Eu Estive Aqui - Gayle Forman

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Eu Estive Aqui – Quando sua melhor amiga, Meg, toma um frasco de veneno sozinha num quarto de motel, Cody fica chocada e arrasada. Ela e Meg compartilhavam tudo… Como podia não ter previsto aquilo, como não percebera nenhum sinal?

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  • DADOS DE COPYRIGHT

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    "Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no mais lutando pordinheiro e poder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a um novo nvel."

  • O ArqueiroGERALDO JORDO PEREIRA (1938-2008) comeou sua carreira aos 17 anos, quando foi trabalhar com seu pai, oclebre editor Jos Olympio, publicando obras marcantes como O menino do dedo verde, de Maurice Druon, e Minha vida,de Charles Chaplin.

    Em 1976, fundou a Editora Salamandra com o propsito de formar uma nova gerao de leitores e acabou criando um doscatlogos infantis mais premiados do Brasil. Em 1992, fugindo de sua linha editorial, lanou Muitas vidas, muitos mestres, deBrian Weiss, livro que deu origem Editora Sextante.

    F de histrias de suspense, Geraldo descobriu O Cdigo Da Vinci antes mesmo de ele ser lanado nos Estados Unidos. Aaposta em fico, que no era o foco da Sextante, foi certeira: o ttulo se transformou em um dos maiores fenmenoseditoriais de todos os tempos.

    Mas no foi s aos livros que se dedicou. Com seu desejo de ajudar o prximo, Geraldo desenvolveu diversos projetos sociaisque se tornaram sua grande paixo.

    Com a misso de publicar histrias empolgantes, tornar os livros cada vez mais acessveis e despertar o amor pela leitura, aEditora Arqueiro uma homenagem a esta figura extraordinria, capaz de enxergar mais alm, mirar nas coisasverdadeiramente importantes e no perder o idealismo e a esperana diante dos desafios e contratempos da vida.

  • Ttulo original: I Was HereCopyright 2015 por Gayle Forman

    Copyright da traduo 2015 por Editora Arqueiro Ltda.

    Fireflies, interpretada por Bishop Allen, utilizada com a permisso de Justin Rice e Christian Rudder, cortesia deSuperhyper/ASCAP

    Firefly, interpretada por Heavens to Betsy, utilizada com a permisso de Corin Tucker, cortesia de Red Self Music/ASCAP

    traduo: Fabiano Morais

    preparo de originais: Gabriel Machado

    reviso: Hermnia Totti e Rafaella Lemos

    progeto grfico e diagramao: Valria Teixeira

    capa: Blacksheep Design

    adaptao de capa: Ana Paula Daudt Brando

    adaptao para ebook: Marcelo Morais

    CIP-BRASIL. CATALOGAO NA PUBLICAOSINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

    F82e Forman, Gayle

    Eu estive aqui [recurso eletrnico] / Gayle Forman [traduo de Fabiano Morais]; So Paulo: Arqueiro,2015.

    recurso digital

    Traduo de: I was hereFormato: ePubRequisitos do sistema: Adobe Digital EditionsModo de acesso: World Wide WebISBN 978-85-8041-424-0 (recurso eletrnico)

    1. Fico americana. 2. Livros eletrnicos. I. Morais, Fabiano. II. Ttulo.

    15-22289 CDD: 813CDU: 821.111(73)-3

    Todos os direitos reservados, no Brasil, porEditora Arqueiro Ltda.

    Rua Funchal, 538 conjuntos 52 e 54 Vila Olmpia04551-060 So Paulo SP

    Tel.: (11) 3868-4492 Fax: (11) 3862-5818E-mail: [email protected]

    www.editoraarqueiro.com.br

  • Para Suzy Gonzales

  • 1Um dia depois de Meg morrer, eu recebi esta mensagem:

    Sinto informar que precisei dar fim minha prpria vida. Estou adiando esta deciso h muito tempo, e ela minhae de mais ningum. Sei que isso lhe causar sofrimento, e lamento que seja assim, mas saiba que eu precisavaacabar com a minha dor. No tem nada a ver com voc, mas tudo a ver comigo. No culpa sua.

    Meg

    Ela enviou o e-mail para os pais e para mim. A polcia de Tacoma tambm o recebeu,junto com outra mensagem que os informava em que motel e em que quarto ela estava, queveneno tinha ingerido e pedia que seu corpo fosse manuseado com cuidado. No travesseiro doquarto, havia outro bilhete instruindo a arrumadeira a chamar a polcia e no tocar no corpo, alm de uma gorjeta de 50 dlares.

    Ela programou o horrio de envio dos e-mails, assim, quando ns os recebssemos, jestaria morta havia bastante tempo.

    claro que eu no sabia de nada. Ento, quando li o e-mail de minha amiga pela primeiravez na biblioteca pblica da nossa cidade, achei que fosse algum tipo de brincadeira. Ou umgolpe. Liguei para Meg. Como ela no atendeu, telefonei para os pais dela.

    Vocs receberam o e-mail de Meg? Que e-mail?

  • 2Primeiro tem as cerimnias em memria de Meg. Depois as viglias. Mais tarde, os crculosde orao. No fcil saber o que fazer em cada um deles. Nas viglias, voc segura velas,mas s vezes tambm faz isso nos crculos de orao. Nas cerimnias, as pessoas conversam,mas o que h para dizer?

    J ruim o bastante que ela tenha morrido. Por escolha prpria. Mas, s por me sujeitar atudo isso, eu teria sido capaz de mat-la.

    Cody, voc est pronta? pergunta Tricia. uma quinta-feira, fim de tarde, e estamos indo para a quinta missa do ms. Desta vez,

    uma viglia luz de velas. Acho.Saio do quarto. Minha me est fechando o zper do traje que comprou de segunda mo

    aps a morte de Meg. Ela o vem usando como traje de luto, mas tenho certeza que, depois quetudo isto passar, ele vai ser promovido a vestido de festa. Ela fica muito bonita com ele.Como no caso de muita gente na cidade, o luto lhe cai bem.

    Por que ainda no est pronta? questiona ela. Todas as minhas roupas boas esto sujas. Que roupas boas? Est bem, todas as minhas roupas vagamente fnebres esto sujas. Como se voc ligasse para isso.Ns nos encaramos, emburradas. Quando eu tinha 8 anos, Tricia anunciou que eu j era

    velha o suficiente para lavar minhas prprias roupas. Eu odeio lavar roupa. Voc j deve terimaginado o resultado.

    No sei por que precisamos ir a outro evento. Porque a cidade precisa digerir o que aconteceu. A cidade precisa mesmo de mais um drama para se distrair.A nossa cidade tem 15.074 habitantes, de acordo com a placa desbotada da autoestrada.

    Quinze mil e setenta e trs, corrigiu Meg quando conseguiu fugir para uma faculdade emTacoma aps receber uma bolsa integral no outono passado. Quinze mil e setenta e doisdepois que voc vier para Seattle e ns formos morar juntas.

    Continua em 15.073 agora, e desconfio que v ficar assim at algum nascer ou morrer. Amaioria das pessoas no sai daqui. Mesmo quando Tammy Henthoff e Matt Parner largaram omarido e a esposa para fugirem juntos a fofoca mais quente por aqui antes de Meg , elesforam morar em um trailer nos arredores da cidade.

    Preciso mesmo ir?

  • No sei por que me dou o trabalho de perguntar. Tricia minha me, mas no tem esse tipode autoridade. Sei que preciso ir e sei por qu. Por Joe e Sue.

    Eles so os pais de Meg. Ou eram. Ainda me confundo com os tempos verbais. Voc deixade ser pai de algum quando a pessoa morre? Quando ela escolhe morrer?

    Joe e Sue esto arrasados, suas olheiras to fundas que no vejo como poderodesaparecer um dia. E por eles que coloco meu vestido menos fedorento e me preparo paracantar. De novo.

    Preciosa graa. Que um dia me irritou.

  • 3J escrevi uns dez elogios fnebres para Meg, imaginando todas as coisas que poderia dizer arespeito dela. Como quando nos conhecemos na primeira semana do jardim de infncia e elafez um desenho de ns duas, com nossos nomes e mais algumas palavras que eu no entendi,pois, ao contrrio de Meg, ainda no sabia ler nem escrever. Est escrito melhoresamigas, explicou ela. E, como todas as coisas que Meg queria ou previa, isso se tornourealidade. Poderia dizer que ainda tenho esse desenho. Que o guardo em uma caixinha demetal que contm todas as minhas coisas mais importantes e que ele est vincado por conta daidade e de tanto ser visto.

    Ou poderia falar que Meg sabia coisas sobre as pessoas que elas prprias talvez nosoubessem. Como, por exemplo, a quantidade exata de espirros que voc d de uma s vez;parece que existe um padro para cada um. O meu era trs. Scottie e Sue, quatro. Joe, dois. Ode Meg era cinco. Ela tambm se lembrava do que voc estava vestindo em cada ocasioespecial, em cada Halloween. Era tipo o arquivo da minha histria. E a criadora dela tambm,j que passei quase todos os meus dias de Halloween com Meg, geralmente vestindo algumafantasia que ela havia criado.

    Ou talvez pudesse falar da obsesso de Meg por canes sobre vaga-lumes. Comeou nonono ano, quando ela comprou um single em vinil de uma banda chamada Heavens to Betsy.Ela me arrastou para o seu quarto e me colocou para ouvir o disco riscado naquela vitrolaantiga que comprara por 1 dlar em um bazar de igreja e consertara sozinha, com a ajuda dealguns vdeos instrutivos do YouTube. And you will never know how it feels to light up thesky. You will never know how it feels to be a firefly. Ns nunca saberemos qual a sensaode iluminar o cu como um vaga-lume... A voz de Corin Tucker era ao mesmo tempo forte evulnervel, de um jeito que parecia quase sobre-humano.

    Depois de descobrir a Heavens to Betsy, Meg tomou para si a misso de encontrar todasas canes boas sobre vaga-lumes. No melhor estilo Meg, em poucas semanas ela j haviareunido uma lista gigantesca. Voc por acaso j viu um vaga-lume?, perguntei.

    Eu sabia que no. Como eu, Meg nunca tinha ido para nenhum lugar a leste das MontanhasRochosas. Ainda tenho tempo, afirmou ela, abrindo os braos, como se quisesse demonstrarquanta vida havia l fora, sua espera.

    Joe e Sue pediram que eu falasse na primeira cerimnia, a maior de todas, que deveria ter

  • sido realizada na igreja catlica que os Garcias frequentavam havia anos. Porm, o padreGrady, embora fosse amigo da famlia, era um homem que seguia as regras. Ele disse ao pai e me de Meg que sua filha havia cometido um pecado mortal, portanto sua alma no seriaaceita no cu e que seu corpo teria que ir para um cemitrio que no fosse catlico.

    A ltima parte era ainda um pouco mais complicada. A polcia demorou um bom tempopara liberar o corpo. Aparentemente, o veneno que ela havia usado era raro. Ningum queconhecesse Meg se surpreendeu com esse dado. Ela nunca usava roupas de marca, sempreescutava bandas das quais ningum tinha ouvido falar. claro que encontrara algum venenoobscuro para ingerir.

    O caixo sobre o qual todos choraram naquela primeira cerimnia estava vazio e nohouve enterro. Entreouvi Xavier, o tio de Meg, dizer namorada que talvez fosse melhor quenunca houvesse. Ningum sabia o que escrever na lpide. Tudo acaba parecendo umacensura, ponderou ele.

    Tentei escrever um elogio fnebre para aquela missa. Juro. Cheguei a pegar o CD decanes sobre vaga-lumes que Meg gravara para me inspirar. A terceira era Fireflies, dosBishop Allen. Acho que nunca tinha prestado ateno na letra, porque, quando a ouvi deverdade, foi como se tivesse recebido um tapa do alm: It says you can still forgive her. Andshe will forgive you back.

