra vitoriosa de Cristo, conseguimos então enxergar a Igreja santa, através de sua obra redentora e santificadora. Cristo tirou a Igreja do mundo e do mundanismo e nos devolveu ao mundo para vivermos santamente no mundo, como luzeiros (Mt 5.14-16; Jo 17.14-18; E f 5.25-27; Fp 2.15). É Cristo quem confere santidade à sua Igreja!

1152 D .M . Lloyd-Jones, Vida No Espírito: No Casamento, no L ar e no Trabalho, p. 119."53 D.M . Lloyd-Jones, Vida No E spírito: No Casamento, no L ar e no Trabalho, pp. 137-

138.

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4.2.2. Santificada em Cristo

A Igreja é santa porque foi santificada (separada) em Cristo (1 Co 1 .2; 14.33). Desta forma, a santidade da Igreja não envolve nenhum mérito ou ato humano de justiça. Sua santidade está em Cristo que a separou para uma missão (IPe 2.9-10). Santidade envolve a sepa­ração daquilo que é profano, consagrando-se ao serviço de Deus. Por isso, a Igreja vive no mundo sem pertencer a ele (Jo 17.14, 16). “A cultura ocidental pós-cristianismo duvida que haja absolutos morais.” 1154 A Igreja, no entanto, é filha da eternidade, não do tem­po; seus valores são eternos, sua ética é a do Reino de Deus, a qual obviamente não é baseada na relatividade do contexto histórico, mas nos ditames de Deus (Cl 3.1-3; Mt 6.33), aprendidos pelos en­sinamentos e vida de Cristo (Jo 13.15; IPe 2.21). Os ensinamentos da Palavra ultrapassam a simples questão de tempo e contexto: per­manece para sempre. “Se a ética de Jesus - escreve Ladd - é de fato a ética do Reino, segue-se que deve ser uma ética absoluta. (...) A ética de Jesus incorpora o padrão de justiça que um Deus santo deve requerer dos homens em qualquer era.” " 55

4.3. A Santidade como Meta“Em que sentido chamais santa à Igreja?”

“Porque a todos os que Deus elegeu, os faz justos e os reforma para san­tidade e inocência de vida, para que neles resplandeça sua glória (Rm 8.30). E assim, havendo Jesus Cristo resgatado sua Igreja, a santificou, para que fosse gloriosa e limpa de toda mancha (Ef 5.25-27).”1156

“E esta santidade que atribuis à Igreja, é já perfeita?”

“Não, entretanto ela mantém guerra neste mundo. Porque sempre tem imperfeições, e nunca será totalmente purgada dos vestígios dos pecados, até que seja completamente juntada com Cristo sua Cabeça, pelo qual ela é santificada.”1157

1154 J.I. Packer, O que é santidade e por que ela é importante?: In: B ruceH . W ilkinson, ed. ger. Vitória sobre a Tentação, 2“ ed. São Paulo, M undo Cristão, 1999, p. 34.

1155 G eorge E. Ladd, Teologia do N ovo Testamento, p. 120.1156 J. Calvino, C atecism o de G enebra, Pergunta, 96.1,57 Ibidem, Pergunta, 99.

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446 EU CREIO.

A Igreja é santa em santificação. A santidade é um ato realizado em e por Cristo; a santificação é decorrente deste ato, se concreti­zando num processo contínuo operado pelo Espírito.

A Igreja é descrita no “Credo Apostólico” como a “Comunhão dos Santos”. E de fato ela o é, porque congrega os pecadores santi­ficados em Cristo, e que estão, como evidência da tensão de seu pecado, e também de sua natureza santa, em processo de santifica­ção, de crescimento espiritual, pelo Espírito que é Santo.

A Igreja Santa vive na realização do ideal de santidade (vejam- se: Ex 19.6; Lv 20.26; Dt 7.6; 26.19; 28.9; Is 62.12; IPe 2.9). Desse modo ela cumpre a meta proposta por Deus no ato eterno de nossa eleição (Ef 1.4; 2Ts 2.13; lTs 4.3).1158

Por isso, quando nos referimos à santidade da Igreja, estamos falando de nossa responsabilidade: ser santo é estar em santifica­ção. Não podemos acomodar-nos com a graça da santidade; deve­mos progredir na graça em santificação. “A igreja alheia à santida­de é alheia a Cristo.” 1'59 Deus chama pecadores, todavia não deseja que eles continuem assim, antes infunde neles a justiça de Cristo, dando-lhes um novo coração, mudando as inclinações de sua alma, habilitando-os a toda boa obra (Ef 2.8-10). “Cristo não justifica a quem ao mesmo tempo não santifique.” 1160 A justificação nos livra da condenação do pecado e a santificação nos livra de sua contami­nação.1161 “...Na justificação, Deus imputa a justiça de Cristo; e na santificação, seu Espírito infunde a graça e dá forças para ser prati­cada. Na justificação, o pecado é perdoado; na santificação, ele é subjugado” ^62 (destaque meu; Rm 3.24, 25; 6 .6 , 14).

Os crentes em Cristo são chamados à santidade do Deus Triúno (Jo 6.69; IPe 1.15; Ap 15.4). “A Santa Igreja não é uma comunida­de perfeita. Ao contrário, é a comunidade que confia no milagre do perdão, cresce no conhecimento de que ela é justificada e aceita a

1158 Vd. Hermisten M.P. Costa, A E leição de D eu s, São Paulo, 2000.1159 Bruce M ilne, Conheça a Verdade, São Paulo, A B U , 1987, p. 224.1160 J. Calvino, As Instituías, III. 16.1.1161 Vd. A. Booth, Som ente pe la G raça, São Paulo, PES, 1986, p. 45.1162 C atecism o M aior de W estminster, Pergunta, 77.

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obra da santificação que é feita nela. Isso é o resultado do sentimen­to de sua própria indignidade, do morrer e do reviver para uma nova vida. Santidade denota a eficácia da obra de Deus, que se faz mais e mais real na medida em que a Igreja se dispõe a ela .” 1163

Em seu viver cotidiano, a Igreja deve revelar a essência de sua natureza divina (Mt 5.14-16; Fp 2.14-15).

A vida cristã não se caracteriza simplesmente por sustentar idéias corre­tas e ter uma visão mais ampla da realidade; mas, também, em proceder corretamente de acordo com a amplitude da realidade revelada. A ação cristã deve ser acompanhada de motivação e espírito cristãos. “N ão é sufi­ciente fazer. A pessoa precisa fazer todas as coisas com espírito certo. Há sempre o perigo de o homem zeloso tornar-se um zelote, ou de aquele que luta pela verdade e o direito tornar-se um polemista.”1164

Escrevendo aos filipenses (Fp 2.12-18), Paulo fala da salvação efetuada por Deus, na qual nós devemos participar em seu desen­volvimento, usando dos meios que o próprio Deus coloca à nossa disposição para o nosso crescimento espiritual. “Deus nos tem mu­nido com mais de uma espécie de auxílio, desde que não sejamos indolentes em fazer uso do que nos é oferecido” 1165 (2Pe 1.3).

Pedro, do mesmo modo, por considerar este ponto de extrema relevância, insiste em nossa responsabilidade de assim proceder, agindo com diligência: “Por isso, irmãos, procurai, com diligência (ZTtouSáÇco = “ser zeloso”, “fazer todo o esforço possível”)xm cada vez maior, confirmar a vossa vocação e eleição; porquanto, proce­dendo assim, não tropeçareis em tempo algum” (2Pe 1.10). Portan­to, podemos perceber que o segredo da vida cristã, sua segurança, não está na inatividade, mas, sim, amparados na graça de Deus, vivermos em constante trabalho de desenvolvimento de nossa fé, sabendo que dessa maneira jamais tropeçaremos de modo definiti­vo: Deus não permitirá!

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R io de Janeiro, JUERP, 1985, Vol. 11, p. 242.1165 J. Calvino, Efésios, São Paulo, Parakletos, 1998 (E f 6.11), p. 188."“ XraníSòíÇco (spoudazõ) ocorre nos seguintes textos do NT: *G1 2.10; E f 4.3; lT s 2.17;

2Tm 2.15; 4 .9 , 21; Tt 3.12; Hb 4.11; 2Pe 1.10, 15; 3.14.

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448 EU CREIO.

Os Símbolos de Westminster declaram que Deus exige de nós, os crentes, “o uso diligente de todos os meios exteriores pelos quais Cristo nos comunica as bênçãos da salvação”n67e que não negli­genciemos os “meios de preservação” .1168

Sabemos que a salvação é obra de Deus (Fp 1,6).Todavia, Deus opera dentro de nossa vontade: “Deus é quem efetua em vós tanto o querer como o realizar, segundo sua boa vontade” (Fp 2.13; ICo 15.10);

Recordemos o contexto em que Paulo escreveu aos filipenses. Ele já não residia com os filipenses, estava preso em Roma (Fp1.13), por isso deviam envidar todos os esforços para continuar de­senvolvendo essa salvação, no processo de santificação, usando os meios de graça concedidos pelo próprio Deus, para o nosso pro­gresso espiritual. O crescimento espiritual é a naturalidade do ho­mem regenerado. Daí, a recomendação de Pedro: “D esejai ardente­mente, como crianças recém-nascidas, o genuíno leite espiritual, para que, p o r ele, vos seja dado crescimento para salvação” (IPe 2.2); “Crescei na graça e no conhecimento de nosso Senhor e Sal­vador Jesus Cristo. A ele seja a glória, tanto agora como no dia eterno” (2Pe 3.18).

Paulo tem a preocupação com o cumprimento de suas recomen­dações e também como eles fariam isso: não bastando apenas fazer, mas também com que espírito fariam. Do mesmo modo, não basta apenas servir, é preciso saber como servimos. Não basta apenas con­tribuir, é preciso saber com que espírito contribuímos. Precisamos lembrar que a espontaneidade do amor não exclui a responsabilidade da obediência. Paulo então toma como exemplo a obediência de Je­sus Cristo: “Tende em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus, pois ele, subsistindo em forma de Deus, não julgou como usurpação o ser igual a Deus; antes, a si mesmo se esvaziou, assu­mindo a form a de servo, tornando-se em semelhança de homens; e, reconhecido em figura humana, a si mesmo se humilhou, tornando- se obediente até à morte e morte de cruz” (Fp 2.5-8).

1167 C atecism o M enor de Westminster, Perg. 85.1168 Confissão de Westminster, XV II.3.

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No verso 12 temos a ligação com o texto anterior: “assim, pois Ou: “de modo que". No caso dos filipenses, Paulo tinha certeza da obediência exemplar daqueles irmãos. Ele mostra então como era identificada essa obediência: Os filipenses obedeciam às instruções do Senhor de forma íntegra: “Assim, pois, amados meus, como sem ­pre obedecestes, não só na minha presença..." (Fp 2.12). Á obedi­ência não era apenas para fazer encenação diante de Paulo. Nesse aspecto, tanto fazia ele estar por perto ou não, eles mantinham uma vida cristã exemplar. Lembremo-nos de que, quando Paulo foi em­bora, ao que parece a Igreja ficou reunindo-se na casa de Lídia (At 16.40). Os filipenses permaneceram em contato com Paulo, auxili­ando-o em seu ministério, provendo recursos para suas necessida­des (2Co 11.9; Fp 1.5; 4.15-19). Paulo visitou a Igreja pelo menos em duas outras ocasiões (2Co 2.12, 13; 7.5-7; At 20.1, 3, 6), antes de sua prisão em Jerusalém e a escrita da carta. Havia integridade em seu comportamento.

