Eu Estou Aí, Compondo o Mundo (DIAS, 1998)

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    OPINIO OPINION

    Eu? Eu estou a, compondo o mundo.Uma experincia de controle de endemia,pesquisa e participao popular vivida emCansano, Minas Gerais, Brasil

    Me? Im just here, part of the world.A field experience on endemic disease controlin Cansano, Minas Gerais, Brazil

    1 Departamento de ServioSocial, Pontifcia

    Universidade Catlicade Minas Gerais.Rua Ip Branco 467,

    Retiro das Pedras,Belo Horizonte, MG

    30140-970, Brasil.

    Rosinha Borges Dias 1

    Abstract This article reports an experience with Chagas disease control involving communityparticipation in the Jequitinhonha Valley (Minas Gerais, Brazil) implemented during the 1980s,as an action-based participant research project of Popular Education. The main objective was toinvestigate the meaning of Chagas disease from the communitys perspective, seeking alternativecontrol measures with their participation. Despite the extremely high prevalence of the disease,it was no perceived as a priority by the population, who were living in destitution and simplyfighting for their very survival. Chagas disease control was performed in an integrated manner,taking other community needs into account. The article suggests some forms of participation inthe control of endemic diseases, taking into account the peoples knowledge, in an integrated vi-sion of both their problems and their ability to mobilize behind concrete interests. Changes arealso needed in the relationship between outside agents and the community, reciprocity in the in-volvement with community, a permanent attitude of listening and solidarity, a self-diagnosis,and organization of population.Key words Consumer Participation; Community Participation; Chagas Disease; Health Edu-cation; Communicable Disesase Control

    Resumo Este artigo relata uma experincia de controle da doena de Chagas, vivida na dcadade 80 em um povoado rural do Vale do Jequitinhonha, MG, e reavaliada recentemente. Trata-sede um projeto de pesquisa-ao participativa, com aplicao na rea de educao popular emsade. Teve como objetivo conhecer, do ponto de vista dos sujeitos, o significado da doena deChagas na vida de uma comunidade endmica, procurando com eles alternativas de controle.Apesar da altssima prevalncia, a doena no chegava a ser prioridade sentida pela populao,que vivia em situao de carncias mltiplas e de luta pela sobrevivncia. O controle da doenadeu-se de forma integrada com outras necessidades. Levantam-se pistas para trabalhos de parti-cipao no controle de endemias, levando-se em conta a sabedoria popular, a viso integradados problemas e na mobilizao em torno de interesses concretos. Destacam-se como necess-rios: a mudana nas relaes entre o agente externo e a comunidade, a reciprocidade do envolvi-mento, a postura de escuta e de solidariedade, o autodiagnstico, a organizao da populao.Palavras-chave Participao Comunitria; Doena de Chagas; Educao em Sade; Controlede Doenas Transmissveis

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    Introduo

    Quando me lembro de Cansano, sempre mevem um calorzinho bom ao corao e algumaclareza mente. respeito do tema participa-o, vem a minha cabea uma expresso ouvi-da de dona Teresa, mulher de idade indefinida,

    chefe de famlia, trabalhadora de enxada, rai-zeira e aparadora de menino (parteira), quemorava em uma das grotas de Cansano, cha-mada Quilombo. Em uma das vezes em quenossa equipe l acabara de chegar de Belo Ho-rizonte, para passar trs dias com eles, encon-tramos a senhora andando pelas trilhas da ro-a e, alegres, cumprimentamo-la: E a, D. Tere-sa, tudo bem? Como vai passando? Ela nosolhou e, sorrindo com os olhos, respondeucom essa expresso to bonita: Eu? Eu, t a,compondo o mundo. E realmente estava com-pondo o mundo, participando, fazendo a suaparte para que o mundo fosse melhor ali, ondeela sempre viveu. A participao passa peladescoberta de que somos parte de um todomaior que nossa pessoa, famlia ou comunida-de; parte desse mundo de Deus, dessa imen-sa vida que circula nos seres da natureza e portodo universo. E que, por isso mesmo, devemosfazer a nossa parte para que esse mundo sejamais humano e livre do que . s vezes qua-se nada o que fazemos, mas estamos dando anossa participao.

    De 1982 a 1985, desenvolvemos um projetode pesquisa-ao, ou pesquisa participante, nalocalidade de Cabeceira do Cansano, situadano Municpio de Minas Novas, Vale do Jequiti-nhonha, MG. Tal projeto foi patrocinado peloComit de Pesquisas Econmico-Sociais emDoenas Tropicais da Organizao Mundial daSade (WHO/TDR/Ser) e pela UniversidadeCatlica de Minas Gerais (Puc/MG). O tema doprojeto foi Doena de Chagas: ConhecimentoPopular e Novas Estratgias de Controle.

