Eu Te Vejo - Trilogia Dei Sensi - Livro 01 - Irene Cao

download Eu Te Vejo - Trilogia Dei Sensi - Livro 01 - Irene Cao

of 592

Transcript of Eu Te Vejo - Trilogia Dei Sensi - Livro 01 - Irene Cao

  • www.princexml.comPrince - Personal EditionThis document was created with Prince, a great way of getting web content onto paper.

  • Copyright 2013 RCS Libri S.p.A., Milano

    Todos os direitos desta edio reservados EDITORA OBJETIVA LTDA.Rua Cosme Velho, 103Rio de Janeiro RJ CEP: 22241-090Tel.: (21) 2199-7824 Fax: (21) 2199-7825www.objetiva.com.br

    Ttulo originalIo ti guardo

    CapaMarcela Perroni sobre original de FrancescaLeoneschi

    Imagens de capaUmberto Nicoletti

    RevisoLilia ZanettiCristiane Pacanowski

    Coordenao de e-bookMarcelo Xavier

    Converso para e-bookAbreus System Ltda.

  • CIP-BRASIL. CATALOGAO NA PUBLICAOSINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DELIVROS, RJ

    C86eCao, Irene

    Eu te vejo [recurso eletrnico] / Irene Cao;traduo Aline Leal. 1. ed. Rio de Janeiro: Ob-jetiva, 2014.

    recurso digital

    Traduo de: Io ti guardoFormato: ePubRequisitos do sistema: Adobe Digital EditionsModo de acesso: World Wide Web215p. ISBN 978-85-8105-177-2 (re-curso eletrnico)

    1. Romance italiano. 2. Livros eletrnicos. I.Leal, Aline. II. Ttulo.

    13-05629 CDD: 853CDU: 821.131.3-3

    5/592

  • Sumrio

    CapaFolha de RostoCrditosDedicatria123456789

  • 101112131415161718Agradecimento

    7/592

  • Para Manuel, meu irmo

  • 1O amarelo absorve a luz do sol, muda para olaranja e, ento, desaparece num vermelhovivo. Um corte, quase uma ferida, deixa en-trever pequenos gros de um roxo brilhante.Meus olhos esto parados nesta rom hhoras. apenas um detalhe, claro, mas tam-bm a chave do afresco.

    O tema o rapto de Proserpina, mo-mento em que o severo senhor do inferno,um Pluto enrolado na nuvem prpura desua vestimenta, agarra com fora os quadrisda deusa que est pegando uma enormerom s margens de um lago.

  • O afresco no assinado, por isso o autorpermanece rodeado por uma aura de mis-trio. Sei apenas que viveu no incio dos anos1700 e que deve ter sido um autntico gnio,considerando o estilo do desenho, a granu-lao da cor e o delicado jogo de luz e som-bras. Estudou cada uma das pinceladas e euestou tentando no trair seu esforo de per-feio. A uma distncia de sculos, minhatarefa interpretar seu gesto criativo ereproduzi-lo no meu.

    Este o primeiro restauro de verdade noqual estou trabalhando completamente soz-inha. Aos 29 anos, este trabalho umagrande responsabilidade, mas tambm umorgulho: desde que sa da Escola de Restauroesperava a minha chance, e agora que elachegou vou fazer de tudo para nodesperdi-la.

    Ento, aqui estou eu, h horas em cimadesta escada, no meu macaco impermevel,

    10/592

  • de bandana vermelha para segurar meu ca-belo castanho estilo Chanel mas algunscachos rebeldes teimam em escapar e cairsobre meus olhos , e com o olhar fixo naparede. Felizmente no h espelhos por aqui,porque com certeza devo estar com o rostomarcado pelo cansao e pelas olheiras. Masno me importo. So os sinais visveis daminha determinao.

    Vendo-me friamente: sou eu mesma,Elena Volpe, sozinha no saguo imenso deum palcio antigo e desabitado h tempos,no corao de Veneza. E exatamente aquique quero estar.

    Passei uma semana inteira limpando ofundo do afresco e hoje, pela primeira vez,vou usar cores. Uma semana muito, talvezdemais, mas no quis arriscar. necessrioter muita cautela, porque basta um nicotoque errado para comprometer o trabalho

    11/592

  • inteiro. Como dizia um professor meu: Sevoc limpar bem, j meio trabalhoandado.

    Algumas partes do afresco esto total-mente estragadas e nesses pontos terei queme conformar em fazer um novo reboco como estuque. Culpa da umidade de Veneza, quepenetra em tudo: na pedra, na madeira, notijolo. Mas em volta das reas danificadas houtras em que as cores conservaram todo oseu brilho.

    Hoje de manh, subindo na escada, dissea mim mesma: S vou descer quando tiverencontrado os tons certos para aquela rom.Mas talvez eu tenha sido otimista demais...Nem sei quantas horas se passaram e aindaestou aqui, testando toda a paleta dos ver-melhos, dos laranjas e dos amarelos sem umresultado que me satisfaa. J joguei foraoito potinhos de prova, onde misturo os pspigmentados com pouca gua e algumas

    12/592

  • gotas de leo para obter consistncia. Estouprestes a me aventurar com o nono potinho,quando escuto um toque. Vem justamente dobolso do macaco. Infelizmente. intiltentar ignor-lo. Por pouco no caio no cho.Agarro o celular e leio o nome piscando cominsistncia no visor.

    Gaia, minha melhor amiga. Ele, tudo bem? Estou na piazza Santa

    Margherita, quer vir beber alguma coisa noRosso? Hoje est mais cheio que de costume,est timo, vem! diz de um flego s, semperguntar se est incomodando ou simples-mente me dar a chance de responder.

    Pronto, ela j est em sua fase relaespblicas. Gaia trabalha para os bares mais namoda da cidade e da regio do Vneto, or-ganiza eventos e festas VIPs. Comea porvolta das quatro da tarde e continua diretoat tarde da noite. Mas para ela no se tratasomente de um trabalho; uma verdadeira

    13/592

  • vocao: aposto que, mesmo se no lhe pa-gassem, faria isso.

    Desculpe... Que horas so? per-gunto, tentando conter sua avalanche depalavras.

    Seis e meia. Ento, voc vem?O Rosso um bar frequentado pelos

    jovens venezianos despreocupados, aqueletipo de gente que precisa de uma pessoacomo Gaia para decidir o que fazer com asprprias noites.

    Meu Deus, j to tarde assim? O tempovoou sem que eu percebesse.

    Ei, Ele... Voc est a? Tudo bem? Digaalguma coisa, droga... Gaia grita e sua vozfura meus tmpanos. Voc est emburre-cendo com aquele afresco... Voc tem que viraqui, imediatamente! uma ordem!

    Puxa, Gaia, daqui a meia hora eu paro,prometo. Respiro fundo. Mas vou paracasa. Por favor, no fique chateada.

    14/592

  • Claro que eu fico chateada, voc nopassa mesmo de uma boba! desabafa.

    Um clssico. nosso jogo de papis: doissegundos depois e ela est calma e feliz denovo. Ainda bem que Gaia no registra nen-hum dos meus no.

    Tudo bem, escute, ento v para casa,descanse um pouco e mais tarde vamos aoMolocinque. S digo que temos dois in-gressos para a rea VIP...

    Obrigada pela lembrana, mas nofao nenhuma questo de me enfiar naquelamultido apresso-me em dizer antes queela continue. Gaia sabe que no suporto con-fuso, que quase nunca bebo e que, paramim, danar significa, na melhor dashipteses, bater o p contando o tempo... umtempo s meu, para falar a verdade. Soutmida, no levo jeito para esse tipo dediverso, sinto-me sempre deslocada. Masela no desiste: sempre tenta me arrastar

    15/592

  • para uma de suas noitadas. E, no fundo, em-bora nunca confesse, agradeo a ela por isso.

    Voc j terminou de trabalhar? per-gunto, tentando mudar o rumo da conversa.

    Sim, e hoje o dia foi incrvel. Eu estavacom uma diretora russa. Ficamos trs horasna Bottega Veneta olhando bolsas e botas decouro, ento depois eu a levei a Balbi e l amulher decidiu comprar dois vasos de Mur-ano. Alis, na loja da Alberta Ferretti vi doisvestidos da nova coleo que parecem perfei-tos para voc. De um bege que ficaria fofocom o castanho dos seus cabelos... Vamos lum dia desses, assim voc experimenta.

    Quando no est ocupada dizendo spessoas aonde ir noite, Gaia explica a elascomo gastar o prprio dinheiro: na prtica, personal shopper. aquele tipo de mulherque tem ideias claras sobre tudo e umagrande capacidade de convencer os outros.

    16/592

  • To grande que existe quem est disposto apagar para ser convencido.

    Mas eu no: desenvolvi anticorpos em 23anos de amizade.

    Vamos, claro, assim voc acaba com-prando para voc, como sempre.

    Mais cedo ou mais tarde eu consigofazer com que voc se vista decentemente.Voc um desafio permanente, minhaquerida, saiba disso!

    Desde que ramos adolescentes Gaia levaadiante essa cruzada contra meu jeito, di-gamos, um pouco desleixado, de me vestir.Para ela, sair por a de jeans e sapatos semsalto no representa uma alternativa con-fortvel, mas um auto-sacrifcio explcito eincompreensvel. Se dependesse de Gaia, eutrabalharia todos os dias de minissaia e salto12, e pouco importa que eu seja obrigada asubir e descer mil vezes perigosssimas esca-das de pintor ou que fique por horas em

    17/592

  • posies que eu no definiria exatamentecomo confortveis. Se eu tivesse as suaspernas..., repete sempre. E, alm disso, todavez repete o mantra de Coco Chanel: Precis-amos estar sempre elegantes, todos os dias,porque o destino pode estar nos esperandona esquina. E, de fato, ela no coloca os psna rua sem estar com a maquiagem, o pen-teado e os acessrios perfeitos.

    s vezes, incrvel como eu e essa mulh-er vivemos em planetas to diferentes. Seno fosse minha melhor amiga, provavel-mente eu no a suportaria.

    Mas, Ele ela volta ao ataque, in-abalvel. Hoje noite voc tem que ir aoMolo...

    Puxa, Gaia, no fique chateada, j disseque no posso! Quando cisma com umacoisa, me d nos nervos.

    Mas Bob Sinclair vai estar l!

    18/592

  • Quem? pergunto, enquanto naminha testa pisca SEM REGISTRO.

    Gaia bufa, irritada. O DJ francs, aquele famoso. Estava

    no jri do Festival de Cinema semanapassada...

    Ah, ento t! De qualquer maneira continua,

    como se nada pudesse ofend-la , sei porfontes seguras que vrios famosos estaro narea VIP, inclusive, escute bem... faz umapausa estudada ... Samuel Belotti!

    Ai, meu Deus, o ciclista de Pdua? reclamo, indignada, com um tom de desap-rovao total. um dos tantos meio namora-dos famosos que Gaia espalhou em algunscantos da Itlia e do mundo.

    O prprio. No entendo o que voc v nele: um

    cretino arrogante, no sei mesmo onde vocacha que ele um gato. Eu e Gaia no

    19/592

  • temos o mesmo gosto nem em relao ahomens.

    Ah, eu sei bem onde ele gato... duma risadinha.

    Tudo bem... mudo de assunto. Eele est a fim?

    Eu mandei uma mensagem pro celulardele. No me respondeu, est com a danar-ina da televiso agora. Suspira. Mas euno desisto, porque no que ele tenha medado um fora, exatamente... Acho que est sganhando tempo.

    No sei como voc consegue conhecertanta gente, e talvez nem queira saber.

    Trabalho, querida, isso s trabalho diz, e posso imaginar muito bem o sorrisinhomalicioso que deve estar estampado em seurosto nesse momento. As relaespblicas, todo mundo sabe, exigem muitadedicao...

    20/592

  • Na sua boca, as palavras trabalho ededicao soam vazias, sem significado provoco-a, escondendo uma pontinha de in-veja. Nisso eu gostaria de parecer com elaum pouco, admito. Eu sou super-rigorosa eresponsvel. Ela, leve e descaradamenteirresponsvel.