Deus conhece nossos corações; ele sabe de nossas intenções e motivações. Na unção de Davi, como futuro rei de Israel, Deus diz a Samuel: “Não atentes para a sua aparência, nem para a sua altu­ra, porque o rejeitei; porque o Senhor não vê como vê o homem. O homem vê o exterior, porém o Senhor, o coração” (ISm 16.7. Ver: Jo 2.25).

A dignidade da obediência se expressa através da integridade do coração. Daí a recomendação de Paulo aos servos: “Servos, obe­decei em tudo ao vosso senhor segundo a carne, não servindo ape­nas sob vigilância, visando tão-somente a agradar homens, mas em singeleza de coração, temendo ao Senhor” (Cl 3.22).

A obediência não significa necessariamente - como normalmen­te querem nos fazer crer - , sujeição servil. A obediência cristã a Deus e à sua Palavra é um ato de amor. Comentando o Salmo 40.7, Calvino assim se expressa: “Aqui verdadeira obediência apropria­damente se distingue de uma constrangedora e escrava sujeição. Todo serviço, pois, que porventura os homens ofereçam a Deus será fútil e ofensivo a seus olhos a menos que, ao mesmo tempo, ofere­çam a si próprios; e, além do mais, este oferecimento por si mesmo

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450 EU CREIO.

não é de nenhum valor a menos que seja feito espontaneamente.” 1169 Em outro lugar: “....A obediência forçada ou servil não é de forma alguma aceitável diante de Deus....” .1170

A perspectiva da questão é teológica: “Tudo quanto fizerdes, fazei-o de todo o coração, como para o Senhor e não para homens'” (Cl 3.23). “....muito mais agora, na minha ausência (açT tow iria1171), desenvolvei (K axepY otr |Ç o |J ,a i1172) . . .” (Fp 2.12).

Os filipenses agora, sem a presença de Paulo, teriam que estar mais atentos à sua salvação, em seu progresso espiritual, pois o velho pastor já não estaria fisicamente ali para apascentar seu reba­nho, embora os tivesse sempre em sua mente (Fp 1.7-8) e orações: “Dou graças ao meu Deus por tudo que recordo de vós, fazendo sempre, com alegria, súplicas por todos vós, em todas as minhas orações” (Fp 1.3-4). “A obediência dos filipenses envolvia a tradu­ção dos princípios do evangelho em que haviam crido em ação cons­tante.” 1173

Paulo continua argumentando a respeito de como os filipenses deveriam praticar sua obediência: “Fazei tudo sem murmurações (yoYYWiióç)” (Fp 2.14). royYW jxóç,1174 além de “murmuração”, tem o sentido de descontentamento, queixa, desagrado, desprazer, reclamação, queixume, “zum-zum”. A palavra é onomatopaica; ela descreve um murmúrio surdo e ameaçante do povo, que zomba e arremeda seus líderes e está pronta para uma revolta e insurreição. Por certo Paulo tinha em mente o comportamento pecaminoso dos israelitas, que se queixavam constantemente contra Moisés e Arão “Todos os filhos de Israel murmuraram contra Moisés e contra Arão; e toda a congregação lhes disse: Tomara tivéssemos morrido na

1,69 João Calvino, O Livro do s Salm os, Vol. 2 (SI 40 .7), p. 227. “Não existe incom patibi­lidade entre amor e obediência; pois na vida verdadeiramente santificada existe a obediên­cia em amor e o amor obediente” (Ernest Kevan, A Lei M oral, São Paulo, Editora Os Puri­tanos, 2000, p. 9).

1170 João Calvino, O Livro dos Salm os, Vol. 1 (SI 1.2), p. 53.1171 açjco-ucutia só ocorre neste texto,1173 KoítepYatlÇ°^oa, “executar”, “fazer”, “produzir”, “cumprir", “realizar”."n F.F. Bruce, Filipenses, Florida, Editora Vida, 1992 (Fp 2 .12-13), p. 90.1174 *Jo 7.12; A t 6.1; Fp 2.14; lP e 4 .9 .

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terra do Egito ou mesmo neste deserto /” (Nm 14.2). Mas, na reali­dade, o povo estava murmurando contra Deus, pois foi ele que os conduziu até ali: “Até quando sofrerei esta má congregação que murmura contra mim? Tenho ouvido as murmurações que os filhos de Israel proferem contra mim” (Nm 14.27). Paulo escreveu aos Coríntios mencionando este fato: “Nem murmureis (YoyyiSÇco), como alguns deles murmuraram e foram destruídos pelo exterminador” (IC o 10.10). Notemos que, de todos aqueles que saíram do Egito - com mais de vinte anos apenas Josué e Calebe entraram na terra de Canaã; todos os outros que entraram nasceram no deserto (Nm 14.28-30). O motivo é simples; apesar das dificuldades, creram em Deus: Depois de espiar a terra, deram seu relatório e testemunho de fé: “Josué, filho de Num, e Calebe, filho de Jefoné, dentre os que espiaram a terra, rasgaram as suas vestes e falaram a toda a con­gregação dos filhos de Israel, dizendo: A terra pelo meio da qual passam os a espiar é terra muitíssimo boa. Se o Senhor se agradar de nós, então nos fará entrar nessa terra e no-la dará, terra que mana leite e mel. Tão-somente não sejais rebeldes contra o Senhor e não temais o povo dessa terra, porquanto, como pão, os podem os devorar; retirou-se deles o seu amparo; o SENHOR é conosco; não os temais” (Nm 14.6-9).

Esta foi uma prática comum dos judeus no deserto (1 Co 10.10)1175 e por parte dos judeus em relação a Jesus e a seus discípulos (Lc 5.30; Jo 6 .4 1 ,4 3 ,6 1 ).1176 Esta é uma atitude comum dos ímpios (Jd 16).1177 A obediência não deve ser queixosa. Freqüentemente tendemos a passar muito tempo nos queixando dos aparentes problemas, ao in­vés de olhá-los de frente com objetividade e fé. Devemos obedecer a Deus, sem queixumes. Devemos ter a consciência de que a vonta­de de Deus, seus mandamentos e preceitos são sempre o melhor para nossa vida.

Paulo continua sua argumentação: “Fazei tudo sem murmura-

11,5 yoyyiiÇco.1176 Em todos esses texto, a palavra é yovYiiÇco.1177 A palavra empregada no texto e, que só ocorre ali, é: YOYfúat^ç.

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452 EU CREIO.

ções nem contendas (8iaX,oyia|ióç)” (Fp 2.14). A palavra SiaA,o- yiajióç, tem o sentido de disputa, discussão, especulação, questio­namento interior, questionamento cético ou crítico, litígio, dissen­são, argumentos. Nos papiros se refere às discussões forenses.

O emprego desta palavra no Novo Testamento é sempre negativo:a) Maus pensamentos e desígnios: Mt 15.19; Mc 7.21; Tg 2.4;b) Dúvida como resultado de incredulidade: Lc 24.38;c) Discussão insensata: Lc 9.46-47; Rm 14.1;d) Pensamentos nulos: Rm 1.21; 1 Co 3.21;e) Animosidade: lTm 2.8.A palavra descreve disputas e debates inúteis e mesmo mal in­

tencionados que engendram dúvidas e vacilações. Paulo diz que a obediência cristã deve ser serena, sem o desejo de lançar dúvidas sobre aquilo que é claro. Calvino entendia que “onde os homens amam a disputa, estejamos plenamente certos de que Deus não está reinando ali.” 1178

A verdade é que muitas vezes perdemos muito tempo com es­peculações e discussões estéreis que não conduzem a nada, exceto à desobediência. Stagg interpreta: “Paulo queria que os filipenses estivessem livres tanto de murmuração particular uns contra os ou­tros como de discussões públicas. A igreja não deve ser clube de fofoca nem uma sociedade de debates. Ambas as palavras, murmu­rações e contendas, descrevem aspectos de um temperamento de auto-afirmação, o oposto da mente de Cristo.” 1179

Enquanto a murmuração é uma rebelião moral, as contendas constituem uma rebelião espiritual contra o Senhor.1180 O início do verso 14 não deve ser esquecido: “fazei tudo”. Logo, estes princípi­os são válidos para todas as áreas de nossa vida. O resultado do cumprimento dos preceitos e da forma como eles seriam cumpridos

1178 J. Calvino, E xposição de 1 C oríntios, São Paulo, Edições Paraklctos, 1996 (IC o 14.33), p. 436.

1179 Frank Stagg, Filipenses: ln: Com entário B íblico Broadm an, Vol. 11, pp. 242-243.1180 Vd. Marvin R, Vincent, Word Studies in the N ew Testament, Peabody, M assachusetts,

Hendrickson Publishers (s.d), Vol. Ill (Fp 2.14), pp. 438-439.

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redundaria: “Para que vos torneis..." (Fp 2.15). Neste texto, para descrever a meta comportamental do cristão que já é filho de Deus (regeneração), mas que caminha em sua filiação (santificação), Paulo faz uso de três palavras:

a) Irrepreensível (15): (á|iE|i.7Ftoç)1181 inculpável, inatacável. Quando a palavra se aplica a pessoas, tem em geral o sentido de “pureza moral”, inculpabilidade diante da lei (Lc 1.6; Fp 3.6). Por­tanto, esta palavra descreve a postura do cristão no mundo. Ele deve estar acima de qualquer suspeita; ninguém tem de que o acusar.

Paulo orou nesse sentido em relação aos tessalonicenses: “O mes­mo Deus da paz vos santifique em tudo; e o vosso espírito, alma e corpo sejam conservados íntegros e irrepreensíveis (ájJ .é(iítT C O ç)im2 na vinda de nosso Senhor Jesus Cristo” (lTs 5.23).

b) Sincero (15): (óacépaioç)1183 puro, simples, sem mistura, sem mescla, não adulterado, íntegro. A palavra é aplicada ao leite que não é misturado com água, e também à pureza do metal. Descreve o que o cristão deve ser em si mesmo: puro, sincero, sem dissimula­ção, sem segundas intenções.

