Europa,-gênese-de-uma-civilização---Lucien-Febvre.doc

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Teorema sem especial Esta obra foi publicada com o apoio do Ministério Francês da Cultura - Centro Nacional do Livro LUCIEN FEBVRE lír A Europa Génese de uma civilizaçãoCurso ministrado no Collège de França 1944-1945, recolhido, apresentado e anotado por Thérèse Charmasson e Brigitte Mazon, com a colaboração de Sarah Ludemann Tradução de: Telma Costa Teorema © Librairie Académique Perrin. 1999 Título original: L’Europe Génese d’une civilization Tradução de: Telma Costa Capa: Fernando Mateus Composição e paginação: Rui M. Almeida Impressão e acabamento: Rainlio & Neves. Lda. / Santa Maria da Feira Este livro foi impresso no mês de Dezembro de 2001 ISBN: 972-695-476-2 Depósito legal n.° 173633/01 Todos os direitos reservados por EDITORIAL TEOREMA, LDA. Rua Padre Luís Aparício. 9-1.° Frente 1150-148 Lisboa/Portugal Telef.: 213129131- Fax: 21 352 14 80 email: [email protected] Introdução

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Teorema sem especialEsta obra foi publicada com o apoio do Ministério Francês da Cultura - Centro Nacional do Livro

LUCIEN FEBVRElír

A EuropaGénese de uma civilizaçãoCurso ministrado no Collège de França1944-1945, recolhido, apresentado e anotado por Thérèse Charmasson e Brigitte Mazon, com a colaboração de Sarah LudemannTradução de: Telma Costa

Teorema© Librairie Académique Perrin. 1999Título original: L’Europe Génese d’une civilization ’Tradução de: Telma CostaCapa: Fernando MateusComposição e paginação: Rui M. AlmeidaImpressão e acabamento: Rainlio & Neves. Lda. / Santa Maria da FeiraEste livro foi impresso no mês de Dezembro de 2001ISBN: 972-695-476-2Depósito legal n.° 173633/01Todos os direitos reservados porEDITORIAL TEOREMA, LDA.Rua Padre Luís Aparício. 9-1.° Frente1150-148 Lisboa/PortugalTelef.: 213129131- Fax: 21 352 14 80email: [email protected]

Introdução

Pensar como historiador a génese da Europa quando ela atravessava uma das crises mais violentas da sua gestação, levantar a questão histórica de saber «porquê este destino tanto tempo falhado, porquê esta porta aberta a tantas tragédias»1, tal foi o objectivo de Lucien Febvre ao longo de uma dezena de séries

de conferências proferidas tanto em França como no estrangeiro, entre 1940 e 1953. O texto que aqui publicamos é a transcrição das notas manuscritas dos cursos dados por Lucien Febvre no Collège de France em 1944-1952. >

Do nome «Europa», invenção abstracta e mítica dos Gregos, à noção real, viva e tantas vezes comprometida de uma unidade de civilização, era o «plano de uma pesquisa de conjunto sobre a génese da Europa e da civilização europeia» que Lucien Febvre esboçava, no fim da Segunda Guerra mundial, para os seus auditores do Collège de France3. Por certo não tinha a ambição de propor uma súmula ou um manual e de dizer tudo sobre este assunto imenso: «Não trago aqui, não tenho que trazer aqui capítulos de história estática, capítulos de um manual sobre a Europa, muito correcto e bem comportado. Trago matéria para reflectir, matéria para compreender. [...] A Europa não é uma formação política de que se possa fazer, comodamente, utilmente, uma espécie de história exterior, metódica e clássica, sem imprevistos, sem problemas. A Europa é uma civilização. E nada no mundo é mais movediço que uma civilização, nada vive mais5LUCIEN FEBVREperigosamente, nada pede mais ao historiador a faculdade de se exteriorizar, de sair do seu horizonte limitado, de ter sempre o olhar posto no universo»4.

Sobre a utilidade de publicar um curso, A decisão de publicar textos inéditos e inacabados de um autor só se toma no termo de uma reflexão que associe os detentores dos direitos aos editores5. A primeira questão que então se coloca é a da própria vontade do autor. Antes da guerra, Lucien Febvre evoca com certa reticência a ideia de publicar textos preparados para cursos: «Estas palavras terão uma história semântica curiosa, isso é seguro, e os meus auditores do Collège de France tiveram copiosas ocasiões de se aperceber disso ao assistirem ao desfile das fichas que eu tinha redigido em sua intenção [...]6. Além disso, pensei que não valeria a pena publicar este material: resistamos à tentação de publicar os nossos cursos, tentação diabólica de que o velho Henri Sée foi de certo modo o iniciador»7. Contudo, depois da guerra, quando os ficheiros de preparação dos seus cursos já não podiam ser assimilados à constituição de um mero «desfile de fichas», Lucien Febvre exprime uma opinião mais favorável a este tipo de publicações8. Escreve na sua recensão a um livro de Étienne

Gilson: «Não seria a primeira vez que um curso, na sua maior liberdade, permitia melhor a um pensador exprimir-se, ousar destrinçar as linhas mestras de um tema imenso - e até tratar uma grande questão que não é, a bem dizer, uma questão para eruditos clássicos»9. Ativemo-nos a esta declaração que ele fez dois anos antes da sua morte para nos sentirmos autorizados a empreender a publicação de um curso, como o seu próprio autor havia desejado.

com efeito, Lucien Febvre havia já concebido este projecto de livro no termo das lições que proferiu no Instituto Superior de Estudos Internacionais de Genebra, em Abril de 1940, sobre o tema do «mito do bom6A EUROPAEuropeu»*. Colocou ulteriormente à cabeça desta pasta o texto de uma introdução, que ficou inacabado10. Alguns anos mais tarde, é o curso de1944-1945 que ele começa a retocar, muito ligeiramente, na perspectiva explícita de dele fazer um livro11. O estudo das variantes, metidas nas entrelinhas com uma caneta de cor diferente, indica em várias ocasiões uma releitura cursiva, posterior à redacção das notas: Lucien Febvre, ao reler-se, já não se dirige a auditores, mas a leitores. .

Nos anos do pós-guerra, a carga de actividades e de responsabilidades de Lucien Febvre foi tal que ele não teve tempo de acudir a todos os seus projectos de livros, acumulados há dezenas de anos e amadurecidos, no caso de alguns, durante o afastamento forçado pela Ocupação. Em 1952 escrevia ele a Henri Berr, ao qual havia, desde os meados dos anos vinte, prometido várias obras para a sua colecção L’Evolution de 1’humanité: «Caro senhor Berr, amigo, rogo-lhe: imagine a nossa vida. Nada tem de comum com o que foram as vidas dos ”grandes universitários” de 1900. Nada. Dir-me-á: ”Mas porquê? O saber... ” - Não. Não se trata de sabedoria. Nem de lucro! As nossas actividades não nos rendem um soldo. Nem de ambição (de quê?) [...]. E é isto que me obriga a trabalhar até estourar. A não sair. A levar uma vida de asceta miserável. Felizmente revigorado pelas visitas confiantes de jovens, um imenso correio, livros e revistas vindos de toda a parte. Mas enfim, pense bem: os Annales, que continuo a fazer sozinho, procurando, revendo, refazendo os manuscritos, etc. A 6a secção: veja mais atrás. Se Braudel é o secretário, eu sou o presidente... - A

Comissão francesa dos historiadores com os seus congressos para organizar: em Bordéus, este Verão. - A esmagadora Comissão de história da Guerra Mundial, com incessantes consultas à presidência do Conselho. - ”Largue-a!” - como se eu pudesse deixá-la cair nas mãos dos colaboracionistas e dos pétainistas, sem trair! E você sabe que criei a Revue de la Deuxième Guerre mondiale [...] . A Historia Mundi Armand Colin. Os Cahiers d’histoire da UNESCO, etc. E... os meus tr-a7LUCIEN FEBVRE ,balhos. Artigos, relatórios, prefácios, discursos, etc.»12. Henri Berr deve ter-se resignado, a sua colecção não acolheu o livro de Lucien Febvre sobre o século XVI13.

Portanto, Lucien Febvre não teve tempo de retomar, como tinha feito a seguir ao seu curso sobre Margarida de Navarra14, o seu grande texto sobre «A Europa», tal como não pôde dedicar-se a editar ele próprio as duas séries de cursos consagrados a Michelet nos anos precedentes15 ou um outro sobre «Honra ou Pátria?», ministrado em 1945-194616.

Em torno de «A Europa»: Berr, Bloch, Pirenne e Braudel

Foi como especialista de história moderna que Lucien Febvre alimentou durante muito tempo o projecto de escrever um ou vários livros sobre a história da Europa. com efeito, já em 1925 inscrevera, nos projectos da colecção de Henri Berr, dois títulos sobre o assunto: «A Europa e o espírito europeu no século XVI (nacionalismo, imperialismo e universalismo)» e «A Europa e o universo no fim do século XVIII».17 Redigiu a seguir cerca de uma trintena de relatórios a propósito de obras políticas ou históricas sobre a Europa moderna ou contemporânea; este seu interesse era largamente partilhado com Marc Bloch que, por sua vez, consagrava mais os seus relatórios às obras com incidência sobre a Idade Média.

Lucien Febvre era, desde 1933, titular da cadeira de história da civilização moderna no Collège de France e era Marc Bloch quem viria a, no ano seguinte, propor ao Collège de France um projecto docente «de história comparada das sociedades europeias», projecto que não alcançou a criação de uma cátedra18. O que Lucien Febvre deve a Marc Bloch fica explícito no abundante

comentário que faz da sua fórmula «A Europa surgiu, muito precisamente, quando caiu o Império Romano», fórmula que serve de título à lição V do seu curso19. Aliás, a homenagem à obra de Marc Bloch é anterior à morte deste, fuzilado pelos alemães em Junho de8A EUROPA1944. com efeito, já no curso de Genebra Lucien Febvre articula a parte da sua exposição que trata do nascimento da Europa em torno desta expressão de Marc Bloch, que ele matiza. Lucien Febvre presta também homenagem ao seu mestre e amigo, o grande historiador belga Henri Pirenne, que durante a Primeira Guerra mundial o precedeu na via de uma história da Europa escrita «em condições comoventes», inteiramente de memória, sem livros e sem fichas, quando, em 1916, se encontrava em regime de prisão domiciliária numa pequena cidade da Turíngia20. O desígnio de Febvre distingue-se porém do projecto de Pirenne na medida em que este «não coloca o problema da génese: não é o seu pendor de espírito nem a tendência do seu génio de historiador 21. Um outro historiador, mais jovem que ele na via da consagração universitária, vinha estimulando há algum tempo a reflexão de Lucien Febvre: Fernand Braudel. Redigia então, também ele durante o seu cativeiro na Alemanha por ocasião da Segunda Guerra mundial, a tese que havia de marcar a história do pós-guerra: O Mediterrâneo e o mundo mediterrânico na época de Filipe /T22. Lucien Febvre recebia os seus cadernos, lia-os, comentava-os e encorajava o seu futuro colega na direcção dos Annales. O seu pensamento reconhecia-se no de Fernand Braudel sobre o tema do Mediterrâneo. Por exemplo, escreveu a 15 de Novembro de 1944, a Braudel, retido ainda por mais alguns meses no seu oflag de Liibeck, uma dessas cartas no estilo telegráfico imposto pelos tempos: «Um a um vão reaparecendo os mortos-vivos: mas muitos faltam à chamada. M. B., entre outros23. Pouca sorte! Terrível falta de gente. [...] As aulas recomeçam: Hautes Études amanhã, Collège dentro de 15 dias. Mas que alívio, que boa disposição agora! Falarei no Collège sobre a Europa: primeiro génese, articulação do mundo mediterrânico e do mundo nórdico; depois psicologia: a Europa realidade, a Europa pátria, a Europa refúgio. E para concluir: a Europa, utilidade? Ou então, pode-se fazer dela economia? Imagino que na primeira parte do curso L. F. se encontrará muitas vezes9LUCIEN FEBVRE

com F.B.! Seja como for, não hei-de ser acusado de gostar de assuntos menores!»24

Um assunto «espinhoso» para um público «misterioso»

O tema era não apenas imenso como, no mínimo, espinhoso. Lucien Febvre confiava-o a Henri Berr aquando das suas conferências em Genebra, em Abril de 1940: «Estou contente, não por mim, por ter tido tão grande sucesso com as minhas cinco lições sobre um assunto terrivelmente espinhoso, e espinhoso sobretudo em Genebra: ”A Europa e o mito do bomEuropeu”. Fui ouvido com muita atenção [,..]»25. Em Março de 1939 Lucien Febvre recebera o convite do Instituto Superior de Estudos Internacionais de Genebra. Aquando da sua primeira conferência, em Abril de1940, falou da distância histórica que o separava da proposta inicial, feita nas vésperas da guerra: o tema destas lições «assumiu bruscamente um valor trágico», expõe ele na introdução às conferências26.

Quando, no fim da guerra, retomou no Collège de France o tema esboçado em Genebra, Lucien Febvre contentou-se em declarar laconicamente: «Quanto a alongar-me sobre o interesse presente, a actualidade viva destes estudos, é supérfluo. Ao sairmos de quatro anos durante os quais, tantas vezes, ouvimos repetir estas palavras, Europa, Europeu, a vozes que tão pouco europeias pareciam, é inútil insistir. Abordemos o assunto sem mais explicações»27.

O público terá pedido mais explicações? Lucien Febvre terá dado outras? Terá além disso sido, como tantas vezes sucedeu com o seu ilustre predecessor, Jules Michelet, sido adoptado por grupos com opiniões políticas divergentes, opiniões exacerbadas a seguir à Libertação? O único testemunho directo de que dispomos actualmente indica que pelo menos uma contestação de que Lucien Febvre foi vítima não tinha de maneira nenhuma a coloração política que alguns lhe quiseram atribuir depois dês-10A EUROPAta época. Lionel Galand, jovem aluno da Escola Normal da «turma» do futuro genro de Febvre, Jean-Pierre Richard, conta numa carta a sua mãe, datada de 14 de Fevereiro de 1945, as condições da contestação organizada no Collège de France por alguns alunos:

«Capitant veio à Escola no sábado, a convite de Pauphilet, e muitas mais pessoas. Foram recebidos por alunos em trajes mais ou menos de fantasia, fez-se um peditório que rendeu mais de 4 000 francos (que irão para a secção de Beneficência). Febvre, professor do Collège de France (foi a mulher dele que nos arranjou casa) levou a coisa a mal e recusou-se a dar. Hoje, todo um grupo de alunos foi à aula dele com barbas falsas, mais ou menos para contestar. Ele tinha dito qualquer coisa como: estes jovens melhor estariam na frente. É muito irascível. O filho está a combater na Alsácia.»28 Lucien Febvre, tal como contou ao seu filho Henri, tinha levado a mal o grotesco desta encenação por jovens com saudades das latadas e que, munidos de penicos, angariavam subsídios para a festa da sua escola enquanto outros combatiam na frente29.

A Europa estava exangue e o historiador, que iniciara a exposição das suas reflexões nas vésperas da declaração de guerra, prosseguia-a no Collège de France a seguir à Libertação. Para que público? Nem ele teria podido responder com precisão. Em Janeiro de 1946 escreveu numa nota de preparação para o seu curso sobre «A Reforma»: «De todos os auditórios, o do Collège é um dos mais misteriosos. Ou melhor, ao mesmo tempo impessoal e familiar. Quem fala encontra todos os anos, muitas vezes em todas as lições, muitos auditores e auditoras cujo rosto lhe é conhecido mas dos quais ignora tudo: nome, profissão, razões para que eles, ou elas, se interessem pela lição que profere. Por isso plana sempre, é bem verdade, um mistério sobre estes públicos. Digamos que pelo menos propõem um enigma. Quem fala fica sempre contente quando uma palavra, um gesto, a ponta de uma carta rasga a noite e lhe torna sensível o nó que pouco a pouco liga a palavra entre aqueles que - talvez sem darem por isso11LUCIEN FEBVREsão, pela sua mera presença, pela mera continuidade, pela mera perseverança da sua presença diante dele, colaboradores muito íntimos no seu anonimato, muito íntimos, e muito diversificados do seu pensamento.»30 A presença e o estímulo de um auditório dão à escrita destas notas uma força de convicção e uma preocupação de transmissão imediata do saber que implicam eloquência e pedagogia. Foi esta retórica própria de Lucien Febvre que desejámos conservar por inteiro, restituindo o estilo oratório do historiador.

Do manuscrito ao livro

A pasta conservada nos arquivos de Lucien Febvre tem por breve indicação apenas «A Europa». Ignoramos qual o título que o autor teria escolhido para este livro, resultante de um curso cujo programa estava assim enunciado: «A Europa e o bomEuropeu: mito ou realidade?»31 Pareceu-nos que este título, retomado do curso dado em Genebra em 1940, não teria sido a escolha final de Lucien Febvre, pois na verdade «a Europa cuja génese buscamos, a Europa que surge quando o Império cai..., uma organização, uma civilização».32

Das muitas conferências de Lucien Febvre sobre a génese da Europa, o curso do Collège de France apresenta a forma mais acabada no seu desenvolvimento e na sua redacção33. A resma de cerca de 380 folhas reúne vinte e cinco lições que Lucien Febvre numerou posteriormente de 1 a 28. Aparentemente, faltam as lições XIV a XVII e XXVII34. Estaria o manuscrito incompleto? O estudo pormenorizado das notas de trabalho e das conferências em diversos lugares leva-nos a pensar que estas lições não faltam no manuscrito, pois não terão sido dadas35. Ao reservar ulteriormente um espaço entre a lição XIII, que incide já sobre o século XVI («O texto de Commynes. O Ocidente deixa de se sentir inferior ao Oriente»)12A EUROPAe a lição XVIII («O século XVI e a Europa»), Lucièn Febvre contava, ao que parece, consagrar vários capítulos à Europa e à Reforma. com efeito, numa pasta intitulada «Notas e reflexões críticas sobre a Europa e sobre este curso», ele escreve: «Falta neste curso uma lição sobre a Europa e a Reforma... »; «pelo menos uma», escreve mais longe, depois «duas lições», anuncia ainda, referindo que não se tratava de as empregar a «tapar buracos»: «Não é possível dizer tudo sobre o assunto. Há que escolher. Sublinhar fortemente certas ideias, certos factos. Sacrificar... Ao serviço da palavra. Regista-se, se se repete, retira-se. Mas é um rio que nunca corre para a nascente. Buracos, há-os. E, por exemplo, não fiz, talvez por ser demasiado indicado que o fizesse, uma lição necessária sobre a Europa e a Reforma36. A recarga de elementos nórdicos que ela traz à civilização europeia. O espantoso episódio de Lutero, Lutero o saxão, filho (e bem representativo) dessa Alemanha que tinha sem dúvida sido inteiramente conquistada para o cristianismo, mas tardiamente [...]37. Como actuou esta reforma luterana para dividir a Europa? Como trouxe esta reforma luterana uma carga tão forte

de elementos nórdicos a um cristianismo que secava? [...] Como provoca esta reforma, por reacção, uma recarga em elementos meridionais, elementos mediterrânicos, no velho mundo europeu perturbado, abalado, seduzido mas não conquistado e restituído às suas bases pela Reforma - este drama, [não] falei dele, eu sei. E é uma das muitas lacunas deste curso.»38 Assim, o manuscrito que publicamos, se for, segundo Lucièn Febvre, lacunar no fundo («não se pode dizer tudo...»), não parece incompleto no que se refere às lições tratadas.

Este manuscrito é constituído por uma série de vinte e cinco pequenos grupos cada um com umas vinte folhas, dobradas ou não em duas, que têm no verso da última página, a servir de capa, o título da lição e o seu número, escritos ulteriormente. O estudo do verso das folhas dobradas em duas para formar uma camisa indica por vezes a data após a qual aquele grupo foi organizado: por exemplo, o título das lições X e XI está em for-13LUCIEN FEBVRE mulários das Nações Unidas datados de 1948; a lição XIII traz, no verso, a data de 29 de Abril de 1947, a lição XXVI, a de 28 de Maio de 1946. Estas indicações confirmam a hipótese que formulámos: este curso foi relido por Lucien Febvre e numerado ulteriormente. Não chegou porém a completar as suas frases, lacunares, por vezes, na sua sintaxe.

Como manter-nos fiéis ao fundo e à forma do pensamento de Lucien Febvre? Acrescentar ao seu texto escrito o mínimo indispensável para o tornar legível exigiu várias etapas. A primeira consistiu em uma transcrição literal do manuscrito feita com respeito pela disposição inicial do texto, sem acrescentos, com as suas palavras sublinhadas, as suas frases e parágrafos cortados, as suas insistências39. A segunda consistiu, após releitura e confrontação do texto com o manuscrito, em uma primeira formalização, com uma pontuação mais escrita, na constituição de parágrafos, no acrescento dos auxiliares, dos artigos, dos pronomes muitas vezes ausentes40. Contudo, a ortografia dos nomes próprios foi conservada. As expressões latinas como contra ou quia utilizadas por Lucien Febvre foram substituídas pelo seu equivalente francês. A terceira etapa, que deu o que podemos chamar a «edição princeps» do texto retirou os últimos pontos obscuros e incertezas da decifração e restituiu todas as variantes, das mais ínfimas às mais significativas41. O texto que hoje

propomos aos leitores é uma versão aligeirada deste trabalho, na medida em que a indicação das variantes não foi retomada. As poucas palavras em caracteres romanos que figuram entre parênteses rectos são aquelas que tivemos que introduzir para completar uma frase, para além dos auxiliares, artigos e pronomes. As palavras seguidas de um ponto de interrogação entre parênteses rectos são aquelas de cuja leitura não podemos estar absolutamente seguras. Conservámos para esta edição a maior parte dos parágrafos ou frases cortados por Lucien Febvre: figuram entre parênteses rectos precedidos e seguidos por um asterisco. com efeito, pareceu-nos quase sempre que o seu conteúdo, significativo, não fora retomado ulteriormente.

As notas bibliográficas que foram acrescentadas ao texto de Lucien14A EUROPAFebvre têm como principal objectivo identificar, com a maior precisão possível, as citações por ele feitas. Tentam igualmente dar mais um esclarecimento ao texto por indicação das fontes utilizadas. Na medida do possível, remetemos para as edições utilizadas pelo próprio Lucien Febvre, cuja referência figura, em certos casos, nas notas de trabalho que ele reunira para preparar este curso e que o seu filho Henri Febvre pôs generosamente ao nosso dispor. Sempre que não pudemos identificar a edição utilizada por Lucien Febvre ou quando esta não se encontra disponível, preferimos reportar-nos a uma edição que, dada a sua data de publicação, pudesse ter sido utilizada por ele42.

Um sopro épico

Grandes passagens deste texto estão colocadas no meio da página, numa singular disposição centrada que, à primeira vista, faz pensar na paginação de um longo poema, sob a forma de versículos, segundo o modelo do texto de Péguy sobre a esperança que conclui a última lição do curso. Esta citação de Péguy é ao mesmo tempo uma homenagem a Romain Rolland que, recorde-se, aquando da Primeira Guerra mundial, tinha proclamado o seu apego à Europa43. Lucien Febvre, na verdade, vai buscá-la à biografia que Romain Rolland dedicou a Péguy, publicada em 194444. Aliás, ela parece não ter apenas a finalidade de concluir com uma nota de esperança; na realidade, podemos ler aí o vínculo

que liga Lucien Febvre aos grandes escritores engagés do seu tempo.

Como é evidente, tivemos que sacrificar esta apresentação para restituir o texto em prosa corrente. A esta forma poética do texto, cujos ritmos e estâncias permitem por vezes quase distinguir versos livres, soma-se a invocação, por Lucien Febvre, do poeta épico que viesse a escrever a epopeia da génese da Europa. «É toda uma história também que está por fazer.

É toda uma história cujos elementos possuímos já, alguns elementos, mas15LUCIEN FEBVREdispersos e sem forma. Uma história, não, uma epopeia. Mas ainda estamos à espera do poeta épico que a há-de animar com o seu sopro. Ah!, se tivéssemos duas vidas! Três vidas, de uma ponta à outra! Que bela obra, que bela empresa [...]». «[...] Epopeia que ninguém teve ainda o cuidado de escrever, pois havia de ser escrita, para ser digna do tema, por um Michelet visionário e lírico, somado a um erudito paciente e severo.»45 Lucien Febvre, se não pretende oferecer ao leitor esta epopeia luminosa e acabada, pela parte que lhe toca esboça dela belos quadros. As suas páginas sobre o Mediterrâneo, a sua descrição dos campos romanos, a sua pintura das cenas de aldeia lêem-se como pedaços consumados de um grande fresco histórico.

Por mais inovador ou revolucionário que tenha sido na criação de uma nova escola histórica, Lucien Febvre estava, no seu discurso e no seu estilo, muito próximo da arte de Michelet. Marcel Proust, que coloca o historiador do século XIX entre os grandes escritores do seu tempo, releva no texto dos Préfaces de Michelet «algumas frases que habitualmente começam por um ”Deverei dizê-lo?” que não é uma precaução de erudito, mas uma cadência de músico»46. :

As «cadências» de Lucien Febvre, no sentido empregue por Proust, são muitas neste texto oratório. Ritmam o seu discurso com incessantes interrogações - raramente dubitativas ou cautelosas - e, reforçadas por frequentes exclamações, despertam em toda a página «o sentido do espanto, do espanto perante o que deve espantar»47.

Lucien Febvre faz também abundante uso de metáforas que, homem do seu tempo, vai buscar à modernidade. Por exemplo, pela metáfora da corrente eléctrica recusa as divisões estáticas das demonstrações históricas feitas de andares, fundações e superestruturas: «É muito curioso», escrevia ele em 1941, «verificar que hoje, num mundo saturado de electricidade, oferecendo-nos a electricidade tantas metáforas apropriadas às nossas necessidades mentais, nos obstinemos ainda a discutir gravemente16A EUROPAmetáforas vindas do fundo dos séculos, pesadas, solenes, inadaptadas; nos obstinemos ainda a pensar as coisas da história por camadas, por andares, por cantarias - por alicerces e superestruturas, quando o lançar da corrente pelo fio, as suas interferências, os seus curtos-circuitos facilmente nos fornecem todo um love de imagens que se inserem com muito mais maleabilidade no quadro dos nossos pensamentos.»48 As metáforas são numerosas neste texto: à da corrente eléctrica podemos somar a do filme que o historiador desenrola, a do homem na multidão, a do construtor ou ainda a da planta frágil...

Ousemos uma comparação: estas notas manuscritas de Lucien Febvre apresentaram-se aos nossos olhos um pouco como a partitura de um compositor de génio que, primeiro executante da sua obra, tivesse necessidade de escrever apenas as notas essenciais do seu texto musical, todas as notas, nada mais que as notas que o seu pensamento lhe ditasse. Aqui figuram as indicações do fraseado: pela disposição do texto (a palavra forte está quase sempre situada a meio da linha) e pelos sublinhados, a vermelho ou a azul, que indicam os acentos oratórios. Há as notas objectivas (as palavras) e as anotações subjectivas (o fraseado, as modulações, a tónica). Não há necessidade de pontuação rigorosa, de artigos ou de auxiliares: o intérprete colocá-los-á sem dificuldade aquando da declamação. Mas quando o executante já não é o próprio autor e quando o texto, esboçado para um auditório, se transforma em linhas escritas para os leitores, a responsabilidade dos editores é imensa. Tornam-se então tradutores da coisa parcialmente escrita.

Esperamos, no termo deste trabalho, ter sido o mais fiéis possível ao pensamento e ao estilo de Lucien Febvre. com efeito, embora o manuscrito seja na verdade constituído por notas de aulas

destinadas a conferências orais, o efeito espantoso da transcrição fiel deste texto, com o seu trabalho de retoques a mínima, restitui-lhes, pelo menos é o que espera-17LUCIEN FEBVREmós, o estilo próprio do historiador-escritor. Todos os seus textos são disso testemunho: da sua correspondência aos seus livros, passando pelos seus artigos e recensões49, a sua escrita é sempre de um extraordinário vigor: é alternadamente veemente e incisivo ou amplo e generoso. Notas de curso, de um estilo aparentemente truncado, ao texto redigido, fluido e eloquente, a magia não reside no trabalho escrupuloso dos editores, mas na própria força da expressão do pensamento do autor. A despeito de umas quantas carências epigráficas iniciais, esperamos ter restituído para os seus leitores o alento de um discurso original cujo autor, depois de ter pintado um dos mais belos quadros da Europa nascente, confiava humildemente aos seus auditores: «Tudo isso dito sem lirismo, em jeito de escrivão»50. O estilo oratório de Lucien Febvre nunca se confina ao de um escrivão, e é por vezes o de um poeta, é sempre o de um escritor, mesmo quando se esforça por ir ao essencial. Antes de encontrar tempo para satisfazer o autor tão fecundo que era na escrita da história, Lucien Febvre atribuía-se, nestes anos do pós-guerra, uma missão mais urgente e prioritária, a de pensar a história da Europa: «Fornecer à meditação dos homens de hoje sobre a Europa de amanhã, sobre o mundo de amanhã, sobre esta Europa, sobre este mundo a cuja elaboração violenta assistimos, com uma espécie de espantosa placidez, sobre esta Europa, sobre este mundo que se gera em tão trágicas convulsões, fornecer à meditação dos homens de hoje sobre o ambiente de amanhã as noções históricas, todas as noções e nada mais que as noções de que eles precisam para terem uma compreensão plena do que se passa, [tal é o meu objectivo neste curso.]»51

Ao fazer deste curso sobre a Europa, sobre este «imenso assunto» que Lucien Febvre não tornou «uma questão para eruditos clássicos», um livro no qual tentámos reconstituir, através das notas bibliográficas, uma parte da erudição do seu autor, esperamos ter alargado o círculo dos seus auditores a um público de leitores do século XXI curiosos da história da génese da Europa tal como pôde ser pensada por um grande historiador que18A EUROPA

de modo algum pretendia profetizar o futuro ou interpretar o presente do alto da sua cátedra, um historiador do século XX que não tinha «a «candura de querer ditar, em nome do passado, leis aos tempos futuros»52, um historiador, no mínimo, visionário e inovador.Brigitte Mazon1920AGRADECIMENTOS

Este trabalho não teria sido empreendido e não teria podido chegar ao fim sem a ajuda constante de Henri Febvre. Temos a exprimir-lhe o nosso mais vivo reconhecimento. Agradecemos igualmente a Ariane Ducrot, conservadora geral do património, que garantiu, a pedido de Henri Febvre, o acesso ao fundo dos arquivos de Lucien Febvre nos Arquivos Nacionais e que, além disso, teve a bondade de se encarregar da revisão desta introdução. Os nossos agradecimentos dirigem-se também ao pessoal da biblioteca do Centro Histórico dos Arquivos Nacionais em Paris e muito especialmente a Claire Berche, conservadora geral do património, que tem a sua direcção, bem como ao pessoal da biblioteca da Sorbonne e muito particularmente a Catherine Gaziello, conservadora geral das bibliotecas, sem a ajuda das quais o trabalho de anotação bibliográfica não poderia ter-se realizado.2122

A EUROPACurso dado no Collège de France em 1944-1945*

Recorde-se as convenções adoptadas na fixação do texto: as palavras em caracteres romanos entre parênteses rectos são as que tivemos que introduzir para completar uma frase, para além dos auxiliares, artigos e pronomes; as frases que figuram entre parênteses rectos precedidos e seguidos de um asterisco são as que Lucien Febvre cortou e cujo conteúdo, significativo, não foi retomado ulteriormente.

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Lição IGeneralidades Falemos de Europa e primeiro definamos Europa

Chamo Europa, chamarei Europa durante [este curso], chamo Europa, não a um continente (aí voltarei); não chamo Europa a uma divisão geográfica do globo; não chamo Europa a um departamento racial da humanidade branca, porque nenhum antropólogo, nenhum etnólogo, nenhum «raciólogo» resolveu alguma vez falar de uma raça europeia, substituir a mais prodigiosa das diversidades étnicas por uma unidade imaginária e por uma pureza racial de inteira convenção (ou de propaganda); não chamo Europa a uma formação política definida, reconhecida, organizada, dotada de instituições fixas e permanentes, que assume, se se quiser, a forma de Estado ou de super-Estado, formação com que os Europeus, ou pelo menos certos europeus, podem muito bem ter sonhado por vezes, mas que nunca passou do estado de sonho, a qual, por conseguinte, devemos perguntar-nos se está votada a tornar-se realidade ou condenada a permanecer como sonho; chamo Europa simplesmente a uma unidade histórica, uma incontestável, inegável unidade histórica, uma unidade que se construiu em data fixa, uma unidade recente, uma unidade histórica que aparece na história, sabemos exactamente quando, uma vez que a Europa, neste sem-25LUCIEN FEBVREtido, a Europa tal como a definiremos, tal como a estudamos, é uma criação da Idade Média; uma unidade histórica que, como todas as outras unidades históricas, se fez de diversidades, de pedaços, de restos arrancados a unidades históricas anteriores, por sua vez feitas de bocados, de restos, de fragmentos de unidades anteriores.

Essa Europa, esta Europa que é a sede de um mundo, como costumamos dizer, o mundo europeu (isto é, um ordenamento: mundus em latim, kosmos em grego, duas palavras que têm o sentido primitivo de bem arrumado, de bom ordenamento, de boa disposição), esta Europa que agrupa um conjunto de países, de sociedades, de civilizações com as populações que habitam estes países, compõem estas sociedades, são portadoras destas civilizações, esta Europa não se define por estritos limites geográficos, de certo modo de fora, com grande reforço de mares, e montanhas, de rios e lagos, define-se de dentro pelas suas próprias manifestações, pelas grandes correntes que não cessam de a atravessar e desde há muito tempo: correntes políticas, correntes económicas, correntes intelectuais, científicas, artísticas, correntes espirituais e religiosas.

Europeias, di-lo-emos de instituições como o senhorio na Idade Média e a vassalagem; europeias, outras [realidades], como as cidades medievais e as suas revoltas, e as dos campos; europeus, os estados gerais ou provinciais que representam como que uma primeira forma do regime parlamentar, do regime parlamentar, essa outra instituição europeia; europeia, a difusão da arte gótica a seguir à da arte românica, antes da arte renascentista e da arte barroca e da arte clássica; europeias essas Notre-Dame que saem da terra, muito brancas, e esses palácios de Versailles, muito solenes, que povoam os países europeus da Curlândia às Duas Sicílias, da Hungria a Inglaterra; europeus, os cultos que se propagam sem obstáculos, essas devoções que não conhecem fronteiras, quer se trate do rosário ou do Sagrado Coração; europeias, enfim, essas grandes vagas de reforma e de renascimento religiosos que propagam através das mais diversas paragens o espírito luterano, o espírito calvinista ou o espírito católico reno-26vado do pós-[concílio de] Trento. Paro de enumerar. Poderia continuar durante horas.Aliás, notemos desde já que a unidade europeia não é uniformidade. Na história da Europa, desta Europa tal como a defini, o capítulo das dissemelhanças é tão importante como o das semelhanças.

O senhorio, de que falei há pouco, sim, encontramo-lo no Reno, semelhante, nas suas grandes linhas, ao nosso senhorio da Ile-de-France. Mas se o estudarmos, dentro da própria França, na Aquitânia, no Languedoc, saltam-nos aos olhos enormes diferenças1. *

O mesmo quanto à cidade medieval, de que falei. Mas se a cidade nórdica, chame-se ela Amiens ou Gand, Colónia ou Besançon, se esta cidade nórdica representa um tipo de agrupamento uniforme, a cidade da Provença, a cidade da Toscana, o oppidum habitado por nobres, difere perfeitamente da cidade nórdica, que é criação dos mercadores.

O sistema agrário de uma aldeia da Champagne ou da Beauce é o sistema agrário de uma aldeia saxónia ou de uma aldeia da bacia

londrina, não é o sistema agrário de uma aldeia da nossa Bretanha arborizada ou do nosso Languedoc.

O que equivale a dizer que, tendo os linguistas concebido a noção de substracto, os historiadores farão muito mal em não levar em conta os substractos históricos *[O que equivale também a dizer que estes fenómenos não devem ser abordados tendo apenas presente um único tipo de representação, o tipo de uma Europa de arquitecto, se assim posso dizer, feita de bocados, de extensões justapostas, mas que convém recorrer a maneiras mais próximas de nós, a maneiras mais modernas de construir uma representação das coisas, por exemplo, às noções de correntes a que a electricidade nos habituou]*, de correntes que atravessam espaços de composições diferentes, de correntes que encontram, no seu trajecto, obstáculos em que penetram ou que contornam, correntes que, com perpétua mobilidade (a da própria vida) se diversificam, se ramificam, se separam27LUCIEN FEBVREpara se reunirem e nos fornecem a vera imagem da vida histórica, de uma vida que se distingue, precisamente, pela sua mobilidade e diversidade.

Posto isto, a Europa, tal como foi definida, vai colocar dois problemas: um problema de génese histórica e um problema de psicologia histórica.

[Primeiro] um problema de génese: quero dizer com isto quando, como, por quem, porque se fez uma Europa, um mundo europeu, ou seja, a expensas de quem? A expensas e com a ajuda de que mundo anterior, cujos materiais em parte reutilizados fornecem necessariamente aos construtores do novo mundo uma parte dos seus elementos; quando, como, por quem se rompeu, não diremos a unidade da civilização mediterrânica, com a forma imperial e romana, porque, precisamente, seria a questão de saber se podemos falar desta civilização como de uma civilização verdadeiramente unitária, quero dizer, se nos tempos da mais forte unidade imperial romana, no apogeu do Império Romano, não havia, sempre persistentes, actuantes e discerníveis, várias civilizações de idade e expressão diferentes, umas mais gerais, como a civilização helénica que se tornou civilização helenística, outras mais particulares, como a civilização egípcia que foi

marcante e a civilização púnica (reduzidas ao estado de substracto).

Digamos pois que o problema, o nosso problema, é saber, é dizer quando, como, por quem, porque foi dissociado este mundo do Império Romano, este mundo mediterrânico que fora tão brilhante. *[O problema, o nosso problema é saber]* quando, como..., foram lançados no cadinho, à mistura, povos que Roma tinha contado no seu Império, arrolado na sua unidade, marcado com a sua marca, e povos recém-chegados, estranhos ao Mediterrâneo, bárbaros, como se dizia, e que Roma não tinha pensado conquistar, dominar, marcar.

Será tudo? Não. Quando, como se fez esta Europa? Bem. Resta dizer como, por que esforço se encontrou ela cimentada e mantida, ou melhor, *[pois lá voltamos às velhas metáforas dos construtores]*, por que correntes se viu ela atravessada, desde as origens até hoje, por que grandes28A EUROPAcorrentes, com que resistências, com que força também e com que resultados?

É um problema de que um Francês, a França, não poderá desinteressar-se. Pois se a Europa nasceu (e nasceu mesmo, com efeito) da reunião e da lenta fusão de elementos nórdicos e de elementos mediterrânicos, pois se o campo que atravessaram, a partir das origens, os construtores europeus, se constituiu realmente a expensas de dois mundos, um mundo mediterrânico, um mundo nórdico, a história desta Europa e das suas vicissitudes, nenhum país pode dizê-la sua tanto como a França, único país do mundo fortemente implicado, tanto no norte como no leste, neste mundo nórdico de planícies e maciços que vem expirar, com a planície da Flandres, ao pé das colinas do Artois, com a floresta das Ardenas, ao pé do Argonne... e, ao mesmo tempo, pela fachada larga e harmoniosa, a fachada mediterrânica, curva convexa, depois côncava, que ela descreve da baía de Villefranche ao cabo Cerbère, vê-se participar na vida brilhante do mundo mediterrânico, deste mundo mediterrânico que lhe oferece incessantemente os tesouros das suas velhas, ricas, grandes [?] civilizações. E desta posição geográfica não pára a França, sabemos bem, de sofrer as consequências e as repercussões.

[Seria fácil] escrever toda uma história de França em função desta situação: o Mediterrâneo fecha-se, a França estiola; o mundo nórdico agita-se, a França inquieta-se e treme. E o que a inquieta não é tanto a

possibilidade de uma ruptura, de uma dissociação (aqui a França do Norte, ali a França do Sul, de costas voltadas), não, o que a inquieta é a ameaça de uma morte total. Porque o que dá à França a sua vitalidade é precisamente a sua qualidade de intermediária, de agente de ligação e de traço de união vivo entre as duas partes de um mesmo universo histórico e cultural. Há equilíbrio quando a França pode funcionar em pleno, livremente, pacificamente nas duas frentes. Há ruptura do equilíbrio e depressão quando ela se encontra separada de uma das suas duas fontes necessárias de vida...29LUCIEN FEBVREPortanto, a Europa..., a definição dada coloca um problema de génese histórica. *[Eis reduzido à sua expressão mais simples o que chamámos o problema de génese. Não é o único, há outro, sempre mais outro.]* [A definição] coloca também, [em segundo lugar], um problema de psicologia histórica. A história só pode fazer-se no terreno, através de espaços mais ou menos extensos, através de maiores ou menores espessuras de tempo. A história faz-se também na cabeça dos homens, a história, ciência do homem. E o homem não é apenas apetite, não. O homem não é apenas necessidade, não. O homem é também pensamento, inquietação e sonho inquietação, talvez o traço dominante do homem. O homem é um inquieto, um perpétuo inquieto. Tem sob os pés um solo estável e firme. Agarra-se-lhe bem. Deste solo tira, sem grande dificuldade, os elementos da sua vida material. Tira o bem-estar que vem do clima, da cor do céu, da presença do sol, da brandura dos ares [?] ... Pois bem, não, isso tudo não lhe basta. Escapa-se. Sonha. Sobrevoa estas realidades que lhe parecem chãs. Está sempre acima, sempre além. É o homem, *[e antes do mais, muito naturalmente, o homem de França, o homem da doce França, o homem da fina França]*.

Tomemos um exemplo: a França, a doce França, como dizia a Chanson de Roland, pátria entre todas invejável, seria lógico (mas a história não tem nada a ver com a lógica), seria natural (mas a história não conhece a noção de natural) que o homem que possui esta pátria invejável tivesse primeiro consagrado os seus esforços a torná-la ainda mais doce, mais rica, mais acolhedora e mais humana2. Após o que, feito isto, seria bem visto se saísse dos seus limites franceses e trabalhasse para edificar, pelos mesmos métodos, acima da pátria francesa, uma espécie de super-pátria europeia. É uma visão lógica, gratificante para o espírito. Este caminho do simples para o composto é a nossa grande tradição e

muitas vezes, em história, a nossa grande perdição... com efeito, as coisas não se desenrolaram assim.30A EUROPA*[Camille Jullian, numa das suas mais brilhantes lições inaugurais, a que foi publicada com o título L’Ancienneté etVidée de nation, observava que, tratando-se das mais antigas formações que a história nos deixa, quando não conhecer, pelo menos adivinhar, não era preciso ir lentamente, pacientemente, sensatamente, progressivamente, do simples para o composto, da pequena pátria para o grande império, mas, pelo contrário,! do império de vasta extensão, da grande formação que agrupa homens disseminados por uma vasta extensão, para as pequenas formações nacionais de horizonte infinitamente mais restrito, mas também de trama muito mais apertada3. E na aurora da nossa história política deixava-nos entrever grandes agrupamentos, vastas unidades, a unidade ariana, a unidade líguri, a unidade céltica, etc., no interior das quais, por partes, nos mostrava as diversas nações talhando a pouco e pouco o seu domínio público... ]*

Pois bem, reflictamos. No século X, no século XI, no século XII, o que poderão ser as pátrias ocidentais, as pequenas pátrias inquietas, vacilantes, mal consolidadas que as monarquias ocidentais constituem ainda [palavra ilegível] ? O que eram estas pátrias em gestação, estas pátrias em esperança, estas pátrias em devir, o que eram estas pátrias terrestres comparadas com a grande pátria ecuménica de todos os Ocidentais de então, a cristandade?

Os nossos franceses dos séculos X, XI, XII, e a seguir, são franceses, sim, mas talvez sejam mais cristãos. E o que digo dos Franceses podemos, com mais fortes razões, dizer dos Alemães, dos Ingleses, dos Italianos, dos Flamengos, etc. Todos os homens do Ocidente mergulham na mesma atmosfera do cristianismo. Todos os homens do Ocidente são tocados, arrebatados acima de tudo pelas grandes correntes que atravessam sem cessar a cristandade e que sem cessar os arrastam para fora das fronteiras.

Cluny podia repousar docemente, ternamente, ao fundo do vale do Grosne, rodeado de colinas bem modeladas que fazem deste rincão bendito uma espécie de Umbria em França: pois Cluny não é um facto borgonhês, é um facto europeu. A reforma clunicense não é um facto francês,

31LUCÍEN FEBVREé um facto cristão. O abade de Cluny não é necessariamente um francês e os monges de Cluny não se encontram apenas em França: em breve vamos encontrá-los por todo o mundo cristão.

Mas o mesmo se passa com S. Francisco. S. Francisco pode ter nascido em Assis, pode ter encantado os seus olhos de criança com a vista surpreendente da doçura e da paz - uma doçura e uma paz sobre-humana que se descobre, à noite, do alto da Rocca, da velha catedral que domina o burgo e o vale - a ordem franciscana não é um facto italiano. É um facto cristão. E isso há-de durar até muito tarde.

Quem, então, quem moldou, mais exactamente, remodelou os espíritos e os corações dos Ocidentais no fim do século XVI? Quem operou sobre estes Ocidentais uma reforma religiosa, sentimental, afectiva, estética também, e mais ainda moral, de onde saiu o Ocidente transformado, renovado, profundamente modificado? Quem, senão os jesuítas, os militares da Companhia de Jesus, e os capuchinhos, essas sobras do velho tronco franciscano? Mas digam lá de que país e para que país trabalham estes homens? Digam o que é afinal, aos olhos da história, o fundador da companhia, Inácio de Loyola? Um capitão biscainho, ouvi bem. Mas não desempenhou a Itália, na génese da sua ordem, um papel igual ao da Espanha? E a ordem ficou confinada aos países meridionais, aos países mediterrânicos? Donde provém o seu sucesso?

Não continuo a enumeração destes factos, destes grandes factos que sublinham o papel imenso desempenhado na história do Ocidente pelo cristianismo, pelos movimentos cristãos, os factos cristãos, as correntes cristãs. Daqui, tiro simplesmente as conclusões que se impõem. São duas.

Por um lado, durante toda a Idade Média (uma Idade Média que é preciso prolongar muito para diante, para os tempos modernos), a acção poderosa do cristianismo, quero dizer, a acção poderosa de uma organização cristã, de um proselitismo cristão, de uma devoção cristã, de um pensamento e uma filosofia cristãos e mesmo de uma política cristã interior ao32A EUROPA

mundo do Ocidente (Europa e papado) ou exterior a este mundo e a arrastá-lo para conflitos com o Oriente ([ veja-se as] cruzadas), durante toda a Idade Média, a acção poderosa e múltipla de um cristianismo na realidade totalitário entravou, em certa medida, a formação de pátrias nacionais sólidas.

Por outro lado, durante toda a Idade Média, esta mesma acção poderosa do cristianismo, fazendo incessantemente passar, sobre as fronteiras mal assentes de reinos caleidoscópicos, grandes correntes de civilização cristã sem ligações ao solo, contribuiu para dar aos Ocidentais uma consciência comum, além das fronteiras que as separavam, uma consciência que, pouco a pouco laicizada, se tornou uma consciência europeia. Digamos, resumindo: esta mesma acção poderosa que retardava a eclosão das pátrias nacionais contribuía a contrario, contribuía poderosamente para a génese de uma Europa, de uma Europa cristã, mas que iria laicizar-se cada vez mais, que havia de desenvolver-se de uma maneira autónoma, que havia afinal de ganhar tudo o que a cristandade, enquanto agrupamento histórico, iria perdendo pouco a pouco.

Estudar este grande drama é uma das tarefas que ainda nos espera, uma das tarefas que tentaremos cumprir. Mas, antes do mais, comecemos pelo princípio.

Prevejo uma objecção: a queda do Império Romano, a destruição da unidade mediterrânica, a constituição de uma Europa em bases inteiramente novas, em bases a um tempo nórdicas e mediterrânicas, o desenvolvimento, no Ocidente, de uma forte noção de cristandade, com as suas consequências políticas, religiosas e culturais, o nascimento das pátrias, mas também o nascimento de uma realidade europeia, sim, são grandes temas, belos temas, mas que nos levam muito além do tempo presente... e não era ensinar a história da civilização moderna o que se tinha a fazer aqui? Pois é! E ensiná-la-ei remontando às suas fontes e às suas origens. E pode ser que as lições que consagrar a estes factos de génese esclare-33LUCIEN FEBVRE ;çam, um certo dia, alguns dos acontecimentos que acabamos de viver com a máxima intensidade, alguns dos acontecimentos que tão profundamente nos dilaceraram.

Deixem-me recordar, para terminarmos, aquele dia triste de 1943 em que fui feito confidente de uma grande dor, em que fiquei subitamente na presença de um grande drama íntimo, dilacerante. Uma mãe francesa, e francesa do coração, acabava de receber a notícia de que o seu filho, oficial da Marinha, de que um dos seus filhos, que tinha ficado ao serviço do governo de Vichy e comandava um submarino, acabava de morrer. Quase estive tentado a dizer: acabava de se matar. Pois ele tinha recebido, e executado, a ordem que lhe fora dada de correr, com o seu submarino, os poderosos vasos de guerra aliados que traziam à Europa, à África e por África uma primeira promessa de libertação. Alguns segundos, e o submarino tinha-se afundado nas vagas...

Entretanto, o segundo filho desta mãe dorida, irmão deste marinheiro, oficial no Chade, servia desde o início às ordens do general Leclerc e, de etapa em etapa, percorria heroicamente, no outro campo, toda a imensa espessura africana que separa o Chade do Cabo Bom4.

Dois irmãos, dois campos, porquê? Deixemos de lado as explicações pessoais: o carácter deste, o carácter daquele; e mesmo as explicações de carreira: aqui o oficial de carreira e ali o oficial da marinha. Não haverá nisto, e era o que eu perguntava enquanto historiador, nessa manhã de 1943, não haverá neste conflito, no fundo deste conflito de comportamentos e de resoluções, a oposição de duas formas diferentes, de duas concepções diferentes do mesmo dever?

Aqui, num dos dois irmãos, preponderante, o patriotismo, quero dizer, um fortíssimo sentimento da pátria concebida como uma pessoa (Michelet), um sentimento de amor, com algo de sentimental, de afectivo, de carnal se se quiser, pois se trata de uma pátria fundiária, de uma pátria territorial, acrescento, um sentimento colectivo, pois que nacional5.34

A EUROPANo outro irmão, preponderante no sentido contrário, um sentimento desencarnado, um sentimento desenraizado, de certo modo abstracto, um sentimento muito forte, não colectivo, mas mais individual, da fidelidade para com um chefe, de uma fidelidade que implica a honra. ;

E com isto abro dois livros, dois livros assaz estranhos aos nossos debates de consciência contemporâneos. As Mémoires do barão de Tricornot, tenente-coronel do regimento de dragões de Schomberg. Oh, [não é] um grande homem, nem um grande espírito, é um pequeno fidalgo do Franco Condado nascido em 1744, que faleceu com muita idade, em 1831, e que em boa hora entrou para o serviço do rei, isto é, do rei de França, é preciso dizer, porque... Este oficial do exército do rei de França, que sentimentos albergava? Um sentimento provincial muito forte: era franco-condense.

E a história do seu casamento é típica! Não era galante! Tinha uma única paixão, a caça. O seu notário, Cournot, apanhou-lhe o ponto fraco e apontou-lhe uma herdeira modesta: «Gostais da caça», disse-lhe ele, «e aí tendes com que alimentar dois cães. com esta aliança podereis ter dez ou doze se quiserdes.» E logo o casamento se decide. É preciso um contrato. E não é que o advogado da noiva resolve reclamar o benefício do costume de Champagne? Temos o notário indignado! «Jamais traremos a servidão para a nossa terra», disse ele ao notário da outra parte. E voltando-se para mim: «Senhor, se aceitarmos este artigo, está tudo mal, vamo-nos!»6

Ora um dia, um dia de 1770, Tricornot, de passagem por Barcelona, é recebido pelo intendente da província com alguns outros oficiais do seu regimento. «Na conversa», escreve ele a págs. 125, «perguntaram-nos de que província de França éramos. Respondi que tinha a honra de servir o rei de França e de ser seu súbdito, mas que não era francês, que era do Franco Condado, antiga província espanhola.» O texto é claro. Em 1770 Tricornot não era francês, quando, desde 1674, melhor dizendo, desde35LUCIEN FEBVRE1678, há um século, o Franco Condado estava ligado à França. Tricornot não é francês mas serve o rei de França. Faz pelo rei que serve tudo o que lhe ditam a honra e a fidelidade7.

Agora vejamos Joliclerc. Joliclerc é um compatriota de Tricornot, mas não é fidalgo. É um pequeno proprietário rural do Franco Condado, ou melhor, é filho de uma pequena proprietária rural que o tem sob tutela. Chega a revolução. À primeira chamada de voluntários, imediatamente ele se alista no exército da República.

As suas cartas são publicadas, em 1905, por Funck-Brentano. Abro ao acaso e leio (pág. 142):

«De Dreux, 13 de Dezembro de 1793. À sua mãe: ”Quando a pátria nos chama em sua defesa, devemos voar... A nossa vida, os nossos bens e faculdades não nos pertencem. É da nação, da pátria tudo isso. Sei bem que vossemecê e todos os habitantes da nossa comuna não partilhais destes sentimentos. Sois insensíveis aos gritos desta pátria ultrajada e tudo o que fazem por ela, fazem-no forçados. Mas eu, que fui educado na liberdade de consciência e de pensamento, que sempre fui republicano na alma, embora obrigado a viver numa monarquia, estes princípios de amor pela Pátria, pela Liberdade, pela República não apenas estão gravados no meu coração como estão lá incrustados e aí permanecerão enquanto agradar a esse Ser superior que tudo governa manter-me um sopro de vida»8.

Verborreia! Catecismo! Lição aprendida! Tudo o que quiserem. O texto está aqui. E não digo apenas que entre Tricornot e Joliclerc há este abismo, a Revolução. Digo: entre Tricornot e Joliclerc há o abismo que separa duas concepções do dever, ambas com a sua razão de ser histórica profunda, ambas com a sua explicação na história, digamos para não nos alongarmos: o dever do patriotismo nacional, o dever de fidelidade pessoal que, sem dúvida, podem (e devem, ou deveriam) estar sempre em acordo, mas podem também, e vimo-lo, acabamos de o ver, divorciar-se cruelmente e opor-se... ,36A EUROPAComo vêem, a história talvez não deixe de ter interesse para quem quiser compreender as mais graves questões do nosso tempo. O que é verdadeiro para os sentimentos que acabo de pôr em paralelo é verdadeiro para sentimentos que possam ter-se oposto, através do tempo, ao desejo de uma Europa considerada, ora uma realidade histórico-política, ora uma pátria ou uma super-pátria, ora uma evasão de preocupações demasiado pesadas, e o culto de uma pátria nacional contra o qual acaba de erguer-se, insidiosamente, uma espécie de ofensiva violenta da Europa, de uma Europa de guerra, de uma Europa inferno de guerra.

Mostrá-lo será igualmente um dos objectivos deste curso; deste curso que nos levará da Europa embrião à Europa realidade política, desta Europa realidade, digamos, se quiserem, desta

Europa das nações à Europa acima das nações, à Europa pátria, e da Europa pátria a esta Europa refúgio que tanto serviu de alibi, neste último meio século, aos homens fatigados pelos conflitos e pelas rivalidades nacionais.

É uma longa viagem. com o vosso apoio, [não me mete] medo.3738

Lição II

Como recebeu nome a Europa

* [Europa, Europeus, bons Europeus (ou, de vez em quando, maus), outras tantas realidades, realidades políticas e talvez, por trás destas, outras realidades: linguísticas, religiosas, económicas, sociológicas; realidades psicológicas, isto é, impressões produzidas, acções exercidas por estas realidades políticas sobre os homens que vivem no que se chama a Europa, homens que aceitam ou rejeitam a noção de Europa, que lhe dão um lugar amplo na sua vida, ou, pelo contrário, a repelem... ]* Tentei portanto mostrar-vos o que entendo pôr por trás destas duas palavras: Europa, Europeu. ,«3

Quanto a alongar-me sobre o interesse actual, a actualidade viva destes estudos, é supérfluo. Ao sairmos de quatro anos durante os quais, tantas vezes, ouvimos repetir estas palavras Europa, Europeu, a vozes que tão pouco europeias pareciam, é inútil insistir. Abordemos o assunto sem mais explicações. E comecemos pelo princípio, um princípio distante como convém ao historiador, um historiador, isto é, um homem que trabalha com o tempo, no tempo, um homem que investe o seu tempo e guarda a sua distância (que é também tempo).

Subirei portanto o mais acima possível o rio do tempo pois, quando39LUCIEN FEBVREos males estão implantados no nosso velho mundo, é a sua velhice, ou, se preferirem, a sua antiguidade que particularmente os explica. Quando uma pessoa já passou dos sessenta anos deve contar com que, de um momento para o outro, [chegue] a doença. E quando ela chegar, julgá-la-á nascida na véspera: é uma ilusão. Ela não é de temer apenas por atacar um organismo com a carga

de sessenta anos de vida e que apresenta recibo dos atrasados. E se quiser curar-se, ou pelo menos tratar-se eficazmente, é bomque comece por conhecer o seu passado. *[É por isso que, ao propor-me estudar a acção e reacção de um mito sobre uma realidade que este mito ajudou a nascer, a acção e reacção de uma realidade sobre um mito a que ela confere força, começarei pelo princípio debruçando-me desde já sobre a pré-história da noção de Europa.]*

Começamos a ir à escola quanto temos seis ou sete anos. E a seguir ensinam-nos a responder à pergunta: quais são as partes do mundo? Devemos dizer: Europa, Ásia, África, América, Oceânia. Quais são os limites da Europa? com essa idade sabemos responder, imperturbavelmente: o Mediterrâneo a sul, o Atlântico a oeste, o Oceano glacial, os montes Urais a leste. É assim porque é assim. E desde então, durante toda a vida, a noção geográfica de Europa nunca mais será problema. Entrou pela escola, e para sempre, nesse tesouro herdado de bens de família, nesta dotação cada vez mais considerável de noções, puídas à custa de [terem sido] gastas pelos séculos, com que o homo europceus é alimentado à nascença e por nascença. O que significa, naturalmente, que [esta noção] está cheia de obscuridade e mistério e que merece que nos debrucemos um pouco sobre ela, por menos que tenhamos o gosto do incompreensível. Pois, diz-se, nada precisa mais de ser explicado do que aquilo que dispensa explicação, fi * & Europa: de que se trata? De uma noção da experiência? Da conclusão a que há muito, muito tempo chegou uma fracção da humanidade, de que existe, à superfície do globo, um vasto conjunto de territórios tão aparentados entre si, territórios tão dissemelhantes daqueles que os rodeiam que4033 A EUROPAse tornava necessário um baptismo, que a aposição de um nome a esta personalidade geográfica se impunha, verdadeiramente, de forma indiscutível? Não, mil vezes não.

Reflictamos: para que esses homens em quem estou a pensar, os Gregos, tivessem adquirido por esta via da experiência directa a noção de certo modo necessária, a noção da evidência de uma Europa, era preciso que se tivessem verificado duas condições: uma, que existisse verdadeiramente no globo um conjunto de países como o que acabo de definir, isto é, tão indiscutivelmente aparentados, tão perfeitamente ligados e por tantos laços que dessem, à primeira vista, a impressão de uma perfeita homogeneidade; a outra, que um certo número de indivíduos, um número de seres humanos considerável, estivesse em

posição de verificar de visu, pela observação directa e pessoal, tanto esta homogeneidade de um vasto território como o contraste entre este território e os seus vizinhos, digamos, que tivessem explorado, não por acaso mas regularmente, metodicamente, normalmente, os países em questão. E foi assim? Pôde ser assim? Não, pelas melhores razões!

Primeiro, sabemos (e não vamos aqui forçar portas abertas) [que não há] uma Europa dom da natureza. É um facto, o que diz tudo: por toda a parte, os limites da Europa (o que se pretende serem os limites da Europa), por toda a parte se passa (não bruscamente, mas por transições invisíveis) da Europa para a Ásia, quando não da Europa para a África. [Podemos] verificar o carácter nitidamente africano já de certas regiões, de certos aspectos da Espanha meridional, verificar o carácter nitidamente asiático de certas paisagens da Rússia meridional ou oriental. É uma banalidade. [Podemos] verificar, inversamente, as profundas diferenças que separam a Noruega da Itália, a Irlanda da Sicília, a Dinamarca da Grécia, Praga de Lisboa e Estocolmo de Nápoles. É talvez uma tarefa supérflua.

Imaginemos, [no] tempo em que o helenismo toma forma, os homens que, movidos por insaciáveis curiosidades, movidos por realistas preocu-41LUCIEN FEBVREpações de tráfico, imaginemos algum heróico pesquisador de âmbar báltico a tentar penetrar no mistério das vias secretas ao serviço (Heródoto, IV, 33) de uma cadeia ininterrupta de povos iniciados, que se estendia desde os países hiperbóreos até Delos, umbigo do mundo, para transmitirem, em momentos solenes, misteriosos objectos sagrados, envoltos em palha de trigo, por um sistema de escalas estabelecidas do Báltico à Cítia, da Cítia ao Adriático, do Adriático a Dodona, depois à Eubeia, depois a Tenos e finalmente a Delfos1.

Que poderia impressionar estes ousados, estes intrépidos aventureiros ao longo da sua perigosa marcha? Semelhanças, talvez? Um ar de parentesco entre todas as regiões, todos os povos por eles encontrados da Grécia i ao Danúbio, do Danúbio às florestas germânicas, depois às praias do Báltico? Não, antes dissemelhanças violentas, contrastes marcados, contrastes nesta Europa onde, ainda hoje, coexistem, com agricultores sedentários, nómadas pastores, com economias primitivas, economias capitalistas mais ou menos avançadas. Outrora havia aqui tribos acolhedoras, ali povos ferozes; aqui intermináveis florestas cheias

de sonhos misteriosos, ali vastas planícies cultivadas e povoadas; aqui montanhas geladas, ali vales pantanosos...

Quando estes homens regressavam, julgam que estariam tentados a dizer «Venho de percorrer a Europa!»? A visão que tinham da sua exploração era tão fragmentária, tão cheia de contrastes, tão desprovida de visão de conjunto como a de um condutor de caravanas que, tendo partido de Argel, chegasse por terra ao Cabo, e mesmo assim exagero, porque a África é um continente maciço e deixa uma impressão de monotonia que o viajante não sente na Europa.