    Voc no me admira, Ele. minhamelhor amiga e no me admira! ri.

    Tudo bem, v ao Molo e divirta-se.Alis, cuidado para no se cansar demais,querida!

    Claro que voc vai dizer no de novo...Mas eu no estou nem a e continuo in-sistindo, voc sabe. No me rendo, meuamor...

    Claro que sei. Esse teatrinho o nossojeito de dizermos que gostamos uma daoutra.

    21/592

  • que agora eu estou realmente nummau momento: no posso voltar s trs,seno amanh de manh no levanto.

    Est bem, desta vez voc venceu.Finalmente... Mas voc promete que a gente vai se

    ver no fim de semana? conclui, chegandoao que interessa.

    Prometo. A partir de sbado sou todasua.

    O nono potinho de vermelho Ticianotambm tem que ser jogado fora: aproximeiuma ponta de cor casca da rom e aindano cheguei l. Resignada, recomeo, masum barulho atrs de mim me distrai. Algumentrou pelo porto principal e est subindo aescadaria de mrmore: por um momentotemi uma surpresa de Gaia, mas, semdvida, so passos masculinos. Deso compressa da escada, tomando cuidado para no

    22/592

  • tropear nos potinhos que deixei cair de-sordenadamente na rede de proteo.

    A porta do saguo se abre e na entradasurge a figura magra de Jacopo Brandolini, oproprietrio do palcio, alm de meu cliente.

    Boa noite cumprimento com umsorriso formal.

    Boa noite, Elena retribui meu sor-riso. Como vai o trabalho? Olha ocemitrio de potinhos estendido a nossos psenquanto d um n, na altura do peito, nasmangas do pulver, certamente de caxemira,sobre os ombros.

    Muito bem minto e espanto-me coma minha desenvoltura, mas no estou comvontade de explicar os detalhes que, de todomodo, ele no entenderia. No entanto, tenhoque acrescentar algo para parecer profission-al: Acabei a limpeza ontem mesmo e apartir de hoje posso me dedicar cor.

    23/592

  • timo. Confio na senhora, est tudoem suas mos diz, erguendo o olhar atmim. Ele tem os olhos pequenos e azuis,duas fendas de gelo. Como sabe, esteafresco muito importante para mim. Queroque o resultado seja o melhor possvel.Apesar de no ser assinado, se v que bem-feito.

    Concordo. O pintor com certeza era um grande

    mestre apresso-me em dizer.Brandolini sorri, revelando uma ponta de

    satisfao. Tem 40 anos, mas parece ter umpouco mais. Seu sobrenome antigo descendente de uma das mais famosasfamlias nobres de Veneza e ele tambmpassa a ideia de ser um pouco antigo. su-permagro, tem a pele transparente, o rostochupado e nervoso, os cabelos loiro-acin-zentados. E, alm disso, veste-se como umvelho. Ou melhor, as roupas fazem um efeito

    24/592

  • estranho nele, um pouco retr. Por exemplo,agora est usando cala Levis e uma camisade meia manga azul-clara. Mas quase pareceestar nadando dentro delas, de to fino que. E o conjunto tem algo de idoso que no seiexplicar bem. Ainda assim, diz-se que oconde provoca um sucesso discreto com asmulheres. muito rico, no consigo encon-trar outras razes.

    Est correndo tudo bem aqui? per-gunta, olhando ao redor para conferir se esttudo no lugar certo.

    Muito bem! e solto a bandana nanuca, porque percebo que no estou nem umpouco apresentvel assim.

    Pode pedir qualquer coisa a Franco. Seprecisar de material, pode mandar buscar.

    Franco o vigia do palcio. um homen-zinho corpulento e muito simptico, mastambm discreto e silencioso. Em dez dias detrabalho, cruzei com ele apenas duas vezes,

    25/592

  • no jardim do ptio interno, enquanto regavao agapanto, e em frente ao porto de en-trada, concentrado em lustrar a maaneta demetal. Nunca entra, fica sempre do lado defora e, depois, por volta das duas da tarde,vai embora. uma presena tranquilizadora.

    Eu me viro muito bem sozinha, obri-gada. Percebo tarde demais que minha re-sposta soa um pouco brusca, e mordo alngua.

    Brandolini levanta os braos, em sinal derendio.

    De todo modo limpa a garganta ,passei aqui para lhe comunicar que, a partirde amanh, haver um inquilino no palcio.

    Um inquilino?No. Isso no possvel mesmo. No es-

    tou acostumada a trabalhar com pessoas emvolta de mim fazendo confuso.

    O nome dele Leonardo Ferrante, um famoso chef de origem siciliana

    26/592

  • explica ele, satisfeito. Chegar direta-mente de Nova York para a abertura donosso novo restaurante em San Polo. Como asenhora deve saber, a inaugurao ser da-qui a trs semanas.

    Junto com o pai, o conde administra out-ros dois restaurantes em Veneza, um atrsda piazza San Marco e outro, menor, ao ladoda ponte de Rialto. Os Brandolini tm outroem Los Angeles, alm de dois clubes priva-dos, um caf e um apart hotel. Ano passadotambm abriram em Abu Dhabi e Istambul.Ou seja, no raro encontrar fotos deles nasrevistas de fofoca de que Gaia gosta tanto.

    Eu no me interesso nem um pouco pelavida dos famosos. Mas, principalmente, al-gum para me atrapalhar a ltima coisa deque preciso.

    Foi dificlimo conseguir tudo dentro doprazo e, como a senhora sabe bem, a logsticaveneziana certamente no ajuda continua

    27/592

  • ele, sem notar minha decepo , mas, vejabem, quando desejamos muito uma coisa, oesforo no pesa tanto.

    L vem ele com lies de vida, agora.Concordo mecanicamente com ar deaprovao. A ideia de ter que trabalhar comum desconhecido andando pelo palcio meirrita, e muito. Como Brandolini no con-segue entender que meu trabalho delicado?Que basta uma coisinha toa para me fazerperder a concentrao?

    A senhora ver, vai se dar muito bemcom Leonardo, uma pessoa muitoagradvel.

    No tenho dvida, o caso que estesaguo...

    No me d tempo de terminar. Veja bem, claro que eu no podia

    deix-lo morando em um quarto frio de hotel continua Brandolini, com a segurana dequem no deve pedir permisso a ningum.

    28/592

  • Leonardo um esprito livre e aqui se sen-tir em casa, poder cozinhar quando quiser,tomar caf da manh de madrugada e al-moar tarde, ler um livro no jardim e apro-veitar o Canal do terrao.

    Eu estava prestes a lembrar a ele que osaguo onde trabalho d acesso a todos osoutros cmodos do palcio, no existemcorredores, e que, portanto, esse sujeitoobrigatoriamente ter que passar por aqui, esabe-se l quantas vezes por dia. Mas eletambm sabe disso, s que, claro, decidiuignorar. Deus, estou quase tendo um ataquede nervos.

    Quanto tempo esse chef deve ficaraqui? pergunto, na esperana de receberuma resposta animadora.

    Pelo menos dois meses. Dois meses?! repito sem me preocu-

    par mais em esconder a irritao.

    29/592

  • Sim, dois meses, mas talvez at mais,pelo menos enquanto o restaurante no est-iver funcionando plenamente. O condeajeita novamente o pulver nos ombros, en-to me olha nos olhos, decidido. Esperoque no seja um problema para a senhora. Como se dissesse: D um jeito de dar tudocerto.

    Bem, se no h outra soluo... Que,porm, o meu modo de dizer: No gostonada disso, mas tenho que engolir.

    Est bem, ento s me resta lhe desejarbom trabalho conclui, estendendo-me amo fina. At logo, Elena.

    At logo, senhor conde. Me chame de Jacopo, por favor.Est tentando tornar a situao aceitvel

    sendo menos formal? Foro um sorriso: At logo, Jacopo.Assim que Brandolini sai, vou me sentar

    no sof de veludo vermelho encostado em

    30/592

  • uma parede. Estou nervosa, impaciente: aessa altura perdi a inspirao. No querosaber nada desse seu restaurante, desse seuchef aristocrata, no estou nem a para essainaugurao la As mil e uma noites. Squero trabalhar em paz, sozinha, em silncio. pedir demais? Seguro a cabea com asmos e olho os potinhos cheios de tmpera*seca, que parecem estar ali para me jogar nacara o meu fracasso. Com grande esfororesolvo ignor-los. Que v para o inferno oafresco tambm! So sete e meia da noite eminha concentrao j foi para o espao.Chega. Estou cansada. Vou para casa.

    Saio na rua e deixo-me envolver pelo armido e adocicado de outubro. Agora j dpara se sentir a noite mais fresquinha. O solj se ps quase completamente sobre a La-guna e os lampies comeam a se acender.

    31/592

  • Percorro as ruas a passos rpidos, com ospensamentos ainda presos naquele saguoempoeirado e temo que permaneam l porum bom tempo, levando em conta minhatendncia de remoer as coisas. Gaia e minhame vivem jogando isso na minha cara:dizem que quando cismo com alguma coisaeu fico fora do ar, distrada, nas nuvens. verdade, eu me perco com prazer nos meuspensamentos, feliz quando me levam paralonge... Mas apenas uma pequena fuga dopresente, uma mania toda minha, da qualno pretendo abrir mo. Por isso adoro cam-inhar sozinha pela cidade: deixo que meusps me guiem e a mente fica finalmente livre,sem que ningum exija ser o centro daminha ateno.

    Uma pequena vibrao estridente me trazsubitamente de volta realidade. No visor doiPhone, uma mensagem no lida.

    32/592

  • Bibi, vamos ao cinema?

    Hoje noite est passando o ltimo filme

    do Sorrentino no Giorgione.

    Beijo.

    Filippo. A est algum com quem tenhovontade de passar a noite, mesmo depois deum dia como esse. Mas acho que no tenhoenergia suficiente para me arrastar at o Gi-orgione. Estou realmente exausta e a ideia deme trancar por duas horas em uma sala nome atrai. Preciso ficar confortvel num sof.

    Rebato:

    E se a gente jantasse na minha casa e

    visse um filme?

    Estou destruda, acho que no vou curtir

    Sorrentino...

    Resposta imediata.

    33/592

  • Ok. At daqui a pouco, na sua casa ;-)

    Conheo Filippo desde a poca da fac-uldade. Ns nos encontramos no curso dedesign de interiores, eu ainda era caloura, elej estava no terceiro ano. Um dia props queestudssemos juntos e aceitei. Ele me pareciaalgum em quem se podia confiar; eu sentia,de um jeito ainda misterioso, que entre nshavia uma afinidade. Eu no tinha ummotivo especial, simplesmente sabia.

    Ficamos logo amigos. amos s ex-posies juntos, ao cinema, ao teatro. Oupassvamos noites inteiras conversando. desde essa poca que Filippo me chama deBibi. Repetia-me sempre que eu pareciacom a Bibi de uma histria em quadrinhosjaponesa, uma personagem um pouco desas-trada e sonhadora, perdendo-se em fantasiasconfusas e sem sentido.

    34/592

  • Depois da faculdade, nem lembro porque, perdemos um pouco o contato. No anopassado, eu soube por intermdio de Gaiaque ele havia comeado a trabalhar paraCarlo Zonta, um dos arquitetos italianosmais famosos, e que se mudara para Roma.

    Ento, h um ms, como se s um dia setivesse passado desde aqueles anos que paramim j pareciam muito distantes, ele surgiudo nada com um e-mail: Estou em Venezanovamente. H quanto tempo no vamos aoMuseu Correr? Um convite que me pegouto desprevenida que em um segundo me deiconta do quanto sentia saudade de Filippo.Aceitei na hora.

    Era a primeira vez que nos revamos de-pois de tanto tempo, ainda assim parecia quenada tinha mudado. Passeamos pelas salasdo museu com calma, parando diante denossas obras preferidas eu ainda me lem-brava das suas e ele, das minhas e falando

    35/592

  • sobre nossas vidas do ponto onde ashavamos deixado.

    Depois nos encontramos de novo, umavez para jantar e outra no cinema. Dissemosat que seria bom retomar contato com oscolegas da faculdade, mas depois, sabe-se lpor qu, nem tentamos organizar nada.