Jesus Cristo e o apóstolo Paulo recomendam que assim seja­mos: “Eis que vos envio como ovelhas para o meio de lobos; sede, portanto, prudentes como as serpentes e símplices (ócKépaioç) como as pom bas” (Mt 10.16). “Pois a vossa obediência é conhecida por todos; por isso me alegro a vosso respeito; e quero que sejais sábi­os para o bem e símplices (áKépaioç) para o mal” (Rm 16.19).

c) Inculpável (15): (ájacojioç)1184 sem mancha, imaculado, sem nódoa, inocente. Esta palavra, comum no ritual judaico, era empre­gada para indicar os animais usados para o sacrifício; eles não podi­am ter defeito (Ex 29.1; Lv 1.3,10; 3 .1 ,6 ).1185 Esta palavra descreve uma pureza ética; a idéia predominante é a ausência de qualquer

1181 *Lc 1.6; Fp 2.15; 3.6; lTs 3.13; Hb 8.7.1182 * lT s 2.10; 5.23.1181 *M t 10.16; Rm 16.19; Fp 2.15.1184 E f 1.4; 5.27; [Fp 2.15. Aqui há uma variante textual que indica um sinônim o, à)j.co|J.Tixá

(am ôm êta), talvez por seguir a LX X, Dt 32.5]; Cl 1.22; H b 9.14 ; IPe 1.19; Jd 24; Ap 14.5.1185 Em todos esses textos, a LXX usa (fytconoç.

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coisa que constituísse corrupção diante de Deus. Ela denota, por­tanto, o que o cristão deve ser diante de Deus. Esta palavra concebe toda a vida humana - em suas multifárias dimensões - , como uma oferenda a Deus.

Fomos eleitos na eternidade para vivermos deste modo: “Assim como nos escolheu, nele, antes da fundação do mundo, para ser­mos santos e irrepreensíveis (âjj,co|j,oç) perante ele” (Ef 1.4). Nossa reconciliação teve também este propósito: “....vos reconciliou no corpo da sua carne, mediante a sua morte, para apresentar-vos perante ele santos, inculpáveis (á|_i(ú|ioç) e irrepreensíveis” (Cl 1.22).

As Escrituras declaram que foi assim que Jesus Cristo se ofere­ceu vicariamente por nós: “Muito mais o sangue de Cristo, que, pelo Espírito eterno, a si mesmo se ofereceu sem mácula (dqicüjioç) a Deus, purificará a nossa consciência de obras mortas, para ser­virmos ao Deus vivo!” (Hb 9.14). “Sabendo que não fo i mediante coisas corruptíveis, como prata ou ouro, que fostes resgatados do vosso fú til procedimento que vossos pais vos legaram, mas pelo precioso sangue, como de cordeiro sem defeito (ájico|ioç) e sem mácula, o sangue de Cristo” (IPe 1.18-19).

Nosso consolo é que Deus, por seu poder, nos preservará assim para o encontro com o Senhor Jesus: “... Aquele que é poderoso para vos guardar de tropeços e para vos apresentar com exultação, imaculados (ôíjacü|j,oç) diante da sua glória” (Jd 24).

Se dependesse unicamente de nossos poderes, diante da glória de Deus jamais a Igreja poderia ser vista como imaculada, no en­tanto é Deus mesmo que nos apresentará assim em Cristo. Deus nos preserva intocáveis, para que possamos ser apresentados diante do Senhor Jesus, na manifestação de sua glória. Ninguém tem de que nos acusar; fomos justificados por Cristo (Rm 8.31, 33).

Todo o viver da Igreja é “no meio de uma geração pervertida (XkoAaóç) e corrupta (Aiotcnpé(|)co)” (15).

a) Pervertida: (Z k o^ ióç) 1186 Sentido literal: “torto”, “encurva-

1186 *L c 3.5; At 2.40; Fp 2.15; 1 Pe 2.18.

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do”. Sentido figurado: perverso, malvado, desonesto, inescrupuloso.b) Corrupta: (Àicxcrtpéffico)1187 Sentido literal: “entortar”. Senti­

do figurado: Pervertido, depravado, distorcido, dividido. Denota uma situação anormal.

Os filipenses deveriam ter uma vida singular no meio de uma sociedade dissimulante, com um ética tortuosa, e por isso mesmo perversa. Esse contraste de comportamento evidenciaria a diferen­ça da igreja: “na qual resplandeceis como luzeiros ((jxacrtfjp) no mundo” (15). OcooT^p,1188 estrela, esplendor, radiância, brilho, lu- minário. O tempo presente indica a ação contínua. A palavra origi­nalmente está associada ao brilho do sol (Ap 22.5: à luz das lâmpa­das (L c 8.6 ; 11.33; 15.8; At 16.29), &o calor da fogueira (Mc 14.54; Lc 22.56).1189

Paulo diz então que nosso comportamento deve reluzir como es­trelas no firmamento (Gn 1.14). O mundo jaz nas trevas; hoje esta­mos na luz porque Cristo nos resgatou: “Ele nos libertou do império das trevas e nos transportou para o reino do Filho do seu a m o r (Cl1.13). Somos filhos da luz: “Vós todos sois filhos da luz ((ficoxóç) e

filhos do dia; nós não somos da noite, nem das trevas” (ITs 5.5).Se somos filhos da luz, devemos andar como tais: “Pois, outro-

ra, éreis trevas, porém, agora, sois luz ((jícòç) no Senhor; andai como filhos da luz ((jjcotòç), porque o fruto da luz (^oycòç) consiste em toda bondade, e justiça, e verdade” (Ef 5.8-9). E nosso dever, resul­tante de nossa nova natureza, brilhar no mundo apontando como um sinal luminoso o caminho de Cristo: A Igreja tem uma respon­sabilidade missionária para com o mundo: “Vós sois a luz (<})cbç) do mundo. (...) brilhe também a vossa luz (()>còç) diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem a vosso Pai que está nos céus” (Mt 5.14, 16). “Vós, porém, sois raça eleita, sacer­dócio real, nação santa, povo de propriedade exclusiva de Deus, a

1187 * Mt 17.17; Lc 9.41; 23.2; At 13.8, 10; 20.30; Fp 2.15.1188 Ococmíp (*Fp 2.15; Ap 21.11). A palavra é proveniente de 4>diç.1189 Em todos esses exem plos, as palavras empregadas são <E>coç ou O cotóç (ver: H. C.

Hahn e Colin Brown, Luz: In: Colin Brown, ed. ger. O N ovo D icionário Internacional de Teologia do N ovo Testamento, São Paulo, Vida N ova, 1981-1983, Vol. III, pp. 101-107.

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fim de proclamardes as virtudes daquele que vos chamou das tre­vas para a sua maravilhosa luz (4>óòç)” (IPe 2.9).

Os filipenses, portanto, deveriam continuar incansavelmente sendo as “grandes luzes” no meio daquela geração pervertida e cor­rompida. A Igreja, como a comunidade dos filhos de Deus, é con­clamada a viver de forma distinta, refletindo no meio de uma gera­ção pervertida e alienada de Deus a glória de seu Senhor (Mt 5.14- 16; Jo 17.10; 2Ts 1.10-12; Dt 32.5). “Como as estrelas espantam a escuridão física, assim os crentes afugentam as trevas espirituais e morais. Como as estrelas iluminam o firmamento, assim os crentes alumiam os corações e vida dos homens.” 1190

* * *

Spurgeon (1834-1892) faz uma relevante pergunta: “De que maneira, pois, as pessoas podem manifestar gratidão para com Aque­le que se ofereceu em sacrifício a não ser pela santificação?” À qual responde: “Agora, motivados pelo sacrifício redentor, somos avi­vados para o zelo intenso e a devoção.” 1191

5. A CATOLICIDADE DA IGREJA

A palavra “católico” é uma transliteração do grego kcíG oàikòç (katholikós), que é traduzida por “universal”, “geral”. O termo grego é constituído de duas palavras: kcí0ò (kathó), que significa “à medida em que”, “segundo”, e õÂoç (hólos), que significa, “todo”, “inteiro”, “completo”. A palavra “católico” só ocorre uma vez no Novo Testa­mento, e mesmo assim na forma adverbial, acompanhada de um ad­vérbio de negação, sendo traduzida por “absolutamente não” (At 4.18).

O termo “católico” dispunha de grande emprego na literatura secular.1192 No entanto, o primeiro homem a usar a palavra “católi-

1150 W illiam Hendriksen, E xposição de F ilipenses, São Paulo, Casa Editora Presbiteria­na, 1992 (Fp 2 .14 -16), p. 165.

1,91 C.H. Spurgeon, Batalha Espiritual, Paracatú, MG, Sirgisberto Queiroga da Costa, editor., 1992, p. 56.

115,2 Vd. KaxoXvrCtiç'. In: W illiam F. Arndt & F.W. Gingrich, A Greek-English Lexicon o f

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ca” em referência à Igreja foi Inácio de Antioquia (30-110 AD), em sua carta à Igreja de Esmirna, escrita por volta do ano 110, quando diz: “Onde quer que se apresente o bispo, ali também esteja a co­munidade, assim como a presença de Cristo Jesus também nos as­segura a presença da Igreja católica.” " 93 Aqui, Inácio denomina ca­tólica a Igreja universal, representada em cada uma das igrejas locais.1194Posteriormente, por volta do ano 155 AD, encontramos a mesma expressão na Carta Circular da Igreja de Esmirna, redigida por um escritor anônimo, que conta como foi o martírio de Policar- po, bispo de Esmirna. Na introdução, ele escreve: “A Igreja de Deus estabelecida em Esmirna à Igreja de Deus estabelecida em Filomé- lio e às Igrejas de todos os lugares em que são partes da Igreja santa e católica....” .1195 A expressão “católica” só é encontrada no Credo a partir do ano 450 A D ." 96

Terminadas essas ligeiras observações terminológicas, analise­mos alguns aspectos da catolicidade da Igreja.

5.1. Uma Só Igreja

A catolicidade da Igreja traz a certeza de que existe apenas uma única Igreja de Cristo. Cristo não está dividido; ele tem somente um corpo; por isso mesmo só há uma Igreja de Cristo.

Quando um grupo ou denominação advoga para si a catolicida­de, está incorrendo num equívoco de termos, e ao mesmo tempo está implicitamente dizendo que as outras denominações não fa­zem parte da Igreja de Cristo. Assim sendo, a designação “Igreja Católica Romana" é uma impropriedade terminológica que se tor­na ainda mais visível em sua teologia, que em muitíssimos aspectos está divorciada da Palavra de Deus (vd. Ef 1.20-23; 5.25-27).the N ew Testament an d O ther Early Christian L iterature , 2a ed. Chicago, University Press, 1979, p. 391; J.N.D. Kelly, P rim itivos Credos C ristianos, p. 454.

1193 Inácio de Antioquia, C arta de S. Inácio aos E sm im enses, 8.2. In: C artas de Santo Inácio de N atioquia , 3a ed. Petrópolis, RJ, Vozes, 1984, p. 81.

1194 Vd. J.N.D. Kelly, P rim itivos Credos Cristianos, p. 454ss.1195 O M artírio de Policarpo: In: Henry Bettenson, D ocum entos da Igreja C ristã , São

Paulo, ASTE, 1967, p. 35.ii% ç f philip Schaff, The Creeds o f Christendom , Vol. II, p. 55.

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458 EU CREIO.