    Passados dez anos do trmino do projeto,fomos convidadas pelo Setor de Educao emSade do Distrito Sanitrio de Curvelo, da Fun-dao Nacional de Sade (FNS), para visitar alocalidade novamente, avaliando as mudanasocorridas e oferecendo subsdios metodolgi-cos para o trabalho de Mobilizao Comunit-ria que o setor desenvolve em sessenta munic-pios do Estado. Para atender a essa demanda,algumas atividades foram realizadas: reuniescom educadores da FNS em Belo Horizonte,viagem e visita rea em julho de 96 , partici-pao em uma reunio do Conselho Municipalde Sade de Minas Novas. Na visita a Cansan-o, tivemos oportunidade de ter dois encon-tros com a populao em geral, fizemos algu-

    mas entrevistas informais com lideranas lo-cais, visitas s creches, reunio com o conselhoda Associao de Moradores e recebemos umfolheto por eles escrito, entitulado Cansano eo Progresso.

    O presente texto conta um pouco dessa his-tria, com destaques para as falas da popula-

    o. Faremos uma sntese do que foi o projetodesenvolvido h dez anos e a situao atual deCansano. No final, apontamos algumas li-es aprendidas sobre participao popular nocontrole das endemias.

    O que foi o trabalho h dez anos

    Os propsitos do projeto

    A experincia de pesqui sa-ao pa rticipativavivida de 82 a 85 em Cansano combinou ati-vidades de pesquisa scio-antropolgica, aoparticipativa e controle de doena endmica.O objetivo era conhecer mais profundamenteo palco clssico onde a doena de Chagasacontece, do ponto de vista dos sujeitos, pro-curando com eles alternativas de controle, bemcomo conhecer o que pensavam os moradoressobre suas condies de vida, de t rabalho, desade/doena, os problemas que enfrentavamno seu dia-a-dia, as relaes que estabeleciamentre os diversos aspectos do cotidiano e, jun-tos, procurar sadas. Algumas perguntas nosmoviam: Que significado teria a doena deChagas na vida de uma comunidade rural, on-de 71% das pessoas acima de 15 anos so posi-tivas para o Trypanosoma cruzi? Se lhes fossemdados ouvido e direito de opinar, que medidasadotariam para o controle da doena? Mais doque um produto final, com resultados prova-dos, tratou-se de um processo participado deconhecer e agir.

    Breve quadro da realidade

    Na poca do projeto, Cansano era uma loca-lidade rural dispersa, abrangendo 146 famlias,que viviam em vrias comunidades ou grotasadjacentes: Tabuleiro, Cristal, Campinho, Qui-lombo, Cabeceira, Borges e Fazenda. Alm dadoena de Chagas, apresentavam alta incidn-cia de esquistossomose, vrias parasitoses in-testinais e tambm casos de tuberculose e ou-tras doenas infecciosas, como a leishmaniose.

    Eram todos pequenos (micro) propriet-rios, produzindo basicamente milho, mandio-ca e feijo, em quantidade insuficiente para areproduo da famlia. Desde o final da dcadade 60, usavam como estratgia de sobrevivn-

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    cia a migrao sazonal dos homens para traba-lhar na usinas de lcool e acar da regio deRibeiro Preto, SP. Viviam assim uma situaoambgua: eram produtores diretos na agricul-tura durante o tempo das guas e assalariadostemporrios na indstria no tempo da seca. Ti-nham contato com uma realidade pr-moder-

    na e outra quase ps-moderna. As mulheres ti-nham um papel-chave na preservao da vidano lugar, representando o elo com a terra e suacondio de proprietrios. Contudo, esta sepa-rao era vivida com muito sofrimento.

    A localidade no contava com postos desade. Na sede do Municpio (que situa-se a 39km de distncia em estrada de terra muito pre-cria) existia um pequeno hospital. No haviatransporte coletivo, nem morador que possus-se carro. A comunicao era feita a p ou a ca-valo. A escola contava apenas com uma profes-sora, que atendia ao mesmo tempo 92 alunosdas trs primeiras sries.

    Apesar da altssima prevalncia da doenade Chagas entre os moradores, 71% entre osmaiores de 15 anos, o tratamento desta nochegava a ser sentido como prioritrio pela po-pulao. Era apenas mais um problema, que fi-cava obscurecido diante da cotidiana luta pelasobrevivncia: ter o que comer no dia seguintee aliviar as dores que os atrapalhavam de tra-balhar.

    A seguir, algumas expresses dos morado-res sobre sua condio de vida que nos toca-vam profundamente e nos punham a pensar.

    Ns vamos levando a vida assim: traba-lhando e tratando da obrigao. Planta milho,feijo, mandioca, cana, banana, arroz (...). Plan-ta tudo que fala que manso. Plantar a vida ese no cuidar de tudo isso, passa fome. Tenhofamlia grande, todos tm que trabalhar, senopassa fome.

    Nossa situao de doena e de fraqueza,mas mais de fraqueza.O termo fraqueza usa-do por eles para se referir pobreza associadaao sentimento de impotncia de lutar contraela.

    Ns tudo aqui vive da enxada, com a for-a dos braos, gastando o corpo.

    O que mata no a fome, o pensamento.Eu vou para So Paulo e fico de l, pensando namulher e nas crianas. E ela de c, preocupadacomigo l.

