Eu não vou me adaptar

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EU NÃO VOU ME ADAPTAR Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS Eu não caibo mais nas roupas que eu cabia/ Eu não encho mais a casa de alegria, Os anos se passaram enquanto eu dormia / E quem eu queria bem me esquecia... Será que eu falei o que ninguém ouvia? / Será que eu escutei o que ninguém dizia? Eu não vou me adaptar... Me adaptar... Me adaptar... Eu não tenho mais a cara que eu tinha / No espelho essa cara não é minha, Mas é que quando eu me toquei achei estranho / A minha barba estava desse tamanho. (Titãs, letra e música de Arnaldo Antunes) Esta canção, composta por Arnaldo Antunes e interpretada pelo grupo musical Titãs, deixa transparecer um mal estar indefinido, nebuloso. O personagem anônimo da canção faz supor a ideia de um descompasso entre a evolução sociocultural e o crescimento pessoal. Um desencontro que deixa feridas abertas e profundas. Aquele que era o “brinquedo animado” da família enquanto criança torna-se, na passagem para a juventude, um verdadeiro “problema”. Eu não encho mais a casa de alegria!... A música é um grito! Um grito de quem se sente um estranho, tanto diante da sociedade em seu ritmo alucinado, quando no interior da própria casa. Clamor sem nome e sem remédio que brota atualmente do clima de não poucas famílias, em especial nos porões e periferias das grandes metrópoles. Gritos de uma rebeldia insuspeitada, com destaque para a situação dos jovens e adolescentes. Uma estranheza pungente e dolorida, descoberta frente a si mesmo. No espelho eu não tenho a cara que eu tinha, essa cara não é minha!... Consciente ou inconscientemente, o compositor alerta para um progresso díspar, tão marcante na trajetória histórica brasileira. Por um lado, crescem vertiginosamente a produção, o comércio e o consumo. Torna-se mais fácil o acesso a uma série de bens, os quais costumam ser adquiridos com a mesma velocidade com que, em seguida, são banalizados e banidos. Multiplicam-se os itens do lixo com utensílios descartados antes mesmo de ser utilizados, ou até desembalados. Não faltam coisas, mas estas escondem uma espécie de existência sem-sentido. Por outro lado, esse progresso técnico, por uma parte, e o crescimento físico do indivíduo, por outra, encontram-se em profunda disparidade com um amadurecimento afetivo e emocional, psíquico e espiritual. Subitamente, eu não caibo mais nas roupas que eu cabia... Enquanto mundo ao redor caminha a passos largos, geometricamente, a maturidade individual parece avançar de forma lenta, aritmeticamente. Ambas as esferas seguem órbitas diferentes e paralelas. Criam-se linguagens desconectadas, uma de costas para a outra. Rompe-se a possibilidade de qualquer diálogo. Essa sensação de “estrangeiro no próprio país, falta de cidadania ou de órfão em sua casa”, que vem à tona em forma de melodia-protesto, na maior parte das vezes permanece silenciosa ou silenciada. Grito estrangulado, engolido a seco ou com as lágrimas amargas do abandono, da solidão e da impotência. E acaba gerando sintomas

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. O personagem anônimo da canção faz supor a ideia de um descompasso entre a evolução sociocultural e o crescimento pessoal. Um desencontro que deixa feridas abertas e profundas. Aquele que era o “brinquedo animado” da família enquanto criança torna-se, na passagem para a juventude, um verdadeiro “problema”. Eu não encho mais a casa de alegria!...

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Page 1: Eu não vou me adaptar

EU NÃO VOU ME ADAPTAR

Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS

“Eu não caibo mais nas roupas que eu cabia/ Eu não encho mais a casa de alegria,

Os anos se passaram enquanto eu dormia / E quem eu queria bem me esquecia...

Será que eu falei o que ninguém ouvia? / Será que eu escutei o que ninguém dizia?

Eu não vou me adaptar... Me adaptar... Me adaptar...