Não, não diziam «Venho de percorrer a Europa» do mesmo modo que, muitos séculos mais tarde, Marco Polo, triunfante, não anuncia à cabeça do seu livro: «Venho de percorrer a Ásia». Marco Polo redige uma coisa a que chama Livro da Relação das Diversidades. Diversidades e não similitudes, eis a verdadeira palavra, a palavra da própria testemunha, a pa-42A EUROPAlavra vivida. E é o copista quem, mais tarde, escreve o título: «Aqui começa o Livro de Marco Polo e das Maravilhas da Ásia a grande; e da índia maior e menor». «Ásia a grande», a grande Ásia, mesmo ao copista esta denominação, para nós tão compreensível, não basta para designar apenas toda a nossa Ásia2. Faltavam as duas índias, a maior e a menor, a nossa índia e a nossa Indochina.

Falo do aventureiro isolado, do menino perdido que se interna nas profundezas misteriosas de um continente de que nada sabe, sobre o qual possui apenas uns dados vagos que bastam para agitar a sua imaginação. Mas, digam-me, a estas viagens que não são propriamente viagens, a estas aventuras de cérebros exaltados, sucedeu a exploração, a exploração no sentido em que a entendemos?

É certo que podemos tomar os Gregos como os primeiros exploradores. É certo, é realmente ao seu esforço que se devem o nascimento e o progresso de uma geografia viva. Sim, estes curiosos impávidos obrigaram a recuar, fizeram fugir diante da curiosidade lúcida e crítica os monstros fabulosos que engendravam e perpetuavam o terror. *[É certo que conseguiram rechaçar estes monstros para além do Helesponto, para além do estreito guardado por Caribdes e Cila, por fim para além das

colunas de Hércules.]*. Sim, semearam a toda a volta do Mediterrâneo um rosário de novas cidades, filhas das suas cidades marítimas. Mas antes que, partindo das margens do mar quente e luminoso, tivessem conseguido penetrar, passo a passo, profundamente, no interior das terras, subir os rios, tomar posse das pessoas e das coisas, dos climas e dos lugares, das paisagens e dos povos, foi preciso tempo, muito tempo. Recordemos que Heródoto, em busca de uma testemunha autêntica que tivesse visto com os seus próprios olhos o mar cintar a norte as terras da Europa, acabou por declarar não ter podido encontrar uma única.

Os Gregos, portanto, não podiam tirar da observação directa e da experiência a noção de uma Europa. Ao longo do itinerário que se estende da Grécia para o Báltico, a soma das dissemelhanças que um viajante,43LUCIEN FEBVREum mercador, um peregrino podia observar, ganhava por muito à soma das semelhanças. E não tinham chegado os tempos de uma tomada de posse científica da Europa pelos habitantes ribeirinhos do mar lumino-

Então? Então, como acontece sempre que tentamos ir à origem de uma destas noções correntes sobre as quais dorme em segurança uma humanidade económica quanto a estas curiosidades, então a noção de Europa começou por nascer de um raciocínio abstracto, nasceu, não de observações, mas de considerações teóricas sem relação com a experiência. Uma vez mais, somos levados a concluir que o que caracteriza o homem não é a reacção directa às solicitações do que chamamos a necessidade. No animal, sim, talvez. Mas no homem, entre a necessidade e a acção interpõe-se sempre a ideia, mesmo no domínio em que se impõe uma necessidade imperiosa, o alimento.

Recordemos essas tribos de pastores, na África, na Ásia ocidental, que morrem de fome ao lado do rebanho, a quem não passa pela cabeça sacrificar uma parte dele para garantirem a sua vida, que morrem de fome ao lado do seu capital intacto! Por maioria de razões, nos outros domínios, e por força quando se trata de conceitos, de ideias, de visões gerais do mundo.

A roda, dizem os realistas? Nada mais simples! Mas é o tronco da árvore cortado às rodelas! Um grande peso para transportar de um sítio para outro, um grande rochedo, por exemplo, para tirar do sopé da falésia para onde deslizou até à entrada da caverna onde o homem estabelecera o seu refúgio, todos os esforços unidos de braços nervosos não conseguiam deslocá-lo, [até que] um inventor de génio resolve que, tombando-o sobre um tronco de árvore bem liso e cilíndrico, pode facilmente ser impelido para diante, depois, quando tombar de novo, pode facilmente ser colocado sobre um segundo tronco de árvore e assim por44A EUROPAdiante. É o sistema do rolo, bem conhecido no Egipto e na Assíria, muitas vezes representado nos monumentos do Egipto. Ora este rolo, quem me impede de o seccionar, de o cortar às rodelas, às rodas?... Feito isto, depressa deve surgir a ideia de furar as rodas ao centro, de as unir duas a duas com a ajuda de um eixo e de assentar, sobre um par de conjuntos destes, um estrado feito de pranchas ou de peles. Nasceu o primeiro carro, a primeira viatura. Só falta inventar os arreios e estará realizada uma das maiores invenções humanas...

Como resistir a tanta verosimilhança? A tantas aparentes verosimilhanças, à atracção vitoriosa desta imagem do rolo feito em rodas..., aquilo em que nós, citadinos, não vemos qualquer dificuldade, como [se não houvesse] nada mais simples do que fazer um tronco de árvore em rodelas que logo ali forneçam rodas sólidas, resistentes, sem rachas, insusceptíveis de se fenderem, capazes de suportar sem se esmagarem um peso considerável (sem o que tudo seria inútil) e de rolar, sem atolar a carga, por um terreno que supomos (porque imaginar não custa nada) plano, sem obstáculos, seco, também, duro e resistente...

A roda, dizem os folcloristas? Mas não estão a ver nada! Não é uma invenção de necessidade, uma invenção para satisfazer uma necessidade dos homens. A roda? Mas se os homens a inventaram não foi para se servirem dela praticamente, utilitariamente, foi para erguer acima das multidões sem nome, acima das multidões unidas na comunhão de uma festa religiosa, a imagem prestigiada dos deuses e dos seus símbolos. Quais? Antes do mais, o sol.

O sol! De todos os seres que povoam a natureza, é o mais visível, o mais amado, o mais esplêndido, o mais triunfal nas suas aparições, nas suas marchas celestes e nos seus ocasos de púrpura. com efeito, para todos os Antigos, o sol encontra-se ligado à roda, o sol, rota altivolans, como diz Lucrécio. Nos flancos do vaso de Gundestrup, na Escandinávia, o Júpiter gaulês é representado com a roda na mão, tal como, em Vaison-la-Romaine, Júpiter está representado (veja-se Espérandieu) com o raio45LUCIEN FEBVREnuma mão e na outra a roda; a roda que não serve para nada, se convirmos porém que a ideia não serve para nada; a roda que serve os deuses; a roda que serve o sol muito antes de servir os Bárbaros nas suas migrações; a roda, este instrumento, emblema, com o cavalo, o carro e o disco, do culto solar, do culto prestado ao sol pelos homens que ele vivifica, alimentando a alegria, a saúde, a salvação: tudo o que resume, no seu arcaísmo, este pequeno carro de bronze que foi exumado de um túmulo, em 1902, era Trundholm, na Noruega e que, do fundo dos tempos, do fundo do país longínquo dos Hiperbóreos, nos trouxe a efígie de um cavalo deitado, com olhos incrustados de resina, vivo, móvel, sensível e que, atrelado a um carro de seis rodas, rebocava um grande disco de metal colocado verticalmente, oferecido à adoração dos devotos do sol3.

O disco solar, a roda, mais um passo no simbolismo e será, sinistra evocação para nós hoje, será a swastika, a cruz gamada com as pontas viradas no mesmo sentido, a cruz gamada, esse outro emblema do sol, do movimento solar, deste movimento rotativo, sempre no mesmo sentido, que a roda, mal nasceu, traduziu para os homens: a cruz gamada, cruz solar, cruz da felicidade que os homens que a criaram por certo não concebiam como um sinal de chamada para tantos ódios regressivos.

Pois bem, tal como houve rodas mágicas antes de haver rodas motrizes, assim também houve uma Europa teórica antes de uma Europa geográfica; com mais forte razão, antes de uma Europa política houve uma Europa feita para satisfazer uma necessidade do espírito antes que os homens cuidassem de dar um conteúdo real à palavra Europa.

Uma necessidade do espírito, qual? Digamos uma necessidade lógica, a de analisar, de dividir e compor de novo logicamente o real. Mas que espírito? O espírito grego, especificamente grego. Para os antigos Helenos, o mundo tinha a figura de uma esfera. Não era uma necessidade (por exemplo, os Chineses perseguiam a ideia do quadrado), mas se o mundo é uma esfera, como conceber de um modo ideal a divisão das terras à su-46A EUROPAperfície desta esfera? Necessariamente de um modo simétrico, dividindo-as de um e outro lado de um grande diâmetro: aqui uma massa terrestre, ali outra, equivalente, o mesmo comprimento, a mesma largura. Era uma espécie de necessidade abstracta, de necessidade lógica. Era preciso que assim fosse para satisfazer a razão. Portanto, foi assim, em teoria, na especulação.

Somente, o que existe na verdade, existe apenas na condição de ter nome, de receber um nome, o seu nome. Muito naturalmente, chama-se a uma das massas ocidental e à outra oriental. A oriental, foi a Ásia: Ásia ou, na forma jónia, Asiè, a terra de este, o país do sol nascente. A ocidental foi a Europa, Europè, Europa em dório, vejam, o que os Fenícios chamavam Ereb, Oreb, Erob, a Érebe dos Gregos, o Gharb dos Árabes, o país do sol posto, a terra que vê cair sobre ela a escuridão crepuscular, a noite, quando o sol cai no mar,«Eúpcómi, xúpa -rife 8weus f| axoreivri »>, como diziam os lexicógrafos gregos e, de resto, recordamo-nos aqui de que os velhos Egípcios possuíam, também eles, a sua deusa do Ocidente, a sua Hespéria, a bela Amontit, Amontit Nefert. E a bela Amontit tem o seu touro, Osíris, tal como a bela Europa tem o seu, Júpiter, que, no seu dorso poderoso, a levou a transpor os mares.

Quando [se passou] tudo isto? Muito tarde. O nome Europa não se encontra uma só vez nos poemas homéricos, aliás, tal como o nome Ásia, a despeito do verso 461 do segundo canto da Ilíada, onde [é feita] menção, não à Ásia, mas à cidade lídia de Asis ou Asos4. Portanto, na Ilíada, melhor ainda, na Odisseia não há qualquer ideia de continentes distintos. Esta ideia, que saibamos, é expressa pela primeira vez por volta de 520 antes de Cristo e pelo grande Hecateu de Mileto do qual Abel Rey, no seu belo livro La Jeunesse de la science grecque, fala com entusiasmo (página 498) como fundador da ciência histórica isenta de inspiração mitológica. Ora na sua Volta ao mundo , (HepíoSos yfis) Hecateu consagra, dizem-nos, todo um livro à Europa, todo um livro à Ásia, todo um livro à Líbia, Libuè, ou seja, a região de onde vem o vento de sudoeste, o chuvoso: Xi<p, Xi(3oç.47LUCIEN FEBVRE

A Ásia e a Líbia juntas formam, a crer em Hecateu e seus contemporâneos, a massa continental necessária para servir de contrapeso, no hemisfério ocidental, à massa da Europa5.

Assim, são visões do espírito e destinadas, mais tarde ou mais cedo, a serem demonstradas pelos factos. O inteligente Heródoto, que nasceu pouco depois da morte de Hecateu, em 484, tinha já o exacto sentimento delas: Ignoro, diz-nos ele, numa passagem curiosa das suas Histórias, IV, 45, ignoro em que possam ter-se baseado, sendo a terra uma, para lhe darem três nomes: Europa, Ásia, Líbia. Ignoro porque são estes nomes de mulheres e porque foram o Nilo do Egipto, o Fásis da Cólquida considerados limites [o Fásis, aliás, substituem-no alguns pelo Tánais, rio da Meócia e pelo estreito cimério6]. Não posso saber, conclui melancolicamente Heródoto, não posso saber os nomes de quem estabeleceu estes limites, nem onde foram buscar estas denominações. Aliás, acrescenta, ninguém se certificou de um modo positivo se a Europa, no levante e no Norte, é mesmo rodeada de água; mas há uma coisa que é certa: a Europa, por si só, é maior do que os outros dois continentes juntos. Cobre o mesmo comprimento (IV, 42), mas a sua largura é maior, em muito, que a da Ásia e da Líbia juntas7.

Portanto, para este espírito sagaz e crítico, é difícil ajustar à realidade a noção teórica, afigurando-se a noção precária e arriscada de continente já muito grande.

E que é precisamente disso que se trata confirma-no-lo outro testemunho: Estrabão, relativamente ao velho Heródoto e, naturalmente, ao mais velho Hecateu, Estrabão que, tendo vivido ao tempo de Augusto, faz nitidamente figura de moderno. Ora também ele acaba por deparar com as mesmas dificuldades. Aqueles que dividiram a terra em continentes, escreve ele, XVI, capítulo 3, parágrafo 1, tiveram muito má ideia . Porque a noção de continente implica a de partes iguais de48A EUROPAum mesmo conjunto. Ora a Líbia é muito mais pequena que a Europa e mesmo mais pequena que a Ásia, a tal ponto que a Europa e a Líbia juntas não igualariam toda a Ásia. É uma mudança de opinião curiosa, entre parênteses, desde Heródoto. Para ele, a Europa é maior sozinha do que os outros dois continentes juntos. Sente-se que entre Heródoto e Estrabão houve Alexandre,

Alexandre com o seu povo e as suas expedições às profundezas da Ásia, até à região da índia misteriosa.]* Detenhamo-nos aqui, o objectivo foi alcançado. Até porque não é minha intenção escrever um capítulo de história da geografia antiga. Foi alcançado o objectivo, que é mostrar que foi por uma visão do espírito e, de certo modo, por necessidade teórica e abstracta que os Gregos, tendo constituído a noção de continente, aplicaram a um desses continentes o nome Europa, ao outro o de Ásia, a um terceiro o de Líbia. Com isto deixaram os seus sucessores imbuídos da noção absurda (e por isso mesmo viva) de continente, a braços com os factos, a tentar conforme podiam (menos bem que mal) adaptar as realidades geográficas cada vez mais conhecidas a noções que, bem vistas as coisas, já não queriam dizer nada, geograficamente falando, absolutamente nada.

Histórias de antigamente? Mas qual foi então, no século XVIII, a grande obsessão dos espíritos aventurosos? Esta arcaica, esta misteriosa noção de continente, de massa continental exigida pelo equilíbrio e pela simetria; descobrir o grande continente austral, cujo périplo se dizia ter sido feito por Tasman em 1642 e que encerrava, pensava-se, a Nova Guiné, a Nova Holanda (isto é, a Austrália), a Carpentária (*[ou seja, a verdadeira baía australiana a sul da Nova Guiné]*) e a terra Van Diemen (isto é, a nossa Tasmânia, a sul da Austrália), descobrir a «grande massa continental» da qual John Campbell, em 1744, desenhou um mapa extremamente conjectural, enquanto Buache, dez anos mais tarde, a mostrou ligada à América do Sul pela terra de Drake, a África pela terra da Circuncisão. Tal foi o objectivo de Cook e de tantos outros que empreenderam as suas grandes viagens como viagens49LUCIEN FEBVRElibertadoras das quimeras. *[E ainda hoje, ou ontem?]*

Que dificuldades sentem os nossos autores de manuais quando estão a braços com a noção absurda de continente que tentam, conforme podem, racionalizar, distinguindo-a da noção ainda mais absurda de partes do mundo. Mas quê? As gerações não param de se deitar na cama dos antepassados, mesmo quando já têm vinte e cinco séculos de idade e já não são mais que leitos de Procustes...

Mas ficou adquirida, para os geógrafos teóricos, a noção de continente europeu. Ei-la que passa dos Gregos para os Romanos e dos Romanos para os seus herdeiros. Talvez amanhã, completado o

périplo, a volta ao globo conquiste o mundo inteiro, conquiste a Ásia. Porque os Asiáticos, por si, ignoram a noção de continente, ignoram a noção de Europa e mesmo a noção de Ásia. Europa, Ásia, Líbia; Europa, Ásia, África são concepções de ocidentais que assim satisfazem a sua necessidade de generalização, a sua necessidade de particularismo, de superar sempre o real.

Os Chineses, pelo contrário (Granet), para eles não se trata de uma terra esférica com um rio contínuo na circunferência que comporta, para satisfação lógica do pensamento, massas continentais em perfeito equilíbrio. Não, para os Chineses é o tempo que, sendo cíclico, sugere a ideia de círculo. O espaço, esse, é concebido como um quadrado, logo, quadrada a terra que é espacial, quadrada a muralha que encerra o principado, quadrado o muro de cintura da cidade, a cerca dos campos, o contorno dos cabos. Para além dos quatro lados que terminam o que é a terra dos homens, isto é, dos Chineses, há uma franja de regiões vagas chamada Quatro Mares. Nestes quatro mares habitam respectivamente quatro espécies diferentes de Bárbaros, ou seja, de não chineses, uma vez que o Bárbaro é sempre aquele que não é como nós, o outro, o vizinho, pertencente a diversas espécies animais, os Bárbaros que partilham a natureza dos animais. E quando o mundo inteiro se reúne, eles formam, fora da cintura sagrada que os Chineses enchem, uma espécie de quadrado exterior que rodeia essa cintura...50A EUROPAOs Chineses. E os Indianos? Em sânscrito, como em árabe, a palavra que traduzimos por «continente» exprime a noção de ilha. E o mundo consiste em um certo número de ilhas concêntricas, separadas por mares de leite, de mel, etc. A ilha central, rodeada por um mar salgado, tem no centro uma montanha. E a índia está a sul desta montanha. O resto, arranja-se conforme pode, segundo as épocas e os sistemas. Mas as experiências dos Hindus não os muniram da noção de continente. Açoka enviou missionários budistas ao Mediterrâneo. Não se vê que ele tenha colocado a questão da Europa, a questão da Ásia. Hoje talvez haja importação de ideias ocidentais. Há uma certa noção de Ásia que assumiu um sentido reivindicativo muito nítido, sobretudo no Japão. Mas «quando estava na índia em 1905», contou-me um grande indianista meu amigo, «era-me difícil fazer compreender que a França não é germânica, mas também não é uma província inglesa.

E continuo a receber em Paris cartas seladas como para Inglaterra, mesmo de correspondentes que adquiriram graus académicos e sabem escrever em inglês»10.5152

Lição III

A Europa, o helenismo e o Mediterrâneo

A noção de Europa não nasceu portanto de uma série de observações directas e de explorações, da tomada de consciência pelos Gregos de uma realidade que se impunha, não, [nasceu] de uma visão teórica de geógrafo de gabinete ou melhor, de cosmógrafo, ou então, já que estas expressões têm laivos de espírito moderno, de um mito, o mito da terra redonda, em forma de disco, rodeada por um oceano exterior circular, atravessada por um mar interior, o Mediterrâneo, no sentido próprio do termo. No interior do círculo, que só mais tarde virá a ser uma esfera, no interior do círculo é preciso registar em equilíbrio, simetricamente, as massas terrestres: aqui, a massa chamada Europa, a ocidental; aqui, a massa chamada oriental, a Ásia e, a completar, a Líbia que se liga tanto à Europa, tida por uma massa menor do que a Ásia, como à Ásia, considerada menor que a Europa...

Não vamos entrar no debate destas concepções. A quem interessar, encontram-se nos três volumes de Abel Rey, La science orientale avant lês Grecs, La Jeunesse de la science grècque, la Maturité de la pensée scientifique en Grèce, documentação sobre este grande problema das relações do mito com o pensamento racional, mais exactamente, da pas-53LUCIEN FEBVRE [sagem do mito ao pensamento racional . Não vamos entrar na discussão porque, que procuramos nós, de momento? Quadros, formas, contentores independentes dos conteúdos? Evidentemente que não, antes uma noção real e viva de Europa, uma solidariedade de nações portadoras de um ideal ou pelo menos de uma civilização comum, de uma civilização europeia.

Ora é um facto, os Antigos não saíram da Europa [concebida como uma] noção formal, é um facto, os Antigos não acederam à noção de uma Europa humana, uma Europa definida em termos humanos.

Porquê? Por uma razão muito simples, é que essa Europa não existia. A fórmula é um pouco brutal, um pouco sumária. Em termos mais brandos, digamos, se preferirem, porque a eventuais desenvolvimentos humanos do conceito cosmográfico de Europa, porque a uma encarnação, primeiro política, depois cultural da palavra Europa, conjuntos de civilizações vivas, actuantes, conquistadoras, de posse de Estados, não deixaram de se opor com todas as suas forças, com toda a sua vitalidade, todo o seu dinamismo. Por outras palavras, os Gregos, quando pensavam o mundo e quando, com o mundo, no centro do mundo, pensavam a terra, quando, por uma necessidade do seu espírito, se elevavam acima do horizonte familiar, acima da sua ilha do mar Egeu, acima do seu cantão montanhoso do Peloponeso ou da Ática; quando procuravam integrar a ilha, o cantão, a cidade que era a sua em conjuntos cada vez mais vastos, não era à Europa, noção abstracta de cosmógrafo, era a outras noções bem mais próximas da sua experiência, a outras noções bem vivas, bem quentes de humanidade que se referiam, desde logo à noção de helenismo, a noção de helenismo que nada tem a ver com a noção de Europa.

A Grécia inventou a Europa. Mas o mundo grego não era um mundo europeu. Não o era nos belos tempos da independência, e nada mais simples que perceber isso. Assinalemos num mapa a localização e os nomes de todas as cidades coloniais fundadas pelos Gregos: como tirar da sua54A EUROPAdistribuição a noção de uma Europa distinta da Ásia, da África, de uma Europa europeia se uma boa metade das localidades se encontra precisamente nas costas da Ásia, no contorno da Ásia Menor, e nas costas de África, ao longo da África Menor? De Cartago a Náucratis, no delta do Nilo, de Fasélis, na Lícia, a Pitiusa na Cólquida, no sopé do Cáucaso? O mesmo vale também para o período inicial. Mas vejamos em seguida num atlas a prodigiosa expansão do helenismo que se estende, com Alexandre e os seus sucessores, do mar Egeu até ao Indo, de Pérgamo e de Éfeso a Samarcanda e a Kurratchi passando por Babilónia e Persépolis, abarcando assim, de Alexandria a Sirta, todo o antigo Egipto.

[É] Europa? Não. [É] Ásia? Também não. [É] o Mediterrâneo? Se quisermos, um Mediterrâneo ainda parcial, ainda fragmentário, um Mediterrâneo que convém não tomarmos por dado, aí voltaremos, um Mediterrâneo de fabrico grego e restringido às necessidades dos Gregos, dos Gregos instalados em colónias, no litoral marítimo, que

começam, partindo de lá, amoldar, a ordenar, a humanizar o mundo que os rodeia; Gregos que, mais tarde, vêem a sua cultura e a língua que a veicula absorvidas pelos Macedónios, propagadas por Alexandre e seus delegados do Egipto à índia, encarnar nas esplêndidas cosmopolis do mundo helenístico: Alexandria, Pérgamo, Antioquia e, do mesmo passo, preparar não só uma magnífica expansão da curiosidade intelectual como também esse poderoso sincretismo religioso, de tão rico futuro e tão pejado de conflitos a que Alexandria serviu de principal cadinho, Alexandria cidade grega do Egipto, cidade grega de África, a mais espantosa das Babel, a mais prodigiosa encruzilhada de ideias, de sistemas, de artes e de crenças do nosso velho mundo.

É um obstáculo, este helenismo, um obstáculo à génese de uma noção de Europa que ultrapassa, e quanto, tal como a nossa própria noção de Europa, o âmbito do helenismo; um obstáculo, um apoio também para uma futura civilização europeia, uma civilização que continua, para não dizer mais, a dever-lhe todo o seu vocabulário filosófico e científico. Escutem55LUCIEN FEBVREMeillet, o nosso grande Meillet, nesse belo livro de história que ele intitula modestamente Aperçu d’une histoire de Ia langue grecque: «Todos aqueles que hoje exprimem ideias abstractas se servem de palavras e de maneiras de dizer que vêm dos Gregos, em particular dos Gregos da época helenística. Forjando novas palavras com elementos gregos, os eruditos modernos continuam uma tradição e o facto de terem sido dados a invenções novas, como o telégrafo, o telefone, o fonógrafo nomes inteiramente gregos atesta ainda hoje a influência daquela que é ainda, por isso e num certo sentido, a língua comum da ciência»2.

Helenismo? O que nele é verdade é-o mais ainda, talvez, para a segunda, em data, destas grandes noções gerais a que se reportaram, na Antiguidade, os homens brancos que saudamos como nossos pais espirituais, a noção de romanidade, de uma romanidade que encontra a sua mais alta expressão no Império, imperium romanum. Aí voltaremos. Limitemo-nos, de momento, a registar o seguinte: um império europeu, o Império Romano? Não. Um Império «circum-mediterrânico», o que não é a mesma coisa. Mas é isso que nos levanta aqui o problema, o grande problema do Mediterrâneo, primeira pátria, primeiro suporte de uma civilização que nos surge sempre, hoje, como o elemento primordial, o elemento fundador da nossa civilização, da nossa civilização europeia.

Sem dúvida. Somente, notemos bem, enquanto Roma viveu, enquanto incluiu nos seus limites de ambos os lados da Itália a Gália mediterrânica, a Ibéria de duplo rosto, mediterrânico e atlântico, a Grécia peninsular e insular, a Ásia Menor e por último a Mesopotâmia e a [palavra ilegível] e todo o norte de África ao mesmo tempo que excluía, não o esqueçamos, o que mais tarde viria a ser a Rússia, o que viria a ser a Hungria e a Boémia, e a Germânia, tudo o que ficava para norte e para leste da fronteira do Reno, o limes, e da linha do Danúbio, enquanto esta România, tendo absorvido o helenismo que formou o fundo substancial, que formou o melhor da sua civilização, enquanto esta Roma se impôs aos homens tão di-56A EUROPAversos que agrupava não apenas como formação política mas também pela formação militar que os governava na paz e na ordem, enquanto esta Roma se impôs a estes homens como lugar comum da sua civilização no que ela teve, a seus olhos, de melhor e de mais precioso, não houve qualquer futuro para a noção de Europa, nenhuma possibilidade de esta noção encarnar verdadeiramente, de este nome flutuante, oriundo de necessidades puramente teóricas, se tornar o nome de uma unidade substancial, de uma unidade de civilização. Por outras palavras, enquanto esta România durou, a Europa não esteve na Europa. A Europa esteve no Mediterrâneo. A civilização europeia foi a civilização mediterrânica. Portanto, o nosso dever aqui, neste momento, é examinar as bases, estabelecer os fundamentos deste Mediterrâneo de cultura, deste Mediterrâneo de civilização, desta pátria mediterrânica que foi durante tanto tempo a pátria dos homens que fizeram para nós o leito de cultura em que repousamos... pacificamente, apesar de tudo, com a inconsciente serenidade do homem que dormia em Pompeia, tranquilo na sua casa, enquanto a lava já em torrente descia as encostas do Vesúvio.

Vamos direitos ao facto que rege todos os outros: falamos de civilização mediterrânica, correntemente, como de algo evidente. Dizemos que a nossa civilização de hoje, a civilização do Ocidente, a civilização europeia e que se propagou a todos os países europeizados, dizemos que esta civilização é de origem mediterrânica. Quero saber: [o que é a] civilização mediterrânica? Direis: é absurdo. [Não] é essa a questão. Civilização mediterrânica

quer dizer: «Os elementos desta civilização, encontramo-los pela primeira vez num qualquer dos grandes povos que viveram nas margens do Mediterrâneo. E Deus sabe quantos se sucederam: logo prontos a recitar as litanias clássicas dos impérios, de Ramsés a Trajano, passando por Alexandre...

Contudo, quando notamos a presença, longe do lugar de origem, de um elemento de civilização material ou espiritual vindo de um destes grandes57LUCIEN FEBVREpovos ribeirinhos não dizemos: é uma noção egípcia, é uma importação *” fenícia, é uma invenção grega. Gostamos mais de dizer: é um dado mediterrânico. O que significa que criámos um vínculo causal entre o Mediterrâneo e o facto de civilização que consideramos. Não queremos dizer apenas: este facto, situamo-lo no litoral mediterrânico. Queremos dizer, subentendemos: este facto, como muitos outros, é filho do Mediterrâneo. Foi ele que os criou. Sem ele, [os factos não seriam] o que são. De acordo? bom. Mas porque dizemos isso? Quero saber. ,

Deixem-me dar um exemplo. Chego a uma grande cidade, longe, muito longe da nossa Europa, longe, muito longe do nosso Mediterrâneo, do nosso mundo mediterrânico; digamos, se quiserem, chego a Buenos Aires. Que é que me impressiona? Factos, espectáculos, maneiras de ser ou de agir que são especificamente de Buenos Aires? Mas não! Os factos, os espectáculos, as maneiras de ser que registo a um primeiro olhar são de toda a parte. Saio da alfândega, que se parece com todas as alfândegas, faço o mesmo gesto que em Paris e o táxi aproxima-se, dou um endereço e vejo algarismos suceder-se a algarismos na pequena janela do contador, chego a um hotel que poderia, com um toque de varinha mágica, ver-se transportado para qualquer avenida parisiense, sem que ninguém se espantasse. O mesmo porteiro, a mesma «recepção», o mesmo ascensor, o mesmo quarto. Nada me surpreende, tudo me é familiar, tudo, até o facto de todas as manhãs ler o Prensa ou o Nación e ao longo dos dias trocar ideias, sem esforço, com homens, mulheres que muitas vezes falam a mesma língua que eu, pelo menos falam a mesma língua espiritual que eu... De modo que ao cabo de alguns dias digo timidamente a estes interlocutores tão próximos de mim: «Apesar de tudo, bem gostaria de ver alguma coisa original,

especificamente argentina... » Procuramos. Respondem-me evasivamente: «Não é muito cómodo... Quando se vive aqui há muito tempo... mas assim de passagem... »

Pois bem, este exemplo familiar ajuda-nos a compreender [o que é] a58A EUROPAcivilização. Esta palavra recente tem dois sentidos (é uma palavra recente: não a encontrei antes de 1766; encontrei-a nessa data, [pela] primeira vez, na Antiquité dévoilée de Boulanger, obra póstuma publicada pelo barão de Holbach; Holbach, o grande neologista, será talvez responsável por este neologismo: civilização)3.

Portanto, esta palavra tem dois sentidos. Um, bastante vago, o que vulgarmente [empregam] os jornais, as revistas, os livros, quando falam de progresso, de derrotas, de conquistas, de vicissitudes «da» civilização e que subentende para eles um juízo de valor: a civilização é algo de muito precioso e de muito belo, qualquer coisa que comunica a todos os que a reivindicam um valor, um prestígio, uma dignidade eminente; a todos, tomados colectivamente, pois a civilização é um património, um apanágio colectivo; a todos, tomados individualmente, pois a civilização é para nós um privilégio de que nos ufanamos. Civis sum romanus, dizia S. Paulo. Mas nós, afinal, somos os civilizados, até mesmo os civilizadores...

O outro sentido da palavra é muito mais preciso e positivo. Chamar-lhe-ei sentido etnográfico. Todo o grupo humano constituído possui uma civilização, a sua civilização. É o conjunto das características que apresenta aos olhos de um observador imparcial e objectivo a vida colectiva de um grupo (a vida material, a vida política e social, a vida intelectual, moral, religiosa). É um conceito que não implica qualquer espécie de juízo de valor, nem sobre o pormenor, nem sobre o conjunto das filosofias examinadas. Em última análise, podemos falar de uma civilização dos não civilizados. Acrescento que esta noção não está relacionada com os indivíduos enquanto tais; é unicamente de ordem colectiva. Caracteriza uma determinada sociedade. Não é apanágio de um indivíduo.

Civilização, portanto: a palavra tem dois sentidos. Mas o que interessa o historiador é, creiam-me, um único destes sentidos, o segundo. O historiador faz-me pensar nesse suíços do século XVI dos quais os nossos antepassados gostavam de dizer: gente de S. Tomé..., querem pôr o dedo na ferida... (nos dois sentidos da palavra). Nós, historiadores, queremos59

LUCIEN FEBVREpôr o dedo na ferida (oh, descansem, num único dos sentidos da palavra, Quem queira escrever um livro sobre as relações dos historiadores com a finança faça favor de o escrever.) Queremos pôr o dedo. O que significa que não gostamos de abstracções e nos repugnam os juízos de valor. De modo que [dizer] em 1945: nós os civilizados! Nós os civilizadores! Não!, é impensável.

A civilização, para o historiador, não é uma força desencarnada, uma deusa de sonho que se agita nas nuvens acima das nossas pobres civilizações humanas, tão alto, tão longe que pode contemplar com um olhar seco os excessos, os abusos que se cometem em seu nome. A civilização é aquilo que, quando nos deslocamos, aquilo que, quando, e retomo o meu exemplo, passamos de Paris para Buenos Aires, não nos espanta, aquilo que, pelo contrário, nos é logo conhecido e familiar.

Porque em todas as civilizações há dois tipos de elementos: os sedentários, os viajantes. E a proporção varia singularmente de uma civilização para outra. As civilizações pobres, primitivas, atrasadas não são apenas aquelas em que os elementos de civilização são pouco numerosos, em que o inventário do material, o inventário do espiritual da civilização depressa se faz, mas também aquelas em que predominam muitos elementos sedentários, incapazes de provocar o desejo, a inveja das civilizações vizinhas, e que portanto não viajam. (Notemos, aliás, que estas civilizações pobres em elementos aptos a viajar podem ter ido buscar muitos elementos viajantes às civilizações que as rodeiam.) Pelo contrário, as civilizações ricas, as civilizações brilhantes, as grandes civilizações são aquelas em que abundam os elementos viajantes, os elementos espirituais e materiais capazes de provocar cobiça e de se fazerem adoptar.

Conhecem o dito infantil que Jules Renard conta no seu Diário: «O meu brinquedo? Não posso dar-to porque é meu»4. Meu, pertence-me; ou, mais exactamente, meu, parte integrante de um eu que ainda não alcançou definir-se, circunscrever-se, delimitar-se no espaço. Pois bem, os factos60A EUROPAda civilização são factos que operaram o seu corte, cortaram o cordão umbilical, saíram para o mundo, por sua própria conta. Os elementos imutáveis na nossa civilização são elementos materiais, como o cinema;

antes, era o telefone; antes, o vapor; antes, a roca de fiar, e assim por diante. Elementos espirituais, também. Foi, por exemplo, o cristianismo, quando o espírito grego lhe deu asas. Foram os princípios da Revolução Francesa que deram a volta ao mundo. Foi o liberalismo, etc. Repito, nas nossas grandes cidades, onde quer que elas sejam, procuramos os factos originais de civilização e não os encontramos. E são geralmente factos diminutos, [como] aquele a que Mauss gostava de aludir, recordando o incómodo que os franceses sentiam em utilizar, durante a guerra de 1914, as pás inglesas, de cabo curto e com cruzeta... 5

A civilização, para o historiador, é a parte comum, a parte que une e aproxima, que traduz a necessidade que todas as sociedades humanas têm, a necessidade de se imitarem reciprocamente, de imitarem pelo menos as que têm mais prestígio, mesmo quando esta imitação se paga, como por vezes acontece, com uma diminuição do conforto real.

É uma necessidade que encontra a sua contrapartida nessa outra necessidade não menos forte, mas sem dúvida bastante mais isoladora, a que os homens têm de se meterem consigo, de se voltarem para dentro, de se fecharem para melhor gozarem a sua civilização; a necessidade de erguer, como na China, uma muralha simbólica e ao mesmo tempo real entre ela e a civilização vizinha, ou então de erguer essa muralha, como as pessoas de casta na índia, entre elas e os outros grupos humanos, essa muralha, essa alta barreira moral que é o interdito.

Dito tudo isto, que era preciso dizer, voltemos à civilização mediterrânica. Porquê mediterrânica? Imediatamente surgiu a explicação, a explicação pelo meio ambiente. E é o conhecido hino à natureza mediterrânica, aos seus dons, às suas virtudes, à sua graça eficiente. O Mediterrâneo é a luz, a pureza de um céu absolutamente azul a reflectir-se num mar ab-61LUCIEN FEBVREsolutamente azul; é a limpidez: o mínimo acidente avista-se com um vigor espantoso, a léguas de distância; é a secura ventilada: são os ventos locais a varrer céu e terra colaborando com o sol numa obra de saneamento; é o calor, mas não excessivo, nunca do que esmaga o organismo humano.., Tudo isso dito sem lirismo, em jeito de escrivão. Que a claridade, a limpidez, a secura, o calor ventilado possam criar um meio ambiente, de acordo; que as plantas, as preocupações, as acções deste meio assumem aspectos e qualidades particulares, de acordo; que se possa verdadeiramente falar de algo de sóbrio, de excelso, de seco que caracteriza as paisagens mediterrânicas; que esta sobriedade, esta

excelência, esta secura se imiscuam no espírito dos homens, nas suas criações, nas suas maneiras de ser; que esta natureza, que cheira bem ao ar livre, penetre fundo nos homens com os seus aromas, vá. Há razões para o dizer. Mas para o explicar, falta responder: é a natureza que assim quer?

A natureza, que natureza? Imaginei um dia Heródoto a fazer de novo o périplo do Mediterrâneo, de um Mediterrâneo de novo pacífico e propício outra vez a cruzeiros preguiçosos... Que espanto para este grande viajante que conhecia tão bem o Mediterrâneo do seu tempo! Os frutos dourados, as maçãs de ouro, as laranjas... que belos, estes frutos... mas nunca vistos... Ora esta! Chineses introduzidos pelos Árabes. Essas plantas bizarras, de estranho perfil, com os seus picos, os seus caules, as suas massas carnudas, com nomes bárbaros, cactos, ágaves, aloés... decorativas, certo, mas nunca vistas... Ora esta! Americanos. Essas grandes árvores pálidas que parecem tão bem aclimatadas... belas, é certo, mas nunca vistas, embora de nome grego, eucalyptus, Ora esta! Australianos. Até essas grandes palmeiras que bordejam as praias: Heródoto viu-as, mas nos oásis saarianos. E nunca pensou que um dia as veria [ali]. Até mesmo esses grandes ciprestes, para nós tão característicos, os ciprestes pintados por Gozzoli, em Florença, na capela do palácio Riccardi, Persas, que os cultos orientais ainda não se encarregaram de pôr a viajar. E tudo assim, das árvores aos legumes. Imagino o bomdo Heródoto saboreando a hos-62A EUROPApitalidade de Nice, em Nice, a grega, Niccea, espantado perante a estranha salada que lhe apresentam. Tomates, pimentos, beringelas, para não falar dos feijões e das batatas, desconhecidos, estranhos. E que alegria encontrar enfim o sabor familiar de uma azeitona.. Sim: a laranjeira, a tangerineira, o limoeiro, a palmeira, o cipreste, o pessegueiro da Pérsia e a amoreira da China, o arroz da Sicília e da Lombardia, o milho, esse mexicano, a figueira da Barbárie levada no seu êxodo pelos Mouros expulsos de Andaluzia, tudo isso, que nos parece característico, essencialmente característico do Mediterrâneo, tudo isso que, nos afectos [?], ainda ontem excitava a cobiça nórdica, tudo isso é novo no Mediterrâneo, tudo isso data de ontem, quero dizer de há um século, ou três, ou quinze6.

Pois sim, há a luz, a limpidez do ar, a secura e o calor ventilado. No entanto, tempos houve em que o contraste entre a Europa do Norte, florestal, e a Europa mediterrânica, despida, não existia; em que a própria Grécia, e a Galileia, a que Flavius Josephus louvava as belas

árvores da planície de Genesareth, e o norte de Itália, e a Espanha cobertas de vastas florestas, os cumes do Líbano cobertos de cedros introduziam, mantinham a árvore em plena zona mediterrânica.

A história da vegetação, aqui como em qualquer sítio, é a história de uma monotonia preenchida por uma variedade, a história de um prodigioso trabalho de escolha, de eliminação, de diversificação, de enriquecimento operado por conta da «natureza» pelo eterno agente das transformações terrestres: o homem, o homem que com tanta imprevidência e voracidade se pôs a explorar, a destruir as reservas de hulha e de petróleo. Porque os aloés e os cactos, as laranjeiras e as tangerineiras, damos por elas no que gostamos de considerar o fundo natural da paisagem mediterrânica. Natural, dizemos? Será a oliveira? Mas veio da Ásia Menor. E se já se assinala na Síria por volta de 1440 antes de Cristo, não foi de imediato que ela conquistou todo o seu domínio mediterrânico e que a vinha se seguiu à oliveira, que o azeite pôde substituir a gordura animal e a manteiga e se [pôde] traçar um limite entre os homens do Norte fiéis a esta gordura por-63LUCIEN FEBVREque [cinco palavras ilegíveis] e os homens do Sul fiéis ao óleo vegetal E isto, com todas as consequências que uma mudança de regime alimentar acarreta para os homens. [É uma] história apaixonante. Mas onde está o mapa, o mapa das etapas do velho Aristeu a fornecer em redor do mar azul a oliveira nutritiva? Onde está o instituto de cartografia que nos dê enfim o atlas da civilização mediterrânica que nos falta!

Concluo: a natureza, não. É o homem que está em jogo. São as sociedades humanas. É bem pouco, o homem. Mas mete um dedo na imensa engrenagem e, por vezes, por vezes tudo pára e se transforma. Penso sempre nesses projectos ambiciosos da Atlantropa, nesses projectos que consistiam em tratar todo o Mediterrâneo como um simples Zuyderzee. Uma barragem em Gibraltar, uma barragem nos Dardanelos, duas brincadeiras; de criança, e eis o Mediterrâneo privado dos caudais do Atlântico e do Mar Negro. Um século... e temos novas margens no Mediterrâneo. Mas basta seguir a curva batimétrica de 100 metros... Quimera, direis? Mas que importa? Teoricamente, não é impossível. Pensem no Zuyderzee. Um pequeno gesto do homem e eis condições imutáveis, ou que julgamos imutáveis, destruídas e quebradas. O ambiente natural, sim, mas o homem está na natureza, o homem que faz e desfaz.

E então, quando dizemos: a civilização é mediterrânica porque filha da natureza mediterrânica, não dizemos nada. Porque a natureza mediterrânica é filha do homem, criação do homem. A natureza

mediterrânica é um produto desta civilização mediterrânica que se quer explicar por ela, Aqui não é apenas a natureza que está em jogo, a cega, indiferente natureza. Aqui o que está em jogo é o homem, o homem que age, que se crê clarividente e que muitas vezes é mais cego que a natureza. Admirável tenacidade da humanidade. Morre, depois renasce. Morre e depois perpetua-se. Morre e nunca se rende... à evidência.

Assim, vimos como, com os cuidados dos Helenos, nasceu a noção de64A EUROPAEuropa. Que representava? Um quadro, uma forma, um continente, mas quase vazio de conteúdo. Ora, pelo nosso lado, que nos falta? Uma noção real, uma noção viva, uma solidariedade de nações portadoras de um ideal comum, de uma civilização comum.

Porque não passaram os Antigos de Europa, noção teórica, noção formal, noção imaginada fora do real, porque não passaram eles para uma noção viva de Europa que procuramos apreender e definir historicamente? Porque não puderam, porque surgiram obstáculos a uma encarnação política real, a uma encarnação cultural real deste conceito. Que obstáculos? Vê-lo-emos da próxima vez. Terei dito tudo se vos disser, ao terminar, esta fórmula: «A Europa surgiu, muito precisamente, quando caiu o Império Romano»7.6566

Lição IV

A Europa, o Império Romano e o Mediterrâneo

Até que ponto da pesquisa chegámos? Recordemo-lo em duas palavras. Estamos à procura de uma Europa humana, de uma Europa feita de grupos humanos capazes de criar, capazes de partilhar, capazes de propagar uma civilização europeia, especificamente europeia. Esta Europa, fomos nós procurá-la à Antiguidade. Não a encontrámos. Encontrámos duas coisas: uma palavra, que é a palavra Europa, mas esta palavra significa uma noção inteiramente formal de Europa que nada tem a ver com a noção humana que buscamos, a noção humana de uma Europa baseada numa unidade de civilização; uma palavra, mas também realidades, refiro-me a agrupamentos culturais de Estados, de nações, no quadro de uma mesma civilização. Mas estes agrupamentos culturais não são agrupamentos europeus.

Quando, na Antiguidade clássica, os homens que levavam à frente de outros homens a bandeira de uma civilização mais radiosa conceberam, para além das cidades, para além das tribos, dos reinos, etc., uma unidade mais vasta de fundamento cultural deram por base a esta unidade o helenismo. Conceberam a noção de helenismo, a noção de mundo helénico, a noção de cultura helénica. Mas esta noção nada tem a ver com a noção 67LUCIEN FEBVREde Europa, a noção de um mundo europeu, a noção de cultura europeia. Esta noção é mediterrânica.

[Foi esta] constatação que nos levou a reflectir sobre a própria noção de Mediterrâneo. O que é o Mediterrâneo? Um mar? Sim, mas não apenas um mar. Um espaço líquido? Uma espécie de superfície hídrica vazia entre cidades ricas de história na Ibéria, na Itália, no Norte de África, nos Balcãs, na Ásia Menor? Não! [É primeiro]) um mundo ou, se se preferir, uma família de seres históricos diversos, opostos, mas ligados, harmonizados pelas exigências constrangedoras de um conjunto. E é também um complexo de mares e de terras solidariamente unidos. Porque há um Mediterrâneo líquido, é certo, mas também um Mediterrâneo sólido, um mundo mediterrânico terrestre que continua a desempenhar na Europa actual um papel em tudo capital, um mundo mediterrânico terrestre que dominou, que continua a dominar a quase totalidade das Américas, que transbordou, que continua a transbordar sobre o interior africano. Há séculos que as terras mediterrânicas estão ligadas, estreitamente, solidamente aos mares mediterrânicos. Há séculos que as terras mediterrânicas são as margens solidificadas de espaços líquidos, de um universo líquido que não poderia conceber-se sem elas. E então, será por isso a história do Mediterrâneo um monólogo? Um canto solitário que sai das águas? Não, é um diálogo, o diálogo entre os espaços sólidos e os espaços líquidos. É um casamento, ou melhor, uma série de casamentos entre uma civilização litoral e civilizações interiores, entre um Amor do sol e um Arcoèt meridional...

Note-se que, nesta união, não é necessariamente o mar que mais conta. com efeito, é a história das terras que comanda politicamente a história dos mares. Quais foram os senhores das terras e dos destinos mediterrânicos? Os povos continentais, os Persas, depois os Macedónios, depois os Romanos, depois os Árabes; ainda no século XVI, os Castelhanos e os Turcos. A história

das terras comandou sempre politicamente, no Mediterrâneo, a história dos mares. E isto é tanto verdade que Veneza, cidade68A EUROPAdo mar, teve que se envolver numa cobertura de terras protectoras e de criar o seu domínio terrestre e continental. Sem terra firme, Veneza pereceria.

[Veja-se], pelo contrário, Génova, Génova a abarrotar, com as suas casas aristocráticas de janelas com grades, de portas estreitas, casas-fortes contra os ataques do mar, cofres-fortes bem protegidos; Génova comprimida no seu litoral e depois, logo por trás, o Apenino que se ergue calvo, rosado do sol; Génova, vítima talvez dos seus humores caprichosos e instáveis mas também do facto de, demasiado marítima, demasiado litoral, não ter sabido, ou não ter podido criar, para trás do Apenino que a encerra e que no entanto é todo esburacado, escancarado por colos de fácil acesso, uma vasta vertente terrestre, uma terra firme genovesa, e de a manter com força.

Mas veja-se, em Espanha, acabou por ser Aragão, o maciço e continental Aragão, a levar a melhor sobre a sua banda litoral, isto é, a Catalunha. Veja-se a Itália peninsular, foi a Florença continental que submeteu a Pisa marítima. E foi o continental Piemonte, não a Itália costeira, que realizou a unidade da Itália.

O que não quer dizer, naturalmente, que no diálogo mar-terra, o mar não tenha o seu papel! Pelo mar se realizam as tarefas quotidianas, indispensáveis à vida do conjunto. É o mar que liga as diversas regiões; é ele que, pelo vazio atraente dos seus espaços livres, pelas suas rotas que cedo se multiplicam, cria um ambiente de vida rápida, de sangue mais vivo, no coração da mais vasta extensão de terras emersas do mundo.

O mar é o que mexe, o que perpetuamente se move, o inovador, o que está sempre pronto a fazer-se à vela, a espicaçar a lentidão dos homens, a saltar directamente, sem intermediários, sem linhas de fronteira ou de alfândega, de um ponto para outro ponto, por vezes muito afastado. O seu movimento propaga-se para longe, não apenas de uma margem à outra do Mediterrâneo como no próprio interior das terras. O vento passa. A terra dorme, imóvel. O mar tem a força do vento e a estabilidade do solo. Age.69LÚCÍEN FEBVRENão diz: deixa-me dormir o sono da terra. Combina os homens e as coisas, l Desloca. Mistura.

E, para tomar um exemplo bem longe do Mediterrâneo, enquanto Magdeburgo, a continental, constrói a Alemanha para além do Elba e lá planta a pouco e pouco, progressivamente, cidades, Lubeck, a marítima, expande rapidamente para leste o seu direito conquistador e os seus marinheiros comerciantes.

O mar é a estrada, a estrada eficaz e de grande débito, sobretudo no Mediterrâneo, onde faltavam os rios navegáveis, onde a via de navegação é a via marítima, onde pelo mar se operam espantosas transferências para longe: transferências de coisas pesadas, por exemplo, pedras que acompanham as trocas arquitectónicas da Síria dos Abássidas e de Bizâncio com a Espanha dos Omíadas; tráfico de coisas leves e, por exemplo, no século XV este transporte das modas de Chipre e da corte de Lusignan até à plena monarquia de França, toucados pontiagudos, sapatos de bico revirado, etc. Bratianu mostrou a sua origem: são modas do Oriente transferidas, adoptadas, propagadas pelo Ocidente mas transferidas por mar, veiculadas pela água1. É neste sentido que eu pude dizer: o Mediterrâneo, são estradas.

Ora, regresso à minha pergunta: [serão] mediterrânicas, estas civilizações? Sim, mas são mediterrânicas pelo homem (história, saber do homem), ligadas ao ambiente mediterrânico não por um vínculo de dependência rígida do meio, não por uma fatalidade de raça, mas pela vontade de um encadeado de homens flexível e vivo, móvel e plástico. Acrescento, se ainda vos restam dúvidas, que, mediterrânicas pelo homem, só continuam a sê-lo pelo homem, pelo consentimento dos homens e pela sua vontade.

Também aqui vou direito ao caso mais flagrante, o da civilização romana, do segundo, em data, destes grandes conjuntos culturais que albergaram os sonhos de união, os desejos de entendimento e de compreensão70A EUROPAdos homens, no tempo em que a Europa ainda não passava de uma palavra, uma palavra de cosmógrafo, uma palavra vazia de sentido concreto e de realidade, uma palavra para designar uma noção inteiramente formal.

Há as civilizações «particularizadas». Há as civilizações «generalizadas». A civilização generalizada por excelência é a civilização romana, não só porque abarcou todo o mundo mediterrânico

com os seus aspectos pitorescos, com os seus costumes, com o seu conforto, com as suas instituições políticas e jurídicas, com os seus hábitos intelectuais e desde logo a sua língua, com as suas concepções da religião e da vida, mas como podeis ir mais longe, até ao coração do que será a sociedade antagonista de Roma, até ao coração da sociedade nórdica, encontrareis o quê? Durante períodos inteiros e brilhantes, a civilização romana está implantada bem no coração desta civilização estranha e hostil, a civilização romana está representada, em força e em número, pelos seus elementos viajantes.

Transportemo-nos para o Reno. Visitemos os magníficos museus de Mogúncia, de Colónia, de Bona. Inscrições, baixos-relevos, objectos e instrumentos, há por lá todo um material rico... mas é em grande parte material romano. Lá estão os armadores cujos barcos ousam afrontar o oceano, unindo as terras batávias à Bretanha romanizada. Que levam eles, de cabo em cabo, de cidade em cidade, para abastecer administrações civis e militares? Que levam? Pesados fardos de olaria vermelha vidrada com que as fábricas de Arezzo enchem todo o Império. Que levam? Cargas dos caldeireiros da Campânia, caçarolas e frigideiras a tinir, devidamente assinadas, que inundam o vale do Reno e de lá refluem para Inglaterra, para a Jutlândia, para a Pomerânia2. Lá estão, conservadas em vitrines ou figuradas em baixos-relevos, lá estão odres e ânforas. Que contêm? Ânforas cheias de vinho de Itália e de Espanha, jarros cheios de azeite das margens do Mediterrâneo, frascos selados que levam aos gastrónomos o garwn de Itália, não se tratava de louças decorativas3. Quando dizemos ânfora imaginamos um belo vaso clássico erguido sobre a sua ponta e homens a de-71LUCIEN FEBVREsenhar... Mas não! As ânforas, os jarros, os frascos, tudo isso, eram recipientes e marcas de origem. Tudo isso continha produtos, produtos de luxo, uma vez que tinham que viajar para tão longe, produtos introduzidos e metidos nos mercados por todo o Império, e para além dele, através da Barbárie, por firmas com irradiação mundial, de campo em campo, de cidade em cidade. Mas, precisamente, estas cidades do Reno, quem, senão Roma, as criou?

Quando, no seu atlas histórico da província renana, os Alemães omitiam, muito simplesmente, inserir um mapa da Renânia romana, quanta ingratidão, e que absurdo, nesta reivindicação de autonomia, de independência plena relativamente à latinidade! Estas cidades do Reno encerram uma história duas vezes milenar, estas cidades do Reno, força e esplendor destas regiões que, durante tantos séculos, só por elas participaram na civilização, na riqueza, na vitalidade tomada ao estrangeiro, estas cidades do

Reno, dom magnífico de Roma às terras ainda bárbaras que era preciso civilizar, estas cidades do Reno, prendas sem preço do Mediterrâneo ao pai Reno, selvagem na sua barba hirsuta, estas cidades, filhas do exército romano do Reno, filhas do «Colonial» romano, tão pitoresco e tão activo; o exército romano do Reno, o «Colonial romano», foi a escola dos grandes chefes do Império, dos construtores da România. Todos passaram por lá; todos serviram, de Tibério a Trajano, de Marco Aurélio a Júlio, todos os que deixaram a sua marca nesta máquina formidável legada pela República aos Imperadores.

Terminadas as manobras, quando já não se ia em coluna através de terras bárbaras, quando, por algum tempo, o legionário pousava o seu pilum no armeiro, então, empunhava a enxada e a colher de trolha; e assim, remexendo a terra com energia, fazia surgir do solo casas à italiana para os chefes, camaratas para as mulheres, toleradas à sombra do campo na zona, no quarteirão, dos praças, canabae, onde se pavoneava a Senhora legionária, onde pululava uma porção de petizada militar, semente de aventureiros, de mercantis sem medo, sempre prontos a mergulhar nos ermos72A EUROPAbárbaros, ou então centuriões antecipando a sua reforma como os nossos sargentos-ajudantes velhos, todos a desbravar o latim na escola dos filhos da tropa, todos a arranhar, na escola improvisada, o gaulês, o germânico, o bretão, dez línguas misturadas no prodigioso falar desta Babel renana. Lá estão o grande patrício, irmão e sobrinho do imperador, por vezes futuro imperador; o oficial que ali veio ganhar, entrando na campanha, um grau superior; a dama sua esposa, morigerando os seus boys na pessoa dos seus escravos; todos estes transplantados, todos estes exilados, de manhã à noite, passeando-se entre bazares, lojas, tabernas, uma prodigiosa Babel de tipos humanos, uma Babel cheia do bulício do mercador gaulês, paciente e engenhoso, do carregador de além-Reno, forte e dócil, com cóleras bruscas, do soldado dos regimentos auxiliares aspirantes à cidadania romana, à medalha militar dos reincorporados, e também a eterna vivandeira que, com o vinho adocicado do Sul, lhes servia um pouco do sol mediterrânico4. Entretanto, com o seu rolo, o vendedor de tapetes sírio, o mercador de escravos de grande nariz oriental veiculavam a flora luxuriante de um Panteão do Oriente, perturbador, sensual e muitas vezes inquietante. De ísis, a egípcia, a Cibele, a frigia, e a Mitra, a persa, uma fraternidade de deuses do Oriente invadia este Ocidente, de súbito atravessado por um grande sopro religioso vindo das margens do mar luminoso... ;.

E eis quem nos mostra, eis o que basta para nos mostrar que a palavra Europa foi uma palavra vazia durante muitos séculos. É que a palavra império, imperium romanum ou, se quisermos, a noção de Romania bastava para designar todo o conjunto cultural que, para além do exíguo círculo da sua existência quotidiana, podiam imaginar os homens cultos da época, todos os que ascendiam à noção de uma grande unidade de civilização que abrangesse não apenas as terras mediterrânicas, as regiões ribeirinhas do Mediterrâneo e as com elas estreitamente relacionadas, mas também partes inteiras de territórios continentais73LUCIEN FEBVREque os exércitos romanos tinham conquistado e ligado ao litoral.

E como não havia de bastar-lhes esta noção? Antes do mais, o Império Romano era a paz, pax romana. Era Augusto a fechar o templo de Jano e a pronunciar (mas ele legitimamente) a frase que um César de contrabando entre nós, franceses, diria de novo dezanove séculos mais tarde, mas com uma boca enganosa e enganada: o Império, é a paz; pax civilis, o fim das guerras intestinas; pax universalis, o fim das lutas de um povo contra outro e todo o mundo romano baseado na pátria romana, tal como a cristandade, mais tarde, se abrigará sob o manto da Virgem de misericórdia5. Urbem fecesti, quodprius orbis erat, do que era a terra inteira tu fizeste, ó Roma (hipérbole de poeta), tu fizeste uma só cidadania, a cidadania romana... Paz era também a protecção do Império contra os Bárbaros, mantidos em respeito pelo limes, pela civilização mediterrânica, a civilização greco-latina e as suas conquistas. Paz, enfim, era o pão de cada dia garantido ao labor de cada um, o pão de cada dia [duas palavras ilegíveis] : pascite boves, submittite taurus, ide em paz e cuidai dos vossos touros, pensai os vossos bois, palavras de Tibério aos camponeses gauleses da Cisalpina.

Império Romano era tudo isso, a ordem relativa e a primeira ideia de uma administração regular: leia-se em Tácito a vida de Agrícola, esse bomadministrador, inteligente e recto que soube fazer com que os mais ferozmente independentes dos Bárbaros de então, os Britânicos, amassem Roma. O Império Romano era uma civilização material abundante em elementos diversos que se repetia por toda a parte, por toda a parte idêntica a si própria, nos edifícios públicos, nos templos dos deuses, nas casas dos homens, por toda a parte, das margens do Reno às margens do Saara.

Império Romano era uma língua comum de que são filhas a maior parte das grandes línguas da Europa: no entanto, as outras foram sendo pouco a pouco remodeladas, penetradas, saturadas de palavras e de maneiras de dizer por essa grande língua que esteve viva até ao século XVII...74A EUROPAE eu sei bem tudo o que se pode dizer contra o Império Romano. Sei bem tudo o que se pode dizer contra a civilização romana. Sei bem o requisitório, vingança, talvez, de uma admiração imposta demasiado candidamente à sua juventude, sei bem do requisitório que, aqui mesmo, Camille Jullian erigiu contra este Império, erigiu contra esta civilização7. Sei bem que ele a classificou de mediocridade intelectual, de banalidade artística, de esterilidade científica (e eu acrescento técnica), de vexame fiscal, de degradação moral, de desdém pelos valores médios, pelos valores burgueses, e outras coisas mais... Eu sei. ;

E não estou aqui a entoar um hino triunfante e ingénuo à glória de um poder providencial. Não, mas, mesmo assim, observo que a própria mediocridade das suas criações assegurava o seu domínio sobre grupos humanos cada vez maiores e mais extensos; que mais vale uma casa limpa e saudável, e cinemas, e escolas de cimento armado do que não haver casas limpas, não haver cinemas, não haver escolas... ; que, portanto, mais valem as grandes construções romanas que invadiram o mundo, as construções de tijolo erguidas pelos legionários e em seguida revestidas por materiais mais ricos, mais valem estas construções cobertas de prateados e dourados falsos, mas que, precisamente, não requerem uma mão-de-obra qualificada, nem mestres de obras especializados, do que nada de nada, palhotas de negros em clareiras de lama... ,*

*[Vamos juntos até aos limites do Império Romano, frente aos Bárbaros que um dia iriam derrubar Roma. Partamos de Basileia, herdeira, no século III, da Colónia Augusta Rauracomm, até Utrecht, Trajectum, e a Leyde, Ludgdunum Batavorum, o curso majestoso do pai Reno; designemos de passagem os nomes das cidades que antes de Roma não existiam, a que Roma deu vida, que, através dos séculos, assistem à força clarividente do seu pensamento ao mesmo tempo que asseguram a grandeza e a força ulterior das regiões em que Roma soube implantá-las: Nimègue, Xanten, Neuss, Colónia, Bona, Andernach, Boppard, Bingen, Mogúncia,75LUCIEN FEBVRE

Worms, Espira, Seltz, Estrasburgo, e basta8. Destas cidades famosas, não há uma que não responda «presente» à chamada de Roma; nem uma que, perante a história, não fale mais alto por Roma do que contra Roma, todos os requisitórios e todas as reacções.]*

Fracasso, o Império Romano? Politicamente, talvez, mas não sabemos nós que é preciso não confundir os destinos de um Estado com os da civilização que ele propaga, os destinos de um regime e os da cultura de que este regime beneficia? Sabemos muito bem, porque lemos e meditámos sobre este grande livro de história europeia que é a Histoire de la langue française de Brunot, sabemos muito bem que é nos anos de 1760 que a língua francesa conhece o seu mais magnífico destino no estrangeiro9. É então que ela conquista verdadeiramente a Europa, então, quero dizer, no preciso momento em que a França conhece uma das suas piores derrotas, aquela que o tratado de Paris sancionou em 1763.

Fracasso político, o Império Romano? Talvez, poder-se-ia dizer. Mas fracasso cultural, francamente! Quem traçou os mapas do nosso mundo? Quem, senão Roma, pela rede das suas vias pavimentadas, pela sementeira das suas cidades estratégicas e mercantis, pela uniformidade da sua cultura material, pelo pulular das suas escolas latinas? Quem, senão Roma, fez, pela organização das suas províncias, a cama temporal ao cristianismo preparando assim as dioceses? E não terá feito mais neste domínio? Não foi ela que, pela sua tolerância, pela aceitação fácil de todos os cultos e de todos os deuses, de todos aqueles de que eu falava há pouco, não foi ela que preparou o ambiente de onde surgirá, do seio das religiões de salvação, a que a há-de tomar para capital, a própria capital do Império desaparecido, aquela que, à Roma dos Césares, fará suceder a Roma dos pontífices?