    Mulher bicho atolado, carregado de filho,homem andejo, despreocupado.

    A vida aqui mais apertada, mas mais li-vre. Tudo aqui ruim, s bom de amigo.

    Ah,... eu sonho tanta coisa que nem bomrepartir (...). Favorecimento pra gente (...) Quemt atolado num buraco quer sair, no ? Quero

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    vida com sade, felicidade. Quero trabalharsem sentir nada.

    Quem tem estudo mais importante do quequem no tem. Alis, quem tem estudo e um pe-dacinho de terra, tem tudo. Ns s temos a forados braos.

    O processo de trabalho

    De maneira sinttica, vamos descrever o pro-cesso metodolgico em algumas etapas, quena realidade no aconteceram de forma linear,mas de modo dinmico e muitas vezes conco-mitantes. O processo iniciou-se com a traba-lhosa e fascinante etapa de conhecer e dar-se aconhecer, atravs de visitas domiciliares a to-das as famlias, conversas informais, observa-o participante, entrevista aberta e convivn-cia com os moradores. Nossa equipe ia cida-de uma vez ao ms e se hospedava com eles. Osmoradores viram assim este comeo:

    Primeiramente elas andaram pelas casasdando explicao do trabalho e fazendo per-gun tas. Chegaram e foram tomando conheci-mento com a gente, e a gente tambm com elas.

    No comeo o povo tinha medo das pergun-tas, no sabiam (...). Muitos ficaram acismados,mas foram amansando...

    Quando elas comearam eu achei um casomuito importante. Elas vieram na minha casa.Antes a gente pensava que ns aqui era bicho domato pro pessoal da cidade, que ignora a gente.Parece que no somos da qualidade deles. Comelas foi diferente. Tratava ns tudo por igual,sem fazer pouco caso.

    A gente fica muito importante porque aspessoas que vm, dizem que vm para aprendermesmo.

    De cada famlia, foi preenchido um formu-lrio com os dados usuais: idade, parentesco,ocupao, educao, caractersticas da habita-o, produo, e mais a opinio deles sobre adoena de Chagas, o barbeiro (chupo) e osprincipais problemas do lugar. Foram feitosexames de fezes e de sangue e consulta mdicaaos que assim quiseram.

    A etapa seguinte foi de sistematizao e de-voluo destes dados para os moradores. Foidesencadeado um processo de reflexo sobreos principais problemas apontados nas entre-vistas e suas causas. Discutiram as prioridades,levando em considerao a gravidade e urgn-cia dos problemas diante do pequeno alcancedo projeto. Apontaram alternativas sobre o quefazer para enfrentar aquela situao. Houveoportunidade concreta de escolha e tomada dedeciso coletiva sobre as aes que foram im-plementadas ali, com a co-gesto deles, duran-

    te mais de dois anos do projeto.

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    Aqui cabe um e sclarecimento : quando f oifeito o pedido de financiamento do projeto depesquisa-ao OMS (TDR/Ser), foi destinadauma quantia (cerca de dois mil dlares) paraum pequeno programa comunitrio de contro-le da doena de Chagas. Deu-se comunidade aoportunidade de opinar, decidir em assemblia

    e encaminhar o gasto deste recurso (Dias, 1986).Como na viso deles a doena de Chagas

    no est desvinculada das condies gerais devida, as aes do programa comunitrio gira-ram em torno de trs eixos principais: sade,melhoria na produo de alimentos e cidada-nia. As principais demandas de sade foram:ter acesso assistncia mdica (visita do mdi-co uma vez ao ms), exames de sangue, fezes,remdios, filtros domsticos, melhoria de ha-bitao e treinamento de agentes populares desade. As demandas de melhoria da produode alimentos foram sementes de milho, feijo,hortalias, arado com junta de bois, manguei-ras para gua. As outras demandas referiam-seao registro civil, materiais de construo de umsalo comunitrio, cursos de alfabetizao deadultos, costura e bordado. Aos poucos, foiacontecendo uma outra organizao da comu-nidade: primeiro em um conselho de represen-tantes de cada grota, mais tarde, em uma asso-ciao de moradores.

    Podemos notar que as atividades do pro-grama comunitrio tiveram alguma lgica, po-dendo ser organizadas em trs grupos de natu-rezas diferentes: remediando situaes (assis-tncia mdica etc.), lutando pelas mudanas(melhoria na produo de alimentos, nas mo-radias) e despertando a conscincia/cidadania(cursos, treinamentos/criao de conselho derepresentantes, registro civil).

    Eu nunca tinha ouvido falar de reunio.Imagina, uma mulher velha como eu, aindano sabia de reunio.

    Antes a gente passava at um ano sem verningum, cada um na sua roa. Dia de domin-go a gente tava com o corpo quebrado. Ns noconhecia este negcio de reunio.

    Falava doena de Chagas e eu no com-preendia o que era, no sabia o qu. Escutava eficava sem saber. Sabia q ue o chupo ofendia,mas pensava que era igual formiga, mordia eno fazia nada. Era mal passageiro. No pensa-va que o chupo ofendia pra fazer doena. Ti-nha doena e no sabia por qu.