5.2. Universalidade da Graça

A Igreja é católica porque a oferta de salvação é para todos os homens. Todos os homens de todos os povos que responderem com fé ao anúncio das boas-novas de salvação serão salvos. A Igreja de Cristo congrega pessoas de todas as nações, de raças diferentes, dialetos variados e condições sociais díspares.

Com isso não estamos pretendendo dizer que, para que a Igreja seja católica, precisa ter crentes de todas as regiões; antes, o que estamos afirmando é que a oferta da graça salvadora, anunciada pela Igreja, é para todos os homens. O alcance da graça de Cristo assinala a vitória de Cristo sobre todas as barreiras geográficas, ra­ciais, sociais, culturais e temporais (G1 3.28; Ef 2.18; Cl 3.11). Não há barreiras para a graça!

Shakespeare (1564-1616), na tragédia Romeu e Julieta, coloca nos lábios de Romeu as seguintes palavras dirigidas a Julieta: “Os limites de pedra não servem de empecilho para o amor.” ” 97

A Palavra de Deus nos mostra que o homem longe de Deus per­manece morto espiritualmente, com um coração empedernido para as realidades espirituais. A Escritura também nos diz que “Deus é plenitude de vida e plenitude de amor” ,1198 e que, com seu gracioso poder, ele transforma o coração de pedra do homem, dando-lhe um coração de carne: “Dar-vos-ei coração novo, e porei dentre em vós espírito novo; tirarei de vós o coração de pedra e vos darei coração de carne. Porei dentro em vós o meu Espírito, e farei que andeis nos meus estatutos, guardeis os meus juízos e os observeis” (Ez 36.26-27).

Deus, na plenitude de seu amor, através da História tem vencido os corações de pedra, empedernidos pela incredulidade, conceden­do um novo coração a seu povo. Os corações de pedra não servem de obstáculo para o amor gracioso de Deus.

1197 W. Shakespeare, Romeu e Julieta, São Paulo, Abril Cultural, 1978, II.2. p. 43.1,98 O. Hendliksen, El Evangelio Segun San Juan, Grand Rapids, M ichigan, SLC., 1981,

p. 151.

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5.3. Unidade Entre a Igreja Militante e a Triunfante

Em Teologia, costumamos chamar de Igreja Triunfante aquela que é constituída pelos irmãos que já partiram desta vida, encon­trando-se na presença do Senhor. Denominamos de Igreja M ilitan­te aquela que é formada por todos aqueles que crêem em Cristo e que continuam nesta vida ativos contra o pecado, o mundo e Satanás.

A Segunda Confissão Helvética (1566), no capítulo XVII, faz a seguinte distinção:

“Um a é cham ada a Igreja Militante e a outra, a Igreja Triunfante. A primeira ainda milita na terra e luta contra a carne, o mundo e o Diabo, que é o príncipe deste mundo, e contra o pecado e a morte. A outra já deu baixa e triunfa no céu depois de ter vencido esses inimigos, e exulta diante do Senhor. Entretanto, essas duas igrejas têm comunhão e união uma com a outra” (destaque m eu).

Os heróis da fé que já partiram desta vida são espectadores, enquanto que nós, que continuamos nesta peregrinação terrena, es­tamos vivendo numa antítese ativa contra os valores e práticas des­te mundo. “Para a Igreja que agora vive e luta, tais testemunhas são herança preciosa e elemento de ajuda e encorajamento” .1199 (Vd. 2Tm 4.7-8; Fp 1.21-26; Hb 12.1-3; Hb 11.1-40.)

Há uma ligação entre nós e nossos irmãos que já morreram. Todos pertencemos à mesma Igreja, fomos alcançados pela mesma graça, tendo o mesmo dom da fé. Desta forma, a Igreja é católica porque é composta de todos aqueles que creram; os fiéis ao Senhor de todas as eras, quer já tenham morrido, quer estejam entre nós, ainda vivos. Um dia todos nós nos encontraremos, constituindo o evidente testemunho da catolicidade da Igreja de Cristo, que é seu Corpo, o qual na era presente atinge o céu e a terra. Agora, então, como Igreja Militante, “....visto que temos a rodear-nos tão grande nuvem de testemunhas, desembaraçando-nos de todo peso e do p e ­cado que tenazmente nos assedia, corramos, com perseverança, a carreira que nos está proposta, olhando firmemente para o Autor e Consumadordafé, Jesus...” (Hb 12.1-2). Que Deus nos ajude, amém!

1199 Gustaf Aulén, A Fé Cristã, São Paulo, ASTE, 1965, p. 299.

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460 EU CREIO.

IM PLICAÇÕES DOUTRINÁRIAS E PRÁTICAS

1) Uma forma objetiva de analisar se uma Igreja é de Cristo é verificar se o que ela prega corresponde de fato a todo o desígnio de Deus (At 20.20-27);

2) A Igreja é santa e pecadora; santa, por seu chamamento, re­generação, justificação e progressiva santificação. Pecadora, pelo poder do pecado que ainda exerce influência sobre seus membros;

3) Nossa santidade em Cristo é uma chamada à responsabilida­de de sermos santos;

4) “A Igreja de Cristo, a Igreja dos discípulos, foi arrebatada ao domínio do mundo. Vive no mundo, é verdade. Mas foi feita um corpo, é um domínio independente, um espaço para si. É a Santa Igreja (EF 5.27), a Comunhão dos Santos (ICo 14.33)”.1200

5) “A mais importante implicação positiva da catolicidade da igreja é seu solene dever de proclamar o evangelho de Jesus Cristo a todas as nações e tribos da terra” .1201

6) “Se a igreja na terra é a igreja militante, no céu é a igreja triunfante. Lá a espada é permutada pelos louros da vitória, os bra­dos de guerra se transformam em cânticos triunfais, e a cruz é subs­tituída pela coroa. A luta é finda, a batalha está ganha, e os santos reinam com Cristo para todo o sempre” .1202

1200 D . Bonhoeffer, D iscipulado, 2a ed. São Leopoldo, RS, Sinodal, 1984, p. 169.1201 R .B. Kuiper, El Cuerpo G lorioso de C risto , M ichigan, Subcom ision Literatura Cris-

tiana de la Iglesia Cristiana Reformada, 1985, p. 60.1202 Louis Berkhof, Teologia Sistem ática , Campinas, SP, Luz para o Caminho, 1990, p.

569.

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XXI - AMÉM— —

IN TRO D U ÇÃO

Estamos chegando ao texto final de nosso estudo sobre o Credo Apostólico. O encerramento pode parecer abrupto devido ao

fato de não comentarmos as proposições finais: “Na remissão dos pecados, na ressurreição do corpo e na vida e t e r n a Na realidade, não nos detivemos nestes relevantes pontos de fé porque já os abor­damos em outros textos estudados. Por exemplo: A “Ressurreição do Corpo” foi analisada no capítulo sobre a Ressurreição de Cristo, na Segunda Vinda e no Juízo Final. A “Remissão dos pecados” foi tratada principalmente no capítulo “Jesus, o Salvador”. A “Vida eterna” foi estudada no capítulo sobre o “Juízo Final”.

Por isso, neste capítulo final de nossa série de estudos queremos analisar o significado da palavra “amém”, bem como as implicações para nossa fé, resultantes do ato de dizer “amém” na conclusão do Credo.1. O SIGNIFICADO DA PALAVRA "AMÉM"

“Amém” é uma transliteração do hebraico p ç ( ‘amém), que significa digno de confiança, ter fé, estar firme, certo, certamente, verdadeiro, assim seja. O ato de dizer “amém” a uma declaração significa que eu a considero verdadeira, e por isso confiável.2. O USO DO "AMÉM" NAS ESCRITURAS

2.1. No Antigo Testamento

Nas páginas do Antigo Testamento, “Amém” pode ser encon­trado especialmente nas seguintes formas:

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1) Para confirmar uma maldição: Nm 5.22; Dt 27.15-26; Ne 5.13; Jr 11.3-5.

2) Para expressar o assentimento e boa disposição para com o propósito de Deus: lRs 1.36; Jr 11.5; 28.6.1203

3) Como expressão de concordância com uma profecia ou do- xologia: lCr 16.36; Ne 8.6; SI 41.13; 72.19; 89.52; 106.48.

2.2. No Novo Testamento

2.2.1. O Uso Feito por Jesus

Das 150 vezes que “amém” ocorre, aproximadamente, no Novo Testamento, cerca de 100 vezes a temos nos Evangelhos.

O “amém” usado por Jesus - geralmente no início de suas de­clarações - confirmava previamente as palavras que ele pronuncia­ria (ver: Mt 5.18; 6.2, 5, 16; 8.10; 10.23; 19.28; Jo 3.3, 5, 11 etc.).

A forma utilizada por Jesus não tem paralelo nem nas Escritu­ras nem na literatura rabínica. Jesus com esta prática indicava que suas palavras não precisam de posterior confirmação ou autorida­de; elas expressam sua majestade e autoridade.

Além de Jesus Cristo ser a fonte autoritativa de sua palavra, nele todas as promessas de Deus têm sua garantia e cumprimento (2Co 1.20). Ele é fiel e suas promessas são sempre verdadeiras, independentemente de testemunhos e agentes humanos (Ap 3.14).

2.2.2. O Uso Litúrgico

Na Sinagoga, o “amém” desenvolveu-se liturgicamente, sendo uma afirmação de fé na mensagem da Escritura que era lida, e como uma resposta às doxologias e à bênção araônica. Esta prática, ao

1203 Neste texto, que pode parecer ironia de Jeremias (cf. Jack B. Scott, 1BN ln: R. Laird Harris, et. al., eds. D icionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, São Paulo, Vida N ova, 1998, p. 86; R.K. Harrison, Jerem ias e Lam entações: introdução e com entário, São Paulo, Vida Nova/M undo Cristão, 1980 (Jr 28.6), p. 104), parece-m e que a expressão de Jeremias revela seu desejo de que fosse assim, com o Hananias dizia - a destruição de Babilônia ainda que não acreditasse que fosse ocorrer daquele modo. [Cf. C.F. Keil & F. D elitzsch, Com m entary on the O ld Testament, Grand Rapids, M ichigan, Eerdmans (s.d.), Vol. 8/1 (Jr 28.6), p. 406.]

462 EU CREIO...

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XXI-AMÉM 463

que parece, tornou-se comum na adoração da Igreja primitiva (cf. ICo 14.6).

A expressão foi também aplicada no final das doxologias que atribuíam honra e glória a Deus: Pai, Filho e Espírito Santo (cf. Rm 1.25; 9.5; 11.36; 16.27; G1 1.5; E f 3.21; Fp 4.20; lTm 1.17; 6.16; 2Tm 4.18; Hb 13.21; IPe 4.11; 5.11; Jd 25).