Poderosa civilização, na verdade, a que aguentou como ela aguentou, a que atravessou todas as desgraças, todas as vicissitudes, a que por fim76A EUROPArestabeleceu, em todo o contorno do Mediterrâneo, a sua hegemonia, salvo num ponto, salvo num lugar onde o homem traiu a sua civilização e, por assim dizer, o seu continente. Este ponto é a ilha do Magrebe, como dizem os Árabes. E o caso é típico. Vale a pena examiná-lo de perto. Fica demonstrado: a civilização não é uma fatalidade do meio,

não é uma fatalidade da raça. A civilização é um querer humano. A deserção do Magrebe, não nos iludamos, é uma deserção muito importante. O Mediterrâneo, enquanto mundo unido, nunca recuperou deste volta-face da «África Menor». Como [se deu] este volte-face? E porquê?

Será uma região mal romanizada? Ora! Se se pode falar de civilização romana, é aí! Se quisermos ver belas ruínas romanas, vamos lá! Falavam latim, os imperadores e os deuses. Quando o cristianismo aí responder aos seus adversários, fá-lo-á em latim, portanto, compreendem-no. Melhor: escreviam-no. Na sua juventude, Santo Agostinho entristeceu-se em latim com as desgraças de Dido. Recorde-se Apuleio, de Madaura, devoto de ísis, platónico, advogado, poeta, naturalista, mágico, conferencista e romancista que rejuvenesce os velhos contos gregos! Citemos Marco Aurélio, discípulo do mais famoso dos reitores romanos, um argelino, Fronton, de Cirta! Como foi latinizada, a região é cristianizada a fundo: é a terra de Santo Agostinho, desse santo Agostinho que é um mundo, o mundo de Santo Anselmo e o de Lutero, o mundo de São Tomás e o de Calvino. Devemos-lhe A Cidade de Deus, parafraseada por Dante, imitada por Bossuet... É tão cristã esta região que forneceu heréticos, um Tertuliano, para citar apenas este.

Ora esta região latinizada a fundo, esta região cristianizada a fundo, islamizou-se a fundo. Hoje, da sua antiga latinidade, [já só] restam alguns elementos decorativos que se mantiveram na arte berbere. Será que a população é dócil, resignada, amorfa? Não! Ela sempre lutou terrivelmente contra os seus novos senhores. A invasão durou 70 anos (de 641 a 711), em ataques sucessivos sem sair vitoriosa. Bem pior que a resistência aos Franceses em 1830. E então? Como explicar a deserção, a traição de que77LUCIEN FEBVREo mundo cristão ainda sofre? -

Como? Aqui, busquemos antes uma explicação de circunstância, de aparência fantasista, a de Gautier, a explicação pelo camelo10. O camelo.., Mostrei-vos Heródoto pasmado com tantas novidades vegetais; mas o camelo é, na Argélia, uma novidade animal... Esta silhueta que para nós evoca o Saara, a África, esta silhueta que para Tartarin simboliza a África, só podemos vê-la por lá desde a era cristã, não antes. É só no século II, no século III que o camelo se desenvolve. No século IV, reina. Vemos, em 363, um general romano exigir só de Leptis magna (Tripoli) 4 000 camelos. bom,

direis, mas [qual a relação com] a ruína da latinidade em África? [Que relação]? Duas coisas.

Primeiro, o Magrebe é uma chave entre dois mares, o Mediterrâneo e o Saara. Ora, destes dois mares, o mais intransponível é o Saara. Pensem nisto: as invasões nunca vieram do deserto, do sul. Vieram todas do norte. Por mar! Prodigioso, o voo dos Vândalos que vêm abater-se sobre a Argélia... Ora, o camelo é uma ponte através do deserto. Quando a romanidade se dissolve, o Magrebe está entre dois mares. Um, ontem fácil de transpor, torna-se difícil: é o Mediterrâneo, a insegurança, a pirataria, a decadência marítima. O outro, ontem difícil de transpor, torna-se fácil, graças ao camelo: é o Saara... Portanto, o Norte de África cola-se facilmente ao bloco africano. O Norte de África separa-se radicalmente da Europa.

Outra coisa: o camelo é o instrumento de trabalho, por exemplo, dos grandes cameleiros nómadas que imediatamente se constituem em tribos, Digo imediatamente: pensem na rapidez, com que um cavalo se adapta na América do Sul. Estas grandes tribos constituem-se e logo se precipitam sobre os sedentários... e da sua terra fazem o quê? Uma ruína, uma ruína tal que os nómadas ficam sendo os seus senhores incontestados durante séculos. Quem paga os custos de uma expedição para conquistar ruínas? Foi preciso reunir capital e substituir o método dos pequenos destacamentos pelo método, mais caro mas eficaz, dos batalhões para que a78A EUROPAArgélia fosse subjugada. Antes, [foi só] fracassos e loucura.

Outra coisa mais: o camelo, ou seja, o substracto, sim. Antes de Roma, o que há neste Magrebe? Cartago. E Cartago teve uma influência singularmente profunda; esta Cartago cujos habitantes andavam de túnica comprida, como os indígenas da Argélia trazem a gandurah\ esta Cartago cujos habitantes andavam de barrete a moldar o crânio, como os indígenas da Argélia trazem o fez; esta Cartago cujos habitantes usavam o capote, pneta, em tudo semelhante ao albornoz; esta Cartago cujos habitantes usavam o cabelo curto ou rapado sob o barrete, a barba comprida e tingida, o rosto maquilhado como os que hoje põem hena e khol; esta Cartago que, com o Magrebe, dominara o único canto de Espanha onde os Árabes criaram uma civilização duradoura, a Andaluzia; esta Cartago, tão hostil a Roma que Roma sentiu por ela o horror instintivo que certos povos inspiram aos povos cujos cérebros se construíram segundo outros planos; esta Cartago, enfim, cujas tradições

se mantiveram no Magrebe muito depois da ruína da cidade, cuja língua era a das dinastias locais, a qual, diz-nos Santo Agostinho, que se falava, ainda no seu tempo, nos arredores de Bona e de Guelma.

E isto é um relâmpago que nos revela, na profundidade das civilizações mais homogéneas, choques, quebras, antagonismos; [que nos revela] o quê, numa palavra? O homem, mais uma vez, sempre o homem; o homem, chave de todos os problemas da história; o homem, chave de todos os problemas da civilização.

*[Fatalidade, a passagem do Magrebe para o campo do antigo Império? Não, acção do homem. E o que nos gritam estas velhas civilizações é o seguinte: cuidado! Para que uma civilização se mantenha é preciso amor e o orgulho de participar nela: não as belas construções, não, não as belas pedras, não, mas sim essas pedras vivas, os homens]*.

Seja como for, o facto é comprovado: enquanto o Império Romano se manteve de pé, enquanto, com a sua poderosa armadura, pôde cobrir toda a imensa extensão que separa do promontório de Tânger a Arábia Petreia,79LUCIENFEBVREPalmira e os lugares desertos onde foi Ninive, [não havia] hipótese de a Europa ser mais que um nome, que uma palavra, testemunha dos esforços do génio grego para organizar em espírito o universo, para adquirir dele uma visão coerente, harmoniosa e lógica, uma visão europeia, se é que posso pronunciar esta palavra, uma visão racional, uma visão segundo a razão. Para que a Europa viva, é preciso que morra o Império Romano. Como, porquê? Qual foi a génese histórica real desta grande construção dos ocidentais? Vê-lo-emos na lição seguinte, com o cuidado de nada simplificar arbitrariamente, sem esquecer o conselho prudente de Montaigne: «Fazem-me odiar as coisas verosímeis quando mas apresentam como infalíveis»11.80

Lição V

A Europa surge quando o Império cai

Abordamos hoje um problema bem grande: quando nasceu a nossa Europa? A Europa tal como a defini para vós várias vezes, a Europa humana e portadora de uma civilização a que podemos chamar civilização europeia, a Europa que tenho o cuidado de distinguir da noção geográfica e cosmográfica de Europa.

Quando nasceu a Europa ou, mais exactamente, quando se encontraram reunidos, e postos em presença os elementos constitutivos da nossa Europa? A esta pergunta alguém respondeu, e foi Marc Bloch. Respondeu com uma fórmula incisiva que encontro nos Annales de 1935, tomo VII, página 476: «A Europa surgiu, muito precisamente, quando caiu o Império Romano1». O que é verdadeiro, imensamente verdadeiro, mas verdadeiro de uma verdade que precisa de ser interpretada. E a interpretação aqui não é simples: a génese da Europa foi longa, lenta, progressiva. Será uma perda de tempo desenhá-la outra vez? Por certo que não.

* [Nenhuma compreensão do presente é possível sem um conhecimento preciso do passado, um conhecimento arejado, um conhecimento inteligente.

Fornecer à meditação dos homens de hoje sobre a Europa de amanhã,81LUCIEN FEBVREsobre o mundo de amanhã, sobre esta Europa, sobre este mundo a cuja elaboração violenta assistimos, com uma espécie de espantosa placidez, sobre esta Europa, sobre este mundo que se gera em tão trágicas convulsões, fornecer à meditação dos homens de hoje sobre o ambiente de amanhã as noções históricas, todas as noções e nada mais que as noções de que eles precisam para terem uma compreensão plena do que se passa, é o meu objectivo neste curso.]*

A Europa surge quando o Império cai, a Europa, refiro-me a esta solidariedade de povos contíguos que mantêm uns com os outros relações mais complicadas do que simples relações de contiguidade; a Europa, refiro-me a esta solidariedade de povos que tem a ver com viver lado a lado o sentimento de uma solidariedade real que se exprime por um mínimo de instituições comuns (instituições no sentido lato: embaixadas, visitas de soberanos, tratados diplomáticos e económicos, neste sentido são instituições, tal como as academias, as universidades, as grandes revistas e os grandes jornais, os grandes editores, os acordos de propriedade literária, as grandes religiões e tudo o que delas depende, as falsas ou pseudo-religiões; noutros domínios, os Correios, os fusos horários, os horários combinados dos caminhos de ferro, os das linhas aéreas internacionais, etc.); a Europa, refiro-me, numa palavra, a um certo tipo de civilização, uma comunidade de civilização que pode, ora transbordar do quadro da solidariedade política de que falava, ora não preencher inteiramente este quadro, mas que precisa, para se formar, para crescer, para se afirmar, de um mínimo de protecção que só uma organização política pode dar-lhe. Eis o que é, o que pode ser a Europa cuja génese

procuramos, a Europa que surge quando o Império cai..., uma organização, uma civilização.

Ora, que foi preciso para que nascesse uma tal Europa? [Foi preciso] que o Império Romano ruísse e desimpedisse o espaço, como facilmente se entende. O Império Romano era na realidade uma solidariedade de regiões organizada, mas que não podia merecer o nome de europeia. *[Por-82A EUROPAque já se tinha tomado o hábito de distinguir a Europa, a Ásia, a Líbia.]* O Império era uma solidariedade organizada de regiões «circum-mediterrânicas» que em nada recordava, em nada prefigurava o que mais tarde viria a ser a nossa Europa. Para o Império, o Mediterrâneo não era uma margem. Era um centro, uma tabela de comunhão, o elemento de ligação por excelência. Enquanto subsistisse este agrupamento «circum-mediterrânico», enquanto ele fosse mantido por uma armadura sólida de instituições políticas, de instituições militares, de instituições fiscais, de instituições administrativas, por uma organização, é evidente que não podia nascer uma Europa.

E, além disso, o Império Romano era uma civilização cujo valor não devemos subestimar, uma civilização de tipo assaz complexo, servida por uma dupla universalidade, a universalidade de uma raça de conquistadores, a universalidade de uma língua prestigiada; uma civilização cheia de vitalidade, de eficácia, mas não uma civilização europeia, uma civilização mediterrânica; uma civilização para a qual os países nórdicos não contribuíam. E enquanto persistisse esta civilização, intacta nos seus quadros, nas suas posições, é evidente que uma Europa não poderia, não saberia viver.

Era preciso que o Império Romano, enquanto organismo político, enquanto civilização particular e fechada, enquanto civilização acima de tudo mediterrânica, sem contributos nórdicos de valor, era preciso que o Império Romano se desagregasse para que, não direi surgisse, a palavra é excessiva, mas desperta ideias falsas, evoca a ideia de uma gestação súbita; era preciso que o Império Romano se desagregasse e ruísse para que pudessem começar a verificar-se as condições indispensáveis à lenta, difícil, arriscada elaboração do que, com um nome tão curto, tão cómodo e tão simples, chamamos Europa.

Quando se consuma este grande drama histórico, quando e como [se consuma] este grande drama que não pára de apaixonar os historiadores,83LUCIENFEBVREeste grande drama, um dos três ou quatro grandes dramas que afectaram profundamente o nosso universo comum, o nosso universo familiar, o quadro dos nossos pensamentos e das nossas vidas? Quando, como? É uma questão imensa, pensem bem...

* Deixemos de lado os choques dos sistemas, das teses e das datas. Para quem quiser fazer uma ideia, há o grande livro inacabado de Pirenne, Mahomet et Charlemagne, e, do mesmo autor, L’Histoire de 1’Europe, da invasions au XVIe siècle, tão comovente pelas condições em que [foi] escrito quando, deportado, internado no fundo da Pomerânia, escreveu sozinho, sem livros, apenas com a sua prodigiosa memória e um tesouro de conhecimentos críticos acumulados, sozinho, em cadernos escolares que comprava ao merceeiro da aldeia2. Mas esta história da Europa toma a Europa como um facto ou, se se quiser, como um dado. Pirenne não coloca aí o problema da génese: não é o seu pendor de espírito, nem a tendência ] do seu génio de historiador.

. Deixemos pois de lado os sistemas e as controvérsias, limitemo-nos aos factos, aos factos que podem servir o nosso desígnio. E desde logo, em conformidade com a nossa distinção (há a organização, há a civilização), aos factos da organização.

Ora os factos, deste ponto de vista, são antes do mais um: é que este grande organismo, o Império, que reunia em torno do Mediterrâneo as terras ocidentais, orientais, asiáticas, meridionais e africanas, foi, por uma série de intervenções humanas complicadas, partido em três partes, cada uma das quais teve que viver em seguida a sua vida própria, uma vida que já não era a do Império Romano.

E as partes orientais do Império foram as primeiras a cindir, separaram-se das partes ocidentais, facto de importância capital na história dos destinos da nossa secção da humanidade, facto que, fora de todas as contingências e de todas as datações, não nos é difícil explicar. Aliás, quando é que se viu um historiador embaraçado para explicar, passo após passo,84A EUROPAum facto histórico? Esta explicação, estas explicações, não vamos fornecê-las aqui. Queremos simplesmente mostrar em que é que

este grande facto, a secessão das partes orientais do Império, está directamente ligado ao problema da Europa.

Talvez tenham lido inteligentemente esse pequeno livro anterior à guerra, essa obra de um espírito curioso, Francis Delaisi, Lês deux Europes . As duas Europas, é a Europa A e a Europa B. A Europa A é aproximadamente a Europa ocidental, a Europa industrializada. No círculo que circunscreve esta Europa, mais um semi-círculo, aberto do lado do oceano e pontuado aproximadamente do lado terrestre por Estocolmo, Danzig, Cracóvia, Budapeste, Florença, Barcelona e Bilbau, agita-se, activa-se, febril, um formigueiro humano; há uma intensa mobilização dos homens e das coisas; há uma notável actividade de trocas; há circulação rápida em toda uma rede complexa e densa de vias férreas, de canais, de estradas e de caminhos que ligam cidades enormes, cheias de fábricas, de fumos, de massas operárias, de capitais acumulados, de negociantes febris... Esta Europa A é a Europa do cavalo-vapor, dizia Delaisi . A fórmula é bela. »

E a outra? A outra, a Europa B é, inversamente, a Europa do cavalo-animal. Desenvolve, fora da esfera europeia industrializada da Europa A, as actividades lentas, pacientes, espaçadas e camponesas de uma Europa sobretudo agrícola e rural, de uma Europa relativamente pobre em fábricas, em caminhos de ferro, em estradas, em canais, em capitais, de uma Europa colorida quanto a raças, pouco animada quanto às trocas de homens ou de produtos.

Ora, sentimo-nos impressionados por estas coisas que um bom observador via na Europa de hoje, «a própria Europa de entre as duas guerras». Se olharmos para o Império Romano, o Império do século III, mutatis mutandis, como dizem os pedantes, é exactamente a mesma coisa... salvo que é o contrário. A mesma coisa, quero dizer o mesmo contraste. Aqui, regiões agrícolas, grandes domínios rurais, zonas pouco especializadas; ali,85LUCIEN FEBVREzonas muito mais evoluídas, cheias de cidades já grandes e fervilhantes de actividade, transbordantes de luxo e de riqueza, regorgitantes de produtos, uns fabricados localmente, outros importados por activos navegadores, ousados caravaneiros.

é Aqui, ali... Somente, atenção! Nesse tempo, a Europa B, a Europa rural, é a Europa de Oeste, a Grã-Bretanha, a Germânia, a

Gália, tudo países com frente para o mar bravo que não leva a nada. A Europa B é uma colecção de campesinatos pouco avançados, pouco evoluídos. E é o Oriente, pelo contrário, que alberga multidões industriais, comerciantes, aglomeradas em poderosas capitais e incessantemente ocupadas em sulcar o Mediterrâneo e os mares que ele comanda, em relação permanente com a Ásia do Oriente e do Extremo Oriente... É este Oriente, o Oriente das grandes cosmopolis e das grandes Babel de então que a Europa A de então representa. Singular inversão das coisas e, desde logo, explicação de um corte que havia de ser tão completo que foi possível culpar Roma de ter falhado gravemente a sua tarefa histórica por não ter tratado de organizar com mais vigor, de despertar, de animar, de civilizar e de enquadrar mais duradouramente as regiões do Ocidente, as regiões novas que Roma tinha conquistado, as regiões de futuro com possibilidades ainda desconhecidas. Explorar o Oriente helénico e as suas riquezas conhecidas, saquear os seus tesouros, captar os seus recursos, imitar o seu luxo e os seus requintes é uma tarefa mais fácil, menos ingrata do que aquela que teria consistido em valorizar o Ocidente, numa palavra, em criar a Europa, uma Europa que teria sido bem mais vasta do que o «circum-mediterrânico» romano, uma Europa que, organizada por Roma, teria talvez sido capaz de resistir aos ataques dos Bárbaros.

Portanto, a secessão do Oriente, eis a primeira condição necessária para que a Europa pudesse nascer. E quem iria pensar que, para conhecer ,o xadrez europeu actual, digo, o mais imediatamente contemporâ-86A EUROPAneo, quem iria pensar que é inútil ter reflectido historicamente nesta cisão? [Após a] secessão do Oriente, [em breve haverá], ainda por cima, e não menos grave, a cisão do Magrebe, esta trágica secessão do Norte de África, tão profundamente romanizado, tão profundamente cristianizado e que bruscamente volta as costas ao mundo romano e para vários séculos, talvez para sempre, passa para o círculo da anti-Europa. Terá sido por acção do clima africano? Mas o clima era o mesmo quando Séptimo Severo se dirigia ao trono imperial a rilhar as tâmaras da sua terra natal... Terá sido por acção da raça? Mas que raça? A que à nossa civilização do Ocidente deu homens como Séptimo Severo, precisamente, ou Santo Agostinho? ’>

Não, nem o clima africano, nem a terra africana têm nada a ver com esta história, com a história desta região que resistiu sem dúvida à

invasão, que resistiu 70 anos, de 641 a 711, mas que acabou por ceder ao Islão, e tanto cedeu que, abolido todo o passado latino, se tornou corpo e alma de uma terra muçulmana, ferozmente erguida [contra] o velho país mediterrânico cujo destino partilhara durante tanto tempo. Está aí, como vos dizia, a grande deserção, aquela que rompeu a unidade mediterrânica, a que rompeu a família das terras «circum-mediterrânicas», a que voltou o Magrebe para a África negra ao longo do Saara e, pelo delta do Nilo, para a Arábia. Será tudo? Não.

Secessão do Oriente, secessão da África Menor, secessão do Ocidente, não de somenos, pois o Ocidente traiu, também ele, a seu modo. Traiu, uma vez que, desde o fim do século V se encontra inteiramente nas mãos dos Germanos e de Germanos que começam a estabelecer-se, a instalar-se solidamente em territórios conquistados. Examinemos o mapa do mundo antigo romano no fim do século V: enquanto apars Orientis, apars orientalis aparece quase livre ainda de invasores e que continua a ser governada pelo Império Bizantino, na pars occidentalis é todo o um florescimento de populações novas: no norte da Gália, os Francos; na Gália oriental e87LUCIEN FEBVRErenana, os Alamanos; no Léman, no Saône, no Ródano, os Borguinhões; no sul da Gália e em Espanha, os Visigodos; em Itália, o reino de Odoacro, Em suma, o Ocidente é já feudo dos invasores germânicos enquanto ainda não é a sua pátria.

Em vão, nos meados do século VI, Justiniano, num último sobressalto, arranca aos Vândalos a parte oriental da África Menor, aos Ostrogodos a Itália, aos Visigodos a ponta sudoeste da Espanha. A Gália nem por isso deixa de estar definitivamente perdida para o Império e a Península Ibérica mais tudo o que está a norte dos Alpes, a este do Reno, na grande ilha dos Bretões. Prepara-se uma nova constelação política. Lentamente, estabelece-se, nos séculos VII e VIII. No limiar do século IX, em 800, acaba por encontrar a sua expressão política, a sua primeira expressão: torna-se o Império Carolíngio. [Tratar-se-á apenas] de uma mudança de dinastia? É muito mais, muito melhor, é a consagração política de uma profunda mudança de estruturas do mundo de Ocidente, a integração oficial, reconhecida, pública, do elemento nórdico na história do Ocidente, e já não como elemento secundário e acessório, mas como um elemento capital e determinante.

Avaliemos esta mudança. Entre os séculos IV e VI da nossa era, em inúmeras partes do Império, do antigo Império, começou-se a falar germano. E os que não falam germano não falam latim, falam romance. O latim? Fredegário, no século VII, vê-se aflito para o escrever, perde-se, afunda-se e confessa-o5. Mas não é só o latim que está em jogo, pois é toda uma civilização que, com o latim, se apaga perante uma outra civilização, perante uma civilização bárbara que traz consigo elementos tirados de diferentes fontes, recolhidos ao longo de todos os caminhos da Europa oriental ou nórdica; uma civilização bárbara que tem as suas formas de arte, de ourivesaria, as jóias, as fíbulas em vidraria, esmaltes, todo um vigor impulsivo que, por intermédio dos Godos, se expande pouco a pouco para Ocidente; uma civilização bárbara que tem costumes próprios, modas de vestuário, igrejas e casas de madeira, a sua literatura épica e guerreira,88A EUROPAo seu direito, a sua concepção da família e do casamento e mais não sei quantos dados. -

Uma civilização inferior? Tem-se dito, disse-se um pouco apressadamente, sem este espírito de relatividade que é o espírito histórico. Inferior? Seja como for, os nossos antepassados não pensavam assim. Se assim fosse, não teriam ido buscar «branco» aos Bárbaros quando tinham albus, nem «orgulho» quando tinham superbia, nem tantas outras palavras que nada ligava ao aspecto especial dos recém-chegados, tantas palavras que atestam, simplesmente, que estes recém-chegados eram prestigiados, que o prestígio tinha mudado de campo!

E eis o que nos leva a passar de um plano para outro, do plano da organização para o plano da civilização. Porquê esta rápida derrocada da civilização romana? Porque é que o Norte de África, tão profundamente romanizado, desaprendeu tão depressa toda a sua cultura latina? Porque é que o mundo bizantino, também ele latinizado, voltou tão depressa ao grego, exclusivo e cioso? Porque é que este Ocidente abandona tão depressa o latim? Porquê? Porque uma obra que é obra exclusiva de uma elite separada das massas é precária. Porque uma civilização importada por uma elite de povos que estas elites julgam mais avançados que o seu povo é precária. As elites procedem, por via da autoridade, ao transplante de plantas exóticas que acham desejáveis e cobiçam; mas o transplante para um belo jardim, bem guardado por um exército de jardineiros especialistas, não quer dizer naturalização, uma dessas naturalizações verdadeiras que tornam em seguida as plantas aptas a prosseguirem a sua existência sem auxílio

especial, sem cuidados extraordinários, sem artifícios. E, à falta de uma aclimatação assim, à falta de uma naturalização assim, estas civilizações de empréstimo estão destinadas à ruína: estão de antemão destinadas a decompor-se.

Decomposição, a palavra exacta. Como diziam os nossos velhos químicos: corpora n,on agunt, nisi dissoluta, ou, como dizia Aristóteles, tan-89LUCIEN FEBVREtas vezes citado pelos nossos renascentistas, por Rabelais: «Geração vem de corrupção»7. É preciso que a decomposição seja levada a fundo para que os elementos dissolvidos, desagregados, fiquem prontos a entrar na formação de um novo organismo. E os elementos dissolvidos, libertos, não entram de chofre num organismo da mesma ordem. Pelo contrário, servem de alimento para o desenvolvimento de seres inferiores, destinados por sua vez a fornecer aos seres de uma ordem mais elevada os materiais necessários à sua constituição.

Pois bem, a vida dos povos não escapa a estas necessidades. É preciso que uma civilização velha fique entregue a uma decomposição total para que se torne possível, a partir dos seus elementos resultantes de decomposição, a evolução dos germes de uma civilização nova, rica em seiva, em juventude, em porvir.

A prova? A prova, olhai o mundo grego. Por não ter chegado ao estado de decomposição total do mundo latino, arrastou a sua decrepitude por mil anos. E quando finalmente se extinguiu, não transmitiu a vida a um herdeiro, No Ocidente, pelo contrário... Sem dúvida! O primeiro desenvolvimento dos germes de uma civilização nova, ou renovada, coincide evidentemente com a ruína da civilização romana, a mais completa ruína. E esta civilização nova é fruto de quê? De uma mestiçagem, de uma mistura de raças não suficientemente afastadas para que, deste afastamento, resulte repugnância e esterilidade, suficientemente afastadas para que, na sua união, não haja risco de degenerescência. Uma vez mais, a história confirma-o: não é a pureza, é a impureza racial (se é que esta palavra faz sentido) que fecunda; não é a separação dos sangues, mas a mistura dos sangues. Do mesmo modo, sabemo-lo nós, homens de ciência e de estudo, do mesmo modo que não é no interior de cada ciência, é na fronteira entre as diversas ciências que se fazem as grandes descobertas, também é do choque entre grupos de homens que nascem as grandes renovações de civilização.90A EUROPA

Temos portanto uma civilização nova e que se estabelece sobre um fundo muito antigo de costumes, de tradições, de hábitos, conservados por camadas sobrepostas, depois fortemente misturadas, de populações de origens, de estruturas prodigiosamente diversificadas e que combinou elementos bárbaros, trazidos de fresco pelos invasores, mas combinou também elementos orientais de proveniências diversas, com vestígios que subsistem, diríamos, da civilização romana? Não, temos já que chamar a esta civilização, conforme os seus diversos fácies, civilização galo-romana, ibero-romana, britano-romana, germano-romana. ”

Contudo, os homens que elaboram esta civilização apoderam-se de uma religião de origem estrangeira, de uma religião de importação, a religião cristã, para fazer dela a sua religião, e convertem-se em massa. E o abalo causado por esta conversão, a força que dela recebe a religião eleita, a fraqueza, perante esta religião, das outras instituições que estes homens detinham, todos estes desequilíbrios violentos e brutais são a causa, naturalmente, de que esta religião, alargando o seu papel, tenha criado a tendência para depressa absorver em si a totalidade das suas preocupações culturais.

Detenhamo-nos. Tudo isso foi preciso, porquê? Para fazer a Europa propriamente dita? Não, para tornar possível, mais tarde, o estabelecimento de uma Europa. Mas porquê mais tarde? Porquê este adiamento? Porque não se realizou a Europa a partir dos quadros do Império Carolíngio e sob forma unitária? Porquê este destino tanto tempo falhado, porquê esta porta aberta a tantas tragédias? Porquê?

Regressemos à nossa distinção. Europa, são duas coisas: uma organização e uma civilização. A Europa progride na história como um homem forte e destro numa multidão espessa: com os dois ombros. Um! Impulso de organização. Dois! Impulso de cultura. Um! Impulso de organização. Dois! Impulso de cultura, etc. É preciso primeiro um mínimo de organização que proporcione à planta frágil um primeiro abrigo. Depois, esta,91LUCIEN FEBVREao desenvolver-se, torna necessário um abrigo maior, o qual suscita por sua vez necessidades, provoca novo alargamento... Acções, reacções,não alternadas, prosseguindo por caminhos paralelos, em dois planos justapostos, o político e o cultural.

Ora, mal a civilização começa a formar-se no quadro carolíngio, o quadro quebra-se. A Europa carolíngia fragmentou-se. Em reinos? Não. Ou pelo menos esses reinos não tinham substância nem realidade. O que em breve contou, o que, cada vez mais foi contando no Ocidente, o

que então nasceu e se constituiu, foi o feudalismo. Ora quem diz feudalismo diz fragmentação, pulverização, se assim posso dizer. Um quadro, um abrigo? Não, dois mil, dez mil, vinte mil pequenos abrigos precários em que uma civilização só muito mal consegue acomodar-se. Porque uma civilização é qualquer coisa que, por natureza, tende para o ecumenismo. E quando deixa de tender para aí, periclita e morre. Então, para não perecer, este abrigo que a política recusava, pediu-o a civilização à religião. Colocou-se por inteiro atrás da Igreja, tanto mais prestigiada, tanto mais sedutora face à sociedade laica que nada edificava, nada de grande, nada que pudesse contar, nada que pudesse, de longe, rivalizar com a Igreja de Roma, esta Igreja que, antes do século XI, pode ainda dizer-se igreja de tudo o que antes tinha sido o Império Romano, excepto as partes já islamizadas, mas que, do século XI em diante, na sequência do cisma, se torna unicamente! Igreja do Ocidente.

E foi por isso que não houve Europa unificada nos séculos IX, X, no século XI, quando tantas condições requeridas estavam excelentemente preenchidas e em tempo útil para que uma tal Europa pudesse nascer, com a sua organização própria, a sua civilização própria. Foi por isso que foi preciso esperar que o feudalismo ruísse, o que demorou, porque o feudalismo tinha dois aspectos:892

Lição VI

O Império Carolíngio, antevisão da Europa?

«A Europa surge quando o Império cai.» Tentei mostrar que esta fórmula, na sua cativante pequenez, tentei mostrar que esta fórmula de Marc Bloch estava correcta, perfeitamente correcta, mas na condição de sabermos medir a lentidão com que o Império ruiu, na condição de sabermos medir a lentidão com que a Europa surgiu1. Porque, imaginar que, estando reunidas todas as condições para que nasça a Europa, esta surge ipso facto, imaginar que, por outro lado, foi rapidamente, de uma assentada, que o Império se desconjuntou para se desmoronar é um erro, um erro que um historiador não pode cometer.

Para que o Império ruísse, para que a Europa se levantasse das suas ruínas, se constituísse, de novo, com os seus velhos detritos, foi preciso, como vimos, que o Oriente se separasse do Ocidente e sobretudo que o Magrebe se separasse da România; foi preciso, por outro lado, que uma parte do Império se abrisse, se entregasse aos Germanos; foi preciso estas três «traições», como dizia, para preparar as condições propícias à génese de uma Europa no sentido em que a entendemos, de uma Europa histórica e humana; para preparar estas condições, mas [não

para] fazer com que a Europa surgisse imediatamente, sob a sua forma unitária.93LUCIEN FEBVREA esta Europa, para que fosse realmente forte, foi precisa uma longa incubação. E é um facto que, estando no entanto todas as condições realizadas teoricamente para que tal Europa pudesse nascer com a sua organização própria, com a sua civilização própria (organização, civilização, as duas manifestações de qualquer unidade política nova), é um facto que, reunidas todas as condições, nem no século IX, nem no século X, nem até no século XI podemos falar de Europa unificada, porque novos obstáculos se erguem diante da Europa para que ela se realize à medida que se aproxima mais da realidade: obstáculos como o feudalismo; obstáculos como o catolicismo ou a cristandade; obstáculos que ela não pode enfrentar e superar directamente; obstáculos que ela tem que contornar, ou melhor, que tem que esperar que desapareçam para que possa enfim desabrochar.

[E falo apenas de considerações propriamente históricas. Não vou falar em geografia. Falo como se a história tivesse apenas uma única dimensão; o tempo. Mas a história tem duas dimensões: o tempo e o espaço. E o espaço não é uma dimensão mais rígida do que o tempo. O espaço varia Esta Europa que, hoje, nos assusta pela sua exiguidade, esta Europa que vemos devorada por populações buliçosas, pelas multidões sujas e proliferantes da Ásia, esta Europa que vemos tão pequena, tão rapidamente percorrida pelos aviões portadores de morte e de destruição, esta Europa, antigamente, parecia enorme aos seus habitantes. E este Mediterrâneo,™ coração da Europa, que outrora parecia tão vasto às suas populações litorais como hoje o Oceano nos parece vasto a nós, este Mediterrâneo que nos parece tão pouco extenso, parecia-lhes, a eles, e era na realidade uma imensidão líquida que levava semanas a percorrer. Não esqueçamos esta diferença de escala quando falamos, por exemplo, de fecho do Mediterrâneo. É uma palavra cómoda, sugestiva. Mas temos que saber o que quer dizer. Ainda hoje, com a velocidade dos nossos navios de guerra, com o94A EUROPAseu equipamento cientificamente aperfeiçoado, com a multiplicação das suas bases, o alcance dos seus engenhos de destruição, a possibilidade de elaborar barragens em certas zonas e de tornar impraticáveis certas rotas, ainda hoje vemos durante quanto tempo o domínio naval no Mediterrâneo pode ser contestado por um inimigo tenaz, audacioso, resoluto, que se fixa...

Antigamente! O Mediterrâneo era muito mais vasto do que hoje, tão vasto quanto os navios de então eram menos velozes. Como vigiar esta

imensa extensão, como segurá-la, mesmo para quem estivesse instalado nas suas duas margens? Até o estreito de Gibraltar os cristãos se mostraram sempre incapazes de reter. O estreito de Messina, a mesma coisa. Em 1553, em 1558 a frota turca tem a audácia de o transpor tranquilamente. Dragut desfila por lá como na parada, a despeito da artilharia de Messina... Portanto, atenção!]2

Temos que ter todas estas precauções, todas estas explicações para admitirmos, sem riscos, a fórmula de Bloch: «A Europa surge quando o Império Romano cai»3.

Insisto, e insisto porque nós, homens do século XX, criámos maus hábitos que regem todo o nosso pensamento, todas as nossas concepções e que, sem que nos demos conta, lhes impõem a nossa marca. Nascemos em data fixa... Sabemos todos que nascemos a um 17 de Janeiro ou a um 23 de Novembro do ano tal. É-nos impossível ignorá-lo. Perguntam-no-lo vinte vezes ao ano, pobres de nós, que somos contados, recenseados, que recebemos bilhetes de identidade, passaportes, diplomas, etc., todos com uma data obrigatória, a do [nosso] nascimento. Os nossos antepassados, não! Sabiam que tinham nascido numa terça-feira, ao bater das 9 horas da manhã, ou num domingo ao meio-dia. Disso, lembrava-se a mãe e passava a recordação aos seus. O mês? Já era mais impreciso. Era no Verão, ou no Inverno, ou no Outono... O ano? Uma noção abstracta... Só os grandes tinham direito a outras definições, mas não porque para eles funcio-95LUCIEN FEBVRE ; :nassem instituições especiais de recenseamento! [Porque] tinham direito a horóscopos e os fazedores de horóscopos queriam partir de datas circunstanciadas e precisas.

Portanto, nascemos em data fixa e morremos em data fixa. É um hábito que adquirimos, o de um tempo simples, de uma vida simples, É uma morte simples... Então, os grandes acontecimentos, esses prodigiosos! complexos, fazemo-los nascer e morrer em data fixa. E queremos datar por anos processos imensos que se estendem por décadas, mais ainda, por séculos... Queremos datar ao ano o nascimento da Europa e a morte do Império. E discutimos!

A morte da civilização romana, o que é? É a «chegada dos Bárbaros»! Digo «a chegada dos Bárbaros» à maneira dos livros escolares, como se se tratasse, também aqui, de um facto simples e coerente, mas as invasões começam no século III e terminam no século V, com o estabelecimento dos Vândalos em África, dos Visigodos na Aquitânia e em Espanha, dos Ostrogodos em Itália.

A morte da civilização romana será o início da conquista árabe que lança, no limiar do século VII, massas fanatizadas sobre a Síria (em 634) o Egipto (em 640), a África (em 643), a Espanha (em 711) e a instalação no Mediterrâneo de uma religião hostil à dos antigos cidadãos do Império, de costumes opostos aos dos antigos cidadãos do Império? Será a conquista árabe que substituiu, no Mediterrâneo, Jesus pelo Profeta, o direito romano pelo direito muçulmano, a língua grega e latina pela língua árabe!

A chegada dos Bárbaros, o início da conquista árabe: com efeito, é o primeiro acontecimento que abre a porta ao segundo. É a fragmentação do Império, disseminado por monarquias bárbaras, que explica em partt o sucesso fundamental do Islão. [Não é] menos verdade que o grande facto é, do ponto de vista que nos interessa, esta traição do Magrebe de que já vos falei. [Não é] menos verdade que a partir do início do século VII até ao século XIX e ao século XX o historiador pode ritmar a vida da Europa96A EUROPApelo ritmo dos avanços e recuos incessantes do Islão e do cristianismo. E quando digo: a vida da Europa, [não é] apenas a vida exterior e formal da formação política, [mas também] a vida interior profunda, a das instituições que traduzem e processam o querer dos homens, o ritmam; e para o fazer no andamento certo basta notar o sussurro regular das ondas do Mediterrâneo, do luminoso Mediterrâneo.

* O Mediterrâneo ocupado solidamente pelos Árabes? Sim, bem depressa as costas são deles, da Síria a Gibraltar, depois de Gibraltar a Múrcia e a Valência. Bem depressa os grandes pontos de apoio estratégicos e marítimos são deles: a Córsega, a Sardenha, a Sicília, ao longo do século IX. Bem depressa as bases sólidas são deles: Palermo antes do mais, na própria França Fraxinetum onde, em 889, um bando de Sarracenos se estabelece e durante um século inquieta os viajantes que atravessam os Alpes.

A seguir, é Marselha que adormece num sono letárgico. Logo, é o papiro do Egipto que deixa de chegar à Europa e que é preciso substituir pelo pergaminho ou o papel. Logo, são os frutos do Oriente que deixam de ter preço na Europa. Os diplomas dos Merovíngios, os diplomas dos Carolíngios permitem medir, datar este recuo: prevêem, para os altos funcionários em missão, entregas em espécie sobre as reservas dos celeiros imperiais. De início, na época merovíngia, trata-se de tâmaras e de figos, como produtos de uso corrente. Nos tempos carolíngios, já não se trata disso, por uma razão, a melhor de todas, é que os produtos do Sul já não chegam ao Norte... Pequenas coisas insignificantes... e pode-

se passar sem tâmaras? Sim, mas nasce algo que já não é insignificante. Eis que nasce o Império Carolíngio.

Isto, e peço perdão aos contraditores, isto é imenso, está na base de toda a estrutura política da nossa Europa. Pensem em quanta tinta fez correr esta partilha de família entre muitos outros, [a partilha] de Verdun em 843. E [se] a tinta não devia ter corrido, que importa? Se correu, é porque97LUCIENFEBVRE ;o sentimento comum dos homens do século XIX e do século XX estala: é no Império Carolíngio que estão as próprias bases do nosso estatuto histórico europeu.

O nascimento do Império Carolíngio: que estranho acontecimento é esse? Naturalmente, [podemos] explicá-lo por pequenas circunstâncias, Um certo Pepino, o Breve..., os seus dois filhos, Carlos e Carlomano,,, Dou-vos de presente toda esta genealogia pseudo-histórica, que serve para nos fazer perder, muito simplesmente, o sentido do espanto, do espanto perante o que deve espantar. Porque, enfim, Carlos Magno «reergue» o Império Romano? Tantas ilusões em fórmulas destas...

Um Império Romano que renasce, este Império privado do contacto com o Mediterrâneo? Este Império cujo soberano tem por capital e residência Aix e não Roma? Este Império que na sua frente encontra o verdadeiro Império Romano, o Império Bizantino? Este Império que, aliás, depressa supera o Bizantino e o empurra para Oriente? Este império que vai ser o Império da Europa e que não é o Império mediterrânico? Este Império que se diz romano e que só o é pela graça de um papa ainda débil?

Como explicar então o nascimento deste Império dominado pela influência nórdica e que, como ministros, como agentes, como representantes qualificados utiliza já não Italianos, aquitanos, homens, digamos, do sul, mas anglo-saxões, S. Bonifácio, Alcuíno, até irlandeses, herdeiros de famílias nobres evangelizadas por St. Patrick e que fazem irradiar a influência do monaquismo irlandês por toda a Europa do oeste e do norte, também suábios, como Einhard, a quem chamamos Éginhard? Como explicar este nascimento?

Alguém o viu, e o disse, foi Pirenne, alguém nos disse: Voltai-vos para o Mediterrâneo, voltai-vos para o Islão e depressa vereis, Carlos Magno é impensável sem Maomé, sem Maomé cujos discípulos e fiéis, ao ocuparem o Mediterrâneo, fixaram para séculos os destinos da Europa; desta Europa de que gostamos de falar como de um dado eterno, de um dado98

A EUROPAimutável da história; desta Europa à qual inventámos, para fins que mais tarde haviam de revelar-se, para a qual inventámos neste últimos anos a unidade, apresentada como indiscutível; desta Europa para a qual tantos homens deste tempo querem imaginar, quiseram imaginar e levar-nos a admitir, a unidade económica e cultural, uma unidade suficientemente forte para que esta Europa fosse capaz, dizem-nos, ao reunir os seus Europeus, de lutar contra o declínio e, sendo assim, o objectivo final, a finalidade última é continuar a dominar o planeta como no passado, sob a direcção de algumas grandes potências... 4

[É uma] noção de crise, esta Europa: tem-se dito, e não sem razão. Foi dito em Novembro de 1932, na reunião organizada pela academia real de Itália em nome da Fundação Volta, que tratou da Europa e deu origem a dois grossos e luxuosos volumes5. Noção de crise, noção de medo, se preferirem, até de pânico; invocação da Europa, de uma Europa tutelar. Quando os Europeus têm medo, têm medo da morte por inanição, à qual os condenam as concorrências surgidas de todo o lado, que ameaçam a indústria europeia; medo das revoltas que grassam contra as velhas hegemonias coloniais nos territórios exóticos; medo de ver a Europa invadida por formas sociais diferentes das nossas formas sociais tradicionais; medo de si próprios, enfim, e das suas discórdias... Há de tudo isso no fundo deste mito europeu que vimos desenvolver-se diante de nós, paradoxalmente, uma vez que, já desde há muito tempo, a Europa não fica na Europa...

Deixemos tudo isso, a que voltaremos no fim das nossas lições. Acontece que a Europa não é um dos dados antigos e primordiais da história do mundo ocidental. Acontece que a Europa nasceu tarde, graças aos cuidados do Império Carolíngio. Acontece que este Império nasceu: de quê? Os nossos avós, os historiadores desta escola que cultiva o acaso como uma planta miraculosa que explica tudo, os nossos avós, os da geração de Holleaux, e mesmo mais longe, da geração de Seignobos, os nossos avós99LUCIEN FEBVREque elevavam o pequeno facto à altura de um deus criador de todas as coisas; os nossos avós teriam respondido que nasceu de um acidente, de uma mudança de dinastia6. Uma mudança de dinastia, não; uma mudança de estrutura social; a integração de um elemento nórdico na história da Europa, não como elemento secundário, mas como um elemento de importância capital, como um elemento determinante e dirigente.

Falemos em termos concretos: eis um habitante de Lyon, Lugdunum, no século IV da nossa era. Viaja. Onde começa para ele o sentimento de ter

mudado completamente de paisagem? Em Roma sente-se em casa, naturalmente; em casa está em Gades, na Bética; em casa, perfeitamente em casa, em Cartago. Se pertencer à aristocracia senatorial, pode muito bem possuir domínios na Grécia ou na Ásia Menor. Não é um intruso no mundo culto de Antioquia ou de Alexandria. Mas passa o Reno, ou passa o Danúbio, e está entre os Bárbaros. Tudo perdido.

Eis agora um habitante de Lyon no início do século IX. Já não se sente em casa, de maneira nenhuma, em Cartago, cujas ruínas estão na posse dos Árabes, inimigos da Cruz. Também não está em casa em Gades, que faz parte do califado de Córdoba. Em Atenas, em Constantinopla, em Niceia, e muito mais perto, em Ravena, está no Império do Oriente, entre os cismáticos que falam grego e cujos costumes, os usos diferem profundamente dos seus costumes, dos seus usos. Em Alexandria, está de novo entre os Árabes. Pelo contrário, em Munster, em Osnabriick, em Bremen no Véser, em Magdeburgo no Elba, em Wurtzburgo no Main, está em casa, autenticamente em casa, embora não fale a língua popular, a língua vulgar dos habitantes desta região, Mas fala com os clérigos que, esses, pensam no mesmo latim. Pode conversar com eles sobre grandes obras literárias ou filosóficas que formam a sua bagagem mental. Se entrar numa igreja, pode cumprir os seus deveres religiosos sem dificuldade. Diz-se missa em Magdeburgo, como em Lyon. Recebe-se a eucaristia em Wurzburgo ou em Erfurt como em Viena ou em Nimês, no vale do Ródano. Observa-se aí não apenas o mesmo credo como os mesmos mandamentos morais.100A EUROPA[Há portanto] perda a Sul e ganho a Norte. Evidentemente, não é uma exacta compensação. Quem fizer o balanço deve inscrever no total uma perda na coluna da civilização. Mas o exemplo é elucidativo. Permite-nos medir exactamente o sentido destas palavras: a integração, na Europa, do elemento nórdico permite-nos, por um lado, pesar a acção dos Alemães que - saibamos tanto melhor reconhecer os seus méritos históricos quanto formos mais severos, mais justamente severos para com as suas abominações presentes - destes Alemães que foram verdadeiramente os artesãos, os obreiros da Europa média, os alemães que a fizeram, passo a passo, dedo a dedo, e que a seguir a defenderam, até ao dia em que, para além da sua Alemanha, houve, o que eles não querem ver, o que negam, que englobam num desprezo pronto a transformar-se em ódio, houve os reinos eslavos, o reino da Boémia, o reino da Polónia, e mais além ainda, o que mais tarde será a Rússia depois de ter sido a Moscóvia.

[Sim, permite-nos tudo isso, este exemplo que invoquei. Este exemplo do lyonês do século IV e das suas afinidades tão

diferentes das do lyonês do século IX, mas, ao mesmo tempo, permite-nos outra coisa.]101102

Lição VII

Nesta história da Europa que esboço, eis-nos chegados à página decisiva, ao capítulo que comanda tudo. Eis-nos chegados, no entanto, eis-nos parados, há duas lições, neste Império Carolíngio, o Império de Carlos Magno que deu, do que chamamos Europa, a primeira formalização válida, a primeira, uma vez que o Império Romano não lhe dera mais que uma forma política do mundo mediterrânico, de um mundo que tinha por eixo e por centro o Mediterrâneo, de um mundo que se estendia por todas as margens do Mediterrâneo, integralmente por todo o seu contorno, sem querer saber se estas margens eram europeias, asiáticas, africanas, de um mundo de que o Mediterrâneo é o coração e o sistema circulatório.

Ora um mundo assim, com este eixo, centrado no Mediterrâneo, um mundo com o seu coração no Mediterrâneo, um mundo assim tornou-se impensável nos tempos carolíngios, por muitas razões, mas primeiro por esta: o encerramento do Mediterrâneo pelos Árabes. É uma expressão que temos que criticar antes de nos servirmos dela, e eu critiquei-a, mas, com esta concessão, podemos empregá-la.

É era verdade que, de 634, data da conquista da Síria, a 711, data da conquista de Espanha, o Islão, que se estende por toda uma secção, a marca sul e este do Mediterrâneo, do mundo mediterrânico, arranca aos mediterrânicos cristãos, herdeiros apesar de tudo das tradições antigas, de103LUCIENFEBVREuma cultura greco-latina, arranca-lhes regiões tão vitais para eles como a Síria, o Egipto, a Tunísia, a Argélia, Marrocos.

E temo que não avaliem exactamente a importância deste acto, a importância daquilo a que chamei a grande traição. Já quando os Vândalos se abatem sobre a África se pode medir a importância destas terras africanas para o destino do mundo mediterrânico, para o destino do Império Romano. Porque os Vândalos em África, Genserico em Cartago, é o Império, é a parte ocidental do Império privada do trigo africano que lhe era indispensável, que era indispensável a Roma, sim, mas ainda mais ao exército de Roma.

Vivemos sempre na abstracção, na mecânica. Dizemos Roma, o exército romano, a administração romana, [como se fossem] forças abstractas,

mecânicas. Mas enfim, o exército romano comia! A guerra, é muito lindo, mas uma guerra pressupõe abastecimento. Dir-se-ia que fomos nós que inventámos esses problemas. Mas não! Os soldados ao serviço de Roma comiam! E até comiam muito, esses Bárbaros, esses «confederados» bárbaros entrados para o serviço de Roma precisamente para comerem, para comerem melhor. Comiam, os soldados do exército romano, sempre esfomeados. E Genserico em Cartago, os Vândalos, em África, eram as fontes, secas, da annona militaris. Era a outorga de terras aos soldados que se tornava indispensável. Era uma questão de vida ou de morte para Roma, a colocada por esta outorga...

Não, a África Menor não era uma coisa exterior a Roma, algo de que não se podia amputar sem danos o corpo romano. Estas terras de África eram vitais para o Império. E o Islão limitou-se a tomá-las. Cravando os dentes na Europa dos geógrafos, o Islão arranca a estes mediterrânicos cristãos, desmembra, a grande formação política unitária que para eles o Império Romano tinha criado, o Islão desmembra a Espanha, a rica Espanha; desmembra os grandes pontos de apoio insulares: a Córsega, a Sardenha, a Sicília. Desfere sobre o Mediterrâneo, enquanto órgão de grande circulação económica de leste para oeste e do norte para o sul, um golpe104A EUROPAcerteiro, um golpe de gravidade excepcional. Em grande medida, esteriliza-o.

E eis o que opõe fundiariamente, fundamentalmente, o Império Carolíngio ao Império Romano. A esse Império Romano cujo prestígio é tão grande, cujo prestígio sofremos ainda tão fortemente que continuamos a dizer: Carlos Magno refez o Império Romano. Carlos Magno restaurou o Império Romano? Refutei esta inexactidão. E continuo a desfazer o emaranhado. Não me acusem de contemporizar com velharias, de fugir do nosso tempo e das suas realidades, tão apaixonantes para nós, de me refugiar no mais longínquo passado por gostos de antiquário. Não. As nossas origens, as nossas fontes estão lá.

Apresentei-vos, da última vez, o lyonês, ou melhor, dois lyoneses, o do século IV, que estava à vontade em toda a parte, na Bética e na Tarragonesa como na Gália, em Itália e na Sicília, como na Macedónia, na Grécia, na Ásia Menor, em Atenas como em Éfeso, em Palmira como em Jerusalém, em Jerusalém como em Alexandria, em Cirena, em Cartago, em Cirta e em Tânger, e o do século IX incipiente, que de modo algum se sente já à vontade, que está no meio do inimigo, no meio do inimigo implacável da sua pessoa, da sua fé, da sua civilização, não apenas em Tânger, em Cirta, em Cartago, em Alexandria, em

Jerusalém, em Antioquia, todos esses domínios onde flutua o estandarte do Profeta, o estandarte do Crescente. Pelo contrário, sente-se em sua casa, este lyonês do século IX, está em casa, sente-se em casa quando está em Mtinster, em Bremen, em Erfurt, em Wurtzburgo e mesmo em Magdeburgo...

Dos dois lyoneses, qual é o europeu? O do século IV ou o do século IX? Evidentemente, do ponto de vista que nos interessa, é o segundo, o do século IX, o que se sente em casa, a despeito dos obstáculos linguísticos e das diferenças de cenário, quando está no mundo além-Reno que o Império Carolíngio uniu ao mundo aquém-Reno numa grande formação105LUCIEN FEBVREpolítica, administrativa e religiosa comum e que reuniu, não digo de uma vez por todas (o historiador não dispõe do tempo), mas, enfim, que uniu por séculos e séculos; até que uma traição, até que traições, sempre possíveis...

E eis o que nos serve de aviso: não, Carlos Magno não restaurou simplesmente o Império Romano como sempre se diz. Não, o Império Carolíngio não é uma pura e simples repetição de Roma. O Império Carolíngio é a primeira forma política de um mundo novo, de um mundo que já não se limita ao Reno e ao Danúbio, de um mundo que, para todos os efeitos, desde logo, integra na sua unidade política e cultural a superfície em contínuo crescimento - uma vez que todos os dias, com efeito, esta superfície aumenta à custa dos Eslavos - a superfície sempre crescente do que em breve deixará de ser a Germânia para se tornar a Alemanha ou, como diziam os nossos antepassados, as Alemanhas.

Dir-me-eis: seja. Mas o Império Carolíngio, entretanto, não é Europa? A nossa Europa? Antes do mais, primeiro ponto, é mais pequeno, muito mais pequeno. com efeito, o império de Carlos Magno, por mais vasto que fosse, só vai, só vai afinal, dos Pirinéus ao Elba, das ilhas Frísiasà Lombardia e à Toscana, das marcas da Bretanha (a Bretanha permanece de fora, bem como a Grã-Bretanha), das marcas da Bretanha à marca oriental, a Osímar que virá a ser a Áustria. Centra-se essencialmente nas regiões do Reno e do Ródano, que em breve assumirão o nome de Lotaríngia e que constituem, com um sector da Itália, a parte média de um império que, além delas, reúne essencialmente o que virá a ser, a partir do século X, a França, a Alemanha.

Sim, mas atenção! Esta extensão é a mesma da Igreja de Roma. Este império estende-se, tal como é, estende-se exactamente por todas as regiões que reconhecem no papa de Roma o vigário de Cristo, o chefe da verdadeira Igreja. De fora ficam os infiéis, a gente de Maomé. De forafi-106A EUROPAcam os pagãos, os Eslavos, que invadiram, num grande avanço, repelindo os Germanos e também os Finlandeses, que invadiram a grande planície da Europa do Norte até ao Elba e que agora os súbditos de Carlos Magno e estes soldados se esforçam por repelir para leste.

Mesmo de fora estão os Gregos, os Bizantinos, os ortodoxos que, cada vez mais, se agrupam em torno do patriarca de Constantinopla e o opõem, como um papa do que é grego, ao papa do que é romano. E eis precisamente o que explica a surpresa do ano 800, a coroa imperial imposta pelo papa Leão na cabeça do rei dos Francos... •«

Portanto, a Europa carolíngia já não é a nossa EUROPA2. Esta é muito mais extensa. Comporta a Espanha, o mundo anglo-saxónico, para além das Alemanhas, o mundo eslavo do Norte, nos Balcãs, um mundo semi•helénico, semi-eslavizado, semi-turquificado, etc. Sim, mas a Europa carolíngia é o coração, é a levedura que fez fermentar a massa europeia. Foi em torno da Europa carolíngia que se constituiu a nossa Europa.

Dir-me-eis de novo: seja. Esta redução da Europa é talvez um condensado de Europa, uma quinta-essência de Europa. Mas há outra coisa. É que nós, Europeus de 1944, ao contrário do lyonês do século IX, mas como o lyonês do século IV, estamos em nossa casa, afinal, sentimo-nos em nossa casa, hoje, em Marrocos, na Argélia, na Tunísia, sentimo-nos em nossa casa no sentido em que a entendemos, no sentido em que o lyonês do século IV estava em sua casa em Cirta ou em Útica. E até estamos em nossa casa, sentimo-nos em casa, sempre neste sentido, em Alexandria, em casa no Cairo, num bomhotel do Cairo..., o que poderia traduzir-se por: voltamos a ser mediterrânicos, reconquistámos o Mediterrâneo, refizemos o Império Romano. Mais devagar! Não refizemos o Império Romano, infelizmente! Porque o Império era a paz. O Império era a unidade.

Alexandria, o Cairo, no outro extremo Casablanca, Rabat, cidades europeizadas, mas não cidades da Europa, de maneira nenhuma. São cidades europeizadas há pouco, e nunca os nossos antepassados poderiam tê-las107LUCIEN FEBVRE

considerado anexadas à sua civilização. Sentiam-nas hostis e frementes, erguidas diante deles, prontas para a revolta e para a guerra, exactamente, por mal, tal como nós sentimos frementes, revoltados, talvez à espera de sobressaltos e revoltas, os campos do mundo de África que rodeiam as cidades e as próprias cidades, tudo o que escapa a este verniz, a esta pintura significativa e mecânica da europeização em cuja profundidade não assenta, em cuja profundidade assenta ainda menos hoje do que ontem criar ilusões que poderiam levar-nos a um despertar cruel.

Digo e repito: não discutamos, não argumentemos. A grande importância histórica do império de Carlos Magno, deste Carlos Magno que, tendo atribuído a si próprio o título de Grande, viu a história ratificar tão bem este título que ela o colou, num exemplo único, ao seu nome, Carol Magnus, Carlos Magno, honra que não reservou nem a César, nem a Napoleão, os dois únicos homens que gozam, com ele, de tão grande glória- e se me disserem que César viu, nas línguas germânicas, o seu nome tornar-se sinónimo de imperador, uma vez que Kaiser é César, responderei que esta mesma glória não é estranha a Carlos Magno, uma vez que nas línguas eslavas e em húngaro o nome do rei, o nome próprio do rei é Carol, Kirol, Krol, isto é, Carlos, Carlos o Grande - a grande importância histórica do império de Carlos Magno, sim, é realmente ter sido a antevisão da Europa histórica, da Europa distinta do Império Romano por todas as suas características exteriores bem como, acrescento, por tantas características interiores.

E se abandonássemos o ponto de vista formal do Estado, o ponto de vista da armadura externa, para vermos as coisas de dentro? Como veríamos nós, a um tempo, o contraste do Império Carolíngio com o Império Romano iluminar-se e surgir à luz da história, vindos dos tempos distantes de Carlos Magno, neste esboço de Europa que era o seu império, alguns dos traços característicos da Europa histórica tal como se108A EUROPAmanifestou desde o início do século IX até ao fim do século XIX? ;

Querem alguns? O Império Carolíngio é um império terrestre, um império continental e já não marítimo, com todas as consequências que acarreta para ele o facto de já não estar centrado num grande mar que passa, que circula, activo, irradiante. O Império Carolíngio é um império rural, um império de camponeses e de campesinatos. Nada em comum portanto com o Mediterrâneo animado por sociedades de montanheses e de marinheiros, a viver em grupos isolados, fortemente

particularizados que encontram nas ilhas, as inúmeras ilhas do Egeu, nomeadamente, a expressão física e natural deste particularismo: as ilhas, estes pequenos mundos, simultaneamente abertos a todos os ventos do largo e voltados para si próprios, muitas vezes arcaicos, primitivos nos seus costumes, nos seus usos, no seu vestuário, nos seus hábitos, nas suas tradições, isolados e irredutíveis; pequenos mundos precários, sempre sob o jugo da fome, sempre preocupados com o seu trigo, o seu pão; pequenos mundos rodeados de inimigos, de corsários, de piratas, obrigados a fortificar-se, a incessantes reparações; sim, mas também magníficas escalas para as grandes transferências de civilização, para a cana do açúcar que, vinda da índia para o Egipto, passa do Egipto para Chipre por volta do século X, depois de Chipre para a Sicília por volta do século XI, da Sicília para a Madeira, onde, no século XV, a instalou o Infante D. Henrique, da Madeira para os Açores, para as Canárias, depois para a América. É um exemplo entre muitos outros.

Eis a vida das ilhas, humilde e esplêndida, precária e poderosa. Eis a vida mediterrânica, a vida destas regiões mediterrânicas que muitas vezes, mesmo quando não têm nada de insular, não passam de rosários de ilhas continentais ou, se preferirem, de rosários de oásis. Pois não é Nápoles uma ilha, e Marselha, não é uma ilha? Ou numa ilha? Ou num oásis rodeado por um verdadeiro deserto? Todos os que atravessaram, de Cassis a Marselha, a espantosa Arábia Petreia que rodeia o velho porto fócio não me dirão que não...109LUCIEN FEBVRETudo isso, que é imposto pelo clima da vida mediterrânica, vida de pobreza e de frugalidade já que associa duas vidas extremamente pobres e frugais, a do montanhês, a do marinheiro, duas vidas, uma das quais, a mais pobre talvez, a mais despojada, empurra o homem para o mar, para a aventura do mar, a aventura que pressupõe, que necessita do porto, e não apenas de um pequeno porto de pescadores, mas do grande porto mediterrânico, o imperialismo, diria, de um grande porto de mar, do imperialismo da grande cidade, com armadores, capitães, mercadores dinâmicos, inspirados pelo grande gosto do risco...

Ora nada há de comum, absolutamente nada, absolutamente mais nada entre esta vida mediterrânica e a vida terrestre, a vida rural, a vida das lavras pesadas e sedentárias, a vida lado a lado nas vastas planícies, nos vastos planaltos sem grandes horizontes, a vida das populações do Império Carolíngio que são as populações da Europa histórica. Campesinatos da Europa histórica? Campesinatos? Quantas vezes somos hoje chamados a pronunciar esta palavra, nós, Europeus do século XX que nos sabemos ainda do século XIX? Fortes campesinatos, agrícolas, rurais, pesados, lentos mas sólidos, um dos dois elementos

constitutivos fundamentais da nossa Europa, e da outra, falo das burguesias em nada comparáveis às populações numerosas do mundo mediterrânico, tal como as cidades da Europa não são as cidades mediterrânicas, estas cidades da Europa que não exalam um cheiro a pez e a peixe, mas fortes odores rústicos e pastoris, odores de hortas, de currais e de estábulos que enchiam as ruas das cidades medievais.

Cidades e campos, campesinatos e burguesias, não será isso toda a história da velha Europa, dos velhos países europeus até ao século XIX, até ao advento do nosso novo mundo europeu, o mundo da máquina e da fábrica?