    Falta pouco para as nove e o som do in-terfone me faz escapulir para fora do ban-heiro, um fio de maquiagem nos olhos e oscabelos presos num rabo curto que chamarde imperfeito seria, sem dvida, generoso.Obrigo-me a no pensar na expresso queGaia faria ao me ver desarrumada assim.Abro a porta de cala jeans, regata branca echinelo de dedo e, enquanto o espero, mer-gulho em um casaco felpudo maior que omeu tamanho. minha roupa de andar emcasa, mas tenho certeza de que Filippo no seescandalizar...

    36/592

  • Sobe as escadas correndo, com duas em-balagens de pizza nas mos. Quando chega, avoz doce e quente do ltimo CD de NorahJones o recebe.

    Vamos, rpido seno elas esfriam! diz, entrando. Joga sua bolsa no cho, mebeija de leve na bochecha e invade a cozinhacomo um mssil.

    Est com fome? Eu vou atrs dele eabro espao na mesa.

    Morrendo!J abriu uma gaveta adivinhando ime-

    diatamente a certa, apesar de no pisar nomeu apartamento h anos e achou o corta-dor de pizza. Fatia primeiro a minha.

    Eu o olho. Seu rosto tem algo de sincero eluminoso, quase tranquilizador: talvez tam-bm tenha sido por isso que na poca da fac-uldade nos escolhemos como amigos. Olhosgrandes e profundos, puxados: Filippo pare-ceria asitico se eles no fossem verde-claros

    37/592

  • e se na cabea no tivesse aquele tufo de ca-belos loiros e desgrenhados.

    Vegetariana sem pimento, como vocgosta diz ele, dando-me uma fatia.

    Claro, ele se lembra at disso. Concordo,satisfeita, e ele me fita com aqueles seus ol-hos que so quase uma anomalia e dos quais impossvel desviar o olhar. Ficamos por umsegundo assim, meio distrados, depois Fil-ippo volta a se concentrar na pizza e eucomeo a procurar os copos, s para fazeralgo.

    Dura apenas um instante, mas ns doispercebemos que h uma estranha eletricid-ade no ar.

    Hoje eu tambm vou ser vegetariano,assim voc se sente menos sozinha brinca,abrindo a segunda embalagem. Sorri, deix-ando mostra os dentes brancos e perfeitos.Outra coisa que gosto nele. Como a covinhana bochecha direita.

    38/592

  • Mas, Bibi, posso dizer que a pizzariaaqui embaixo nojenta?

    Claro respondo, dando a primeiramordida. Mas vou continuar indo lmesmo assim... o nico jeito rpido e indo-lor que tenho para me alimentar.

    Ser que no chegou a hora de vocaprender a cozinhar?

    Finjo refletir sobre aquilo por dois segun-dos antes de responder.

    No.Ele pega uma azeitona da pizza e a joga

    em mim.

    Quando acabamos de comer, enquantopreparo meu ch de erva-cidreira, Filippo ex-amina os DVDs colocados desordenada-mente na ltima prateleira da estante.

    E este aqui? comea a rir. De ondevem? disse, balanando a capinha deDana comigo?.

    39/592

  • Ai meu Deus, Gaia deve ter deixadoisso aqui h muito tempo! Escondo o rostocom um brao.

    Ele me olha, compreensivo: Por mim no tem problema... Voc

    pode me dizer se gosta desse negcio agora,no tem que se envergonhar: admitir oprimeiro passo para se curar. Sou seu amigo,pode falar... Posso ajudar voc, se quiser.

    Bobo.O cinema uma das paixes que sempre

    compartilhei com Filippo. Ns nos encon-trvamos com frequncia em cines clubesuniversitrias, ns dois sozinhos na sala as-sistindo, at os crditos finais, a filmesdesconhecidos de diretores ignorados, de al-guma montona e igualmente esquecidavanguarda russa, enquanto todos os nossoscolegas j tinham nos abandonado h umbom tempo para ir beber na praa.

    40/592

  • Filippo continua passando os olhos nosnomes dos DVDs e pega Um dia muito espe-cial, de Ettore Scola.

    Acho que j vi pelo menos quatrovezes, mas no me canso. E voc?

    Seria a minha terceira, ento eu topo.Filippo joga-se no sof. Debate-se com o

    controle remoto, resmungando algo sobre asnovas tecnologias. engraado, me faz sor-rir. Vou at ele com duas grandes xcaras fu-megantes nas mos. Coloco-as na mesinhade centro, jogo os chinelos em um canto,bebo um gole do ch esquecendo que estfervendo e queimo a lngua... Ento eu tam-bm me abandono no sof, ao lado dele.

    Na tela de plasma comeam a passar oscrditos de abertura, enquanto sinto o joelhode Filippo apoiar-se ao meu. Aquele contatome deixa inesperadamente desconfortvel, como se eu percebesse s agora o quanto es-tamos prximos. Ajeito-me no sof,

    41/592

  • afastando-me alguns centmetros. Ele noparece notar nada, talvez seja s uma para-noia minha...

    O filme vai em frente, doce e amargocomo lembrvamos. Ns o acompanhamosem um silncio religioso, bebericando o ch,que enquanto isso atingiu temperaturas hu-manas, e s vezes voltamos algumas cenaspara rever os trechos mais memorveis.Agora Mastroianni e Loren arriscam algunspassos de dana, acompanhando algumasmelodias.

    Com o canto do olho vejo que Filippo estme observando. Mas senti seu olhar em mimdesde que comeamos a ver o filme. Quente eenvolvente. Viro-me para ele e o encaro:

    O que foi?Ele sorri, como se tivesse sido pego em

    flagrante.

    42/592

  • Estava pensando que voc no mudounada nesses anos. No para de me olhar.De repente me sinto um pouco constrangida.

    E eu que esperava melhorar com otempo... tento cortar o clima.

    Bem, felizmente voc eliminou o nicodefeito que tinha.

    Dou uma olhada interrogativa para ele. Valerio, seu ex.Dou um soco em seu brao, fingindo estar

    ofendida. Comecei a namorar Valerio nopenltimo ano da faculdade: Filippo no osuportava e no fazia nada para disfararisso. Superficial e imaturo demais para vo-c, deve ter me repetido mil vezes, at ocansao.

    Demorei um pouco para entender, masno final das contas voc tinha razo admito.

    H quanto tempo vocs no esto maisjuntos?

    43/592

  • Um ano e meio. E voc no est saindo com ningum

    agora?Direto ao ponto. Eu no esperava por

    isso. No.Sabe-se l por que o silncio que se segue

    me parece opressivo. Queria ter uma piadapronta para aliviar essa tenso, mas no aencontro. No sei o que se passa na cabeade Filippo, mas sei que eu nunca tinhapensado nisso. Pelo menos at agora. Estoufeliz demais por t-lo reencontrado comoamigo e no considerei de jeito nenhum aideia de que possa existir mais alguma coisa.Mas de repente meu castelo de certezasparece prestes a desabar.

    Esta a minha cena preferida dizFilippo, virando-se novamente para a tela.Mastroianni e Loren subiram ao terrao e es-to dobrando os lenis pendurados para

    44/592

  • secar. Talvez tenha entendido meu con-strangimento e veio ao meu socorro. Isso tpico dele.

    Dou um pequeno suspiro silencioso dealvio. Tento me distrair, talvez sejam apenasfantasias minhas e no passe absolutamentenada na cabea dele. Concentro-me no filmee, aos poucos, relaxo de verdade.

    L fora comeou a chover e como se asgotas que batem na janela tambm tocassemlevemente meu corao. uma sensaoagradvel, e eu sinto uma vontade irresistvelde me entregar...

    De repente, como se eu estivesse ressur-gindo de um coma profundssimo, escutouma voz delicada sussurrando:

    Bibi, eu j vou.Abro os olhos e vejo Filippo de p, in-

    clinado sobre mim. Os crditos finais do

    45/592

  • filme passam na tela. Fao meno de melevantar.

    Mas por que voc no me acordou? Shhh, fique a. Ajeita docemente

    uma manta sobre meus ombros. Vouroubar seu guarda-chuva quebrado.

    Pode pegar o bom. No se preocupe... No vou para longe.Faz um carinho na minha bochecha com

    uma ternura que nunca tinha visto nele ebeija levemente minha testa.

    Tchau, Bibi.* Tmpera: mistura de pigmentos dissolvidos numadstringente, como cola ou clara de ovo. (N. da E.)

    46/592

  • 2Hoje de manh decidi tirar uma folga doafresco. Tenho um monte de chatssimastarefas domsticas. Digamos que no sou ex-atamente a dona de casa perfeita. Do cestode roupa suja transborda uma montanha depeas emboladas e me conformo em lavar al-gumas. Depois passo na tinturaria parapegar um vestidinho que deixei l desde overo e me aventuro no supermercado parafazer compras do meu jeito: basicamente, meabasteo de comidas prontas e congeladas,minha especialidade sempre. Quando chegoem casa, sou tentada por um instante pela

  • ideia de organizar um pouco as coisas, mas avontade passa logo: melhor trabalhar. Ento,pego as chaves e saio.

    No caminho para o palcio passo naNobili, preciso de meio grama de p azul-ul-tramarino, caso o que tenho no seja sufi-ciente. Prefiro comprar a cor eu mesma econferir com meus olhos se a certa. Se eumandasse Franco, como Brandolini sugere,ele sempre voltaria com a tinta errada.

    s duas da tarde a rua para a qual se abrea entrada do palcio est deserta. A vant-agem de trabalhar como freelancer em umedifcio do qual praticamente s eu tenho achave bem, pelo menos at ontem... que se eu estiver atrasada com o cronogramaposso trabalhar sbado tambm, quando hmenos pessoas nas ruas: no h estudantes etodos os turistas se concentram em So Mar-cos e em Rialto, bem distantes daqui.

    48/592

  • Coloco a chave comprida na fechadura doporto, rodo-a uma vez para a esquerda eduas vezes para a direita e sinto que gira emvo. O porto est aberto e o alarme no estativado. Melhor assim, porque uma vez dis-parou por engano e aquela foi a nica vezque tive que recorrer a Franco. Provavel-mente ele mesmo quem est l dentro.Subo a escadaria de mrmore e empurro aporta de servio, que se abre para o saguo.

    Pronto, o momento to temido infeliz-mente chegou.

    Na minha frente surgem costas largas,envolvidas em uma camisa vermelha. ele.O inquilino. Eu no esperava que j estivesseaqui. Est observando a parede que contm oafresco e parece quase enfeitiado. Imvel.Enorme. A seus ps, uma grande bolsa deviagem que leva todo o jeito de ter sidojogada em mais de um aeroporto, da qualdesponta um blazer de jeans.

    49/592

  • Finjo uma tossida leve para marcarminha presena, ele se vira e me atravessacom um olhar to intenso que eu quasetenho vontade de andar para trs. Seus olhosso de um preto impenetrvel; ainda assim,por trs das vastas sobrancelhas, emanamuma luz que, no sei como, me deixa semflego.

    Ol, sou Elena digo, recuperandoum pouco a segurana e dando uma olhadano afresco. A restauradora.

    Oi ele me sorri , Leonardo, prazer. Aperta minha mo e sinto sua pele sperasobre a minha. Deve ter sido o trabalho quetornou suas mos to grossas. Jacopo mefalou muito de voc.

    Olheiras, lbios carnudos, nariz pronun-ciado, barba por fazer e com alguns pelosavermelhados, cabelos escuros que no veemtesouras h um tempo: parece sado de umquadro de Goya. Deve ter pouco menos de

    50/592

  • quarenta anos, mas sua presena slida enecessria como a de uma rvore centenria.

    uma pintura de uma sensualidadenica diz, virando-se novamente para aparede, e sua voz revela um leve sotaque si-ciliano. Aproveito para estud-lo detalhada-mente: usa cala preta de linho, como a cam-isa abotoada at a metade, sob a qual se intuiuma musculatura forte. Nos ps cala um parde tnis surrado em alguns pontos. Trans-mite uma energia misteriosa e selvagem, aponto de explodir debaixo das roupas.