    Tudo muito interessante e se todo mundoacompanhar vai ficar bonito. Porque esse traba-lho est sendo uma escola a pessoa compreen-de mais um tiquinho. Agora a gente j sabe fa-zer reunio. Por exemplo: se cada um vai venderseu produto na cidade, cada um pega um preo

    muito menor. Mas, se tem unio, todo mundorene para vender e faz o mesmo preo. Porqueo comerciante compra por pouco o que ns pro-duz e vende por muito. O conhecimento e a es-perteza veio do trabalho delas. um tipo de es-cola pra quem estuda e pra quem no estuda.Pra quem l e pra quem num l. um outro tipo

    de lugar.O objeto de nossa ateno era o conheci-

    mento que havia ali e o desenrolar da aes.Era o que coisas aconteciam e o como. A po-pulao no era objeto de nossas aes, masinflua constantemente nas decises. Essa me-todologia exigiu muito tempo e dedicao daequipe; mais que isso, exigiu uma certa cur-tio e admirao por aquelas pessoas. Tevecomo pressupostos: compromisso, respeito eenvolvimento com a populao, postura muitodiferente do tradicional distanciamento dospesquisadores e tcnicos. Havia uma decisointerior de busca de aproximao, interesse ebem-querer para com aquelas pessoas.

    Fragmentos de dirios de campo da nossaequipe de trabalho:

    Fui fazer uma entrevista numa casa em quemorava uma mulher muito nova e uma crian-cinha de colo. Quase no falou. Fiquei chocadacom tanta pobreza, parecia uma pessoa aliena-da, fora do mundo. No sabia seu nome com-pleto, a sua idade. Seu marido estava em SoPaulo e no tinha notcias dele. O fogo estavaapagado, a prateleira vazia, a casa seca sem na-da. No tinha vida, no tinha gua, no tinhanada. S o filho e a casa. Sem nenhuma pers-pectiva, sem nenhum ponto de apoio. Era ela eeu, uma estranha lhe fazendo perguntas queno sabia responder, entrando em sua casa,ni-ca coisa que tinha, querendo saber tudo, coisasque talvez nunca tivesse pensado, ou com que sepreocupado, pois a vida dela o dia de hoje. Oamanh,a gente dali no sabe se pode ver, se vaiter o que comer. Como se sobrevive, eu no sei.Disse-me que quando sai para trabalhar na ro-a ali por perto, que a nica forma de se ga-nhar algum dinheiro, deixa a criana com osoutros. Fiquei pensando: o que ser o futurodesta criana, ser a mesma vida de sua me?No sei.

    Parece que eu tenho um sentimento de nu-dez diante de uma realidade to difcil. Mas to-do cansao e alguma renncia que venho tendode fazer neste trabalho, vale a pena quando eupenso na fisionomia das pessoas.

    Nem sei direito o que est acontecendo co-migo, a partir deste trabalho em Cansano. Ssei que estou mudando por dentro. Estou mu-dando meus pontos de referncia, minha ma-neira de ver o mundo. L, com eles, descobri

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    meus limites, os limites de meu saber, os limitesdo saber de minha cincia. Por outro lado, porincrvel que parea, no contato e na convivnciacom estas pessoas to simples e to sofridas, es-tou redescobrindo a alegria de viver. Estou dan-do e recebendo alento, nimo, coragem. A pai-xo. Haver coisa mais importante na vida?

    Os resultados deste tipo de processo vividoso muito difceis de ser avaliados e comprova-dos. Entretanto, a observao do que aconte-ceu ali aponta algumas mudanas na vida dacomunidade. Na base motivadora destas, esto tipo de relaes entre a equipe e a populao.

    A atit ude de intere sse, a valo rizao do saberpopular, a qualidade da ateno, o relaciona-mento igualitrio e principalmente o compro-misso da equipe produziram entre os morado-res um sentimento de autovalorizao e con-fiana que impulsionam ao e organiza-o. O sentimento de impotncia diante dosproblemas deu lugar a uma postura ativa, vontade de mudar e reivindicao junto aospoderes pblicos por servios essenciais. Paraacontecer a transformao de uma posturapassiva para uma postura ativa, entre as condi-es necessrias esto o despertar da auto-es-tima e o reconhecimento da prpria dignidade.

    Em meio a esta dinmica vivencial, o con-trole da doena de Chagas foi se dando. Con-triburam para isso o processo educativo, a me-lhoria das casas e a erradicao dos triatom-neos, esta sendo fruto dos desmatamentos e daborrifao de inseticidas pela Sucam/FNS.