Olhai a França, a França dos campos no meio dos quais se instalam cidades à maneira como se estabelecem clareiras nas florestas; cidades,110A EUROPAmas que não tardam a isolar-se dos campos; cidades que a par disso se esforçam por anexar economicamente, juridicamente, socialmente, os campos, não mantendo-os no estado de súbditos oprimidos e explorados sem apelo nem agravo, mas, pelo contrário, derramando sobre eles a sua civilização, as suas instituições, o direito que elas conquistaram sobre os seus senhores; cidades que se esforçam por civilizar, urbanizar cada vez mais, cada vez melhor, as sociedades rurais que as rodeiam e em que penetram; cidades que tendem não para a guerra, mas para a simbiose entre as cidades e os campos. -*

Em simetria, ponham a Alemanha, a Alemanha do século XVI, por exemplo. [Comporta] duas sociedades violentamente antagónicas. De um lado, a sociedade dos príncipes, senhores dos campos que mantêm os camponeses em estado de sujeição total, dotando-os de um direito, o direito dos campos, que nada tem a ver com o direito urbano; do outro, a sociedade das cidades, das cidades, inimigas mortais dos príncipes; cidades que os príncipes perseguem com o seu ódio; cidades cujos mercadores os príncipes se esforçam por capturar para pedirem resgate por eles; cidades, aliás, que guardam ciosamente as suas conquistas culturais e as reservam para uso exclusivo dos seus habitantes. ; *

Sim, no fundo das dissemelhanças profundas entre os dois povos, há isto, esta oposição e este papel difícil desempenhado, em ambos os lados, pelas cidades, as recém-chegadas, as intrusas, as conquistadoras, e pelos campos, pelos campesinatos que o Império Carolíngio trouxe para o primeiro plano na cena mundial, estes campesinatos tenazes, indestrutíveis que são, com os seus recursos, com as suas profundas energias latentes, a grande reserva da nossa Europa para as suas lutas sem quartel, as suas lutas pela vida...

Ora estes campesinatos, quando se afirmaram eles assim, na Europa, como forças económicas, como forças sociais, como forças políticas? Quando, senão precisamente nos tempos carolíngios, quando o senhorio tem a sua grande expansão, o senhorio, esse grande facto, esse facto ca-111LUCIENFEBVREpital da história europeia, o senhorio, ou seja, ao mesmo tempo um território e um grupo, um território organizado em proveito de um dono, para que a maior parte dos rendimentos da terra vá para um só homem, o senhor; um grupo, um grupo de homens bem organizado, bem articulado, que reconhece como chefe precisamente o senhor do território... É um mundo fechado, este senhorio, um mundo que se basta a si próprio, um mundo adaptado a um regime geral de economia fechada.

Mas então, pensam que foi por acaso que este regime do senhorio, este regime que dominou a Europa durante séculos, pensam que foi por acaso que ele se implanta tão fortemente, que ele se generaliza no mesmo momento em que o Mediterrâneo se fecha aos Europeus? No tempo em que a circulação comercial praticamente cessa; no tempo em que os grandes portos, como Marselha, se vêem reduzidos à inacção; no tempo em que, nas cidades, os ofícios trabalham para a exportação? Trabalhar para a exportação? Palavra que já não faz sentido. E é então, é assim que se estabelece em toda a Europa um regime de economia fechada, um regime de economia sem saídas que é, precisamente, o regime do senhorio, o regime senhorial, o regime dominial a que nos obstinamos em chamar feudal.

De cada vez que deparamos com uma destas grandes instituições que estão na própria base da Europa e da vida europeia somos remetidos aos tempos carolíngios; somos remetidos para um Império carolíngio que, repito agora com força, após todas estas explicações, todas estas demons-; trações, foi e continua a ser para nós a antevisão da Europa adulta dos séculos XVIII e XIX, tal como o Império Romano fora a expressão política profunda de um mundo mediterrânico pacificado e unificado.

E, coisa curiosa que ainda não notámos e que eu queria salientar e com a qual vou terminar esta lição: esta passagem de um mundo mediterrânico a um mundo cujo centro de gravidade se encontrava situado a norte do Mediterrâneo no interior das terras, esta passagem do Império Romano a Europa sob a sua forma carolíngia, esta passagem determinou um curioso112

A EUROPAsurto de invenções, de invenções que os mediterrânicos não tinham meios fáceis para realizar ou mesmo que não tinham interesse em realizar, mas a Europa sim. E na Europa, que zona? As grandes planícies do Norte que a colam à Ásia.

Temos, por exemplo, os arreios, os arreios modernos, esses arreios modernos para cuja história difícil mas tão especial um homem que já não é de hoje chamou a atenção dos historiadores num livro vivo, combativo, ambicioso, sugestivo, que foi discutido, que foi, em certos pontos, refutado, mas cujo desenho de conjunto permanece intacto. Falo do livro do comandante Lefebvre Dês Noêttes3. O comandante demonstrou muito bem que, como usavam um tipo de arreios que de certo modo estrangulava, cortava a respiração e assim obrigava os animais a puxar, não com as suas fortes espáduas, o seu forte peitoral, mas com o pescoço, os Antigos conheciam apenas um modo ridículo de utilização dos animais de tiro. Demonstrou muito bem que a coleira de tracção tinha sido um imenso progresso, tão imenso que, entusiasmado ele próprio com as perspectivas que se abriam diante de si, quis, erradamente, relacionar com os arreios essa imensa revolução social e moral que foi o fim da escravatura. -?

Pois bem, os arreios que aparecem na Europa carolíngia ao mesmo tempo, ao que parece, ou quase ao mesmo tempo que outras técnicas, outras invenções consideráveis, os estribos, a sela, as ferraduras para os cavalos, são uma bela invenção que não interessava ao Império Romano tal como ele estava constituído geograficamente, mas que interessava muitíssimo à Europa carolíngia tal como ela estava geograficamente constituída.

Porquê? Porque todo o mundo mediterrânico se servia de bestas de carga e não de animais de tiro; porque as regiões mediterrânicas são zonas por excelência de albarda, regiões montanhosas, escarpadas, pedregosas a que os cavalos, as mulas, os burros se prestam às mil maravilhas e as carroças não. A carroça, ainda há um século desconhecida em quase todo113LUCIEN FEBVREo Peloponeso e em Creta, a carroça ainda não conquistou, ainda não consumou a conquista do Mediterrâneo4.

Os arreios surgem portanto no século X porque neste momento o inundo europeu extravasa do mundo mediterrânico e extravasa a norte, estendendo-se pelas grandes planícies da França atlântica e da Germânia, onde podiam decuplicar o rendimento dos animais de

tiro. Valia a pena ir buscá-los aos homens da estepe, os quais por sua vez os devem ter ido buscar ao Extremo Oriente, aos Chineses que os seus passeios equestres acabavam assim por pôr em relação técnica com o extremo Ocidente...

«Passemos a uma outra ordem de técnicas. Temos a azenha, a cuja história Marc Bloch consagrou um estudo notável5. Novidade, também? Sim, E observo o seguinte: os rios mediterrânicos são irregulares, o trabalho é muito mais contínuo, muito mais regular, muito mais interessante num moinho da Borgonha, imagino, do que num moinho da Provença. Pelas mesmas razões, o mundo mediterrânico não conheceu a eclusa, mas o mundo nórdico depressa passou a usá-la. Porquê? Porque há muito poucos rios navegáveis no Mediterrâneo e a difusão da eclusa só poderia interessar aos rios atlânticos, aos portos atlânticos.

Mais outro exemplo: as lareiras. Foi necessário, diz Lefebvre Dês Noêttes, que o carreto em grande quantidade da madeira de queima se tornasse possível para que as primeiras lareiras domésticas se acendessem. Tracção animal, parece-me. Observo apenas que, no Mediterrâneo, a dificuldade não estava em levar a lenha (havia bestas de albarda!), mas em encontrá-la. Passou a haver lareira assim que houve extensão da civilização para as regiões frias e arborizadas do Norte. O Sul, pobre em combustível, é a terra dos fogareiros, pouco saudáveis, mas que utilizam todo o poder calórico de que a lareira deixa perder uma grande parte. A generalização do fogo de lareira no sul teria sido uma ruína, uma devastação6.114A EUROPANão vou continuar. Haveria demasiado a dizer. Disse o suficiente para vos mostrar, penso, que a queda do Império Romano não deixou de ter contrapartidas. Agudizou o espírito inventivo ou, se se preferir, o espírito de importação dos cidadãos da Europa nova, dando-lhes necessidades e possibilidades que eram próprias da Europa e já não, como outrora, as do mundo mediterrânico, a Europa, esta novidade, do mundo mediterrânico, esta antiguidade.

E isto permite-me concluir: a Europa nasceu quando o Império Romano caiu. Se se quiser. Por mim, digo simplesmente: a Europa, foi o Império Carolíngio que lhe redigiu a certidão de nascimento115116

Lição VIII

A Europa, o seu germe: o Império Carolíngio

Há muito tempo que [não nos] vemos. Houve as férias e um acidente de saúde. Ou seja, será útil, antes de continuarmos, fazer um balanço do que já demos. Que procuramos, que queremos? Procuramos uma coisa chamada Europa.

Mas há muitas coisas que têm este nome, ou melhor, muitas coisas são assim chamadas ao longo dos tempos, ao longo do tempo que continua a escoar-se... Porque o nome Europa é um velho nome, um muito [velho nome]. Seja como for, os Gregos serviam-se dele para designar o quê? Determinada região bem definida? Não, serviam-se dele para designar, não no âmbito de uma orientação geral, mas sim de uma distribuição inteiramente teórica das massas continentais no interior do disco, depois da esfera que, a seu ver, representava a terra, uma distribuição das massas continentais de ambos os lados de um mar interior, distribuição que devia ser um equilíbrio e uma harmonia. ,

A Europa é, nesta distribuição, o nome das partes de Ocidente, para retomar uma velha expressão, preciosa pela sua fluidez. E estas partes de Ocidente opõem-se às partes de Oriente que são especificamente a Ásia, o Levante. Europa, Ásia, duas noções de cosmografia que se tornam, com117LUCIEN FEBVREo tempo, geográficas. Mas uma das duas noções alimenta-se mais depressa de substância geográfica do que a outra, aos olhos dos Gregos: a Ásia, a Ásia com a qual a Grécia tem um comércio mais frequente, mais diário; a Ásia, vizinha e próxima; a Ásia que não é inóspita nos seus aspectos, o clima, a paisagem, a luz, o tipo de vida, pelo contrário; a Ásia que os Gregos não têm dificuldade em povoar de grandes impérios, de grandes dominações, uma vez que estes impérios, estas dominações se erguem por si diante deles, vêm ao seu encontro e por vezes constituem, para a Grécia, como foi o caso do Império Persa, uma ameaça de morte. As partes da Ásia assumem portanto mais depressa uma realidade do que as partes da Europa, que levam muito tempo a adquiri-la.

A Europa é o domínio da confusão, da barbárie caleidoscópica e movediça; a Europa é o domínio das tribos bárbaras que se agitam confusamente em territórios mal conhecidos, mal caracterizados, sem fronteiras: algo como o que era a África para nós, Franceses,

por volta de 1880, ou seja, um mundo móvel cheio de espaços vazios. Vejam o mapa da Ásia no velho atlas de Sticher [?], um mapa com espaços em branco, pontos de interrogação, cadeias de montanhas fantasistas que se desvanecem, zás, à primeira investigação séria e, inversamente, a foz de rios reais [como o] Congo, mas dos quais se ignora tudo menos a foz . Todavia, temos um desenho das costas bastante preciso e, ao longo destas costas, muitos acidentes bem referenciados, cabos, baías, ilhas, tudo indicações úteis ao navegador, úteis ao mercador (que muitas vezes são um só), mas no interior, nada, nada a não ser um pulular confuso de reis negros com os seus guarda-sóis e uma corte estranha de negros, negras, dromedários e camelos, com alguns leões para os caçadores. Pois bem, esta África é parecida com a Europa tal como ela devia aparecer aos Gregos, vagas regiões que se estendem para além, para oeste, e para cima, para norte.

Para oeste, são razoavelmente conhecidas: o mar permite ir visitá-las por fora. O mar permite estabelecer postos comerciais ao longo das118A EUROPAcostas, por onde se faz o tráfico com as tribos que é possível atingir quando o seu humor não é demasiado selvagem, brutal e guerreiro.

Para o norte, ainda se sabia menos, nada de positivo, de seguro, de certo. E de resto, que havia para saber? Era um mundo móvel, tão móvel como o mundo sudanês de outrora, um mundo povoado por chefes de bandos, por reis locais, por condutores de tribos, falantes de línguas desconhecidas e que por vezes erguiam situações consideráveis, destinadas a uma derrocada rápida. Mas ninguém era capaz de enunciar o seu número nem de traçar um mapa topográfico. Não havia grandes imperadores como os imperadores do Oriente. Não havia velhos, sólidos impérios com a sua burocracia, nem faraó, nem Assurbanípal, nem Dario, nem Ciro, nem Artaxerxes. E ninguém conhecia com precisão os limites naturais, geográficos do quadro em que se agitavam os Bárbaros, com os seus momentos de bonomia, tagarelas, acolhedores para o viajante que lhes oferecia a sua fazenda, até à hora das cóleras súbitas, da embriaguez rubra e dos massacres selvagens.

Eis a Europa dos primórdios da noção de Europa, uma Europa de florestas frondosas, de neves e de geadas, de ursos e de lobos carniceiros, uma Europa sem acrópoles, sem templos de mármore, sem povoações brancas sob um céu azul; a Europa dos Gregos; uma Europa

exterior, com efeito, ao que era a realidade humana, a realidade histórica, a realidade cultural destes tempos; uma Europa que, teoricamente, englobava a Grécia, que na prática se desenvolvia fora da Grécia; um nome flutuante, em busca de realidades que se furtavam, fora das realidades estáveis que, essas sim, constituíam o verdadeiro mundo civilizado de então, o mundo dos Gregos, consideravelmente alargado pelos Macedónios, o mundo helénico que se tornara helenístico, depois, peça a peça, conquistado pelos Romanos, facilmente transformado em Império Romano, no Império Romano que não é a Europa, o Império Romano que é o Mediterrâneo.

Um século, dois séculos, três séculos e este mundo romano vacila por119LUCIEN FEBVREsua vez. Um século, dois séculos, e este mundo romano cai por sua vez, precisamente sob os golpes desses negros brancos de que falava há pouco, dos reis sudaneses da Europa, os Bárbaros que, com frequência cada vez maior, se põem em marcha através das profundas do mundo europeu, se empurram uns aos outros, investem e, no impulso, rompem por fim as barreiras que Roma lhes opunha para os conter: barreiras naturais de rios e de montanhas que reforçavam as fortificações do limes, essa linha Maginot de então, com as suas trincheiras e os seus pontos de apoio, o seu vailum e os seus castra ou castella.

Houve então um período de grande confusão, de agitação, agitação no norte, agitação também no Mediterrâneo, do lado da Líbia, no que hoje incluímos neste nome mediterrânico, África; agitação a leste, a Oriente, e agitação também a Ocidente. Por toda a parte os Bárbaros se agitam e se põem em marcha. Por toda a parte os Bárbaros se instalam no que tinha sido o Império. E quando, após um longo período de turbulência e de confusão, se opera de qualquer maneira uma paragem, quando uma relativa ordem substitui o caos, se um bomobservador grego, inteligente e curioso, se um Heródoto renascesse no século IX e se pusesse a observar o mundo novo para o descrever, o que veria?

No geral, três formações políticas, de força, de civilização, de futuro desiguais. A primeira, de origem asiática, foi erguida a passo de assalto pelos Árabes portadores de uma religião feita por eles e para eles, à sua exacta medida, mas que eles não se contentam em professar pessoalmente, que tentam difundir onde quer que os leve o seu avanço fulgurante, que erigem violentamente contra as outras religiões e desde logo contra a [religião] cristã, contra essa religião de Cristo que foi pouco a pouco conquistando, após as velhas regiões mediterrânicas de Oriente, as velhas regiões mediterrânicas de Ocidente, a Itália, depois a Grécia, a Espanha e a Gália após a Itália, e que morde já as zonas

oceânicas; portanto, os Árabes, os recém-chegados, os conquistadores e, o que é essencial, os inimigos de Cristo.120A EUROPAE depois, há de um lado os Bizantinos, do outro os Carolíngios. De um lado, há os Bizantinos com o imperador de Bizâncio à cabeça, o imperador de Bizâncio que se diz legítimo herdeiro dos Césares romanos, embora fale grego e as velhas terras gregas constituam o núcleo da sua dominação, mas enfim, há que recordar Justiniano e o seu esforço, no século VI, para repor a lei sobre todo o velho Império, enfim, não renunciou a ter a Itália, se tem a Grécia, e a dominar Roma como domina Bizâncio, a Roma dos Césares como a de Constantino.

Por outro lado, há os Carolíngios, os pequenos reis bárbaros das margens do Mosa rapidamente promovidos, que se tornam personagens altos e poderosos, o bastante para que na cabeça de um deles, de Carlos, o papa de Roma, em busca de um protector contra o imperador de Bizâncio e o seu patriarca, ameaça quotidiana, tenha investido, no dia de Natal de 800, uma coroa que este Carlos não tinha pedido, mas que fez dele igualmente um imperador, um imperador romano, um imperador romano de um império que não era romano, um imperador romano cuja capital não era Roma: é o papa que, contra ventos e marés, tenta manter-se e acaba por se manter na cidade eterna. -,*

É um imperador romano, quer queira quer não, este Carlos que logo se torna Carlos o Grande mas que conserva a capital em plena Barbárie, em pleno Norte frio e brumoso, por trás de espessas cortinas de floresta [uma palavra ilegível]; ali, e nem sequer na margem do Reno argênteo, junto desta via clara e conhecida; ali, ali mesmo, não se sabe bem onde, quando se é mediterrânico (nem se tem vontade de saber); um imperador romano que toma para capital uma dessas cidades termais sem prestígio que nem sequer tem nome especial, nenhum outro além do nome colectivo de todas as cidades termais, Aquce.

E se este Carlos que se diz grande quer erigir ali um palácio digno do seu título, um palácio digno de uma majestade imperial, mesmo improvisada, tem que mandar saquear por todo o império romano colunas de mármore, pois não tem operários capazes de as talhar, colunas de mármore121LUCIEN FEBVREque ele próprio manda transportar, por centenas de quilómetros, puxadas por bois. E como elas são de altura desigual quando os pobres arquitectos as erguem, ele tem que aceitar, este imperador romano, que as tornem iguais colocando coxins de pedra de altura desigual sob

as suas bases, de maneira a que os capitéis sejam levados à mesma altura, ao mesmo alinhamento horizontal...

Majestade real, pois dispõe de guerreiros sólidos; majestade bárbara e que não pesa muito na balança das civilizações quando se coloca perante ela, no outro prato, o imperador de Bizâncio, com assento majestoso nas salas magníficas dos seus palácios, sob os grandes mosaicos dourados que parecem constelações de jóias cintilantes, ele próprio uma jóia, este imperador, com os seus trajes hieráticos de seda e ouro, todos cobertos de gemas e de pedrarias. Majestade de carnaval em certos aspectos, e assim ficará na imaginação dos povos; para todos os efeitos, majestade de lenda um pouco caricatural (veja-se as canções de gesta); majestade que pasma, como pasmam os reis negros perante um fonógrafo ou um revólver quando Harun Al-Rachid, o califa, lhe dá de presente um elefante e, mais ainda, um relógio maravilhoso que mostra as horas...

, O império árabe dos califas, o império grego do basileus de Bizâncio, o império bárbaro, o império franco do César de Aix-la-Chapelle: três grandes formações das quais as duas últimas se afirmam herdeiras do Império Romano, não sendo, nem uma nem outra, sequer a metade deste império, a metade oriental ou a ocidental.

No entanto, o imperador de Bizâncio conserva ainda as velhas terras da Grécia insular e peninsular e as da Grécia da Ásia que foram o coração do helenismo, antes de serem integradas no Império Romano. O imperador de Aix, o imperador improvisado, o imperador bárbaro, o vasto conjunto de territórios em que ele reina, como chamar-lhe? Romano? Por certo que não! Todo um sector dos seus domínios nunca fez parte do Império Romano. Cristão? Mas então seria preciso definir, porque o basileus de Bizâncio também122A EUROPAé cristão: cristão católico, cristão da obediência romana. Seja. i:

Seja, mas sentimo-nos tentados, nós, hoje, a dizer pela primeira vez: imperador europeu. Por certo não o dizemos por o império de Carlos Magno englobar toda a nossa Europa, nem por sombras! Mas porque, pela primeira vez, na formação carolíngia discernimos algumas das características que atribuímos à Europa, à nossa Europa, ao mundo que nos é familiar, hoje, sob o nome Europa.

Algumas características: quais? E de uma maneira mais geral, europeu, o império de Carlos Magno, porquê? O império de Carlos Magno, repito, não é a Europa. O império de Carlos Magno não

abarca, nem de longe, a totalidade das regiões que chamamos europeias. Do lado do Mediterrâneo, a Península Ibérica escapa-lhe, ocupada pelos Árabes; de Itália, só possui verdadeiramente a Lombardia e a Toscana; tudo o resto depende do imperador de Bizâncio, tudo o resto é de cultura bizantina.

Do lado do Oceano, escapam-lhe as Bretanhas: a pequena, a nossa Bretanha francesa, a grande, a antiga Britannia romana e tudo o que está para trás desta Britannia. E, naturalmente, escapa-lhe também o bloco nórdico propriamente dito, o bloco suspenso sobre a Europa germânica formado pelos maciços países escandinavos, a Suécia e a Noruega, a terra dos Normandos. 4

Enfim, do lado do continente, Carlos Magno levou o seu império até às margens do Reno e às margens do Elba, pelo menos as do Elba inferior e médio, e às margens do Saara, seu afluente. Mas não penetra nas pontas lacustres que bordejam o Báltico, nem sobre o que será mais tarde o quadrilátero da Boémia, os Checos, como nós lhes chamamos, nem no reino dos Avaros, senhores do que em breve será chamado a planície húngara, nem, naturalmente, em alguma das regiões balcânicas, o nosso Hanover, a nossa Áustria, a nossa ístria e a nossa Caríntia. Eis as suas províncias extremo-orientais, os seus postos avançados: mais além, pululam Eslavos eMongóis...123LUCIENFEBVREPortanto, o império de Carlos Magno não é a Europa, a nossa Europa, Mas não deixa de ser uma formação europeia, a primeira das formações europeias que a história regista. Porque a Europa é para nós, essencialmente, digamos, uma formação que se opõe em três frentes ao que não é Europa? Não, não vamos lá assim. Mas de facto é bomque saibamos que, com efeito, não vamos lá assim: é bomque avaliemos a relatividade da noção de Europa.

Destas três frentes, podemos sem dificuldade, ao que parece, definir uma, a frente mediterrânica que, na nossa concepção, se opõe a África, Mas a África, para os contemporâneos de Carlos Magno, não quer dizer grande coisa. A África na realidade, a África a que se opõe a Europa de uma margem à outra do Mediterrâneo, a África, atenção, culturalmente falando. É a Ásia, sempre a Ásia, a Ásia que assedia a Europa por todos os lados. É um prolongamento cultural da Ásia, uma vez que os seus senhores são asiáticos: os Árabes.

A segunda destas frentes é a oceânica. Mas o oceano propriamente dito, durante milénios, não deu para lado nenhum a não ser para o infinito, o vazio infinito até ao dia em que Colombo e os seus émulos puseram fim a este infinito. Ao tempo de Carlos Magno [não chegámos] lá! O oceano propriamente dito não vai dar a lado nenhum. E quanto ao oceano britânico, isto é, a Mancha, quando ao oceano germânico, isto é, o mar do Norte, dão para a Barbárie, uma Barbárie mais bárbara do que a barbárie carolíngia, a da antiga Britannia romana que se tornou Anglia e Saxonia e que hoje se encosta a uma Hibernia e a uma Caledónia, povoadas por celtas e por emigrantes bárbaros, ou então essa barbárie expressa nos Normandos, os corredores dos mares e saqueadores de terras; os Normandos, esses espantosos marinheiros que descobriram a América do Norte e fizeram tremer durante anos os súbditos dos imperadores carolíngios, impotentes para os repelirem das suas terras, até ao dia em que uma parte deles veio estabelecer-se na Gália.124A EUROPAQuanto à terceira frente, como defini-la? Que limites atribuir-lhe? É aqui que começam as grandes dificuldades. E notem bem que hoje continuamos a encontrar estas dificuldades, porque, como fixar os limites da Europa a leste? E porquê? Partamos para leste, depois de termos transposto os limites incertos de uma Alemanha que, deste lado, não tem, nunca teve limites reconhecidos. Depois de termos transposto os limites incertos de uma Alemanha que, desde o século IX, século X, incessantemente recuou para leste os seus limites, à custa de um paciente e sangrento esforço, não tem predisposição para conceber estes limites como fixos, estáveis, naturais ou pré-determinados, depois de termos transposto os limites que são hoje os da Alemanha e que talvez já não o sejam amanhã, onde, quando, em que momento, além de que rio deixaremos de estar na Europa? Onde, quando, em que momento, para além de que limite estaremos nós na Ásia?

Eu sei, o Ural, os montes Urais. Mas como é absurdo este limite, aliás caduco. Porque acabam os montes Urais e a sul destes montes abre-se uma vasta, larga, poderosa cavidade, uma das portas dos povos, uma das portas de invasão mais importantes sem dúvida do mundo inteiro. Por ali não pára de afluir a vida, de este a oeste, sob a forma de emigrantes, de tribos, de nações inteiras vindas dos confins do Extremo Oriente através de toda a espessura do mundo asiático e portadoras de inventos, de criações, de inovações que nunca deixaram de enriquecer a nossa Europa.

E o limite, então? O falso limite dos montes Urais? Quando muito, um pilar de porta; mas a porta, a porta aberta, a porta aberta de par em par, será um limite? O limite? Qual? Procurámos. Esgotámo-nos a procurar. Um limite geográfico? Nenhum. Um limite étnico? Eslavos

frente a Germanos? Mas quem ousaria excluir da Europa o mundo eslavo, aliás tão diverso, tão multiforme, este mundo eslavo que começa com uma Polónia, uma Boémia, uma Sérvia, que continua com uma Ucrânia ou com uma ou várias Rússias e que agora, que hoje, continua, se prolonga com outras Rússias, Rússias siberianas, Rússias da Ásia, mas sempre e todas, cada vez mais, Rússias?125LUCIEN FEBVREEntão, um limite cultural? Sim, se quisermos. Os limites da Europa são os limites da civilização europeia. Mas onde detê-la, esta civilização? Dostoievski é um europeu; Tolstoi também e Gorki, e num outro domínio, Bakuninne, Kropotkine e noutro domínio ainda, Mussorgski. O museu do Ermitage é um dos grandes museus da Europa que contém, entre outros, alguns dos nossos mais belos Poussin. A academia das Ciências do que era, no tempo da minha juventude, S. Petersburgo, o que se tornou Petrogrado e depois Leninegrado, é uma grande academia europeia. Cientistas como Pavlov, como Vavilov são disso testemunho, como tantos outros, Quanto à actividade industrial, à força industrial, à autonomia industrial, perguntemos à Wehrmacht o que pensa disso. Sim, mas andem três séculos para trás: o quadro muda. Sim, hoje passamos os Urais e esta civilização russa da Europa, eis que ela se transforma em civilização russa da Ásia, em civilização de base industrial e cultural ao mesmo tempo... E então? Então, os limites da Europa são realmente os limites da civilização europeia. Mas os limites da civilização europeia não são limites fixos. São limites móveis, que não param de se deslocar e, de uma maneira geral, de se deslocar para leste, sempre na direcção que seguiam, nos tempos carolíngios, os pioneiros alemães que se esforçavam por arrancar as suas terras aos eslavos, os pioneiros alemães que, nesse tempo, eram, quer queiramos quer não, os portadores da civilização europeia, de uma civilização europeia rudimentar, atrasada, extremamente sumária, mas que não deixava de ser a civilização europeia.

Deixemos portanto os problemas dos limites. Não os resolveremos, Ninguém, no nosso lugar, os resolveria, não seria capaz. *[Uma vez mais, não se define um mundo por fora. Só se pode definir por dentro, colocando-nos no seu coração, partindo do coração.]*

É que a Europa, quando tentamos formular o que ela representa para nós, Franceses, apesar de tudo, a Europa é essencialmente o seguinte: a colaboração numa mesma obra de civilização, a participação num mesmo ideal de cultura, num mesmo ideal de vida, a colaboração, a participação126A EUROPA

de populações muito diferentes, umas mediterrânicas, outras oceânicas, ou nórdicas, ou orientais, todas com destinos diversos, até muito diversos, todas fortemente marcadas, e diversamente, por acontecimentos históricos que não tiveram o mesmo peso sobre todas elas, mas que contribuíram, todos, para a civilização comum de que gozam, colaboraram com contributos dos quais é difícil dizer, exacta e equitativamente, quais foram os maiores, mas todos foram importantes; fosse porque estas contribuições, tiraram-nas as populações europeias de si próprias e do seu particular espírito inventivo; fosse, pelo contrário, por estas contribuições representarem apenas importações de que estas populações foram tão-só os veículos, importações de populações, importações das civilizações que rodeiam a Europa e o mundo europeu e que, nos tempos que nos interessaram, nos tempos carolíngios, nos tempos medievais, são, só podem ser civilizações asiáticas, com exclusão de todas as outras. com efeito, por toda a parte, o que encontramos perante a Europa, por toda a parte é a Ásia e até nessa África que os Árabes desviam do Ocidente, da Romanidade, neste Norte de África que os Árabes ocupam inteiramente, depois de terem ocupado toda a Espanha, depois de [terem ocupado] o sul da Gália.

Mas, do mesmo modo, é a Ásia que os Normandos exportam consigo nos seus barcos rápidos; é a Ásia que os Avaros introduzem em pleno coração da Europa, na Hungria; é da Ásia que os Ucranianos e os Russos são intermediários na Europa, a Ásia, a Ásia das estepes, uma Ásia cavaleira que na verdade dá à Europa, por todas as vias, dádivas imensas: os arreios modernos, a sela para montar a cavalo, o estribo, a ferradura, a charrua com rodado que substitui o arado sem rodado, a falcoaria ou, se se preferir, a nobre arte medieval da caça com ave, as modas, a mais espantosa historicamente, a do toucado em bico, etc., etc. E nem falo das plantas. Não falo do centeio. Não falo do lúpulo, nem falo da bússola, do papel, do algodão, nem da imprensa vinda da China; não falo da pólvora nem do canhão; não falo de matemáticas, nem de cosmografia e de astro-127LUCIENFEBVREnomia, nem de geografia, nem de química e de farmacologia, nem tão -pouco de medicina, nem ainda de metafísica e de poesia; não falo das fontes árabes do poema de Dante.

Mas posso dizer, e digo: a Europa fez-se contra a Ásia. Pôs-se à próva resistindo à Ásia. E digo: a Europa é a Ásia armada contra si própria E acrescento: a Europa fez-se também com a Ásia, graças à Ásia, pela Ásia.

Resistência ao Islão, sim, mas imitação do islão, sim. O Cid el Campeador serviu sete anos o emir de Zaragoza. E se é com soldados cristãos que o grão-vizir Al-Mansur saqueia Compostela, é com soldados muçulmanos que Robert Guiscard repõe, em Roma, o papa no trono.

Pois bem, esta combinação de populações nórdicas e mediterrânicas, esta combinação de populações orientais e ocidentais que constitui uma civilização largamente impregnada de elementos, de contributos, asiáticos, que, graças a incessantes afluxos orientais, não pára de crescer e de se fortificar, esta combinação, a primeira vez que a encontramos na história sob a forma de um Estado distinto, e de um Estado viável, de um verdadeiro Estado, é no tempo do Império Carolíngio. É o Império Carolíngio que a realiza. E por isso este império é realmente um império europeu, Vamos então dizer: a Europa fez-se? Nunca pensámos isso. E se o tivéssemos pensado, estaríamos em flagrante desacordo com os próprios interessados, com os Europeus do tempo de Carlos Magno que teriam ficado bem surpreendidos se ouvissem chamar-lhes europeus. Porque a Europa, para os mais sabedores deles, esta palavra, talvez tivesse um sentido, um sentido geográfico, no sentido de rótulo geográfico, e era tudo. A Europa.,, era um nome a inscrever num mapa, ou seja, num desses documentos curiosos, espantosos, anormais [?] que com orgulho exibia o imperador no seu palácio ou algum abade [uma palavra ilegível] poderoso no seu mosteiro. Mas era tudo. A Europa era uma noção para Éginhard e pronto. Mas128A EUROPAos doze pares, consultados quanto ao sentido da palavra teriam abanado a cabeça com perplexidade. E tal como Rolando, Ganelão não teriam estado a par, a bela Aude ainda menos. Saltemos os séculos. O próprio S. Bernardo? Europa, Europa? Falem-lhe de cristandade, ele compreende. E, uma vez mais, eis-nos perante a mesma história. Há o nome Europa. Há o rótulo Europa. Há talvez o ideal Europa. Mas há a realidade que começa por se chamar helenismo e depois Império Romano, e depois cristandade. Seria uma lei? Seria o destino desta noção de Europa, um destino de [palavra ilegível]1? Uma irrealidade? Um destino de rótulo sem conteúdo? A continuação responderá.129130

Lição IX

Europa e Cristandade

No século IX, a par da dupla graça de Maomé e de Carlos Magno, indissoluvelmente unidos agora pelo célebre artigo de Pirenne; no

século IX, graças à criação, efémera mas plena de significado histórico e humano, de um império cristão que tem o seu centro de gravidade, não no Mediterrâneo, mas no interior das terras, entre o Loire e o Reno, e maisPrecisamente nas margens do Mosa; No século IX, graças à criação de um império que se diz, ao mesmo tempo, império, romano, cristão, o que cortaria cerce qualquer tentativa oriental de reconstituição, por um novo Justiniano, da velha unidade imperial romana centrada no Mediterrâneo (se tal tentativa fosse concebível no século IX); no século IX, graças a esta criação de origens obscuras e ainda mal conhecidas, de uma vasta formação cuja língua oficial é o latim, língua de governação, língua de cultura também, mas cuja língua nacional seria o franco se tivesse uma língua nacional, cujas línguas privadas, se assim posso dizer por oposição à língua pública, são línguas que podem ser bárbaras, mas são influenciadas pela língua superior, o latim, são derivadas do latim mas barbarizadas pelos idiomas dos antigos invasores; no século IX, graças a esta criação encontraram-se reunidos os elementos constitutivos essenciais de uma realidade131LUCIEN FEBVREpolítica nova, de uma nova realidade cultural1. E esta realidade política nova, esta realidade cultural nova, se quisermos dar-lhe um nome não encontraremos senão um, um único nome que enfim possa convir-lhe.

Não é a Europa, mas é já uma formação europeia, digamos, é a primeira das formações políticas europeias que vão suceder-se, deveremos dizer no quadro geográfico europeu? Tentei mostrar-vos que este quadro é singularmente móvel, singularmente elástico. Tentei mostrar-vos que a noção geográfica de Europa era na realidade uma noção histórica, uma vez que nada nos fornece limites à Europa para leste, nada de geográfico, nem rio intransponível (se houvesse rios intransponíveis), nem caminho de montanha insuperável (se os houvesse...), nem braço de mar, nem superfície lacustre, nem deserto de areias ardentes, nem deserto de pedregulhos gelados; de modo que..., de modo que, em desespero de causa, é à história que temos que recorrer para definir Europa, se não nos detivermos nuns Urais quaisquer, cuja invenção é, aliás, de fresca data, nuns Urais quaisquer que já existiam, na natureza, no tempo de Luís XIII e de Richelieu, mas se então fossem dizer a Richelieu que eles limitavam a Europa ele ter-se-ia rido! A Europa? Terminava praticamente numa linha Kõnigsberg, Varsóvia, Viena, Trieste que, ainda nesta data, deixava de fora não apenas toda a imensidão das terras russas como também a maior parte da planície húngara que só será reconquistada aos Turcos, definitivamente, em 1699, o último ano do século XVII (pelo Ano Novo do século XVIII).

1699 é a paz de Carlowitz (e naturalmente de todos os Balcãs). Entre os limites desta Europa real e os montes Urais, estendiam-se ainda, nesta data, uns 200 a 500 quilómetros que não são Europa, que são principados bárbaros, que são países semi-reais, semi-quiméricos, uns 200 a 500 quilómetros, isto é, a distância que separa os limites da velha Polónia de Paris.

Não, não se trata dos montes Urais. Não, não se trata de geografia, Não, mesmo hoje, consolidada como está em atlas de que cada lar de França possui, na cidade ou no campo, pelo menos um exemplar; mesmo hoje,132A EUROPAconsolidada que está por um ensino mais tradicionalista que realista é quê parece convidar os olhos das crianças a manter-se fechados às realidades; mesmo hoje, a Europa não é uma noção geográfica que se sustente. A Europa é um ideal, um sonho pelo qual os homens se matam aos milhares. A Europa é uma noção cultural (mas falar hoje de cultura é quase falar de sonho). A Europa é uma superfície de territórios extensível, constantemente extensível e que de facto se estende não apenas para leste (pois, onde está hoje a barreira dos montes Urais?), não apenas para leste como também, tomem atenção, para oeste, a despeito dos limites oceânicos. Porque, enfim, neste mesmo momento, ao sol da Europa, intervindo activamente nos assuntos europeus, lutando com toda a sua força por uma certa concepção de Europa, contra uma certa concepção de Europa, há homens, homens brancos, homens que falam uma língua da Europa, homens que professam religiões da Europa, homens que estão mais próximos de um francês, quando não mais próximos do que Búlgaros, Macedónios, Russos, Finlandeses, a quem ninguém pensa regatear a sua condição de Europeus.

Há homens que representam o quê? Uma extensão da Europa para oeste, nada mais; uma extensão da Europa, para além da barreira dos mares, que se tornou o traço de união dos mares. E poderia dizer: não apenas para leste, não apenas para oeste, mas também para o norte onde se instalam constantemente postos avançados da Europa com mais vigilância e actividade, onde se sente muito bem que se realizam tomadas de posição que tomam necessárias (em Spitzberg e noutros lugares) não apenas as exigências da guerra monetária, as exigências do tráfego aéreo que, amanhã, serão realidades comerciais; para norte e, por maioria de razões, para sul, em direcção à massa africana, onde cada vez mais a Europa penetra, a Europa que nela entrou com as suas vias férreas, a Europa que a rodeia com os seus barcos, a Europa que a toma e a transfigura, a Europa, isto é, esta formação não geográfica,

mas histórica, ou seja, ao mesmo tempo política e cultural cujos elementos constitutivos essenciais se encontram pela pri-133LUCIEN FEBVREmeira vez, repito, reunidos no século IX, no que chamamos o Império Carolíngio, império romano de nome, império latino de língua, quando não real, pelo menos oficial, império cristão de religião e cristão de obediência romana, império feito da união, da adição e já, em grande medida, da fusão de elementos mediterrânicos e de elementos nórdicos, de antigos súbditos de Roma que permaneceram no mesmo lugar, territórios que Roma outrora havia submetido, e de antigos Bárbaros infiltrados no que fora antes o Império Romano, quer por infiltração individual, quer por transferência colectiva.

União, adição, fusão, porque estes Bárbaros, pouco a pouco, tinham-se romanizado e cristianizado enquanto os antigos Romanos se barbarizavam muito, e o resultado deste encontro de elementos de origens muito diferentes, mas que acabavam por ser muito semelhantes, acabou por ser uma civilização comum, uma civilização a que devemos sem dúvida chamar europeia, mas que, se lhe pedíssemos o seu nome, não responderia Europa, responderia cristã.

Vamos fazer a história desta cristandade, século a século? Vamos debruçar-nos sobre ela e tentar ver quando, como, porquê, nos séculos X, XI, XII, XIII, XIV (não continuemos), uma Europa (a definir) nasceu no seu seio e acabou por adquirir realidade bastante para substituir a noção de cristandade?. Não o conseguiremos. Detenhamo-nos. E primeiro tentemos marcar com nitidez em que é que por vezes as duas noções de cristandade e de Europa não se sobrepõem, antes aparecem ao historiador como solidárias uma da outra.

Que não se sobrepõem para o historiador, isso é evidente. Primeiro os Árabes, depois os Turcos tratam disso, e mesmo os pagãos que na Samlândia, na Lituânia, na Estónia, na Finlândia, no norte da península escandinava, só entre o século XII e o século XIV serão conquistados para Cristo.

Mas serem solidárias, isso já é menos evidente. Pois se a cristandade134A EUROPAé uma realidade que sucede a esta outra realidade, o Império Romano, entre estas duas realidades, quantas diferenças! O Império Romano era uma formação unitária. O Império Romano era um Estado, em toda a força do termo. O Império Romano era um Estado com todas as características de um Estado: um território fixo e delimitado, instituições centrais, instituições locais, uma

força armada, uma força financeira e, acrescento, um love comum de ideias, sem o que não há Estado viável. ?4-

A cristandade é efectivamente uma formação unitária, no sentido em que agrupa homens que, a despeito de todas as suas diversidades, têm uma característica comum que é a obediência romana (digo bem, romana, não é por inadvertência, pois não esqueçamos que os cristãos da Idade Média, os cristãos das cruzadas não são menos que fraternais para os cristãos do Oriente).

A cristandade é, neste sentido, uma formação unitária. A cristandade possui realmente uma fé comum, um ideal comum, uma língua comum. Mas a cristandade não é um Estado, se bem que tenda a dotar-se de certas partes do Estado. A cristandade estende-se por Estados que tem que vigiar constantemente, que controlar, que arregimentar. A cristandade desempenha, acima destes Estados, o papel de um super-Estado, ou melhor, a cristandade justapõe às instituições próprias destes Estados as suas instituições, cristandade, instituições cristãs que, pouco a pouco, de uma colecção ímpar de reinos e de principados surgidos fazem um mundo ordenado, coerente e que se sente tal.

Que instituições? A rede dos bispados e dos arcebispados. Que instituições? Os estabelecimentos monásticos que não crescem por acaso, os estabelecimentos monásticos que não vivem isolados, antes constituem ordens, que seguem o exemplo soberano de Cluny, abadia isenta, governada por uma série de abades eminentes e que em breve desempenham em toda a cristandade o papel de homens de Estado de primeiro plano; Cluny, viveiro de papas, segunda capital do mundo cristão, em relação íntima com a Itália; Cluny, monarquia monástica no seio da monarquia pon-135LUCIEN FEBVREtifícia; Cluny cuja igreja abacial é a maior igreja da cristandade. E não há só Cluny! Há todas as ordens que estabelecem relações, coesões espirituais e materiais entre os seus estabelecimentos; relações que levam os religiosos de um mosteiro entre o Oder e o Vístula a conceber uma solidariedade com um mosteiro da Irlanda, ou de Nápoles, ou da Galiza, cujo mensageiro, portador da rotula, lhes traz regularmente notícias, cujo abade se encontra com abades nas grandes assembleias que se realizam ora aqui, ora lá, ora numa cidade qualquer de Itália, ora numa qualquer cidade de França ou da Alemanha, enquanto o papa

desempenha, acima dos imperadores, dos reis e dos príncipes, desempenha, acima dos imperadores, dos reis e dos príncipes, o papel político, moral e religioso que sabemos e que, armado da força material que lhe proporcionam a organização das dioceses, a posse de um grande tesouro, o acesso a uma arma tão temível como a excomunhão, tende a erigir, acima destes Estados que parecem fragmentos de uma unidade política desfeita, uma grande formação politico-religiosa unitária que, sem dúvida muito rapidamente, se revela um sonho, um sonho que não viria a realizar-se, mas um sonho a que os papas só renunciam ao cabo de séculos e séculos, um sonho a que renunciarão pela força, mas não sem dúvida por convicção, por conversão a um ideal novo; os papas que tentam sempre, acima dos Estados, fazer reinar uma ordem que não é somente espiritual, uma vez que pretende aplicar-se a realidades terrestres, uma ordem que, se fosse unicamente espiritual, se ocuparia apenas da pátria celeste, uma ordem que na realidade se ocupa das pátrias terrestres e que tende a subordiná-las, mesmo hoje, às exigências espirituais da pátria celeste.

Deveremos falar de conflito do ideal com as realidades? Não, porque os imperadores, os reis, os príncipes têm também um ideal seu e defendem-no contra Roma. Não, porque os papas e os chefes das ordens, e os grandes homens (as grandes mulheres também) do cristianismo por certo não se coibiram de manobrar as realidades. Não, porque um S. Bernardo não define apenas casos de consciência, um S. Bernardo ergue-se acima136A EUROPAdos príncipes do seu tempo como árbitro. Digamos, o conflito entre a laicidade e o que gostaria de chamar a clericalidade, são duas maneiras de conceber a vida, duas visões gerais do mundo das quais uma, a clericalidade, os historiadores estudaram, mas não a outra, a laicidade, quero dizer, enquanto ideal próprio, com raízes suas, com a sua originalidade, os seus títulos de nobreza e as suas armas, as suas armas defensivas e ofensivas. Este conflito entre dois ideais, entre dois espíritos, se preferirem, o espírito laico dos príncipes e o espírito cristão dos chefes da Igreja, este conflito está por toda a parte. Está em tudo, mesmo no seio dos empreendimentos que parecem por excelência empreendimentos religiosos, mesmo no seio das cruzadas. É mesmo toda a história das cruzadas.

De um lado, a fé, de um lado o ódio, de um lado a reconquista, de um lado a libertação do túmulo de Cristo; do outro lado, a dominação, porque o chefe da cruzada é o chefe da cristandade, ideia que muito cedo emerge; do outro lado, o lucro, o ganho. Porque a cruzada é uma bela pechincha para mercadores de todas as espécies e de todos os calibres. A cruzada é uma bela pechincha para estes [uma palavra

ilegível] sem o que, sem cujo concurso activo (mas sólido) não há cruzada possível. A cruzada, digamo-lo numa palavra, é um bomnegócio, é um bomnegócio que a fé oferece à cupidez, que o espírito desinteressado oferece ao dinheiro, que a religião oferece igualmente à política, os papas aos imperadores e aos reis e aos barões, aos barões que ganham indulgências, de lança em punho, mas ganham também principados e que, partidos daqui, de algum lugar pacífico e ignorado dos nossos campos, se vêem de um dia para o outro duques de Atenas ou príncipes do Peloponeso.

Mediterrânicos, estes barões? De maneira nenhuma, cristãos que ora dependem do reino de França, ora do reino de Inglaterra, ora do Império, do santo Império romano germânico. E precisamente, esta grande mistura que a cruzada opera, a cruzada que torna sensível a tantos homens de habitat diferente a solidariedade que cria entre eles o nome de cristãos, o ideal cristão, esta grande mistura, não há instrumento mais poderoso e137LUCIEN FEBVREmais forte da unificação europeia. Não há agente mais poderoso, este agente religioso, da união das forças que não é apenas, não é unicamente, que em breve não será essencialmente cristã.

A cruzada religiosa trabalha em proveito de uma unificação europeia que não é somente religiosa: é em grande medida política. É económica, É cultural. A cruzada é criadora ou renovadora de fortes correntes de tráfego. A cruzada, dando um novo desenvolvimento ao comércio marítimo, é criadora de métodos novos, internacionais. A cruzada, como necessita de adiantamentos de fundos consideráveis, é geradora do capitalismo internacional. Digamos, retomando a fórmula de há pouco, que a cruzada religiosa opera em proveito de uma solidariedade a que devemos chamar, decididamente, solidariedade europeia, uma vez que já não é unicamente, uma vez que não é essencialmente, nem uma solidariedade romana, pois a Romanidade tornou-se mera realidade, nominalidade, nem uma solidariedade religiosa, tendo-se afirmado as forças laicas e temporais (políticas, económicas, sociais) com força crescente, na corrente das forças religiosas, sob o manto da religião, sob esse manto de Cristo que vemos cobrir, nas velhas imagens da Virgem de misericórdia, os diversos estados da sociedade, estados cristãos, mas que permanecem distintos nos seus antagonismos e nas suas vontades.

* E portanto, o Mediterrâneo está longe, se a Europa está próxima, a Europa no sentido que damos a esta palavra quando fazemos política histórica. Longe? Pensam que sim? Tudo isto é decididamente uma história de relações, uma história de equilíbrios.

Quais são portanto, no momento em que, pela primeira vez, somos tentados a pronunciar a grande palavra, quando não Europa, pelo menos europeu (entre parênteses, é curioso que muitas vezes o adjectivo ganhe vida, na nossa linguagem erudita, antes do substantivo, que a necessidade de adjectivo seja sentida antes da necessidade de substantivo; antes também que a de verbo, isto é, a do dinamismo, da acção, da acção138A EUROPAque precede a realização, do dinamismo que precede a estabilidade. O verbo «civilizar», o particípio «civilizado» e, graças ao particípio, o adjectivo «civilizado» entra nas línguas muito antes da palavra «civilização», um ou dois séculos antes da palavra «civilização» que designa o resultado final do conjunto de acções que o verbo «civilizar» significa. Há uma lei constante, e que se explica, como vêem, não por leis linguísticas propriamente ditas, mas por leis humanas, por leis históricas), quais são portanto, no momento em que, pela primeira vez, pronunciamos a palavra europeu, no momento em que podemos começar a falar deformação europeia, quais são portanto as relações deste velho mundo mediterrânico que, durante tanto tempo, tinha desempenhado o papel de pátria para os homens mais evoluídos do Ocidente, para os homens do Ocidente portadores da mais alta das civilizações; quais são as relações deste velho mundo mediterrânico com o mundo europeu que em breve vai nascer?

É um problema de interesse premente, sendo certo que vamos ser levados a falar da realidade europeia e do seu significado, visão ao mesmo tempo rigorosa e nova, visão exacta, também, e que não engana.

*[O Império Carolíngio - não me levem a mal demorar-me nele, reter-vos demasiado tempo, por um capricho de humor injustificado e injustificável, sobre o humilde destino de uma formação frágil e efémera o Império Carolíngio é o ponto de partida, é o germe, e o germe contém tudo, o Império Carolíngio: decididamente, como explicar a sua génese? Não sabemos. Ora, claro, há a pequena história, a história dos Pepinídeos que se tornaram os Carolíngios! A história destas dinastias obscuras das margens do Mosa, da região de Liège, cujo tronco será um dia portador de um fruto considerável, o imperador Carlos Magno; digo pequena história porque esta ascensão dos Pepinídeos até ao trono de Carlos Magno na realidade não explica nada, nada diz das forças reais que conduziram estes Pepinídeos até ao trono de Carlos Magno, nada diz das forças reais139LUCIEN FEBVRE

que permitiram esta formidável ascensão, esta formidável erecção de um império a partir praticamente de nada... ]*

E se descêssemos o curso do tempo, se do século IX passássemos ao século XI, porquê este brusco impulso de energia nas sociedades ocidentais? Porquê este despertar de energia, logo a seguir ao ano mil, no quadro do que chamamos, com uma palavra inexacta mas tradicional desde que os nossos avós, ao tempo da Revolução a carregaram com um significado que ela não tinha, o feudalismo?

Porquê? É uma questão obscura. Os historiadores, em geral, não gostam muito de se interrogar sobre estas questões. Parecem-lhes metafísicas. Gostam de se deixar ficar pelo pequeno jogo de azar de uma história de pequenas causas, [de uma história] de pequenos efeitos, entrelaçam-nos como os fios de uma tapeçaria de dama: brincam às tecedeiras e ficam todos contentes.

Mas, enfim, o problema existe na mesma: porquê? E quando procuramos, somos levados, como tantas vezes, a responder ao obscuro com mais obscuro. Somos obrigados a dizer uma palavra carregada de enigmas, a palavra natalidade; sim, sim, a natalidade, esse grande fermento da história. Adivinhamo-lo. Tem que ser isso. Mas na realidade, não o sabemos. Não o sabemos de um saber científico. A natalidade? De tudo o que toca ao homem, esse desconhecido, [a natalidade] é um dos conjuntos de factos mais mal conhecidos, mais rodeados de espesso e irritante mistério2.

Porque é que, em certas épocas, em certas sociedades que parecem florescentes, porque se dão estas bruscas quedas de natalidade que tão depressa criam catástrofes? Porque é que em certas épocas, em certas sociedades que parecem enfraquecidas, porquê estes bruscos surtos de natalidade? E essa outra palavra, feudalismo, em que estão elas ligadas? Tentarei mostrá-lo da próxima vez.140

Lição X

Europa e feudalismo

O imenso problema da génese da Europa que este ano nos retém, este imenso problema não é simples. Espero ter-vos feito sentir isso.

E não é simples porque, primeiro, coloca duas séries de questões, ou melhor, aquilo cuja génese queremos explicar é uma Europa individualizada, um indivíduo Europa entre outros indivíduos histórico-geográficos da sua espécie, a Ásia, a África, a América, indivíduos de

má feitura, talvez, e por vezes até de contrafacção, mas, enfim, a família existe, a família «continente», e desempenha um grande papel, um grande papel nos pensamentos da humanidade, mas é também [a génese] de uma determinada civilização, a civilização europeia, da qual, dizem-nos, o indivíduo Europa é o portador e o criador, uma civilização, porém, cujos limites não coincidem com os limites da Europa, uma civilização que extravasa singularmente estes limites, sendo certo que na América, um pouco por toda a parte, na Austrália e na Nova Zelândia e esporadicamente noutros pontos, refiro-me à Ásia, à África, à Oceânia, a civilização europeia prospera e expande-se, longe dos lugares onde nasceu. Dito isto, feita esta distinção, não está dito tudo. Pois existe o pro-141LUCIEN FEBVREblema, o eterno problema da matéria, o eterno problema da forma que se coloca tanto para a Europa como para a civilização europeia.

Para a Europa [põe-se o problema] da matéria: com que materiais geográficos e humanos se fez a Europa? Essencialmente, como vimos, primeiro com materiais romanos que se mantiveram no mesmo sítio depois da derrocada do Império Romano; em segundo lugar com materiais bárbaros que, no contacto com materiais romanos se transformam, se romãnizam, enquanto, por um movimento inverso, os materiais romanos, em contacto com elementos novos, se barbarizam.

[Para a Europa coloca-se igualmente o problema da] forma: quais são as forças políticas e humanas que «informam» esta Europa, que a criam de fora e a criam de dentro, que lhe dão a sua forma política, a sua forma religiosa, a sua forma económica e social?

Mas, do mesmo modo, no que se refere à civilização europeia, [coloca-se o problema da] matéria: com que ingredientes se faz uma civilização europeia? com ingredientes, [primeiro], de proveniência romana, logo mediterrânica, com a herança de Roma (espiritual e material); [em segundo lugar, com ingredientes] de proveniência bárbara e mais frequentemente asiática, isto é, das estepes ou mesmo iranianos, mas que se tornaram nórdicos (material); [em último lugar, com ingredientes] de proveniência árabe, isto é, de novo asiáticos e quase sempre iranianos, vindos por via mediterrânica (espiritual e material)2.

[No que se refere à civilização europeia coloca-se igualmente o problema da] forma: como se comportam estes ingredientes, formados no molde europeu? Que religiões, que literaturas, que artes e que formas de sociedade (familiares, tribais, nacionais), etc., engendram ou transformam eles?

Eis o pano de fundo de uma pesquisa de conjunto sobre a génese da Europa e da civilização europeia, de uma pesquisa de conjunto, não digo de uma pesquisa completa, pois quantas questões obscuras [subsistem]...142AEUROPAEstas questões, não vou tentar tratar todas elas para vós. Vou porém dar-vos algumas noções do que elas são. E aqui está uma.

A primeira forma que a Europa revestiu foi a que lhe deu o Império Carolíngio. Mas o Império Carolíngio era uma unidade política. E a Europa tal como é hoje não é uma unidade política. A Europa é uma colecção de Estados nacionais, de individualidades nacionais, que tiveram grandes dificuldades em constituir-se, com a ajuda de fragmentos mais pequenos, de fragmentos regionais, provinciais, locais que se foram reunindo lentamente, que «fizeram a sua unidade» antes que Estados nacionais, como nós dizemos mas deveríamos dizer Estados reais, agrupando-os, reunindo-os, façam por sua vez a sua unidade. Foi uma tarefa longa. Recordem-se das lições que vos devem ter dado no liceu sobre a unidade francesa e a sua formação. Recordem-se das lições sobre os grandes autores da unidade francesa e da sua formação. Recordem-se das lições sobre os grandes autores da unidade francesa, exaltados, ampliados enquanto tais, fossem quais fossem os seus procedimentos: Luís XI, por exemplo, Henrique IV. Richelieu, Luís XIV, até, com as suas guerras e as suas câmaras de reunião, a Revolução, por fim, e a consumação psicológica e moral, a cuidados seus, de uma unidade material há muito adquirida.

Entre parênteses, toda a questão da Europa vem daí. A Europa é um raciocínio por analogia. A Europa é a extensão para um super-Estado, mas para um super-Estado que não é uma criação do espírito, para um super-Estado que não tem limites verdadeiramente estabelecidos, a Europa é a extensão do processo que unificou um Estado como a França num super-Estado que não tem passado histórico, enquanto super-Estado. Porque a França,

por ela, fez a sua unidade porque havia um rei de França que confiava na França, e um reino de França cujo mito pairava sobre este rei, sobre estes Franceses. A Itália, essa fez a sua unidade porque tinha havido uma Itália unida num passado que permanecia glorioso e prestigioso, mas levou quinze séculos a recuperar esta unidade e a fazer reviver este passado.143LUCIEN FEBVREReino de França, reino de Itália, [trata-se de] dois Estados nacionais, mas, ao contrário, * [vejam as dificuldades que sentiu a Alemanha para fazer a sua unidade, a Alemanha que, enquanto Estado, estava a braços com um super-Estado, o Império, o Santo Império Romano Germânico, esse f i derivado do Império Carolíngio que voltamos a encontrar e que por sua vez foi criado em Roma pelo papa romano como rememoração [?] e como Si cópia um pouco caricatural do Império Romano.]*

A Alemanha não fez a sua unidade porque não tinha tradição enquanto Estado, não tinha chefe enquanto Estado, * [porque não era, nunca tinha sido um Estado unificado sob um senhor de prestígio]*, porque tinha sido sempre uma colecção de pequenos, médios e grandes Estados regionais ou locais e os únicos vínculos conhecidos que uniam estes Estados tinham sido aqueles que, em redor dos Estados regionais ou locais, uniam o que podemos chamar o estado-maior de um super-Estado, de um super-Estado que sempre sonhou ser a Europa, arrebatar, reunir sob o seu mando a Europa, mas que não o conseguiu. E nós, Franceses, sabemos bem porquê: não conseguiu porque a atravessar os seus sonhos houve sempre a França i e, precisamente, a dureza dos conflitos que sempre dividiram a França e o Império, * [refiro-me ao Santo Império Romano Germânico, deve-se a isso, deve-se a esta intransigência, a esta oposição resoluta, a esta resistência encarniçada, obstinada, constante da França, de uma França que, mais que todos os outros países da Europa, se esforçou por criar a noção de Europa mas que nunca, em nenhum momento da sua história, entendeu aceitar ou sofrer uma Europa que não fosse uma Europa mas um império, refiro-me ao Santo Império Romano Germânico sobretudo nos seus limites, limites que ele atribuiu a si próprio, arbitrariamente e sujeitando a potência que sempre ficou fora dos seus limites, a potência que lhe fez frente, ao ponto de sonhar por vezes absorvê-la. Recordemos os sonhos imperiais de tantos dos nossos reis, recordemos a candidatura de Francisco I à sucessão de Maximiliano em rivalidade com Carlos V. Recordemos esta dura negociação político-financeira. Mas pensemos também em tantos so-144A EUROPA

nhos e fumos que obscureceram a visão de um Luís XIV. E pensemos na expansão, muito para além dos limites da França, pensemos na expansão do império napoleónico.))*

Ora, prestem atenção, o que completa o quadro, no que se refere à Alemanha, é o seguinte: a Alemanha fragmentada, dividida, truncada, só encontrava acima dos seus bocados, para com eles fazer a união, aquilo a que chamei o estado-maior de um super-Estado, quero dizer um imperador que não presidia a um império alemão, mas que era de facto, quase sempre, um alemão que presidia aos destinos de um império sacro e romano e, ao lado deste imperador, os sete eleitores que não eram, institucionalmente falando, alemães, uma vez que, entre eles, havia um eleitor da Boémia que era o soberano de um Estado resolutamente hostil à Alemanha. Acrescentemos a isto algumas instituições centrais, mas que eram imperiais e não alemãs: a dieta, uma câmara de justiça, uma câmara de finanças. Ora, coisa a notar, a unidade alemã nunca se fez por acção deste estado-maior de super-Estado, a unidade alemã ter-se-ia feito contra este estado-maior se este estado-maior não tivesse ruído, com a velha construção fluida que dirigia, sob os ralhetes da França napoleónica.

A unidade alemã fez-se (uma vez desembaraçada a Alemanha deste super-Estado que a manietava e a entravava) do mesmo modo que se fez, afinal, a unidade italiana, por acção de um dos Estados que constituíam verdadeiramente a Alemanha, de um dos Estados que se dizia alemão, o que, aliás, talvez não fosse rigorosamente exacto, de um dos Estados que os outros Estados alemães apesar de tudo reconheciam como alemão e de que se orgulhavam porque tinha sabido pôr-se, no momento decisivo, à cabeça de uma resistência total dos Alemães às tentativas do estrangeiro, às tentativas de Napoleão para se apoderar do mundo alemão, o «vassalizar», o acorrentar aos destinos do seu império francês, * [estender este império definitivamente até aos limites extremos que o seu sonho atribuía a uma Europa politicamente em forma, a uma Europa constituída como super-Estado, com um imperador à cabeça e em proveito de um dos mem-145LUCIEN FEBVREbros deste super-Estado, a França. São coisas que indico de passagem, mas o que me preocupa, ao desenrolar este grande filme da história, é marcar sempre as constantes, assinalá-las sempre que elas se manifestam,]* Portanto, a Europa é o sonho de um super-Estado que agrupe, que englobe, que una todos os Estados da Europa.

Bem. Mas a realidade histórica, o passado não forneceram a este sonho qualquer apoio viável. Não foi apoio o Santo Império Romano

Germânico com o seu estado-maior incoerente. Não o foi o império de Napoleão que teve vida demasiado curta para ter deixado marcas profundas e que, sobretudo, foi repudiado como quimérico pelo implacável bomsenso francês, por essa «moderação francesa» de que se troça fora de França, com a esperança de vir a tirar proveito dela...