Eu não tenho mais a cara que eu tinha / No espelho essa cara não é minha,

Mas é que quando eu me toquei achei estranho / A minha barba estava desse tamanho”.

(Titãs, letra e música de Arnaldo Antunes)

Esta canção, composta por Arnaldo Antunes e interpretada pelo grupo musical Titãs,

deixa transparecer um mal estar indefinido, nebuloso. O personagem anônimo da

canção faz supor a ideia de um descompasso entre a evolução sociocultural e o

crescimento pessoal. Um desencontro que deixa feridas abertas e profundas. Aquele que

era o “brinquedo animado” da família enquanto criança torna-se, na passagem para a

juventude, um verdadeiro “problema”. Eu não encho mais a casa de alegria!...

A música é um grito! Um grito de quem se sente um estranho, tanto diante da sociedade

em seu ritmo alucinado, quando no interior da própria casa. Clamor sem nome e sem

remédio que brota atualmente do clima de não poucas famílias, em especial nos porões

e periferias das grandes metrópoles. Gritos de uma rebeldia insuspeitada, com destaque

para a situação dos jovens e adolescentes. Uma estranheza pungente e dolorida,

descoberta frente a si mesmo. No espelho eu não tenho a cara que eu tinha, essa cara

não é minha!...

Consciente ou inconscientemente, o compositor alerta para um progresso díspar, tão

marcante na trajetória histórica brasileira. Por um lado, crescem vertiginosamente a

produção, o comércio e o consumo. Torna-se mais fácil o acesso a uma série de bens, os

quais costumam ser adquiridos com a mesma velocidade com que, em seguida, são

banalizados e banidos. Multiplicam-se os itens do lixo com utensílios descartados antes

mesmo de ser utilizados, ou até desembalados. Não faltam coisas, mas estas escondem

uma espécie de existência sem-sentido.

Por outro lado, esse progresso técnico, por uma parte, e o crescimento físico do

indivíduo, por outra, encontram-se em profunda disparidade com um amadurecimento

afetivo e emocional, psíquico e espiritual. Subitamente, eu não caibo mais nas roupas

que eu cabia... Enquanto mundo ao redor caminha a passos largos, geometricamente, a

maturidade individual parece avançar de forma lenta, aritmeticamente. Ambas as esferas

seguem órbitas diferentes e paralelas. Criam-se linguagens desconectadas, uma de

costas para a outra. Rompe-se a possibilidade de qualquer diálogo.

Essa sensação de “estrangeiro no próprio país, falta de cidadania ou de órfão em sua

casa”, que vem à tona em forma de melodia-protesto, na maior parte das vezes

permanece silenciosa ou silenciada. Grito estrangulado, engolido a seco ou com as

lágrimas amargas do abandono, da solidão e da impotência. E acaba gerando sintomas

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de uma enfermidade generalizada, um novo “mal estar da civilização” para ater-se à

expressão de Freud.

Os resultados costumam ser altamente nefastos e irreversíveis. Diante do descaso da

saúde pública e da sociedade como um todo, os jovens em geral buscam alternativas no

álcool e no cigarro, no crack ou em outras drogas, no sexo fácil ou na violência gratuita.

Gemidos isolados de vozes mutiladas, que dizem o que ninguém ouve e escutam o que

ninguém diz!...

Disso resulta a dificuldade de adaptar-se, refrão da música. Como se os anos tivessem

passado, enquanto eu dormia!... Uma avalanche de coisas, fatos, relações e novidades,

em ondas cada vez mais numerosas e poderosos, atropela o ritmo dos pés, do coração e

da alma humana. De repente, sentimo-nos como tartarugas, ultrapassadas pelas passadas

quilométricas de um gigante chamado Tempo. Impossível mastigar, engolir, digerir e

ruminar tudo o que se vê e se ouve, ou tudo o que ocorre em volta. Mais fácil,

infinitamente mais fácil, buscar um analgésico... Coisa que não falta nas farmácias de

cada esquina!