    Dez anos depois

    Em julho de 1996 , voltamos a Cansano. Foiuma festa nos dois lados: dos moradores e nos-so. Apesar de ter sido uma passagem rpida,permitiu-nos observar muitas mudanas: pre-sena de casas novas e adensamento do povoa-do principal, que conta com energia eltrica egua encanada; escola com mais de trezentascrianas matriculadas em classes de primeira asexta sries, contando com 15 professoras, ins-talada em prdio em condies precrias; cria-o de duas creches e vrias melhorias (enge-nho comunitrio, gua etc.) com o apoio da

    Ampliar (entidade f ilantrpica de desenvolvi-mento social ligada ao Fundo Cristo paraCrianas); associao de moradores organiza-da e bem atuante; aumento de casas de comr-cio local (vendas); algumas antenas parabli-cas e televiso; limpeza e cuidado com as ca-sas; moradores locais que se destacam e/ousaem da cidade (vereador, presidente da Am-pliar, novia, seminarista, etc.); as cr ianas em

    geral parecem mais sadas, ativas e bem-nutri-das; a migrao sazonal para So Paulo conti-nua, agora tambm por parte de algumas mu-lheres. Segundo informaes da Fundao Na-cional de Sade, a transmisso da doena deChagas na rea est praticamente interrompi-da, no se registrando mais triatomneos intra-

    domiciliares e infeco de crianas abaixo de14 anos de idade.

    Entretanto, observamos algumas carnciasque ainda esto sem ser resolvidas ou encami-nhadas. A primeira continua sendo o anseio dapopulao por algum tipo de servio de aten-o bsica de sade na localidade, o sonho deter um posto de sade, com agente popular ca-pacitado para ao preventiva, primeiros so-corros, atendimentos simples e triagem de en-caminhamentos. H tambm o sonho de umapequena farmcia comunitria e da visita demdicos. (Por que ser que este anseio no foiresolvido? Ser muito difcil um encaminha-mento atravs do SUS? O SUS ainda tem futu-ro?) Outra carncia era a gua para as comuni-dades. Pudemos constatar que algumas j con-seguiram realizar este anseio, por meio de umaao da Ampliar, mas falta chegar s comuni-dades mais distantes do povoado central. Hum poo artesiano furado pela prefeitura comapoio da Rural Minas, mas falta fazer as liga-es para as casas. Paralelamente, devido s al-tas taxas de parasitoses, especialmente da es-quistossomose, est planejada uma parceriaentre a prefeitura e a Fundao Nacional deSade na instalao de kitsde saneamento b-sico.

    Permanecem alguns questionamentos. Porque ser que Cansano apresentou aumentode nmero de moradias novas, enquanto emoutras zonas rurais da regio houve esvazia-mento? Uma razo pode ser a tendncia de po-voamentos rarefeitos e dispersos tornarem-semais adensados para facilitar a chegada de ser-vios essenciais como gua, saneamento, esco-la, posto de sade, energia eltrica, telefoniaetc. Por outro lado, a migrao sazonal parecerter dado condies a alguns moradores de per-manecerem na roa e fazerem casas novas.

    Como estaria Cansano no contexto maiordo Municpio e do Vale do Jequitinhonha? Se-gundo os depoimentos dos membros do Con-selho Municipal de Sade de Minas Novas, a si-tuao de sade-doena na cidade ainda muito precria, apesar de o atendimento m-dico ter melhorado com a abertura da policl-nica na cidade. A alimentao fraquinha de-mais, a falta de condies de higiene, a falta degua (que s vezes obtida a trs lguas de dis-tncia), a falta de instruo sobre o uso de sa-

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    nitrios, as parasitoses intestinais, so algunsdos problemas apontados pelos conselheiros.Disseram tambm que a assistncia aos postosde sade da zona rural ainda difcil (faltamatendentes, locais adequados, profissionais ca-pacitados e dispostos a dar assistncia l etc.).A universidade no forma para o trabalho no

    interior, quando a prefeitura consegue profissio-nais, no esto preparados para enfrentar o quevo encontrar ali. Entretanto, o grande proble-ma de sade no Municpio o mesmo em nvelnacional: falta de recursos financeiros. Contra-riamente ao setor educao, que apresentoutantas melhorias, o setor sade no se desen-volveu como era preciso.

    No entanto, hoje podemos notar, como elesmesmos disseram, a disposio de um povoconsciente de seus direitos e deveres de cida-dos, que luta sem cessar para que Cansanocontinue progredindo cada vez mais.

    Certamente, muitos aspectos importantespassaram despercebidos, no so notados nu-ma visita assim to rpida. Mas, sem dvida,houve uma grande melhoria em Cansano, aqual se deve principalmente unio e organi-zao dos moradores, ao trabalho da Ampliar,e ao apoio da prefeitura, principalmente naquesto da escola. As pessoas da comunidadefalavam que tudo comeou com o nosso proje-to. Nessa visita houve uma recepo calorosa echeia de alegria da comunidade nossa equi-pe, revelando uma imagem muito positiva e re-conhecida pelo trabalho realizado ali. Essaquesto nos intrigou: quais as razes que leva-ram nosso projeto a ter aceitao e reconheci-mento da comunidade? Podemos enumerar al-guns motivos: termos chegado primeiro e trabalhado pormais de trs anos sem descontinuidade emuma comunidade que nunca tinha recebidoateno social de qualquer outra instituio(comunidade virgem); termos chegado de modo diferente do quenormalmente se chega: ouvindo e prestandoateno, visitando todas as casas, levando a s-rio o que se ouvia, valorizando a sabedoria po-pular, deixando-se contaminar pela alegria na-tural do povo do lugar; o carter de pesquisa que leva sistemati-zao e reflexo sobre a realidade e o pensardas pessoas, que no fica s no ativismo; a liberdade tpica de projeto exploratrio,sem instituio por trs com algum tipo de nor-matizao e controle sobre o que estava ocor-rendo ali; a continuidade da ao participativa comu-nitria, aps o desligamento do projeto, feitapela Ampliar.