    Mas no sei se ainda posso perdo-la.E no sei se ela me perdoou tambm.Falei para Joe e Sue que sentia muito, mas que no podia fazer um elogio fnebre, pois

    no conseguia pensar em nada para dizer.Foi a primeira vez que menti para eles.

    A cerimnia de hoje no Rotary Club, ento no um evento religioso oficial, embora oorador seja uma espcie de reverendo. No sei de onde eles saem, todos esses oradores quenem conheciam Meg direito. Ao final, Sue me convida para outra recepo em sua casa.

    Eu costumava passar tanto tempo na casa de Meg que conseguia adivinhar o humor de Suepelo cheiro que sentia ao atravessar a porta. Manteiga significava que ela estava fazendo bolo,logo estava melanclica e precisava se animar. Um cheiro picante significava que ela estavafeliz, preparando comida mexicana para Joe, embora fizesse mal ao estmago dela. Se fossempipocas, ela estaria na cama, com as luzes apagadas, sem cozinhar nada, e Meg e Scottietinham que se virar sozinhos, portanto haveria um rodzio de tira-gostos de micro-ondas.Nesses dias, enquanto subia para cuidar de Sue, Joe comentava, em tom de brincadeira, quens, crianas, tnhamos sorte de poder comer aquele monte de porcarias. A gente fingia queconcordava, mas, depois do segundo ou terceiro enroladinho de salsicha, normalmente minhavontade era de vomitar.

  • Conheo to bem os Garcias que, quando telefonei para eles naquela manh aps recebero e-mail de Meg, eu sabia que, embora fossem onze da manh de um sbado, Sue ainda estariana cama, mas no dormindo. Ela dizia que nunca conseguiu reaprender a dormir at tardedepois que os filhos pararam de acordar cedo. E Joe j teria feito o caf e aberto o jornalsobre a mesa da cozinha. Scottie estaria vendo desenhos animados. A rotina era uma dasmuitas coisas que eu adorava na casa de Meg. Era to diferente da minha, onde o mais cedoque Tricia costumava acordar era ao meio-dia. Mas em certas ocasies voc poderiaencontr-la preparando caf da manh. Em outras, poderia nem estar em casa.

    No entanto, agora existe outro tipo de rotina na casa dos Garcias, bem menos convidativa.Mesmo assim, quando Sue me convida para ir at l, eu vou, por mais que preferisse recusar oconvite.

    O grupo de carros parado em frente casa menor do que costumava ser nos primeiros dias,quando toda a cidade vinha fazer visitas de condolncias com um pirex nas mos. Era umpouco difcil de aturar todas aquelas travessas de comida acompanhadas de sinto muito pelasua perda, pois, em outras partes da cidade, a fofoca corria solta. No me surpreende.Aquela garota sempre foi muito maluca, eu escutara sussurrarem no supermercado. Meg e eusabamos que algumas pessoas diziam coisas desse tipo a respeito dela em nossa cidade, elaera como uma rosa brotando no deserto; confundia os outros , mas, agora, esses comentriosj no pareciam motivo de orgulho.

    E Meg no era o nico alvo. No bar de Tricia, eu ouvi duas moradoras da cidade soltaremfarpas sobre Sue. Eu saberia se minha filha estivesse pensando em se matar, afirmou a mede Carrie Tarkington, que tinha ido para a cama com metade da escola. Eu estava prestes aperguntar se ela sabia disso, j que era to onisciente. Mas ento sua amiga acrescentou:Sue? Voc s pode estar de brincadeira! Aquela mulher parece que est no mundo da lua; eisso nos melhores dias. E eu fiquei pasma com a crueldade delas. Como vocs se sentiriamse tivessem acabado de perder uma filha, suas vacas?, explodi. Tricia teve que me levar paracasa.

    Depois da cerimnia de hoje, Tricia me deixa na casa dos Garcias, pois precisa trabalhar.Eu entro sem bater. Joe e Sue me abraam forte por um instante a mais do que seriaconfortvel. Sei que minha presena deve servir um pouco de consolo para eles, mas, peloolhar de Sue, d para imaginar as perguntas que lhe passam pela cabea, e sei que todaspodem ser resumidas a uma s: Voc sabia?

    No sei o que seria pior. Se eu tivesse sabido e no contado a eles. Ou a verdade, que aseguinte: embora Meg fosse minha melhor amiga e eu tivesse lhe contado tudo o que haviapara contar a meu respeito, supondo que ela tivesse feito o mesmo, eu no sabia. No fazia amenor ideia.

  • Estou adiando esta deciso h muito tempo, ela escreveu em sua mensagem. H muitotempo? Quanto? Semanas? Meses? Anos? Eu conhecia Meg desde o jardim de infncia.ramos melhores amigas, quase irms. Por quanto tempo ela adiou a deciso sem me contar?E o mais importante: por que ela no me contou?

    Depois de ficarmos sentados por dez minutos em um silncio triste e respeitoso, Scottie, oirmo de 10 anos de Meg, se aproxima de mim com o cachorro deles ou melhor, s deleagora , Samson, em uma coleira.

    Vamos passear? pergunta ele, tanto para mim quanto para Samson.Fao que sim com a cabea e me levanto. Scottie parece ser o nico que ainda guarda

    alguma semelhana com quem era antes, talvez por ser mais jovem embora no seja to novoassim e ele e Meg fossem muito prximos. Quando Sue tinha crises de humor e sumia, e Joetambm desaparecia para cuidar dela, era Meg quem cuidava de Scottie.

    Estamos no fim de abril, mas os pais dele no nos alertam sobre o mau tempo. O ventoest forte e gelado. Andamos at o descampado em que todo mundo deixa os ces fazeremcoc, e Scottie solta Samson. Ele sai correndo, eufrico, feliz em sua ignorncia canina.

    Como voc est, Runtmeyer?Eu me sinto falsa usando o seu velho apelido para implicar com ele, e j sei como Scottie

    est. Mas, sem Meg por perto para fazer o papel de me, e Sue e Joe perdidos em sua prpriador, algum precisa pelo menos perguntar.

    J cheguei sexta fase no Fiend Finder. Posso jogar quanto quiser agora. Essa uma vantagem comento, tapando a boca logo em seguida.Meu humor negro no para ser compartilhado com o mundo. Mas Scottie solta uma

    risada amarga, velha demais para a sua idade. . Sei.Ele para e observa Samson cheirar o traseiro de um collie.No caminho de volta para casa, Samson puxa a coleira porque sabe que depois do passeio

    vem a comida. Sabe o que eu no entendo? pergunta Scottie.Por achar que ainda estvamos falando de videogames, no estou preparada para o que ele

    diz em seguida: Por que ela no me mandou a mensagem tambm? Voc tem e-mail? indago, como se esse tivesse sido o motivo dela.Ele revira os olhos. Tenho 10 anos, no 2. Tenho e-mail desde o terceiro ano. Meg me mandava coisas por e-

    mail o tempo todo. Ah. Bem, ela deve ter preferido poupar voc.

  • Por um instante, os olhos de Scottie me pareceram to fundos quanto os de Sue e Joe. , ela me poupou muito.

    Quando retornamos, os convidados esto indo embora. Flagro Sue jogando um gratinado deatum no lixo. Ela me olha com uma expresso de culpa. Me aproximo para lhe dar um abraode despedida, mas ela me detm.

    Voc pode ficar? pergunta com sua voz suave, to diferente da inquietude da filha.Meg, to tagarela, podia levar qualquer um a fazer qualquer coisa a qualquer momento.

    Claro.Ela gesticula para a sala. Joe est sentado no sof, olhado para o nada; Samson est a seus

    ps, implorando pela to esperada janta. Sob a luz mortia do crepsculo, olho para Joe. Meghavia puxado ao pai: pele morena e traos mexicanos. Ele parece ter envelhecido mil anosdesde o ms passado.

    Cody fala Joe. Uma palavra. E suficiente para me fazer chorar. Oi, Joe. Sue quer conversar com voc; ns dois queremos.Sinto o corao disparar, pois temo que eles enfim me perguntem se eu sabia de alguma

    coisa. Tive que responder algumas perguntas rpidas polcia quando tudo aconteceu, maseram mais sobre como Meg poderia ter arranjado o veneno. Eu no sabia nada sobre isso,apenas que, se Meg quisesse alguma coisa, ela geralmente encontrava uma maneira de obt-la.

    Depois que Meg morreu, pesquisei na internet sobre todos os indcios de um suicdioiminente. Meg no me deu nenhuma de suas coisas preferidas. Ela no falava sobre se matar.Quer dizer, dizia coisas como Se a Sra. Dobson passar mais um teste, vou dar um tiro naminha cabea, mas isso conta?

    Sue senta-se ao lado de Joe no sof pudo. Eles se entreolham por uma frao de segundo,como se isso doesse demais. Ento se viram para mim.

    O perodo da Cascades termina ms que vem.A Cascades a prestigiosa faculdade particular para a qual Meg ganhou bolsa. O plano

    era que ns duas nos mudssemos para Seattle depois de terminarmos o ensino mdio.Falvamos sobre isso desde o oitavo ano. Ns duas na Universidade de Washington, dividindoum quarto de dormitrio durante os primeiros dois anos, e ento morando fora do campus pelorestante do curso. Mas Meg conseguiu uma bolsa integral na Cascades, uma proposta muitomelhor do que a UW tinha a oferecer. Quanto a mim, fui aceita na UW, mas sem nenhum tipode bolsa. Tricia deixou bem claro que no iria me ajudar. Finalmente consegui me livrar dasminhas dvidas. Assim, recusei minha admisso na UW e decidi ficar na cidade. Meu planoera cursar a faculdade comunitria durante dois anos e depois pedir transferncia para Seattle,a fim de ficar perto de Meg.

  • Joe e Sue ficam sentados em silncio. Eu observo Sue cutucar as unhas; as cutculas estoem frangalhos. Enfim, ela levanta a cabea.

    A faculdade tem sido tima; eles se ofereceram para juntar as coisas do quarto dela eenviar tudo para ns, mas no consigo suportar a ideia de pessoas estranhas mexendo nascoisas de Meg.

    Mas e os colegas de repblica dela?Cascades era pequena e quase no tinha alojamentos. Meg mora quer dizer, morava

    fora do campus, em uma casa que dividia com outros alunos. Ao que parece, simplesmente trancaram o quarto dela e o deixaram do jeito que estava.

    O aluguel est pago at o final do perodo, mas agora eles precisam esvazi-lo e trazer tudo... A voz dela falha.

    Para casa conclui Joe.Demoro alguns instantes para entender o que eles querem, o que esto me pedindo. A

    princpio, fico aliviada, porque no preciso confessar que no sabia o que Meg estavaplanejando fazer. Na nica vez na vida em que ela havia precisado de mim, no fui capaz deajud-la. Mas, ento, sinto o peso do que eles esto me pedindo; como um tijolo acertandomeu estmago. Isso no significa que no o farei. Vou fazer. claro que sim.

    Vocs querem que eu arrume as coisas dela?Eles concordam com a cabea. Eu repito o gesto. s o que posso fazer. Depois que terminarem as suas aulas, claro responde Sue.Oficialmente, minhas aulas terminam ms que vem. Extraoficialmente, no dia em que

    recebi o e-mail de Meg. Passei a tirar as piores notas. Ou fui reprovada por faltas. A diferenaentre as duas coisas no importa muito.

    E se voc conseguir uma folga no trabalho completa Joe.Ele fala isso em um tom respeitoso, como se eu tivesse um trabalho importante. Eu fao

    faxina. Como todo mundo na cidade, as pessoas para quem trabalho sabem sobre Meg e foramtodas muito simpticas, me dizendo que poderia me afastar o tempo que eu precisasse. Mas setem algo de que no preciso de horas vagas para pensar em Meg.