    Tecnicamente, trata-se de um estupro especifico. Quando no estou vontade equero manter a formalidade tendo a mecomportar como uma professora de jardimde infncia, mais forte do que eu. Ele meolha e eu abaixo os olhos. Uma labareda deconstrangimento incendeia meu rosto. Retrata uma cena da mitologia clssica, o

    51/592

  • rapto de Proserpina acrescento, em umtom um pouco menos arrogante.

    Ele concorda, ainda concentrado na con-templao do afresco:

    Pluto rapta Proserpina e a conduz atHades. Antes de lev-la de volta terra, ondepermanecer por seis meses, obriga-a acomer nove sementes de rom. um mitorelacionado ao tempo e s estaes.

    Um a zero para o cozinheiro siciliano queconhece os mitos clssicos: ele me deixousem palavras e eu mereci.

    Leonardo olha ao redor com ar admiradoe d um longo suspiro. Noto que na orelhadireita tem um pequeno brinco de prata.

    Claro que este palcio realmentemaravilhoso, uma sorte estar aqui, no?

    Foi at hoje, antes da sua chegada, penso,mas nunca teria coragem para dizer isso.

    Tudo certo, meu amigo, podemos ir Jacopo nos interrompe. Surgiu de repente do

    52/592

  • corredor esquerda do salo e, assim quenota minha presena, apressa-se em mecumprimentar: Ol, Elena.

    Bom dia, conde... eh... Jacopo. Ainda tenho certa dificuldade em cham-lopelo nome.

    Vejo que vocs j se apresentaram. Sim diz Leonardo. Elena muito

    gentil, estava me explicando seu trabalho mente por mim, no fui nada gentil, e buscaminha cumplicidade com um olhar que eu,porm, no retribuo.

    Brandolini sorri, satisfeito.

    Vamos, Leo pega-o por um brao, vou lhe mostrar seus aposentos. Ontem Olgaveio arrumar tudo.

    Leonardo apanha a bolsa de viagem docho, coloca-a no ombro e faz meno deseguir o conde.

    53/592

  • Uma preocupao me invade quandopenso na moa da faxina.

    Jacopo, desculpe... minha voz saimais estridente do que gostaria.

    Sim? O conde vira-se junto comLeonardo.

    Nada de importante, s queria lhepedir um favor. Assumo tons mais cordi-ais. Se puder, diga para Olga no limpar osaguo, a poeira poderia comprometer orestauro.

    Claro, no se preocupe ele me tran-quiliza. Ela j tinha sido avisada.

    Sinto os olhos de Leonardo novamenteme atraindo. Tento ignor-los, mas impos-svel, parecem ms.

    Obrigada respondo e viro-me paraescapar do seu magnetismo. Os dois se des-pedem e vo embora.

    Respiro fundo para tirar de cima de mimaquela estranha inquietao no adianta

    54/592

  • muito e comeo imediatamente a trabal-har: quero experimentar o azul que compreiagora h pouco. Vou at a torneira da co-zinha e encho at a metade minha jarra comfiltro anti-impurezas. O calcrio de Veneza letal, gravemente nocivo fixao da cor.Aprendi isso sozinha, infelizmente na prt-ica, e uma descoberta da qual sou muitoorgulhosa.

    Ouo as vozes e os movimentos dos doisintrusos na ala direita do palcio. Eu tereique me acostumar, e ainda no sei como. Es-pero que esse Leonardo seja um cara dis-creto. Tomara que passe o dia inteiro no res-taurante e que no resto do tempo fique quiet-inho em seu quarto. No o quero na minhacola, sua presena me deixa pouco vontade.

    Ajoelho no cho sobre a rede de proteoe comeo a misturar trs potinhos com quan-tidades diferentes de pigmento branco eazul. A cor da roupa de Proserpina no

    55/592

  • muito problemtica, diferentemente darom. No terceiro potinho acho que j estouchegando perto. uma experincia, princip-almente para satisfazer minhas nsias incon-trolveis de perfeccionismo e para testar se opigmento realmente de boa qualidade.

    Cara Elena, vou embora. Brandolinireaparece no saguo pouco depois. Estsozinho. Deixo-a em boa companhia. Asenhora ver, vai se dar muito bem com Leo. a segunda vez que me repete isso e nosei por que me parece um mau sinal. Deslizao dedo indicador na maaneta da porta deservio, como se quisesse levantar um vu depoeira que no existe. Bom trabalho. Atlogo.

    At logo, senhor conde... Quero dizer,Jacopo.

    So quase seis horas e Leonardo aindano apareceu. Durante um tempo escutei

    56/592

  • msica clssica vindo do andar de cima, masdepois parou. Acho que ficou dormindo atarde toda: ele chegou de Nova York, deveestar com jet lag. De todo modo, se ele ficarem sua toca e no sair mais, melhor paramim.

    Entro no banheiro para me arrumar umpouco. Tiro a camiseta de trabalho e a calajeans e coloco uma cala limpa e uma blusade algodo que trouxe em uma bolsa deginstica. Esta minha ideia de elegncia,seja l o que for que Gaia diga.

    Esta noite vou casa de meus pais, umjantar em famlia para comemorar aaposentadoria de meu pai da Marinha Milit-ar. Depois de 45 anos de honrosa carreira, otenente Lorenzo Volpe retira-se para a vidaparticular. Por ironia do destino, sou filha deum ex-marinheiro e mal sei nadar. Culpa daminha me, talvez, que nos veres no Lido,assim que me via afastada demais da

    57/592

  • margem, era invadida pelo medo de que euno voltasse mais. Tenho certeza de que her-dei dela meu jeito ansioso e, tenho que ad-mitir, um pouco paranoico, enquanto domeu pai puxei a teimosia infinita e a ded-icao absoluta ao trabalho.

    J sei que, assim que eu entrar em casa,minha me vir ao meu encontro dizendoque estou magra demais, cansada demais,descuidada demais, apesar de me esforarpara disfarar o estresse cobrindo-o comblush e batom. J meu pai me observar emsilncio a noite toda e, na hora de eu ir em-bora, me acompanhar at a porta, bemereto e com as mos atrs das costas.

    Tudo bem?, ele me perguntar antes deme deixar sair. Se precisar de alguma coisa,ns estamos aqui. Com voc. Eu lhe direipara no se preocupar e lhe darei um beijo,como sempre, e voltarei para casa serena e

    58/592

  • em paz comigo mesma, como me acontece squando estou com eles.

    No os vejo h tanto tempo e estou quer-endo mesmo um colinho.

    Esfrego os lbios diante do espelho paraespalhar melhor o batom que passei apressa-damente, coloco tudo de volta na bolsa e es-tou pronta. Antes de sair, dou uma olhadafurtiva nas escadas. Parece que Leonardoainda est entrincheirado em seus aposen-tos, no sei se digo um at logo. Talvez novenha ao caso.

    Decido que no.Saio do porto de madeira macia, to-

    mando muito cuidado para no fazer barulhoe, quando chego rua, viro-me instintiva-mente para olhar o palcio. No andar nobrea luz est acesa. estranho pensar que apartir de hoje no estarei mais sozinha commeu afresco.

    59/592

  • J chegou o fim da tarde de um entedi-ante, mas incomumente quente domingoveneziano. Marquei com Gaia no Muro emRialto para uns drinques. H pouco, ao tele-fone, ela me ameaou seriamente:

    Se no vier vestida como uma mulher,juro que mando o segurana colocar vocpara fora! Geralmente ignoro seus consel-hos, mas de vez em quando gosto de deix-lasatisfeita. Porm, botar um salto monstruosonem pensar, ento optei por uma sandlia decetim verde, salto oito. E, depois, um vestidocurto de seda sem alas com blazer preto.Um gesto de grande coragem para mim:mais feminino que isso no consigo nemimaginar (bem, talvez eu pudesse ter ousadomais com o cabelo estilo Chanel de colegi-al...). J sei que vou me arrepender, de todomodo, porque em Veneza, noite, devemosandar a p entre pontes e calamento depedra, os txis custam os olhos da cara e o

    60/592

  • vaporetto funciona vagarosamente. Gaia vaiter que reconhecer meu sacrifcio.

    O Muro j est lotado, as pessoas estoamontoadas entre o balco e as vidraas quedo para a praa. A ideia de me meternaquela confuso no me anima, mas devofazer isso, pelo menos para dar um sentidoao esforo sobre-humano de ter aguentadoos saltos at aqui. Dando cotoveladas, con-sigo abrir caminho no meio da multido emfrente entrada e, com duas passadas dignasde top model em final de carreira, entro nobar, s e salva. O caos reina soberano atrilha sonora no exatamente das mais del-icadas e todos j esto bbados, emborasejam s sete da noite. Como quase nobebo, nunca consigo me integrar completa-mente nas situaes de puro prazer alcolico,enquanto Gaia capaz de entornar trs moji-tos em uma hora sem dar sinais de se render.

    61/592

  • L est ela, a rainha dos contatos sociais!Est vagando de uma mesa outra,mostrando a todos seu sorriso mais sim-ptico, temperado com elogios melososagudos e penetrantes. O rabo de cavalo loirose sobressai no meio da multido: Gaia j alta, mas como sempre exibe saltos de com-bate. Agora parou no meio de uma galerinhaque eu conheo. Ficando na ponta dos ps,aceno para ela de longe. Ela me viu, feliz-mente. Balana os braos de um jeito anim-ado para me convidar a ir at ela. Chocando-me com umas dez pessoas, enfio-me na con-fuso e chego l.

    Finalmente! Aonde voc tinha idoparar? D um beijo na minha bochecha.Ento, como sempre, comenta minhaproduo. E essa sandlia? Verde, super-estilosa... Muito bem, Ele, gostei!

    Passei na prova. Pelo menos esta noiteno terei que encarar os seguranas.

    62/592

  • E ento, como foi com seu ciclistanaquela noite? digo-lhe no ouvido, belis-cando o quadril dela.

    Ele no estava l... Gaia finge umacarinha abatida pouco verossmil. Achoque ele est preocupado com outras coisasno momento...

    Jura? digo, exagerando o espanto. Ah, mas eu no vou ficar presa ao

    Belotti, no! No no no, nem pensar. Em um instante retoma a garra. Bem...Um lugarzinho no meu corao ele sempreter, mas vamos deixar que ele decida. Se eleme quiser, tem que vir atrs de mim.

    Pode ser... Continuo no entend-endo o que ela v de to especial naquelesujeito. Os mistrios insondveis do amor.Ou dos hormnios, no caso de Gaia.

    E, de qualquer maneira, ontem noiteno Piccolo Mondo fiquei com Thiago Men-donza. Voc se lembra dele, o modelo de

    63/592

  • Armani? Trocamos nossos nmeros detelefone.

    Voc no perde tempo, no ? Nosei quem esse carinha novo, mas tpico deGaia reagir a uma decepo jogando-senuma nova conquista.

    Explode em uma risada sonora, depoiscontinua, dirigindo-se ao resto do grupotambm:

    Gente, estou com sede. Mais um spritzpara todo mundo?

    O grupo concorda unnime. Gaia mepega pelo brao e me arrasta de novo para amultido.

    Nico, faz oito spritz com Aperol paramim? pede ao barman, chegando no bal-co e piscando os clios cheios de rmel.

    Agora, amor. tpico dos venezianos, homens e mul-

    heres, chamarem uns aos outros de amor,mesmo que se conheam h menos de uma

    64/592

  • hora. E Nico, barman aspirante a ator, comcerteza no diferente.

    E uma Coca-Cola para a minha amigatambm acrescenta Gaia, antecipandomeus desejos.

    Enquanto isso, o resto do grupo est seaproximando do balco e, num piscar de ol-hos, os copos so passados de mo em mo,tilintando num brinde.

    Vamos fumar? algum prope. E obando encaminha-se pacificamente para olado de fora. Gaia fica comigo e senta nobanco na frente do meu. A Coca-Cola estdemorando.

    Filippo tambm vem jantar com agente? pergunta Gaia.