“Amém” confirma uma declaração feita por outra pessoa ou por nós mesmos, num desejo sincero de ratificar o que afirmamos. Pro­nunciar “amém” numa oração feita por nosso irmão denota a compre­ensão da oração (ICo 14.16), e ao mesmo tempo nossa subscrição da mesma: dizer amém, neste caso, significa tomar nossa a oração feita.3. O SIGNIFICADO DO "AMÉM" NO CREDO APOSTÓLICO

Depois de estudarmos o significado do “amém”, bem como seu uso bíblico e litúrgico, analisemos de forma recapitulativa algumas das implicações do ato de dizer “amém” no final do Credo. A afir­mação sincera do “amém” significa crer que:

1) A verdadeira fé é aquela que ouve a Palavra de Deus e des­cansa perseverantemente em suas promessas.

2) A fé salvadora é a boa obra do Espírito Santo em nós, basean­do-se nos feitos do Pai e do Filho: a fé é resultado do ministério da Trindade em favor de seu povo. A fé, portanto, é fruto da graça de Deus (Ef 2.8; At 3.16; 18.27).

3) Deus é o Pai do povo escolhido e formado por ele mesmo (SI 100.3; Is 64.8; IPe 2.9-10). Sua paternidade envolve seu pro vidente cuidado para conosco (Rm 8.31-39). Nossa filiação implica em nossa responsabilidade de viver de modo digno de nosso Senhor e Pai.

4) Deus é totalmente livre para agir como quer; por isso, ele age sempre em harmonia com seu Ser: o poder de Deus se manifesta sempre em amor, bondade, justiça, verdade e santidade. A consci­ência de seu poder deve nos conduzir a uma atitude de reverente temor (SI 110.10; At 9.31; Fp 2.12; Hb 12.28).

5) Se queremos conhecer a Deus, devemos deixar que ele mesmo nos fale através de sua Palavra (Os 6.3; Jo 5.39; Rm 10.17; 2Pe 3.18).

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464 EU CREIO.

6) Deus é o único que pode criar do nada todas as coisas, e também nos recriar em Cristo, restaurando-nos à sua Imagem (Gn1.1; E f 2.10; Hb 11.3).

7) A segurança de nossa salvação não está amparada em nossas frágeis obras, mas nos feitos salvadores da Trindade. A certeza de que fomos salvos, longe de nos conduzir a um estado de indolência espiritual, deve nos levar a proclamar a grandiosa salvação ofereci­da por Deus (Mc 16.15; Rm 10.13-15; ICo 9.16).

8) Jesus Cristo veio ao mundo para salvar seu povo, tendo cons­ciência de que lhe aguardava: a rejeição, o sofrimento e a morte. Entretanto, ele veio para nos dar vida (Jo 10.10). É nossa responsa­bilidade não menosprezar a salvação que ele nos oferece (Hb 2.1-4), vivendo de modo digno dele (Cl 1.10; lTs 2.12).

9) Todos aqueles que, pelo Espírito, crêem em Jesus Cristo fo­ram ungidos por Deus com seu Santo Espírito de forma permanente e irrevogável (2Co 1.21-22; 5.5; E f 1.14; 4.30).

10) Olhamos para a História de forma fragmentada; Deus a diri­ge dentro da perspectiva da eternidade. Assim, alguns fatos que nos parecem muitas vezes acidentais, tendo diversas explicações histó­ricas, são direcionados por Deus para a realização de seu plano re­dentor.

11) Todos os nossos conceitos devem ser verificados à luz da Palavra. Um crente maduro e sincero não deve ter medo de avaliar sua fé. Lembremo-nos mais uma vez de que foram os conceitos judeus, formados dentro de circunstâncias históricas - contudo dis­tantes da plenitude da revelação do Antigo Testamento - , que os impediu de ver em Jesus, o Cristo (leia Jo 5.39-40).

12) Jesus Cristo é perfeitamente Deus e perfeitamente homem; qualquer tentativa de valorizar uma de suas naturezas em detrimen­to da outra implica em perdermos de vista a plenitude da revelação bíblica.

13) Jesus Cristo é homem que pode entender nossas necessidades e é Deus que pode nos socorrer eficazmente (Hb 2.17,18; 1 Co 10.13).

14) Nossa salvação só poderia vir de Deus. Deus cumpriu sua

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XXI-AMÉM 465

promessa (Gn 3.15; G1 4.4-5), providenciando de forma definitiva nossa salvação em Cristo Jesus.

15) Só conseguimos entender a obra de Cristo quando aceita­mos pela fé o glorioso mistério de suas duas naturezas.

16) A natureza divina de Cristo não foi humanizada, nem a na­tureza humana foi divinizada. Jesus Cristo continuou sendo homem com todas as suas propriedades não pecaminosas, e continuou sen­do Deus com todo o seu poder; porém, sem fazer uso necessário do mesmo (Mt 26.53-54).

17) A encarnação tem sua origem na bondade de Deus; entre­tanto, ela se tornou necessária devido ao nosso pecado. Todo o so­frimento de Jesus Cristo tem como causa motora seu amor eterno pelos pecadores eleitos (Jo 3.16).

18) A encarnação jamais será desfeita: Jesus Cristo permanece para sempre verdadeiro homem e verdadeiro Deus.

19) A filiação de Jesus Cristo é uma união única e especial (Mt11.27; Jo 20.17). Por isso, ele não profere a oração do “Pai N osso” em conjunto com seus discípulos; ele os ensina: “Vós orareis as­sim: Pai nosso...” (Mt 6.9). Nós, por outro lado, nos tornamos fi­lhos de Deus pela fé em Cristo (Jo 1.12; G1 3.26); e ele não se envergonha de ter-nos como irmãos (Hb 2.11; Rm 8.17, 29).

20) A vontade de Jesus Cristo deve ter a primazia em nossa vida, inclusive sobre a nossa (Mt 6.33; 26.39).

21) A vontade de Deus sempre se concretizará a despeito das tentativas satânicas e humanas de frustrá-la.

22) Podemos não entender circunstancialmente o propósito de Deus; todavia, o que nos deve guiar é a certeza de sua Soberania Pastoral sobre nós (Hb 13.20; IPe 5.4).

23) A afirmação do Senhorio de Cristo significa reconhecê-lo presente e decisivo em todas as nossas atitudes e projetos.

24) Todo o ministério terreno de Cristo estava comprometido com a glória de Deus e a salvação de seu povo.

25) Não devemos desanimar mesmo que não consigamos ver de

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466 EU CREIO.

imediato os frutos do nosso trabalho; baste-nos a certeza de que no Senhor nosso trabalho nunca será em vão (ICo 15.58).

26) Uma das formas de cultuar a Deus é obedecendo a seus pre­ceitos. Isto implica no fato de que em todas as áreas de nossa vida podemos e devemos cultuar a Deus, agindo conforme sua vontade.

27) O pastorado de Cristo nos enche de conforto porque ele é o nosso Pastor e também o Pastor do nosso pastor (Hb 13.20; IPe 5.4).

28) Através de Cristo aprendemos que a vitória sobre o sofri­mento está em uma plena submissão à vontade de Deus.

29) O estudo a respeito dos sofrimentos e morte do Messias não deve ser apenas para motivar nossa compaixão; antes, pelo contrá­rio, deve conduzir-nos a ver de forma mais real e concreta o amor de Deus, o qual carece de uma resposta de seu povo em obediência, fé e amor.

30) Jesus morreu por nós não porque tivéssemos grande valor a seus olhos, mas porque ele nos amou.

3 1 ) 0 Cristianismo é uma religião de ressurreição; a ressurrei­ção é o ponto de convergência de nossa fé; negar a veracidade his­tórica da ressurreição de Cristo significa tirar toda a razão de ser histórica e transcendente do Cristianismo. Sem a ressurreição de Cristo é vã nossa fé, vã nossa pregação, vã nossa esperança, vã nos­sa vida... A ressurreição de Cristo dá sentido a nossa vida e morte, fé e esperança (IC o 15.12-16, 32).

32) À Igreja compete viver como despenseira dos mistérios de Deus; sendo ela mesma o testemunho da presença de Cristo no mundo. A Igreja somos nós; portanto a responsabilidade da Igreja é a nossa.

33) A intercessão de Cristo em nosso favor é eterna e eficaz; todavia os que são de Cristo não se servem deste fato para dar oca­sião ao pecado (lJo 2.1).

34) A certeza da vinda de Cristo nos enche de alegria cristã, gerando uma postura de vida inteiramente de acordo com os princí­pios de nosso Senhor.

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XXI-AMÉM 467

35) A história caminha de forma irreversível para o Dia do Juí­zo, quando Cristo, o Senhor da História, julgará a todos os homens.

36) O Juízo Final revelará de forma plena a Cristo como o Rei Eterno. Jesus Cristo julgará conforme sua Palavra registrada nas Escrituras. Nós que temos a Escritura completa, dispomos de todo o desígnio revelado de Deus. Este privilégio nos torna mais respon­sáveis diante de Deus (Mt 11.20-24).

37) Diante do Tribunal de Cristo seria impossível ao homem ser salvo; todavia, nós seremos pelos méritos redentores de Cristo.

38) Deus nos julga hoje, disciplinando-nos para que, corrigidos agora, não sejamos condenados com o mundo (ICo 11.31-32; Hb 12.4-13; Ap 3.19).

39) O Espírito é um Ser Pessoal, que age livremente em harmo­nia com o Pai e com o Filho. O Pai, o Filho e o Espírito Santo são iguais em poder, honra e glória.

40) A Trindade é gloriosa. Quando cultuamos a Deus sincera­mente, dentro dos preceitos bíblicos, estamos glorificando a Deus: Pai, Filho e Espírito Santo.

41) Todos os crentes em Cristo têm em si o Espírito Santo, que é o selo de nossa salvação. Nosso corpo é templo do Espírito (ICo 6.19; Ef 2.21-22). Desonrar nosso corpo é o mesmo que desonrar o templo de Deus.

42) A catolicidade da Igreja nos traz a certeza de que existe apenas uma única Igreja de Cristo. Cristo não está dividido: ele tem somente um Corpo; por isso mesmo só há uma Igreja de Cristo.

43) A Igreja é católica porque é constituída de todos aqueles que creram, os fiéis ao Senhor de todas as eras, quer já tenham morrido, quer estejam entre nós, os vivos.

44) A Igreja é santa e pecadora; santa, por seu chamamento, regeneração, justificação e progressiva santificação. Pecadora, pelo poder do pecado que ainda exerce influência sobre seus membros. A santidade da Igreja é uma chamada à responsabilidade de sermos santos em Cristo no poder do Espírito que habita em nós. Amém!