    Posso ir a qualquer momento. Amanh mesmo, se quiserem. Ela no tinha muita coisa. Voc pode levar o carro comenta Joe.Joe e Sue tm um carro s, ento eles organizam a rotina como uma expedio da Nasa

    para que Sue possa deixar Joe no trabalho, levar Scottie para a escola, ir para o trabalho edepois pegar todo mundo no final do dia. Nos fins de semana a mesma coisa, pois precisamfazer as compras e tudo o que no d tempo para resolver nos dias teis. Eu no tenho carro.s vezes, muito de vez em quando, Tricia me deixa usar o dela.

    Por que no vou de nibus? Ela no tem tanta coisa. Tinha.Joe e Sue parecem aliviados. Ns vamos pagar a sua passagem. Voc pode mandar qualquer caixa a mais pelo correio

    diz Joe.

  • E no precisa trazer tudo de volta. Sue faz uma pausa. S as coisas mais importantes.Eu aquieso. Eles ficam to agradecidos que eu preciso desviar o olhar. A viagem no

    nada de mais: vai levar s trs dias. Um dia para chegar l, um dia para arrumar as coisas, umdia para voltar. O tipo de coisa que Meg teria se oferecido para fazer sem que precisassempedir.

  • 4s vezes, leio algum artigo esperanoso sobre como Tacoma est to elitizada que chega arivalizar com Seattle. Mas, quando meu nibus chega ao meio do deserto, a impresso quetenho de desespero, como se a cidade estivesse se esforando demais e fracassando. Tipoalgumas das amigas de Tricia no bar: mulheres de 50 anos que usam minissaia, saltoplataforma e maquiagem, mas no esto enganando ningum. Tiazona querendo parecernovinha, como os caras da nossa cidade costumam se referir a elas.

    Quando Meg foi embora, prometi que a visitaria todos os meses, mas acabei vindo s umavez, em outubro passado. Comprei uma passagem para Tacoma e, ao chegar a Seattle, dei decara com Meg minha espera na rodoviria. A ideia dela era passear por Capitol Hill, jantarem um chins baratinho em Chinatown e assistir ao show de uma banda em Belltown, de umpessoal que ela conhecia tudo o que costumvamos falar que iramos fazer quando fssemosmorar juntas ali. Meg estava empolgadssima com o plano; eu no sabia se a inteno dela erame convencer a ir de vez para l ou me oferecer um prmio de consolao.

    De todo modo, foi um fracasso. Na nossa cidade, o tempo estava limpo, mas ali chovia.Outro motivo para no me mudar para Seattle, disse a mim mesma. E nenhum dos lugares quevisitamos os brechs, as lojas de revistas em quadrinhos e os cafs pareceram to legaisquanto eu tinha imaginado. Pelo menos foi o que eu disse a Meg. Desculpe, lamentou-se, noem um tom sarcstico, mas com sinceridade, como se o fato de Seattle ser decepcionante fossesua culpa.

    Mas eu estava mentindo. Seattle era maravilhosa. Mesmo com aquele clima horrvel, euteria adorado morar aqui. Por outro lado, tenho certeza que iria adorar morar em Nova York,no Taiti ou em milhares de outros lugares que no conhecia.

    Acabamos no assistindo ao show, pois falei que estava cansada e preferia no ir. Ento,voltamos para a casa em que ela morava em Tacoma. Eu deveria ter ficado o dia seguintequase inteiro, mas aleguei dor de garganta e peguei um nibus de volta para casa logo cedo.

    Meg me convidou outras vezes, mas eu sempre tinha desculpas: estava muito ocupada ou apassagem de nibus era cara. As duas coisas eram verdadeiras, embora no fossem toda averdade.

    Do centro da cidade, voc tem que pegar dois nibus para chegar ao pequeno e buclicocampus da Cascades na zona porturia. Joe me instruiu a ir at o prdio da reitoria para

  • apanhar alguns documentos e uma chave. Embora Meg morasse fora do campus, auniversidade era responsvel por todos os alojamentos estudantis. Quando explico quem sou,eles percebem imediatamente por que estou aqui. Sei disso por conta dos olhares que recebo.Odeio esse tipo de olhar, que passei a conhecer muito bem: falsa empatia.

    Sentimos muito pela sua perda lamenta a senhora que me atende. Ela gorda e usa otipo de roupa folgada que a faz parecer mais gorda ainda. Temos um grupo de apoio que fazsesses semanais para todos os afetados pela morte de Megan. Se quiser participar, haveruma sesso em breve.

    Megan? Ningum a chamava assim, s os avs dela.A mulher me entrega um folder informativo, uma xerox colorida com uma foto sorridente

    de Meg que nunca vi antes. Est escrito Apoio Vida na parte de cima, com coraes no lugardos pingos dos is.

    Vai ser na segunda tarde. Infelizmente, j no estarei por aqui. Ah, que pena. Ela faz uma pausa. Tem sido uma experincia muito catrtica para a

    comunidade aqui do campus. Esto todos muito chocados.Chocado no bem a palavra. Chocada eu fiquei quando enfim convenci Tricia a me

    contar quem era o meu pai, apenas para descobrir que, at os meus 9 anos, ele morava amenos de 30 quilmetros de ns. O que aconteceu com Meg totalmente diferente; comoacordar uma manh e descobrir que agora voc est morando em Marte.

    Vou passar s esta noite aqui. Ah, que pena repete a mulher.Ela me entrega um molho de chaves, me diz como chegar casa, pede para eu telefonar se

    precisar de qualquer coisa e eu saio dali antes que ela me d um carto de condolncias. Oupior: um abrao.

    Na casa em que Meg morava, bato porta, mas ningum atende, portanto entro direto. Ointerior cheira a cerveja, pizza e maconha. Tambm tem o odor da amnia de uma caixinha deareia suja. Ouo bandas tocando Phish ou Widespread Panic, o tipo de msica hippie ruim quefaria Meg querer se matar. Ento me dou conta do que estou pensando e lembro que ela fezisso mesmo.

    Quem voc?Uma garota alta e extremamente bonita est parada na minha frente. Ela veste uma blusa

    verde estilo tie-dye com um smbolo hippie da paz, e me encara com um sorrisinho esnobe. Cody. Reynolds. Estou aqui por causa de Meg. Para pegar as coisas dela.Ela fica tensa. Como se a meno do nome de Meg tivesse cortado totalmente o seu barato.

    J odeio essa garota. E, quando ela se apresenta como Tree, meu desejo era que Meg estivesseali para podermos trocar aquele olhar imperceptvel que desenvolvemos com o passar dosanos para compartilhar nosso desprezo mtuo. Tree? rvore?

    Voc era uma das colegas de repblica dela? pergunto.

  • Quando chegou ali, Meg me mandava longos e-mails sobre as aulas, os professores, oestgio e, s vezes, enviava em anexo desenhos hilrios de cada um dos colegas de repblica,feitos com lpis de carvo, que ela escaneava para mim. Era o tipo de coisa que normalmenteeu teria adorado, me deliciando com a arrogncia dela, porque era assim que sempre haviasido: Meg e Eu Contra o Mundo. Na nossa cidade, as pessoas nos chamavam de Unha e Carne.Mas, ao ler os e-mails, eu tinha a sensao de que ela estava exagerando de propsito osdefeitos daquelas pessoas para que eu me sentisse melhor, e isso s fazia eu me sentir piorainda. Seja como for, no me lembro de nenhuma Tree.

    Sou amiga de Rich responde Tree, a hippie nojenta.Ahh, Richard Loco, como Meg o chamava. Eu o conheci na ltima vez que estive aqui. Vou fazer o que eu vim fazer. Ento faa retruca Tree.Tanta hostilidade um choque depois de um ms inteiro de pessoas pisando em ovos ao

    meu redor.Espero encontrar, em frente porta de Meg, um daqueles altares que surgiram por toda a

    cidade; sempre que vejo um deles, minha vontade destruir as flores e jogar fora as velas.Mas no isso que encontro. A capa de um disco est colada porta. Feel the Darkness,

    do Poison Idea. A imagem a de um cara com uma arma apontada para a cabea. Essa aideia de homenagem dos colegas de repblica dela?

    Respirando fundo, destranco a porta e giro a maaneta. O lado de dentro tambm no estcomo eu esperava. Meg sempre havia sido bagunceira, seu quarto em casa cheio de pilhasvacilantes de livros e CDs, desenhos, coisas que ela comeava e deixava pela metade: umalmpada que estava tentando reinstalar, um filme em Super-8 que queria editar. Sue disse queos colegas tinham simplesmente trancado a porta e deixado o quarto como estava, mas pareceque algum esteve aqui. A cama est feita. E a maioria das roupas dela j est dobrada. Hcaixas desmontadas debaixo da cama.

    Vou levar no mximo duas horas para fazer o que preciso. Se soubesse, teria pegado ocarro dos Garcias para ir e voltar no mesmo dia.

    Sue e Joe me ofereceram dinheiro para um quarto de hotel, mas no aceitei. Sei como elesvivem apertados e como cada centavo que sobrava ia para a educao de Meg, que, mesmocom uma bolsa integral, ainda tinha vrios outros gastos. E a morte dela foi mais uma despesa.Falei que iria dormir aqui. Mas, agora que estou no quarto dela, no consigo deixar de pensarna primeira e nica noite que passei nele.

    Meg e eu dividamos camas e sacos de dormir desde pequenas, sem nenhum problema.Mas, na noite da minha visita, no consegui pregar os olhos ao lado de Meg, que dormiu comouma pedra. Ela estava roncando um pouco e eu a cutucava, como se o ronco fosse o que meimpedia de dormir. Quando nos levantamos na manh de domingo, algo de ruim tinha seenraizado no meu peito e eu estava louca por uma briga. Porm, a ltima coisa que queriafazer era brigar com Meg. Ela no havia feito nada. Era minha melhor amiga. Ento, fui

  • embora mais cedo. E no foi por causa de nenhuma dor de garganta.Voltei para o primeiro andar. A msica tinha mudado de Phish para algo um pouco mais

    animado. The Black Keys, acho. uma mudana um tanto estranha. Um grupo de pessoas estsentado em um sof de veludilho roxo, dividindo uma pizza e uma embalagem de dozecervejas. Tree est presente, ento passo direto, ignorando todos, bem como o cheiro de pizzaque faz meu estmago roncar, pois no comi nada, exceto um bolinho no nibus.

    L fora est ficando enevoado. Ando um pouco at chegar a uma zona com algumaslanchonetes. Sento em uma delas e peo um caf. Quando a garonete me olha com cara feia,peo um menu de caf da manh de 2,99 dlares, que pode ser servido a qualquer hora do dia,supondo que isso me d o direito de acampar ali pelo resto da noite.

    Depois de algumas horas e de quatro ou cinco xcaras de caf, ela basicamente me deixaem paz no meu canto. Pego meu livro, desejando ter trazido algum thriller daqueles que vocno consegue parar de ler. Mas a Sra. Banks, a bibliotecria da nossa cidade, me viciou emautores da Europa Central nos ltimos tempos. Ela entra nessas fases comigo. Tem sido assimdesde os meus 12 anos, quando ela me vira lendo um romance de Jackie Collins no bar ondeeu s vezes tinha que ficar, durante o trabalho de Tricia. A Sra. Banks me perguntara o quemais eu gostava de ler, e eu mencionara alguns ttulos, a maioria edies baratas que Triciatrazia para casa da sala de descanso.

    Voc uma leitora e tanto comentara a Sra. Banks na ocasio, e me convidara a dar umpulo na biblioteca na semana seguinte.

    Quando fui at l, ela fez meu cadastro para eu ter um carto e me emprestou exemplaresde Jane Eyre e Orgulho e preconceito.

    Quando terminar, me diga se gostou deles e eu emprestarei alguma outra coisa.Li os dois em trs dias. Gostei mais de Jane Eyre, embora tenha odiado o Sr. Rochester e

    preferisse que ele tivesse morrido no incndio. A Sra. Banks sorriu quando eu lhe disse isso,ento me emprestou Persuaso e O morro dos ventos uivantes. Da em diante, passei a ir biblioteca no mnimo uma vez por semana para ver quais livros ela havia separado para mim.Eu achava incrvel que nossa biblioteca minscula tivesse um acervo to inesgotvel. Leveianos para descobrir que a Sra. Banks vinha pedindo s outras bibliotecas livros que achavaque eu iria gostar.