Na realidade, a Europa, volto ao assunto, a Europa é o fruto sonhado de um raciocínio por analogia, a transposição, para uma escala mais vasta, de um processo histórico que muitos Estados europeus nacionais conheceram e praticaram, o processo das unidades nacionais, precoces ou tardias; a da França, em boa hora terminada, relativamente, a da Itália ou da Alemanha, tardias; é a transposição de um tal processo bem conhecido, fácil de conhecer. Mas será legítima, esta transposição? Para alemães, talvez, porque a sua unidade fez-se pela força em Sadowa e em proveito de um príncipe alemão entre outros; para italianos, talvez, porque a sua unidade se fez pela força, a força francesa em grande parte, mas isso não é obstáculo, pelo contrário, aos seus sonhos, e portanto eles só podem achar natural, os Alemães e os Italianos, uma unidade europeia fundada pela força, em proveito de um dos Estados constitutivos da Europa, mas nós, Franceses, não. Repugna a toda a nossa história. E nós resistimos. [E nós dizemos, dissemos sempre e diremos até ao nosso último suspiro: não, não queremos, não podemos. Nonpossumus, porque não há para nós super-Estado de que nos lembremos, de que tenhamos diante dos olhos a imagem prestigiosa)*146A EUROPAE portanto, afastada a via da força, já não nos resta senão a via da amizade, a via da livre federação, essa noção tão francesa, tão essencialmente francesa. Mas então, as outras deixam bruscamente de manifestar para a Europa, para uma tal Europa, para uma Europa livremente federada, a paixão súbita que manifestam quando, sob o nome Europa, entendem simplesmente o que os nossos pais chamavam à dominação universal e que rejeitavam com toda a sua energia quando queriam impor-lha...

Ah, se o Império Carolíngio tivesse durado! O destino da Europa teria assim mudado. Porque no seu seio não haveria lugar para um conflito do que ainda não era, do que mais tarde viria a ser a França e do que não era, do que viria a ser a Alemanha, quero dizer a Alemanha política, a Alemanha unificada nacionalmente porque houve cedo uma Alemanha cultural... Ah, se o Império Carolíngio tivesse durado sob a forma que assumiu ao tempo de Carlos Magno, antes das partilhas que tanto mal causaram ao mundo europeu... Mas não durou. E os cortes que sofreu nem sequer foram a divisão de um super-Estado em Estados nacionais, de um super-Estado ambicioso e fraco em Estados nacionais sólidos e

resistentes. Não, esses Estados nacionais não nasceram então. Não tinha chegado a hora, embora obstinadamente os procuremos e os criemos quando eles não existiam, sempre pela mesma necessidade do nosso espírito de proteger no passado formas a que estamos habituados.

Ah, se o Império Carolíngio tivesse durado!... Mas não durou. E o que apareceu foi o que chamamos fases de decomposição feudal, foi a fragmentação de uma parte do mundo ocidental em pequenas, em minúsculas dominações que reduzem o Estado às proporções de uma propriedade e a que damos o nome, uma palavra absurda mas que entrou em uso, de feudalismo. Ora este feudalismo para nós, historiadores da Europa, levanta um problema, um grande problema que não se vê, logo, que ninguém trata de estudar. Este problema é precisamente o problema das relações entre a fragmentação feudal e a constituição de uma Europa, de uma Europa real, de147LUCIENFEBVREuma realidade europeia. É muito simples! Essas relações, não as houve? Ora pensem! Olhem com um pouco mais de atenção. O feudalismo coincide evidentemente com um brusco alento de energia que se manifesta na maior parte das sociedades ocidentais. Digo na maior parte porque o feudalismo não é um facto ocidental, dando à palavra Ocidente toda a sua extensão. O mapa do feudalismo, tal como foi traçado por Marc Blochna sua grande obra sobre a sociedade feudal, proporciona surpresas a quem o estudar... !

Portanto, o feudalismo coincide com um surto de energia. Resulta daí, sem dúvida. Pelo menos, é o que significa. Mas porquê este surto de energia? Porquê? A questão é obscura. Em geral, os historiadores não gostam muito de questões destas. Parecem-lhes metafísicas. Preferem entregar-se ao jogo inocente, ao jogo de azar de uma história de pequenas causas e de pequenos efeitos que se entrelaçam como os fios de uma tapeçaria de velha senhora. Mas enfim, o problema existe, porquê? E quando procuramos responder, levados, como somos, a responder ao obscuro com o mais obscuro, somos quase levados a pronunciar esta palavra carregada de enigmas, a palavra natalidade, a palavra fecundidade.* [Fecundidade, natalidade. Pois sim, grandes palavras muitas vezes repetidas. Mas então quem se ocupa seriamente, solidamente, colectivamente de saber o que significam? Fecundidade, natalidade, esse grande factor de toda a história

humana, adivinhamo-lo. Preciso é que assim seja. Mas na realidade não sabemos, não o sabemos com um saber científico.]*

Fecundidade, natalidade de tudo o que toca ao homem, esse desconhecido, é um dos conjuntos de factos mais mal conhecidos, mais rodeados de espessos e irritantes mistérios. Porque é que, em certas épocas, em certas sociedades que parecem florescentes, porquê estes surtos bruscos de natalidade, ou estas quedas súbitas que, umas e outras, criam catástrofes?

[Porque é que, em certas épocas, em sociedades que parecem enfraquecidas, porquê estes bruscos surtos de natalidade que são ao mesmo

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tempo afirmação de vitalidade, que bem depressa engendram realizações novas? Porquê? Procriar, ao que parece, é um facto de animalidade bruta. É um facto que deveria ser constante através de toda a história das nossas sociedades. Surtos de natalidade, quebras de natalidade? Porquê? A que recorrer para explicar estes factos de que somos testemunhas, pois estes surtos de natalidade, estas quebras de natalidade ocorrem diante dos nossos olhos, no nosso tempo. Porquê?]*

Porquê? Há causas físicas e psicológicas? Será sobre-alimentação, subalimentação? É um pouco grosseiro e não parece que funcione, não são as populações mais miseráveis as menos fecundas, longe disso. Então o quê? Fala-se por vezes, a propósito destas sociedades pululantes do Extremo Oriente, da fecundidade das raças sujas... Mas nas nossas sociedades não vemos de todo que os indivíduos asseados sejam necessariamente estéreis e os indivíduos sujos forçosamente fecundos! Tudo isso é muito grosseiro, demasiado grosseiro, demasiado material. Então, a ideia? A procriação sob a dependência da ideia de procriar? Da vontade consciente, assumida, notória de procriar?

Mas enfim, toda a história parece realmente mostrar-nos que, quando os governos, que, quando os regimes quiseram reagir contra a baixa ou provocar a alta da natalidade, toda a história [nos faz] compreender que, quando os governos tomaram medidas efectivas e precisas para desenvolver um estado de espírito favorável à alta, por criar condições materiais e morais favoráveis a esta alta, falharam. Quero dizer que os resultadosobtidos nunca estiveram duradouramente em proporção com os esforços despendidos. Então? Então há todo um campo imenso a prospectar, um campo quase virgem. Não sabemos. Estamos às escuras. Não temos material de factos verificados nem hipótese de

trabalho válida... E contudo, quantos enigmas históricos se resolveriam se soubéssemos fazer, pelo deve e pelo haver, o balanço do capital humano na história das sociedades passadas!149LUCIEN FEBVREOra, é um facto: no século XI parece ter-se dado um grande surto de natalidade nas nossas sociedades do Ocidente. Parece que, nos seus quadros territoriais, no quadro do senhorio, os campesinatos nórdicos desenvolvem um espantoso, formidável dinamismo, por toda a parte, até mesmo nessa Alemanha do Norte que lança massas de homens poderosos contra os Eslavos do Leste e que repele estes Eslavos, estas massas humanas de Eslavos, que os aniquila com uma espécie de alegria sádica e lírica *[e que germaniza os territórios ocupados por eles na véspera, não assegurando o controlo destes territórios, mas exterminando a população que os ocupa]* e que, a despeito das guerras e do sangue, é demasiado densa, demasiado grande, e então solta os seus benjamins para longe, os seus benjamins que se fazem aventureiros e que partem em todas as direcções, para o Báltico e seus portos que em breve serão os portos da Hansa, para as extensas planícies com novos recursos do leste europeu, para o Levante também, tão atraente para os nórdicos, e para o sul. Aventureiros... também colonos, esta Europa coloniza-se a si própria, com o seu excedente. Recordemos que esta Europa era uma região ainda parcialmente vazia,* [Recordemos o que dizíamos da vez anterior, quando comparei esta Europa, esta pré-Europa, se quiserem, com a África dos anos de 1880, com a África despovoada que os primeiros grandes exploradores do século XIX encontraram, com as suas dominações móveis de pequenos reis, com o seu tremendo vazio de homens, os buracos abertos na sua cobertura humana? Recordemos... ]*

A Europa, a Europa do século X que termina, a Europa do século XI é um imenso Far West por desbravar, por colonizar, por povoar, por rentabilizar. A Europa é um imenso e alegre estaleiro de trabalhadores, um \ imenso e alegre estaleiro de trabalhadores que, sentindo a sua força, a força dos seus braços, se preparam para reclamar os seus direitos; um imenso e alegre estaleiro de trabalhadores onde os príncipes, os barões, os senhores, donos teóricos dos espaços vazios, tratam de fazer destes espaços vá-150A EUROPAzios espaços povoados, encontrando assim a grande alavanca, a grande riqueza, a grande fonte de poder, de crédito, de fortuna: o homem, esse bem precioso, o homem que será armado, o homem forte, e lesto, e ágil que será montado num cavalo, a quem munirão de uma espada, um elmo, um escudo, uma lança e que lhes trará o poder e a terra. Este imenso, este alegre estaleiro de trabalhadores, estes barões, estas

dinastias, muito conscientemente, esforçam-se por o organizar e por processos muito modernos, esses mesmos que, guardadas as devidas proporções, empregam os nossos empresários do imobiliário, da publicidade, por anúncios e por chamada, por ofertas aliciantes e por leilões, por promessas de liberdade e de segurança... e sempre, por toda a parte, o argumento: melhor aqui do que ali!

É também toda uma história cujos elementos possuímos já, alguns elementos, mas dispersos e sem forma. Uma história, não, uma epopeia. Mas ainda estamos à espera do poeta épico que a há-de animar com o seu sowo. Ah, se tivéssemos duas vidas! Três vidas, de uma ponta à outra! Que bela obra, que bela empresa: dizer, redigir, cantar o poema dos Alpes, o poema dos Vosges, o poema do Jura; dizer, redigir, cantar o poema dos inimigos do mar, na Flandres, por volta de 1150, os primeiros pólderes; •dizer, redigir, cantar o poema dos inimigos dos pântanos, os construtores Mediques, os saneadores, os drenadores; dizer, redigir, cantar o poema das quintas e das cidades novas, lotadas pelos barões e povoadas de gente vinda de toda a parte, de emigrantes de toda a parte, de [uma palavra ilegível] i de toda a parte?

Mas este trabalho interior não absorve tudo, este trabalho interior que cria a Europa, a Europa viva, a Europa povoada, a Europa fervilhante de homens a trabalhar. Este mundo superpovoado transborda para o exterior. E de repente vê o quê? [Vê] o Mediterrâneo, este Mediterrâneo que se lhe oferece por duas portas abertas para o mistério e para a fortuna: uma, Veneza, que gravita então na órbita de Bizâncio e do mundo helénico, a ou-151LUCIEN FEBVREtra, a Sicília, que, da sobreposição de dominações, da mistura de sangues, ] recebe uma tal chicotada e uma tal energia que lança os seus homens ao assalto do Islão...152

Lição XIEuropa e recuperação económica

Tentei mostrar-vos da última vez a complexidade dos problemas que levanta uma questão como a que este ano tratamos, a questão da génese da Europa, e desta complexidade não me queixo. Pelo contrário! A história é ciência do homem e nada do que se refere ao homem é simples. E se uma questão histórica importante nos parece simples, o nosso dever deve ser imediatamente complicá-la, pois, ao vê-la simples, podemos ter acerteza de que a deformamos... Por outras palavras, o papel do historiador não é simplificar o real, é procurar, por trás das

aparências da simplicidade, a complexidade das coisas vivas, o corrente, a necessária complexidade da vida.

Portanto, coloquei perante vós uma destas questões complicadas, entre muitas outras, uma destas questões complicadas em que nunca pensamos. Disse-vos: a Europa é um sonho de unidade. Sim, e desde logo o feudalismo é o contrário da unidade, o feudalismo que é multiplicidade, que é complexidade, o feudalismo que é fragmentação, esboroamento do poder, o feudalismo nada tem a ver com a génese da Europa.

Pois não! Mostrei-vos como o feudalismo significava, historicamente falando, um surto de energia humana e, antes do mais, um surto de fecun-153LUCIEN FEBVREdidade humana que não apreendemos directamente. Não há estatísticas para o século XI! Mas o enorme crescimento das construções, a importância das igrejas que vestem o mundo com um vestido branco, os próprios recursos demográficos, de que a investida dos Germanos contra os Eslavos a nordeste, a investida dos Ocidentais contra o Mediterrâneo a sul são sinais manifestos, todos estes factos concorrem para mostrar que este surto de fecundidade humana é um facto autêntico e real e que dura até aos meados do século XIV, até que a Peste Negra e a Guerra dos Cem Anos operem, no século XIV, cortes profundos nestes recursos populacionais.

Ora, a que se dedicam estas massas humanas? No interior da Europa [dedicam-se], como vimos, à colonização das terras insuficientemente povoadas, à colonização das montanhas, dos maciços florestais, dos territórios pantanosos. E esbocei para vós esta grande epopeia do arroteamento e da colonização, epopeia que ninguém teve ainda o cuidado de escrever, pois havia de ser escrita para ser digna do tema por um Michelet visionário < e lírico somado a um erudito paciente e severo. Pois bem, esta epopeia, aonde conduz? Conduz ao grande trabalho interior do povoamento, do arroteamento, da ocupação dos espaços vazios, da exploração dos terrenos virgens que é propriamente a criação da Europa, da Europa viva, da Europa humana, da Europa povoada, da Europa fervilhante de homens a trabalhar, de homens que, aliás, já não são só os arroteadores, de machado ao ombro, lavradores, empurrando diante de si o arado ou a charrua de rodas, mas também, como veremos, citadinos, habitantes das cidades, criadores de cidades

novas que eles também habitam, homens das cidades, isto é, por definição, inovadores, homens que o peso da tradição não esmaga, libertos e independentes, homens que põem a levedar a massa pesada e estável dos campos, homens que dão à Europa, à cultura europeia, o seu engenho, o seu poder de invenção, a sua fecundidade intelectual.

E este mundo superpovoado não tarda a lançar-se para fora e, no imediato154A EUROPAvolta-se para quê? O Mediterrâneo, o eterno, o permanente Mediterrâneo, o Mediterrâneo que se lhe oferece por duas portas abertas ao Mistério e à fortuna, uma, Veneza, que gravita na órbita de Bizâncio e do pindo helénico; a outra, a Sicília, que, da sobreposição das dominações que se sucedem no seu solo recebe uma tal chicotada que, com toda a energia, pode lançar os seus homens ao assalto do Islão. E lá temos de novo o problema das relações entre a Europa e o Mediterrâneo... Datemos os grandes factos, datemos as grandes etapas da Reconquista:

1022: a Sardenha é reconquistada pelos Pisanos aos Sarracenos, a Sardenha sucessivamente vândala, gótica, bizantina, árabe.

1058: a Sicília é retomada pelos Normandos, por Robert Guiscard e seu irmão Roger, aos Sarracenos, a Sicília que foi sucessivamente vândala, gótica, bizantina, árabe.

1091: a Córsega é reconquistada pelos Pisanos, depois pelos Genoveses aos Sarracenos, a Córsega sucessivamente vândala e bizantina.

A Sardenha, a Sicília, a Córsega são as três bases essenciais de operações necessárias para levantar completamente o bloqueio do Ocidente pelo Oriente. *

Por fim, em 1096, vejam a lógica deste encadeado de factos, em 1096, a primeira cruzada.

Assim volta abrir-se o Mediterrâneo. Reinicia-se o comércio. Reaparecem os mercadores, primeiro no sul, nas margens do Mediterrâneo, depois, lentamente, por refluxo, no norte graças ao Spltigen, ao S. Bernardo, aoBrenner. Por aí os Lombardos percorrem a Europa, os Lombardos que são pedreiros, construtores, arquitectos antes de serem banqueiros, os Lombardos que transmitem [uma

palavra ilegível] lombarda, a arquitectura lombarda através do mundo antes de transmitirem os processos requintados de usura e de banca.

O comércio torna-se tão frutuoso - o comércio regular - que os piratas renunciam à pirataria, que os Normandos se fazem, por certo não er-155LUCIEN FEBVREmitas, mas mercadores que se lançam não apenas no Mediterrâneo, na Sicília com Robert Guiscard, mas na imensa Rússia e que, por Kiev, por Novgorod, partem, a prolongar a velha corrente de trocas e de relações humanas que leva os homens e as coisas, secularmente, de Bagdade a Bizâncio.

O comércio torna-se tão poderoso que deixa de itinerar. Pára. Instala-se. E cria o quê? Cidades, cidades mercantes, elemento essencial da Europa. *

É que a Europa dos campos e a Europa das cidades são duas coisas diferentes. A Europa dos campos é a Europa rural e camponesa; é a Europa fundiária e quase unicamente, quase exclusivamente fundiária dos Carolíngios, fundiária uma vez que não é marítima nem urbana.

A Europa das cidades no meio dos campos é a Europa verdadeira, a Europa que enfim se constitui no século XII, a Europa que se cobre não apenas de uma branca roupagem de igrejas, a Europa que se cobre de uma roupagem de cidades, de verdadeiras cidades, de cidades que não são apenas fortalezas, não são apenas celeiros e centros de administração rural; verdadeiras cidades, com o seu estatuto municipal, com a sua população de burgueses, de burgueses que são sobretudo mercadores e mercadores que são guerreiros, homens de uma têmpera e de um relevo singulares, sempre mobilizados, sempre de pé, sempre prontos a partir para a aventura, em caravana, de armas na mão; homens de uma energia feroz, que nada detém, nem obstáculos naturais, nem obstáculos morais, nem escrúpulos de nenhuma espécie; homens de um vigor singular que enriquecem o património humano com uma nova espécie, o mercador conquistador, e que já possuem um espírito próprio, espírito do lucro, aquilo a que chamamos espírito capitalista, espírito de crítica também, e de racionalismo, um pouco radical, adversário de qualquer misticismo; um espírito de homens positivos, realistas, calculistas e que desgastaram os seus preconceitos de origem à custa de os confrontarem com outros preconceitos...Aí estão os criadores das cidades, das nossas cidades, da cidade, ca-156A EUROPAracterística essencial das nossas sociedades europeias, da cidade, sem a qual não há Europa, da cidade que estes homens criaram, que

pretendem não deixar vegetar, que depressa tornaram o seu orgulho, a sua ufania, que querem fazer coisa sua, só sua. [Limito-me a recordar] tudo aquilo que já nos é familiar desde Pirenne1.

Em oposição, encontramos as velhas tradições, os velhos costumes do velho mundo rural, escandalizado porque as cidades são cadinhos de um direito novo, de uma moral e de uma mentalidade novas. Aliás, recordei os vitupérios desse monge, Alperto, do início do século XI, que denunciava os costumes escandalosos, abomináveis dos mercadores de uma dessas novas cidades mercantes, Tiel, na foz do Reno, Tiel, centro efémero entre a ruína de Duurstede e a ascensão de Utrecht, do grande comércio anglo-renano. São impossíveis, diz o monge, pois têm usos e costumes diferentes dos dos seus vizinhos; intratáveis, pois não se submetem a nenhuma regra; anarquistas, pois emitem opiniões que não são conformes ao costume, mas sim como eles bem entendem. E, sobretudo, horror, são optimistas, dados à boa vida «que cumulam de honrarias - é ainda o monge a falar - os que lhes provocam o riso e convidam a beber», subentenda-se: e não os monges, os bons monges que pregam a abstinência, a tristeza, a renúncia aos bens deste mundo... 2

É o fim de tudo, está bem neste texto a revolução, com efeito, a formidável revolução que a cidade só por si constitui, a cidade nova, a cidade que nasce ou renasce no século XI, toda a revolução, pois está lá tudo ao mesmo tempo: a concepção geral da vida e o seu optimismo; a independência, a reserva, por vezes a hostilidade para com velhas tradições veneráveis; costumes mais livres, que ainda são os nossos costumes; a mulher considerada na cidade, pela cidade, no direito da cidade, igual ao homem; as crianças partilham, na cidade, pela cidade, no direito da cidade, os bens do pai em partes iguais; a viúva sem filhos que herda, na cidade, bens do marido, como o marido, por sua vez, herda bens da mulher; tudo157LUCIEN FEBVREisso e a independência crítica; tudo isso e a tolerância baseada na experiência do mundo, a tolerância do mercador, que correu mundo e que conheceu os costumes de muitos homens... ; tudo isso e a paz, a paz das cidades, factores de segurança num mundo guerreiro, num mundo de brutos; a paz representada, nos limites do território urbano, pelos cruzeiros dos arredores; a paz que proclama, erguendo-se nos ares, a torre de menagem, Bergfriede, a torre da paz, uma paz garantida a todos, estrangeiros ou indígenas, os que forem fixar-se na cidade; uma paz perpétua e universal; uma paz guardada rudemente, imposta violentamente, pela ameaça, pelos suplícios, por terríveis e cruéis suplícios a que todos os burgueses têm o dever de assistir e de participar: amputações, enforcamentos, decapitações; uma paz que

exige do delinquente olho por olho, dente por dente, mas que, aplicando-se a todos sem excepção, aos grandes e aos pequenos, aos criados e aos mercadores opulentos, perante a lei suprema, verga às suas regras as diferenças de pessoas ou de estados e assim mistura as diversas condições e acaba por fazer da cidade um indivíduo político, uma pessoa moral... 3

Em oposição, subsistem por muito tempo, fortemente, em oposição, as velhas dominações, os velhos poderes, os velhos senhores: o conde, e o bispo, e o capítulo, e o abade. Abaixo todo este passado! Que triunfemos homens novos! E é a revolução comunal! A revolução comunal que inaugura a longa série das revoluções burguesas, as únicas, afinal, que triunfaram. Proudhon sabia-o quando dedicou, em 1851, aos burgueses, mais precisamente, à burguesia a sua Idée générale de Ia Révolution au Xfl< siècle.

«A vós, Burgueses, a homenagem destes novos ensaios. Fostes desde sempre os mais intrépidos, os mais hábeis revolucionários... Nada do que foi tentado sem vós, contra vós, vingou; nada do que empreendestes falhou....4158A EUROPACidades, burgueses das cidades, é um elemento novo que se soma aos castelos, aos senhorios, aos campesinatos. E é então, é desta adição, desta dualidade que resulta enfim a Europa, a nossa Europa, a Europa que não é somente uma realidade geográfica, mas uma realidade social, antes de ser uma realidade política, a Europa cuja génese não se fez num dia, de uma assentada, mediante um Fiat divino único e instantâneo, a Europa que é o resultado de uma lenta elaboração, de uma elaboração de quinze séculos de história.

*[Desta génese, desta elaboração, desta constituição, poderemos medir | datar os efeitos de uma maneira suficientemente simples e sugestiva? pedir, a palavra que logo pronunciamos, a palavra que os nossos antepassados nunca pronunciavam, a palavra que os nossos antepassados, na falta de exigências rigorosas, não sentiam necessidade de pronunciar? Poderemos dar-nos conta, de uma maneira clara e precisa, do peso que deve ter tido na vida do mundo mediterrânico e ocidental, na vida do nosso mundo, esta formação nova que resultava da fusão de grupos nórdicos importantes com os grupos de populações diversas que Roma tinha submetido e a que, pela primeira vez, o império de Carlos Magno dera a sua forma política, mas que, por si só, no seu íntimo, encerrava um dinamismo poderoso e criador?... •”*

Sim, podemos. Sim, possuímos um instrumento de medida simples que nos permite avaliar a dimensão das trocas em dado momento, mais, que nos permite indicar o sentido em que operam as transformações; este instrumento de medida é a moeda. E gostaria de vos mostrar num caso concreto o uso que dela podemos fazer, nós, historiadores, para estas medições e perspectivas difíceis.]*

Digo: a moeda. Não, digamos a palavra verdadeira: o ouro. Mais uma vez, houve alguém que viu tudo. Houve mérito, no seu tempo, em não se deixar iludir. Foi Michelet, que escreveu tão cedo sobre Filipe o Belo, em 1837, intitulando, como sabem, um dos seus capítulos: «O ouro. O fisco.159LUCIENFEBVRE ,. ]Os Templários»; o ouro, essa forma superior de riqueza, dizia ele em o ouro: «Coisa pequena, móvel, cambiável, divisível, de fácil manejo, fácil de esconder, é já a riqueza subtilizada; ia para dizer espiritualizada... O dócil metal serve para todas as transacções; segue, ávido e fluido, toda a circulação comercial, administrativa. O governo, obrigado a agir à distância, rapidamente, de mil maneiras, tem como principal meio de acção os metais preciosos. A criação súbita de um governo, no começo do século XIV, cria uma necessidade súbita, infinita, de prata e de ouro5.»

Observações notáveis, com algumas correcções que tantos trabalhos posteriores nos permitem fazer-lhes. A prata e o ouro, diz Michelet. Não confundamos. Há uma hierarquia destes metais preciosos que, desde há milhares de anos e em tão diversas civilizações, entre as quais não podemos supor entendimentos ou mesmo ligações, foram escolhidos para servir de terceiro termo, de termo intermédio nas trocas, que é precisamente o papel da moeda.

Foram eles, a prata e o ouro, e não quaisquer outros [os escolhidos], É curioso, por exemplo, que um metal tão raro como o ouro, se não mais, com o mesmo peso, igualmente favorável aos diversos usos que damos ao ouro, não é curioso que a platina não tenha desempenhado em nenhuma civilização o papel de moeda? E que só há pouco tempo seja apreciada de uma maneira comparável ao ouro? Porquê? Só porque a platina, sem dúvida, tem esta inferioridade em relação ao ouro, à prata, não tem brilho, não possui nenhuma das qualidades exteriores e sensíveis a que o homem, tradicionalmente, associa poderes mágicos e misteriosos?

Poderes mágicos, poderes misteriosos que nos explicam porque é que o ouro, porque é que a prata, têm entre nós um emprego tão geral e tão antigo nos objectos de adorno, tendo os adornos originalmente o papel de acrescentar ao ser que os usa não apenas graça, beleza, brilho, brilhantismo, prestígio, mas160A EUROPAalgo de bem mais profundo e de bem mais procurado, um verdadeiro poder sobre as coisas e sobre os seres. Um objecto de adorno é um amuleto, um feitiço, um objecto que dá ao seu possuidor um poder superior e sobre-humano. Na estima que votamos aos metais preciosos, no emprego que damos a estes metais como instrumentos de troca, não duvidem, permanece ainda uma parte de crenças, de crenças milenares, de crenças que nos remetem para milhares de séculos atrás, crenças que foram as dos nossos antepassados distantes das eras pré-históricas.

Somente, a prata é menos rara que o ouro, menos brilhante, também, e o seu papel não é o do ouro. A prata é o metal das transacções internas, das transacções médias. A prata é o metal que toda a gente manuseia, o metal de toda a gente com à-vontade, o que se usa para fazer pagamentos decerto valor (para os pagamentos menores serviam-se do cobre, também ele tão brilhante, tão prestigiado, mas que oxida).

O ouro não é um metal de toda a gente. É o metal dos burgueses e dos reis, aquele que, com um pequeno volume, com pouco peso, [apresenta] vantagens consideráveis num tempo em que os transportes são tão difíceis, em que o transporte de Paris para Roma de uma grande soma de dinheiro requer toda uma caravana e toda uma caravana com forte escolta; o ouro é o metal que chega muito depressa e muito facilmente a regiões distantes; é o metal fabuloso com que se sonha, mas também o metal muito real de um grande comércio internacional, do comércio que compensa e que faz a riqueza...

Ora, para começar o filme pelo princípio, o filme do ouro e dos seus movimentos desde a queda do Império Romano, eis a Europa bárbara dos séculos V e VI. É herdeira do sistema monetário romano. Como poderia não o ser? Os Bárbaros não têm moeda sua, não têm tipos monetários, nem tradições, nem necessidades monetárias, ou quase não têm quando invadem o Império Romano. Portanto, os seus soberanos, uma vez chegados, continuam a cunhar moedas de ouro maciço à romana, soldos de ouro, so-161LUCIEN FEBVRE

lidi aurei, cada uma com 4 gramas 48 de ouro fino (recordo que o antigo luís de que serviam os homens do meu tempo antes de 1914 pesava 6 gramas 45, mais que o soldo, e que a antiga moeda de 10 francos desse tempo fabuloso pesava 3 gramas 225, menos que o soldo). Quanto a avaliar o poder dessa moeda, é impossível... Mas era uma grande soma; [era] representativa de uma soma suficientemente avultada para que se cunhassem também terços do soldo.

E agora eis o Império Carolíngio. Eis o século IX. Nesta Europa bárbara que, da herança romana, retém a moeda de ouro, o soldo de ouro, eis que [sobrevem] um cisma...

De um lado, Bizâncio mantém-se fiel ao ouro. A moeda de ouro bizantina, o hipérpero, continua a ser o soldo de ouro, um pouco desbastado, mas muito pouco. Ainda em 1200 o besante de ouro (isto é, o hipérpero designado pela sua origem nacional e geográfica), o besante de ouro pesa três quartos do soldo constantiniano em peso de metal fino. E é uma vitória ele não ter diminuído, degenerado mais. As monarquias árabes (mediterrânicas ou orientais) mantêm igualmente a moeda de ouro. O diw, o mancus que circulam no Levante, no Magrebe, no sul de Itália, na Sicília, em Espanha é sempre o soldo de ouro6.

Por outro lado, nesta época o denário de prata basta às necessidades das populações rurais. A prata circula sozinha. E durante séculos é ela, a prata, e não o ouro que será o símbolo monetário por excelência. O homem simplesmente rico, historicamente falando, não tem ouro. O homem rico tem prata; o ouro, é o banqueiro. O ouro é o príncipe, o tesouro do príncipe.

E o cisma? Porquê este cisma? Um desaparecimento? Porquê este desaparecimento? Vejamos o que se passa no Mediterrâneo.

Em 634 iniciou-se um acontecimento de importância capital para os destinos do mundo, um acontecimento fulminante. O Mediterrâneo es-162A EUROPAtava tranquilo. Nada permitia pressagiar o fim desta comunidade de civilização que o Império Romano tinha estabelecido e organizado, das colunas de Hércules à Ásia Menor, das costas do Magrebe às costas de Itália, da Provença e de Espanha. Para o Mediterrâneo gravitava o

comércio. Em redor do Mediterrâneo viviam, pensavam, escreviam os últimos representantes da cultura antiga, um Boécio, um Cassiodoro, enquanto com um Césaire de Aries e um Gregório Magno nascia uma nova literatura cristã. De Lérins, do Monte Cassino partiam os missionários que iam converter a Inglaterra e, no sul de Espanha, Isidoro de Sevilha procedia pacientemente ao inventário das riquezas que o mundo antigo legava ao mundo cristão... ----•••

634 e bruscamente eis que uma gente de nada, uma gente da qual Roma nunca se tinha permitido desconfiar verdadeiramente, eis que uns beduínos nómadas da Arábia, saqueadores, destroçadores de caravanas, mas sem verdadeira organização política e militar, eis que os Árabes de repente investem como conquistadores sobre as terras mediterrânicas, as da Europa e as da Ásia, em 634, dois anos após a morte do homem que lhes dera uma nova religião, feita para as suas necessidades.

634, e o impulso inicial vai levar, em alguns anos, os conquistadores árabes até ao extremo do mundo mediterrânico.

634, e os sucessos destes Árabes só podem comparar-se aos fulminantes sucessos de um Átila, de um Gengis Khan, de um Tamerlão, pavores históricos do nosso Ocidente...

com o choque, o Império Romano desmorona-se, muitos muros de cada vez: em 635 os Árabes estão em Damasco; em 637, os Árabes estão em Jerusalém; em 641, os Árabes estão em Alexandria. E no entanto são * poucos, relativamente poucos, não mais até do que os Germanos das grandes invasões. Mas como diferem desses Germanos! Os Germanos são i muito rapidamente absorvidos pelas populações de cultura superior que os dominam. Os Árabes, esses, resistem à absorção. Exaltados pela sua fé religiosa, mostram-se inassimiláveis, consentem em assimilar e assimilam163LUCIENFEBVREbem e depressa as ciências e as artes dos seus inimigos vencidos. Ciências e artes que cultivam em honra de Alá, mas Alá é o seu bem. Conservam-no. São essencialmente servidores seus. E por isso é uma ferida que se abre no tecido contínuo do maré nostrum, uma quebra, se preferirem. Ainda está lá.

A partir da segunda metade do século VII há embarcações árabes no Mediterrâneo. Tomam Chipre e depois Rodes. Entretanto, os exércitos insinuam-se ao longo das costas. Em 681, num avanço formidável, bandos de árabes percorrem todo o Magrebe, chegam até às costas do Atlântico. Repelidos, recuam. Kairuan passa de mão em mão.

Finalmente, em 698, Cartago é deles, Cartago que se torna Túnis e cujo porto, Goulette, passa a ser uma grande base árabe no Mediterrâneo. Retomando a sua marcha para leste, triunfam sobre os Berberes que durante muito tempo resistiram obstinadamente. Em 711 passam o estreito de Gibraltar. Em 713, ocupam Toledo. Em 720, passam os Pirinéus, apoderam-se de Narbonne, de Toulouse, de Carcassonne. Em 725, numa incursão fulminante, vão destruir Autun. E se, em 732, em Poitiers, o emir Abd-er-Rhaman é detido por Carlos Martel, este revés não os impede de ocupar a Provença, de se apoderarem, em 737, de Avignon, de começarem, em 720, expedições à Sicília e, após uma interrupção de cerca de um século devida a problemas e dificuldades internas em África, de ocuparem Palermo, em 831, Messina, em 843, Siracusa, em 859.

Pois bem, não procurem mais! Porque é que, no século IX, o Ocidente deixa de cunhar ouro? Porque o Islão rompeu a unidade mediterrânica, porque o Islão fechou o Mediterrâneo, para empregar uma expressão cujo sentido já defini.

«* Não pensem que o Islão fez cessar de uma assentada a actividade económica oriental. [Seria] um erro grave. As especiarias não deixaram de ser importadas. O papiro não deixou de ser fabricado. Os cristãos pagaram impostos. Para além disso, não eram molestados. Somente, estes cristãos164A EUROPAdo Oriente, querem comerciar com os infiéis, com os inimigos dos Árabes? Não e não. Em guerra, os súbditos de um dos dois Estados beligerantes não são autorizados a traficar com o outro Estado. Abrem-se novas vias comerciais. Ligam o Cáspio ao Báltico pelo Volga e não são frequentadas apenas por Orientais; os Escandinavos (os Normandos) dão por elas. Os seus mercadores frequentam as margens do Mar Negro. E muitas moedas orientais, nas ilhas do Báltico, em Gotland e outras, atestam a importância da nova corrente.

Mesmo que se diminua o alcance deste grande facto, ele subsiste, na sua massa. Os Árabes fecharam o Mediterrâneo. E foi por isso que o Ocidente renunciou a cunhar moedas de ouro: já não tinha emprego para elas7.165166

Lição XII

A Europa e a recuperação económica: o ouro

Recordam-se de onde tínhamos chegado na nossa pesquisa. Tínhamos visto ruir este Império Romano que nos surgira como a última data destas formações políticas e culturais que tiveram cedo e sucessivamente o Mediterrâneo, todo o Mediterrâneo ou apenas uma parte do Mediterrâneo, a parte oriental, por centro. E quando falo de centro, não se trata de um centro geométrico. Trata-se de um centro vital, de um coração, se preferirem, a partir do qual o sangue e a vida circulam por toda a parte no mundo que rodeia o mar nutriente, o mar quente que regulariza os climas de todas as zonas ribeirinhas, o mar permeável,TToi/T09, para lhe dar o seu nome grego, que veicula de margem a margem, de Oriente para Ocidente, de norte para sul, os produtos, os inventos, as ideias, as religiões, as filosofias.

Tínhamos pois visto ruir a última em data destas formações que não são a Europa, que não podem ser chamadas europeias, uma vez que têm ao mesmo tempo substância a mais e a menos para assim serem chamadas; amais, porque transbordam, a leste, para paragens a que chamamos asiáticas e a sul para regiões africanas; a menos, uma vez que não cobrem, a norte, territórios imensos que hoje desempenham na Europa, na nossa Europa, um papel imenso, um papel de facto, um papel de desejo também,167LUCIENFEBVREuma vez que acabamos de ver um destes países propor-se ao mundo como centro e como cabeça de uma formação económico-política considerável que se chamava Europa e cujo domínio possuiu.

A Europa, na nossa linguagem corrente, é uma formação que nada tem a ver com estas partes da Ásia, estas partes da África que, no Império Romano, figuram exactamente ao mesmo título que a Grécia ou a Espanha, ou a Gália. Mas a Europa, na nossa linguagem, é também uma formação política, económica e cultural à qual são essenciais as regiões nórdicas que o Império Romano ignorava.

A Europa é uma formação política, económica e cultural que já não tem por centro um mar, o seu mar, maré nostrum, o Mediterrâneo, mas que tem duas frentes de mar, duas fachadas para o mar, ou

melhor, duas fachadas para dois sistemas marinhos singularmente diferentes um do outro, o sistema mediterrânico de um lado, a que a abertura do Suez deu um valor novo, o sistema oceânico do outro, com todas as suas dependências, todos os mares tributários do oceano Atlântico, por exemplo, o Mar do Norte e o Báltico; o sistema oceânico a que a descoberta da América, ou melhor, o povoamento da América por brancos vindos dos velhos países da Europa deu, igualmente, um valor incomparável, um valor que ninguém suspeitava que este oceano viesse a adquirir no tempo em que dava simplesmente lugar a algumas trocas entre as ilhas britânicas e o continente ou a algumas navegações aventurosas de marinheiros sulistas, de marinheiros mediterrânicos, para terras nórdicas ricas em produtos apreciados porque raros.

Portanto, o Império Romano não era a Europa. Mas onde estava a Europa? Avançámos nos séculos e detivemo-nos no Império Carolíngio. Seria o Império Romano renascido? Por certo que não. O Império Carolíngio está separado do Mediterrâneo. O Império Carolíngio é essencialmente fundiário. Mas não é essa a sua característica essencial. O Império Carolíngio é nórdico. Tem o seu coração, o seu centro, a sua capital no norte,16835 A EUROPAem terras bárbaras ou quase. Estende-se para além do Reno, esse limite de Roma, por terra bárbara e pagã. E os territórios que traz consigo, os territórios nórdicos, integra-os na sua formação, com velhas terras impregnadas de civilização mediterrânica. Integra-os com velhas terras que, essas, tinham feito parte do Império Romano e estende sobre elas toda uma dominação, dominação precária, claro, que depressa se esvai, mas o pouco tempo que ela dura basta. As terras que Carlos Magno reuniu sob o seu ceptro de imperador criado pelo papa, essas terras jamais esquecerão este episódio da sua história nem o facto de terem vivido juntas sob um mesmo senhor, dentro de um mesmo império.

Carlos Magno não fez tudo para que estas terras tivessem este sentimento. Foi preciso também o cristianismo, uma fé comum. Mas é um facto adquirido. Desde então, nenhuma grande formação política, económica e cultural será viável no Ocidente sem reunir aos territórios mediterrânicos em que Roma apoiava o seu domínio os territórios nórdicos que ela não tinha ousado, ou não tinha podido anexar ao seu império e que, aproveitando a sua fraqueza, tinham destruído este império, albergando-se nele...

Mas é um facto: o Império Carolíngio não dura. Cai muito depressa. E os seus destroços passam por desgraças singulares. Porque a vida vinha-lhe sobretudo do Mediterrâneo. E eis que o Mediterrâneo se fecha. Eis que uns conquistadores novos, nómadas da Ásia, portadores de uma nova fé religiosa, avançam sobre o mundo mediterrânico. Eis que se insinuam ao longo das costas da Ásia Menor, ao longo das costas do Egipto e da Tripolitânia, ao longo das costas da África Menor. Eis que passam o estreito de Gibraltar, que ocupam toda a Espanha, que passam os Pirinéus, que refluem para a Gália e se aventuram longe, até Poitiers longe, até Autun, em terras ricas que devastam. Eis que as terras que Carlos Magno outrora havia reunido no seu império e que levavam vidas separadas, eis que estas terras, privadas dos contributos mediterrânicos, estiolam e periclitam. Eis que a Europa, se a Europa é o Império Carolíngio, eis que a Eu-169LUCIENFEBVREropa, na medida em que o Império Carolíngio é Europa, eis que a Europa toca no fundo do abismo e deixa de estar unida, já não se sente unida, a não ser pela comunidade das suas crenças religiosas ou, mais precisamente ainda, pela armadura de bispados e arcebispados que delas informam as diversas províncias.

Podemos dizer cristandade. Ninguém poderá dizer comunidade, E quanto a reportarmo-nos a uma noção de império, seja ao Império Carolíngio, seja ao Santo Império Romano Germânico que é um dos seus derivados, a tentativa seria vã. Há que aguardar. O quê? Grandes acontecimentos políticos? O nascimento de uma grande formação, grande, forte e duradoura que reunisse estes territórios esparsos? Seria uma longa espera! São acontecimentos económicos, a recuperação da prosperidade e da actividade que revitaliza as terras ocidentais. E, precisamente, foi esta recuperação da prosperidade e da actividade económica que procurei, da última vez, medir observando as flutuações desse incomparável instrumento de medida, a moeda, sobretudo a moeda de ouro.

Eis onde chegámos. Não esbocei, não procurei esboçar uma história da moeda de ouro, uma história muito sumária, muito grosseira, muito esquemática da moeda de ouro no Ocidente, por si só. Tentei captar, com a ajuda de um instrumento de medida apropriado, as vicissitudes dos territórios europeus entre o fim do Império Romano e o auge da Idade Média, E este instrumento de medida, pensei encontrá-lo na moeda, mais precisamente na moeda de ouro, a grande moeda, a moeda dos reis e dos banqueiros, a moeda do grande comércio internacional e não a pequena moeda corrente dos homens que, como sempre se diz, têm dinheiro, e não ouro.

E então o filme decorre assim: nos séculos V-VI, há sempre ouro, ouro cunhado no Ocidente, no Mediterrâneo, num Mediterrâneo, num mundo mediterrânico que, é certo, recebeu golpes duros da parte dos Bárbaros mas que, no conjunto, continua a ser o maré nostrum, o mar interior, o17035 A EUROPAgrande centro de todas as trocas entre o este e o oeste, entre Gibraltar e a Ásia Menor, como entre o norte e o sul, digamos entre Veneza, Génova, Marselha, Barcelona e Cartago que ainda é Cartago e não Túnis.

Nos séculos IX-X, já não há ouro na bacia ocidental do Mediterrâneo ou, pelo menos, já não há circulação activa e fresca de moedas de ouro cunhadas no Ocidente (porque houve sempre ouro árabe e ouro bizantino). Já não há ouro num Mediterrâneo que, desde 632, começou a ser dividido em dois pelos Árabes, dilacerado e, por assim dizer, partido em dois bocados irredutíveis, um, o islâmico, o outro, o cristão. Ora, do ponto de vista da Europa, que temos aqui?

[Primeiramente], esta fractura começa por ser a certidão de óbito, para três séculos, do Mediterrâneo como centro de trocas comum de populações ocidentais, das populações ocidentais que, à data, um império fundiário, orientado tanto para nordeste como para o Mediterrâneo, agrupa parcialmente. )

[Em segundo lugar], a seguir, esta fractura é, do mesmo passo, a certidão de nascimento da primeira das formações que merecem, afinal, o nome de europeias, uma vez que nos elementos mediterrânicos integra elementos nórdicos que desde então vão desempenhar sempre o seu papel na vida do mundo ocidental.

[Em terceiro lugar], ainda, esta fractura é o sinal de uma grande debilidade, de uma grande precaridade desta formação que não tem acesso fácil ao cerne de toda a vida, de toda a riqueza, de toda a cultura, que se vê separada das fontes vivas de civilização que são as terras do Oriente; que, com as terras de Oriente, continua a comunicar, sem dúvida, mas por intermédio dos Nórdicos, detentores da via mar Báltico-mar Negro pelo Volga, bem mais que pela via mediterrânica1. E isso é o sinal da derrota do mundo cristianizado de Ocidente pelos Árabes islamizados. É o sinal da inferioridade confessa, reconhecida, certa do Ocidente relativamente ao Oriente.

Insistamos um pouco nestes factos em si consideráveis. Porque é que171LUCIEN FEBVRE

o Ocidente renunciou a cunhar ouro no século IX? Por princípio? Por sistema? Por conselho competente de uma dessas famosas comissões de especialistas que outrora víamos sentadas à cabeceira de todas as moedas enfermas, elas e os seus remédios que rapidamente matavam os doentes? Ora! Por necessidade.

O Ocidente não produz ouro, ou produz pouco. É um grande paradoxo histórico. A região que criou tantas riquezas não tem dentro de si, ao seu alcance, ao seu dispor, o sinal da riqueza. Oh, claro que há outros filões! Mas estes filões, estas preciosas bolsas de ouro disseminadas aqui e além pelo solo da Europa são jazidas que depressa se esgotam e esvaziam. E o grande mal da Europa, economicamente, foi sempre o mesmo, incurável: auri sacra fames, fome, sede de ouro.

Sem dúvida, sem ouro, sabe o Ocidente passar bem, tem disso um longo hábito, refiro-me ao ouro amoedado. Porque há o outro ouro: o ouro dos ourives, o ouro das estátuas de ouro, dos vasos de ouro, das placas de ouro, de todos os objectos de ouro que compõem os tesouros, tesouros das igrejas, tesouros das cidades, tesouros dos príncipes, tesouros que são constituídos para serem amoedados em caso de necessidade. Eis Godofredo de Bulhão que parte para a primeira cruzada. Precisa de fundos. Por isso vende a prazo o seu alódio de Bulhão ao bispo de Liège, Otberto, pela soma de 300 marcos de prata e 3 marcos de ouro. Como se consegue reunir uma tal soma? O bispo começa por pôr a sua igreja a contribuir. Despoja-a, nomeadamente, das placas de ouro que cobrem o relicário de S. Lamberto. Depois, dá a volta às abadias da diocese. Manda recolher o ouro, as pedras preciosas, todos os ornamentos de valor. Inútil dizer que os monges resistem. Lobbes teve que ceder uma tábua de prata que tinha preservado de todas as cobiças. De Saint-Hubert, os emissários de Otberto tiram uma tábua de altar revestida a ouro, partem três cruzes de ouro e tiram delas as pedras preciosas. Eram operações correntes, nesse tempo. Tal era a utilidade dos tesouros nesse tempo.172A EUROPAPensemos que não há muito tempo, em 1905, De Forville [?] calculava que o stock de ouro mundial, uns 60 mil milhões em ouro arrancados pelos homens à terra desde que há homens na terra não representam sequer 1.000 metros cúbicos, isto é, caberiam todos numa torre quadrada de 10 metros de lado por 10 metros de altura . E este globo de metal amarelo pousado sobre o Arco de Triunfo mal aumentaria a sua massa. Pois no entanto foi ele que exerceu sobre os destinos de tantas gerações tão formidável influência. A ele se devem tantas guerras, invasões, ditaduras, tantas cobardias, traições, abjurações, crises...

Mas também, quantos progressos, que impulso dado à vida económica, até à vida intelectual por este bloco de metal, onde quer que tenha actuado... Ora, a torre de Forville é uma torre de 1905, partia de 60 mil milhões em ouro. Mas no século XV, antes da descoberta das minas da América, estava-se muito longe dessa conta! Se tomarmos por unidade de base a quantidade de metais que existia na Europa em 1492, o aumento que se produziu apenas no século XVI é da ordem do dobro. E o movimento prolonga-se ao mesmo ritmo durante uma parte do século XVII. Em 1492, era uma pequeníssima quantidade de ouro que compunha o stock mundial. Mas mesmo duplicada, o que era? Espantamo-nos com o número de grandes empreendimentos que marcam passo, no limiar dos tempos modernos. Espantamo-nos com estas guerras sempiternas que todos os anos recomeçam sem nunca terminarem. Espantamo-nos com estas aventuras sem futuro, de Carlos V que toma Argel, de Carlos V que toma Túnis, e depois mais nada... Mas por uma boa razão: [não tinham] ouro, não tinham com que sustentar a sua política ambiciosa. .->

O Ocidente não produz ouro. E em tempos de economia fechada, passa bem sem ele, ou quase. Mas assim que a sua economia irradia, precisa de ouro. E então? Tem três soluções.

[Primeiro], arranjá-lo, quer pela força, roubando aos outros o ouro que possuem, quer pelo engenho, descobrindo novas fontes de ouro e apode-173LUCIEN FEBVRErando-se delas, o que equivale à força. E se não encontrar essas fontes1 E fontes de ouro verdadeiramente novas, o Ocidente só as encontra no século XVI, o que é tarde...

[Em segundo lugar], o Ocidente pode também velar activamente pelo ouro que possui, conservar o seu stock, fazer todos os esforços para que ele não pereça. Mas é muito difícil: não apenas tendo em conta um factor não desprezível, a usura (o ouro é um metal mole), mas também um inimigo irredutível do ouro que se chama guerra. Porque em tempo de guerras, de agitação, de invasões, o ouro esconde-se. Escondem-no. E muitas vezes não se volta a encontrá-lo onde se escondeu. Por outro lado, em tempo de guerra o ouro pode ser tomado, levado pelo inimigo, para sua casa, muito longe e, uma vez que se trata de países europeus, para fora da Europa. Quanto ouro espanhol, quanto ouro aquitano foi tomado pelos Árabes? Quanto ouro gaulês, no sentido lato do termo, foi tomado pelos Normandos? E estes Normandos serviram-se sem dúvida dele para os tráficos com o Oriente que interessavam a Europa. E estes Normandos sem dúvida acabaram por se instalar na Europa, por se

fazer europeus. Sim, mas entretanto, os territórios da Europa não tinham piores inimigos do que eles... E por eles, corria o ouro.

[Em terceiro lugar], enfim, o Ocidente podia arranjar ouro estabelecendo com os países produtores de ouro ou possuidores de um stock de ouro importante uma corrente de trocas que se saldasse no fim por um lucro líquido, um lucro que lhe deixasse nas mãos um saldo apreciável...

Ora, precisamente, no século IX, isso é impensável. Porque seria necessário que o Ocidente comerciasse com o Oriente, com o Oriente rico em ouro e que sem dúvida alguma cederia uma parte desse ouro se o Ocidente lhe oferecesse produtos que desejasse ou necessitasse. Produtos? Produtos apreciados, produtos ricos, produtos capazes de se saldarem em ouro. Mas esses produtos, é sempre o Oriente que os oferece ao Ocidente no tempo em que estamos. O Ocidente apenas tem produtos naturais maciços, matérias-primas por grosso para exportar nos séculos IX, X, XI.174A EUROPADestes produtos, o Oriente não tem necessidade, nem desejo. Durante muito tempo, o Ocidente não tem produtos finos, produtos industriais, produtos manufacturados para oferecer ao Oriente, pelo contrário. Aliás, se os tivesse, esses produtos não passariam para o Oriente, uma vez que o Mediterrâneo, praticamente, está nas mãos dos Infiéis a partir do século IX; que mais nada passa, pelo menos sem grandes riscos e grandes perigos, e ninguém queria correr esses riscos por mercadorias pesadas cujo valor, comparado com o peso, é pequeno...

Entretanto, o Oriente continua a fabricar produtos de luxo, extremamente procurados pelos Ocidentais e que, veiculados pelos Árabes através da bacia mediterrânica que é sua, afluem ao Ocidente. E os Ocidentais, encantados, compram-nos, a peso de ouro. E o ouro do Ocidente sai do Ocidente para ir para o Oriente... *

Até ao dia em que... até ao dia em que, no século XIII, vemos a balança comercial do Ocidente recuperar; até ao dia em que, no século XIII, vemos renascer o tráfico do Ocidente com o Oriente; até ao dia em que, no século XIII, por trás das Cruzadas, a seguir às Cruzadas, vemos o trigo, a madeira, os panos, sobretudo o pano fino, manufacturados no Ocidente, tomarem o caminho das escalas do Levante.

Então o ouro do Ocidente já não sai sem contrapartida. Em breve o ouro do Oriente volta até ao Ocidente. Os mercadores de Génova, de Florença, de Pisa, do sul de Itália e da Sicília trazem-no consigo de cada uma das suas expedições ao Oriente. Restabelece-se assim no Ocidente

uma circulação do ouro. E em breve o Ocidente recomeça a cunhar ouro.

Em 1227, Marselha, comuna autónoma, consegue a outorga, pelo vigário imperial, do direito de cunhar ouro. Mas já Génova recomeçou a cunhas genovini, moedas de ouro que recordam os soldos de ouro romano, Génova onde, em 1147, vemos que o pagamento de uma soma de 100 libras prescrito pelo arcebispo e pelos cônsules devia ter lugar: um quarto em pólvora, um quarto em pau-brasil, um quarto em cascas que servem175LUCIEN FEBVREpara o fabrico de tinta ou de corantes diversos, um quarto apenas em moeda. É um acto que nada tem de único. Ainda durante muito tempo a pólvora continua a desempenhar um papel quase monetário nas transacções, tal como o pau-brasil, o incenso, o anil, o alúmen, segundo o seu valor do momento na praça, valor conhecido para mercadorias tão apreciadas, Facto aliás curioso, não foi em Itália, foi em Montpellier que Génova procurou o modelo, o tipo da sua moeda quando, em 1138, recebeu do rei dos Romanos, Conrado III, a autorização de cunhar moeda, em Montpellier, ou melhor, em Melgueil, pequena cidade dos arredores de Montpellier cuja moeda é conhecida e apreciada nas regiões cristãs e muçulmanas com que os Genoveses mais traficam. De resto, estas moedas eram de prata, e de prata de baixo teor, representando o cobre dois terços do total. Génova só muito mais tarde cunhou moedas de ouro, moedas que, aliás, não se difundem para fora de Itália.

O advento de uma grande moeda de ouro internacional do Ocidente, de uma grande moeda de ouro cristã é o aparecimento do florim, é o aparecimento do ducado que o atestam. O florim, fiorino d’oro, a moeda fiorentina, a moeda de ouro puro que no reverso leva a flor de lis florentina mas no anverso leva desde o início o patrono cristão da cidade, S. João Baptista de pé com o seu manto de pêlo de camelo, o florim data de 1253. Pesa 3 gramas 536. Rapidamente se estende por todo o Mediterrâneo. E depois, no século XIV, graças às importações comerciais da cidade do lis, graças à irradiação e à extensão da sua indústria têxtil sem rival, graças também à excelência do seu teor, é aceite por toda a parte. Circula por toda a parte. Imitam-no por toda a parte.

É ele que Milão imita com o seu denário com a imagem de St°. Ambrósio. É ele que Veneza imita quando, em 1284, trinta anos mais tarde, lança o seu ducado, o seu ducado ou o seu sequim, zecchino, do nome da Zecca, a casa das Moedas de Veneza. No anverso: S. Marcos, com o nome do doge Giovanni Dandolo, então no cargo; no reverso:

Cristo, de pé, estandarte na mão, benzendo com a dextra; a toda a volta: Sií tibi, Christe,176A EUROPAdatus quem tu regis iste ducatus, recebe como dom, Cristo, este ducado que reges; ducatus, a última palavra da legenda, transformado em ducato, palavra que o povo retém, e a nova moeda foi o ducado pela mesma razão que as moedas de ouro de João II, em França, João II, rex Francorum, foram o franco.

Naturalmente, não vou continuar esta história. Que significa ela para nós, historiadores da Europa? Significa que o Ocidente começa a recuperar força e vigor; que, se quisermos empregar esta palavra, a Europa começa a sair dos limbos; que ela se afirma no domínio económico; uma Europa que não tem unidade política, é certo; uma Europa cuja unidade vem toda da sua fé, da sua religião, cujos sinais, os símbolos ela apresenta ao estrangeiro, ao infiel, nas faces brilhantes das suas moedas de ouro, Cristo benzendo o ducado, S. Marcos de Veneza, S. João Baptista de Florença, St°. Ambrósio de Milão; uma Europa que é cristandade e não chama Europa a si própria. Mas faz melhor do que chamar-se: trabalha, produz, cria, exporta. E portanto, irradia. É suficientemente forte para que o seu peso, doravante, se faça sentir no domínio das trocas. Então retomemos agora as nossas fórmulas passadas. A Europa nasceu quando o Império Romano deixou de existir? Não. É uma boutade. A Europa nasceu quando o Império Carolíngio lhe deu a sua primeira forma? Se se quiser, mas trata-se apenas de uma forma. E na realidade, se o Império Carolíngio confirma bem os primeiros resultados de um trabalho de fusão que prosseguiu através dos séculos VI, VII e VIII entre os elementos bárbaros instalados na Europa e com uma população da Europa submetida ao jugo bárbaro, o que é importante é o trabalho de fusão que prossegue com um sucesso crescente e que resulta em que uma população superabundante povoa os vazios de uma Europa ainda cheia de lacunas; uma população superactiva cria nesta Europa rural verdadeiros centros urbanos; uma população aventureira arrisca-se em todas as grandes rotas comerciais do mundo. E tudo isso é a Europa. É o início de um desenvolvimento europeu que é primeiro e acima de tudo um surto económico que se afirma bem melhor nas feiras177LUCIEN FEBVREde Champagne do que na corte dos imperadores e nas casas dos Lombardos do que nos castelos dos condes.

Tudo isso é a Europa que só podia tomar forma, vida, realidade porquanto não era nada, era precisamente uma forma, uma

armadura política sem substância económica verdadeira, uma maneira de falar e não uma maneira de existir...

E é por isso que, se procurarmos, na literatura histórica francesa, o primeiro grande autor que se lê realmente bem, que não seja simplesmente caça de erudito e que fale de Europa, encontraremos quem? Commynes, Commynes para quem a noção de Europa é de uso corrente, familiar e moderno.

Abram o livro V no capítulo VIII (Calmette, tomo II, página 156):

«Je cuyde avoir véu et congneii la meilleure part de Europe» [Creio ter visto e conhecido a melhor parte da Europa]

: Abram no livro VI, capítulo XI (Calmette, tomo I, página 314): trata-se de Luís XI e da sua autoridade. Parecia, diz Commynes, que a Europa toda foi feita só para lhe prestar obediência4. Abram sobretudo no livro VI, essa grande exposição filosófica do estado político do mundo, de um mundo inteiramente dividido em si próprio...5 Porquê estas divisões? Como são possíveis? Mas é Deus que as quer, Deus, que não criou neste mundo nem homem nem animal sem que tenha feito em alguma coisa o seu contrário, para o manter na humildade e no temor. Por isso no reino de França Deus criou, para lhe servir de antagonista e de opposite, os Ingleses; aos Ingleses, opôs os Escoceses; aos Espanhóis, os Portugueses. Em Itália, é a mesma coisa: há os príncipes, a maior parte dos quais possuem as suas terras sem títulos, se não lhes for dado do céu («et de cela ne povons que deviner... 6»). [e isso só podemos adivinhar]. Contra eles, para os manter atentos, há as cidades com município, as cidades mercantes e burguesas, Ve-178A EUROPAneza, Florença, Génova... Mas também na Alemanha é o mesmo espectáculo: é a Casa de Áustria contra Clèves, é Clèves contra Gueldre, Gueldre contra Juliers, Hanseatas contra o rei da Dinamarca... França, Inglaterra, Escócia, Alemanha, Áustria e mundo da Hansa, Espanha, Portugal, Itália, Commynes detém-se e conclui:

«Je n’ai parle que de Europe, carje ne suys point informe dês deux autres pars, Azie et Affrique; mais bien orrons-nous dire que’Hz ont guerres et divisions comme nous, et encore plus mecaniquement.»1 [Falei apenas da Europa porque não estou nada informado sobre as outras duas partes, Ásia e África, mas ousaremos dizer que eles têm guerras e divisões como nós e ainda mais mecanicamente.]

Porque afinal estas divisões são necessárias e todo o sistema é dirigido por Deus. Pois não é preciso manter com rédea curta «la bestialité de plusiers princes» [a bestialidade de vários príncipes] e também «la mauvaistié d’autres que ont sens assei et expérience, mais Hz en veulent mal user... »8 [a maldade de outros que têm bastante senso e experiência, mas querem usá-los mal...]?

«Falei apenas da Europa porque não estou nada informado sobre as outras duas partes, Ásia e África», esta frase é, também ela, uma espécie de certidão de nascimento, [o] da Europa, de uma Europa geográfica, se se quiser, mas será realmente a palavra? De uma Europa, sociedade de nações, prefiro dizer de nações bem individualizadas, mas entre as quais existe um vínculo, sólido e conhecido. Vínculo religioso? Vínculo cristão, sem dúvida. E acabam de ver como o pensamento deste audacioso conmynes está ainda imerso em cristianismo. Mas há outra coisa além de cristianismo, há o que o entusiasma, que o irá entusiasmar cada vez mais, há já, em Commynes, esta grande força moderna, a política.179180

Lição XIII

O texto de Commynes. O Ocidente deixa de se sentir inferior ao Oriente

*[No fim da passada lição [fizemos a] pergunta:]* Em quem, em que autor conhecido, em que autor com nome e obra encontramos menção, pela primeira vez, da Europa, da nossa Europa? Não de uma Europa como rótulo geográfico, nome a colar sobre um monte de países cuja única característica comum seja o estarem situados geograficamente no interior de um quadro arbitrariamente definido sobre o qual os geógrafos antigos colaram este nome geográfico, depois mitológico, Europa, mas de uma Europa considerada enquanto solidariedade de países, de países nórdicos e mediterrânicos, de países chamados Itália, Espanha, mas também Países Baixos, Alemanha, Boémia e mesmo Polónia, e mesmo Hungria e, mais além, Inglaterra, Escócia, Irlanda e no centro, como coração, como elemento de ligação, o traço de união vivo indispensável, a França, esta França que, em toda a formação europeia, é, logo pela sua situação, a sua situação geográfica, é, quer queira quer não, a gosto ou a contragosto, a França, esta França que é verdadeiramente central e que une, esta França sem a qual nenhuma Europa é viável porque, se ela se furta, fica, no lugar , 1)0 coração, um buraco e nada mais.181

LUCIEN FEBVREEm quem, em que autor conhecido encontramos pela primeira vez a menção de uma Europa que ateste esta solidariedade consciente dos territórios do Ocidente que vemos despontar a seguir às invasões, que vemos iniciar-se com Carlos Magno, mas que de maneira nenhuma desaparece com ele, que anima o movimento das cruzadas e que é mantida ao mesmo tempo por grandes instituições laicas e religiosas, como os concílios ecuménicos que na realidade são concílios ocidentais, como as duas grandes potências universais que na realidade são potências europeias, o papado e o Império, e também por toda uma rede do que podemos chamar instituições técnicas e materiais; a rede de vias e de comunicações viárias, a ; rede das comunicações marítimas e em particular as redes de comunicação do Mediterrâneo com o Atlântico, a rede das feiras internacionais onde os mercadores do Ocidente se encontram entre si ou com os mercadores (pelo menos com as mercadorias) do Oriente, quer se trate das feiras de Champagne, na nossa França, este coração, esta encruzilhada, este traço de união necessário, ou das feiras de Novgorod, lá longe, no extremo Norte. ]

Em quem, em que autor conhecido... [encontramos] a Europa como uma realidade viva? Como uma solidariedade, como uma sociedade de nações europeias?