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ADENDO:

PRINCIPAIS CATECISMOS E CONFISSÕES REFORMADOS

----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

SUBSÍDIOS H ISTÓRICO S

1. CON FISSÃO GAULESA (1559)

A Confissão Gaulesa, que não é muito conhecida e difundida em nosso meio, exerceu grande influência doutrinária sobre outras Confissões Reformadas. Ela foi escrita por Calvino (1509-1564) e

seu discípulo Antoine de la Roche Chandieu (De Chandieu) (1534- 1591),1204 provavelmente com a ajuda de Theodore Beza (1519-1605) e Pierre Viret (1511-1571). Inicialmente tinha 35 capítulos. No Sí­nodo Geral de Paris (26-28/05/1559), que congregou representan­tes de mais de 60 igrejas, das mais de 100 que existiam na França - reunido secretamente tendo como moderador Fraçois de Morei, esta Confissão foi revista e ampliada em mais cinco capítulos,1205 tendo um prefácio dedicado ao rei Francisco II (1560), e posterior­mente, foi também apresentada por Beza a Carlos IX (1561).1206 Cal­

1204 D e Chandieu estudou em Toulouse e Genebra, sendo pastor da Igreja Reformada em Paris (1556-1562). D epois do M assacre de São Bartolomeu (23 -24 /08 /1572), e le fugiu para Suiça, indo residir em Genebra, Lausanne e Aubonne.

nos c f . p, Schaff, The Creeds o f Christendom , Vol. 1, p. 494; III, p. 356; E.E. Cairns, O Cristianism o A través dos Séculos, p. 257; W. Walker, H istória da Igreja Cristã, II, p. III; K.S. Latourette, H istória dei Cristianism o, II, p. 117; Pierre Courthial, A Idade de Ouro do Calvinism o na França; (1533-1633); In: W. Stanford Reid, ed. Calvino e sua Influência no M undo O cidental, São Paulo, Casa Editora Presbiteriana, 1990, p. 93.

1206 Cf. P. Schaff, The Creeds o f Christendom , Vol.I, pp. 494-495; The Creeds o f Chris-

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470 EU CREIO.

cula-se que, na época, a França já possuía 400 mil protestantes,1207 ou um sexto1208 ou um quarto da população,1209 existindo em fins de 1561 mais de 670 igrejas calvinistas erigidas em território francês.1210

Em 1571, tendo como moderador T. Beza (1519-1605), reali­zou-se o Sétimo Sínodo Nacional de La Rochelle. Na ocasião esta­vam presentes: a Rainha de Navarra, seu filho Henrique IV (1553- 1610) e o Almirante Coligny (1519-1572), que viria a ser morto durante “O massacre de São Bartolomeu”, 23-24/08/1572.1211 Neste Sínodo, a Confissão foi revisada, reafirmada e solenemente sancio­nada por Henrique IV, passando, desde então, a ser também chama­da “Confissão de Rochelle”.1212 A Confissão Gaulesa influenciou profundamente a Confissão Belga (1561) e a Confissão dos Valden- ses (1655).2. CON FISSÃO ESCO CESA (1560)

Esta Confissão foi escrita sob a liderança de John Knox (1505- 1572), em quatro dias, por seis homens qué tinham como prenome “John”: Spottiswoode, Millock, Rowe, Douglas, Winram e Knox. A Confissão Escocesa foi adotada pelo Parlamento Escocês em 17

tendom , Vol 111, p. 356; N.V. Hope, Confissão Gaulesa; In: Walter A. E lw ell, ed. E nciclopé­dia H istórico-Teológica da Igreja Crista, I, p. 332.

1207 Cf. W. Walker, H istória da Igreja Cristã, 11, p. 111.1208Cf. E.E. Cairns, O Cristianism o A través dos Séculos, p. 257.1209 Cf. dados de Coligny, citados por Jean Delum eau, A C ivilização do R enascim ento ,

Lisboa, Estampa, 1984, Vol. 1, p. 1291210 Cf. Jean Delum eau, O N ascim ento e A firm ação da Reform a, São Paulo, Pioneira,

1989, pp. 149-150. Delum eau cita estatística de Coligny, constando a França, em 1562, de mais de 21 50 “comunidades” reformadas (Jean Delum eau, A C ivilização do Renascim ento, Vol. 1, p. 129).

1211 Vd. W .S. Reid, Coligny; In; J.D. D ouglas & Philip W. Comfort, eds. W ho’s Who in Christian H istory, Tyndale House Publishers, Inc. W heaton, Illinois, 1992, p. 170; G. Bro- m iley, Beza: J.D. D ouglas & Philip W. Comfort, eds. Who's Who in Christian H istory , p. 83; P. Schaff, The Creeds o f Christendom , Vol. 1, p. 495; Pierre Courthial, A Idade de Ouro do C alvinism o na França; (1533-1633); ln: W. Stanford Reid, ed. C alvino e sua Influência no M undo O cidental, p. 97.

12,2 Vd. N.V. Hope, Confissão Gaulesa: In: Walter A. E lw ell, ed. E nciclopédia H istórico- Teológica da Igreja C ristã , I, p. 332; P. Schaff, The C reeds o f Christendom , Vol. I ll, p. 356; Brian G. Armstrong, French Confession: In: Donald K. M cKim, ed. E ncyclopedia o f the Reform ed Faith, p. 146.

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de agosto de 1560, sendo ratificada em 1567, quando o Parlamento a adotou por decreto. Em 1572, todos os Ministros tiveram de subs­crevê-la.1213 Ela permaneceu como Confissão Oficial da Igreja Re­formada Escocesa até 1647, quando então a Igreja adotou a Confis­são de Westminster.nH3. CON FISSÃO BELGA (1561)

A Confissão Belga, que se inspirou na Confissão Gaulesa (1559), foi escrita em francês em 1561 por Guido (ou Guy, Wido) de Brès (1523-1567), com a ajuda de M. Modetus, Adrien de Saravia (1513- 1613) - um dos primeiros protestantes a advogar a idéia de missões estrangeiras1215 - e G. Wingen, sendo revisada por Francis Junius (1545-1602) e publicada sua tradução em holandês em 1562. “O pastor Guy de Brès escreveu uma carta de defesa aos magistrados. Lançou-a juntamente com um exemplar de sua recente ‘Confession de Foy’ por sobre o muro do castelo de Doornick, para assim ser levado ao governador e ao rei. Se este jamais leu a confissão de fé não se sabe, mas ela chegou a ocupar um lugar de suma importân­cia na Igreja Reformada holandesa.”1216

Ela, juntamente com o Catecismo de Heidelberg (1563), foi apro­vada no Sínodo de Antuérpia (1566), realizado secretamente,1217 no Sínodo de Ambères (após revisão) (1566),1218em Wessel (1568) e adotada pelo Sínodo Reformado de Emden (1571), pelo Sínodo Naci­onal de Dort (1574), Middelburg (1581), e também pelo grande Síno­do de Dort (29/4/1619), o qual a sujeitou a uma minuciosa revisão,

Adendo: Principais Catecismos e Confissões Reformados 471

1213 Cf. P. Schaff, The Creeds o f Christendom , Vol. I, p. 682.1214 Vejam-se: R. Kyle, Confissão Escocesa: In: Walter A. E lw ell, ed. E nciclopédia His-

tórico-T eológica da Igreja Cristã, I, pp. 300-301; K. S. Latourette, H istória de l C ristian is­mo, I, p. 121; P. Schaff, The Creeds o f Christendom , Vol.I, pp. 681 -682; i l l , 437; W. Walker, H istória da Igreja C ristã , II, p. 98ss.

1215 Cf. I. Breward, Saravia: In: J.D. D ouglas, ed. ger. The N ew International D ictionary o f the Christian Church, 3“ ed. Grand Rapids, M ichigan, 1979, p. 878.

1216 Frans Leonard Schalkwijk, Igreja e Estado no B rasil H olandês (1630-1654), Recife, Pe. FU N D ARTE (C oleção Pernambucana, 2a Fase, Vol. 25), 1986, p. 27. Quanto à parte do teor da carta, Vd. Jorge P. Fisher, H istoria de la R eform a , Barcelona, CL1E (1984), p. 291.

1217 Q- prans Leonard Schalkwijk, Igreja e Estado no B rasil H olandês (1630-1654), p. 27.1218 Cf. J.P. Fisher, H istoria de la Reform a, p. 291.

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comparando a tradução holandesa com o texto francês e latino. Ela foi traduzida para o holandês (1562) e para o inglês (1768).1219

A Confissão Belga e o Catecismo de Heidelberg são os símbo­los de fé das Igrejas Reformadas na Holanda e Bélgica, sendo tam­bém o padrão doutrinário da Igreja Reformada na América1220 e na Igreja Evangélica Reformada Holandesa no Brasil.4. XXXIX ARTIGOS DA IGREJA DA INGLATERRA (1563)

Em 1552, o Arcebispo de Cantebury, T. Cranmer (1489-1556), elaborou, juntamente com outros clérigos, Quarenta e Dois Artigos da Religião, que foram, após minuciosa revisão feita no mesmo ano, publicados em 1553 sob a autoridade do Rei da Inglaterra, Eduardo VI. Mais tarde, estes Artigos foram revistos e reduzidos a 39 pelo Arcebispo de Cantebury, Matthew Parker (1504-1575) e outros bispos. Esta última revisão e redução foi ratificada pelas duas Casas de Convocação, sendo os Trinta e Nove Artigos publicados por autoridade do Rei em 1563.

Em 1571 tornou-se obrigatória a subscrição destes Artigos por todos os Ministros ingleses.1221

Os Trinta e Nove Artigos e o Livro de Oração Comum (1549)1222 são os Símbolos de Fé da Igreja Anglicana e, com algumas altera­ções, da Igreja Episcopal Protestante dos Estados Unidos.12235. CATECISMO DE HEIDELBERG (1563)1224

Esta Confissão foi escrita por dois jovens teólogos: Caspar Ole-12,9 Cf. M. Eugene Osterhaven, B elgic Confession: Donald K. M cKim , ed. Encyclopedia

o f the Reform ed Faith, p. 31.' 1220Vd. P. Schaff, The Creeds o f Christendom , Vol. I, pp. 502-508; 111, p. 383; J. Van

Engen, Confissão Belga: In: Walter A. E lw ell, ed. E nciclopédia H istórico-Teológica da Igreja Cristã, I, p. 330.

1221 Cf. K.S. Latourette, H istória de i Cristianism o, II, p. 167.1222 Quanto à origem e alterações do Livro de O ração Comum, vd. Hermisten M.P. Costa,

N ossa H erança Litúrgica Reform ada, São Paulo, 1990, pp. 11-12.1223D avid S. Schaff, N ossa Crença e a d e N ossos Pais, 2 “ ed. São Paulo, Imprensa M eto­

dista, 1964, p. 31.1224 Vd. o excelente artigo de Alderi Mattos, O Catecism o de Heidelberg: Sua História e

Influência: In: Fides Reform ata, \ i \ (1996) 25-33.