    Mas, nesta noite, o contemplativo Milan Kundera que ela me deu est deixando minhasplpebras pesadas. Todas as vezes que meus olhos ameaam se fechar, a garonete, como setivesse um radar, vem me reabastecer de caf, mesmo que eu nem tenha encostado nele desde altima vez.

    Aguento at as cinco da manh e pago a conta. Deixo uma gorjeta generosa, pois no sei sea garonete estava sendo antiptica ao no me deixar dormir ou se me impedia de ser expulsadaqui. Ando pelo campus at as sete, o horrio de abertura da biblioteca, ento encontro umcanto sossegado e durmo algumas horas.

    Quando volto casa de Meg, um cara e uma garota esto tomando caf na varanda.

  • E a? diz o cara. Cody, no ? . Richard. Eu sei, j fomos apresentados antes.Ele no parece lembrar; devia estar chapado demais. Eu sou Alice fala a garota.Lembro que Meg mencionou que uma nova colega de repblica tinha vindo para o perodo

    de inverno, substituindo outra garota que havia pedido transferncia depois de um semestre. Onde voc se meteu? pergunta ele. Passei a noite num motel minto. No no Starline! exclama Alice, alarmada. Ahn? Demoro alguns segundos para me tocar que o Starline o motel. O motel de

    Meg. No, em outro. Quer um caf? indaga Alice.Tomei tanto caf na noite anterior que fiquei com azia. Por mais que esteja sonolenta e

    exausta, no consigo nem pensar em beber mais e o recuso. Quer dar uma cachimbada? pergunta Richard Loco. Richard! Alice lhe d um tapa no ombro. Ela tem todas aquelas coisas para arrumar.

    No acho que v querer ficar doidona. Acho que ela vai querer, sim. No, obrigada garanto, mas o sol est conseguindo atravessar com dificuldade a fina

    camada de nuvens e deixando tudo to claro que fico zonza. Sente aqui. Coma alguma coisa diz Alice. Estou aprendendo a fazer po e acabei de

    assar uma nova fornada. Est menos parecido com tijolo do que o normal garante Richard. Est timo. Alice faz uma pausa. Se voc passar bastante manteiga e mel.No quero po. No quis conhecer estas pessoas antes e certamente no quero conhec-las

    agora. Mas, quando me dou conta, ela j buscou o po e voltou. Estava meio duro e massudo,mas Alice tinha razo: com manteiga e mel, at que era passvel.

    Terminei de comer e limpei os farelos do colo. Bem, melhor eu comear. Fui em direo porta. Mas parece que algum j fez a

    parte mais pesada. Vocs sabem quem arrumou as coisas dela?Richard e Alice se entreolharam. Foi assim que ela deixou o quarto conta Alice. Ela mesma o arrumou. A garota quis estar no controle da porra toda at o fim acrescenta Richard. Ele me olha

    e faz uma careta. Desculpe. Tudo bem. Vai me poupar trabalho tranquilizo-o, meu tom de voz to indiferente que

    como se eu estivesse me livrando de um estorvo.

  • Demoro umas trs horas para arrumar o resto das coisas dela. Deixo de fora blusas ecalcinhas furadas; afinal, por que iriam querer isso? Jogo no lixo um monte de revistas demsica, que esto empilhadas em um canto. No sei bem o que fazer com os lenis, poisainda tm o cheiro dela. E no fao ideia se isso ter o mesmo efeito em Sue que est tendoem mim: me lembrar de Meg de uma maneira concreta e visceral das vezes em quedormimos uma na casa da outra, de quando saamos para danar e conversvamos at as trsda manh, ficando um bagao no dia seguinte, mas tambm nos sentindo timas, porque asconversas eram como transfuses de sangue, momentos que pareciam mais reais, maisesperanosos, e que eram pontinhos de luz na escurido da vida em uma cidade pequena.

    Sinto a tentao de cheirar os lenis. Se fizer isso, talvez seja suficiente para apagartudo. Mas voc s consegue prender a respirao at certo ponto. Em algum momento, tereique soltar o cheiro dela; ento, vai ser como aquelas manhs, em que acordo e me esqueoantes mesmo de lembrar.

    A agncia de correio fica no centro, portanto preciso pegar um txi para levar as coisas decarro, despach-las, voltar para pegar as bolsas e estar pronta para apanhar o ltimo nibus,s sete. No andar de baixo, Alice e Richard esto onde eu os havia deixado. Fico na dvida seos alunos desta faculdade supostamente prestigiosa estudam em algum momento.

    Quase acabei falo para eles. S preciso fechar as caixas e j vou embora. Vou pegar os gatos antes de voc ir oferece-se Richard. Que gatos? Os dois gatinhos de Meg diz Alice, entortando a cabea para o lado. Ela no falou

    deles?Eu me recuso a demonstrar qualquer surpresa. Ou mgoa. No estou sabendo de gato nenhum. Ela encontrou dois gatinhos na rua alguns meses atrs. Estavam bem desnutridos e

    doentes. Com uma parada nojenta saindo dos olhos acrescenta Richard. , eles estavam com alguma infeco na vista. Entre outras doenas. Meg os acolheu.

    Gastou uma fortuna no veterinrio com tratamentos e cuidou deles at ficarem saudveis. Elaera apaixonada por aqueles gatinhos. Alice balana a cabea. Foi isso que me deixou maissurpresa. Que ela tenha se dado o trabalho de cuidar to bem desses gatos e ento...

    , bem, Meg era difcil de entender interrompo, a voz to azeda que juro que elesdevem sentir o cheiro da amargura no ar. E os gatos no so problema meu.

  • Mas algum tem que tomar conta deles insiste Alice. O pessoal da casa vem seencarregando disso, mas proibido ter animais de estimao aqui e vamos estar todos foradurante o vero. Alm do mais, ningum pode ficar com eles.

    Dou de ombros. Tenho certeza de que vocs vo encontrar uma sada. Voc j viu os gatinhos? Alice d a volta na casa e comea a ciciar. Logo duas

    bolinhas de pelo aparecem saltitando na sala. Este aqui Grapette. Ela aponta para o que quase todo cinza, com uma mancha preta no nariz. E o outro Repete.

    Grapette e Repete saram de barco. Grapette caiu na gua. Quem se salvou? Xavier, otio de Meg, nos contou esta piada e ns costumvamos atormentar uma a outra com ela.Repete. Repete. Repete.

    Alice coloca um dos gatinhos nos meus braos e ele comea imediatamente a fazer aquelacoisa com as patas que os gatos fazem quando querem mamar. Por fim, o bichano desiste epega no sono, uma bolinha em meu peito. Sinto uma fagulha se acender bem fundo, um eco deum tempo distante, quando ainda no estava tudo congelado aqui dentro.

    O gato comea a ronronar: estou ferrada. Tem algum abrigo para animais por aqui ou coisa parecida? Tem, mas eles abrigam dezenas de gatos e s ficam com eles por trs dias antes de, bem,

    voc sabe. Alice passa o dedo pelo pescoo como se ele fosse uma faca.Grapette, ou talvez seja Repete, continua ronronando nos meus braos. No posso lev-los

    para casa. Tricia teria um ataque. Ela se recusaria a deix-los entrar e eles seriam comidospor coiotes ou morreriam de frio em um piscar de olhos. Posso perguntar se Sue e Joe queremficar com eles, mas j vi como Samson corre atrs dos gatos.

    Tem uns abrigos que no matam os bichos em Seattle intervm Richard. Vi umaparada da Frente pela Libertao Animal que falava sobre isso.

    Eu suspiro. Est bem. Vou passar por Seattle na volta e posso deix-los l.Richard d uma risada. No tipo deixar roupa na lavanderia. Voc no pode simplesmente largar os bichos l.

    Tem que marcar um horrio para, tipo, preencher um registro ou coisa assim. Desde quando voc deixa roupa na lavanderia? pergunta Alice.Grapette/Repete mia nos meus braos. A sua viagem de volta demora quanto tempo? indaga Alice. Sete horas, e ainda tenho que enviar as caixas por correio.Ela olha para mim e depois para Richard. So trs agora. Se voc for para Seattle deixar os gatos em um abrigo, pode ir embora

    amanh cedo. Por que voc no deixa os gatos? J que tem tudo to planejado? Preciso fazer um trabalho para a minha cadeira de estudos feministas.

  • Mas e depois que voc terminar?Ela hesita por um instante. No. Estes gatos eram de Meg. No me sinto vontade largando-os em um abrigo. Ah, ento vai deixar o trabalho sujo para mim? questiono, irritada.Sei que no foi Alice quem deixou o trabalho sujo para eu fazer, mas, quando ela se retrai,

    sinto uma espcie de satisfao cruel. Caramba. Eu levo voc de carro para Seattle diz Richard. Deixamos os gatos no

    abrigo, depois voc pode voltar para c e sair da cidade assim que acordar amanh.Ele parece querer se ver livre de mim tanto quanto eu quero me ver livre dele. Pelo menos

    o sentimento recproco.

  • 5Os abrigos de animais de Seattle acabam por se mostrar mais difceis de entrar do que asbaladas mais concorridas da cidade. Os primeiros dois esto cheios, e implorar no adiantanada. O terceiro tem vagas, mas exige o preenchimento de um formulrio e uma cpia dohistrico veterinrio dos gatos. Digo garota hipster com piercings e sandlias de couroecolgico que estou saindo da cidade e que os gatos esto no carro. Ela me olha com todo odesprezo do mundo e fala que eu deveria ter pensado nisso antes de ter adotado animais deestimao. Quase dou um tapa na cara dela.

    Quer dar aquela cachimbada agora? pergunta Richard depois de darmos com a cara naporta pela terceira vez. So oito da noite e todos os abrigos j encerraram o expediente.

    No. Quer ir a alguma balada ou algo assim? Espairecer um pouco? J que estamos em

    Seattle.Estou exausta por causa da noite anterior, no quero estar aqui com Richard e preciso

    descobrir como vou arranjar o histrico veterinrio se amanh domingo. Penso em recusar aproposta, mas ento Richard diz:

    Podemos ir a um dos lugares alternativos a que a Meg gostava de ir. De vez em quandoela se dignava nos deixar ir junto. Ele faz uma pausa. Meg tinha um cl de amigos ali.

    Fico momentaneamente chocada com o fato de Richard ter usado se dignava e cl.Mas a verdade que quero conhecer esses lugares. Penso na boate a que deveramos ter idono fim de semana em que vim visit-la. Em todas as boates a que deveramos ter ido em todosos fins de semana em que no vim visit-la. Sei quanto Meg adorava estar no meio da cenamusical da cidade, embora, depois da minha visita, os e-mails eufricos dela a respeito dissotivessem comeado a minguar at pararem de vez.

    E quanto aos gatinhos? pergunto. Eles vo ficar bem no carro. Est, tipo, 12 graus hoje noite. Eles tm comida e gua.Richard aponta para Grapette e Repete. Eles tinham miado e chorado a viagem inteira, mas

    agora estavam enroscados juntinhos e quietos dentro da caixa de transporte.Vamos at um lugar em frente ao canal em Fremont. Antes de entrarmos, Richard acende

    um pequeno cachimbo e sopra a fumaa para fora da janela. No quero deixar os gatinhos doides brinca ele.Enquanto pagamos a taxa de consumao, ele me conta que Meg costumava vir bastante

    aqui. Concordo com a cabea, como se j soubesse. O lugar est vazio. Cheira a cerveja, guasanitria e desespero. Deixo Richard no bar e vou jogar pinball sozinha. s dez, o salo j

  • comea a encher, e s onze a primeira banda da noite comea a tocar; um som carregado demicrofonia, com um vocalista que mais grunhe do que canta.