Respondo: em Commynes, o inteligente Commynes que se gaba «de ter visto e conhecido a melhor parte da Europa» (livro V, capítulo VIII), como se ter visto e conhecido a melhor parte da Europa fosse qualquer coisa de que se pudesse gabar, ou melhor, qualquer coisa que acrescentasse valor a um homem, algo que desse a um homem mais peso, mais crédito, algo que acrescesse a sua inteligência e a sua autoridade, a sua’ capacidade, não sendo este homem no entanto nem um mercador, nem um aventureiro, mas um político, coisa nova, sobretudo nova para um laico; um político, coisa nova para um homem do Norte, mais nova ainda para um homem deste Norte do que para um italiano; um político e que sabe que, para ser um bompolítico, para fazer boa política, é preciso ter visto182A EUROPAe conhecido «a melhor parte da Europa», ter visto e conhecido o xadrez europeu... *

É uma grande novidade, sim, e que permite a Commynes passar em revista as potências europeias com competência e autoridade, as potências europeias que estão sempre em luta umas com as outras e que devem portanto conhecer, na sua textura material como na sua textura espiritual, os homens chamados a bater a massa, a massa humana difícil de trabalhar... Note-se que Commynes, o inteligente Commynes, no mesmo momento em que nos diz, em que diz a si

próprio: posso falar, posso raciocinar, posso agir no quadro deste mundo europeu porque o conheço, conheço estas potências europeias como se deve conhecê-las, como pessoas reais, substanciais, animadas e vivas, este Commynes, este inteligente Commynes tem um desgosto. Conhece a Europa, mas só a ela conhece. E contudo, I para fazer boa política europeia, para trabalhar como convém a massa europeia, não seria preciso mais outra coisa? O conhecimento do que rodeia o mundo europeu? Do que o rodeia de ameaças, mas também lhe fornece pontos de apoio substanciais e necessários? Ora [há em Commynes uma] segunda frase que se junta à primeira:

«Falei apenas», assim conclui ele a sua revista às potências, grandes potências europeias sempre em luta, «falei apenas da Europa porque não estou nada informado sobre as outras partes, Ásia e África»2.

Não estou nada informado: entenda-se de visu, por visão directa, por Investigação no local. Que discurso novo, que largueza de espírito verdadeiramente moderna nesta frase! E se assim ouso dizer, que bela certidão de nascimento para a Europa, a nossa Europa! Esta certidão de nascimento ” agrada-nos, a nós, historiadores, que tenha sido redigida pelo primeiro dos nossos historiadores modernos, pelo historiador de Luís XI e do Temerário Commynes, e desta vez não temos que pressentir a existência obscura,183LUCIEN FEBVRErudimentar de uma Europa; Commynes, e desta vez estamos na presença, verdadeiramente, de uma Europa e de um Europeu, de um Europeu orgulhoso de o ser, de um Europeu que considera que ser europeu basta, basta-lhe; mais ainda, que ser europeu é uma superioridade que permite a um homem inteligente e culto desprezar tudo o que não é europeu, tratar de alto e de longe as partes da Ásia e da África, como ele diz. Porque é cristão? E porque o cristianismo é a verdadeira religião, a verdade de Deus? Ao passo que os homens da Ásia e os homens da África são infiéis ou pagãos, sectários de Maomé, isto é, do diabo? ’[

Sim, sem dúvida. Não vamos fazer de Commynes, porque é um homem moderno, um homem distanciado do cristianismo e da fé cristã. É preciso que de uma vez por todas se ponha fim a esse género de piadas, de piadas de mau gosto. Sim, Commynes é cristão. E Commynes considera que detém por essa via a verdade religiosa, que tem consigo o verdadeiro Deus. Mas o orgulho de Commynes em ser europeu, o sentimento que Commynes tem de ser europeu é o de fazer parte de uma grande comunidade que se

basta a si própria e que é, de todas as comunidades humanas, a mais invejável, a mais nobre, a mais civilizada, esse orgulho assenta noutra coisa. Este orgulho é um orgulho de Ocidental (Ocidente por oposição a Oriente). Este orgulho testemunha o quê? Um progresso decisivo alcançado pela Europa, pela Europa que se considera doravante superior à Ásia, a essa Ásia que durante tanto tempo esmagou a barbárie com o peso da sua superioridade, da sua força, da sua cultura e da sua expansão,

Contra a Ásia, mas também graças à Ásia, fez-se a Europa. Fez-se a si própria. Elaborou-se lentamente, nas profundezas onde os Bárbaros, associados a antigos súbditos do Império Romano, amalgamados uns com os outros por uma fé comum, por uma religião comum carregada de poderosos elementos de civilização oriental, deram origem a uma civilização que é fundamentalmente a nossa e que se afirmou como civilização ocidental contra a civilização oriental, a de Bizâncio bem184A EUROPAcomo a dos Árabes, enquanto houve Árabes, e a dos Turcos, quando estes turcos tomaram da mão dos árabes a tarefa que estes abandonaram e da qual se desviaram...

Ora quando é que se inverte a marcha? Quando é que o sentimento, primeiro de inferioridade, depois de penosa e difícil igualdade dos Ocidentais relativamente aos Orientais, quando é que esse sentimento dá lugar a um sentimento de superioridade dos Ocidentais, dos Europeus, a esse sentimento de superioridade que a partir de então nunca mais deixará de possuir os Ocidentais, os Europeus, a esse sentimento de superioridade que eles vão transportar consigo, por toda a parte consigo, e sempre, quando?

*[A esta pergunta [não podemos] responder com uma data fixa! compreende-se. Esta evolução não se fez num dia. Podemos porém determinar-lhe a época, com a ajuda, desta vez, de medições, de diversas medições, observando factos, pequenos e grandes. E os pequenos nem sempre são os menos expressivos. Eis um deles: todos têm presentes umas quantas miniaturas do século XV que representam, em traje da época, homens e mulheres de então, homens do tempo dos grandes duques da Borgonha, de João Sem Medo, de Filipe o bom, homens que parecem]* enguias irrequietas, com o seu gibão curto, apertado na cintura, e os calções colados como malha, colados e a terminar em sapatos revirados, os sapatos revirados que surgem por volta de 1340? E têm também presentes essas miniaturas que representam, um pouco mais tarde, vinte anos mais tarde, mulheres, as

mulheres, as nossas mulheres, as grandes damas do Ocidente, as que seguem a moda, com as suas coifas bicudas, tantas vezes denunciadas como diabólicas pelos pregadores, pelos atrevidos monges pregadores desse tempo, as coifas bicudas que acabam por dar o hennin e que acompanham roupas femininas com compridas mangas fendidas, a arrastar pelo chão, e que dão a Isabel da Baviera e às suas contemporâneas um aspecto tão característico...185LUCIEN FEBVRELembram-se das páginas de Michelet, tão evocativas, sobre estas modas femininas do século XIV que termina e do século XV no seu início, de Michelet falar, no princípio do seu livro VII do seu tomo [IV], das féstas de Carlos VI na abadia de Saint-Denis, a Saint-Denis do grave Suger, do devoto Luís VII, as festas e, como ele diz: «os monstruosos costumes deste tempo», os «imorais e fantásticos ornamentos», os «homens-mulheres graciosamente ataviados, arrastando molemente vestidos de doze braças; outros moldam-se nas suas jaquetas da Boémia, com as meias coladas, mas as mangas a flutuar até ao chão»3,

e acima desta multidão agitada e colorida, a mulher, a mulher «bela, sorridente e gorda» desta sensual época, a mulher, as mulheres, escreve o grande visionário:

«Sobretudo elas, elas faziam tremer: o seio nu, a cabeça erguida, passeavam acima da cabeça dos homens o seu gigantesco hennin alçado de cornos... ; julgar-se-ia reconhecer, na sua beleza terrível, a Besta descrita e prevista; recordava-se que o Diabo era frequentemente pintado como uma bela mulher cornuda... »4

E dos trajes Michelet, passando do aspecto pitoresco às ideias, acrescenta:

«Dir-se-ia que do sério mundo feudal e pontifício se tinha, certa manhã, desembestado a fantasia. Esta nova rainha da época vingava-se após a sua longa penitência. Era como um menino de escola que foge e faz o pior possível. A Idade Média, sua digna mãe, que tanto tempo a contivera, respeitava-a ela muito; mas, a pretexto de honra, vestia-a de tal maneira, que a pobre velha já não se reconhecia.»5186A EUROPAE para terminar, esta fórmula magnífica:

«Normalmente, não se sabe que a Idade Média, enquanto viveu, se esqueceu de si própria.»6

Pois bem... o que Michelet ignorava, pois bem, estas roupas diabólicas,, este vestuário masculino que surgiu por volta de 1340, as meias coladas, os gibões curtos, os sapatos revirados, o vestuário feminino que surgiu por volta de 1360, as coifas altas diabólicas, as compridas mangas fendidas, são roupas do Oriente, são modas do Oriente, importações orientais. Georges Bratianu mostrou-o antes da guerra, em artigos rigorosos e documentados. As calças coladas e estreitas, o caftã preso à cintura por um cinto,. são coisas do Oriente e muito antigas no Oriente7. Os sapatos revirados? São também coisas do Oriente que ainda sobrevivem na Grécia, como sabem; coisas do Oriente adoptadas pelo Ocidente, que se tornam moda no Ocidente, introduzidas no Ocidente pela Catalunha, que daí penetram em França, com a moda da barbicha e do bigode à espanhola... *

As coifas bicudas, o alto e diabólico hennin, a cota com colete de longas mangas fendidas até ao chão, não são modas do Oriente, mas do Extremo Oriente ... Vão ao museu Cernushi, aí as vereis representadas em barros funerários chineses do século VII ao século X. E depois, da China, estas modas entraram no Levante e em Chipre, a Chipre dos Lusignan, de onde passaram para o Ocidente...

Modas do Oriente e do Extremo Oriente, sim, mas são as últimas modas, as últimas em data das modas de vestuário que a Ásia fornecerá à Europa, impostas à Europa. Por volta de 1340, por volta de 1360... pela última vez, os homens do Ocidente, as mulheres do Ocidente reconhecem a superioridade do Oriente sob esta forma tão elucidativa, a moda, pela última vez.

E a marcha inverte-se. E pouco a pouco a época moderna vai ver a Eu-187LUCIEN FEBVREropa impor o seu traje, os seus usos, a sua delicadeza, as suas maneiras de ser ao Oriente, à Ásia e à África mediterrânica. Oh, será preciso tempo, muito tempo. A marcha não se inverte num dia. Mas enfim, procurem, procurem bem.

Terminada a moda dos hennins, tão característica, e que poderíamos julgar de origem europeia, terminada a moda dos hennins, e dos gibões curtos, e do casaco preso à cintura com um cinto, com as meias coladas por baixo e a ponta diabólica dos sapatos afilados, terminada esta moda, nada mais, mais nenhuma importação maciça de moda feita pelo Ocidente ao Oriente, não mais prestígio sofrido, inferioridade aceita, pelo contrário.

O hennin... E Commynes, cuja mãe usou o hennin. Sim a Europa nasceu no limiar, como vos disse, dos tempos modernos. E quando os nossos manuais enumeram tudo o que caracteriza precisamente estes tempos modernos, esquecem-se apenas de uma coisa que no entanto é capital, é de anotar o nascimento deste sentimento agora tão forte, o sentimento da superioridade europeia, este sentimento de superioridade e de orgulho que irá desde então acompanhar o Europeu em todas as suas andanças - sem nunca o abandonar -, esse sentimento de superioridade e de orgulho que, aliás, vai ser uma das nossas grandes forças morais, uma das forças morais que decuplicam as forças materiais...

* [Captemos um pouco mais de perto esta noção capital, esta noção fundamental da inversão das correntes, das correntes naturais. Não é um pequeno acontecimento, este acontecimento que insolentemente os nossos manuais desprezam, todos esses condensados, não do saber, mas dos preconceitos correntes de uma história pela rama.]*

Não é um pequeno acontecimento, esta ruptura de uma corrente que há tanto estava acostumada a correr no mesmo sentido, quero dizer, de Oriente para Ocidente... Porque, enfim..., muito cedo os países do Oriente clássico assumiram a tarefa - realizaram a tarefa - de civilizar os países do Ocidente mediterrânico. Mesmo a conquista romana nada alterou neste188A EUROPAaspecto, uma vez que Roma, depois de ter conquistado o Oriente, entrou para a sua escola: Graecia capta ferum victorium capit. E na realidade foi mesmo o Oriente que levou a melhor, politicamente, economicamente, espiritualmente, nos últimos séculos de Roma.

Ora esta superioridade do Oriente manteve-se depois de Justiniano, quer se trate da superioridade de Bizâncio ou da superioridade da Síria dos Omíadas, da Mesopotâmia e da Pérsia dos Abássidas, do Egipto dos Fatimidas. Manteve-se frente a um mundo cristão humilde e semi-bárbaro, grosseiro e fraco. *

No século X, qual era o peso da civilização ocidental perante esta civilização tão brilhante e tão rica que se expandia em Córdova? Perante esta civilização feita de contributos, contributos de Bizâncio e, para além de Bizâncio, da Grécia clássica, da Síria, da Pérsia, do próprio Egipto, do Egipto que envia os seus médicos e as suas dançarinas vestidas de vermelho para Andaluzia?

Ainda no século XI, a civilização andaluza dá testemunho da continuidade, da força, da fecundidade da grande corrente cultural que não pára de se derramar de este para oeste, de Oriente para Ocidente, e que penetra no Ocidente. Toda a poesia andaluza do século XI, com os seus temas favoritos, as sombras profundas e as fontes que brotam nos jardins, o encanto das rosas, a alegria de viver, o prazer das mulheres, toda esta poesia, não é ela de importação oriental, à parte o seu sotaque e a sua originalidade?

E Veneza? Não é toda a sua vida uma vida oriental, transportada para as bandas do Adriático? Não realizaram o mundo muçulmano e o mundo italiano uma espécie de acordo estranho, feérico, espontâneo, em que as forças góticas desposam sem custo as forças mouriscas?

E mesmo Florença e a Toscana: veja-se a tese de Soulier sobre a maneira como a Itália foi constantemente invadida por influências mistas de Oriente». ! E a aventura considerável, a temível aventura desta religião que de ma-189LUCIEN FEBVREneira nenhuma é uma deformação do cristianismo, uma heresia do cristianismo, mas verdadeiramente uma religião que se ergue, num mundo ocidental completamente invadido, saturado de influências orientais, frente ao cristianismo, e que o ameaça, e que representa para ele um perigo « que este cristianismo alertado abafa em sangue e chamas, o catarismo, esse catarismo que vem de Oriente para Ocidente, esse catarismo cuja traça seguimos de Oriente para Ocidente por todas as vias múltiplas que conduzem de Oriente para Ocidente, é uma aventura oriental, também ela, uma afirmação nova do sentido em que corre a civilização...

Retomemos o balanço feito pelos historiadores ao longo destes últimos anos, o balanço das aquisições feitas pelo Ocidente medieval durante o longo período da Idade Média, mas tudo o que é essencial vem de Oriente: de Oriente, e de um Oriente muito distante, o sistema decimal, uma vez que é de origem hindu; de Oriente, o estribo, que vem das

estepes da Ásia e que transforma radicalmente entre nós, ocidentais, toda a arte da guerra, que torna possíveis os cavaleiros cobertos de ferro, os pesados cavaleiros revestidos de pesadas carapaças de metal, armados com pesadas lanças com pontas de metal, cobertos por pesados escudos de metal... *[Tentem [uma palavra ilegível] tudo isso, tentem lançar isso a galope, tentem infligir a [uma palavra ilegível] choques violentos e terríveis sem estribo, pousados em pêlo sobre o dorso de um cavalo, e vereis o resultado... ]* Os arreios modernos, para que o comandante Lefebvre Dês Noettes chamou a atenção, os arreios modernos, as suas fontes, as suas origens são asiáticas, orientais e extremo-orientais, sabemo-lo agora*9. O papel de trapo vem da China. A imprensa, também, vem da China. *[O pessegueiro é chinês. A laranjeira também vem da Ásia. Não alongo mais a lista... ]*

Mesmo no que há de menos material, de mais pessoal, ao que parece, mesmo no domínio do pensamento, em Espanha, onde os encontros entre o Oriente e o Ocidente são tão frequentes e fecundos, em Espanha, não190A EUROPAobservamos nós, na sua origem, o ricochete da mística muçulmana sobre a mística cristã? Não observamos nós, em Espanha, a incidência da música muçulmana e da poesia muçulmana sobre a música, sobre a poesia los trovadores das nossas cortes provençais?

Abelardo e Alberto Magno, não se alimentaram eles de Alfarabi e de Avicena? Não foi a famosa questão dos universais discutida em Damasco um século antes de ser discutida em Paris, a questão dos universais que os Gregos tinham sido os primeiros a levantar, os Gregos, tão familiares aos pensadores do Oriente, aos pensadores árabes? Não foi pelos Árabes que Aristóteles foi conhecido no Ocidente? Não foi Ibn al-Rachid de Córdova, a quem chamamos Averróis, que transmitiu à Europa a suma aristotélica? Simplesmente o mesmo facto... *

Foi a ele, foi a Averróis que S. Tomás de Aquino foi buscar os materiais da sua súmula monumental, completando-os pela leitura do rabino de Córdoba, Moise ben Maimon (Maimónides). Mas, num outro domínio, a ilustre escola de Salerno fundada ou reorganizada por Robert Guiscard foi toda árabe. Mas na corte de Rogério II da Sicília foi um árabe, Edrisi, quem ensinou uma geografia mais exacta que a de Ptolomeu.

Numa palavra, o Ocidente, durante toda a Idade Média, não parou de seguir com um pé coxo, sem fôlego, os eruditos sarracenos, quer se trate de matemáticas, de álgebra, de trigonometria, de astronomia, de óptica ou de química, de farmácia, de medicina, de cirurgia. E isso dura. Há influências muçulmanas no fundo da filosofia de Raimundo Lúlio. Há influências muçulmanas no fundo do poema teológico de Dante. Durante séculos, o Ocidente foi à escola do Oriente, à escola dos Sarracenos, insisto, mais ainda que à escola dos Bizantinos *[dos Bizantinos cujo contributo, no entanto, não foi de desprezar. Pois não foi de Bizâncio que, no século XV, após a tomada de Constantinopla, vieram para o Ocidente os gregos fugitivos que, apesar de tudo, foram uma das nascentes do grande rio do Renascimento?]* De leste para oeste, de Oriente para Ocidente. Então, avaliam o drama191LUCIEN FEBVREque deve ter sido a inversão da marcha de uma tal corrente que há séculos transportava tantas riquezas! A tal ponto que, embora o mar, a liberdade de navegar para os cristãos, tenha sido reconquistada no século XII, sobretudo no século XIII, os progressos espirituais não acompanháramos progressos materiais, longe disso. Pelos barcos cristãos foram elementos orientais, primeiro, que afluíram ao Ocidente, com uma força, uma abundância irresistível. Nunca o Ocidente [tinha sido] tão fustigado de Oriente como nos séculos XIII, XIV e XV. E se forem a Gand, em peregrinação artística, ver ou rever o Cordeiro místico, a imortal obra-prima de Van Eyck, aí vereis, como cenário de fundo, uma prodigiosa paisagem oriental, com plantas do Oriente, palmeiras do Oriente, arquitectura e trajes do Oriente, um esplendor de sol nascente nesta grande obra-prima que é, também ela, a eclosão de um sol no céu da arte...

Entretanto, é pouco depois que se opera a grande revolução, a revolução desconhecida de que vos falo. É pouco depois que a marcha se inverte, ou melhor, começa a inverter-se. Não acreditamos numa inversão súbita, total, instantânea. Estaríamos a errar as contas. Vejam os Turcos, por exemplo.192

Lições XIV a XVII*Recorde-se: faltam estas lições; ver introdução, p. 12

193194

Lição XVIII

O século XVI e a Europa

! Eis-nos nos tempos «modernos». É, dizia, o momento desta história em que o nome Europa começa a revelar-se de uso corrente. E com efeito, abro o meu Du Bellay, o Discurso ao Rei sobre a trégua de 1555. O poeta evoca a paz que haverá, e diz:

«Cada com sua roupagem, caminhar lado a lado

A vossa França e a Espanha, com toda a sua tropa ’

E a maior parte das províncias da Europa... »

Abro o meu Ronsard, Odes, livro II, ode 28. o poeta mostra-nos Carlos V em Túnis: «Rodeado de grande tropa

Poder o faz orgulhoso, 4

Arrasta as forças da Europa

com braço maravilhoso...»2

Ou ainda, [nas] Primeiras poesias, «Antes da entrada do rei cristianíssimo em Paris”;195LUCIEN FEBVRE«Eis que vem da Europa toda a honra»3.

Não falo da invocação das Odes, livro I, ode 17:

«Touro, que na tua garupa , : ;

raptaste a bela Europa...»,

pois não se dirige à Europa-continente, mas à bela Europa que Júpiter l ama e que deu à luz Minos, Éaco e Radamante4. É uma evocação frequente tanto em Ronsard como noutros poetas do século XVI francês. Veja-se, por exemplo, Maurice Scève, evocando no seu Microcosme, livro II, página 235 da edição Guégan,

«Cabeça de Europa baixa, no regaço de Tétis

e pendente, deitada com seu querido Bétis»5

Mas Scève fala, noutro passo, no sentido moderno do termo, dos Apeninos, «braço direito da Europa», o que se refere a uma noção geográfica assaz singular da Europa...

Claro que poderíamos multiplicar as citações, citações de poetas alimentados a grego e a latim, multiplicá-las, mas não infinitamente. Ainda assim é preciso observar que Europa é, em muitos destes exemplos, talvez pedida pela rima: Europe, trope; Europe, crope..., pelo menos na grafia do século XVI.

Mas vamos agora aos prosadores. E primeiro um muito humilde prosador, Pierre Driart, camareiro da abadia de Saint-Victor que morreu em 1535 e que nos deixou uma Chronique parisienne publicada nas Mémoires de la société de 1’histoire de Paris. Em 1524 assinala-nos sombrios prognósticos: corre entre os astrólogos o boato, diz ele, de que em breve196A EUROPAse verá prodigiosas calamidades de águas, tremores de terra, chuvas e ventos. E acrescenta:

«deve estar em perigo toda a Europa»6

Ora, à data de 30 de Dezembro de 1536, Rabelais enviava de Roma ao arcebispo de Maillezais um opúsculo, De eversione Europae. Rabelais estava nas boas graças deste bispo, um Estissac, que tinha sido o seu primeiro protector e o tirara do convento onde era objecto do ódio dos seus confrades e talvez de um abade que nunca estudava «com medo dos ouropéis». Vemo-lo enviar a este bispo, para embelezar e enriquecer o seu quintal, sementes, nomeadamente de alface - falamos ainda da alface romana, da romana. Rabelais propagava assim em França a aristocrata das alfaces italianas, episódio interessante entre mil, desta contínua drenagem das boas plantas de Itália, portanto do Oriente, pelo Ocidente. A 30 de Dezembro de 1536, Rabelais não envia saladas a Guillaume d’Estissac. Envia-lhe um livrinho, De eversione Europae, livro de Prognósticos que toda a Roma devora. Se não é aquele de que falava Driart, é um irmão. Podemos porém identificá-lo com os Prognostica Antonii Torquati de eversione Europae de que possuímos uma edição tardia [publicada em] Antuérpia em 1544, feita por esse interessante Laguna que foi por sua vez autor de um livro curioso, estudado por M. Bataillon, editado em Colónia em 1543: Europa èaurf|v Tiu.ojpoiJU.evT] > hoc est misere se discrucians, mamque calamitatem deploram1.

[Eis que] do lado dos fabricantes de prognósticos há os que, afinal, não estão assim tão longe dos poetas. Do lado dos historiadores, há muito menos textos a assinalar. Excepcionalmente, Vives, o grande humanista (que aliás não é historiador), usa precocemente e muito o nome Europa: em 1522 publica uma carta que dirige ao papa Adriano sobre os conflitos que ] dilaceram a Europa do seu tempo. Intitula-se De Europae statu ac tumul-197LUCIEN FEBVREtibus*. Em 1526 publica um opúsculo, De Europae dissidiis et bello turcico9. Mas em 1529, aquilo de que trata é: De concórdia et discórdia in humano genere, ad Carolum Quintum Caeserem libri IV10. Voltamos à noção de género humano.

Inútil multiplicar estes exemplos. Poderíamos evidentemente enriquecer esta lista constituída, em algumas horas, em vossa intenção. Mas os próprios exemplos que acabo de vos dar suscitam algumas observações. Na maior parte deles, a Europa é uma região: as províncias da Europa, as forças da Europa. O sentido que nos interessa, ou melhor, os sentidos que nos interessam, o sentido cultural e o sentido político da palavra, não são especificados nem definidos. Mas não é preciso exagerar. Quando Ronsard [escreve]:

«Ó que redobrado bem a Europa há-de tomar se o tirano da Ásia

seu repouso perturbar»

(entenda-se, o Turco), opõe realmente a Europa, sede e pátria da civilização cristã do Ocidente, à Ásia dos infiéis, e isto também pode passar por novo11, porque a oposição no século XIII, e ainda no século XIV e XV era sobretudo entre a cristandade e os defensores de Maomé, os infiéis, ou mesmo os pagãos.

A segunda observação é mais interessante. Estes textos são textos de poetas ou de fazedores de prognósticos. Mas, enfim, no mundo desta época há outros personagens que não os poetas, personagens graves que se ocupam muito especialmente de política e de problemas políticos, políticos e culturais.

E eis um, tardio: Bodin, teórico do Estado, o sociólogo, o Bodin de La198

A EUROPARepublique12. Parece que este Bodin deveria fazer uso, nos seus estudos e nas suas análises, da palavra Europa, da noção de Europa. Pois bem, não, nada, silêncio.

Eis um, precoce: Erasmo, um universal Erasmo que não é apenas um grande humanista, que não é apenas um grande cristão, ele, o homem que propôs à Igreja, num momento decisivo, uma orientação modernizada que só tinha um defeito, o de chegar demasiado cedo, e de que a Igreja mais tarde, pouco a pouco, por fragmentos, acabou por aceitar o essencial..., pois bem, Erasmo, este Erasmo, da sua obra - uma crítica assaz livre e ousada das instituições políticas e sociais - decorre também a crítica de um homem que não foi de maneira nenhuma um rato de biblioteca, um obscuro pedante confinado durante toda a sua vida a um gabinete poeirento, um Sylvestre Bonnard do século XVI que tivesse passado toda a sua vida ao canto da lareira, de pantufas, entre o seu gato e sua criada fiel... Mas não, Erasmo, o doente, o débil que havia de viver tanto tempo; Erasmo, o perpétuo achacado sempre a queixar-se da saúde; Erasmo, este Erasmo foi um grande, um perpétuo, um activo viajante; não há ninguém que, no seu tempo, tenha tido mais luzes, e directas, ninguém que, mais que este homem, tenha vivido tantos outros familiarmente, activamente, utilmente: sábios, é certo, eruditos, professores, poetas, mas também burgueses ricos, comerciantes, mercadores, financeiros, mas também altos funcionários, e de todos os países, de França, de Inglaterra, dos Países Baixos, de Espanha, de Itália, da Alemanha, da Polónia, da Hungria, mas também magistrados, administradores, vários dos quais tiveram em partilha, e durante algum tempo, o destino do mundo entre mãos; para citar apenas um, um dos políticos mais notáveis do seu tempo, o sr. de Gattinara que foi ministro dos negócios estrangeiros de Maximiliano e da sua filha Margarida da Áustria, o grande director da política imperial antes dos Perrenot, o chanceler Nicolas Perrenot, e o bispo de Arras, Antoine Perrenot, os quais deram, ambos, a conhecer ao mundo este nome de uma pequena aldeia do Franco Condado, Granvelle.199LUCIENFEBVREE Erasmo conheceu também os grandes, os muito grandes do mundo: três papas, Leão X, Adriano VI, Clemente VII; um imperador, e qual, Carlos V, que lhe deu o título de seu conselheiro para os Países Baixos. Se não conheceu pessoalmente Francisco I, Francisco I, que lhe fez tantas propostas, se não conheceu pessoalmente a sua irmã, Margarida, duquesa de Alençon, que se tornou rainha de Navarra, não foi por culpa sua, mas precisamente do papel político que desempenhava como prelado. Em

contrapartida conheceu reis: um rei da Dinamarca, Cristiano II, um rei de Inglaterra, Henrique VIII. Conheceu príncipes: Alberto de Brandenburgo, Frederico III o Sábio, eleitor da Saxónia, o duque Jorge da Saxónia, o arquiduque Fernando, irmão do imperador. A sua correspondência não é de forma alguma uma correspondência de erudito com olheiras, mergulhado em livros. Estende-se a todos os países, a todas as grandes questões que se colocam, fora e acima das políticas nacionais, a todas as grandes questões de interesse humano. Só Voltaire conheceu tanta gente (e de espíritos e experiências tão diversos). Pois bem, não procureis na obra de Erasmo uma menção da Europa, da Europa tomada no sentido político ou num sentido cultural: nada. •,-..

Em 1511, o Elogio da Loucura, editado em Paris, diz violentamente a sua tese aos grandes deste mundo13. Os poderosos do mundo, os príncipes? Não fala deles com esse assento de ódio vigoroso e cordial que é o acento de Lutero ao flagelar os príncipes com veemência, os príncipes, os flagelos de Deus, os brigões, os esbirros, os carrascos que Deus emprega para domar os maus e fazer reinar pelo terror a ordem e a paz externa numa sociedade de viciosos; carrascos necessários, de resto, que Lutero não hesita, por vezes, em chamar deuses, porque ocupam o lugar de Deus na terra e são os seus ministros...

Não, o tom de Erasmo não é o tom de Lutero. É mais seco, menos veemente; mais espiritual, menos grandiloquente. Ouçamo-lo definir o príncipe:200A EUROPA«Imaginai um homem desses como são muitas vezes os príncipes, ignorante das leis, inimigo ou quase do bem público, que apenas se ocupa com os seus assuntos privados, inteiramente entregue aos prazeres, irreconciliável com o saber, com a liberdade e a verdade, incapaz de alguma vez pensar na salvação do Estado e de medir a sua conduta por algo que não as suas paixões e os seus interesses... »

Eis o príncipe. O retrato não é lisonjeiro. É bem mais duro que as veemências de Lutero. Agora, eis os cortesãos do príncipe:

«Nada de mais rastejante, de mais servil, de mais idiota do que a maioria dessa gente que, apesar disso, aspiram ao primeiro lugar

na sociedade... Dormem até ao meio-dia. Ao acordar, um padreca da casa, que esperava junto ao leito, avia-lhes uma missa num instante, que eles ouvem mal se levantam, almoçam. Mal acaba o almoço, logo o jantar os chama. Vêm depois os dados, o xadrez, os adivinhos, os bobos, as mulheres, os divertimentos, as graçolas... Entretanto, uma ou duas colações. Depois a ceia, a que se seguem abundantes libações. E assim se escoam, sem qualquer risco de enfado, as horas, os dias, os meses, os anos, os séculos. Mas sinto por vezes o coração alterado de enjoo à vista destes seres faustosos...»

Há amargura neste esboço, um desprezo amargo que não se dissimula. Mas o que é? Apetece-nos dizer: um sermão, um sermão comparável aos dos livres pregadores da época, os Menot, Maillard e outros, protegidos pelo seu carácter sagrado, aliás feitos (pela própria confissão e consentimento das suas vítimas que se prestam à cerimónia com a boa vontade que lhes dá o hábito) para exercer em público esta função essencial do seu ministério: rebaixar os poderosos, exaltar os fracos, o que, afinal, era bastante platónico, não incomodava ninguém; um sermão, mas ao longo de todo este sermão que roda em torno da política, trata-se de Cristo, do mun-201LUCIEN FEBVREdo cristão, dos príncipes cristãos, nunca de Europa, do mundo europeu, dos príncipes da Europa.Assim se perdeu uma bela ocasião. Quando se refere aos Estados, Erasmo não os agrupa sob o nome Europa. Enumera-os. Chama-os pelo seu título nacional, ou melhor, real. Fala sucessivamente, analiticamente, do rei de Inglaterra, de França, de Espanha, etc. Nunca diz «os príncipes, os soberanos ] da Europa». Não os reprova, aos que são membros da comunidade europeia, que vivem no seio desta comunidade contraindo desse modo laços de fraternidade europeia entre si, não os reprova por se entregarem a guerras fratricidas porque travadas entre Europeus. Não. Interessam-no enquanto cristãos, e porque cristãos, e em nome do cristianismo. Reprova-os por renegarem o Evangelho, o ensinamento de paz dado no Evangelho, quer se trate de O Elogio da Loucura, em 1511, do Antipolemus, que escreveu em 1515 e nunca foi publicado, do adágio Bellum inexpertis ou de Querela pá- 15 cw, o seu grande manifesto pacifista de 1517. É sempre o mesmo tema, não é um tema europeu, é um tema cristão. Os conflitos políticos ainda não interessam Erasmo enquanto tais. Exasperam-no, irritam-no, enjoam-no. Erasmo não é pelo imperador contra o rei de França. Erasmo não tem a candura de querer confiar a Carlos V a missão de fazer reinar, pela força, se preciso for, a paz entre os

príncipes cristãos, mesmo quando a política imperial (Delille) se serve dele . A monarquia universal nada lhe diz que valha. O monarca universal existe: é Cristo. Verus et unicus orbis monarcha Chrísíus (Allen, II, ep. 586, [linha] 231) . Vão dar-lhe um vigário interesseiro, egoísta e débil? E quando fala do conflito trágico que divide a Europa, Erasmo não diz, ao falar de Carlos e de Francisco, os dois mais poderosos soberanos da Europa, diz os dois mais poderosos soberanos do mundo... «Mundo»,a palavra eclesiástica, a palavra dos clérigos: Totus mundus parturit néscio

quid magni et ma/z, outra fórmula erasmiana que é uma fórmula cristã, diria, 18 uma fórmula de pregador . . ,202A EUROPAA seguir a Erasmo, temos um dos seus amigos, um dos homens, dos grandes homens do seu tempo que mais próximo esteve dele pelo espírito, pelo humor, pelo comedimento e pela reflexão. Este advogado de Londres, alimentado a grego e a latim, mas também a reflexão pessoal, este cristão que a Igreja, talvez um pouco paradoxalmente (será preciso remeter o leitor para o encantador desenho que dele faz o abade Brémond numa galeria consagrada aos santos), este cristão que a Igreja, tendo em conta o suplício que lhe infligiu um rei cismático, Henrique VIII, acabou por elevar aos altares do reino dos bem-aventurados, Thomas More, a quem chamamos Tomás Morus, falecido em 1516, em 19 Antuérpia, lança a Utopia ou Tratado da melhor forma de governo . No corpo do livro, não há lugar à Europa, pois se passa no país da Utopia.

Mas o prefácio está cheio de acontecimentos, de noções, de considerações 20 europeias . Europa? Palavra ausente. Encontramo-la tanto na pena de More como na de Erasmo. More, Erasmo, a sua pátria enquanto homens civilizados, a sua pátria de homens que se contam entre os mais civilizados, os mais cultos dos homens deste tempo, a sua pátria não é a Europa. É a cristandade. São defensores, sempre atentos, sempre activos, sempre convictos, da ideia de pátria cristã, ao tempo em que, das profundezas da vida, se elabora já uma realidade política, uma montagem política, um expediente político feito para garantir aos cristãos do Ocidente o mais precioso dos bens, a paz, realidade, expediente que irá chamar-se com um nome que se começa a pronunciar com frequência e força cada vez maiores, Europa.

Europa: porque é que Ronsard e Du Bellay empregam de preferência esta palavra? Porquê esta parcial ressurreição de um

vocábulo geográfico? Vejo (para além da rima!) muitas razões. Primeiro, a recuperação e revalorização de todo o material das noções e dos vocábulos antigos; a grande curiosidade pela geografia que se apodera das pessoas numa altura em que o tamanho do mundo duplica; a reapropriação pelos eruditos e, para além203LUCIENFEBVREdos eruditos, por todos os homens da época um pouco cultos, do velho material de palavras geográficas de que se servira Ptolomeu e que Mercator retoma por sua vez, tal como os cosmógrafos, como Sebastião Miinster, por exemplo, na sua cosmografia.

A seguir... a seguir a descoberta da América. Porque é que, nos textos ainda pouco numerosos, mas mesmo assim bastante frequentes, porque é que nestes textos encontramos cada vez mais frequentemente a palavra Europa? Correndo o risco de escandalizar, sinto-me tentado a responder, porque Colombo descobriu a América. Sim! Esta descoberta preocupou muito os espíritos. com o tempo, tornou-se evidente que os Genoveses tinham descoberto uma nova parte do mundo, um novo continente, como se costuma dizer utilizando a velha noção de continente, E a este novo continente opõe-se desde logo o antigo continente. Mas o antigo continente evocava uma mistura de muitos países: a França, a Espanha, a Itália, é certo, mas também a Turquia, a Turquia que tocava a África e além da Turquia a terra das especiarias, a índia, o Catai; se se quiser, continente, se se quisesse, ia-se por mar, dobrando o cabo; continente, era preciso, era devido um outro nome: tomou-se o nome Europa que se aplicava por contraste ao território que convinha opor à América, quando houve uma América, ao território aliás descoberto pelo Américo que lhe dera a sua vida e dela se encarregava, a explorava.

Há que ter em conta, por fim, o papel da escola, da escola latina, o seu papel imenso, a comparar, pela difusão de noções vitais, com o papel da imprensa, esse outro veículo de noções novas ou renovadas, da escola que se alimenta de noções antigas, as difunde e as vulgariza e que, sob a forma das escolas latinas municipais que se multiplicam, inicia a obra que as escolas dos Jesuítas, os colégios, retomarão mais tarde, no fim do século, para a completar, esta obra de vulgarização das noções humanistas

tiradas da Antiguidade, esta entrada em circulação de tantas noções antigas rejuvenescidas, modernizadas, maquilhadas à moda do tempo, que elas for-204A EUROPAneceram à juventude burguesa de todos os países. E entre estas noções estava a de Europa.

Acrescento ainda o seguinte. O século XVI é o século da Reforma, do grande corte, do cisma, a túnica sem costura rasgada [?] em duas. E de um e outro lado são cristãos que se opõem, sem dúvida, mas cristãos que lançam uns aos outros o anátema, cristãos que se excluem reciprocamente [da] cristandade. Deixa então de ser possível aplicar esta velha noção de cristandade unitariamente à totalidade das populações do Ocidente que professam o cristianismo. Cristandade? Rompeu-se. A do papa já não é a deLutero, a de Calvino já não é a de Inácio de Loyola. Já não se pode empregar a mesma palavra, a palavra cristandade, para agrupar, para reunir homens que, precisamente no terreno cristão, se divorciam. Para designar ao mesmo tempo os apoiantes do papa e os apoiantes de Lutero, os súbditos do cristianíssimo rei de França, do mui católico rei de Espanha e os súbditos do cismático rei de Inglaterra, dos príncipes da Alemanha que se passaram para a heresia, dos cantões suíços que também se passaram para a heresia é preciso um nome comum que seja um nome de certo modo neutro. E a velha palavra Europa, a palavra pré-cristã, a palavra antiga, esta palavra da geografia antiga vem a calhar para reunir sob um mesmo vocábulo países, Estados, soberanos que se dizem todos cristãos, se dizem mesmo defensores do verdadeiro cristianismo contra os que não pensam como eles, mas que já não podem reivindicar a cristandade única e indivisa, ou mesmo indivisível, como pátria comum, e não a verdadeira pátria do cristão que é o céu, mas a sua morada temporal.

Abramos a célebre recolha dos mártires. À cabeça da Histoire dês mar(yrs de Crespin figura uma grande peça em versos latinos, Votum Deo oplimo máximo sacrum, que se encontra traduzida para francês por S. Goulart numa coluna paralela. É uma grande invectiva contra Roma. Mas quando o autor exclama, dirigindo-se ao seu livro:205LUCIEN FEBVRE“Ala então, livro, parte para além do Jura i e do lago genebrês, depois, magnífico, vai os povos distantes do Oriente conhecer»,

quando o envia sucessivamente para além do Tanaís, para os Cimérios, para os Sármatas, para

«O [povo] polaco outrora imerso

nas trevas do erro e que o Todo-Poderoso

ora pelo seu Espírito esclarece e regenera»,

quando o passeia das Órcades, ou seja, pela Escócia, até ao Brasil onde o Evangelho se implanta, quando o convida a visitar, sucessivamente, os Anglos, os Francos, os Alemães,

«Tantas antigas cidades que o largo Reno banha»?

e a Espanha das margens do Tejo, não nos surpreende ver, no meio destas enumerações, o nome da Europa aparecer de repente: trata-se da Escócia onde brilha a clara flama de Deus, o santo Evangelho, da Escócia

«Que será o refúgio e morada da tropa

dos servidores de Cristo escorraçados da Europa»21

Europa que rima com tropa, uma vez mais, mas agora escrita trouppe e não troppe, o que vai tornar a rima impossível.

É já o Renascimento humanista que tende a substituir esta grande pátria cristã por uma outra pátria, uma pátria para elites, uma pátria que exclua os idiotae, a pátria greco-latina do humanismo. E, precisamente, o problema das relações deste novo ecumenismo com o antigo, o problema206A EUROPAdas relações entre o humanismo e o cristianismo [coloca-se] de um modo cada vez mais agudo.

Já não é o tempo em que as universidades, esses magníficos cadinhos no fundo dos quais o Oriente e o Ocidente, a Grécia de Platão e de Aristóteles, a Alexandria de Plotino, a Roma de Séneca, a Bizâncio dos Paleólogos que se tornou a Bizâncio dos Turcos, bem como a igreja do Santo Espírito (Santa Sofia, tradução correcta) se tornou uma mesquita, já não é o tempo das universidades, esses magníficos cadinhos onde todas estas heranças intelectuais iam fundir-se, difundiam por toda a cristandade uma cultura comum, ideias comuns, concepções cristãs elaboradas para uso de todas as nações.

Há as universidades que continuam a servir a cultura cristã medieval e a propagá-la. Há, paralelamente, os colégios bilingues ou trilingues, o

Collège de France face à Sorbonne, que servem uma cultura completamente diferente, a cultura antiga, e a propagam.

Do mesmo modo, prestem atenção, no que se refere à arte, ao Renascimento artístico. Também ele tende a substituir a unidade da arte gótica, esta grande unidade da arte medieval que [uma palavra ilegível] pelo mundo inteiro as obras-primas que em toda a parte, em França, na Inglaterra, nos Países Baixos, na Alemanha, na Áustria, em Milão como em Colónia, em Viena, em Londres, em Paris e em Reims como em Burgos elevavam belas igrejas góticas, todas para exprimirem o mesmo ideal, um ideal que não conhece fronteiras, um ideal não unicamente formal.

I Recordemos o velho ditado: Picturae quase laicorwn libri. De uma ponta à outra da cristandade, uma mesma iconografia atestava a coerência, unidade, a universalidade do dogma e das crenças. Acabou-se. Suspendeu-se as escolas, escolas contrastantes como nunca o foram. A distância ! que separa um Diirer de um Botticelli, um Van der Weyden de um Fra Angélico é por certo muito maior do que a distância que separa uma bela207LUCIENFEBVREminiatura parisiense do século XIII de uma bela miniatura napolitana da mesma época. Também aqui foi dada no colar uma grande tesourada. As pérolas soltam-se e rolam pelo chão.

Pintura, escultura, a própria arquitectura. E a literatura? É então que nascem as literaturas em língua vulgar, a italiana, primeiro, com Dante, Petrarca, Bocácio, os grandes precursores, a francesa, com François Villon, em flecha, os grandes retóricos em seu apoio, e depois Marot, e a seguir a Marot os homens da Plêiade. Também aí há ruptura da unidade, rupturas da velha unidade latina, da pátria latina que agrupava todos os latinizantes.

É tudo isto que um historiador da Europa não pode ignorar, tudo isto que nos revela até que ponto, sob as aparências ainda esplêndidas, a cristandade, refiro-me, evidentemente, à noção medieval de cristandade, estava minada por dentro, caduca, já, e condenada como noção pelo tempo e pela história; condenada, mas uma noção como a noção de cristandade que durante séculos forneceu o seu enquadramento às especulações políticas, históricas e geográficas dos homens do Ocidente, não se desmorona de uma assentada, sem resistência

É impressionante verificar que mesmo os relatos de viagem pela Europa, no século XVI, não falam de Europa. Europa, a palavra não

apareceria no título da Sommaire description de la France, Allemagne, Italie et Espagne de Louis Turquet de Mayerne se o autor não tivesse acrescentado, diz-nos ele, um Recueil dês foires presque de toute 1’Europe. Ora o prefácio da Description data de 1603: já não é século XVI22.

O famoso Itinéraire em latim de Hentzner, primeira edição em Nuremberga, em 1612, traz também um título analítico: Itinerarium Germaniae, Galliae, Angliae et Italiae. Não se trata de Europa23. Há uma antecipação na Description de la quarte gallicane et autres parties de l ’Europe que foi publicado em Lyon em 153524.208A EUROPADo lado dos historiadores, a mesma coisa. Quando sai em Estrasburgo, em 1555, a primeira edição da célebre história contemporânea de Sleidan, paz como título De Statu religionis et Reipublicae, Carolo quinto Caep5. ,, .,:,.,:,

I A primeira tradução francesa, em Genebra, da casa Crespin, em 1557, Intitula-se também: Histoire de 1’estat de Ia religion et republique sous íj’empereur Charles V e o título da tradução do livro completo, [editado] em Genebra [na casa] Crespin em 1561, título que parece apelar imperiosamente ao nome Europa, é: Histoire entière déduite depuis lê délugejus*qu’au temps présent... en laquelle est primièrement compris Vestat dons .lês empires souverains puis de Ia religion et republique jusqu ’à Ia mort \k Charles V2*.

Os quatro impérios, Babilónia, Pérsia, Grécia, Roma, é uma velha noção medieval que passará para Bossuet. História inteira, história de toda a parte, dizia a um século de distância Aeneas Sylvius Piccolomini, em 1477: Historia rerum ubique gestarum21.

No século XVI, não. Para encontrar textos decisivos, textos que ensinem qualquer coisa de novo, que dêem uma ressonância europeia moderna, é preciso ir ainda mais longe, até ao início do século XVII. É preciso ir a textos como estes.209210

Lição XIX

Os textos de Sully. A dominação universal

[Que são], estes textos? Muito simplesmente, os famosos textos das ityémoires dês sages et rfoyales] oeconomies d’Estat de Henrique o Grande, a obra de Sully, que expõem o pretenso alto desígnio de Henrique IV e que Sully data de 1610, algum tempo antes da morte de Henrique IV1. Pouco nos importa aqui que o alto desígnio tenha tido ou não alguma realidade. É o outro o interesse dos textos para nós...

Primeiro, estão cheios de Europa... O nome ocorre a cada momento. Mais precisamente, ocorre sempre que sentimos, nós, homens de 1945, (que deve ocorrer, sempre que contamos com ele. i É tudo? Não. Sully não se limita a empregar Europa. Fala de uma «república cristianíssima da Europa» (república [tomado no sentido de] «comunidade política»), dos «potentados da cristandade da Europa», dos «estados e dominações da Europa que fazem profissão em nome de Cristo»2. Noutros textos, anteriores e contemporâneos, fala do «mal dos Estados cristãos da Europa», dos «príncipes» e «potentados da cristandade» europeia. Que fórmulas interessantes! Como nos permitem captar bem, ao vivo,211LUCIENFEBVREum momento decisivo da evolução das ideias em relação à Europa! Esses textos são textos preciosos para o historiador, pois comportam apenas duas ou três palavras sem frases, mas estas duas ou três palavras evocam inconscientemente todo um mundo, um mundo que aquele que as escreveu não pensou [como tal]. Insisto, o texto de Sully, este texto tardio que é datado por Sully de 1610 mas que seguramente é posterior, este texto de Sully ainda não separa a noção de Europa da noção de cristandade. Justapõe, associa à jovem noção de Europa que começa a sua viagem a velha noção tradicional de cristandade.

Voltarei a esta noção apenas para fazer uma observação. A cristandade é uma noção cultural. Quando queremos pintar o quadro da cristandade, definir realmente cristandade, é a uma civilização que vamos buscar os nossos elementos de definição, à civilização cristã da Idade Média.

Pensamos numa fé religiosa, num credo que se estendeu pelo nosso velho mundo do Ocidente, uma fé, um credo cujos dogmas os homens brancos do Ocidente aceitaram facilmente porque estes dogmas amalgamavam-se com uma filosofia que esta fracção da humanidade branca do Ocidente tão viva, tão actuante, tão activa, que a humanidade grega, esta minúscula célula da humanidade mediterrânica, tinha elaborado, nos séculos VI, V, IV antes de Cristo e que não desapareceu, esta filosofia de Platão, para lhe dar o seu nome mais glorioso, esta filosofia de Aristóteles para lhe dar o seu nome mais eficaz, a filosofia do nosso mundo do Ocidente; que está sempre, com

as suas categorias, no fundo da nossa maneira de pensar, de raciocinar, de filosofar.

Pensamos nas grandes criações culturais que acompanharam, no tempo e no espaço, a propagação desta fé. Pensamos nas escolas catedrais, nas escolas monásticas, nas universidades medievais.

Pensamos nas ordens religiosas cuja criação é tantas vezes importante e não apenas pela própria religião que estas ordens servem e professam com um ardor renovado, mas pela sociedade inteira, pela sociedade laica bem como pela sociedade religiosa: pensem no que foi para o mundo do212A EUROPAOcidente essa avançada dos mendicantes, mendigos que se instalam nas cidades no momento em que as cidades se tornam efectivamente as sedes activas da cultura e da riqueza, logo, do poder e da eficácia.

Pensamos na arte, neste magnífico florescimento das igrejas góticas que sucedem às igrejas românicas: as igrejas românicas, mediterrânicas e orientais ainda no seu princípio, nas suas opções, nas suas formas, as igrejas góticas que testemunham com eloquência a força do contributo nórdico e que por isso mesmo são um dos testemunhos, um dos grandes testemunhos da força crescente da Europa, desta Europa nascida da conjunção do Norte e do Sul; as igrejas góticas, em parte alguma mais belas, mais poderosas, mais harmoniosas do que nesta França cuja posição é central no mundo do Ocidente, esta França cujo papel histórico é pagar o dote para o casamento do Norte com o Sul...

Tudo isso, que a história ainda tanto despreza, a que não marca o bastante a força, a virtude eficaz, o tempo, também, tudo isso é porém precário porque por trás desta expansão cultural não há armadura política suficiente; porque depressa as tentativas que a Igreja, essa expressão político-administrativa da fé cristã, a Igreja que, com os seus grandes papas, perseguiu o sonho da dominação universal, da dominação política do mundo; porque depressa estas tentativas depararam com violentas resistências; porque depressa os poderes temporais organizaram a luta contra as suas pretensões, a luta para a reduzir ao seu papel espiritual, porque o papa, afinal de contas, para lutar contra estes poderes com armas iguais teve que se fazer príncipe e, enquanto príncipe, era apenas um pequeno príncipe, pois o seu imenso poder espiritual tinha por base apenas os Estados da Igreja, base de ridícula exiguidade e ineficácia para tão grandes pretensões... Chegará o dia, chegou o dia, um triste dia de 1527, o dia do saque de Roma pelos lansquenets de Bourbon e de Filiberto de Chalon, em que, do alto do castelo SanfAngello, ele pôde meditar sobre o destino do

papado, sobre o desastre a que esta metamorfose do papado, de imenso poder espiritual para pequena potência temporal, pudera conduzir a insti-213LUCIENFEBVREtuição; porque, enfim, toda a história da civilização europeia depois do século XIV é a história de uma conquista progressiva da civilização pelos laicos; é a história da apropriação laica progressiva da civilização cristã; é a história da laicização metódica de toda a cultura por forças novas; é a história de terem sido arrancados à Igreja os mais altos valores culturais; posto o que, há Europa, e Europa que acorre à pena de Sully muito naturalmente, mas ainda misturada com a noção então condenada, a noção ainda sobrevivente nos espíritos, a noção de cristandade.

Voltemos aos textos. Que exprimem? Primeiro, o amor à paz. A «república cristianíssima» da Europa em questão, esta «santa e magnífica república» deve ser para sempre posta «em paz consigo própria» para que [ comunique «esta felicidade» a todos os reis, príncipes e potentados de que se compuser3.

Não se trata de cláusulas de estilo. Não acusemos Henrique IV e Sully -: de hipocrisia quando falam de paz. Para saber o que era a guerra e onde levava a guerra bastava-lhes olhar em seu redor. As misérias da guerra estavam por toda a parte. Eles não iam atrás delas a alimentá-las. Podiam falar disso com frequência.

A bem dizer, eles não condenavam todas as guerras. A guerra contra o infiel continuava a ser lícita. Um dos objectivos da «república» com que Sully sonha será agrupar todos os príncipes e todos os Estados de maneira a serem capazes de travar uma guerra contínua contra os infiéis, inimigos do sagrado nome de Jesus Cristo, fórmula tradicional, mas que sem dúvida traduz um espírito novo4.

Guerra santa, sim e não. A verdade é que o Turco perturba a paz da Europa. A verdade é que o Turco é um perigo permanente para a Europa, Não esqueçamos que em pleno século XVII Luís XIV irá até às muralhas de Viena para aí [uma palavra ilegível} o Turco. Sendo assim, impedi-lo de perturbar a Europa já não é combatê-lo para lhe arrancar o túmulo de Cristo, já não é combatê-lo para destruir nele «o paganismo» como diziam214A EUROPAos nossos antepassados, é defender dele a Europa é, para tal, unir a Europa, libertar a Europa das guerras intestinas que a arruinam, a paralisam, a esmagam, logo, estabelecer entre os reis, príncipes

potentados da Europa, uma ordem tal que eles «ficassem muito contentes por se terem tornado quase todos iguais em extensão do seu domínio, força, poder e autoridade na Europa cristã.»5

Cá estamos: é a ideia do equilíbrio europeu que conta. E esta ideia não é uma ideia positiva. É uma ideia negativa, uma ideia de reacção. Contra o quê? Contra um dos mitos mais terríveis, mais sangrentos que o cérebro humano engendrou, o mito da DOMINAÇÃO UNIVERSAL6.

A noção de um equilíbrio necessário entre as potências foi o génio italiano que a elaborou. Na Itália do século XV, cinco Estados se contemplam: Milão, Veneza, Florença, a Santa Sé, Nápoles olhavam-se, vigiavam-se. E [desta] reflexão nasce a noção de um equilíbrio necessário. Nasce nesta Itália subtil, engenhosa, requintada, prodigiosamente avançada em relação a todos os outros países, rica de uma civilização que é produto de uma mestiçagem fecunda e que deve a fecundidade original dos seus aspectos aos seus múltiplos contactos com o Oriente muçulmano mas helenizado, com Bizâncio voltada para a Ásia mas sempre de fundo helénico. Sim, a noção de equilíbrio político nasce em Itália. Guichardin aí está para redigir a sua certidão de nascimento, no limiar da sua história. Maquiavel aí está para formular a sua teoria.

Ora é o momento em que reincarna, fora de Itália, a quimera de que eu falava, a dominação universal. Onde, como? Já o disse aqui7. Nasce de um episódio a que a história geral não concede atenção bastante. Os Franceses reduzem-no a um episódio da luta entre o rei e os príncipes, um episódio da conquista monárquica. Os Belgas vêem aqui um episódio da215LUCIEN FEBVREsua luta pela independência e apenas isso. Aconteceu, no século XIV, no século XV, uma raça de filhos segundos ocidentais da casa de França, investida do ducado de Borgonha, adquiriu por casamento os Países Baixos, os Países Baixos, as suas actividades, as suas populações pululantes, as suas cidades orgulhosas e turbulentas; os Países Baixos, um amontoado de produtos, de mercadorias, de riquezas; os Países Baixos, uma torrente de ouro. E na nascente, vamos encontrar Bruges, transbordante de vida e de actividade. Assim, senhores dos Países Baixos, estes duques da Borgonha são poderosamente ricos, os mais ricos príncipes do Ocidente, mas em dignidade são ainda muito humildes, duques, e não dos primeiros,,, Nestes tempos de realeza sagrada, não têm coroa real... A sua coroa, quer queiram quer não, recebem-na de outrem, a sua simples, modesta coroa ducal.

E assim, sonhavam. A coroa imperial? Seria bem incómoda, para um duque e de estirpe estrangeira, com reputação de forte, logo, de perigosa,

Uma coroa real? Mas uma realeza de terceira ordem, sem tradição divina, ora! Então o quê? Um poder desenquadrado, preparado por um hábil agrupamento, em torno deles, de todas as forças tradicionais do mundo; todo um trabalho consciente de ressurreição das velhas forças, das velhas ideias. Que ideias? A cavalaria, apta a fornecer homens, homens valorosos, combatentes, e em redor dela, muito conscientemente, a casa de Borgonha aplicou-se a ressuscitar a cavalaria, a organizá-la em seu redor, a captá-la, a tornar-se sua chefe. A cruzada e, não menos conscientemente, os duques da Borgonha aplicaram-se a não deixar morrer a ideia. Tinha um aspecto económico: a conquista dos mercados do Oriente e eles não os desprezavam, eles, os senhores dos Países Baixos. Tinha também e sobretudo um aspecto político. Porque a velha noção de cristandade continuava viva - acabamos de ver que no tempo de Sully, no pensamento de Sully, continuava viva - e nos termos do pensamento cristão, quem conduz a cruzada é o chefe da cristandade.216A EUROPA[ No termo de tudo isto encontrava-se a dominação universal, a quimera sangrenta que desde então nunca deixou de reincarnar na história, assumindo novos aspectos, mas sempre feia e sempre vã. Porque, enfim, se pratico convosco estas sondagens ao passado europeu é com o fim de vos mostrar que a Europa não é uma coisa simples, que a Europa não surgiu inteira, homogénea, de nada, que não se inscreveu um belo dia, já pronta, íuma tabula rasa, como os países novos do novo continente que não têm história (mas dotam-se dela!). Cada uma das partes da Europa tem por trás de si, pelo contrário, uma terrível história e não é a mesma para todas elas8. com efeito, a ideia de um conquistador, de um dominador que submeta todo o universo com um toque de varinha mágica (dominador, palavra de Carlos V: dominador na Ásia, na África), então esta ideia, [temos] o direito de o dizer, é uma ideia vã, e o de acrescentar: é uma ideia sanguinolenta. Mas...217218

Lição XX

I Porque é que, no fim do século XVI, no princípio do século XVII, nos encontramos em presença de uma noção de Europa que não é apenas cultural, mas também política, que tende a tornar-se política? Porque é que, para dar a esta tentativa de organização política da Europa o seu

verdadeiro nome, porque é que este sistema do equilíbrio europeu nasce nesse momento? . ,-»

[Farei] duas observações a este respeito. Primeiro, o equilíbrio é uma noção de física, uma noção de estática. E se eu tivesse tempo, pôr-me-ia a filosofar à vontade sobre este assunto. Gostaria de vos recordar que, quando surge na língua diplomática da época esta noção de equilíbrio, há homens, homens cuja actividade cabe toda sob um mesmo nome, o nome de uma personagem extremamente activa cuja grande importância histórica nos é mostrada num livro recente, o Padre Mersenne (tese de R. Lenoble); há homens, entre os quais um grande nome, muito maior do que o do Padre Mersenne, o nome de René Descartes, ilustra todas as actividades; há homens que aperfeiçoam esta teoria do mecanismo universal que vai reinar durante tanto tempo em França e fora de França1.

Ora no tempo em que estes homens, no tempo em que Descartes com estes homens trata de mecanizar totalmente o universo, de o reduzir, para melhor o pensar, a um mecanismo em que todas as molas, todas as engrenagens podem ser medidas, definidas, ajustadas com uma precisão219LUCIEN FEBVREsempre crescente, [não é] de admirar que se inicie paralelamente uma espécie de mecânica político-social que se propõe reduzir o universo político a um sistema de forças capazes de serem medidas, definidas, ajustadas com uma precisão igualmente crescente; uma espécie de mecânica político-social que tenha em conta, não unidades nacionais em vias de formação, mas, o que é muito diferente, unidades de poder em que, aliás, a medida do poder tal como o entende o guerreiro e o diplomata pode não ser, e efectivamente não é, a medida da grandeza da nação ou do Estado,,, «Equilíbrio» é a palavra de um tempo em que se mede, em que se define, em que se ajusta. Em breve se dirá «balança». Isso será no tempo de Lavoisier, como por acaso, no tempo em que já não basta medir, definir, ajustar, no tempo em que, por uma grande revolução científica, se pesa.

Gostaria de sublinhar esta correspondência, uma vez mais, este documento sobre o que é uma civilização, uma civilização, esta unidade, uma civilização, esta montagem, já não digo, homem de 1945, esta máquina, Já não vivemos no século da máquina, disse-o noutro lugar, mas no século da electricidade, das correntes que se entrecruzam, se sucedem, se interferem; é preciso tomarmos partido e que os nossos cérebros, habituados a pensar todas as coisas sob a forma de volumes, de planos e de movimentos, se habituem a pensar estas mesmas coisas sob uma forma infinitamente mais flexível, mais

variada, mais complicada também, sem alto nem baixo, sem plano único e sem processo linear... Direi pois uma civilização, este complexo de forças. Ora todas as forças actuam num mesmo campo e a sua acção assemelha-se, sejam elas espirituais ou materiais, físicas ou morais, intelectuais ou vegetativas. Entre o mecanicismo do Padre Mersenne e o estaticismo que o termo equilíbrio implica há uma correlação, uma evidente correlação. Os que pensam o universo físico estático de Mersenne pensam também o universo político estático dos diplomatas do século XVII, o universo equilibrado, o equilíbrio político que deve manter a balança das forças. Não há fosso, não há corte, não há cis-A EUROPAma. Em ambos os casos, os mesmos homens rolam os mesmos pensamentos nos mesmos cérebros. .