    Finalmente, nada disso teria ocorrido se, htreze anos, quando se iniciou o processo, nohouvesse ocorrido a acolhida generosa da co-munidade, to fraca em recursos materiais eto rica em potencialidades e valores huma-nos.

    Pistas para trabalhos de participaopopular

    No correr da vida, tivemos muitas oportunida-des de desenvolver trabalhos comunitrios.Dessas experincias em seus erros e acertos, edo testemunho de homens e mulheres que nosmarcaram com suas utopias e lucidez, pude-mos aprender alguma coisa. No so certezas everdades prontas, mas algumas luzes e pistasque nos ajudam a caminhar na construo deum mundo mais humano e justo, que o senti-do subjacente de qualquer trabalho participa-tivo.

    O modo de ver a vida das populaes ruraise a ao de controle das endemias

    A primeira atitude do educador ao chegar auma comunidade de escuta e consideraocom a cultura local. Deve-se ter ateno e re-conhecimento do saber prprio da populao,construdo com base em suas vivncias e expe-rincias diretas, saber que serve como pontode identificao do grupo, de interpretao erepresentao do mundo a sua volta e veicula-o de informaes necessrias sobrevivn-cia. As pessoas simples geralmente esto maisatentas ao orador que ao discurso, pois sua cul-tura est baseada na prtica da vida e no nomundo das idias e dos livros.

    Em conseqncia desta maneira de ver omundo, podem-se observar pelo menos trsaspectos que interessam quando se pensa emmobilizao comunitria para o controle dasendemias: vida colada no aqui e agora, visointegrada dos problemas e mobilizao em tor-no de interesses concretos.

    A vida colada no aqui e agora uma carac-terstica do saber de pessoas que vivem no li-mite da sobrevivncia. Esta maneira de viver mais uma imposio da pobreza ou da fraque-za do que uma opo. No se trata de por quou para qu preocupar-se com o futuro, masde como. Como permitir-se preocupar-se comum depois do amanh, antes de suprir, mesmoprecariamente, o hoje e o amanh?

    A vida cotidiana passa a ser assim como odia que amanhece e anoitece, como se vivesseacompanhando a natureza. H uma viso mui-

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    to localizada dos problemas da vida e de suascausas. O olhar no alcana muito longe. Nestaespcie de tica do tempo presente sentemmuitas vezes um certo embaraamento queno sabem explicar, sentem-se atados ou noescuro. Muitas vezes, isso interpretado pelosque chegam de fora como ignorncia ou aco-

    modao do povo da roa, mas na verdade no. Esta viso que no salta para alm da pr-pria sombra, no poderia marcar tambm aconscincia dos limites sociais que sabe do pos-svel da vida na vida possvel? Sabendo-se que apretenso impossvel uma das fontes primor-diais de infelicidade, isto no seria sabedoria?(Pedro Demo, Braslia, comunicao pessoal).

    Viver no aqui e agora permite a alegria do ins-tante presente.

    Com relao ao controle das endemias, issoprecisa ser levado em conta. Este viver dia-a-dia dificulta a percepo de projetos a longoprazo, ou de fenmenos que tm seus efeitos ob-servados a grande distncia de tempo e de suascausas (Emma Rubn, Piura, Peru, comunica-o pessoal). Este o caso da doena de Cha-gas, que muitas vezes manifesta sua gravidadevinte anos depois da picada do triatomneo.

    As escolhas que a comunidade fez para seuprograma de controle da doena de Chagas re-velam uma viso integrada dos problemas.

    Aes de controle das endemias se entrelaa-ram com ateno primria sade e com aesde desenvolvimento social, econmico, educa-tivo e de cidadania. Tambm a expresso: Aquitem a fraqueza e a doena. Mas mais a fraque-za, ao entender a fraqueza como sinnimo depobreza mais o sentimento de impotncia, re-vela o modo de pensar a doena misturada problemtica da vida, raciocnio de totalidade.Isso pode ser uma indicao da importncia daintegrao dessas aes, em nvel de munic-pio, e revela a necessidade de parcerias entreentidades governamentais e no governamen-tais. A municipalizao dos servios de sade uma sada para o controle da doena de Cha-gas, principalmente na fase de vigilncia epi-demiolgica.