    Depois de algumas canes nada de mais, Richard Loco vem falar comigo. Aquele ali Ben McCallister. Ele aponta para o guitarrista grunhidor. Aham.Nunca ouvi falar dele. Demora um pouco para a cena de Seattle chegar at o nosso Cu do

    Judas. Meg falou sobre ele para voc? No. tudo o que digo.Mas minha vontade gritar para as pessoas pararem de me perguntar isso. Porque no sei

    o que Meg me contou e eu ignorei, e o que ela no me contou. Se tem uma coisa que sei queela no me contou que estava sofrendo tanto que a nica maneira de acabar com a dor eraencomendar uma dose de veneno industrial e mand-lo goela abaixo.

    Richard est falando sobre como Meg era obcecada por esse cara. No dou muita ateno,pois Meg era obcecada por um monte de guitarristas. Ben McCallister para de tocar e toma umgole de cerveja, segurando o gargalo da garrafa entre dois dedos, a guitarra pendendo doquadril magro como se fosse um membro. Da ele vira para a plateia, sob as luzes do palco, eeu vejo que seus olhos so de um azul incrvel. Ele faz um gesto, como se protegendo os olhosdo sol, procura de algum na plateia. E isso me d um estalo.

    Ah, esse deve ser o Heri da Guitarra Amargurado. No tem nada de heroico nesse cara retruca Richard.O Heri da Guitarra Amargurado. Eu me lembro de Meg ter escrito sobre ele uma ou

    duas vezes, o que era curioso, pois ela nunca escrevia sobre cara nenhum. A princpio, pareciaque Meg gostava da banda e estava a fim dele, do mesmo jeito que ficava a fim de vrioscaras e garotas que tinham bandas.

    Ela me contou sobre a banda do Heri da Guitarra Amargurado, um som inspirado emSonic Youth/Velvet Underground, misturado com certas angstias modernas. Ou seja, a cara deMeg. Mas ela tambm tinha escrito sobre os olhos dele, to azuis que pareciam lentes. Olhopara eles agora. So mesmo estranhamente azuis.

    E ento me lembro de uma frase de um de seus e-mails. Meg tinha perguntado: Voc selembra do conselho que Tricia deu pra gente quando ela comeou a trabalhar no bar?

    Tricia adorava dar conselhos, especialmente a ouvintes to interessados quanto Meg. Mas,de alguma forma, eu soube na mesma hora a que aviso Meg estava se referindo: Nunca deempara o barman, meninas. Por qu? Porque todo mundo faz isso?, perguntara Meg. Elaadorava a maneira como Tricia falava com a gente, como se fssemos suas amigas do bar ecomo se alguma de ns estivesse dando para algum. Tem isso tambm, respondera Tricia.Mas, principalmente, porque vocs vo parar de receber drinques de graa.

    Meg escrevera no e-mail que o mesmo se aplicava a guitarristas amargurados. Me lembrode ter ficado confusa, pois ela no havia mencionado que estava a fim desse cara ou que tinha

  • sado com ele, muito menos dado para ele, coisa que nunca tinha feito, exceto por aquela vezque decidimos que no contava. Se Meg tivesse feito algo to importante quanto dar para umcara, ela teria me contado. Pretendia perguntar quando ela voltasse para casa. Mas ela acaboununca voltando.

    Ento ele. Esse o Heri da Guitarra Amargurado. Ele parecia to mtico, e geralmentedar nome a uma criatura mtica suficiente para desmitific-la. Mas saber o nome dele, BenMcCallister, no surte esse efeito.

    Assisto ao show com mais ateno agora. Ele faz todas as coisas que os roqueiros fazem,apoiar-se na guitarra e no microfone e ento parar de tocar, agarrando o microfone como sefosse o pescoo de uma amante. tudo encenao. Mas uma encenao bem-feita. Possoimaginar a fila de groupies atrs dele. S no consigo acreditar que Meg fosse uma delas.

    Ns somos os Scarps. Silverfish vai tocar em seguida anuncia Ben McCallister nofinal do setlist curto deles.

    Vamos andando? pergunta Richard.Mas no quero ir embora. Estou totalmente desperta e furiosa com Ben McCallister, que,

    como ficou claro para mim agora, fodeu com a minha amiga, em mais de um sentido. Ele poracaso a tratou como uma groupie descartvel qualquer? No percebeu que era com MegGarcia que estava lidando? Ningum descarta Meg.

    Ainda no.Me levanto e vou at o bar, onde Ben McCallister est, bebendo outra cerveja e falando

    com um bando de gente que elogia seu show, dizendo que foi sensacional. Sigo pisando firmeat l, mas, assim que chego bem atrs dele, to perto que consigo ver as vrtebras do seupescoo e a tatuagem no seu ombro, fico sem saber o que dizer.

    Mas Ben parece saber exatamente o que dizer para mim, pois, depois de mais algunssegundos de conversa fiada com as outras garotas, ele se vira para me encarar.

    Eu vi voc na plateia.De perto, Ben muito mais bonito do que qualquer cara tem o direito de ser. Ele tem uma

    beleza que s posso imaginar que seja irlandesa: cabelo preto, pele que em uma garota teriasido chamada de porcelana, mas em um roqueiro apenas perfeitamente plida. Lbiosvermelhos e carnudos. E os olhos. Meg tinha razo: parecem lentes de contato.

    Voc me viu onde na plateia? pergunto. Ali. Ele aponta para as mesas no lounge. Estava procurando um amigo que disse que

    viria, mas no d para ver nada com aquelas luzes. Ele finge que est protegendo os olhosda claridade, como eu o vi fazendo no palco. Mas ento eu vi voc... ele faz uma pequenapausa. ... como se fosse voc quem eu estava procurando.

    assim que ele faz? Essa a cantada dele? To ensaiada que ele at inclui aquele gestode proteger os olhos e procurar algum na plateia durante o show? Quer dizer, uma timacantada. Porque, se eu estivesse na plateia, ento tipo: Uau, voc estava procurando pormim. E, se eu no estivesse, bem, voc disse uma coisa to fofa, e que roqueiro sensvel voc

  • deve ser para acreditar em algo como destino.Essa foi a cantada que ele usou com Meg? Isso funcionou com ela? Estremeo s de

    pensar em minha amiga caindo nessa conversa mole, mas, por outro lado, Meg estava longe decasa, hipnotizada pelo glitter e inebriada pelo som da guitarra... Quem sabe?

    Ele toma meu silncio por timidez. Como voc se chama?Ser que meu nome vai lhe soar familiar? Ela falou sobre mim para ele? Cody. Cody, Cody, Cody. Ele experimenta a sonoridade do meu nome. um nome de

    vaqueira diz, arrastando as palavras. De onde voc , Vaqueira Cody? Do Pas das Vaqueiras.Ele abre um sorriso lentamente, como se quisesse poup-lo. Eu gostaria de conhecer o Pas das Vaqueiras. Quem sabe eu e voc no poderamos

    cavalgar juntos por l? Ele me lana um olhar expressivo, para o caso de eu no terentendido o duplo sentido.

    Voc iria cair do cavalo.Ah, ele gostou. Acha que estamos flertando, o babaca. Ah, iria? Sem dvida. Cavalos sentem cheiro de medo.Algo no rosto dele fraqueja por um instante. O que faz voc pensar que eu tenho medo? Todo otrio da cidade grande tem. E por que voc acha que eu sou um otrio da cidade grande? Bem, voc est em uma cidade grande. E um otrio, no ?Uma expresso confusa perpassa o rosto dele. Vejo que ele no sabe bem se meu jeito de

    flertar violento, o tipo de garota que seria quente na cama, ainda que um pouco agressiva, ouse nossa conversa se transformou em outra coisa. Mesmo assim, ele reorganiza o rosto paraexibir seu sorriso relaxado de aspirante a estrela do rock.

    Com quem exatamente voc anda falando, Vaqueira Cody? Seu tom de voz suave,mas algo de menos agradvel est ali oculto.

    Com quem eu ando falando, Ben McCallister? sussurro, provocante, do jeito queTricia faz to bem, e me inclino para mais perto dele.

    Ele tambm se aproxima. Como se achasse que fssemos nos beijar. Como se, na maioriadas vezes, fosse mesmo to fcil assim para ele.

    Sabe com quem eu no ando falando muito ultimamente? Com quem?Ele est to perto que consigo sentir o cheiro de cerveja. Meg Garcia. No tenho falado com Meg Garcia h mais de um ms. E voc?Eu j havia ouvido a expresso se retrair antes, mas s quando vejo Ben McCallister se

  • afastar de mim que entendo o que ela significa de verdade. Porque ele salta para trs comouma cobra se retraindo antes de dar o bote.

    Que merda essa?Qualquer flerte que possa ter havido entre ns dois esta noite acabou, e a voz de Ben se

    transforma em um grunhido de verdade, bem diferente dos grunhidos fingidos do show. Meg Garcia repito. difcil olhar nos olhos dele agora, mas, neste ms que passou, eu

    me tornei uma especialista em coisas difceis. Conhece? Quem voc?Algo est ardendo nos olhos dele, uma espcie de fria, que os deixa frios como gelo. J

    no parecem mais lentes de contato. Ou foi s uma foda para voc? Que fodeu com a vida dela, por sinal?Sinto algum cutucar o meu ombro: Richard Loco est atrs de mim. Preciso acordar cedo amanh. J acabei por aqui.J quase meia-noite, eu dormi trs horas na noite passada, no me lembrei de comer mais

    nada e estou trmula. Consigo andar at a sada da boate antes de tropear. Richard agarrameu brao, e ento que cometo o erro de me virar para lanar outro olhar fulminante para oconvencido, superficial e poser Ben McCallister.

    Queria no ter feito isso. Porque, quando o olho pela ltima vez, ele exibe um esgar que uma mistura de raiva e culpa. Conheo muito bem essa expresso: eu a vejo todos os dias noespelho.

  • 6Esta noite, durmo no sof de veludilho sem ao menos trocar de roupa. Acordo na manh dedomingo com Grapette e Repete dormindo no meu peito e na minha cara. Ou eu tomei o lugardeles no sof ou eles decidiram que eu sou o lugar deles. Sento-me a tempo de ver o ltimocolega de repblica de Meg, que tinha passado o fim de semana inteiro desaparecido, largaruma tigela de cereal na pia e sumir pela porta dos fundos.

    Tchau, Harry despede-se Alice.Ento esse Harry. Segundo Meg, ele ficava a maior parte do tempo no prprio quarto,

    com seus vrios computadores e potes de kimchi.Alice vai cozinha e volta com uma xcara de caf para mim. Ela anuncia que orgnico,

    respeita as regras do comrcio justo e cultivado sombra no Malaui. Eu assinto, como semeu caf precisasse ser algo mais do que quente e cafeinado.

    Fico sentada no sof, observando os gatos baterem de brincadeira um na cara do outro.Uma das orelhas de Repete fica presa virada pelo avesso. Eu a endireito e ele solta um miado. o som mais desamparado do mundo e, sinto muito, mas no h a menor possibilidade de eudeixar esses dois bichinhos em um abrigo, mesmo que no seja do tipo que mata os animais.

    Quando termino o caf, saio com o meu telefone para a varanda, onde algum organizouum monte de garrafas de cerveja vazias na posio de pinos de boliche. Ligo para Tricia. Sos dez e meia, mas, por algum milagre, ela atende.