Há outra coisa, outra coisa que quero igualmente sublinhar de passagem. Os nossos estudos sobre as civilizações são ainda muito raros e muito pobres. Que pouco sabemos sobre as relações, as relações evidentes, as relações necessárias que a civilização mantém com a formação política! Parece, e, seja como for, parece mais quando se trata de uma civilização moderna, digamos de uma civilização europeia moderna, que a expansão de uma civilização ou, mais exactamente, a tomada de posse plena e consciente , de uma civilização por uma massa de homens mais ou menos considerável, ! de uma civilização que não seja nacional, ou pelo menos não seja unicamente, primordialmente nacional, mas supra-nacional, de uma civilização que mantém, se quiserem, com as civilizações nacionais, que abrange as mesmas [ relações que a civilização francesa dos tempos modernos com a civilização europeia; parece que a expansão da civilização precede, cronologicamente, a necessidade sentida - mas ulteriormente e como consequência - pelos portadores desta civilização, de a dotar de quadros políticos, de instituições políticas, de meios de expansão, pelo menos de manutenção política ou, se se quiser, [de meios] político-administrativos e militares. i [E há] o orgulho de participar na civilização que chamamos a civilização do Renascimento, mas que não dava esse nome a si própria (uma vez que vimos, aqui mesmo, num curso anterior, que a noção de Renascimento é uma criação do século XIX; refira-se que nasceu aqui mesmo, noCollège de France, do cérebro e da sensibilidade de Jules Michelet); : orgulho, dizia, de participar na civilização que chamamos a civilização do Renascimento e que chama a si própria civilização europeia2.

E isto em primeiro lugar: é o esforço para dotar esta civilização de uma armadura política, o esforço para a criar, a consolidar, a estender, a proteger também com instituições políticas que a defendam naturalmente (ou ataquem, conforme os casos) das instituições militares.

221LUCIEN FEBVREEm segundo lugar, o que vem a seguir: o século XVI é o orgulho do Renascimento europeu; o século XVII é a concepção do equilíbrio europeu.

Mais uma vez, isto não é conhecido, não está estudado. Pensem. Toda a história das civilizações está por fazer, uma história interna e viva das civilizações.

Volto agora ao meu tema. Porque é que no fim do século XVI, princípio do século XVII nos encontramos em presença de uma noção de Europa que já não é apenas cultural, que tende a tornar-se política? Porquê este sistema do equilíbrio europeu que então nasce? Porque, dizia-vos eu da última vez, porque uma ideia nefasta, a ideia da dominação universal, tinha sido lançada ou relançada em circulação, sob uma forma nova e viva [?], pelos Borguinhões que se tornaram Imperiais3. Sim, mas é preciso explicar, pormenorizar mais.

Olhemos a Europa deste tempo. Deu-se uma grande revolução. Antes [havia] realezas; agora, cada vez mais, há Estados monárquicos regulares, ordenados, controlados e neste quadro dos Estados, nações que se preparavam, se elaboravam. Tínhamos visto, no início dos tempos modernos, uma extensão súbita das combinações diplomáticas. Tínhamos visto uma regularidade, uma permanência até então desconhecida, introduzir-se no serviço das chancelarias e das embaixadas. Tínhamos visto estabelecer-se exércitos permanentes, aperfeiçoar-se as armas, desenvolver-se, complicar-se, reforçar-se poderosamente os meios de atacar e defender as praças, de combater em terra e no mar, complicar-se, reforçar-se poderosamente, Tínhamos visto a fiscalidade esforçar-se por seguir as artes da guerra, tão dispendiosas nos seus progressos. Tudo isso se regularizava, aspirava revestir-se de formas corteses e cavaleirescas, mas no fundo de tudo isso [havia] a força, a afirmação da força, o culto da força, da força engrinaldada de fórmulas jurídicas, mas força, como a espingarda do soldado que parte para a guerra vai ornamentada de flores, mas é uma espingarda.222A EUROPAGraças a esta evolução, o esboroamento feudal tende a atenuar-se. No lugar de duas mil dinastias já só restam dez ou doze, mas muito mais poderosas, muito menos inseguras do que outrora uma vez que, por trás, há as nações. Os seus conflitos são tanto mais temíveis, a ameaça que representam muito maior.

Que ameaça? A da monarquia no sentido lato do termo, da monarquia universal se quiserem, a de um rei entre os dez ou doze reis da Europa subsistentes que, batendo os outros, desqualificando-os, se apodere dos seus Estados realizando assim, em seu proveito, a dominação universal.

E então? Então a poliarquia reage contra a monarquia. Reage politicamente, reage militarmente, reage economicamente, uma vez que nenhuma das unidades políticas que rivalizam entre si se constitui como economia fechada. Os nossos antepassados, na minha região do Franco Condado, os nossos mui católicos antepassados, mas também muito belicosos e muito zombeteiros, como bons borguinhões reles que são, tinham o costume de salmodiar a meia voz as vésperas dos Jesuítas:

«Levai tudo de vosso...

Mas não leveis nada de nosso... »

É bem a fórmula da economia fechada, do ideal dos tempos em que floresce, como dizem os manuais de economia política, o mercantilismo. No fim de tudo isso, há a guerra, a guerra porque a consequência fatal, necessária, evidente de todo o sistema fechado é a guerra.

É uma verdade evidente, mas que não devemos deixar de repetir: o belicismo é um aspecto inseparável do mercantilismo; o mercantilismo começa por ser um sistema fechado. O mercantilismo baseia-se na convicção da incompatibilidade dos interesses económicos das nações. Para os mercantilistas, uma nação não pode enriquecer e fortificar-se se não for aexpensas de outras nações: levando tudo o que é delas, dos outros, para sua casa. Daí é um pequeno passo até concluir por uma política económica223LUCIEN FEBVREinternacional baseada na violência. E este passo foi na realidade dado por todos os mercantilistas, todos, em diferentes graus, partidários de uma política belicista.

Assim se constitui portanto um equilíbrio europeu. É uma fórmula polida, de resto, que convém não deixarmos que nos iluda. A verdadeira fórmula seria: assim nasce um entendimento contra o que é o contrário de equilíbrio, o contrário da balança política, como ainda se diz, a «preponderância», para empregar uma palavra da época, palavra não do século XVII, mas do século XVIII, que só interessa a Academia em 1798, mas que Turgot, d’Argenson, etc., já empregam, que tiram do adjectivo

preponderante.4. É ainda, note-se, uma palavra da física, uma palavra do peso, pondus.

Tomem para exemplo o sistema que Sully imagina e que fornece ao seu rei, a Henrique IV, quando a Henrique IV já não serve, pois há muito não está presente para protestar contra esta paternidade suposta, o sistema do equilíbrio, se se quiser, mas a condição prévia é a destruição da Casa de Áustria... Abater a Casa de Áustria, como dirá Richelieu, algum tempo depois, Richelieu, reconstituindo no papel o seu grande desígnio pessoal, dotando-se deste programa com que Sully quisera presentear Henrique IV, abater a Casa de Áustria, é a condição prévia do equilíbrio. Muito bem. Mas subentende-se que aquele que a abater efectivamente, no âmbito de uma operação prévia, como preliminar, subentende-se que aquele que abater a Casa de Áustria não se recusará a engordar com a ajuda dos despojos da Casa de Áustria abatida! Oh! Será simplesmente, está-se mesmo a ver, para melhor proteger o equilíbrio ulterior. Mas protegê-lo-á tão bem que o equilíbrio em breve se fechará de novo contra o que ameaçar o equilíbrio. E é, como sabem, toda a história da Europa até à revolução...

Pois bem, assim como equilíbrio é uma palavra púdica, é necessário a estas coligações que se formam contra o ambicioso, contra o ameaçador,224A EUROPAcontra o aspirante a dominador, estas coligações precisam de uma palavra púdica que possa designá-las sem escândalo, eufemisticamente... E esta palavra, logo se apressaram a encontrá-la, é é Europa.

Estou muito irritado... mas, no tempo em que se constitui a primeira das três encarnações da Europa antes da guerra actual, sendo a primeira Europa organismo político, a Europa das nações rivais; a segunda a Europa pátria, a Europa acima das nações rivais; a terceira a Europa refúgio, a Europa contra as nações rivais; no tempo em que se constitui a Europa organismo político ou tentativa de organismo político, a Europa das nações rivalizantes, bem depressa Europa, esta palavra, significa o agrupamento das potências contra a potência em desenvolvimento que, ao desenvolver-se, ameaça destruir o equilíbrio penosamente adquirido pelas outras potências5.

Europa? A França emprega muito a palavra quando se trata de organizar a luta contra a Casa de Áustria. Há esta casa, e há a Europa, cujos interesses, diz ela, defende. Di-lo, e talvez acredite. Mas chega Luís XIV e os seus primeiros sucessos e o crescimento das suas ambições, haverá a França e do outro lado a Europa, a Europa, noção de resistência, a Europa-freio, a Europa coligação. Mas coligação é uma palavra que soa mal. Eis o sistema do equilíbrio, o sistema da balança de forças, tal como começa a organizar-se no início do século XVII, tal como se exprime no primeiro desta série de actos políticos que, aos olhos dos juristas, constituem o fundamento da Europa moderna, falo da paz da Vestfália, uma obra-prima, se se quiser, para professores de direito público, mas, para o historiador?

A paz da Vestfália não serviu para conter, no interesse do Império e da Europa que ela alegava, nem a ambição da França nem a da Áustria. Foi preciso, de novo, guerras e coligações para refrear estas ambições. E quando a Europa levou a melhor sobre a França, quando a coligação chefiada pela Áustria contra Luís XIV, com o apoio eficaz da Inglaterra,225LUCIEN FEBVREtriunfou, a acta deste triunfo, a paz de Utrecht, teve como consequência destruir o equilíbrio anteriormente estabelecido em Miinster, de modo que, ao tempo de Maria Teresa, foi preciso retomar por duas vezes a guerra dos Trinta Anos para dotar o corpo germânico de um sistema bicéfalo Assim se esclarece o sentido do equilíbrio. Assim se define, do mesmo passo, um dos valores da noção de Europa quando ela surge, no século XVII, em todos os textos destes tempos que contam.

Um dos valores... ainda agora falava dos «professores de direito público». Não quero que pensem que sinto desdém pela sua obra, simplesmente, ela desenvolve-se noutro plano e, paradoxalmente, no plano, não da organização, mas antes no plano da civilização, a sua obra, obra que começa com Grotius, a obra a que, sobretudo, a um século de distância, está ligado um Leibnitz. Leibnitz, quando fala de Europa, e fala, é sem segundas intenções. Quando, em 1693, publica, em Maio, o Codex jum gentium diplomaticus, a selecção de diplomas referentes ao direito dos povos que publica transcende em muito o quadro nacional, este quadro nacional que ainda em 1692, um ano antes, Frédéric Léonard adoptava ao publicar o seu Recueil dês traités... faits par lês róis de France, avec tom lês [princes et] potentats de 1’Europe, et autres...; da Europa, esta palavra já não surpreende6. Em

1633 começa em Frankfurt-am-Main a publicação do Theatrum europeum de Abelinus que prosseguirá até 1738, sob a forma de 21 in-fólio7. Em 1637, em Londres, publica-se um Europae speculun que será traduzido para francês em 1641, na casa Elzévir, com o título Relation de 1’estat de Ia religiorfi. Em 1677, em Colónia, Linage de Vau-ciennes publicou um Mémoire sur l ’origine dês guerres que travaillentl’- í Europe depuis 50 ans; alguns títulos entre muitos outros9.

Mas Leibnitz di-lo expressamente, o seu codex, é uma recolha que interessa não uma potência contra a Europa, mas toda a Europa por igual! Codex [...] in quo tabulae authenticae actorum publicorum, tractaíuum, aliarumque rerumper Europam gestarum [...] continentur10. E Fontenelle não se exime a sublinhar este aspecto da actividade de Leibnitz no notável226A EUROPAÊloge fúnebre de Leibnitz que pronuncia na Academia das Ciências, i acrescentando, com malícia, que «Leibnitz confessava que tantos tratados de paz tantas vezes renovados entre as mesmas nações são a sua vergonha e aprovava com desgosto a insígnia de um mercador holandês que tendo adoptado por título «À paz perpétua» mandara pintar no quadro um cemitério.»11

Fontenelle remetia também antecipadamente Leibnitz para o século XVIII. Mas se quiserem conhecer o verdadeiro Leibnitz sobre este ponto, reportem-se ao livro, já antigo, do meu colega Baruzi intitulado Leibnitz et lorganisation religieuse de 1’univers: é instrutivo sobre os pensamentos e os sentimentos de um Europeu do século XVII12.227228

Lição XXI

A Europa do século XVIII

Deixem-me começar por uma leitura, a leitura de um belo texto. Diz o meu texto:

«Se o cidadão deve muito à pátria de que é membro, a nação deve, por maioria de razões, muito mais ao repouso e à salvação pública da república universal de que é membro e na qual se encerram todas as pátrias dos particulares.»

Esta frase está assinada François de Salignac de la Mothe-Fénelon, arcebispo-duque de Cambrai. Foi extraída das Directions pour la consciente d’un rói, compostas, como o Télémaque, para a instrução de

Luís de França, duque da Borgonha, neto de Luís XIV, que viria a morrer antes do seu avô, em Marly, a 18 de Fevereiro de 1721. É bem interessante, este texto de Fénelon. Segue-se-lhe um suplemento ou adenda (Supplément, página 484, coluna 2) que refere especialmente, diz o seu título:

«não somente o direito legítimo, mas mesmo a necessidade indispensável de formar alianças, tanto ofensivas como defensivas, contra uma po-229LUCIEN FEBVREtência superior justamente temida pelos outros com manifesta tendência para a monarquia universal.»2

É impossível, como vêem, exprimir melhor a teoria do equilíbrio, deste equilíbrio europeu que foi o grande pensamento, e a grande prática, do século XVII. E deixem-me notar o seguinte: em certos sectores, há o costume de assacar à Revolução Francesa esta mania de intervir nos assuntos dos outros, esta mania de nos erigirmos, sem que no-lo peçam, em solucionadores dos males da Europa que se atribui aos Franceses e que deploramos verificar neles, mania de cruzada pela liberdade, que é muito especificamente, garantem-nos, uma mania da França revolucionária (uma infeliz, perigosa, malsã e irritante mania). E aí, os Alemães, em especial, não se calam: vejam por exemplo o livro de Sieburg, Deus é francês

Mas os alemães, para não se calarem, não têm que ir beber a fontes francesas. Quantas vezes os Franceses lhes estenderam a taça cheia de água inquinada? De água inquinada porque, enfim, François Salignac de la Mothe-Fénelon não era deputado à Legislativa... mesmo avant la lettre. E no entanto, como qualificar a sua tese, tão clara, tão explícita, tão vigorosa, senão chamando-lhe intervenção? Em nome de quê? De nebulosas teorias revolucionárias, filhas do maldito estado de espírito de 1789? Pois não. O que Fénelon invoca é o dever cristão:

«As nações da terra são apenas as diferentes famílias de uma mesma república de que Deus é o pai comum. A lei natural e universal segundo a qual ele quer que as famílias sejam governadas é preferir o bem público ao interesse particular.»4

E o bem público é a paz. E a ambição desmedida destrói a paz. Logo, Deus condena a ambição desmedida. Isto nada tem a ver, mais uma vez, com a ideologia revolucionária e contudo é, na íntegra, a teoria, a pura teoria da intervenção, a teoria do direito, e bem mais que do direito, do230

A EUROPAdever que os Estados cristãos têm de intervir contra o Estado que cresce perigosamente e mesmo de intervir preventivamente:

«A humanidade [tem] portanto um dever mútuo de defesa da salvação comum entre as nações vizinhas contra um estado vizinho que se torne demasiado poderoso, assim como há deveres mútuos entre os concidadãos para com a liberdade da pátria.»5

A humanidade, não é a virtude da humanidade, sinónimo de benevolência. Não, é o simples facto de se ser humano e pertencer nessa qualidade ao género humano, enquanto parte de um ser colectivo maior que a pátria. É a palavra de Dom Juan ao pobre: «Vai, vai, dou-to por amor da humanidade.» É uma palavra nova, ou melhor, um sentido novo de uma velha palavra, mas que vai adquirir uma juventude duradoura e primeiro dar testemunho desta juventude substituindo outra palavra, uma velha palavra cuja história não esboçámos, uma palavra que Fénelon também emprega, reunindo, nos seus textos, as duas noções, a antiga e a nova. Esta palavra é a palavra cristandade. Cristandade é uma noção religiosa. Humanidade, é uma noção laica, como a palavra ainda mais recente que nascerá no fim do século, civilização6.

Um texto como o de Fénelon, ao mesmo tempo que encerra um capítulo da história da noção de Europa, o capítulo do século XVII, abre um capítulo novo, o capítulo do século XVIII. E esta história da noção de Europa no século XVIII, no tempo em que a Europa é reivindicada como pátria por todos os homens que pensam, é um belo tema, em certo sentido demasiado belo. Pois quando reunimos os textos, quando os temos diante dos olhos, na mão e na memória, quando os lemos e relemos, que amargura!

” O quê! Tantas boas vontades, ardentes, inteligentes, desinteressadas...

Quê! Um tão magnífico concerto de vozes de ressonância tão profunda-231LUCIEN FEBVREmente humana, uma tal vaga de esperança, e nada, nada, nada... nada a não ser guerras novas, ódios, conflitos, massacres... Não, não é um belo tema! Deixa na boca de quem o trata um gosto demasiado forte a amargura... e impotência.

? Superemos isso. Tentemos compreender. No limiar do século, acolhe-nos Montesquieu. Terá ele a noção de Europa? Por certo que sim, Para este grande, penetrante, inteligente Montesquieu, a Europa é sem

margem de dúvida uma realidade. [Uma] realidade geográfica? Não só. [É uma realidade] histórica e cultural. Montesquieu tem muito claramente o sentimento de que o que caracteriza a Europa e a vida da Europa é precisamente o facto de a Europa ser o resultado de uma união de elementos nórdicos e de elementos mediterrânicos. Di-lo muito bem, muito inteligentemente:

** *[«Há na Europa uma espécie de alternância entre as nações do sul e as do norte. As primeiras têm toda a espécie de comodidades para a vida e poucas carências; as segundas têm muitas carências e poucas comodidades para a vida. A umas, a natureza deu muito e elas pedem-lhe pouco; às outras, a natureza dá pouco e elas pedem-lhe muito. O equilíbrio mantém-se pela preguiça que ela deu às nações do sul e pela indústria e actividade que deu às do norte... Foi o que naturalizou a servidão nos povos do sul: como facilmente passam sem riquezas, podem ainda melhor passar sem liberdade. Mas os povos do norte têm necessidade da liberdade que lhes proporciona meios de satisfazer todas as necessidades que a natureza lhes deu. Os povos do norte sentem-se pois em estado forçado se não forem livres ou bárbaros: quase todos os povos do sul estão em estado violento se não forem escravos» (Mostesquieu, L’Esprit dês Lois, Livro XXI, capítulo III, pág. 214)7

Há aqui, evidentemente, toda uma filosofia da natureza um pouco232A EUROPAgrosseira e sumária, mas o facto essencial está bem visto, a Europa é «uma espécie de alternância entre as nações do norte e as do sul», fórmula das mais felizes.)*

Esta Europa, coloca-a Montesquieu mais em oposição do que abarcando-a como um todo. Em oposição a quê? Primeiro, aos outros continentes. O Espírito das Leis, em 1748, tem já um sentimento muito forte de hegemonia europeia:

«A Europa chegou a um grau de poder tão alto que o historiador nada tem para lhe comparar, se considerarmos a imensidão das despesas, a grandeza dos compromissos, o número de soldados e a continuidade da sua manutenção» (Montesquieu, Esprit dês Lois, Livro XXI, capítulo XXI)».

É uma constatação simples. Passemos à explicação, aliás bastante singular e baseada em toda uma metafísica político-climática. Na Ásia: « ... os povos guerreiros, bravos e activos vencem

imediatamente os povos efeminados, preguiçosos, tímidos: é pois necessário que um seja conquistado e o outro conquistador. Na Europa, pelo contrário, as nações opõem-se forte a forte; as que se enfrentam têm quase a mesma coragem. É a grande razão da fraqueza da Ásia e da força da Europa, da liberdade da Europa e da servidão da Ásia; que eu saiba, ainda ninguém viu a causa. É o que faz com que na Ásia nunca aconteça a liberdade aumentar; ao passo que na Europa ela aumenta ou diminui conforme as circunstâncias.» ,

Mas outras reflexões vão mais longe, por exemplo quando Montesquieu nota que: «O efeito da descoberta da América foi entregar à Europa a Ásia e à233LUCIEN FEBVREÁfrica. A América fornece à Europa a matéria do seu comércio com esta vasta parte da Ásia a que chamamos as índias Orientais. A prata, o metal que se utiliza no comércio, como sinal, foi também a base do maior comércio do universo, como mercadoria. Enfim, a navegação da África tornou-se necessária; fornecia homens para o trabalho das minas e das terras da América.»10

Montesquieu conhece também e diz qual a vantagem que a Europa retira da sua relativa tranquilidade. Mas não se ilude. Sabe que a Europa não é homogénea, que entre o Norte e o Sul há um fosso violento, que a civilização é precária:

[A maior parte dos povos da Europa são ainda governados pelo costume. Mas se, por um longo abuso do poder, ... o despotismo se estabelecesse em determinado ponto, não haveria costumes nem clima que aguentassem; e nesta bela parte do mundo a natureza humana sofreria, pelo menos por algum tempo, os insultos que lhe fizeram nas três outras» (Montesquieu, Esprit dês Lois, Livro VIII; capítulo VIII, página 195)11.)

Tal é a Europa de Montesquieu, poderosa mas frágil; dominante, mas precária; senhora das riquezas e do comércio de todo o universo, mas arruinada pelo seu militarismo, por «manter um número desordenado de tropas» (Esprit dês Lois, Livro XIII; capítulo XVII, página 19), tão arruinada que os particulares «que estiverem

na situação em que estão as três mais opulentas potências desta parte do mundo não terão de que viver.»12

A Europa de Montesquieu é um meio termo, intermédio entre a pátria e o género humano. Um texto dos Cahiers de Montesquieu, publicado por234A EUROPAGrasset em 1941, di-lo excelentemente, na página 10, um texto em duas «formas» como dizem os gravadores:

«Se eu tivesse uma coisa útil à minha nação que fosse ruinosa para outra, não a proporia ao meu príncipe, pois sou homem antes de ser francês (ou melhor) porque sou necessariamente homem e só por acaso sou francês.13

Compare-se com os textos de Fénelon. À parte o acento cristão e o absurdo das últimas palavras: francês por acaso! (estes homens não têm qualquer sentimento da força da terra, uma base tão forte), é a mesma atitude. Fénelon, simplesmente, teria falado de caso de consciência onde Montesquieu fala apenas de humanidade, sem empregar a palavra. *[Mas a fórmula não o satisfazia. Retoma-a (ibid.): «Se eu soubesse alguma coisa que me fosse útil e que fosse prejudicial à minha família, expulsá-la-ia do meu espírito. Se soubesse de uma coisa útil à minha família e que não o fosse à minha pátria, procuraria esquecê-la. Se soubesse de uma coisa útil à minha pátria e que fosse prejudicial à Europa, ou então que fosse útil à Europa e prejudicial para o Género humano, considerá-la-ia um crime.»14

Bela graduação e muito do século XVIII, deste tímido (é ele que o diz, página 9), tímido no mundo, tímido na vida, mas que não o era no seu gabinete, ele, que escreve: «Não perfilho opiniões, excepto as dos livros de Euclides» (página)15]*

Esta Europa de Montesquieu é também, com pequenas diferenças, a Europa de Voltaire. E não vou insistir muito mais. com pequenas diferenças? Em quê? Primeiro, um orgulho maior em ser europeu que com-235LUCIEN FEBVREtrasta com as reservas de Montesquieu quanto à grandeza, à força, ao devir da Europa. É que, contrariamente ao que se pensa, Voltaire é muito mais capaz de entusiasmo que Montesquieu, de entusiasmo pela civilização que é o seu tema, o seu pensamento, o seu amor, se bem que não tenha a palavra. Montesquieu, não é a civilização que o interessa, é a física dos corpos políticos. São as incessantes variações

de posição, de volume, de potência dos estados em que inúmeras reflexões no-lo mostraram extremamente activo. Esta, por exemplo (Cahiers, página 181): «A França já não está no meio da Europa, é a Alemanha.»16

A Alemanha porque, por trás desta Alemanha, há as enormidades: a Suécia de Carlos XII, a Rússia de Pedro o Grande. Enormidades é termo do próprio Montesquieu [sobre] Carlos XII, página 181: «Poder-se-ia comparar Carlos XII, rei da Suécia, ao ciclope da Fábula que tinha uma força tão grande mas era cego..., sempre no prodígio e nunca na verdade. Enorme, e não grande... »17

«Sempre no prodígio e nunca na verdade», que admirável fórmula para designar esses «génios do Norte», os guerreiros «bárbaros» que de vez em quando agitam o mundo para além do Reno ou, se se preferir, para além do Elba, Albis, o rio além do qual começa verdadeiramente a barbárie... E do mesmo modo, Montesquieu escreve: «Eu digo: ”O Czar não é grande. É enorme”.»18

Quanto a Voltaire, o que o preocupa não são estes problemas de volume, de densidade, de potência, não. São questões como esta: a Europa moderna vale mais que a Europa antiga. É um problema que ele debateu muitas vezes, por exemplo, no Éloge fúnebre dês officiers morís dam la guerre de 1741:236A EUROPA«Nenhum povo iguala ainda os antigos Romanos. Mas toda a Europa vale hoje muito mais do que esse povo vencedor e legislador: considere-se tantos conhecimentos aperfeiçoados, tantas invenções novas; o comércio imenso e hábil que abarca os dois mundos; tantas cidades opulentas erguidas em lugares que não passavam de desertos no tempo dos cônsules e dos Césares; deite-se os olhos sobre os exércitos numerosos e disciplinados que defendem vinte reinos organizados; penetre-se na política sempre profunda, sempre actuante, que mantém o equilíbrio entre as nações. Enfim, a própria cobiça que reina entre os povos modernos, que excita o seu génio e anima as suas obras, serve também para erguer a Europa acima do que ela admirava esterilmente na antiga Roma, sem ter a força, nem sequer o desejo de a imitar» (oeuvres completes, Garnier, tomo XXIII; página 252).

Ou ainda em L’A.B.C, ou Dialogues entre A.B.C., traduit de 1’anglais kU. Huet, editado em 176820. O tema do sétimo diálogo é. «De como a Europa moderna vale mais que a Europa antiga» (oeuvres completes, Garnier, tomo XXVII; página 352).

«Ah! - exclama B (e B fala como Voltaire!) - ah!, exceptuai, rogo-vos, a Grécia, que obedece ao Grão-Turco, e a infeliz parte da Itália que obedece ao papa.»

Mas A replica com orgulho, sem se deter na insinuação: «Conta para vós pouco que haja hoje filósofos no trono em Berlim, na Suécia, na Polónia, na Rússia, e que as descobertas do nosso grande Newton se tenham tornado o catecismo da nobreza de Moscovo e de Petersburgo?»21

Orgulho pelas conquistas, pela expansão irresistível, pelas anexações237LUCIEN FEBVREincansáveis do que Voltaire ainda não chama, pois não tem a palavra, só dispõe de palavras velhas, de velhas fórmulas, valer mais, ser organizada, não conhece, nunca emprega a palavra que vai nascer no fim do século e encher todo o século XIX com o seu prestígio, a palavra civilização22.

E veja-se a diferença entre Montesquieu e Voltaire até na preocupação com os homens e as coisas do Norte. A França já não está no meio da Europa, é a Alemanha: preocupação com a geografia política, com a geopolítica, como dizem os Alemães. A nobreza de Moscovo e de Petersburgo conquistada para Newton: preocupação de cultura intelectual, material também, porque Voltaire é o homem que escreve, por exemplo:

«boas casas, boas roupas, bomfísico com boas leis e liberdade valem mais que a fome, a anarquia e a escravatura.»23

Há algo de burguês, e não de aristocrático, nesta afirmação de bomsenso, de um bomsenso que seria um pouco curto se, no fim da frase, a liberdade não aparecesse com as suas asas. Mas Voltaire sabe, e recorda sempre, que a civilização tem fortes bases materiais. Politicamente, continua partidário da teoria do equilíbrio. Di-lo, por exemplo, no capítulo II do Siècle de Louis XIV. Mas procura fundamentar também esta teoria e fundamenta-a com a civilização. Eis a passagem: «Há já muito tempo que se podia olhar a Europa cristã (menos a Rússia) como uma espécie de grande república dividida por vários Estados, uns monárquicos, outros mistos; estes aristocráticos, aqueles populares, mas todos em correspondência uns com os outros; todos com um mesmo fundo de religião, embora divididos em várias seitas; todos com os mesmos princípios de direito público e de política, desconhecidos nas outras partes do mundo.»24

Esta passagem é curiosa porque Voltaire não omite a religião, «O mês-238A EUROPAmo fundo de religião» (de que não dá o nome). Mas passa por ela depressa. E os «princípios de direito público e de política desconhecidos nas outras partes do mundo» de que ele fala, não os liga, pelo grande papel que lhes cabe, ao pensamento cristão. Faz deles filhos de uma razão abstracta, intelectual e descarnada.

*[Isto, refiro-me a esta omissão do pensamento cristão, é muito sensível no seguinte: «É por estes princípios (estes princípios de direito público e de política) que as nações europeias não fazem escravos os seus prisioneiros... »25

(Não. Se as nações europeias não fazem escravos os seus prisioneiros é na medida em que os prisioneiros são cristãos. Se não forem cristãos, não têm escrúpulos em os escravizar.)E Voltaire prossegue: «É por estes princípios que elas respeitam os embaixadores dos seus inimigos, que elas estão de acordo quanto à preeminência [...] de certos príncipes, como do imperador, dos reis e outros potentados menores; e que elas se põem de acordo sobretudo na sábia política de manter entre elas, tanto quanto possível, uma balança igual de poderes, empregando constantemente as negociações, mesmo no meio da guerra, e mantendo reciprocamente embaixadores ou espiões menos honrosos que podem avisar de todo o decurso dos desígnios de uma só, dar ao mesmo tempo o alarme à Europa e preservar as mais fracas das invasões que o mais forte está sempre pronto a empreender.»26]

A Europa é portanto, para Voltaire, primeiro e acima de tudo uma comunidade de costumes, de costumes muito definidos, muito distintos dos costumes orientais, como refere o Essai sur lês murs, volume IV, resumo239LUCIEN FEBVRE«Tudo difere, tudo difere entre [os Orientais] e nós: religião, política, governo, costumes, alimentação, vestuário, maneira de escrever, de se exprimir, de pensar. A maior semelhança que temos com eles é este espírito de guerra, de morte e de destruição que sempre despovoou a terra.»27

Era a Europa de Montesquieu, a Europa de Voltaire; eis agora a Europa | de Jean-Jacques. E é sempre fundamentalmente a mesma, apenas com algumas diferenças de temperatura, mas nele, porém, com algo de mais firme, de mais assente, de mais simplificado, se se quiser, e aquela espécie de vibração contida, de ardor fremente na afirmação que distingue em Rousseau o chefe do coro das almas sensíveis, como,

no seu belo livro sobre o pré-romantismo, lhe chama André Monglond28.

Em Rousseau, saltemos de seguida para o texto essencial nas Considérations sur lê gouvernement de Pologne, [editado em] Abril de 1772:

«Hoje já não há Franceses, Alemães, Espanhóis, até Ingleses, por muito que se diga; há só Europeus. Todos têm os mesmos gostos, as mesmas paixões, os mesmos costumes, porque nenhum recebeu forma nacional por uma instituição particular... Que lhes importa a que senhor obedecer, de que estado seguem as leis? Desde que encontrem dinheiro para roubar e mulheres para corromper, sentem-se em casa em qualquer parte.»29

É um grande texto, apesar da explosão final, um pouco fácil; é um grande texto porque data o advento na história não apenas da Europa mas do Europeu, *[do Europeu já invocado, um século antes (mas em latim) pelo grande pedagogo e teórico da política checo Comenius, e que esta \ observação me dê ocasião de honrar o contributo de rara qualidade que o país de João Hus, o país de Comenius, o país de Masarick (nestes três nomes, toda uma evolução) deu a esta sociedade invisível e irradiante das ideias europeias em que participamos e que, mesmo não tendo nós plena consciência disso, servimos com o melhor de nós próprios, Comenius, em240A EUROPAquem o horror da Guerra dos Trinta Anos suscitara o desejo apaixonado de trabalhar pela reconciliação dos povos, Comenius, foi aos Europeus, ad Europaeos, que dedicou o seu Panegersia, o seu Despertar universal editado sem nome de autor em 1666: «Restauremo-nos primeiro, Europeus, para arrastarmos os outros povos e os unirmos a nós.»30]

Europeu, a palavra está em Montesquieu (Esprit dês Lois, livro XXV, capítulo XV), mas sem relevo, sem o relevo, sem a paixão que atesta a frase de Jean-Jacques:

«Hoje já não há Franceses, Alemães, Espanhóis, até Ingleses. Há só Europeus.»31

Não importa que a desviemos ligeiramente do sentido que pretendeu dar-lhe o seu autor. Não deixa por isso de marcar, na história da Europa, um grande momento. Marca o advento do Europeu como cidadão da sua | grande pátria: a Europa.

má Que calor, que impulso, que vida dos espíritos durante esta segunda metade do século XVIII... Parece um transbordar irresistível de boas vontades e de gerações «sensíveis» nestes tempos felizes, ao longo desta espécie de pausa amistosa entre o fanatismo religioso que se vai e o capitalismo duro, mineral, metálico que ainda não chegou...

É o momento em que os Franceses começam a dizer humanidade correntemente onde diziam uma velha palavra que já não pronunciam, cristandade32. É o momento em que, a marcar os novos progressos da laicidade, os Franceses atestam, mais ainda, os progressos que não cessaram na sua tomada de posse cordial do género humano. É o momento em que, alargando a sua visão até aos limites do planeta, os Franceses seguem com toda a simpatia os grandes navegadores, os grandes descobrimentos de homens novos na sua demanda transoceânica e trazem nas suas bagagens, para alegria de Diderot, o bomselvagem, irmão atrasado do bom europeu,241LUCIEN FEBVREa «lagarta ainda fechada no seu casulo», como dizia Voltaire, mas que um dia será borboleta33.

É o momento, enfim, em que «as grandes almas cosmopolitas» de que fala Jean-Jacques no seu Discours sur 1’inégalité, 1762, transpõem as «barreiras imaginárias» que separam os povos, abarcam o conjunto de todo o género humano e começam a sentir, como um novo dever, o dever de garantir ao próximo, em todas as partes da terra, paz e felicidade a todas as famílias humanas, mesmo as mais perdidas no isolamento e na barbárie, i mesmo as mais distantes e atrasadas34.

Propaga-se então a palavra filantropia, criada por Fénelon35. Conhece então novo favor a velha palavra cosmopolita, já reivindicada orgulhosamente por Guillaume Pastel36. Declara então o abade Raynal: «É o universo a pátria de um grande homem»:37.

E por um lado lança-se em circulação, cada vez mais, toda uma série de fórmulas derivadas do abade de Saint-Pierre: política europeia (no sentido de civilização), sociedade europeia, república europeia, tribunal europeu para a paz europeia, tudo o que Turgot irá baptizar com uma palavra | prudente: a «bruma das ilusões europeias»38. Nasce então o cidadão do mundo, como diz Saint-Simon, ao falar do príncipe de Vaudémon, o cidadão do universo, como dizia já La Fontaine em 1687.

Nascem ao mesmo tempo que o Europeu, enquanto se começa a falar (por exemplo, com Lê Mercier de la Rivière, em 1767, no seu Ordre naturel et essentieldes sociétés polítiques) de sociedade das nações, de sociedade universal das nações: toda uma eclosão, toda uma explosão39. Mas detenhamo-nos nesta palavra, nação40.242

Lição XXII

Evoquei, ao terminar, esse grande momento do fim do século XVIII, esse grande momento em que os Franceses começam a dizer humanidade onde os seus pais e os seus avós ainda diziam uma velha palavra que já não pronunciam, de que já não gostam, cristandade; esse grande momento em que os Franceses já não dizem França sem pensarem na Europa, repetindo a frase de Jean-Jacques:

«Hoje já não há Franceses, Alemães, Espanhóis, até Ingleses. Há só Europeus»;

esse grande momento de fervor em que todos os franceses repetem, do fundo do coração, a bela, a triunfante litania de Montesquieu:

«Se eu soubesse alguma coisa que me fosse útil e que fosse prejudicial à minha família, expulsá-la-ia do meu espírito. Se soubesse de uma coisa útil à minha família e que não o fosse à minha pátria, procuraria esquecê-la. Se soubesse de uma coisa útil à minha pátria e que fosse prejudicial à Europa, ou então que fosse útil à Europa e prejudicial para o Género humano, considerá-la-ia um crime... »!

Para eles, os grandes navegadores do fim do século, os que partem à243LUCIEN FEBVREprocura do continente austral e que, pelo caminho, encontram muito simplesmente o mundo do Pacífico, a Nova Zelândia, a Austrália, as Sandwich, as Marquesas de Cook, e, mais quente no coração dos Franceses, a Tahiti de Bougainville e as ilhas Samoa, e as Novas Hébridas, e todas essas ilhas onde vive o «bom selvagem», com que sonham, alargando a sua visão à medida total do planeta, essas «grandes almas cosmopolitas» de que fala Jean-Jacques; para eles, a pequena pátria torna-se demasiado pequena, demasiado mesquinha, demasiado fria2. É precisa à sua «filantropia», é precisa ao seu «cosmopolitismo» essa «pátria do grande homem» que se chama, no dizer do abade Raynal, «universo»3. Mas é-lhes sempre precisa a Europa, esta Europa que se torna a sua verdadeira pátria, a sua super-pátria, até ao dia em que, bruscamente, uma palavra que não era nova na língua, uma palavra obscura que até então vegetava, por assim dizer, na obscuridade, uma palavra sem prestígio, sem virtude, sem

poder nem valor, uma palavra que nem sequer se empregava no singular, uma palavra que só se empregava no plural, como sinónimo de povos, até ao dia em que a palavra «nação» levanta voo, se manifesta em pleno dia, explode, se se quiser, e bruscamente conhece um maravilhoso desenvolvimento semântico, nação, e a nação (pois já não se diz confusamente as nações, diz-se triunfalmente e em voz de clarim, a nação) a nação vai travar combate contra a Europa. E nestas fases alternadas de nacionalismo, como em breve se dirá, e de internacionalismo, de nacionalismo e de europaísmo, marca-se o triunfo, por algum tempo, da ideia nacional sobre a ideia europeia... Como se passou isso?

*[Há já duas lições que vogamos de velas desfraldadas para a Europa, a terra prometida, esse outro continente austral para onde, a partir do século XVII, a partir do fim do reinado de Luís XIV, a partir do último quarto deste duplo, deste triplo reinado, tão pleno de acontecimentos, tão «cambiante» e que nos obstinamos em tratar como uma unidade, singram primeiro as naus aventureiras dos contemporâneos de Fénelon, depois dos contemporâneos de Montesquieu, depois, já sem preocupações porque as244A EUROPArotas são conhecidas, os portos de atracagem foram repensados e equipados, já sem terem que se preocupar com o trajecto do descobrimento mas apenas com os equipamentos, depois as fragatas de Voltaire, os cargueiros de Jean-Jacques e toda a frota, e toda a flotilha mobilizada dos seguidores, dos exploradores, dos mercadores que os escoltam, os acompanham, lucram com eles... : Desde há duas lições]* que estamos em plena Europa. Todos falamos de Europa. A Europa está em vias de se tornar a primeira categoria do pensamento político. Já só há Europa. As pátrias desvanecem-se diante dela. Europa ... Europa ... é tão bela, na linha do horizonte que aumenta rapidamente à medida que nos aproximamos, como uma das cidades brancas para onde se dirigem, a toda a velocidade, os nossos barcos rápidos... Uma ligeira bruma que sai das águas fá-la parecer mais próxima, mais bela, mais ideal. É uma pátria, mas uma pátria de sonho. Não lhe vemos os defeitos. Ela deixa-se pensar e repensar. Deixa-se ir... a Europa... E porque é que os Franceses, por mais ligados que estejam ao seu país, à sua França, i à sua pátria, haviam de se privar dela? Pois não é esta Europa, a bem dizer, o prolongamento da França? Uma ampliação? Uma promoção, se se preferir? Esta Europa que vive só no cérebro dos homens cultos, dos ho•fliens instruídos, dos que têm tempo para ler, escrever, pensar, dos nobres, dos ricos, os François Salignac de la Mothe-Fénelon, bispo-duque de Cambrai, que é o preceptor do delfim; um Montesquieu que escrevia:

«É-me tão impossível ir a casa de alguém com o fito no interesse como me é impossível voar pelos ares» (Cahiers, página 7);

o Montesquieu que raciocinava:

«Não me consolaria de não ter feito fortuna, se tivesse nascido em Inglaterra. Não me incomoda nada não a ter feito em França» (página 14):245LUCIEN FEBVREmas podia também dizer, e dizia:

«Deus deu-me bens e eu dei-me o supérfluo.»4

Pois bem, todos os franceses deste tempo, os ricos ou os que trabalham para os ricos, lidos pelos ricos, sustentados pelos ricos, alimentam nas suas cabeças pensamentos de ricos que, mesmo quando são perigosos para os ricos não deixam de ser por eles adoptados, e tão bem adoptados que eles não os largam, reparem bem.

Relia outro dia no Journal d’émigration du comte d’Espinchal as lamentações deste perfeito fiel da monarquia, deste soldado do exército de Conde, deste adversário irredutível dos padroados, como ele diz, relia uma página singular: lamenta-se ele, em Fevereiro de 1793, um mês após a decapitação do seu rei, porque acaba de saber que venderam o seu castelo de Massiac, \ no Auvergne, contentor e conteúdo. E o que mais lamenta é a sua biblioteca de 6 000 volumes que continha obras preciosas... Que obras? Escutem bem,

é, repito, um emigrado que fala, um perfeito cortesão, um homem célebre por conhecer a fundo toda a gente na corte e todas as histórias, pequenas e grandes, sobretudo pequenas, deste mundo da corte, escutem, é um soldado do exército de Conde que fala: a sua biblioteca, o que ela contém, o que ele lamenta em Fevereiro de 1793, este encarniçado partidário do Ancien Regime, é a sua Encyclopédie em 33 volumes in-fólio, é a sua soberba edição de Buffon in-quarto, é uma belíssima e muito completa edição de Voltaire, de Rousseau... . Vêem portanto que ele não pensa em rejeitar os autores da Revolução, nem os seus fautores, nem tão-pouco os cúmplices dos revolucionários...

A Europa, a Europa tal como é vista, como é sonhada, como é imaginada no século XVIII, a Europa é uma noção de ricos, de homens cultos, letrados, educados; de homens para quem não se põe a questão do pão de cada dia; de homens que vivem entre homens para quem essa questão não existe; de homens para quem não há problema social, questão social vi-

246A EUROPArulenta, ou melhor, que a reduzem, à questão social, às suas relações pessoais com os seus vassalos, como diz Montesquieu («Nas minhas terras, com os meus vassalos», Cahiers, páginas 6-7). Mas vou ler toda a passagem, é característica:

«Nas minhas terras, com os meus vassalos, nunca quis tolerar que me aborrecessem com contos alheios. Quando me dizem: ”Se soubésseis que discursos fizeram!” Não quero saber - respondi. Se o que me querem contar for falso, não quero correr o risco de acreditar, se for verdadeiro, não quero dar-me ao trabalho de odiar um patife.»6

E aqui está a questão social para Montesquieu... Pois bem a Europa deles é esta, uma Europa para gente de espírito, uma pátria para homens inteligentes que se comprazem em reter, apenas para com ela se glorificarem, para dela se vestirem, que se comprazem em reter apenas a inteligência de toda a sua dotação social: nascimento, poder, fortuna otalento, cada vez menos, e emprego deste talento conforme os gostos e em benefício dos ricos, dos bem nascidos, dos poderosos deste mundo, reis e rainhas incluídos. Pensem no Frederico II de Voltaire, na grande Catarina de Diderot, na Pompadour, essa rainha supletiva de tantos dos nossos escritores e artistas. A Europa deles é uma pátria, mas a pátria dos galantes que, de uma ponta à outra da Europa, se reconhecem por falarem uma mesma língua, a língua francesa; por lerem os mesmos livros, livros franceses; por terem as mesmas ideias, ideias francesas; por habitarem os mesmos castelos à francesa, construídos para eles por arquitectos franceses, à semelhança de Versailles, se se trata de grandes personagens ou de megalómanos, Trianons se se trata de pessoas mais modestas. E nestes castelos, estes homens penduram telas dos mestres franceses ou dos seus discípulos, como Frederico II em Potsdam ou Catarina no Ermitage. E nestes castelos, estes homens comem, nos confins da Curlândia, nos confins da Podólia, nos confins da Moscóvia, a co-247LUCIEN FEBVREzinha francesa para eles preparada por cozinheiros franceses. E são penteados pelo seu mestre de perucas, pelo seu cabeleireiro francês. E as suas camareiras chamam-se Manon e as suas criadas La Fleur ou Basque. A amante chega-lhes da Ópera de Paris... Tudo isso Europa, a Europa, pátria das pessoas cultas? Vejamos. É a pátria dos franceses cultos, embriagados de irradiação da sua cultura no exterior, embriagados pela espantosa expressão da sua arte através do mundo, desta conquista da sua Europa pela arquitectura francesa, com a mesma extensão mas com mais peso

do que, no limiar do século XX, teve a conquista da Europa pela pintura francesa; é a pátria dos franceses cultos que passam sem dificuldade da sua França para a sua Europa, uma vez, que, para operar essa passagem, não é preciso renunciar aos hábitos de vida, nem ao conforto a que estão habituados, nem, sobretudo, à sua língua... e o francês acede à universalidade, a essa universalidade que Rivarol celebrará... (De 1’universalité de la langue française; discours qui remporte lê prix à 1’Académie de Berlin, Berlim e Paris, 1784 ).

Eis o que é esta Europa, não digo do século XVIII (seria dar-lhe uma realidade substancial que nunca teve), mas dos homens cultos, dos franceses cultos do século XVIII, esta Europa francesa, como escreve em 1777 o marquês Caraccioli, embaixador de Nápoles em Versailles, num opúsculo inteligente, Paris, lê modele dês nations étrangères, ou Europe française, esta Europa que os franceses podem promover tanto melhor, podem acariciar em sonhos, elevar acima dos conflitos e das aventuras de todos os dias que, note-se, começou a aparecer quando o exército do grande rei já não era invencível nem invicto; começou a aparecer quando ele deixou de poder, invencível e invicto, dominando os Estados que o rodeavam, fazendo tremer, digamos a palavra, a Europa inteira, quando ele deixou de ter pela frente uma França dominante e triunfante, uma Europa dominada e submetida perante uma França atacada por todos os lados, uma Europa coligada contra ela (recordemos, entre cem, o título de uma das edições clandestinas de Pierre Marteau, em Colónia, em 1688, in-12°: L’-248A EUROPAEsprit de la France et lês maximes de Louis XIV découvertes à Europe [O Espírito da França e as máximas de Luís XIV reveladas à Europa]) e depois em breve é o segundo tempo, perante uma França diminuída, batida, arruinada, perante uma França forçada a marcar os polegares em Utrecht, uma Inglaterra que parece assumir-se sua herdeira, uma Inglaterra que começa por aliviar esta França, em 1713, do fardo das suas colónias, e que termina o deslastramento em 1763, em Paris, com a cumplicidade real de um Luís XV8.

Compreende-se assim que aos Franceses, a França não baste. compreende-se que eles já não se encerrem em França. Compreende-se que escoem desta França para uma Europa que os consola dos seus insucessos, que os reabilita aos seus próprios olhos, que lhes restitui em prestígio cultural, de cultura para os ricos, para os bem nascidos, para os privilegiados,

O seu papel, um papel de glória, tão necessária à sua boa sobrevivência moral e mental, o seu papel de prestígio e de brilho...

Quem se ocupar exclusivamente do jogo das ideias puras, quem não as encarnar na carne de um povo, quem não as enraizar no solo de um país, não compreende nada das relações destas duas noções de França e de Europa que estão perpetuamente em equilíbrio recíproco, em ruptura, em flutuação e em transformação.

Em 1660, em 1670, sim, há a França, a França que reina, que triunfa, que domina. A Europa é o resto. É o que esta França tem perante si, o que ela sonha sujeitar no geral e mastigar no pormenor: pensem nas câmaras parlamentares e no seu trabalho de mastigação. Em 1710, em 1715, quando o velho rei, depois de ter assinado a paz de Utrecht, por fim desaparece, aos gritos de alegria dos seus súbditos que, ” na estrada de Paris para Saint-Denis, mostram o punho ao féretro, está perante a Inglaterra que cresceu com tudo o que França perdeu em tamanho, i está a Europa, de que a França se institui como promotora e campeã, a França, talvez não com esta simplicidade, a política francesa, a política,249LUCIEN FEBVREa diplomacia, velhas coisas complicadas, servidas por velhos métodos complicados; mas os Franceses, os franceses cultos, os franceses com responsabilidades de Estado, esses, por instinto, fazem-se europeus. Sempre se fizeram europeus com o mesmo instinto, quando sentiam, perante qualquer perigo e por necessidade até da sua pátria que a salvação para eles, que a salvação para esta pátria não estava em fechar-se sobre si própria, i no isolamento, na auto-suficiência política, económica e intelectual, mas, pelo contrário, na organização de uma Europa que pode rodear a França, ampliar as suas reivindicações, garantir a sua retaguarda, apoiar e prolongar as suas ideias claras... ;

com efeito, não se compreende de imediato e em toda a parte que a paz de Utrecht marca na realidade a grande vitória pacífica da Inglaterra, que 1713 é uma data tão grande na sua história como a da ruína da Armada Invencível. A França pode não se afligir com uma paz «branca», que nada lhe tirava, parecia, e que lhe proporcionava a benesse inestimável da paz, Por isso os Franceses consideravam os Ingleses sobretudo salvadores enviados pela Providência para lhes trazer uma paz benfazeja, miraculosa, duradoura... E é isso que explica que os Franceses tenham tido tanta dificuldade em ir para a escola inglesa em filosofia, em política, em direito público. [Veja-se] o que diz Saint-Simon destes tratados, que pareceram «um retorno miraculoso da boa fortuna»9.

Agora, posto isto, podemos voltar à nossa questão, ao nosso drama, Porque é um drama, um grande drama. No primeiro quartel, no segundo quartel, no terceiro quartel do século XVIII, a Europa está em toda aparte, [ Havia cada vez mais Europa. A Europa coroava as nações. A Europa coroava a França. No último quartel do século XVIII, é a nação que reclama, a nação que cresce, a nação que se afirma, nação, e nacional, e nacionalidade, e nacionalismo, e a França que já não suspira: Europa, Europa,,,, a França que grita, em Valmy: «Viva a Nação»... ;

Como se produziu isto? Nação, uma palavra que terá no fim do sé-250A EUROPAculo XVIII tão grande crédito, esta palavra, utiliza-a Montesquieu, mas sem lhe prestar atenção especial. Diz indiferentemente os povos ou as nações. Não diz a nação. Não diz esta palavra com o acento que nela põem os homens do fim do século XVIII. Não põe nela mística, nem tão-pouco, muito depois dele, Rousseau. Em toda a passagem que vos li dele, diz: os povos. Fala da «sociedade dos povos da Europa. Em todo o Extrait du projet de paixperpétuelle (1756), encontrei uma única vez na pena de Jean-Jacques a palavra nação. É evidente que, por razões de fundo, ele a baniu .

E no entanto esta palavra nação segue o seu caminho, lentamente, subterraneamente, silenciosamente. De súbito explode, no fim do século, no tempo de Luís XVI e, coisa curiosa, nos meios populares, no exército, entre os soldados, estão fartos. «A Nação portou-se bem.» A frase não data de Valmy, do tempo em que os Franceses abordavam o inimigo gritando «Viva a Nação!». Não, encontra-se vinte vezes nos textos do século XVIII, no tempo das últimas guerras do Ancien Regime.

O certo é que só com a Revolução a palavra nação conhece um destino prodigioso. É que uma palavra pode existir na língua durante muito tempo sem virtude, sem poder, nem prestígio, nem valor. Bruscamente, todo um povo se põe por trás desta palavra, a leva avante, o que diz, com um excesso de lirismo, este texto revolucionário citado por Brunot, tomo IX, página 640:

«Pátria! Que palavra, outrora! E que palavra hoje! [...], a palavra pátria não passava então de um som vão; porque não há pátria onde há... bastilas; não há pátria onde já não há pátria [...”

Nação, é a mesma história. Para constituir nações, é preciso algo mais do que acordos fronteiriços, relações comerciais ou mesmo semelhanças entre línguas, instituições, deuses. É preciso uma

consciência comum, a persuasão de um parentesco moral, o desejo de viver numa fraternidade251LUCIEN FEBVREpolítica, o amor e o orgulho no nome que serve de sinal e de apelo comum... É preciso tudo o que fez com que a Alemanha deste tempo não se sentisse uma nação, tudo o que fez com que Goethe, em dois versos, assesse aos seus concidadãos, convidando-os a queimar a etapa da nação, a não aspirarem à nacionalidade, mas apenas à liberdade:

«É em vão que esperais, vós. Alemães, formar uma nação. Mas é mais uma razão para vos tornardes homens livres. E isso está ao vosso 12 alcance... »

Ilusão pueril e fórmulas vãs. Porque o homem não pode ser livre se; não for um cidadão, na plenitude da palavra, salvo, entenda-se, na ilha de Robinson, e enquanto Robinson está sozinho (pois assim que aparece Sexta-Feira, o problema da liberdade levanta-se). Para libertar o homem a Alemanha precisava, tal como a França, de uma revolução, uma revolução [ que só era possível por um movimento concertado e forte e este movimento, que acabou por não ter lugar, este movimento pressupunha já de si uma vida nacional poderosa e unida... Goethe enganava-se e Hegel sabia-o bem quando, numa carta a Victor Cousin, suspirava:

«Tendes sorte, vós, Franceses... , sois uma nação.»13

Resumamos tudo isto numa palavra: pensar um ideal, um mesmo ideal, é a condição necessária das pátrias reais. A França, no fim do século XVIII, começou a pensar um ideal, um ideal territorial, um ideal suportado por esta forte e boa base, a terra, e por isso mesmo, um ideal nacional quer se queira quer não, pois se pátria é, etimologicamente, a terra dos nossos pais, a nação é a comunhão dos homens a que pertencemos, quer queiramos quer não, pelo simples facto do nosso nascimento nesta terra dos nossos pais. E a terra dos nossos pais é a França, não é a Europa. Os Franceses perceberão isso bem quando tiverem que escolher, em 1791, em252A EUROPA1792, em 1793: ou ficar em França ou sair de França, passar as fronteiras da França, as fronteiras que os grandes, os ricos, os poderosos, os que trazem em si a Europa como uma pátria intelectual transpunham sem se deterem com todos os passaportes requeridos; estas fronteiras de que terão medo; estas fronteiras que afrontarão tremendo, que tentarão passar clandestinamente, que farão do seu

universo geográfico e político duas pátrias, uma, a nacional, a sua pátria; a outra, a estrangeira, a Europa.

A Europa e talvez, nessa Europa, eles tentem viver como se estivessem em sua casa. E talvez, vivendo assim, nada neles se oponha, nenhum sentimento francês profundo. Recordemos a confiança de Madame de Boigne,ao revisitar os seus anos de juventude, de emigração, de exílio, de exilada em Inglaterra. «Que era eu nesses anos? Certamente não era francesa... Inglesa, talvez?» E de Boigne não pode passar pelo tipo de emigrante tacanha e fanática... 14

Tentam viver. Mas mesmo assim, já não estão em sua casa. Como não podem voltar, ou pelo menos regressar sem perigo a França, pelo facto de se terem auto-excluído da comunidade dos Franceses e esta comunidade dos Franceses os rejeitar por sua vez, são pois obrigados a reintroduzir no seu universo mental compartimentações, fronteiras, a fronteira entre a França e a Europa. São pois obrigados a ter, ao correr da pena, a palavra que não lhes pertence, a palavra pátria, que não lhes pertence, uma vez que, quando querem designar os seus inimigos chamam-lhes «patriotas». E por isso são forçados a dizer-se de uma pátria, que detêm, estes Que não se definem como Franceses mas como fidalgos, estes que não são servidores da França mas fiéis ao seu rei, que é o rei de França mas acima de tudo o rei15.

Nasceu um ideal que é portanto territorial, na medida em que é natural; [um ideal] que é também outra coisa: é político. E para ficar a sabê-lo basta-nos olhar para as fachadas das velhas mairies, das nossas velhas câmaras municipais, num destes dias em que a chuva as fustiga, as mostra e253LUCIEN FEBVREfaz reviver as velhas inscrições sob a crosta dos anos: Nação, lei, rei16 A nação [vem] primeiro, a nação de que emana a lei, se bem que nesse tempo um gramático propusesse a palavra «leino» para substituir «reino»17. Em terceiro vem o rei, o rei que detém todos os poderes da nação, o rei que é o primeiro servidor da lei, o rei que, a 4 de Outubro de 1789, dirá que convida a nação a ir socorrer o Estado18.

Nação, lei, rei, esta fórmula que a Assembleia exige ver inscrita nos botões da farda da Guarda Nacional (e que é demasiado longa para lá caber, o que dá todo um drama), esta fórmula é a dos novos tempos19. Antes, dizia-se: Uma fé, um rei, uma lei. Mas em 1789 tudo o que era real torna-se nacional, as finanças nacionais, o exército nacional, as instituições nacionais, a justiça nacional. A Assembleia já não é real, é nacional20. Os próprios curas têm que se tornar curas nacionais: é o próprio Mirabeau que o diz num discurso de Novembro de 1790 21. E o

crime dos crimes é o crime de lesa-majestade real, é, di-lo Grégoire na tribuna a 9 de Julho de 1789, é o crime de lesa-majestade nacional22.

Concluindo: a nação é o recife, o rochedo onde vai despedaçar-se a nau das esperanças europeias.

Porque a Europa, agora, para os Franceses, a Europa, para os patriotas,, como eles se autodenominam, a Europa é a Europa dos reis, a Europa hostil cujos exércitos os emigrantes, por um lado, o rei e a rainha de França pelo outro, querem mobilizar contra a Revolução, mas a Europa incomodada, a Europa inquieta, a Europa que, a estes emigrados franceses, a este rei, a esta rainha de França não concede todo o seu auxílio e por vezes o recusa mesmo brutalmente. Porquê? Porque, proclama-o Brissot a 29 de Dezembro de 1791, fazendo um panorama da política na Assembleia (Jaurés, La Législative, página 882):

«Não devemos limitar-nos a examinar agora as pequenas paixões, os pequenos cálculos dos reis e dos seus ministros»,254A EUROPAos reis, o de Inglaterra, cujo governo proclama a neutralidade absoluta; o da Prussia, que se declara pronto a agir apenas se a Áustria intervier; o da Áustria que tergiversa e procura apenas um pretexto para nada fazer; os do Norte, da Suécia4, da Rússia, que falam muito, prometem muito, mas nunca cumprem e levantam condições impossíveis para as suas acções; os reis, mas Brissot explica as suas reticências e as suas tergiversações, as suas hesitações: escutemo-lo:

«Embora as nações ainda não sejam livres, todas pesam agora na balança política; os reis são forçados a contar os seus votos para seja o que for... [...] Ora os povos já não estão dispostos a deixar-se espoliar [,..].»23255256

Lição XXIII

A Revolução: de como as ilusões europeias soçobram na nação

Não tinha terminado quando... Tinha feito uma pergunta. Tinha-vos [mostrado os homens do século XVIII, entre 1740 e 1780, unânimes, a saudar a Europa, verdadeira pátria de eleição. Tinha-vos mostrado a França à frente do movimento e indicado as razões da sua atitude. É que, como Pés disse, a Europa era uma pátria de

eleição para os homens da alta soi ciedade que tinham todo o tempo para se cultivar sem se preocuparem com as contingências materiais e que formavam com os homens da alta sociedade de todos os países europeus uma espécie de grande sociedade estabelecida acima das fronteiras, acima das pátrias, superior às pátrias na apreciação comum à maior parte dos que a ela afirmavam pertencer; uma pátria tal que, por toda a Europa, em Berlim como em Paris, em S. Petersburgo como em Varsóvia, em Amsterdam como em Barcelona, em Madrid como em Lisboa, em Nápoles como em Florença, todo aquele que pertencesse à alta sociedade cultural, fosse qual fosse a sua ascendência nacional, ficava imediatamente em pé de igualdade com todos os membros desta sociedade estabelecidos numa qualquer destas capitais, sendo isto verdade especialmente para os Franceses, franceses de boas famílias,257LUCIEN FEBVREe disse-vos porquê: porque a França se impunha de facto pelo prestígio de que gozavam a cultura francesa e a sua língua, a sua literatura, a sua filosofia, as suas artes, os seus costumes, a sua arquitectura, o seu conforto, o seu vestuário, a sua cozinha, os seus trajes... a todos os homens cultos do mundo europeu onde quer que [tivessem] nascido, fosse qual fosse o soberano de quem se declarassem súbditos.

As coisas eram assim e a França confundia-se de certo modo com a Europa quando, bruscamente, sobreveio uma catástrofe, quando bruscamente uma palavra se pôs a voar de boca em boca, quando bruscamente uma noção começou a conquistar todos os espíritos, a palavra nação, a noção de nação, a realidade viva da nação. E logo a questão deixou de ser a Europa como pátria, como a pátria. Já só se falava de nação, da nação e de tudo o que ela engendra de nacional. Logo os homens deixaram de dizer: «Já não somos Franceses, Alemães, Espanhóis, nem mesmo Ingleses. Já só somos Europeus». Não! Gritaram com todas as suas forças: Viva a Nação! Ou quando não gritaram (como foi o caso dos emigrantes, isto é, de um grande número de membros da elite dos ricos, ociosos, cultos e sem preocupações de que falava), quando não gritaram ouviram gritar com sentimentos de horror que lhes mostraram bem que eles se excluíam de algo verdadeiramente real, que se excluíam desta pátria de que o povo francês, dizia Casanova em

1797, se tinha tornado adorador sem nunca ter sabido, antes da Revolução, [o que era] pátria !

Como se operou esta transformação? Como é que esta palavra nação que sem dúvida existia na língua mas, por assim dizer, passava despercebida, como é que esta palavra obscura e sem virtude se tornou bruscamente o motor de tais impulsos, de tais devoções?

[Foi esta] questão que me levou a meditar convosco sobre o que dá ou não a sua plena realidade às pátrias. A sua plena realidade? Mas primeiro há que pensar a pátria como um território, um território munido de fron-258A EUROPAteiras, de fronteiras que podem tornar-se barreiras, fossos, barricadas, fronteiras que podem carregar-se de ódio.

Duras realidades, estas fronteiras que vieram bruscamente substituir os sonhos, relegar a Europa, a Europa flutuante, descarnada dos seus devaneios, para o país, não talvez das quimeras, mas das intenções; dos supérfluos, não, seria dizer demasiado. A cultura para estes homens não é um supérfluo, não é um luxo, é uma maneira de ser, mas, precisamente, percebeu-se de súbito que a sua maneira de conceber esta cultura era obra de uma elite, de uma aristocracia. E a palavra adquiriu uma ressonância política temível e singular.