472 EU CREIO...

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vianus (1536-c. 1587) - que recebeu influência de Melanchton (1497-1560) e de Peter Martyr Vermigli (1560-1562) professor de teologia na Universidade de Heidelberg, e Zacharias Ursinus (1534-1583), que fora aluno de Melanchton em Wittenberg (1550- 1557), bem com o amigo de Calvino (1509-1564). Acusado de Criptocalvinismo1225 (calvinista disfarçado), foi para Zurique (1560), onde dirigiu o Collegium Sapientiae (1561). Posteriormente, exer­ceu o professorado de teologia em Heidelberg (1562-1568). Schaff (1819-1893) diz que “Olevianus foi inferior a Ursinus em erudição, porém foi superior no púlpito e no governo da igreja”.1226

O Catecismo ficou pronto em janeiro de 1563, existindo um exemplar desta primeira edição na Biblioteca Nacional de Viena, datado de 19/01/1563. Neste mesmo ano foram publicadas mais três edições, sendo a quarta considerada a mais completa e definitiva de todas. No prefácio da primeira edição, Frederico III, o “Piedoso” (1515-1576),1227 estabeleceu três propósitos para este Catecismo, a saber: Instrução catequética; um guia para pregação e uma forma confessional de unidade. Frederico III foi o primeiro príncipe alemão a adotar um Credo Reformado, como distinto do Luterano.1228

O Catecismo de Heidelberg foi adotado por um Sínodo de Hei­delberg (19/01/1563), sendo aceito também na Escócia, servindo de modo especial para o ensino das crianças [até à época da adoção dos Catecismos de Westminster (28/07/1648)]. O Sínodo de Dort também o aprovou. Heidelberg é o símbolo das Igrejas Reformadas da Alemanha, da Holanda, dos Estados Unidos1229 e do Brasil.

Adendo: Principais Catecismos e Confissões Reformados 473

1225 Quanto à expressão, ver D.K. M cKim, Criptocalvinismo: In: Walter A. E lw ell, ed. Enciclopédia H istórico-Teológica da Igreja C ristã , Vol. I, pp. 370-371.

1226 P. Schaff, The C reeds o f Christendom , Vol. 1, p. 534. J.T. M cN eill d iz a m esm a coisa com outras palavras, vd. J.T. M cN eill, The H istory an d C h aracter o f Calvinism , p. 270: “Ele (O levianus) era dois anos mais jovem que Ursinus, m ais eloqüente e m enos erudito”.

1227 Sobre seu testemunho evangélico, vd. a “Introduction" do El C atecism o de H eidel­berg, 3a ed. R ijswijk (Z .H .), Países Bajos, Fundacion Editorial de Literatura Reformada, 1982, pp. 11-12.

1228 Em outras palavras, ele foi o primeiro príncipe alemão a abraçar a fé reformada (vd. Shirley C. Guthrie, Heidelberg Catechism: Donald K. M cKim, ed. E ncyclopedia o f the Reform ed Faith, p. 167.

1229 Vd. R.V. Schnucker, Catecism o de Heidelberg: In: Walter A. E lw ell, ed. E n ciclopé­

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474 EU CREIO.

Este Catecismo tem como dois de seus pontos fortes o seu as­pecto não polêm ico - com exceção da pergunta 80 e o tom pasto­ral com o qual ele foi escrito, usando muitas vezes a primeira pes­soa do singular, sendo as suas respostas uma declaração pessoal de fé, tendo as verdades teológicas uma aplicação bem direta às neces­sidades cotidianas do povo de Deus.

Ele foi traduzido para todas as línguas da Europa e muitas A si­áticas, sendo amplamente usado. Devido a esta amplitude de tradu­ções, Schaff (1819-1893) dizqu& Heidelberg “tem o dompentecos- tal de línguas em um raro grau.”1230d ia H istórico-T eológica da Igreja C ristã , 1, pp. 247-248; K.S. Latourette, H istória dei Cristianism o, II, p. 102; Philip Schaff, The Creeds o f Christendom , Vol. I, pp. 529-538; W. Walker, H istória da Igreja Cristã, II, p. 122; Clair D avis, A Igreja Reformada da A lem a­nha: Calvinistas, uma influente minoria: In: W. Stanford Reid, ed. Calvino e sua Influência no M undo O cidental, p. 168; Manuel Gutiérrez-Marin, Prólogo ao Catecism o de Heidel- berg: ln: C atecism o de la Iglesia Reform ada, Buenos Aires, La Aurora, 1962, pp. 127-142; Eduard Günder, Heidelberg Catechism: ln: Philip Schaff, ed. R eligious E n cydopaed ia : or D iction ary o f B iblical, H istorical, D octrinal, an d P ractica l Theology, II, pp. 959-960; Fred H. Klooster, A Short H istory o f the H eidelberg Catechism p re p a re d fo r the new Psla- terH ym n a l H andbook (2/20 /87), texto datilografado, p. 8.

i23o p Schaff, The Creeds o f Christendom , Vol. 1, p. 536. Há aqui um dado importante; com o sabem os, os holandeses estiveram no Brasil no período de 1630 a 1654; ainda que não fosse o âmbito religioso seu principal trabalho, não deixaram de atuar também nesta área. Em 1656 Antônio Paraupaba pede socorro aos Estados Gerais em favor da nação indígena do Brasil que havia abraçado a religião reformada; a certa altura diz: “Ajudem agora! A luz da Palavra de D eus será apagada por falta de pastores” [A pud Frans Leonard Schalkwijk, Igreja e Estado no B rasil H olandês: 1630-1654, p. 312]. O trabalho dos ho­landeses na publicação de um Catecism o trilingtie (holandês, português e tupi), intitulado: “ Uma instrução sim ples e breve da P alavra de D eus nas línguas brasiliana, holandesa e portu gu esa , confeccionada e editada p o r ordem e em nome da Convenção E clesia l Presbi- teria l no Brasil, com form ulários p a ra batism o e santa ceia acrescentados” - , não deixa dc ser extremamente interessante considerando suas vicissitudes, já que o Presbitério de Am es- terdã não o aprovara, não pelo que dissera, mas pelo que omitira, além de uma possível suspeita, certamente infundada, de algum viés arminiano. Na realidade, seu autor, o Rev. D avid à Doreslaer, com a ajuda do Rev. Vincentius J. Soler, confessou ter problemas em expressar determinados conceitos teológicos em línguas bárbaras. O que e le desejava era fazer um resumo do C atecism o de H eidelberg (1563) adotado pela Igreja Reformada H o­landesa. A ssim o Catecism o que tinha com o alvo principal os índios evangelizados, foi impresso na Holanda em 1641, chegando em Recife em 1642. Ao que parece e le não teve grande utilidade devido aos debates provocados entre o Sínodo da Holanda e a Companhia das Índias Ocidentais. Schalkwijk conclui: “Provavelmente, os catecism os ficaram empilha­dos em algum lugar, falados demais para serem usados, santos demais para serem queimados” (Frans Leonard Sshalkwijk, Igreja e Estado no B rasil Holandês: 1630-1654, p. 324).

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6. SEGUNDA CON FISSÃO HELVÉTICA (1562-1566)1231

A Segunda Confissão Helvética foi primariamente elaborada em latim, em 1562, pelo amigo, discípulo e sucessor de Zuínglio (1484-1531), Henry Bullinger (1504-1575). Em 1564, quando apeste voltou a atacar em Zurique, Bullinger perdeu a esposa e as três fi­lhas. Ele mesmo ficou doente, mas foi curado. Nesse ínterim, ele fez a revisão da Confissão de 1562 e, como uma espécie de testa­mento espiritual, anexou-a ao seu testamento para ser entregue ao magistrado da cidade, caso ele viesse a falecer. Esta confissão foi publicada,.com algumas alterações - aceitas por Bullinger - , em latim e alemão em 12/03/1566. Ela foi traduzida para vários idio­mas (inclusive o árabe), tendo ampla aceitação em diversos países nos anos seguintes, sendo também adotada na Escócia (1566); na Hungria (1567); na França (1571); na Polônia (1578).1232 Esta Con­fissão “veio a ser o elo de união para as igrejas calvinistas espalha­das por toda a Europa.”12337. CÂN ON ES DE DORT (1618-1619)

O Sínodo de Dort reuniu-se por autoridade dos Estados Gerais dos Países Baixos, em Dordrecht, Holanda, no período de 13/11/ 1618 a 9/5/1619, tendo 154 sessões. O Sínodo foi constituído de 35 pastores, um grupo de presbíteros das igrejas holandesas, cinco ca­tedráticos de teologia dos Países Baixos, dezoito deputados dos Estados Gerais e 27 estrangeiros, de diversos países da Europa, tais como: Inglaterra, Alemanha, França e Suíça.

Dort rejeitou os cinco pontos apresentados pelos arminianos,1234

Adendo: Principais Catecismos e Confissões Reformados 475

1231 L. Berkhof tem razão ao dizer que esta é “a mais completa declaração oficial sobre a posição Reformada acerca da doutrina de Cristo” (L. Berkhof, H istória das D outrinas Cristãs, p. 106).

1232 Vd. P. Schaff, The Creeds o f Christendom , Vol. 1, pp. 390-395; III, p. 233; R.V. Schnucker, C onfissões Helvéticas: ln: Walter A. E lw ell, ed. E nciclopédia H istórico-Teoló- g ica da Igreja Cristã, I, pp. 341-342; K.S. Latourette, H istória d e i Cristianism o, 11, p. 99; Archibald A. Hodge, E sboços de Theologia, p. 110; D. S. Schaff, N ossa Crença e a de N ossos Pais, p. 30.

1233 O G. O liver Jr., Bullinger: In: Walter A. E lw ell, ed. E nciclopédia H istórico-Teológi- ca da Igreja C ristã , I, p. 216.

1234 D iscípulos de James Arminius (1560-1609), antigo aluno de Theodore de Beza (1519-

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476 EU CREIO.

conhecidos como os “Cinco Pontos do Arminianismo”. Seguindo J.I. Packer,1235podemos resumir o sistema arminiano e calvinista, da seguinte forma:

CIN CO PONTOS DO ARM INIANISM O

CIN CO PONTOS DO CALVINISM O

1. 0 homem nunca é de tal modo cor­rompido pelo pecado oue não possa crer salvaticiamente no evangelho, uma vez oue este lhe seja apresentado.

1. 0 homem decaído, em seu estado natural, não tem capacidade alguma para crer no evangelho, tal como lhe falta toda a capacidade para dar crédito à lei, a despeito de toda indução exter­na oue sobre ele possa ser exercida.

2. 0 homem nunca é de tal modo con­trolado por Deus Que não possa rejei­tá-lo.

2. A eleição de Deus é uma escolha gratuita, soberana e incondicional de pecadores, como pecadores, para Que venham a ser redimidos por Cristo, para Que venham a receber fé e para Que sejam conduzidos à glória.

3. A eleição divina daQueles oue serão salvos alicerça-se sobre o fato da pre­visão divina de oue eles haverão de crer, por sua própria deliberação.

3. A obra remidora de Cristo teve como sua finalidade e alvo a salvação dos eleitos.

4. A morte de Cristo não garantiu a salvação para ninguém, pois não ga­rantiu o dom da fé para ninguém (e nem mesmo existe tal dom); o oue ela fez foi criar a possibilidade de salva­ção para todo aouele Que crê.

4. A obra do Espírito Santo, ao con­duzir os homens à fé, nunca deixa de atingir seu objetivo.

5. Depende inteiramente dos crentes manterem-se em um estado de graça, conservando sua fé; acjueles oue fa­lham nesse ponto, desviam-se e se perdem.