    Acho que sim. Vou gostar de encontrar com ele de

    novo.Quando conheci Filippo, Gaia j tinha

    sado da universidade h um tempo. Fui eu

    65/592

  • quem o apresentei a ela, mas logo descobri-ram ter amigos em comum: Veneza pequena, todos acabam conhecendo quasetodo mundo, principalmente se a pessoa temuma vida social intensa, como Gaia.

    De repente algum a chama do canto dossofs.

    D licena, vou cumprimentar algumaspessoas diz, pulando do banco.

    Pode ir respondo. V cumprir oseu dever!

    Gaia pisca para mim e est pronta paraum minidesfile em seus jeggins coladssi-mos: descobri h pouco, obviamente graas aela, que este o nome daquele jeans grudadono limite da asfixia. Gaia usa-o com frequn-cia, apesar de ter a panturrilha um poucogrossa sua maior preocupao. Curto o es-petculo do meu banco: uma gata movendo-se numa camiseta de algodo transparenteque deixa pouco espao fantasia, embora

    66/592

  • na verdade seja tudo mrito do suti push-upforrado, porque Gaia nature teria apenasuma segunda pele (mas isso s sabemos eu eos homens com quem ela foi para a cama).

    Finalmente Nico me d minha Coca. Voc poderia colocar um pouco de

    gelo? peo. Quer limo tambm, amor? Quero, obrigada.Dou o primeiro gole pelo canudo quando

    sinto meu telefone vibrar. Uma mensagemde Filippo.

    Bibi, estou atrasado.

    Chego em meia hora.

    Beijo

    Respondo logo, torcendo para que ele seapresse.

    OK, estamos te esperando!

    67/592

  • Acabei de responder, quando uma motoca levemente meu ombro nu. Viro-me deimediato e na minha frente surge LeonardoFerrante, o inquilino.

    Oi, Elena ele me cumprimenta. Veneza pequena mesmo... Ele continuacom aquele jeito amarrotado, camisa amas-sada fora da cala, mas parece sinceramentecontente em me ver.

    Boa noite... Sou pega de surpresa eme ajeito melhor no banco. No sei se estoucontente como ele. Este homem me per-turba. Sequer consigo pensar direito na suapresena. E isso no bom.

    Senta-se ao meu lado sem ser convidadoe fixa seus olhos pretos em mim.

    Voc est sozinha? Toca levementemeu brao com uma das mos e no sei porque aquilo me perturba.

    No, estou com alguns amigos... re-spondo, balanando a mo no ar para dar a

    68/592

  • entender que esto por ali. H algo emLeonardo que mexe comigo, chega direto minha barriga como um golpe seco. Eu quer-ia que ele fosse embora. Talvez.

    Vira-se de repente para um grupo depessoas que est pegando um lugar a umamesa:

    Gente, podem pedir diz com determ-inao Eu j vou. Depois, volta a falarcomigo. a equipe toda do restaurante,meus funcionrios explica, indicando-os.

    Ah, mas se o senhor tem que ir... precipito-me a responder.

    No, gostei de ter encontrado voc. Ento oficial: embora eu continue otratando formalmente, ele resolveu, sem amenor dvida, encurtar as distncias.

    O que acha de me chamar de voc? continua.

    Enrugo a testa e olho minhas mos.Parece que ele leu meus pensamentos.

    69/592

  • Sim, claro... murmuro.Por educao e para acabar com o con-

    strangimento, eu me obrigo a puxarconversa:

    Ontem saindo do palcio tentei nofazer barulho. Espero no t-lo acordado. E logo me arrependo do que disse. No fundo,seria ele quem deveria se preocupar em nome incomodar. Por que estou quase mejustificando?

    Fique tranquila, quando durmo no es-cuto nada. Capta o olhar do barman, queno meio-tempo se aproximou.

    Um martni branco para mim.Nico enche seu copo e ele pega a carteira. Vou pagar o dela tambm diz,

    fazendo um sinal em minha direo. No, no precisa... tento me opor e

    j mergulhei o brao na bolsa. Ele me detme meu pulso minsculo entre seus dedos,seu toque leve, mas decidido. Balana

    70/592

  • levemente a cabea e eu me rendo no mesmoinstante.

    Tudo bem... Obrigada.Enquanto ele beberica o martni, fita meu

    copo. Por que nada de lcool? No bebo justifico-me, dando de

    ombros. Isso ruim, muito ruim sorri, meio

    malicioso. Quem s bebe gua tem algo aesconder.

    Mas eu no bebo s gua. Isso aqui Coca-Cola, por exemplo.

    Leonardo ri, mostrando dentes brancos eferozes. Tenho a impresso de que ele no rida minha piada, mas de mim. Ento tomaum gole de martni e me olha, de novo srio.

    Minha presena no palcio incomodamuito voc?

    No... respondo automaticamente,mas logo me detenho. Ele no est fazendo

    71/592

  • uma pergunta e bvio que no liga nem umpouco para a minha falsa gentileza. Tento re-comear: Na verdade, eu preferiria trabal-har sozinha arrisco, com um pouco de cor-agem. Eu sou assim, no consigo me con-centrar se h pessoas por perto. E, alm domais, os trabalhos de restauro deveriam serfeitos em ambiente o mais isolado possvel.

    Espero que ele diga algo do tipoentendo, vou tentar atrapalhar o menospossvel. Mas no. Fica ali me examinandocomo se tivesse acabado de entender algo defundamental que eu, porm, no capto.

    De repente, estica uma mo em minhadireo: instintivamente me retraio quando foi que eu lhe dei permisso para to-car em mim? , mas seus dedos se metemno meio dos meus cabelos, onde as pontasencostam o pescoo.

    Cuidado, isso aqui caiu.

    72/592

  • Segura entre o polegar e o indicador omeu brinco. Fico olhando-o um pouco area,ento pego o brinco apressadamente e o re-coloco na orelha.

    Acontece toda hora, esto com defeito justifico-me, evitando seu olhar. Meurosto se colore de todos os tons de vermelho.Pronto, agora eu realmente gostaria que elefosse embora.

    Felizmente um de seus funcionrios ochama. Leonardo faz-lhe um gesto e depoisse vira outra vez para mim:

    D licena, vou sentar com meupessoal diz-me. Nos vemos amanh.

    Claro. At amanh.Olho para ele juntando-se ao grupo sen-

    tado mesa e, enquanto confiro obcecada denovo o brinco fujo, tento me livrar dessasensao absurda de embarao.

    Pouco depois Gaia reaparece. Conseguiufugir das obrigaes de relaes-pblicas.

    73/592

  • Senta de novo no banco e fixa em mim umolhar quase policial. Preparo-me psicologica-mente para o interrogatrio.

    Ele, querida... e aqui j sei aondepretende chegar , quem era aquele cara?

    Quem? No disfarce ela me corta , o

    homem com quem voc estava falando hum minuto.

    o sujeito que Brandolini teve a gen-tileza de hospedar no palcio. O nome dele Leonardo, chef. Minha voz deixa trans-passar um pouco de ansiedade.

    Interessante... Gaia observa-o delonge. E quantos anos ele tem?

    Sei l. S troquei duas palavras comele.

    Claro que voc podia me apresentar... sexy de matar!

    Minha nossa, Gaia, voc est sempre caa! Abro os braos. E, de todo modo,

    74/592

  • no sei o que voc v nele, um grosso digo, e dessa vez sou eu quem o olho.

    Com certeza ele no igual aos outros,aquele l um homem de verdade, escute oque estou dizendo, Ele... Gaia morde olbio.

    Procuro as palavras para contradiz-la,mas no as encontro.

    Meninas! Uma voz familiar me salvada aula de anatomia masculina que Gaia estprestes a dar.

    Filippo abre caminho entre as pessoas enos cumprimenta com dois beijos.

    Desculpem, tive um aborrecimento noestdio. Aquele mala do Zonta me faz trabal-har at aos domingos. Ele e os clientesmilionrios dele... Gaia, h quanto tempono nos vemos?

    H uns dois anos, Filippo. E, por favor,me diga que no envelheci, mesmo se achar

    75/592

  • que sim. Ns trs damos uma gargalhada.Ento Gaia estende-lhe um spritz.

    Beba isso agora e depois vamos jantar. Vocs j escolheram o lugar? Filippo

    beberica o drinque sem fazer objeo. Por que no vamos ao restaurante ve-

    getariano no Ghetto? proponho. Pelo ol-har deles entendo imediatamente que nogostaram muito da minha ideia.

    Ele diz Gaia , como eu digo isso...Essa sua cisma de no comer carne j me en-cheu um pouquinho.

    Tudo bem, finjam que eu no dissenada. Insensvel. Fao uma cara dezangada, mas nunca me irrito realmentequando Gaia faz comentrios sobre minhasmanias vegetarianas.

    Vamos ao Mirai intervm Filippo ,o restaurante japons em Cannaregio.

    Vamos! exclama Gaia. Adorosushi, o de l maravilhoso.

    76/592

  • Tudo bem, assim pelo menos possocomer um pouco de arroz e legumes.

    Ento, todo mundo topa? Filippo meolha como se dissesse espero ter encontradoum bom meio-termo.

    Sorrio para ele e concordo. Vamos!

    No Mirai o jantar foi agradvel. No fimdas contas foi uma mesa para dez, j queGaia estendeu o convite para outras pessoasque encontrou no Muro. Obviamente era ummovimento estudado. Sim, porque, quandoacabou o jantar, a rainha da noite conseguiuarrastar todos ao Piccolo Mondo, uma dasdiscotecas onde trabalha como relaes-pblicas. Todos, menos eu e Filippo.

    Assim que recusei o convite, Filippo meprops que continussemos a noite juntos eagora estamos vagando pelas ruas. Ainda hpessoas circulando, a temperatura ainda est

    77/592

  • amena o bastante para dar vontade de sairde casa. Os bares esto lotados e de vez emquando vemos algumas pessoas saindo cam-baleando. Eu tambm comeo a cambalear, eno por causa do lcool, mas por culpa dassandlias que esto me massacrando.

    Por favor, no aguento mais, vamosparar um pouco.

    Nem acabei de falar e j me joguei em umbanco vazio, e estou vasculhando na bolsa naesperana de encontrar um Band-aid. Nada.Eu tinha at pensado em pegar dois antes desair, mas depois esqueci. Tiro as sandlias emeus ps esto vermelhos e inchados, mar-cados pelos cadaros. As crueldades damoda.

    Meu Deus, eles ficaram destrudos... murmuro, acariciando-os. Mas doem muito.

    Filippo apanha meu p direito e o apoiaem seu joelho, obrigando-me a girar o corpotodo em sua direo.

    78/592

  • O que est fazendo? pergunto,surpresa.

    Pronto socorro responde ele,comeando a massagear. Seu toque teraputico, sinto o sangue recomeando afluir. Por um tempo relaxo e deixo que suasmos se movam macias sobre mim. Aos pou-cos, porm, o constrangimento substitui oalvio. Estou deitada num banco de rua, nomeio da noite, com Filippo massageandomeus ps. uma situao um pouco es-tranha... E seu gesto ntimo demais parans dois. Eu o olho e percebo que ele tam-bm est me fitando. Mas no do jeito queum amigo faria. Nossos rostos esto bemprximos, estamos prestes a nos beijar, sintoque est para acontecer, eu quero, mas tenhoum pouco de medo, prendo a respirao...

    Um celular toca, trazendo-nos brusca-mente de volta realidade. o meu.

    79/592

  • Ele, desculpe a hora. J estavadormindo?

    Gaia. No, no...O encanto se quebra. Coloco os ps apres-

    sadamente de volta nas sandlias. Enquantoas fecho, dou uma olhada maliciosa para Fil-ippo: ele parece decepcionado, e talvez eutambm esteja. Mas no h mais nada a sefazer, Gaia exige minha ateno, nessemomento.

    Voc me ouve? Onde est? Sim, desculpe. Ainda estou na rua... Escute, estou na merda! Briguei com

    Frank no Piccolo Mondo... Ele doido, mechamou ao escritrio l em cima e comeou adizer que da ltima vez eu levei uma gen-tinha discoteca. Fui embora batendo aporta. Mas acabei deixando as chaves e tudoo mais na escrivaninha dele.