    Como est a cidade grande? Grande respondo. Olha, o que voc acha de eu levar para casa dois gatinhos? O que voc acha de arranjar outro lugar para morar? Seria temporrio. At eu encontrar um lar para eles. Nem pensar, Cody. J criei voc por dezoito anos. No vou acolher mais nenhuma

    criatura desamparada.Tenho vrios motivos para me sentir ofendida; um dos principais a sugesto de que sou

    uma criatura indefesa paparicada por anos e anos. Eu poderia dizer que me criei sozinha, masestaria sendo injusta com os Garcias. Quando tive uma infeco na garganta, foi Sue quemnotou o pus nas minhas amgdalas e me levou ao pediatra para tomar antibitico. Quandofiquei menstruada pela primeira vez, foi Sue quem comprou absorventes. Tricia simplesmenteindicou os tampes no armrio de remdios para quando chegar a hora, sem parar parapensar como poderia ser aterrorizante para uma menina de 12 anos enfiar qualquer coisaextragrande, superabsorvente dentro de si. Quanto s cinquenta horas de aulas prticas queeu precisava para tirar a carteira de motorista, Tricia se ocupou de trs delas. Joe cuidou das

  • 47 restantes, passando inmeras tardes de domingo no carro comigo e com Meg. Devo ter que ficar aqui mais alguns dias. Pode me cobrir na Srta. Mason segunda-feira?

    uma chance de ganhar 40 dlares. Claro.Tricia no pensa duas vezes ao ouvir falar em dinheiro. No me pergunta por que vou

    demorar mais nem quando voltarei para casa.Em seguida, telefono para os Garcias. A um pouco mais delicado, pois, se eu mencionar

    os gatinhos, eles se oferecero para adot-los, por mais que v ser um desastre, a julgar pelamaneira como Samson se comporta com os gatos. Digo a Sue que vou precisar de mais unsdois dias para acertar algumas pendncias que Meg deixou. Ela parece aliviada e no faz maisperguntas. Apenas me fala para levar o tempo que achar necessrio. Quando estou prestes adesligar, ela continua:

    E, Cody...Eu odeio esses E, Cody. So como uma pistola sendo engatilhada. Como se eles

    estivessem prestes a dizer que sabem de tudo. Sim?Longo silncio do outro lado da linha. Meu corao comea a disparar. Obrigada.

    Volto a entrar e pergunto a Alice sobre a melhor maneira de encontrar um lar para os gatinhos.Um bom lar.

    Voc poderia publicar um anncio, mas j ouvi falar que s vezes os animais vo pararem laboratrios de pesquisa.

    No est ajudando muito. Bem, podemos colar uns cartazes. Todo mundo gosta de fotos de gatinhos.Eu suspiro. Est bem. Como acha que devemos fazer isso? O jeito mais fcil tirar uma foto dos bichanos, mandar por e-mail para voc mesma,

    acrescentar um texto, imprimir e... Talvez seja mais simples usar o notebook da Meg; ele jtem uma cmera.

    O computador de 800 dlares que os pais lhe deram quando ela entrou para a faculdade.Eles ainda esto pagando as parcelas no carto.

    Subo at o quarto e o encontro em uma das caixas. Ligo o notebook. Ele est protegido porsenha, mas digito Runtmeyer e a rea de trabalho aparece. Levo o computador para o andar debaixo enquanto Alice rene os dois gatos para fazer uma pose, o que mais difcil do quevoc imagina. Por fim, consigo tirar uma foto. Alice diagrama o cartaz em questo de instantese fazemos uma cpia de teste com a impressora de Meg.

  • Estou prestes a desligar o computador, mas ento me detenho. O programa de e-mails delaest bem ali, na barra de ferramentas. Sem pensar no que estou fazendo, clico no cone. Nomesmo instante, ele comea a baixar um monte de novos e-mails: lixo, em sua maioria, spamsde annimos que no sabem que ela est morta, embora haja tambm uma ou outra mensagemno estilo Meg, sentimos sua falta, bem como uma dizendo que ela vai apodrecer no infernoporque suicdio um pecado mortal. Apago essa ltima.

    Fico curiosa para saber qual foi o ltimo e-mail enviado por Meg. Para quem foi? Tersido o bilhete de suicdio? Enquanto clico na pasta de mensagens enviadas, olho ao meu redorcomo se algum estivesse me observando. No h ningum, claro.

    No o bilhete de suicdio. Ela o escreveu dois dias antes de morrer e, como sabemosagora, programou-o para ser enviado automaticamente um dia aps sua morte. Depois, elaainda escreveu algumas mensagens, inclusive uma para a biblioteca contestando uma multa poratraso na devoluo de um livro. Ela sabia que iria morrer e estava preocupada com multas debiblioteca?

    Como uma pessoa pode fazer isso? Como pode tomar uma deciso dessas, escrever um e-mail desses e seguir em frente mesmo assim? Se voc consegue fazer isso, no pode continuarseguindo em frente?

    Confiro mais alguns dos seus e-mails enviados. Tem um da semana em que ela morreu,endereado a Scottie. Diz apenas: Ei, Runtmeyer, eu te amo. Para sempre.

    Isso foi o adeus dela? Ser que ela enviou um adeus para mim que eu no vi?Continuo descendo a barra de rolagem e percebo uma coisa estranha: tem um monte de

    mensagens enviadas na semana anterior morte dela, ento uma grande lacuna de seis semanassem nada, e depois os e-mails voltam a aparecer em janeiro.

    Estou prestes a fechar o programa e desligar o computador quando vejo algo que Megenviou para um tal [email protected] poucos dias antes de morrer. Hesito por algunsinstantes. Ento abro a mensagem.

    No precisa mais se preocupar comigo. um tipo diferente de adeus. Apesar da carinha feliz, consigo sentir a mgoa, a rejeio e

    a derrota, coisas que jamais associei a Meg Garcia.Acesso a caixa de entrada dela e fao uma busca por e-mails de bigbadben. Eles remontam

    ao outono; os da primeira leva so quase todos curtos e espirituosos, mensagens de uma linhas em tom de brincadeira. No consigo ver as respostas aqui, s a parte dele da conversa,porque os e-mails do Ben cortam o que ela havia escrito antes de cada resposta. Os e-mailsmais antigos so de depois que Meg o viu tocar pela primeira vez, um monte de mensagens dotipo Obrigado por assistir ao meu show, Obrigado por ser to gentil mesmo nossa bandasendo to ruim falsa modstia que at uma criana de 6 anos perceberia. Tem tambmalgumas divulgaes de prximos shows.

    Ento o tom fica mais pessoal e, logo, eles parecem flertar em uma das mensagens, ele achama de Mad Meg; em outra, fica falando sobre algo que suponho serem as botas de couro de

  • cobra laranja que ela comprou de segunda mo e no tirava do p. Em duas delas, ele a chamade louca porque todo mundo sabe que Keith Moon disparado o melhor baterista do mundo.Tem algumas outras com esse tipo de conversa sobre bandas de rock que Meg poderia passardias usando como assunto para flertar.

    Mas ento o tom muda bruscamente. Tranquilo. Ainda somos amigos, escreve ele.Consigo sentir o desconforto mesmo agora, a quatro meses de distncia e com tantas partesfaltando. Vasculho os itens enviados para ver o que Meg escreveu para ele. Procuro nasmensagens mais antigas, mas no consigo encontrar o que motivou os e-mails mais recentes,porque h outra lacuna igual nos e-mails enviados. Os meses de janeiro e fevereiro quaseinteiros esto apagados. Estranho.

    Volto aos e-mails de Ben para ela. Um deles diz: No se preocupe. Outro pede que Megno ligue para ele to tarde da noite. Outro afirma, de forma j nem to tranquilizadora, que,sim, eles ainda eram amigos. Em outra mensagem, Ben pergunta se Meg pegou a sua camisa doMudhoney, porque era do pai dele. E ento leio um dos ltimos e-mails que ele enviou. Umafrase lacnica, to cruel que me faz odiar Ben McCallister como se eu tivesse gelo nas veias:Meg, voc precisa me deixar em paz.

    Pois , ela deixou voc em paz.Ontem, encontrei uma camisa grande, preta, branca e vermelha, dobrada com cuidado. No

    a reconheci, logo a coloquei na pilha de roupas para doar. Pego-a agora: est escritoMUDHONEY. A preciosa camisa dele. Nem com isso ele quis que Meg ficasse.

    Volto para o notebook e, com fria nos dedos, escrevo uma nova mensagem a bigbadbenpela conta de Meg, com o seguinte Assunto: Renascida dos mortos.

    da sua preciosa camisa que estou falando, escrevo. H um limite para milagres eressurreies.

    No assino a mensagem e, antes que possa pensar melhor, clico ENVIAR. Demoro apenastrinta segundos para me arrepender e lembro por que odeio e-mails. Quando voc escreve umacarta, digamos, para o seu pai, pode encher pginas e pginas com todas as coisas que achasuperimportantes, porque no sabe onde ele mora. Mesmo que soubesse, ainda precisariagastar tempo procurando um envelope e um selo e, depois disso tudo, voc acaba rasgando acarta. Mas ento, um belo dia, voc descobre o e-mail dele e est perto de um computadorcom acesso internet. Como no tem nenhum impedimento, escreve o que est sentindo e clicapara enviar antes de ter uma chance de se convencer do contrrio. E da voc espera, e espera,e espera e no recebe resposta alguma. E v que todas aquelas coisas que achava toimportante que fossem ditas, na verdade, no eram. Simplesmente no valia a pena diz-las.

    Alice e eu cobrimos os arredores da faculdade em Tacoma com cartazes de gatinhos paradoao. Ela tem a brilhante ideia de coloc-los em volta de uma loja de comidas naturais

  • metida a besta, onde os ricos vo fazer compras. Pegamos o nibus e, no caminho, ela me dizque o lugar no chega a ser uma Whole Foods, mas que eles devem receber uma loja dessasem breve. Quando comento Que maneiro, Alice responde No ?, sem perceber osarcasmo, ento eu olho pela janela, torcendo para ela calar a boca.

    A viagem em vo, porque o gerente da loja no nos deixa afixar os cartazes do lado defora, logo ns os entregamos para os clientes endinheirados, com suas ecobags. Todos, semexceo, nos olham como se estivssemos oferecendo amostras grtis de crack.

    Voltamos mais de cinco horas e at a saltitante Alice est desanimada. Estou furiosa efrustrada. No consigo acreditar que seja to difcil arranjar um lar para dois gatinhos e tudome parece uma espcie de brincadeira cruel, em que Meg quem ri por ltimo.

    A casa cheira a comida, um aroma estranho e desagradvel de temperos que no combinambem: curry, alecrim, alho de mais. Tree est de volta, tomando uma cerveja, sentada no sof.

    Achei que voc tivesse ido embora diz ela com frieza.Alice afixa um dos cartazes no quadro de avisos junto porta, ao lado de um outro grande

    da viglia de amanh do grupo de Apoio Vida. Ela explica que estou tentando encontrar umlar para Grapette e Repete.

    Tree faz uma careta. O que foi, voc tem alguma coisa contra gatinhos? pergunto.Ela franze o nariz. que esses nomes, Grapette e Repete, so muito gays. Eu sou bissexual e no gosto desse uso pejorativo da palavra gay retruca Alice. Ela

    tenta soar irritada, mas, sabe-se l como, acaba parecendo alegrinha. Bem, desculpe. Sei que eles so os gatos da garota morta, mas os nomes ainda so gays.Tree parece agora menos uma hippie e mais um dos caipiras da nossa cidade. Isso me faz

    odi-la menos e mais ao mesmo tempo. E quais nomes voc sugere?Sem hesitar, ela diz: Tico e Teco. como os chamo na minha cabea. E voc acha Grapette e Repete ruins? Richard Loco aparece com um avental

    respingado e uma colher de pau. Acho que deveramos cham-los de Lenny e Steve. Esses no so nomes de gatos intervm Alice. Por que no? insiste Richard, segurando a colher que traz o cheiro estranho da cozinha.

    Quer provar? O que ? pergunta Tree. Mexido de tudo o que tem na geladeira. Por que no acrescenta os gatos? A no vamos mais ter que encontrar um lugar para eles

    morarem. Achei que voc fosse vegetariana diz Alice, exasperada.Richard me convida para comer sua gororoba. Pelo cheiro, como se os temperos

  • tivessem entrado numa briga em que todos saram perdendo. Mas esse no o motivo que mefaz recusar. Estou desacostumada a ter companhia. No sei direito o que aconteceu. Nunca tivegrandes amizades, mas costumava ter amigos: da escola, da nossa cidade. Costumava estar otempo todo na casa dos Garcias. Esse costumava parece ser um passado muito distante.