    Esta viso integrada dos problemas estcorreta, mas infelizmente a lgica do sistemapassa pela especializao e pela diversificaodos servios. Sabemos que a sade e a doena,principalmente quando se trata das endemias,no so problemas isolados e individuais, socoletivos. Dependem de como um grupo depessoas vive, como trabalha, o que come, quan-to ganha, como mora. Dependem tanto doquanto esto vulnerveis e expostos aos veto-res, como das caractersticas biolgicas de seucorpo e dos servios de sade de que dispem.

    A mobilizao em torno de interesses con-cretos, outra caracterstica do saber popular,vem do senso de realidade e de concretude queo povo vive, refletindo a vida que leva. natu-ral que no se mobilize em torno de idias, deinformaes novas ou da tradicional educaosanitria. No caso do controle das endemias,

    devem-se criar oportunidades para a popula-o fazer experincias, ver e manusear instru-mentos, para entender no concreto o ciclo devida dos vetores e da doena.

    A doena de Chagas, para os moradores deCansano um problema entre tantos quetm que enfrentar no seu dia-a-dia. Diante doimediatismo em que vivem, da situao emer-gencial de sobrevivncia no dia seguinte, essadoena no se constitui como o mais grave, ur-gente e importante problema. apenas maisum, faz parte de um quadro mais amplo. Mascomo um problema particular pode ser o cami-nho para o mais geral, a doena de Chagas po-de ser o ponto de partida para uma ao maisampla, se for encarada justamente dentro des-te quadro maior, dentro da realidade do povo,integrada nela.

    O longo processo de empobrecimento rou-ba do povo trs coisas. Primeiro os seus bens,depois os direitos de participao na socieda-de e, por ltimo, rouba sua conscincia. co-mo se a conscincia fi casse grudada, encolhi-da. Quando chegam pessoas de fora que acre-ditam, confiam nele, identificando-se, a cons-cincia parece renascer. O processo de recupe-rao se d ao contrrio, primeiro se d o des-pertar da auto-estima e da conscincia, queanima a participao na luta por melhorescondies de vida.

    Para ser coerente com a cultura popular,bem como com a complexidade e as interliga-es das carncias e potencialidades do povo,o controle das doenas endmicas deve passarpor trs vias ao mesmo tempo:

    1) Remediando a situao encontrada: tra-tando os doentes, encaminhando para a apo-sentadoria quem no tem condies de traba-lhar, aplicando inseticidas nos focos de vetoresetc. Para isso, necessria a integrao em n-vel local (municpio) dos servios de atenomdica, saneamento, controle de endemias,educao escolar. Experincias assim j vmocorrendo em alguns municpios que tm umaadministrao popular, atenta ao social.

    2) Despertando as pessoas para a impor-tncia que cada um tem, para o reconhecimen-to da prpria dignidade. Esse despertar no sed pelo discurso, mas pela qualidade da aten-o que se lhes dispensa, do relacionamentoigualitrio, da reflexo conjunta sobre a reali-

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    dade em que vivem, da oportunidade de co-gesto do programa, projetando utopias. Hassim o despertar da conscincia que estavaencolhida. esse estmulo pessoal, essa msti-ca que fazem caminhar, no a cincia. A edu-cao popular um instrumento para tal.

    3) Atacando as causas: animando a organi-

    zao do povo na luta por melhores condiesde vida, aumento na produo agrcola, acessoa empregos, melhoria nas casas, direito terraetc. Isso se d pela organizao da comunida-de em conselhos, associaes, fruns, partici-pao poltica...

    Alguns aspectos importantesdo processo de participao popular

    A part ir de nossa experin cia em Cans ano,pudemos observar que o processo de investi-gao com a participao popular contm emsi elementos didticos. confronto e comuni-cao entre sujeitos diferentes, processo rec-proco de educao. Pode representar um espa-o para o povo reconhecer a prpria realidade,refletir coletivamente e, principalmente, parabuscar alternativas de vida, dentro da realida-de. Para o agente externo (pesquisador, educa-dor ou tcnico) pode representar uma oportu-nidade para crescer, mudar suas perspectivas epontos de referncia, em confronto com o dife-rente, se for aberto o suficiente para isso.

    Envolvimento, compromisso, solidariedadeso mais teis e adequados que a postura dedistanciamento, neutralidade e rigidez meto-dolgica. No se trata de inferncias generali-zadoras e relaes lineares de causa/efeito.Mas de captar uma realidade aberta, incerta,relativa a tantos fatores, atenta leitura e inter-pretao que os sujeitos fazem. Podem irrom-per repentinamente fenmenos imprevistos eincontrolveis que devem ser observados, re-gistrados, acompanhados.

    Envolvimento comunitrio, estratgia detantos programas governamentais de controlede endemias, pode ser entendido de duas ma-neiras diferentes. Geralmente uma simplesttica para levar a comunidade a fazer o que ostcnicos de fora acham importante. Envolvi-mento e participao seriam confundidos comdoutrinao ou como maneira de usar o povopara dar mais eficincia aos programas, ou pa-ra baratear seus custos. Levam muitas vezes aoraciocnio errneo de que a auto-ajuda e a par-ticipao resolvem tudo, que os problemas lo-cais so locais no s na sua expresso, mastambm nas suas origens. Por outro lado, o en-volvimento comunitrio s pode ser eticamen-

    te aceito se for entendido como direito de cida-dania, como participao popular nas decisesdas polticas pblicas, nas gestes dos progra-mas, como controle social. Envolvimento en-tendido tambm como envolver e ser envolvi-do, como processo mtuo de educao, com-promisso e solidariedade.