    E voc no pode voltar para busc-las?

    80/592

  • No, Ele, nem quero mais ver aquelebabaca de novo. Eu volto l amanh, quandoa discoteca estiver fechada e ele no estiverl. Mas essa noite... Posso dormir na suacasa?

    Claro, espero voc l em casa daqui apouco.

    Chego em dois minutos.Dois minutos? Ento ela j tinha certeza

    de que eu diria sim.Desligo e viro-me para Filippo. Desculpe, mas Gaia est vindo para a

    minha casa, ela perdeu as chaves.Ele sorri, mas percebo em seus olhos um

    vu de tristeza. No tem problema, Ele, eu vou com

    voc at o vaporetto.Ns esperamos por 15 minutos quase em

    silncio, no ar o embarao por causa daquelebeijo que no aconteceu. Trocamos algumasfrases formais, s para quebrar o gelo.

    81/592

  • Quando o vaporetto chega, para mim pareceum prncipe encantado que veio me salvar epulo nele com prazer, quase correndo.

    Bibi... Voc no vai sumir, no ? pergunta Filippo, do cais.

    Claro que no, a gente se v logo re-spondo, balanando a mo. Ento vou em-bora deslizando na gua.

    Em frente ao porto de casa encontroGaia, ainda com raiva. Enquanto subimos asescadas ela me conta tintim por tintim ahistria com Frank e eu me distraio pelomenos um pouco do pensamento de Filippo.s vezes ela se empolga demais e tenho quepedir que abaixe a voz: est tarde, esto to-dos dormindo no prdio.

    Enquanto retiramos a maquiagem nobanheiro, noto o olhar de Gaia me seguindono espelho.

    82/592

  • Por acaso voc est me escondendo al-guma coisa? Pronto. Gaia, a GrandeInquisidora.

    E o que eu estaria escondendo? falolentamente, escovando os dentes.

    No sei, voc e Filippo no esto medizendo tudo. Eu interrompi alguma coisa?

    Gaia, somos s amigos.Ela no se convence nem um pouco. Hum... Acho que ele gosta de voc.

    Alis, sempre gostou.Dou de ombros. E voc gosta dele? No sei. Nunca pensei nisso de ver-

    dade. E estou dizendo a verdade. Pelomenos at essa noite...

    Vamos para debaixo das cobertas naminha cama de casal e sabe-se l por queisso nos deixa alegres, de repente. Gaia jogaum travesseiro no meu rosto e logo nos

    83/592

  • voltam cabea aquelas festas do pijama quefazamos quando ramos adolescentes. Ri-mos das garotas que ramos naquela poca ede como somos agora. Apago a luz do abajure nos desejamos boa-noite.

    Acabei de pegar no sono quando a voz deGaia me acorda.

    Ele... Hein? respondo, com sono. Aquele tal de Leonardo... Voc disse

    que mora no palcio onde voc est trabal-hando, no ?

    . E onde , exatamente? Amanh eu explico. Agora dorme.

    84/592

  • 3 Ele!Algum est sacudindo meus ombros. Vamos, Ele, acorde! A voz de Gaia

    me traz de volta realidade em umsobressalto.

    O que foi? resmungo, com a vozempastada.

    Merda, lembrei que tenho que buscarContini no aeroporto... O diretor de cinema...Ele tem uma reunio no ateli de Nicolaopara o figurino do prximo filme.

    O cheiro do caf fresquinho invade do-cemente minhas narinas.

  • Mas que horas so? So 7h15. Tomara que o voo de Roma

    esteja atrasado...Esfrego os olhos para enxergar melhor.

    Gaia j est vestida e maquiada. No seicomo ainda consegue andar com as botascurtas de ontem noite.

    Tenho que ir embora. O caf estpronto na cafeteira. Ela me d umbeijinho. Obrigada por ter me acolhido.

    Imagina resmungo, virando para umlado. timo levar chutes a noite inteira.

    Gaia desarruma meu cabelo e sai encost-ando a porta, deixando-me sozinha noquarto para acabar de acordar. Sigo-a empensamento pelas escadas, imagino-a jgrudada ao BlackBerry falando de roupas,acessrios e lantejoulas.

    Com um esforo que me parece de-sumano me apoio na cabeceira da cama. Meucorpo estala. Talvez eu devesse levar em

    86/592

  • conta a ideia de ir academia com ela. Gaiano demonstra de jeito nenhum nossos 29anos, uma exploso contnua de energia.

    Mas s de pensar em estar apertada emleggings coloridas, em frente a um espelho,saltitando no ritmo de uma msica, desan-imo para qualquer ideia de malhao. Tereique conviver com as juntas que estalam,tenho que me conformar com isso.

    Saio da cama e mergulho no armrio,onde pego por acaso uma saia e um casa-quinho esportivos antes de me rastejar at obanheiro.

    Fora do porto a primeira luminosidadedesta manh de outubro me recebe. umaluz suave, que aquece sem ferir o olhar. Hojeno vou pegar o vaporetto, de San Vio atCa Rezzonico so dez minutos e quero curtirtodos eles.

    87/592

  • Aos poucos me acostumo com a luz dodia. Os olhos no podem me trair, no hojeque me dedicarei de corpo e alma quelarom: meu desafio ser encontrar o tomperfeito.

    Caminho sem pressa, a passos relaxados;um pouco porque ainda estou com os psdoloridos de ontem noite e um poucoporque impossvel no se deixar conquistarpela calma de Veneza.

    A primeira ponte do dia est ali, para melembrar de que a alma desse lugar a gua, eno a pedra. E gosto de parar nem que sejaum momento para observar a vida aqui decima. O rio de San Vio um canal estreito,esquisito, uma faixa que liga o Grande Canals Zattere, cortando o bairro em dois. Daquipodemos ver as duas faces de Veneza: SanMarco de um lado, a Giudecca do outro. AVeneza dos turistas e a dos venezianos.

    88/592

  • O sino da igreja de Santa Ins bate asnove. Me apresso. Estou atrasada. Enquantopasso ao lado das Galerias da Academia, umamulher loira e acima do peso me pede emingls para tirar uma foto dela com o namor-ado. Eu no estou com a menor vontade, es-tou com pressa, mas respondo que sim e, en-to, ela me estende a mquina fotogrfica ex-plicando qual boto apertar. Ajeito minhabolsa no ombro e me posiciono bem, en-quanto suas expresses se congelam, felizes,no enquadramento.

    Clic. Arrumo o foco, primeiro disparo. Cl-ic. Pose para a foto, sorrisos mostrando os 32dentes e uma vista digna de carto-postal,provavelmente a que vo escolher para o l-bum. Clic. A terceira foto, inesperada, semfazer pose. A melhor.

    O casal solta-se do abrao e me agradecediversas vezes. Como muitos outros, no vi-eram a Veneza apenas para conhecer a

    89/592

  • cidade, mas para tentar viver sua histriaromntica. E eles tm todo o direito. Pelomenos eu acho...

    Esboo um sorriso e vou embora. Umabrisa leve desarruma meus cabelos. Aindano incomoda, mas uma pequena amostrado outono que est quase chegando.

    O ar tem cheiro de croissants quentes ecappuccino, aquele perfume intenso que meacompanha sempre que vou para o trabalhoa p. Quase nunca paro no caminho para to-mar caf da manh. De manh eu no como,tenho o estmago fechado e, alm do mais,se eu comer fico com sono. Hoje vou daruma paradinha na tabacaria que fica em-baixo do prtico para comprar palitinhos dealcauz; ajudam-me a ficar concentrada eevitar quedas crnicas de presso.

    A rua do palcio desemboca diretamenteno Grande Canal. preciso tomar cuidadoao percorr-la, principalmente noite.

    90/592

  • uma ruazinha annima, escondida, poucoiluminada e pouco nobre, infestada de ervasdaninhas que trepam nos muros. Ningumdiria que no final desta viela de pedregulhosse esconde uma das construes mais lindasde Veneza.

    Por outro lado, essa cidade uma anom-alia urbanstica. Tudo parece estar emrunas, a ponto de se desmanchar na guaturva. Mas ao mesmo tempo tudo vivo,tudo arrebata os olhos com uma beleza detirar o flego.

    Pincis e tmperas esto exatamenteonde os deixei sbado, na mesma rigorosaordem. Ningum tocou neles e isso me tran-quiliza. O afresco tambm est bem, noaconteceu nada com ele. que podemacontecer inmeras coisas com uma obra emrestaurao quando deixada sem vigilncia.Todas as manhs, fico ansiosa com a possib-ilidade de encontrar uma bela mancha de

    91/592

  • umidade, uma colnia de formigas ou im-presses digitais.

    Do quarto de Leonardo no chegamsinais de vida. Talvez j tenha sado.

    Visto o uniforme de trabalho e, comouma caa-fantasma, estou pronta paracomear. Quase pronta... Tenho que refres-car os olhos com o colrio de qualquer jeito.Por culpa de Gaia, que no parava de se virarna cama e, na verdade, de Filippo tam-bm, que continuava a rondar a minhacabea , no dormi bem esta noite e meusolhos esto pesando como duas bolas dechumbo.

    Por um instante a cena de Filippo mas-sageando meus ps naquele banco invademeus pensamentos. Foi ontem noite, masquase parece um sonho, agora. A lembranaest desfocada, no consigo reviver assensaes que ela traz. Estranho.

    92/592

  • Tiro o vidrinho azul do bolso do macaco,reclino a cabea para trs e deixo caremduas gotas no olho direito e duas no es-querdo. No incio o lquido queima, mas emcinco segundos passa tudo e sinto-me umanova pessoa.

    De repente, uma risada maliciosa tomaconta do saguo. Ainda estou com os olhosembaados, mas mesmo assim consigo verduas silhuetas avanando em minha direo.De mos dadas. Leonardo e... pisco paraenxergar... e uma mulher lindssima, cabelosesvoaantes e pele de porcelana, o corpo en-volvido por um elegante vestido curto de ce-tim vermelho que, alm de ressaltar as per-nas torneadas e esguias, deixa suas costas in-teiras descobertas. Tem um porte de fazer in-veja a Audrey Hepburn, o olhar satisfeito eluminoso.

    Bom dia, Elena diz Leonardo,quando passam ao meu lado. No est

    93/592

  • vestido para sair, usa um agasalho de mo-letom e chinelos de dedo. Um contrastebizarro com a elegncia dela.

    Ol respondo, com uma indiferenacalculada.

    A diva me cumprimenta com um gesto eacompanha Leonardo com o olhar, tambori-lando os saltos no cho. Dirigem-se s esca-das que levam sada, ele desliza uma monas costas nuas dela com um gesto sensual eao mesmo tempo protetor. O contraste entresua pele escura e a pele alva dela perturb-ador. Impossvel no reparar nisso. evid-ente que passaram a noite juntos, quasesinto o cheiro de sexo vindo deles.

    Eu queria mergulhar no meu trabalhonovamente, mas outra coisa me distrai, destavez um estrondo do lado de fora que, de re-pente, faz com que as paredes vibrem. Pareceo motor de um barco. Curiosa, afasto a cor-tina de uma das portas-balces que do para

    94/592

  • o Grande Canal e percebo que uma lanchabranca est atracada ao per do palcio. E lest a diva: acabou de tirar os sapatos desalto e colocou uma jaqueta preta de couro.Agora, ela se aproxima da borda e procuraLeonardo. Ele rapidamente projeta-se domolhe, toca levemente seus lbios com umbeijo, depois tira a corda da estaca de at-racao e despede-se dela. A diva coloca cu-los de sol pretos, aciona a alavanca sobre aponte de comando e parte a toda velocidade,deixando para trs um rastro acinzentado.Parece a cena de um filme, mas tudo ver-dade, aqui, diante dos meus olhos.

    Ajeito a cortina e volto ao trabalho imedi-atamente. Aquilo no me interessa, repitopara mim mesma, e tento pensar em outracoisa.