5. Os crentes são guardados na fé na graça pelo poder inconouistável de Deus, até oue eles cheguem à glória.

1605), sucessor de Calvino em Genebra.1235 J.I. Packer, O "Antigo" Evangelho, São Paulo, F iel, 1986, p. 6.

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Os Cânones de D ort foram aceitos por todas as Igrejas Refor­madas como expressão correta do sistema calvinista.11368. CON FISSÃO E CATECISMOS DE WESTMINSTER (1647-

1648)

A Confissão de Westminster, bem como os Catecismos M aior (1648) e M enor (1647), foram redigidos na Inglaterra, na Abadia de Westminster, conforme convocação do Parlamento Britânico. A Assembléia foi aberta no sábado, 01/07/1643, pregando o Dr. W illi­am Twisse (1575-1646) - que iria ser o moderador da Assembléia até a sua morte em julho de 1646 - , baseando seu sermão no texto de Jo 14.18, “Não vos deixarei órfãos, voltarei para vós”. A A s­sembléia funcionou de 01/07/1643 até 22/02/1649, realizando 1163 sessões regulares, sem contar as inúmeras reuniões de comissões e subcomissões.12370 objetivo primário desta Assembléia era a revi­são dos Trinta e Nove Artigos da Igreja da Inglaterra.'2™ Trabalharam na elaboração da Confissão 121 teólogos e trinta leigos nomeados pelo Parlamento, a saber: 20 da Casa dos Comuns e 10 da Casa dos Lordes (nomeação feita em 12/06/1643); e também 8 representan­tes escoceses, quatro pastores e quatro presbíteros, “os melhores e mais preclaros homens que possuía”1239 - sendo que dois deles nun­ca tomaram assento1240 - , que, mesmo sem direito a voto, exerce­

1236 Sobre Dort, vd. P. Schaff, The Creeds o f Christendom , Vol. I, pp. 508-517; M.E. Osterhaven, Dort, Sínodo de: In: Walter A . E lw ell, ed. Enciclopédia H istórico-Teológica da Igreja C ristã , I, pp. 503-504. Os Cânones de Dort foram traduzidos recentemente (O s Cânones de D ort, São Paulo, CEP, 1995).

m 7Vd. P. Schaff, The Creeds o f Christendom , Vol. I, p. 753; Archibald A. Hodge, Con­fis sã o de Fé Westminster Com entada p o r A.A. H odg e , São Paulo, Editora os Puritanos,1999, p. 44; Guilherme Kerr, A A ssem bléia de Westminster, São Paulo, E.F. Beda - Editor, 1984, p. 18.

1238 Cf. D ouglas F. Kelly, The W estminster Shorter Catechism: In: John L. Carson & David W. Hall, eds. To G lory and Enjoy God: A Com mem oration o f the 3 5 ffl1 A nniversary o f the W estminster Assem bly, Carlisle, Pennsylvania, The Banner o f Truth Trust, 1994, p. 107; Archibald A. Hodge, Confissão de F é W estminster Com entada p o r A.A. H odge , São Paulo, Editora os Puritanos, 1999, p. 43.

I2M Archibald A. H odge, Confissão de F é W estminster Com entada p o r A.A. H odge, São Paulo, Editora os Puritanos, 1999, p. 41.

1240 Cf. G. Kerr, A A ssem bléia de Westminster, p. 12. Os que tomaram assento, foram: M inistros: Alexander Henderson, George G illespie, Samuel Rutherford e Robert Baillie.

Adendo: Principais Catecismos e Confissões Reformados 477

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478 EU CREIO.

ram grande influência. Os principais debates desta Assembléia não foram de ordem teológica, já que praticamente todos eram calvinis- tas, mas, sim, no que se refere ao governo da Igreja. “Embora hou­vesse diversidade quanto à Eclesiologia, havia unidade quanto à Soteriologia”.1241

Neste particular havia quatro partidos representados; os Epis­copais'. James Ussher (1581-1656), Brownrigg, Westfield, Prideaux; Presbiterianos'. T. Cartwright (1535-1603), Walter Travers (c. 1548- 1635) entre outros; Independentes: (Congregacionais) “Os cinco Ir­mãos Dissidentes”, conforme eram chamados,1242 eram: Thomas Goodwin (1594-1665); Philip Nye (1596-1672); Jeremiah Burrou- ghs (1599-1646), William Bridge (1600-1670), Sidrach Simpson; Erastianos: Assim chamados por seguirem o pensamento do médi­co de Heidelberg, Thomas Erasto (1524-1583) - que defendia a supremacia do Estado sobre a Igreja1243- , Thomas Coleman, John Selden (1584-1654), Whitelocke, J. Lightfoot (1602-1675). Estes entendiam que o trabalho do pastor era basicamente o de ensino; o pastor é o mestre. Prevaleceu, no entanto, o sistema Presbiteriano de Governo.

O Breve Catecismo foi elaborado para instruir as crianças; o Catecismo Maior, especialmente para a exposição no púlpito, ain­da que não exclusivamente. Eles substituíram em grande parte os Catecismos e Confissões mais antigos adotados pelas igrejas Re­formadas de fala inglesa. Apesar da teologia dos Catecismos e da Confissão de Westminster ser a mesma, sendo por isso sempre ado­tados os três, parece que os mais usados são o Catecismo Menor e a Confissão.

Estes Credos foram logo aprovados pela Assembléia Geral daP resbíteros: Lord John Maitland e Sir Archibald Johnston (cf. Archibald A. Hodge, C onfis­são de F é W estm inster Com entada p o rA .A . H odge, p. 42).

1241 R. T. Kendail, A M odificação Puritana da Teologia de Calvino: In: W. Stanford Reid, ed. C alvino e sua Influência no M undo O cidental, p. 264.

1242 Cf. Archibald A. Hodge, Confissão de Fé W estm inster C om entada p o rA .A . H odge, p. 42.

1243 Vd. Mark A. N oll, M om entos D ecisivos na H istória do Cristianism o, São Paulo, Cultura Cristã, 2000, p. 197.

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Adendo: Principais Catecismos e Confissões Reformados 479

Igreja da Escócia [Confissão (27/08/1647); Catecismos M aior e Menor (28/07/1648)], sendo este ato homologado pelo Parlamento Escocês em 07/02/1749.1244Eles tiveram e têm uma grande influên­cia no mundo de fala inglesa, máxime entre os Presbiterianos - embora também tenham sido adotados por diversas igrejas batistas e congregacionais.1245 No Brasil, estes Credos são adotados pela Igreja Presbiteriana do Brasil, Presbiteriana Independente e Presbi­teriana Conservadora.

1244 Cf. P. Schaff, The Creeds o f Christendom , Vol. 1, pp. 759 e 784.i:4-’ Vd. P. Schaff, The Creeds o f Christendom , Vol. 1, p. 727ss.; D.F. Wright, Catecismos:

In: Walter A. Elwell, ed. Enciclopédia H istórico-Teolàgica da Igreja Cristã , I, pp. 251 - 252: J.M. Frame, Confissão de Fé de Westminster: In: Walter A. E lw ell, ed. E nciclopédia H istórico-Teolàgica da Igreja Cristã , 1, pp. 331-332; J.M. Frame, Catecism os de W est­minster: In: Walter A. E lw ell, ed. Enciclopédia H istórico-Teolàgica da Igreja C ristã , I, p. 252; G. Kerr, A A ssem bléia de Westminster, p. 31.; A .A . H odge, E sboços de Theologia, 111- 112.

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{continuação . ..)

Esse parece ter sido o sentimento e intuito do I autor deste livro quando assumiu a responsabili-I dade de expressar seu grande apreço pela rica

expressão teológica de outros tempos, a qual tinha por meta nortear bem a igreja no bravio oceano das heresias. Essas heresias fizeram sobressair os gigantes da igreja de nosso Senhor. A verdade que abordaram continua pura e cristalina e continuará para sempre, a despeito da nova hermenêutica. O autor deste livro é um desses gigantes que formam uma infinda e gloriosa galeria de guerreiros que lutam pelo triunfo da igreja que está fundamentada sobre o

í sólido fundamento da verdade eterna. Esta nãopode sofrer os danos de uma hermenêutica pseudo-científica que tenta pôr-se acim a da

própria verdade divina.

\ Edições Parakletos desfrutou da confiança do f autor e amigo na publicação desta obra quel associa profundidade e sim plicidade; menos| teoria e mais praticidade. Tudo fizemos paraI fazer jus a tal confiança, entregando nas mãos deI seus leitores uma obra confiável e m uitíssimo útil| a todos os mestres que ministram a santa e eterna\ verdade bíblica no seio das igrejas locais. Comj segurança, maestria e convicção , o autor, atravéss de Edições Parakletos, coloca nas mãos dosç leitores uma expressão que serve de liame com[' todo o tempo em que o Espírito Santo tem; conduzido a igreja pelos meandros da Providên-f cia , para que ela não perca as verdades dei outrora, como é preciso que ele continue agindo| ainda hoje. Cremos que este livro irá despertar o

amor e gratidão dos filhos de Deus pela história e j: teologia da igreja de nosso Senhor.

A ele seja toda a glória: ontem, hoje e para sem pre.

V a lter C ra c ia n o M artin s Editor

Page 475: Eu Creio no Pai no Filho e no Espírito Santo - Hermisten Maia Pereira

EU CREIOPai,

no Filho e no Espírito Santo

“Todos aoueles Que amam a Palavra de Deus e se deleitam no estudo sério das Escrituras Sagradas, ao compulsarem esta obra, serão fortalecidos e perceberão a magnitude e a profundidade Que subjazem nesta bentida expressão:Eu Creio no Pai, no Filho e no Espírito Santo.”

^ W ^

HERM1STEN MAIA PEREIRA DA COSTA, 46 anos, é casad o e tem dois filhos. É Ministro Presbiteriano, licenciado em Filosofia (PUC, 1982) e Pedagogia (Mackenzie, 1993), com diversas especializações em áreas afins. O bteve o grau de M estre em Ciências da Religião, na área de Teologia e História (UMES, 1999) e está concluindo o D outorado em Ciências da Religião (2002). M em bro da Academia Evangélica de Letras do Brasil. Autor de Teologia do Culto (CEP 1987; esgotado), A Literatura Apocalíptica judaica (CER 1992), Breve Teologia da Evangelização (PES, 1996), A inspiração e ínerrância das Escrituras: Uma Perspectiva Reformada (ECC, 1998), S imonton, um Homem dirigido por Deus (Mackenzie, 1999), A Reforma Protestante: In: O Pensamento de joãoCalvino (Mackenzie, 2000), O Pai Nosso (ECC, 2001). Leciona Teologia S istem ática, Teologia C ontem porânea, Teologia d o Culto e História da Filosofia no Sem inário Presbiteriano Rev. José M anoel da C onceição em São Paulo (desde 1985).

ISBN X 5 -K X 5 X 9 -0 6 -0