    Deixo os colegas de repblica fazerem sua refeio e vou cozinha beber alguma coisa.Tinha comprado um litro de Dr. Pepper mais cedo e guardado na geladeira, mas Richard, emsua nsia de cozinhar, mudou tudo de lugar, ento tenho que desencav-lo. L no fundo,encontro duas latas fechadas de RC Cola. Sinto um n na garganta, pois a nica pessoa queconheci na vida que bebia isso era Meg. Encho um copo com gelo e RC. Depois que eu sairdaqui, no quero ter deixado a menor parte dela que seja para trs.

    Vou para a varanda com a minha bebida. Mas, quando vejo que l no est vazio, paro tode repente que acabo derramando refrigerante na blusa.

    Ele est fumando um cigarro, a brasa ardendo ameaadoramente sob a luz cinzenta e fracado crepsculo.

    No sei o que me surpreende mais: que o meu e-mail tenha tido um verdadeiro impacto ouque ele parea disposto a me matar.

    No lhe dou nenhuma chance. Largo a bebida no parapeito da varanda, dou meia-volta evou para o andar de cima, tentando me deslocar devagar, agir com calma. Ele veio pelacamisa, ento isso que vou buscar. Vou jog-la na cara dele e mand-lo sumir daqui.

    Ouo o som de cascalho sendo esmagado e os passos dele subindo a escada. No sei o quefazer, pois, se gritar por ajuda, vou parecer fraca. Mas eu vi o olhar dele. Parece que ele nos recebeu meu e-mail, como meu dio tambm, e agora o dio est voltando para mim.

    Entro no quarto de Meg. A camisa de Ben est em cima de uma das pilhas que deixei ali.Ele me seguiu at l e est parado diante da porta. Atiro a camisa; no quero nenhuma partedele no mesmo espao que eu. A camisa bate nele e cai no cho.

    Que porra essa? pergunta Ben. Que foi? Voc no queria sua camisa? A est ela. Que tipo de pessoa faz uma coisa dessas? Do que voc est falando? Voc disse que queria a sua camisa... Ah, corta essa, Cody interrompe ele. perturbador ouvi-lo dizer meu nome. No

    Vaqueira Cody com aquele grunhido sedutor idiota. Mas simplesmente meu nome, semrodeios. Voc me enviou um e-mail como se fosse uma garota morta. Foi s por crueldade?Ou voc tambm meio maluca?

    Voc queria sua camisa de volta repito, mas agora estou assustada, ento no pareoto convencida.

    Ele me fuzila com o olhar. Sob a luz plida do quarto de Meg, os olhos dele assumem umacor bem diferente. Ento me lembro do ltimo e-mail de Meg. No precisa mais se preocuparcomigo. E a raiva volta.

    Voc no podia deixar que ela ficasse com uma lembrana? Talvez devesse fazer isso,

  • levando em conta o nmero de garotas que deve comer. Dar uma camisa de brinde. Mas pedirde volta? Isso falta de educao.

    bvio que voc no sabe do que est falando. Ento esclarea para mim.H um qu de desespero na minha voz. Porque ele tem razo. No sei do que estou

    falando. Talvez se tivesse sabido, se tivesse recebido mais pistas ao longo dos ltimos meses,no estaramos parados aqui.

    Ele me encara como se eu fosse algo podre. E no consigo acreditar que estou diante domesmo galanteador metido a sedutor da noite passada.

    O que aconteceu? Voc se cansou dela? isso que acostuma acontecer entre voc e asgarotas? muita falta de imaginao sua, porque, se tivesse se dado o trabalho de conhec-la,voc nunca teria se cansado. Ela era Meg Garcia, e quem voc, Ben McCallister, para dizera ela para deixar voc em paz?

    Minha voz ameaou falhar, mas consegui resistir. Vou ter tempo para perder o controledepois. Sempre h tempo para perder o controle depois.

    A expresso de Ben muda. Cristais de gelo se formam no seu rosto. Como voc sabe o que escrevi para ela? Eu vi seu e-mail: Meg, voc precisa me deixar em paz.A mensagem me soou cruel na hora. Mas agora, vindo de mim, soa apenas pattica.O rosto dele puro dio. No sei o que mais repugnante: ler os e-mails de uma garota morta ou mandar um e-

    mail no lugar dela. Voc que repugnante rebato, parecendo uma criana.Ele me encara, balanando a cabea. E ento vai embora, sua preciosa camisa apenas um

    trapo esquecido no cho.

  • 7Demoro quase uma hora para me acalmar. E mais uma hora para criar coragem e ligar onotebook de Meg outra vez. Ben tinha razo: eu no sabia exatamente do que estava falando. Amaneira como ele disse isso sugeria que Meg havia feito algo para merecer que ele fosse toescroto. Eu conheo Meg. E conheo caras como Ben. J vi muitos deles sacanearem Tricia aolongo dos anos.

    Torno a abrir a caixa de entrada de Meg e acesso a sua pasta de itens enviados, mas tudo oque vejo so mensagens antigas, de novembro: o lado dela do flerte, falando sobre quaismsicos compuseram as melhores canes, quem era o melhor baterista, qual banda era maissuperestimada ou subestimada. E ento, antes do perodo das festas de fim de ano, a paradabrusca. No preciso ser um gnio para entender o que aconteceu: eles transaram. E eledescartou Meg.

    Mas esse hiato nas mensagens de Meg no faz sentido. Sei que no trocamos muitasdurante o inverno, mas tenho certeza que ela me escreveu pelo menos algumas. Acesso meu e-mail para conferir se no estou imaginando coisas. Embora janeiro esteja praticamente vazio,na minha caixa de entrada tenho mensagens de Meg de fevereiro que no aparecem na pasta deitens enviados dela.

    Muito estranho. Ser que o computador dela pegou algum vrus que apagou vrias semanasde mensagens? Ou ela as salvou em outro lugar? Comeo a vasculhar os outros programas deMeg, sem saber direito o que estou procurando. Abro o calendrio, mas est vazio. Confiro alixeira, achando que os arquivos deletados podem estar l. Tem um monte de coisa ali, mas amaior parte intil. Vejo uma pasta sem nome, mas o computador diz que ela no pode seraberta na lixeira. Arrasto a pasta para a rea de trabalho e tento de novo. Desta vez, recebouma mensagem de que o arquivo est protegido. Fico com medo de ele ter algum vrus quepossa destruir o computador dela, ento arrasto a pasta de volta para a lixeira.

    So nove e meia da noite e no comi nada outra vez. Estou com sede, mas no quero voltara descer. Tiro a roupa e me deito na cama assombrada de Meg. Agora, os lenis que aindacheiram a ela so mais ou menos o que preciso. Sei que, ao dormir aqui, vou misturar meucheiro ao dela, enfraquecendo o cheiro de Meg, mas, de certa forma, isso no importa. Eraassim que costumava ser antes, afinal.

  • 8Sou acordada na manh seguinte pelo som de algum batendo de leve porta. A luz forte dosol entra pela persiana aberta. Me sento na cama, completamente grogue.

    Mais batidas. Pode entrar. Minha voz est rouca.Alice est parada ali, segurando outra xcara de caf, sem dvida colhido mo por anes

    da Nicargua.Esfrego os olhos e aceito o caf com um resmungo de gratido. Que horas so? Meio-dia. Meio-dia? Eu dormi... catorze horas? Pois . Ela olha ao redor do quarto. Talvez no fosse Meg. Talvez este quarto seja

    tipo o campo de papoulas de O mgico de Oz e tenha um efeito soporfico. Como assim? Ela dormia bea. Tipo, o tempo todo. Quando no andava com os amigos descolados

    de Seattle ela faz aspas com os dedos , dormia. Meg gosta, quer dizer, gostava, de dormir muito. Ela era ligada no 220. Precisava de

    muitas horas de sono para se recuperar.Alice no parece convencida. Nunca conheci ningum que dormisse tanto. Alm do mais, ela teve mononucleose quando estava no ensino mdio.Assim que falo isso, lembro-me de como aquele ano foi horrvel. Meg faltou metade das

    aulas na escola; passou meses inteiros tendo aulas particulares porque no podia sair da cama. Mononucleose? pergunta Alice. Por que isso a deixaria cansada at hoje? Foi um caso muito grave respondo. Os Garcias nem me deixavam visit-la para eu no

    pegar a doena. Do jeito que voc fala, parece que ela teve cncer. Alice se senta na beira da cama.

    No sabia disso. No cheguei a conhec-la to bem. Voc s se mudou para c h poucos meses.Ela d de ombros. Conheo os outros. Acho que eles tambm no a conheceram muito bem. Ela no era

    muito socivel.Se Meg gostasse de voc, ela gostava mesmo, mas, caso contrrio... ela no tinha

    pacincia para gente idiota.

  • Voc s precisava tentar conhec-la. Eu tentei insiste Alice. No me parece que vocs tenham tentado o suficiente. Quero dizer, no deviam morrer

    de amores por ela se colocaram aquela capa de disco na porta.Os olhos de Bambi de Alice se enchem de lgrimas. No foi a gente que colocou aquilo ali. Foi ela. E disseram pra gente no tirar nada do

    lugar.Ento Meg colou a capa na porta. Tenho certeza de que os especialistas em suicdio

    chamariam isso de sinal de alerta, um pedido de ajuda, mas difcil no ver o senso de humorperverso de Meg naquilo de certa forma. Uma ltima mensagem irnica.

    Ah. Na verdade, at que faz sentido. Faz? to mrbido... Mas, como eu disse, no sabia muita coisa sobre ela. A esta altura,

    j devo ter passado mais tempo com voc do que com Meg observa ela com melancolia. Queria dizer que voc no perdeu muito, mas seria mentira. Me fale sobre ela. Como ela era? Como ela era?Alice assente. Ela era... Abro os braos para dar uma ideia de imensido, de infinitas possibilidades.

    No tenho certeza se isso uma descrio de Meg ou da maneira que eu sempre me sentiaperto dela.

    Alice me olha com uma cara de splica. Ento eu lhe conto algumas histrias. De quandoMeg e eu arranjamos um emprego temporrio como operadoras de telemarketing, o trabalhomais chato do mundo. Para no morrermos de tdio, Meg fazia vozes diferentes para cadaligao. Ela acabou ficando to boa nisso, e vendendo to bem o raio do produto, que semprebatia a cota diria e podia ir para casa mais cedo.

    Eu falo de quando a biblioteca da nossa cidade sofreu um corte to grande no oramentoque s podia abrir trs dias por semana, o que foi um pesadelo para mim, porque eupraticamente morava l sem contar o tempo passado na casa dos Garcias. Meg no era nemde perto uma frequentadora to assdua quanto eu, mas isso no a impediu de embarcar emuma misso para impedir os encerramentos. Ela deu um jeito de convencer uma banda napoca mais ou menos conhecida, mas agora superfamosa , com a qual havia feito amizadeatravs do seu blog, a tocar em um concerto beneficente chamado Matem Astros do Rock, NoLivros. Veio gente de toda parte para a nossa cidade e a arrecadao foi de cerca de 12 mildlares. Como a banda estava comeando a ficar famosa, e Meg era uma porta-voz muitoatraente, acabamos recebendo ateno da mdia de todo o pas e a biblioteca se viu obrigada aestender seu horrio de funcionamento.

    Conto sobre quando Scottie ficou anmico de to enjoado que era para comer. Os mdicosdisseram que ele precisava consumir mais alimentos ricos em ferro, e Sue no sabia o quefazer, pois era impossvel convencer o menino a comer coisas saudveis. Mas Meg sabia que

  • Scottie era obcecado por tratores e encontrou no eBay uma frma de comida no formato de umtrator. Ela colocava pur de batata, carne e espinafre dentro dela e Scottie comia tudo.