    Leonardo volta logo depois. Finjo que es-tou muito ocupada enquanto misturo aoacaso alguns pigmentos, esforando-me para

    95/592

  • manter o olhar baixo. Ele passa na minhafrente sem dizer uma palavra e em um se-gundo desaparece em seus aposentos,assobiando.

    Preparo um pouco de vermelho, subo naescada e estou pronta para me dedicar rom. Agora espero poder trabalhar em paz,mas, como sempre, os pensamentos vo paraonde bem entendem, dando voltas na minhacabea. Sabe-se l se aquela era a mulher deLeonardo ou somente um caso de umanoite... No consigo tirar dos olhos a imagemdele tocando levemente as costas nuas dela e,depois, aquele beijo, to fugaz, mas sensual.

    Agora o barulho da gua corrente chegado banheiro. Depois uma voz poderosa masdesafinada canta uma msica que fala de sale de mar. Leonardo est fazendo as coisascom calma, parece no ter muita pressa parair trabalhar esta manh.

    96/592

  • Viro-me para procurar um pincel e per-cebo que ele acabou de sair do banheiro e es-t vindo em direo ao saguo. Sem camisa.Uma toalha enrolada na cintura, os cabelosmolhados e os ps descalos. Lembra umgladiador. Aproxima-se de mim com um arousado e o piso instvel oscila um pouco sobseu peso.

    Ento, Elena, tudo bem? Tudo bem, obrigada digo, quase em

    voz baixa, demonstrando indiferena. Tentomanter o olhar grudado no afresco. Sinto-medesconfortvel, pequena e desajeitada nomeu macaco largo. Por que ele no vai sevestir?

    E como vai o trabalho? Balana oscabelos e uma nuvem de gotinhas se solta noar. Vejo-o com o canto do olho. Felizmenteainda est a uma distncia segura da parede.

    Tudo indo...

    97/592

  • Sabe que voc parece muito mais vontade nessa escada do que no banco de umbar?

    Vou considerar isso um elogio. E , na verdade.No faz meno de ir embora. Sinto-me

    observada, quase examinada, e no gostodisso.

    Desculpe, mas estou muito ocupada... digo, virando-me levemente em direo aoafresco.

    Claro responde, esboando um sor-riso consciente e levantando as mos. Voc no gosta de ter gente por pertoquando est trabalhando. Foi muito clara on-tem noite...

    Exatamente balbucio, enquanto ovejo se afastar em direo ao seu quarto. Masno sei se digo isso ou se apenas penso.

    Assim que fico sozinha, deso da escada:preciso de alcauz. A presena de qualquer

    98/592

  • outra pessoa me incomoda; a dele, porm,me desestabiliza.

    Respiro fundo e com um palitinho quederrete na minha boca decido recomear.Merda, a cor secou completamente. Ficoudensa demais. Agora tenho que esvaziar ospotinhos, lav-los e regular novamente asquantidades do p. Vou tentar usar o pincelde ponta chata, pelo menos para a primeiraaplicao, assim soluciono maisrapidamente.

    Subo na escada de novo, verifico de perto,mais uma vez, a tonalidade das sementespara fix-la bem na cabea. Ento, experi-mento uma nova mistura de vermelho eroxo.

    Do corredor minha direita ouo os mes-mos passos seguros se aproximarem. Viro-me instintivamente: desta vez ele estvestido. Usa uma cala jeans rasgada e umacamisa de linho branca esse homem adora

    99/592

  • linho. No pescoo uma echarpe de seda pretaque esvoaa a cada movimento seu. No seicomo consegue no sentir frio. J estamosem outubro...

    Aproxima-se at apoiar um brao na es-cada. Um arrepio atravessa minha coluna eme faz perder levemente o equilbrio. Notenho ideia do que est acontecendo comigo,mas no estou gostando.

    Vou sair para comprar algumas coisaspara o restaurante diz, olhando para cima. Vou at Rialto, voc precisa de algumacoisa?

    No, obrigada, no preciso de nada. Tem certeza? inclina levemente a

    cabea para o lado e a luz atinge seu brinco,fazendo-o cintilar. Seus olhos tambm bril-ham de um jeito estranho. Quase parecemsorrir. Nunca achei to sexy ruguinhas de ex-presso ao lado dos olhos. Ai meu Deus, o es-prito de Gaia est baixando em mim...

    100/592

  • Tenho, de verdade. No estou fazendocerimnia. Recupero-me, virando emdireo parede para no ficar abobada denovo. O afresco minha nica salvaoagora. Ah, para ir a Rialto melhor pegaro vaporetto, assim voc no corre o risco dese perder acrescento, tentando pareceresperta.

    Mas to bom se perder em Veneza! D de ombros.

    Eu disse isso s para faz-lo ganhartempo. Imagino que deve ter mil coisas pararesolver.

    Claro, mas eu deixo as chateaes paraos meus funcionrios. Eu cuido da parte di-vertida da brincadeira. Sorri, seguro de si.D a impresso de algum que tem confianaabsoluta no prprio talento, algum paraquem as coisas saem naturalmente bem, semmuito esforo.

    101/592

  • Deixei croissants e caf ainda quentesna cozinha, se quiser tomar caf da manh.

    No, obrigada. Quase nunca como demanh... E, alm disso, no posso inter-romper o trabalho agora.

    Por qu? parece curioso. Tenho que ficar com o olho focado na

    cor, ou eu a perco.Leonardo passa uma mo no queixo e me

    fita. A cor daquela rom? Sim concordo, olhando-o na minha

    frente. Estou batendo a cabea h dias, es-t me enlouquecendo. Tem mil nuances e to-das muito difceis de representar, sem falarno chiaroscuro... Vejo-me sendo elo-quente contra a vontade, falar do meu tra-balho me empolga. Leonardo deve ter perce-bido porque est sorrindo. Observa atenta-mente a rom, depois a mim, como se est-ivesse refletindo sobre alguma coisa.

    102/592

  • Fico quieta de repente, no sei no que es-t pensando, mas digo a mim mesma queno tenho que me importar com isso. Ele mefez perder tempo at demais. Estou para medespedir dele, quando uma voz conhecidame impede.

    Ele, cad voc? barulho inequvocode saltos nas escadas. Tem algum aqui?

    Leonardo me olha interrogativo e eu lhefao um sinal para dizer que est tudo sobcontrole. Gaia materializa-se no saguo: pas-sou em casa para mudar de roupa, no estmais vestida como ontem noite, mas estimpecvel como sempre. CumprimentaLeonardo antes de falar comigo.

    Oi... Oi ele responde inclinando um pou-

    co a cabea. Passei para dar um oi ela me diz, en-

    to, com um sorriso inocente. Mentirosa.Desde que comecei a trabalhar neste saguo

    103/592

  • ela nunca veio me visitar, sequer uma vez.Est aqui s por causa dele, deve ter visto oendereo em algum lugar na minha casa.Quando quer, exibe qualidades insuspeit-veis de detetive.

    Continuo grudada na minha escada, nodeso nem por um decreto. Pelo menos aquide cima posso curtir a cena em suatotalidade.

    Mas voc no tinha um compromissoimportantssimo hoje de manh? pergunto-lhe, pelo puro prazer sdico decoloc-la em uma situao difcil.

    Tudo resolvido! E j at peguei minhabolsa no Piccolo Mondo apressa-se em re-sponder e me olha como se quisesse dizer oque voc est esperando para me apresentara esse homem?.

    Percebo que Leonardo a est examinandosatisfeito, com uma das mos no bolso dacala jeans e um dedo sobre os lbios.

    104/592

  • Esta Gaia, minha amiga digo.Minha apresentao soa estranhamentesolene do alto.

    Prazer, Leonardo. Aperta a mo delavigorosamente. Est com uma expressomais sedutora ou divertida? No saberiadizer. Volto a misturar a cor, para demon-strar que no estou interessada no queacontece a um metro e meio abaixo de mim.

    Prazer... ouo a voz de Gaia e tenhocerteza de que est piscando cheia de mal-cia. Embora eu no a veja, claro que estdando o melhor de si. De repente eu a escutoexclamar:

    Que trabalho esse seu, Ele! enorme,mas maravilhoso... Eu a olho surpresa edesconfiada: ela nunca deu a menor im-portncia para restauros e afrescos. No mesmo? acrescenta, ento, dirigindo-se aLeonardo. Isso mesmo: ela est apenas pro-curando um pretexto para puxar conversa.

    105/592

  • Elena tem uma grande paixo por seutrabalho, d para ver. A vibrao quenteda voz de Leonardo sobe at mim.

    Gaia, enquanto isso, conseguiu uma aber-tura e, gil, a agarrou:

    E voc, trabalha com o qu? Sou chef. Agora estou inaugurando o

    novo restaurante dos Brandolini.Sei exatamente quais sero as prximas

    palavras de Gaia: Um chef... Incrvel! Chef, que trabalho interessante.Eu me enganei, mas por pouco. Sorrio,

    eles no esto me vendo mesmo.Gaia continua com as perguntas de

    sempre: h quanto tempo voc est emVeneza, at quando fica, est gostando...

    Ri e concorda solenemente toda vez queele diz alguma coisa. Sei de cor todo o seu ar-senal de seduo: olhos lnguidos, dedosbrincando com os cabelos, sorriso malicioso,lbios num biquinho...

    106/592

  • Projeto-me da escada para assistir ao es-petculo e talvez tambm para conferir queefeito provoca em Leonardo. Parece satis-feito. At ele, como todos os outros, parecevencido pelo fascnio de Gaia. Mas de re-pente ele se lembra de mim e levanta o olhar.Eu me retraio de um pulo e quase deixo cairum potinho.

    Por acaso estamos atrapalhando voc,Elena?

    Resolvo ser um pouco azeda: Bem, vocs que sabem...Leonardo dirige-se a Gaia novamente: Melhor eu ir, at porque estou at-

    rasado. Foi um prazer, de todo modo. O prazer foi meu responde ela,

    derretendo-se como um bombom ao sol.Leonardo despede-se de ns, depois vai

    apressado em direo sada. Gaia reparaem seu bumbum, eu olho Gaia e,

    107/592

  • inevitavelmente, meu olhar tambm caisobre o objeto em questo. Depois nosfitamos.

    Nada mal... Ns duas pensamos,mas s ela diz. Como voc consegue tra-balhar com um sujeito desses por perto?

    Como consigo trabalhar com vocsdois flertando aqui embaixo, voc quer dizer! rebato, indignada. Voc at finge tervindo aqui para me ver... Voc no temvergonha...

    Eu tenho que inventar alguma coisa, jque voc no colabora comigo. Quer descerdessa escada, por favor?

    No.Suspira, coloca um p no apoio da escada

    e um brao sobre um degrau, ainda olhandona direo em que Leonardo foi.

    De todo modo, Elena, aquele homem uma coisa de louco. Voc tem que admitirisso, seno eu te derrubo da.

    108/592

  • Adoto a estratgia da indiferena. Passe-me aquela esponjinha, assim

    pelo menos voc til.Gaia obedece, depois olha em volta para

    estudar o ambiente, visto que at agora noteve tempo de fazer isso.

    O quarto dele para l? pergunta,apontando o corredor que leva esquerda.

    Sim. Voc j viu o quarto dele? No, por qu? No acredito... No teve vontade de

    bisbilhotar? No que no tenha tido... Um arre-

    pio de terror me sacode, pensando no que elaest arquitetando.

    Eu tenho vontade e vai naqueladireo sem me esperar.

    Gaia, volte aqui imediatamente! grito para ela, mas claro que intil. Souobrigada a descer da escada. Corro atrs

    109/592

  • dela. O que voc quer fazer? Para comisso! Eu a alcano e agarro sua manga,mas ela mais forte e decidida e me arrastajunto.

    Ora, s uma olhadinha! insiste, todaempolgada.

    J atravessamos o corredor e estamos su-bindo as escadas que levam ao andar decima, onde fica o quarto de Leonardo. Sempoder par-la, sou obrigada a segui-la paraevitar que apronte alguma catstrofe, ou, pi-or, deixe rastros.

    Escute, vai acabar sobrando para mim,eu trabalho aqui! Tento mostrar a ela queisso me causaria constrangimento, mas es-queo que o assunto trabalho no significamuita coisa para ela.