    Para desencadear o processo de participa-o popular, a atitude de escuta f undamen-tal, como j foi dito. Escuta entendida comoateno concentrada e respeitosa que despertaa auto-estima. Mais do que ouvir, preciso es-cutar com um terceiro ouvido, escutar tam-bm o subjacente fala.

    ... o senhor me escute, me escute mais doque estou dizendo; e me escute desarmado. Mui-ta coisa importante falta nome.(Rosa, 1970:86).

    No basta a aplicao de um bom questio-nrio para se conhecer uma realidade, ele pou-co ajuda na compreenso da vida que se levaali. A capacidade de observar exige aprendiza-gem e exerccio, exige sensibilidade, capacida-de de se incorporar sem chamar a ateno.

    Um programa democrtico de controle deendemias aquele que ouve cuidadosamente apopulao, informa corretamente, consultaativamente, abre oportunidades de decisesconjuntas e no somente fica devolvendo aopovo os seus prprios problemas.

    O diagnstico s funciona se for assumidocomo autodiagnstico. A participao dos mo-radores no levantamento de dados impres-cindvel, mesmo correndo o risco de que estesdados no sejam to cientficos ou confiveis.

    O processo participativo consiste em fazercom que o povo comece a se reunir e se encon-trar, para descobrir e discutir os seus proble-mas de vida e para encontrar uma soluo:problemas concretos, solues bem concretas.

    importante que a comunidade (por inter-mdio de suas lideranas, associao de mora-dores, escola etc.) tenha em mos tudo que dis-ser respeito sua realidade ou ao trabalho alidesenvolvido (dados colhidos, diagnstico sa-nitrio, relatrios, anlises, projetos etc.).

    Alguns critrios so necessrios na hora deselecionar os futuros educadores ou agentespopulares de sade para o trabalho participati-vo com comunidades carentes. Deve ser umapessoa: com sensibilidade e capacidade de solidari-zar-se e no seguir sendo igual; no muito cheia de si, mas voltada para osoutros, entusiasmada com o que faz; com capacidade de aprender com aquelarealidade, de fazer perguntas e estabelecer re-laes, no considerando as situaes como jconhecidas a priori;

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    que preste ateno em detalhes significati-vos que envolvem sutilezas e emoo dos par-ticipantes; que tenha capacidade de trabalhar em equi-pe, disponibilidade e compromisso; que exera um papel de animao da comu-nidade, no de direo ou coordenao.

    Por fim, uma regra de D. Werner: neces-srio que a pessoa se identifique com os peque-nos, que seja uma pessoa sincera, com forte sen-timento de justia social, que trate os outros co-mo iguais e se preocupe com os mais necessita-dos ( Werner, 1980:13). Tudo isso pode parecermuito ingnuo ou bvio. So qualidades huma-nas ideais, difceis de ser encontradas na mes-ma pessoa. Entretanto, o que se busca. Para otrabalho comunitrio, estas qualidades valemmais que as tcnicas.

    Estamos vivendo tempos de perplexidadese mudanas, s portas de um novo milnio. Asolidariedade ativa ainda um caminho de sen-tido para a vida, como tantos comits da Ao

    Referncias

    DIAS, R. B., 1986. Controle da Doena de Chagas emCansano, MG, Brasil: Pesquisa e Ao Comu-nitria. Belo Horizonte: Relatrio ao TDR (UNDP/WB/OMS). (mimeo.)

    ROSA, J. G., 1970. Grande Serto: Veredas. Rio de Ja-neiro: Livraria Jos Olympio.

    WER NER, D., 1980. The vil lage health care pro-gramme: community suportive or communityoppressive? Contact, 57:1-16.

    da Cidadania inspirada por Betinho provaramser. Solidariedade e participao popular estode mos dadas, pois no se pode erradicar a po-breza sem o pobre. por isso que acreditamosnos resultados e no valor do trabalho de educa-dores que chegam de fora de braos e coraesabertos. Educadores que tm uma postura de

    profundo respeito para com as pessoas da co-munidade, solidarizam-se com elas e do umempurrozinho para que se organizem commais entusiasmo a fim de construir um dia-a-dia mais feliz para o povo do lugar. importan-te a crena no trabalho, o que cria oportunida-des para o povo experimentar novas relaes,descobrir a prpria dignidade, enfim, levantaras vistas. Isso tem acontecido por a, em mui-tos lugares, com pessoas que acreditam e gos-tam de trabalhar junto com o povo.

    Quem dera cada um de ns pudesse res-ponder, quando pergu ntado, como D. Terezarespondeu:

    Eu? Eu estou a, compondo o mundo.