    Teve tambm a vez em que Tricia e eu brigamos feio e eu fugi para encontrar o meu pai,embora Tricia dissesse que ele tinha ido embora anos antes. Cheguei at Moses Lake antes deo meu dinheiro e a minha coragem acabarem, e quando estava prestes a comear a chorar eperder as estribeiras, Meg e Joe apareceram de carro. Eles estavam seguindo o meu nibus otempo todo. Mas no conto isso para Alice. Porque esse o tipo de histria que voc scompartilha com uma boa amiga. E s tive uma dessas na vida.

    Essa era Meg concluo. Ela era capaz de fazer qualquer coisa. De ajudar qualquerpessoa.

    Alice fica em silncio, digerindo o que acabou de ouvir. Menos a si mesma.

  • 9O ltimo Espetculo Funerrio de Megan Luisa Garcia est ocorrendo em um pequenopromontrio na rea do esturio de Puget. Um guitarrista e um violinista tocam aquela canode Joan Osborne, Lumina. Algum l umas palavras de Kahlil Gibran. No h muita gente,talvez vinte pessoas, e todos esto usando roupas normais. O cara que est conduzindo acerimnia do centro de orientao psicolgica do campus, mas, por sorte, ele no transformaa coisa toda em um servio de utilidade pblica sobre preveno do suicdio, apontando osdiversos sinais de alerta que todos ns obviamente ignoramos. Ele fala sobre como odesespero cresce em silncio. Essa uma das coisas que levam pessoas como Meg a fazer oque fizeram. E, depois de tudo, o desespero que ela deixou para trs deve ser respeitado esentido, mesmo por aqueles que talvez nem a conhecessem.

    Ento ele olha para o grupo reunido ali e, embora no nos conheamos, embora eu estejasentada em um lugar mais afastado, ao lado de Alice, embora eu tenha aceitado vir cerimnia a contragosto, s porque me senti mal por ter acusado Alice de ter colado a capa dodisco na porta do quarto de Meg, os olhos dele param em mim.

    Sei que muitos de ns ainda estamos tentando entender o que aconteceu. O fato de queno conhecamos Meg muito bem talvez torne o nosso fardo menos pesado, mas tambm tornamais difcil processarmos o ocorrido. Fui informado de que hoje temos uma grande amiga suaconosco, Cody, e imagino que ela tambm esteja lutando contra isso.

    Lano um olhar fulminante para Alice, porque bvio que foi ela quem me entregou, masela me encara com toda a calma.

    O sujeito l na frente continua: Cody, gostaria de convid-la a compartilhar qualquer coisa que quiser sobre Meg. Ou

    dividir conosco como est sendo para voc passar por tudo isto. No vou l para a frente sussurro para Alice, entre os dentes cerrados.Ela me fita com os olhos arregalados e inocentes. O que voc me contou me ajudou muito. Achei que pudesse ajudar outras pessoas

    tambm. E a voc mesma.Agora, todos esto olhando para mim. Minha vontade matar Alice, que est me

    empurrando para a frente. Conte para eles sobre aquela histria da biblioteca, sobre como ela ajudou o irmo dela

    a comer melhor sussurra Alice.Mas, quando chego l na frente, no saem histrias edificantes sobre bibliotecas, bandas

    de rock ou menininhos enjoados para comer.

  • Vocs querem que eu conte algo a respeito de Meg? uma pergunta retrica e minha voz puro sarcasmo, mas todos aqueles cordeiros

    inocentes assentem, me incentivando. Meg era minha melhor amiga e eu achei que ns fssemos tudo uma para a outra. Achei

    que contssemos tudo uma para a outra. Mas, no fim das contas, eu no a conhecia nem umpouco. Sinto o gosto de algo duro e metlico na boca. horrvel, mas eu o saboreio, damesma maneira que voc saboreia o prprio sangue quando tem um dente frouxo. No sabianada da vida dela aqui. No sabia das aulas dela. Dos seus colegas de repblica. No sabiaque ela havia adotado dois gatinhos doentes e cuidado deles at ficarem bons, s para deix-los sem lar depois. No sabia que ela saa noite em Seattle e tinha amigos por l, e seapaixonava por caras que a magoavam. Supostamente, eu era a melhor amiga dela, e no sabianada disso, porque ela no me contou. Ela no me contou que achava a vida um sofrimentoinsuportvel. Eu no fazia a menor ideia.

    Deixo escapar uma espcie de risada, e sei que, se no tomar cuidado, o que pode vir emseguida algo que no quero ouvir, que ningum quer ouvir.

    Como voc pode no saber uma coisa dessas sobre a sua melhor amiga? Mesmo que elano lhe conte, como voc pode no saber? Como pode acreditar que algum a pessoa maisbonita, incrvel e simplesmente a criatura mais mgica que j conheceu, quando, no fim dascontas, ela estava sofrendo tanto que precisou beber um veneno que rouba o oxignio dasclulas at o corao no ter outra escolha seno parar de bater? Ento, por favor, no meperguntem sobre Meg. Porque eu no sei merda nenhuma sobre ela.

    Algum arqueja de espanto. Eu olho para a plateia, para todos eles, salpicados de sol. Odia est lindo, cheio da promessa da primavera: cu limpo, nuvens fofas, cheiro adocicadodas primeiras flores trazido pela brisa. injusto que haja dias como este. Que a primaveraprecise chegar. Parte de mim acha que o inverno deveria continuar este ano.

    Vejo que algumas pessoas esto chorando. Eu as fiz chorar. Me tornei um veneno. Se mebeber, voc morre.

    Sinto muito digo antes de sair correndo.Deixo para trs o gramado, saindo do parque e indo em direo avenida principal.

    Preciso partir. Ir embora de Tacoma. Sair do mundo de Meg.Ouo passos atrs de mim. Deve ser Alice ou Richard Loco, mas no tenho nada para

    dizer a eles, ento continuo correndo, mas quem quer que seja mais rpido que eu.Sinto a mo de algum no ombro. Viro para trs. Desta vez, os olhos dele tm a cor do cu

    depois do pr do sol, quase violeta. Nunca tinha visto os olhos de algum mudarem de cor,como se estivessem em sintonia com o estado da alma. Se que ele tem alma.

    Olhamos um para o outro por alguns instantes, recuperando o flego. Posso lhe contar coisas. Se voc quiser. A voz dele tem aquele grunhido de antes, mas

    tambm demonstra hesitao. No quero saber dessas coisas.

  • Ele balana a cabea. No, no isso. Mas posso lhe contar algumas coisas. Se voc quiser. Sobre a vida dela

    aqui. Como voc saberia? Se ela foi s uma trepada?Ele faz um gesto com a cabea, como se quisesse dizer que este no o lugar. Vamos sair daqui e conversar. Por que voc est aqui, afinal? A colega de repblica dela me deu o panfleto diz ele, respondendo como ficou

    sabendo da cerimnia, mas no por que veio.Ficamos parados. Venha. Vamos s conversar insiste ele. Por qu? Voc sabe por que ela se matou?Ele se retrai. Como se sofresse o coice de uma arma. De novo. Como se tivesse sido

    puxado para trs. S que, desta vez, a expresso no seu rosto no de raiva. No.Andamos um bom pedao at um McDonalds. De repente, estou faminta, com fome de

    algo que no seja vegetariano, orgnico ou saudvel, mas feito em meio tristeza cotidiana.Pedimos um trio de Quarteiro e levamos a comida at uma mesa sossegada ao lado doplayground vazio.

    Comemos em silncio por algum tempo. Ento Ben comea a falar. Ele me conta dequando Meg apareceu na cena das bandas indie, logo fazendo amizade com um monte demsicos da regio, o que me soa bastante plausvel. Conta como foi fcil para ela, umauniversitria de 18 anos que veio do cu do mundo no leste de Washington, chegar e fazer todomundo comer na sua mo, o que tambm bastante plausvel. A princpio, Ben sentiu invejadela, porque, ao chegar ali dois anos atrs, de Bend, Oregon, foi bastante esnobado pelacomunidade musical antes de ser aceito. Ele conta das falsas brigas que os dois costumavamter sobre quem era o melhor baterista: Keith Moon ou John Bonham. Quem era o melhorguitarrista: Jimi Hendrix ou Ry Cooder. Quem comps as canes mais grudentas de todos ostempos: Nirvana ou Rolling Stones. Ele conta de quando Meg adotou os gatinhos, depois deouvi-los chorando numa caixa em uma caamba de lixo perto do abrigo para moradores de ruano centro de Tacoma onde ela trabalhava algumas horas por semana. Meg levou-os aoveterinrio e gastou centenas de dlares para eles recuperarem a sade. Conta como ela pediudoaes a alguns dos msicos mais bem-sucedidos da cidade para os tratamentos mais umavez, a cara de Meg e como deu a eles frmula para bebs com um conta-gotas, pois erampequenos demais para comer comida de gato. De tudo o que ele me conta, a imagem de Megdando comida a dois gatinhos rfos que me d vontade de chorar.

    Mas no choro. Por que voc est me contando tudo isso? Agora minha voz que parece um grunhido.O mao de cigarros de Ben est em cima da mesa, mas, em vez de fumar, ele fica

  • acendendo e apagando o isqueiro, a chama sussurrante aparecendo e desaparecendo. Parecia que voc precisava saber. A maneira como ele diz isso soa como uma

    acusao. Por que voc est me contando isso? repito.A chama ilumina os olhos de Ben por um instante. E consigo ver outra vez os vrios tons

    de culpa ali. A culpa de Ben, como a minha, tingida de uma fria vermelha incandescente,mais quente do que o fogo com que ele est brincando.

    Ela me contou sobre voc, sabia? diz ele. Ah, ? Ela no me contou sobre voc.Isso mentira, claro, mas no vou lhe dar a satisfao de saber que ela inclusive lhe dera

    um apelido. At porque, no fim das contas, no era ele o amargurado. Ela me contou que, numa das casas em que voc fazia faxina, um cara tentou apertar a

    sua bunda e voc deu uma chave de brao to forte que ele pediu arrego e ainda aumentou ovalor da sua hora.

    , isso aconteceu comigo com o Sr. Purdue. Um aumento de 10 dlares por semana. Esse o preo de uma apalpada indesejada na minha bunda.

    Ela chamava voc de Buffy.Mais do que a histria com o Sr. Purdue, isso que me faz ter certeza de que Meg contou

    para ele sobre mim. Buffy era como ela me chamava quando achava que eu tinha sidoespecialmente fodona, como Buffy Summers, a Caa-Vampiros. Meg dizia que era Willow, aparceira com poderes mgicos, mas estava enganada: ela era Buffy e Willow, fora e magia,tudo em um pacote s. Eu apenas pegava carona no brilho dela.

    No parece justo que ele saiba essas coisas sobre mim; como se tivesse visto fotosconstrangedoras de quando eu era beb. Como se houvesse tido acesso a detalhes aos quaisno tem direito.

    Ela lhe contou bastante coisa para uma garota que voc comeu uma vez e descartou.Ben parece magoado. Excelente ator, esse Ben McCallister. Ns ramos amigos. No acho que amigos seja a palavra certa. No insiste ele. Antes de tudo ir pro cacete, ns ramos amigos.Os e-mails. As provocaes inofensivas. A conversa sobre bandas de rock. A mudana

    repentina. Ento o que aconteceu? pergunto, embora j saiba.Mesmo assim, fico chocada quando o ouo dizer da maneira como ele diz: Ns trepamos. Vocs dormiram juntos corrijo. Porque pelo menos isso eu sei. Sei que Meg, depois do

    que aconteceu naquela outra vez, no teria transado com ningum a no ser que gostasse dapessoa. Meg no treparia com algum.

    Bem, eu trepei com ela. E, quando voc trepa com uma amiga, estraga tudo. Ele acende

  • o isqueiro e deixa a chama se apagar de novo. Eu sabia que isso iria acontecer, mas fizassim mesmo.

    Agora que ele est sendo honesto, ao mesmo tempo repulsivo e magntico, como umacidente de trnsito horrvel que voc no consegue deixar de esticar o pescoo para ver,mesmo sabendo que vai lhe dar pesa