    A porta do quarto est aberta. O cmodo enorme como eu imaginava, parece umasute de um hotel de luxo. A cama, no meio,ainda est por fazer, os lenis de seda

    110/592

  • embolados pendem de um lado. Por todaparte uma forrao vermelha e dourada, quese reflete infinitas vezes nos enormes espel-hos que ocupam as duas paredes aos ladosdo dossel. um ambiente sexy e elegante,decorado com um pouco de vaidade. Certa-mente Brandolini no lhe deu esse quartopor acaso...

    Que estilo! exclama Gaia. Que baguna! eu fao eco. Est tudo

    desorganizado. Ao que parece, Leonardo nose preocupa muito com arrumao. Napequena poltrona de veludo vermelho umadezena de camisas est amontoada e duascalas de linho esto jogadas no cho sobre otapete persa.

    normal que esteja bagunado dizGaia, com ar de sabe-tudo. Ele umartista.

    Na verdade, ele um cozinheiro eu acorrijo , e, de qualquer jeito, essa histria

    111/592

  • do gnio e a falta de regras uma grandebobagem, ou s uma desculpa...

    Pode ser, mas no caso dele verdade rebate, decidida. Ora, s de olhar para eled para entender que tem uma personalid-ade excntrica, que um homem criativo.

    mesmo? Ento voc j sabe tudosobre ele.

    Algumas coisas so bvias. Ponto.Sobre a mesinha de cabeceira

    sobressaem-se uma garrafa aberta de Mot &Chandon e uma bandeja de prata com duastaas. Uma delas com marcas de batom.

    Gaia me d uma olhada eloquente e con-firmo o que j intu.

    Hoje de manh havia uma mulher comele e estava claro que tinham passado a noitejuntos. Talvez eu tenha encontrado o jeitode neutraliz-la, por isso sou mais feroz:

    112/592

  • E ela bonita, rica e charmosa. Prat-icamente insupervel. At para voc,querida... Por isso, agora vamos.

    Humm, a brincadeira est ficando in-teressante... Os olhos de Gaia acendem-sede curiosidade. Acho que consegui o efeitocontrrio.

    Talvez no seja sua mulher. Seno viv-eriam juntos, no ? continua, agarrando-se em suas suposies. normal que umhomem assim tenha mais de uma amante. Da prxima vez, tenho que lembrar quequando tento desencoraj-la s pioro asituao.

    Em vez de sair do quarto, como eugostaria, Gaia aproxima-se do armrio e oabre. Por um instante meu olho cai sobre ocinzeiro no centro de uma mesinha e perceboque h restos de maconha. No digo nada aela porque no quero alimentar ainda maisseu interesse.

    113/592

  • Adora roupas de linho amassado constata, surgindo de uma porta do armrio.Depois se aproxima da poltroninha sub-mersa por camisas e percorre as peas usa-das por Leonardo com um ar sonhador. elegante, tem bom gosto... E, confie em mim,essa uma caracterstica rara em umhomem.

    Agora, chega, voc j me encheu! ex-plodo, desistindo de usar qualquer estratgiapsicolgica. Vamos embora daqui, porfavor!

    Aproximo-me de Gaia para peg-la pelobrao, quando minhas narinas so agrada-velmente pinicadas por um perfume intenso,talvez mbar. Eu o sinto de um modo ntido,imediato: o cheiro de Leonardo, do qual es-to impregnadas suas roupas. Sinto-me pou-co vontade como se ele estivesse aqui. PuxoGaia pela manga.

    114/592

  • Ora, para de ser chata... S um mo-mento... protesta ela, tentando se soltar.

    De repente, um rudo do lado de fora nosparalisa. Ouvimos uma porta se fechar comum rangido. Meu Deus, Leonardo j voltou.

    Est vendo? eu rosno, tomada pelopnico.

    Ns nos atiramos para fora, voando es-cada abaixo. Quando surgimos no saguo sem flego e com o corao a mil , quasedecepcionadas, percebemos que no Leonardo, mas o vigia do palcio.

    Recomponho-me em um instante e digo,desenvolta:

    Bom dia, Franco. Bom dia, senhorita. Passei para dar

    uma olhada. Est tudo bem? Tudo bem, obrigada, nenhum prob-

    lema. Minha voz vacila por causa da cor-rida de momentos antes. Eu estava

    115/592

  • mostrando o palcio para uma amiga queveio me visitar.

    Ol diz Gaia, acenando para ele.Franco pousa um olhar benevolente em ns,aquele que, tenho certeza, reserva s moasdireitas.

    Est bem, ento eu vou embora conclui, aproximando-se da sada. Se pre-cisar de alguma coisa...

    Obrigada, Franco, no preciso de nada.At amanh.

    At logo.Quando a porta se fecha, eu e Gaia nos ol-

    hamos. Eu queria esgan-la, mas sinto osmsculos do rosto cederem sob o impulso deuma risada. Explodimos em uma gargalhada,cobrindo a boca com as mos como quandoramos crianas e tnhamos acabado de ap-rontar uma das nossas.

    Esforo-me para ficar sria novamente.

    116/592

  • Mas agora voc vai sumir daqui, certo? ameao em um tom intimidador. Perceboque est mesmo tarde e de qualquer jeitodevo refazer todo o trabalho que no deucerto.

    Tudo bem, vou deixar voc em paz. Gaia faz meno de ir embora, mas antes desair se vira em minha direo: Mas a gentese divertiu. E como sempre o mrito todomeu... diz, dando uma piscadinha.

    Some sorrio. Tchau, ridcula.

    J passou muito das seis e me resigno avoltar para casa, embora o dia no tenha sidoprodutivo como eu gostaria. intil, im-possvel trabalhar com um vaivm desses!Praticamente joguei a manh fora, apenas tarde consegui recuperar um pouco de con-centrao, mas deixei a rom de lado, pelomenos por enquanto, e fiz uma primeira

    117/592

  • aplicao da roupa de Proserpina. Pelomenos isso ficou bom.

    Assim que abro o porto para a rua, per-cebo que menosprezei demais o alarme met-eorolgico divulgado ontem noite pelocentro de mars. A gua est subindo emuma velocidade espantosa. Eu devia ter idoembora antes, assim que ouvi a sirene dotoque de recolher, mas eu quase nunca douimportncia e sempre acho que a gua de-mora bastante para subir, e s vezes nemsobe. Desta vez eu fui realmente uma idiota.Deixei as galochas em casa hoje de manhestava sol! um clssico: estou com elas squando no preciso, um pouco como oguarda-chuva.

    Tento andar alguns metros, caminhandona ponta dos ps com minhas sapatilhas decamura na gua que j comea a escorrerpelo cho, lenta, mas implacvel. muito di-fcil. Chego ao final da rua com os ps

    118/592

  • completamente encharcados. Eu poderiaprocurar dois sacos plsticos e cobri-los, am-arrando as alas em volta dos tornozelos.Mas acho que j tarde demais, consider-ando que em cinco minutos a gua parece tersubido pelo menos trinta centmetros.

    Protejo-me em cima de um murinhoainda seco para avaliar o que fazer... Emboraperceba que no h muita coisa para avaliar.Ou continuo em direo minha casa,sabendo que chegarei encharcada e terei quejogar a roupa fora, ou volto para o palcio,correndo o risco de ficar presa l dentro attarde da noite, quando a mar ter baixado.

    Enquanto estou indecisa entre essas duasopes, ambas pouco atraentes, Leonardo saido porto do palcio assoviando, com botasde pescador nos ps.

    Oi, Elena, o que voc est fazendo a? pergunta, assim que me v encolhida nomurinho como um gato com medo de gua.

    119/592

  • Estava tentando voltar para casa... respondo, tentando desesperadamentemanter a dignidade. Mas voc no estavano restaurante?

    Estava, mas voltei por volta das cinco disse, vindo em minha direo e deslo-cando metros cbicos de gua sob seus pas-sos. S que voc estava to mergulhada notrabalho que nem se deu conta e no quisincomod-la.

    Ah. Ele me alcanou. Daqui de cimaestou to alta quanto ele.

    O que fazemos? Observa comprudncia o nvel da gua. Quer que lhe duma carona at em casa?

    E como? Voc se agarra em mim ordena,

    batendo em um ombro que eu cuido doresto.

    A proposta soa um pouco indecente. Olhopara ele, hesitante. Gostaria de responder:

    120/592

  • No se preocupe, obrigada, eu me viro dealgum jeito, mas nas minhas condies nodaria para acreditar. Acho que terei deaceitar.

    Mas tem certeza? Voc vai perdertempo... Estou quase aceitando...

    Faz um gesto animador com a mo e vira-se, mostrando-me as costas. Tudo bem,aceito.

    Suas costas so grandes, parecem umamontanha a ser escalada. Debaixo da camisade linho habitual posso entrever os mscu-los. Levanto um p, mas o coloco de volta nocho, indecisa. Como eu fui burra, quandohoje de manh pus saia e meias trs-quartos.Sinto-me desajeitada como quando na escolaa professora de educao fsica me mandavasaltar com a vara, sob o olhar cruel de meuscolegas. Tento novamente, primeiro apoiouma das mos em seu ombro, depois a outra,e o aperto, deixando-me levar, com o resto

    121/592

  • do corpo contra suas costas. Leonardo agarrauma de minhas pernas e a enlaa em volta dacintura. E eu fao o mesmo com a outra.

    Est pronta? pergunta. Acho que sim. Agora meu corpo se

    gruda completamente o dele. E voc?Consegue?

    Voc leve como uma pluma. Ri. Se-gura minhas coxas nuas com as mos e, cam-inhando com passos de gigante, ultrapassa aprimeira ponte em um minuto. Sinto meuseio esmagado contra seus msculos dorsais,enquanto envolvo seu pescoo com os braospara no cair. Est com um perfume bom, omesmo que senti hoje em suas roupas. Masabaixo posso perceber outro, mais autnticoe selvagem, o de sua pele. Cheiro de vento ede mar.

    Para qual lado? pergunta, quandoterminamos de passar pela ponte.

    122/592

  • Indico o caminho, falando a um cent-metro de seu ouvido, num sussurro que, nosei por qu, tem algo de malicioso, e ele voltaa andar. Continua tranquilo, como se tudofosse perfeitamente normal, enquanto eu mepergunto o que diabos estou fazendomontada em um desconhecido. Tudo isso absurdo, mas ainda assim no me desagrada.Experimento uma sensao de calor que, porum instante, me faz desejar nunca descer,ficar sempre grudada em Leonardo, e de re-pente me dou conta de que meu sexo pres-siona suas costas: h somente o tecido dacalcinha nos separando, j que as meias nochegam acima do joelho. Tenho certeza deque Gaia pagaria uma fortuna para estar nomeu lugar agora.

    Ai meu Deus, estou quase escorregando. Tem certeza de que est confortvel?

    Voc realmente levssima. Quase no a

    123/592

  • sinto... Aperta minhas pernas, ajeitando-me com um pequeno pulo.

    Tenho... forte, seus msculos esto tensionados,

    o sangue quente pulsa em suas veias. Suasmos deslizam sobre minhas coxas com umanaturalidade que acaba com qualquer em-barao meu. Quase parece j conhecer meucorpo, e isso me deixa desnorteada, no sei oque pensar.

    Na rua Della Toletta os garis esto mont-ando as passarelas de madeira e, entre sor-risinhos maliciosos e comentriosespirituosos, olham-me como se eu fosseuma princesa rabe em cima de um camelo.Como se dissessem: Aquela l est se dandobem... Meu mal-estar cresce junto com agua, que jorra sem trgua dos bueiros e in-vade tudo, encharca os muros, destroa astbuas de madeira. Felizmente Leonardo no

    124/592

  • pode ver a vermelhido que est subindo nomeu rosto.

    Nas lojas esto tirando rapidamente asmercadorias das prateleiras mais baixas.Gritando os comerciantes xingam a cada es-quina. A gua terrvel, invade tudo, notem piedade de nada nem de ningum. Defato, tenho que admitir: eu acabei me dandobem, hoje.

    Pronto, chegamos. A ponte de madeira daAca