E mais: quem veio dar à palavra nação a sua nova ressonância? Pois, precisamente, acabo de o dizer, foi a política, no mais lato sentido da palavra. Nação é uma palavra revolucionária porque sinal de uma revolução. E dizia-vos: olhemos as fachadas das velhas mairies quando a chuva persistente 2 lava a sua crosta secular . Por vezes numa coroa de carvalho, numa coroa cívica, ressurge uma inscrição: nação, lei, rei, uma inscrição tão cara aos nossos antepassados que quiseram lê-la até nos botões da farda da Guarda Nacional, o que levantou um grande problema, pois conseguia-se que coubesse naquele espaço exíguo a nação e a lei, a nação e o rei, a lei e o rei, mas não as três palavras ao mesmo tempo: era demasiado comprido !

E no entanto, como quebrar o encadeado? Primeiro a nação, a nação de onde emana a lei; a lei de que o rei é apenas um servidor, a tal ponto que um gramático propôs nessa altura substituir reino por «leino»4, e ouviu-se o próprio rei, a 4 de Outubro de 1789, dizer por palavras suas que convidava a nação a ir em auxílio do Estado... Uma fé, um rei, uma

lei: era uma fórmula de tempos volvidos. E bem se viu que os tempos foram mesmo revolvidos.

Viu-se quando, em 1789, tudo o que era real se tornou nacional. O exército foi nacional; a Assembleia, nacional; as finanças, nacionais; a guerra, nacional; a polícia, nacional; até os curas se tornaram curas na-259LUCIEN FEBVREcionais. Foi o próprio Mirabeau que o disse, no seu discurso de Novembro de 1790 5. O crime dos crimes, lesa-majestade nacional, foi Grégoireque o disse na tribuna, a 9 de Julho de 1789 6.

Pertences à nação? Esta pergunta foi dada em 1789 como senha. E é com efeito a pergunta, a pergunta que classifica um homem7. Teria ficado pasmado um francês a quem se fizesse essa pergunta em 1760, em 1770. Em 1789 todos os franceses compreendiam porque se tinha revelado uma força nova que dominava a política, que procedia do povo e não do soberano, que animava Rouget de Lisle ao compor, em Estrasburgo, o hino do exército do Reno que comovia até ao âmago o coração das multidões. E eis como, eis porquê a nau das esperanças europeias foi encalhar, em 1789, de repente, a nau orgulhosa que no entanto tinha o vento pela popa, foi de repente encalhar no recife da nação.

>- E a Europa? [Que era] então a Europa para os franceses, [que era] a Europa para os patriotas? A Europa foi a Europa dos reis, a Europa hostil cujos exércitos os emigrantes, por um lado, o rei e a rainha de França por outro, tentavam mobilizar contra a revolução, contra os patriotas; a Europa aliás inquieta, incomodada, embaraçada, indecisa; a Europa que, aos emigrantes não concedia de boa vontade todo o seu auxílio e por vezes o recusava brutalmente. Porquê? Porque, proclama-o Brissot a 29 de Dezembro de 1791, ao fazer um panorama da política na Assembleia:

«Não devemos limitar-nos a examinar agora as pequenas paixões, os pequenos cálculos dos reis e dos seus ministros.»8

É que os reis, os ministros, sentiam atrás de si, todos eles, as nações, as suas nações que se agitavam, despertavam, ganhavam vida e voz; os reis, o de Inglaterra, cujo governo proclamava a absoluta neutralidade; os reis, o da Prússia, «pronto a agir somente se a Áustria interviesse... »; os reis, o da Áustria, que tergiversa e procura todos os pretextos para nada260A EUROPAfazer; os reis, os do Norte, da Suécia, da Rússia: falam muito, prometem muito, nunca cumprem e colocam diante de qualquer acção condições

impossíveis; os reis, mas Brissot, no seu discurso, fornece-nos as razões das suas reticências, das suas tergiversações, das suas hesitações. Escutemo-lo:

«Embora as nações ainda não [sejam] livres, todas pesam agora na balança política; os reis são forçados a contar os seus votos para seja o que for... [...] Ora os povos já não estão dispostos a deixar-se espoliar por uma birra de reis, de nobres, e sobretudo por uma guerra imoral, ímpia.»9

Conclusão: será necessário que os povos, será necessário, mais precisamente, que «todos os amigos da liberdade se espalhem pela superfície da Europa» (e a Europa reaparece, mas já não é mais que uma Europa geográfica, um rótulo), será necessário que os povos ataquem e derrubem os tiranos, que iniciem, como diz Brissot, a guerra de expiação10. E não digamos; a Europa morreu para Brissot; a Europa morreu para os homens da Legislativa.

Não! Mas a Europa com que eles sonham, por oposição a uma Europa dos reis, uma Europa das nações, aquela de que falava, também na Legislativa, Louvet: ;

«E se a coligação dos tiranos estivesse completa? Ah, melhor para ouniverso! [...] Que o género humano se erga e respire! Que as nações sejam uma só; e que esta incomensurável família envie os seus plenipotenciários sagrados a jurar no altar da igualdade do direito, da liberdade dos cultos, da eterna filosofia, da soberania popular, jurar a paz universal!»

São fórmulas de 1792. Em breve surgirão as de 1793: «Sou republicano e francês», escreve um desses franceses sem nome cujas cartas261LUCIEN FEBVREChuquet publicou outrora na sua colecção Lettres de 1792, 1793, Ml1813...

«Sou republicano e francês; devo-me à minha nação e os meus sentimentos são os de um verdadeiro cidadão» (Lettres de 1793, página 268, ,2 de Novembro de 1793)12.

Sou republicano e francês? Devo-me à minha nação? Dez anos antes este honesto tenente teria escrito: «Sou cidadão do mundo», «Devo-me à minha pátria, a Europa». Mas a Europa já vai longe. A

França opõe-se-lhe enquanto nação, mais ainda, enquanto grande nação. Porque a França é por excelência a grande nação, fórmula nova que surge com o Directório. Quando a ouviu pela primeira vez, La Révellière chorou de alegria: «A grande nação! Que bonito! Que bela ideia!»13

De facto, os Franceses acham a fórmula a seu gosto, adoptam-na, empregam-na durante muito tempo, até ao fim do Império, e mesmo oficialmente. O Corpo legislativo, escreve Joubert d’Hérault dirigindo-se aos Quinhentos, no 19 do Thermidor ano VI (6 de Agosto de 1798), o Corpo legislativo deve dar ao Directório todos os meios para comandar a paz na Europa, pondo-o também em condições de se apresentar, se preciso for, na arena, com a atitude que convém à grande nação! É um texto curioso, entre parênteses, porque rejeita, como vêem, a Europa, porque coloca a Europa como um corpo estranho, perante a França14.

É portanto toda uma evolução. Tentemos assinalá-la com alguns textos característicos. A 26 de Abril de 1793, Anacharsis Cloots, o amigo do género humano, esse Cloots de que Rabaut Saint-Étienne disse, magnificamente: «era prussiano e nobre [e] fez-se homem», Cloots expunha à Convenção o famoso manifesto sobre a soberania una e indivisível do género humano15. Recebendo a atenção simpática de todos? Não. E isto é já bastante significativo; recebendo, pelo contrário, risos e troça. Contudo, este262

A EUROPA.grande sonho de organização política do planeta que Cloots desenvolvia [não tinha sido] feito, ao que parece, para surgir como absurdo a estes homens do século XVIII, empedernidos, imbuídos de toda a substância ideológica do seu tempo. E embora reivindicassem a liberdade para as nações, não menos concebiam estas nações como órgãos de uma mesma humanidade. Somente, as propostas de Cloots, que sugeria a fusão de todos os povos numa única república humana, numa única nação de que as nações existentes seriam apenas secções, a secção francesa, a secção germânica, a secção britânica, da república humana, este projecto, mesmo a estes homens se afigurava quimérico, tão afastado da realidade presente e dos seus dados que só lhes podia parecer um jogo de espírito, um puro jogo. E no momento em que a França revolucionária lutava penosamente contra toda a Europa, no momento em que, tendo pela frente não apenas os governos como os povos que seguem os governos, os povos que não compreendem que se amedrontam, se irritam e pegam voluntariamente em armas contra

aRevolução, neste momento para eles trágico tanto intelectual como sentimentalmente perturbador, neste momento consideram que um tal nacionalismo humano, se assim se pode dizer, é apenas antecipação sem medida, sem bomsenso, de um visionário e de um quimérico. Anacharsis Cloots dá-lhes a entrever a unidade do género humano, magnificamente assente numa tripla base, jurídica, económica, religiosa; jurídica, porque os direitos do homem proclamados e reconhecidos por toda a parte constituem o fundamento de um direito universal; económica, porque a diversidade dos elementos e das produções, longe de opor os povos, os reúne, uma vez que esta mesma diversidade é o fundamento das trocas; religiosa, porque as religiões separam os homens, mas a grande religião do Todo, que é Deus, a grande religião da imensa Natureza unirá os homens, todos os homens, por um vínculo sólido...

Anacharsis Cloots diz-lhes tudo isso. E se ele o tivesse dito, a estes mesmos homens, dez anos mais cedo, crêem que eles teriam rido e zombado? Quando ele exclamava:263LUCIEN FEBVRE«A república do género humano nunca terá disputas com ninguém, pois não há ponte de comunicação entre os planetas»,

crêem que Ducos, dez anos antes, o teria interrompido para lançar à Assembleia esta piada:

«Exijo a união da terra à lua!» 16

Quando Cloots proclamava:

«Queremos restabelecer a paz no nosso continente? Façamos pela Europa o que fizemos pela França. Esclareçamos os homens, libertemo-los dos seus erros; e o ódio natural entre vizinhos transformar-se-á em amor pela lei comum que, sempre impassível, não flectirá sob o ímpeto das paixões locais... »,

quando Cloots assim falava, eles pensavam todos, estes homens, que, alguns anos antes, o teriam aplaudido entusiasticamente, pensavam apenas, não na unidade do género humano, não na unidade cósmica do planeta, pensavam na terra de França, nos campos de França, nos campos onde eles, os reis da Europa, eles, os súbditos dos reis, vinham degolar os seus filhos, as suas companheiras17.

[Pensavam na pequena terra de França, mais preciosa para eles, nesse momento, do que todo o planeta e mesmo todo o universo cósmico. Pensavam nos soldados azuis e brancos que defendiam

esta terra, de armas na mão, ao longo das fronteiras ameaçadas... Exijo, continuava Cloots, exijo a supressão do «nome de Francês, a exemplo dos nomes Borguinhão, Normando, Gascão», . ....

264A EUROPA

supressão necessária porque, seja qual for o prestígio da Revolução, os povos não quererão todos ser franceses. E Cloots, intrépido, propunha um nome, um nome baseado numa velha memória etimológica, o nome «Germano», muito simplesmente, porque germanus é «irmão»... 18. Cloots propunha. E a Convenção ria. Tinha passado o momento. O momento já não é propício à república do género humano. Já nem sequer o era para a república europeia. Era da nação, da grande nação, da nação que levava nos seus flancos a liberdade do mundo, da nação francesa.

Há um outro sinal, um outro sintoma e ainda mais elucidativo, talvez. Tive a ideia de realizar, em vossa intenção, uma busca no domínio múltiplo dos títulos, dos títulos de livros, títulos de revistas, títulos de jornais que comportam o nome Europa. Nada mais interessante, nada mais significativo que esta colheita, de aparência tão árida19]*

Antes da revolução, é tudo da Europa: em 1718 [surge] em La Haye um jornal literário, UEurope savante, 12 volumes de 1718 a 1721, durante três anos apenas. Mas o holandês Van Effen, um dos seus redactores, dá-lhe sucessão com Histoire littéraire de l’Europe, enquanto, desta vez em Âmsterdam (e já não em La Haye) surge, de 1728 a 1753 a Bibliotèque misonnée dês ouvrages savantes de l ’Europe20.

Continuemos: em 1763, em Paris, Arnaud e Suard lançam a ideia de MâGazette littéraire de l’Europe, «para estender», dizem, «a toda a Europa o império da língua francesa»21.

Em 1776 (e a publicação durará até 1792), redactores ingleses e franceses (e entre estes Brissot e também o mestre-cantor Thévenot de Morande) lançam o Courrier de l ’Europe, gazeta anglo-francesa, o Courrier Europe, mas com a Revolução, quando Brissot publica um jornal, intitula-o Lê Patriote français... 22

Continuemos ainda: entre 1785 e 1789, o Journal general de Europe publica-se em Paris (tipografia imparcial) por iniciativa de Lebrun-Tondu,265LUCIEN FEBVREde Smits e outros. Na mesma época, depois de 1789, nos Países Baixos, o Journal general de 1’Europe redige-se em Liège e edita-se em Herve, em francês, para apoiar as reformas de José II23.

Ainda em Liège, a partir de 1772, publicava-se uma vez por semana o Journal historique et politique dês principaux événements dês différentes cours de 1’Europe.

Em 1783, Lê Mercure suisse, cujo primeiro número [sai em] Neuchâtel em Dezembro de 1732, conhece em 1783, entre os seus numerosos avatares, o seguinte: Nouveau Journal de littérature de l’Europe, et surtout de la Suisse 5.

Naturalmente, não pretendo que a lista seja exaustiva! É uma lista de amostras. Ora eis 1789. Eis a Revolução. Eis uma formidável eclosão de jornais, de periódicos, de revistas. Em 1789 [surgem] Lês Acíes desApôtrês, em 10 volumes; Lês Annales patriotiques et littéraires de la France, por Lê Mercier, em 21 volumes; La Chronique de Paris, em 8 volumes; Lê Courrier de Paris, em 3 volumes; Lê Courrier de Provence, em 17 volumes; Lê Courrier de Versailles, em 9 volumes; Lê Courrier français, em 48 volumes; o Journal dês débaís; La Gazette nationale ou Le Moniteur universel; Lê Patriote français, de Brissot de Warville; as Révolutions de France et de Brabaní; as Révolutions de Paris, de Prudhomme, etc., etc.26. ;

Já não se trata de Europa. É de povo. Não há palavra mais em voga, Em 1789 [saem] L’Am/ du Peuple, de Marat: L’Ami du peuple, de Jourdain de Saint-Ferjeux (7 números); La Cause du peuple soumise au tribunal de la Raison (2 números); Lê Tribun du peuple; La Voix du peuple em 1790: L’Orateur du peuple; Lê tribun du peuple; em 1791: Lê Défenseur du peuple; Lê Déjeuner patriotique du peuple; L’Instiíuíeur dupeupie, etc.27.

<,* [Frente a este florescimento: em 1789 [sai] em Estrasburgo o Journal266A EUROPAdês révolutions de Europe em 1789 e 179028. Em 1790, as Révolutions de Paris transformam-se por algum tempo em Révolutions de Europe e no mesmo ano aparece em Paris, na casa Chaumont, 44, rua Guénégaud, La Gazette dês Cours de Europe e Lê Roayaliste ami de

l’humanité, três títulos, na presença de uma massa formidável de dezenas de títulos não europeus... 29 Porquê?

Note-se que, aqui, restringi o trabalho aos jornais. É inútil dizer que não há apenas jornais. Há os escritos políticos de toda a espécie. Dos seus títulos, não desaparece por completo a Europa de um dia para o outro, mas quando por acaso aparece é num papel novo. Já não é para os Franceses uma pátria, uma super-pátria, se quiserem. É, para além deles, um tribunal que julga os abusos, os escândalos.

Em 1789, Dumont-Pigalle e Marron publicam Lês Prussiens dénoncés àTEurope par une société de témoins et de victimes de leur invasion de laprovince de Hollande, Paris, Gueffier, in-8°; em 1790, de Bourgoing, barão, Jugement de l ’Europe impartiale sur Ia révolution de France, par m Suédois, Upsala, in-8°30. Um título como este [publicado em] 1789 pelo visconde de Aubusson, Manifeste de la souveraine raison, cette dominatrice du genre humain, à tous lês róis etpotentats de l’Europe, é significativo31. Há a França, que conserva como sua a Razão, e do outro lado, elementos hostis que ela remete para o tribunal da razão, os reis e os potentados da Europa ...

Folheiem atentamente toda a admirável bibliografia de Monglond, a sua France révolutionnaire; mal respigarão na massa enorme de títulos que ela fornece, uma dezena de títulos «europeus» entre 1789 e 180032. Consigo justamente dez... ]*

Porquê? Porquê este eclipse da Europa considerada a pátria comum dos Europeus, do Europeu, o nome de família dos homens que têm como nome próprio Francês, Inglês, Italiano, Espanhol?

Por uma razão muito simples. No século XVIII, no tempo em que a Europa florescia, o europeismo é uma pura atitude do espírito. Todos ra-267LUCIEN FEBVREciocinam como se, no globo, houvesse apenas homens, homens livres, descarnados... Todos raciocinavam como se os Estados não existissem. Aliás, não tinham sido os reis conquistados para a filosofia? Durante demasiado tempo, os inovadores tinham escrito viagens imaginárias, viagens na lua, acrescentam. Sob as suas especulações, o nada. Viesse uma borrasca, evolar-se-iam em fumo nos ares. A borrasca veio. O vento soprou nação e em breve nacionalidade33.268

Lição XXIV[Na] passada lição, narrei-vos um grande drama, um destes dramas psicológicos para os quais a história não chama a atenção, um dos

dramas psicológicos que parecem não interessar os historiadores. Este drama é um naufrágio, o naufrágio da nau das ilusões europeias contra o recife da nação.

No primeiro quartel, como vos disse, no segundo, no terceiro quartel do século XVIII, há Europa por toda a parte. Cada vez mais Europa. A Europa coroava as nações, a Europa coroava a França. No último quartel, é a nação que reclama, a nação que cresce, a nação que se afirma, a nação que não apenas se afirma, cresce, se enraíza, mas também cria uma mística. Por volta de 1770, havia em França um misticismo europeu. Em 1793 há em França um misticismo nacional. E dir-me-eis: em França, só em França. Mas é verdade que, neste domínio como em tantos outros, a França é a primeira. A França vai à frente. A França inicia. Pode fazê-lo tanto mais facilmente quanto no século XVIII a sua língua é compreendida por todas as aristocracias, em todos os países, logo, o seu pensamento é conhecido, seguido, adoptado por todas as aristocracias, em todos os países, digamos, por todos os membros desta grande república de homens de espírito que se estabelece transpondo fronteiras, sem se preocupar com as fronteiras que o seu pensamento, à margem das realidades, sobrevoa, sobranceiro. Os seus soberanos combatem-se. As suas nações, como amanhã269LUCIEN FEBVREjá se dirá, como se começa pouco a pouco a dizer, as suas nações entram em choque, entrechocam-se. Que importam estas contingências miseráveis. Eles planam. Evadem-se. Ironizam e riem-se.

Centenas de jornais literários redigidos em francês são fundados um pouco por toda a parte para preparar o entendimento dos Europeus. Os fundadores do Journal étranger desejam: «reunir numa única confederação todas as repúblicas particulares nas quais a república das letras, dividida até hoje e apertada, por assim dizer, dentro dos limites de cada povo, reconheça marcos que o político não tem qualquer interesse em lhe prescrever e que ela só do espírito humano deve receber.»1

O século que deve nascer já não será chamado «o século de Augusto ou de Luís XIV, a grande época da França ou da Itália: será o século glorioso da Europa inteira»,

[este século] em que se adquire este apetite de suicida, esta aspiração à morte que transfigura, esta necessidade de se fundir como parte integrante de um todo mais amplo, mais prestigioso e mais vago que toma periodicamente a França ou, mais exactamente, que toma os franceses que de algum modo pensam profissionalmente, em certos

momentos, quando a felicidade, a calma, a segurança lhes parecem afinal demasiado pesadas e eles procuram a aventura, a grande aventura intelectual2. E isto vai tão longe que este Journal étranger, de título significativo, entrevê mesmo a possibilidade de exercer sobre a sua vida do espírito, sobre toda a produção europeia, uma espécie de controlo e de acção reguladora.

«Na Alemanha», escreve o Journal (Hatin, Histoire de lapresse, tomo11 página 304), «cultiva-se muito a jurisprudência e as compilações estão270A EUROPAaí extremamente na moda. Em Inglaterra, todas as profissões têm mistura de teologia. Em França, expurga-se as frases, compara-se os poetas, faz-se alegações, mandatos, orações fúnebres, discursos de academia. Este jornal universal, onde se dá entrada ao que de melhor se produz em toda a Europa, tanto nas artes como nas ciências, será portanto útil.»3

Contudo, nas Nouvelles de la Republique dês lettres et dês arts, Champlains de la Blancherie lançava a ideia de um círculo-museu, feito para servir de ligação aos sábios e aos artistas do mundo inteiro4. Esta espécie de instituição de cooperação internacional avant la lettre não foi criada. Ao menos, a correspondência entre os eruditos era activa, as relações pessoais frequentes e o emprego de um idioma comum recomendado. Descartes, Leibnitz, tinham pensado criar uma língua artificial. Condorcet também acarinhou este sonho. Fala dele no seu Tableau dês progrès de1’esprit humain5. É certo que havia o latim, que ainda tinha os seus fiéis. Um homem como d’Alembert, foi com desgosto que o abandonou. Mas, enfim, abandonou-o. A sucessão está aberta. O Renascimento tinha-lhe interdito o barbarismo. Portanto, tinha-o fixado, esclerosado, relegado para o passado. O latim clássico não tem termos para explicar as noções matemáticas ou físicas que os sábios modernos elaboram. E sem dúvida nada teria impedido que se chamasse barometrum em latim o que o francês chamaria baromètre. Uma coisa não é mais escandalosa que a outra. Sim! O barbarismo! Os latinistas académicos teriam tapado o rosto se tivessem deparado com semelhante atentado ao pudor cicerónio. E havia o francês. Mas, mesmo assim, não vejamos somente o francês. Havia o inglês, em Inglaterra, e o alemão, na Alemanha. Goethe tivera um momento de hesitação: seria um escritor em francês ou confiaria ao alemão os seus pensamentos? Não hesitou

por muito tempo. Tinha optado. As línguas nacionais desenvolvem-se, afirmam-se; grandes escritores encarregam-se delas, por toda a parte, e não apenas em França. A universalidade da língua francesa, sim, e este império francês «dos móveis, dos estofos e das271LUCIEN FEBVREmodas» de que fala Rivarol no seu famoso Discours, esta conquista da Europa «como acabrunhada sob a exuberância da indústria francesa», tudo isso esteve bem enquanto durou o Ancien Regime dos diplomatas, os jogos da balança e do equilíbrio, as querelas e as guerras bem mais dinásticas do que nacionais6.

Tudo isso estava bem, tudo ia bem. Mas chega uma vaga de fundo. Vem uma revolução nacional. Vêm exércitos que não se batem apenas pela satisfação das suas memórias e por um ponto de honra, mas pelo triunfo de certas ideias, pela afirmação de um certo ideal, pela propagação de uma certa fé que todos os soldados, todos os oficiais e, por detrás dos soldados e dos oficiais, toda a massa nacional partilhava; vem a Revolução, e tudo vai ruir. E na realidade tudo cai. Nunca houve mais que a nação. Que nação? A nação francesa com] a Europa pela frente, a Europa hostil, a Europa dos reis, que era preciso abater, a Europa das nações que era preciso converter. E isso dura. Persiste. E eis que se ergue na França, no mundo, o «homem predestinado», para falar como Victor Hugo, o homem sobre o qual não é preciso dizer frases, porque enfim, Napoleão é Napoleão, e tanto basta. Ei-lo, o homem que primeiro leva a França àquilo a que, desde há muito tempo, os seus diplomatas e os seus governantes apelavam, nas suas campanhas diplomáticas, até às suas fronteiras naturais. Ei-lo que, transpondo as fronteiras, morde a Europa, a carne da Europa, e constitui em seu redor o que por vezes chamou o seu sistema: toda uma combinação de soberanos que são os seus irmãos, os seus fiéis, os seus generais e que rodeiam a França de uma espécie de estrutura a um tempo subtil e frágil de reinos protegidos.

Europa? Não. Império. O Império napoleónico. A Europa é o tecido de que Napoleão talha o seu império, nada mais. A Europa é um rótulo geográfico e quando muito o lugar onde se situam os reis, os peões manobrados pelo prodigioso jogador no seu tabuleiro...

«Era um belo império», escreve ele a Gourgaud, em Santa Helena.272

A EUROPA«Tinha oitenta e três milhões de seres humanos para governar, mais de metade da população da Europa.»7 ;

Aqui, a Europa é simplesmente o nome de um lugar. Eis agora a Europa dos reis, num texto precoce, um texto de Julho de 1791, um texto de Bonaparte dirigindo-se ao comissário das guerras Naudin:

«A Europa é partilhada por soberanos (ele quer dizer: entre soberanos) que comandam homens e por soberanos que comandam bois ou cavalos.» 8

l Não, Napoleão não toma a Europa por objectivo de guerra, como finalidade da sua política e dos seus sonhos. Napoleão só pensa no Império, a que chama França, e que opõe sempre à Europa.

«A Europa nunca deixará de fazer a guerra à França, aos seus princípios, a mim.» 3

diz ele a Lãs Cases, de Santa Helena; ou ainda: >

«Desde Henrique IV que a França está a saque para a cobiça da Europa»

« (no Conselho de Estado, fim de 1806)9. Compreende-se a expressão do czar Alexandre I, em 1814 (embora não tenhamos ilusões quando ao desinteresse deste grande ambicioso):

«Venho reconciliar a França com a Europa.»10

De facto, apaziguada a tormenta revolucionária, varrido o Império, viu-se renascer, ao que parece, as velhas maneiras de pensar. Por um lado,273LUCIEN FEBVREos diplomatas trataram de refazer uma Europa, uma Europa à maneira antiga, uma Europa para diplomatas de meias de seda, topete e asas-de-pombo««,, uma Europa de soberanos. com base em quê? Pois, muito simples* mente, no equilíbrio, na balança, na falsa balança; uma Europa onde cinco grandes potências, rodeadas de satélites, a França, a Inglaterra, a Áustria* a Prússia, a Rússia, se olhavam ciosamente, se vigiavam pelo canto do olho sem deixarem de prodigalizar as marcas oficiais do máximo respeito até da maior fraternidade: pois não eram «concidadãs», como dizia, uma palavra nova, a Santa Aliança? Eram concidadãs mas era preciso que uma delas não se lembrasse de arrastar na sua órbita demasiados satélites ou de desviar da órbita do vizinho um dos seus velhos e ex-fiéis satélites Imediatamente se formava um bloco contra o imprudente. E o espectro da guerra ergue-se de novo no horizonte...

Somente, havia mesmo assim algo que tinha mudado, algo de grave No século XVIII, estes jogos da balança eram jogos de príncipes, unicamente de príncipes. Os povos submetiam-se, resignados ou não. Não eram consultados. Não tinham uma palavra a dizer. E a seguir à queda de Napoleão pôde-se pensar, por momentos, que ia ser tudo igual. Os povos compunham-se, em grande maioria, de camponeses dóceis, preocupados sobretudo com o pão de cada dia, saboreando a paz reconquistada e retomando com ardor as suas tarefas de pais de família. Acima deles, a nobreza e o clero aspiravam a readquirir a autoridade que a Revolução lhes tinha disputado. E entre os dois, e, de resto, não em toda a parte, [encontrava-se] uma burguesia mais ou menos numerosa, mais ou menos rica, mais ou menos impaciente, dividida entre a sua necessidade vital de paz e a necessidade não menos vital de razão, de razão raciocinante, isto* é, de razão à maneira do século XVIII, do século XVIII literário, do século ; XVIII religioso ou melhor, anti-religioso, do século XVIII político também, e filosófico.

Só que... só que entre o século XVIII e estes homens, todos estes homens (os camponeses e também os nobres e os burgueses), havia um facto274A EUROPAnovo, um grande facto novo, a nação; a nação pela qual se tinham batido, , não, como outrora, os nobres, os homens com tradição militar, homens cujo emblema era a espada, cuja função tradicional era levantar a espada em defesa do seu Deus e do seu rei, mas lavradores, homens cujo emblema era a charrua e a grande sapata ferrada para esmagar os torrões, o Bundschuh dos camponeses alemães de 1525; homens que a vida militar tinha emancipado, como sempre, mas sem os polir, sem os reduzir à qualidade de robôs, sem os privar de reacções e sentimentos, pelo contrário. Sentimentos, tinham-nos eles passeado, e ardentes, por toda a Europa. E esses sentimentos, jamais eles os esqueceriam...

Eis um deles, por exemplo, um entre milhões, mas este escreveu. E as suas memórias foram publicadas. É Joliclerc. É filho de lavrador, filho único. Nasceu em 1766 nos planaltos do Jura, em Mignovillard; em 1766 tem portanto 23 anos em 1789. Não é pobre. Mas a sua mãe, camponesa agarrada ao dinheiro e autoritária, tinha o usufruto da fortuna paterna e dirigia tudo despoticamente em casa. Em nossa casa, confessa Joliclerc, tinha que andar de jornaleiro para agradar à minha mãe. Não estava sequer autorizado a vender uma dúzia de ovos ou meia libra de couves; queixas que não são

isoladas: todo o jovem campesinato francês, no fim do século XVIII, as exala semelhantes. E então? Na primeira ocasião, parte. É voluntário da primeira fornada, voluntário de 1791, e mostra-se orgulhoso por isso:

«Diz vossemecê», escreve ele à mãe, «que os voluntários da aldeia escrevem cartas como sermões. Pergunto-lhe qual é o cidadão de Froide Fontaine que ousa tomar o título de voluntário! São os do contingente do mês de Agosto de 92 (estilo escravo), que receberam 400 a 500 libras? Serão os do mês de Março de 93, que receberam 600 a 700? Será à primeira requisição que dão o nome de «voluntária»? Não, eles não são voluntários. Uns venderam-se como se vende porcos pelo S. Tomás, em As-275LUCIENFEBVRElins, e os outros foram forçados a partir em virtude dos decretos da Convenção. Portanto, não são nada voluntários e eu sou o único da comuna a quem pertence este belo nome. Ouso vangloriar-me dele e defendê-lo-ei mesmo com risco de vida.»11

Aproveita para inundar os seus, a começar pela mãe, de prédicas patrióticas bem curiosas. Direi que o são na exacta medida em que não pertencem a Joliclerc.

«Quando a pátria nos chama em sua defesa, devemos voar... A nossa vida, os nossos bens e faculdades não nos pertencem. É da nação, da pátria tudo isso. Sei bem que vossemecê e todos os outros habitantes da nossa comuna não partilham estes sentimentos. São insensíveis aos gritos desta pátria ultrajada e tudo o que fazem por ela é à força. Mas eu, que fui criado na liberdade de consciência e de pensamento, que sempre fui republicano na minha alma, embora obrigado a viver numa monarquia, estes princípios de amor pela Pátria, pela Liberdade, pela República estão não só gravados no meu coração, mas incrustados e aí permanecerão enquanto agradar ao Ser superior que tudo governa manter-me um sopro de vida.»12

Admitamos o que se quiser, que Joliclerc se gaba, que exagera, que frequenta nos livros os homens virtuosos menos regularmente do que afirma. Admitamos tudo. Mas este filho de lavrador do Jura, no entanto, defende, pela sua vida militar e pela sua fé patriótica, uma maneira de pensar absolutamente nova. Não vemos La Fleur ou Fanfan Ia Tulipe..., nem sequer vemos um Joliclerc que ficasse à sombra das saias maternas, em Mignovillard, formular por escrito semelhantes pensamentos e mostrar-se às claras. Porque não é uma carta deste

género que ele escreve, são dezenas de cartas que não deixam de suscitar, na sua aldeia, protestos ou zombarias. Escutem:276A EUROPA«Se o Joseph as acha ridículas, e muitos outros, que sacodem os ombros ao lê-las, é porque não têm bomsenso e não se sentem Franceses perante o inimigo pela defesa da sua pátria, causa gloriosa que deve animar o mundo inteiro... »13

E persiste. E tudo por lá passa, tanto a religião como o resto. A sua religião é como segue:

i «Nunca vossemecê deixa, em todas as suas cartas, como sempre fez todo o tempo em que estive junto de si, de me perseguir para que eu dirija as minhas orações ao Senhor e aos seus santos. Porquê pedir chuva enquanto o meu camarada pede calor? Não. Digo simplesmente: seja feita a tua vontade na terra como no céu. Não sabe que rezar a Deus é pedir-lhe a desorganização neste universo? Deixemo-lo em paz, ao Altíssimo. Sabe melhor o que nos é preciso do que nós próprios. Portanto, entreguemo-nos à sua santa Providência, abandonemo-nos nos seus braços, façamos todo o bem possível e depois, no fundo da fossa, o trambolhão.»14

Pois bem, este Joliclerc não é o único. Tem milhares de companheiros, talvez nem todos com a língua tão solta, a pena tão fácil, mas todos, ao regressarem às suas aldeias (se regressarem), estão imbuídos das mesmas ideias, dos mesmos princípios, imbuídos para sempre, e formam esta classe de camponeses-soldados que nas nossas aldeias constitui uma espécie de aristocracia; que pelo menos constitui um fermento; que transforma, que alarga o espírito dos que ficaram na aldeia; que os abre para novos alentos; que impede o passado de regressar igual a si próprio.

E então, sim, claro, volta-se a falar de Europa entre os diplomatas. Organiza-se a Europa, o que quer dizer que se volta aos jogos de outrora, a essa balança que não passa de um baloiço. Volta-se a falar de Europa entre príncipes, entre ministros e embaixadores. Mas mesmo assim, agora, há os povos. Há as nações. Há os milhares de Joliclerc que expuseram a sua277LUCIEN FEBVRE

vida por estas nações. Há milhares de homens que, tendo ficado na aldeia, não se mantiveram por muito tempo alheados à sua época, surdos às coisas do seu tempo, que leram os jornais, durante a revolução, que meditaram, que são firmes nas suas resoluções. E é todo o drama da Restauração. Reconduz um governo, um rei, uma corte, ministros, prefeitos, embaixadores, como outrora, mas depara com uma nação onde cria ter deixado apenas súbditos. E será todo o drama da Monarquia de Julho. Será feita por um povo que quer a nação, a nação livre, forte, independente, gloriosa. E encontrará um rei que vai abrigar-se temerosamente sob a asa da Inglaterra, É certo que nem todos os povos são nações. E podem dizer-me: é verdade para a França, não é verdade para a Europa... e podem recordar-me as palavras de Hegel a Cousin:

«Tendes sorte, vós, Franceses... , sois uma nação.»15

Sim, mais precisamente, neste momento, eis que nasce outra coisa diferente da nação. Eis que nasce a nacionalidade. É uma palavra nova recenseada pela primeira vez, na sua sexta edição, em 1823, pelo Dictionnaire universel de la langue française de Boiste:

«Nacionalidade, carácter nacional, espírito, amor, união, confraternidade nacionais, patriotismo comum a todos»,

o que permite captar o sentido inicial da palavra que em breve iria evoluir, o seu sentido sentimental, em 1823 16.

Em 1825, o doutor Lortet, que traduz para francês o livro de Jahn, um livro de 1810, Recherches sur la nationalité, l’esprit dês peuples allemands et lês institutions qui seraient en harmonie avec leurs moeurs et leurs caracteres, livro no qual Jahn opõe à palavra Naciona-278A EUROPAlitãt, de origem francesa, a palavra Volkstum por ele criada para designar «o que há de comum num povo, a sua essência inerente, a sua vida moral, a sua capacidade de regeneração, a sua faculdade reprodutora», etc.,

o tradutor de Jahn, Lortet, desculpa-se por ter empregado na sua tradução a palavra «nationalité».

«Chocará talvez os ouvidos dos puristas e não satisfará os que querem, apenas pelo título, conhecer uma obra.»17

Mas tinha nascido o conceito que esta palavra designa. Estão lançados os dados. E os diplomatas serão forçados, nem que não queiram, a levar em conta dados novos.

Europa dos soberanos? Apesar de tudo, é demasiado simples. Rabaut Saint-Etienne já nos mostrou, da última vez, estes soberanos à escuta, estes soberanos inquietos... estas vozes que se erguem dos seus povos...

Europa das nações? Não há ainda muitas nações, na Europa. E a grande nação, desarmaram-na. Há com que a manter em respeito.

Europa das nacionalidades... É a novidade que vai encher o mundo durante um século, que vai enchê-lo de revoluções, de perturbação e de guerras. Europa das nacionalidades, porque a nacionalidade existe em toda a parte onde ainda não existe nação. A nacionalidade é a constituição |?] dos5 povos que ainda não atingiram o estádio de nação. É, se quiserem, o que justifica ou o que postula a existência de uma nação. É um grupo humano que aspira, ou a formar uma nação autónoma, ou a fundir-se, por afinidade, numa nação já existente. É uma nação virtual, uma nação a que falta Estado, um Estado que lhes pertença propriamente, um Estado que seja livremente aceite por ela.279280

Lição XXV

O outro escolho: a nacionalidade

Após a nação, a nacionalidade. * [Indiquei-vos da última vez que]* após 1815 e a queda do reinado napoleónico, acreditou-se que o velho estado das coisas voltaria, que a Europa iria reviver, tranquilamente, serenamente, sem esforço nem dificuldades. Os diplomatas tratavam de novo de «organizar a Europa». Montavam de novo a eterna balança das potências, verificavam minuciosamente as suas engrenagens. Regressavam tranquilamente aos seus jogos anteriores, mas, apesar de tudo, com certa falta de à-vontade...

Porque, enfim, havia os povos que se tinham tornado nações. A Europa dos reis, sim, continuava a existir. Tinha assento em todos os congressos da Santa Aliança: em Viena, em Aix-la-Chapelle, em Troppau, em Ley| bach, em Verona. Mas os reis já não reinavam sobre povos dóceis, povos de animais como dizia Bonaparte, *|no texto de 1791 que vos li]*, mas sobre nações, nações mais ou menos fortemente constituídas como nações, mas mesmo assim nações, e também nacionalidades1.

«Nacionalidade» é uma palavra nova, uma coisa nova também * [começava precisamente a falar-vos dela quando tocou]*, uma palavra nova, uma vez que não aparece num dicionário da língua francesa *[como vi-281LUCIEN FEBVREmós]*, antes de 1823 e que em 1825 um francês que traduz uma obra alemã que empregava a palavra Nationalitãt desculpa-se por usar essa palavra insólita, «nationalité»2.

Uma coisa nova... pois é. Porque o facto é que há muito tempo havia um mundo, havia na Europa grupos humanos que, não tendo ainda atingido o estádio de nação, aspiravam fundir-se na unidade de uma nação já existente ou então constituírem eles próprios uma nação autónoma, dotar-se, ou serem dotados, de um Estado que, por assim dizer, informasse a sua matéria já pronta para se tornar Estado. Mas estas aspirações eram ainda confusas. Estas aspirações eram ainda inconscientes. Estas aspirações eram na verdade incapazes de tomar corpo. E os que as levavam em conta nos seus cálculos só as concebiam do ponto de vista do dominador.

*|E a prová-lo quero apenas um texto, um notável texto de Napoleão. Está em Santa Helena. Confia a Las Cases:

«Uma das minhas ideias mais fortes tinha sido a aglomeração, a concentração dos mesmos povos geográficos que as revoluções e a política dissolveram, fragmentaram. Assim, contamos, na Europa, embora dispersos, mais de trinta milhões de Franceses, quinze milhões de Espanhóis, quinze milhões de Italianos, trinta milhões de Alemães: gostaria de ter feito de cada um destes povos um único e mesmo corpo de nação. com esse cortejo teria sido belo entrar para a posteridade e para a bênção dos séculos. Sentia-me digno desta glória! Após esta simplificação sumária, teria sido possível ascender à quimera do belo ideal da civilização: neste estado de coisas teria havido mais oportunidades de levar a toda a parte a unidade das leis, a dos princípios, das opiniões, dos sentimentos, das perspectivas e dos interesses. Então, talvez, com o favor das luzes universalmente

difundidas, fosse permitido sonhar, para a grande família europeia, a aplicação do congresso americano ou a dos Anfíctions da Grécia; e então, que perspectiva de força, de grandeza, de júbilo, de prosperidade! Que grande e magnífico espectáculo!...282A EUROPAA aglomeração dos trinta ou quarenta milhões de Franceses estava feita e perfeita; a dos quinze milhões de Espanhóis estava também quase... pois ninguém poderia negar que, quando eu entrei nesse país, se a Áustria, não me declarando guerra, me tivesse deixado mais três ou quatro meses de permanência em Espanha, tudo teria terminado; o governo espanhol ia consolidar-se, os espíritos teriam acalmado, os diversos partidos ter-se-iam unido; três ou quatro anos teriam apresentado entre eles uma prosperidade brilhante, uma nação compacta e eu tê-los-ia merecido; ter-lhes-ia poupado a terrível tirania que os esmaga, as terríveis agitações que os esperam.

Quanto aos quinze milhões de Italianos, a aglomeração estava já muito avançada: só lhe faltava ganhar idade e ir amadurecendo dia após dia entre eles a unidade de princípios e de legislação, a do pensar e do sentir, esse cimento garantido, infalível dos aglomerados humanos...

Todo o sul da Europa estaria portanto em breve pejado de localidades, de opiniões, sentimentos e interesses compactos. Neste estado de coisas, que nos teria feito o peso de todas as nações do Norte? Que esforços humanos teriam vindo bater contra uma tal barreira?

O aglomerado dos Alemães exigia mais lentidão. Por isso eu só tinha que simplificar a sua monstruosa complicação: não que eles estivessem preparados para a centralização, muito pelo contrário, teriam podido reagir cegamente contra nós antes de nos compreenderem... Seguramente, se o céu me tivesse feito nascer príncipe alemão, através das numerosas crises dos nossos dias, teria governado infalivelmente os trinta milhões de Alemães reunidos; e para o que julgo conhecer deles, ainda penso que, uma vez que eles me tivessem elegido e proclamado, nunca me teriam abandonado e eu não estaria aqui...

Seja como for, esta aglomeração chegará, mais cedo ou mais tarde, pela força das coisas; o impulso está dado e não penso que,

após a minha queda e o desaparecimento do meu sistema, haja na Europa outro grande equilíbrio possível fora da aglomeração e da confederação dos grandes po-283LUCIENFEBVREvos. O primeiro soberano que, no meio do primeiro grande confronto, abraçar de boa fé a causa dos povos, encontrar-se-á à cabeça de toda a Europa e poderá tentar o que quiser.»3

É um texto extremamente curioso. Primeiro, porque ignora completamente a palavra essencial, a palavra nacionalidade, o que prova, uma vez mais, que uma palavra só surge quando a coisa que deve nomear existe, quando a ideia que deve justificar já está elaborada, a seguir porque mostra que, nos cálculos de Napoleão, não havia lugar para estas forças autónomas que se chamam nacionalidade, nem nos seus cálculos nem nos cálculos dos diplomatas reunidos no Congresso de Viena.]*

Era o ponto de vista nepoleónico. Existiam, esparsos, materiais que aguardavam um arquitecto, um arquitecto que, desses materiais, fizesse uma construção sólida, bem centrada, bem organizada, um arquitecto reforçado num general, ou melhor, um general com reforço de arquitecto, Porque as pessoas não se refazem. Não mudam. Napoleão é um general. É o homem que, em Santa Helena, numa acesso de franqueza, dizia a Gourgaud:

«Em última análise, para governar é preciso ser-se militar; só se governa com esporas e botas.»4

É o homem que, em Narbonne, em 1812, proferiu estas palavras que Villemains conservou para nós:

:. «A sociedade, graças a mim, refez-se como sempre começa, no campo de batalha.»5

É o homem que é general acima de tudo e que, sendo-o, tendo sido durante anos um grande general, um general de génio, e de génio feliz, contraiu este sentimento forte de que nenhum general de génio pode284A EUROPAescapar, o sentimento de que, na guerra, os homens não são nada, é um homem que é tudo, este sentimento que ele traduzia, em Santa Helena, numa declaração relatada por Montholon a [uma palavra ilegível]:

«Não foi o exército francês que levou a guerra ao Véser e ao Inn, mas Turenne; não foi o exército prussiano que defendeu sete anos a Prússia contra as três maiores potências da Europa, mas Frederico o Grande.»6

Política das nacionalidades, a política de Napoleão? Não. Bem pelo contrário. Política ditatorial, política sistemática, política individualista de um homem, de um grande homem, de um chefe, um soldado, do soldado que, ainda em 1813, exclamava, falando a Beugnot e batendo com a mão na sua espada:

«Enquanto tiver esta (a sua espada) do meu lado, e possa ela aqui ficar por muito tempo!, não tereis nenhuma das liberdades por que suspirais, nem mesmo, senhor Beugnot, a de fazer na tribuna algum discurso ao vosso jeito»,

tal como as liberdades dos povos que aspiravam apenas às liberdades dos povos já constituídos em nação, como a França, a França, a grande nação, mas cujas forças nacionais tinham sido todas captadas por este homem irresistível, cujas forças nacionais se tinham tornado forças imperiais7.

Não, não era desse lado que havia de vir o conceito actuante, tremendo, de nacionalidade, era das nações. Para que haja nacionalidade é primeiro preciso que haja nações, digo bem, nações, e não reinos, nações, com administrações nacionais e não reais, com exércitos nacionais e não reais, com ambições nacionais e já não reais.

Ora só mais tarde houve nações. Recordemos o Diário de d’Argenson [editado em] 1754, tomo VIII, página 315:285LUCIEN FEBVRE«Observa-se que nunca se disse tantas vezes os substantivos nação e Estado como hoje; estes dois substantivos nunca se pronunciavam no tempo de Luís XIV e nem sequer havia ideia deles.»8

D’Argenson exagera. Mas o facto que ele assinala nem por isso é menos real. As duas palavras de que fala assumem no seu tempo, assumem a partir dos meados do século XVIII, um sentido, um valor, uma importância que não tinham antes.

Nação é uma palavra com profundidade, uma palavra com articulação. Porque a nação não é feita de indivíduos. É feita de grupos, de grupos constituídos em função de certas necessidades da existência, do trabalho. As escolas, as igrejas, as famílias, os ofícios, os diversos corpos do Estado, todos estes grupos, a nação unifica-os e subordina-os a uma tarefa comum. Do mesmo passo, estende as simpatias que esses grupos mantêm a um grupo não apenas mais vasto como mais rigorosamente organizado, dotado de um território próprio, de um território de nação.

Nação era uma palavra eivada de necessidade, de fatalidade. Porque a nação tem uma existência de facto que não é do mesmo grau da pátria, Um homem pode não ter sentimento pátrio. Seja um anormal, um herege, um monstro ou um desgraçado, pouco importa. Não são estes epítetos que alteram alguma coisa. Não se pode obrigar ninguém a ser patriota. A sê-lo verdadeiramente, do fundo do coração, não se pode obrigar ninguém, tal como não se pode obrigar uma pessoa a ser católica se não o for de coração e de sentimento, a ser verdadeiramente católica...

A nação, também não? Não posso fazer nada para não pertencer de facto a uma nação, por causa do meu nascimento, por causa dos meus pais. E se quiser escapar à minha nação tenho que desencadear um processo de repúdio ou de filiação numa outra nação que revista o carácter público de uma rejeição. Pertencer a uma nação tem um carácter de necessidade, dizia eu. Digamos melhor: tem algo de biológico, de certo modo, e de psi-286A EUROPAcológico, uma vez que ela modela poderosamente os indivíduos no seu interior, donde se segue que, para que haja nação, é preciso haver num povo a consciência de uma comunidade de origem, de tradições culturais e de interesses, aceites, desejados como condições da vocação pessoal de cada um dos nacionais,

E tudo isso é muito diferente da noção corrente no século XVII e antes, a de povo. O meu povo, diz o rei, mas o rei não diz a minha nação. A nação é uma realidade viva e profunda que existe fora dele, perante ele, com a qual tem que contar. A nação. Mas há nação na medida em que houver ideal. Há nação quando há num povo a vontade de consumar incessantemente a sua unidade projectando-se para o futuro para realizar o seu destino em função da sua história e do seu ideal9.

A nação é tudo isso. E é em tudo isso que a nacionalidade vai enxertar-se. Era preciso haver nações, nações que surgissem aos olhos de todos como ideias encarnadas, nações que surgissem aos olhos de todos

como dotadas de uma alma, de uma grande alma colectiva; era preciso haver nações prestigiadas e irradiantes para que as nações inacabadas, as nações incompletas, as nações que se procuravam há muito tempo sem conseguirem encontrar-se tivessem a ideia, a ideia clara e já não a ideia confusa, de se procurarem eficazmente, de se organizarem e de se afirmarem enquanto nação. Tomemos um exemplo, um único, mas de todos o mais importante para nós. Era preciso haver esta França que Hegel invejava para que houvesse uma Alemanha com a ambição da sua sorte e do seu destino, uma Alemanha que escolhesse ser ela própria uma nação.

E eis como, eis porquê, no século XIX e a partir do princípio do século XIX a Alemanha que não era uma nação, mas acabava de ter diante dos olhos o exemplo do que uma nação podia fazer, «a grande nação», a que tinha triunfado em léna, eis porquê a Alemanha começou a conhecer, a desejar, a cultivar o seu sentimento de nacionalidade. Eis como, eis porquê Madame de Staèl viu-o bem e disse-o bem - nasceu na Alemanha um287LUCIEN FEBVREgermanismo em apoio de um forte sentimento de nacionalidade. Eis porque surgiu, nesta época, o mito glorioso de um germanismo criador, a um tempo da Idade Média e do mundo moderno: da Idade Média porque (para quem acreditar) este germanismo teria sido o criador do feudalismo, da nobreza, da cavalaria, da arte gótica. Do mundo moderno porque teria sido Lutero quem criou o mundo moderno, Lutero, ao proclamar em Worms, perante todas as autoridades do velho mundo, os direitos imprescritíveis da consciência.

Por isso, a partir do fim do século XVIII os Bárbaros, durante tanto tempo desprezados, tidos como incapazes de invenções, erguem a cabeça e saúdam vigorosamente os seus grandes antepassados, aqueles cujo génio fez surgir da terra, em Colónia, a rainha das Igrejas medievais, pelo menos dizem-no, e conseguiram mesmo, durante algum tempo, levar os Franceses a acreditar nisso... ; aqueles cujo génio engendrou (proclamam-no, e há quem acredite) a cavalaria, os torneios, a escolástica, as querelas; aqueles que dotaram o mundo tanto da pólvora - é a história do monge Schwartz - como a imprensa - é a história do mogunciano Gutenberg,

São mitos, é certo, e toda a gente sabe que os mitos, para tomarem corpo, não precisam de ser emanação de realidades; mitos, e profundamente diferentes dos que poderiam ter nascido do espírito franco, se a França, esta nação, tivesse necessidade de se dotar de uma nacionalidade, de um «francismo» em resposta ao germanismo dos Alemães. Porque para nós, Franceses, na base da nação há a ideia dos

direitos naturais do homem, portanto, do contrato voluntário, do acordo espontâneo, do livre consentimento que é a única capaz de unir os homens. E na Alemanha? Na Alemanha o que conta é o direito histórico, é a tradição, é o génio da raça, registemos a palavra, da raça que surge desde as origens nas especulações alemãs. O Volkstum de Jahn, que nasce no princípio do século XIX, contém virtualmente em si todos os conflitos que irão nascer ao longo do século, a virulência própria da ideia de raça e o conflito desta ideia de raça com a nossa ideia francesa de nação10.288A EUROPAMas por aqui, como vêem, se prepara a tragédia. A Europa das nacionalidades, bah!, diziam os diplomatas, é uma velha conhecida, ou melhor, voltemos aos velhos métodos. Apliquemo-los a esta Europa nova. Estabeleçamos o equilíbrio entre as nacionalidades como outrora entre os principados, entre as realezas. Mantenha-se a balança. Conserve-se esta Europa da balança que é, não é verdade?, a Europa do bomsenso.

Sim, mas as nacionalidades não têm juízo! Não são pessoas sensatas. São apaixonadas, frenéticas, gritam, choram, apelam, protestam, amam e odeiam. E mantê-las nos pratos da balança... E ainda por cima estão armadas. Manifestam-se no tempo dos recrutamentos, de modo que o sistema novo depressa muda de nome.

Equilíbrio europeu? Não, paz armada. E para começar, talvez, quarenta anos dessa paz, quarenta anos durante os quais os povos da Europa, na sua maior parte, metem a cabeça debaixo da asa e deixam-se embalar pelo marulhar das águas, como cisnes em redor de uma barca. Quarenta anos e, um belo dia, a catástrofe. Um grande cadáver, a Europa. Uma ferida grave, a civilização... É o último acto do drama, e o mais amargo, o mais angustiante.

Seja como for, é um facto: os homens deste tempo bem se esforçaram por retomar a sua velha maneira de falar; bem se esforçaram por retomar as velhas formas de pensar; por voltarem a falar de Europa; por restituir a Europa aos títulos dos jornais literários; bem se esforçaram, com os românticos, por ressuscitar o pensamento de Anacharsis Cloots, *[por escrever com Victor Hugo:

«A França tem uma coisa admirável, é que está destinada a morrer; mas a morrer como os deuses, por transfiguração. A França tornar-se-á Europa... Poder-se-ia dizer que, a dado momento, um povo entra em constelação; os outros povos, astros de segunda grandeza, agrupam-se em redor dele e é por isso que Atenas, Roma, Paris são plêiades... A Grécia

289LUCIENFEBVREtransfigurou-se e tornou-se o mundo pagão; Roma transfigurou-se e tornou-se o mundo cristão; a França transfigurar-se-á e tornar-se-á o mundo humano»11;

»escrever com Lamartine:

» «As ideias humanas conduziram a Europa a uma dessas grandes crises orgânicas de que a história conservou apenas uma ou duas datas na sua memória: épocas em que uma civilização gasta dá lugar a outra... A Revolução Francesa foi o toque a rebate do mundo..., esta revolução a que mais tarde se chamará a revolução europeia, pois as ideias ganham nível como a água; não é apenas uma revolução política»12;

por, para citar ainda Victor Hugo, gritar:

«Meus senhores, se alguém, há quatro séculos, na época em que a guerra passava de comuna para comuna, de cidade para cidade, de província, se alguém tivesse dito à Lorena, à Picardia, à Normandia, à Bretanha, ao Auvergne, à Provença, ao Delfinado, à Borgonha: há-de vir o dia em que já não travareis mais guerras, há-de vir o dia em que não alistareis soldados uns contra os outros... mas sabeis o que irá ocupar o lugar desses soldados? Sabeis o que ides pôr no lugar da gente a pé e a cavalo, dos canhões, dos falconetes, das lanças, dos piques, das espadas? Poreis uma pequena caixa de pinho a que chamareis urna eleitoral e desta caixa sairá o quê? Uma assembleia, uma assembleia que vos fará sentir todos vivos, uma assembleia que será como uma alma para todos vós, um concílio soberano e popular que decidirá, julgará, resolverá tudo pela lei, que fará cair o gládio de todas as mãos e surgir a justiça em todos os corações, que dirá a cada um: Aqui acaba o teu direito, aqui começa o teu dever, Abaixo as armas! Vivei em paz! E nesse dia, sentireis comum o vosso pensamento, comuns os vossos interesses, comum o vosso destino; beijar290À EUROPA-vos-eis, reconhecer-vos-eis filhos do mesmo grau e da mesma raça. Deixareis de chamar-vos guerra, chamar-vos-eis civilização! Se alguém tivesse dito isso nessa época, meus senhores, todos os homens positivos, todas as pessoas sérias, todos os grandes políticos de então teriam exclamado: ”Oh!, sonhador! Oh!, sonho oco! Como este homem conhece mal a humanidade!... ” Pois bem! Dizeis hoje, e eu sou dos que dizem convosco. à França, à Inglaterra, à Prússia, à Áustria, à Espanha, à Itália, à Rússia,

dizemos-lhes: Virá o dia em que as armas vos cairão das mãos, também avós! Virá o dia em que a guerra parecerá tão absurda e será tão impossível entre Paris e Londres, entre Petersburgo e Berlim, entre Viena e Turim como é impossível e pareceria absurda hoje entre Ruão e Amiens, entre Boston e Filadélfia. Virá o dia em que vós, França, vós, Rússia, vós, Itália, vós, Inglaterra, vós, Alemanha, todas vós, nações do continente, sem perderdes as vossas distintas qualidades e a vossa gloriosa individualidade, vos fundireis estreitamente numa unidade superior e constituireis a fraternidade europeia, absolutamente como a Normandia, a Bretanha, a Borgonha, a Lorena, a Alsácia, todas as nossas províncias se fundiram na França... Virá o dia em que se mostrará um canhão nos museus como hoje se mostra um instrumento de tortura, pasmando por tal coisa ter podido existir! Virá o dia em que veremos estes dois grupos imensos, os Estados Unidos da América, os Estados Unidos da Europa, colocados frente a frente, estendendo a mão um ao outro sobre os mares, trocando os seus produtos, o seu comércio, a sua indústria, as suas artes, os seus génios, desbravando o globo, colonizando os desertos, melhorando a criação aos olhos do Criador e combinando-se para dele tirar o bem-estar de todos, estas duas forças infinitas, a fraternidade dos homens e o poder de Deus!»”]*;

bem se esforçaram por dizer tudo isso, ardentemente, eloquentemente, esta Europa que não passa de um nome, esta Europa que antes deles nunca foi mais que um nome pois já o pouco de unidade que oferecia,291LUCIENFEBVRE .o pouco de unidade teórica, ideal e especulativa, esse pouco de unidade se esboroa. Esboroa-se sob o ataque da nacionalidade juntamente com a nação, aquela mais temível ainda do que esta porque menos definida, A Europa, a Europa, super-pátria de sonho. Mas porquê uma super-pátria quando a ameaça é perder a pátria? Quando a guerra ronda à volta da pátria? A Europa, a Europa, um oásis de sonho, uma miragem, um asilo imaginário para servir de refúgio em tempo de guerra? Talvez. Mas uma realidade, não.

*.- Vimos o nome Europa criado muito antes da era cristã pelos geógrafos gregos, criado não para cobrir uma realidade já reconhecida, mas para albergar antecipadamente uma realidade hipotética. Vinte séculos após a era cristã, reencontramos a palavra Europa. Aparentemente, está muito mais definida. Aparentemente, designa uma realidade histórica muito mais clara, tão clara que em todas as escolas

do Ocidente os alunos aprendem o que é a Europa, os limites da Europa, as dimensões, a superfície e o número de habitantes da Europa. Mas os alunos aprendem também e sobretudo os Estados, a lista dos Estados que compõem a Europa: uma lista em acordeão que ora encolhe prodigiosamente, ora se alonga com novas unidades; uma lista tremenda se Europa não passar de um rótulo, se a Europa quiser ser, pretender ser uma coisa diferente de um nome geográfico. Porque uma coisa mata a outra. Os Estados que «informam» politicamente os povos, os Estados que, mesmo quando continuam a ser estados reais, estado monárquicos, tendem a tornar-se estados nacionais, os Estados matam a Europa, a Europa realidade política, realidade de sonho, entenda-se, uma vez que, precisamente, há os Estados e por trás dos Estados as nações, a impedir que esta realidade ganhe corpo.]*

Ganhou-se muito com as nações a tomarem o lugar dos povos? Quero eu dizer, esta substituição foi uma vantagem para a noção de uma Europa a realizar? Não. Foi o contrário de uma vantagem. Porque as nações são pessoas fortes, pessoas que querem, pessoas que se afirmam, pessoas292A EUROPAegoístas. E quando querem o bem das outras nações, quando tratam como irmãs as outras nações, é então que elas são mais temíveis, é então que as suas ambições falam mais alto, tão alto que os políticos não se iludem. Eles gostam ainda mais de lidar com Estados do que com nações. E quando lhes deram uma Sociedade das Nações, não hesitaram, fizeram dela uma Sociedade dos Estados onde os governos têm a palavra sempre e as nações nunca..., as nações e, por maioria de razões, as nacionalidades. Uma Europa das nações já é bem difícil. Uma Europa das nacionalidades? É impossível...

Nacionalidades: estas reivindicações perpétuas, estas velhas memórias que nunca esquecem nada, que vivem na perpétua contemplação dos atlas, dos velhos atlas históricos, esses cemitérios de sonhos abortados e de ambições frustradas, «isto foi nosso, de 980 a 1002... ; isto foi conquistado por nós, de 1324 a 1343..., logo, isto é nosso, isto que nos foi roubado, sim, roubado pela vizinha...

Nações, nacionalidades, são produtos explosivos, produtos perigosos. A partir do momento em que foram criadas por esta química profunda que se elabora no âmago dos povos, deixou de haver, na verdade, e peço perdão aos sonhos e aos sonhadores,

deixou de haver uma Europa possível. Porquê? Porque a nacionalidade fazia surgir duas coisas igualmente temíveis. Uma é a raça, esta força animal, temível, misteriosa, a raça que os homens sentem, que certos grupos de homens sentem como uma fatalidade, que por isso causa horror aos homens livres, aos homens que trazem em si o sentimento desta liberdade moral, hostil a fatalidades, que habita tão fortemente os corações e os espíritos dos nossos grandes homens. A outra é a história, ou melhor, o passado, o passado, essa força esmagadora, essa massa formidável que parece sempre querer esmagar o presente. Pensem nessa finíssima película do presente, no que ela pode pesar perante essas formidáveis fundações, essas fundações babilónicas do passado, desta enorme acumulação de passado. Felizmente..., felizmente o passado é um cadáver. E na fina película293LUCIEN FEBVREdo presente refugia-se a vida, a vida e as suas explosões, a vida e as suas criações, a vida que não quer saber do passado para nada, logo, penso eu, da Europa, esse sonho que nunca tomou corpo, esse sonho que, ao que penso, nunca tomará corpo, pelo menos se se tratar de uma criação livre. Pode tomar corpo, mas como criação de escravatura, como realização do sonho monstruoso da dominação, da dominação universal que tantos homens, tantos reis, príncipes, guerreiros [?] acarinharam, do Temerário a Carlos V, de Filipe II a Luís XIV, de Napoleão... não direi a quem14.

E aqui está. Uma última vez, temos de novo diante dos olhos a série sucessiva das encarnações europeias. Europa é um nome flutuante e que durante muito tempo não soube a que realidades exactamente aplicar-se. A Europa é um equilíbrio de poderes, um balanço de forças, uma balança de estados rivais. A Europa é uma pátria ideal, o ideal de pátria das elites liberais do século XVIII. A Europa é um inimigo, o adversário das nações e à cabeça da nação francesa, da grande nação, exemplo e modelo dos países liberais. A Europa é um remédio desesperado porque nunca se falou tanto de Europa, nunca se pensou tanto em Europa como desde o tratado de Versailles, entre 1920 e hoje, porque foi então que a Europa se revelou como noção de crise, um refúgio, uma última esperança de salvação... Mas como fazê-la, esta Europa? Se ela não assenta em nenhuma realidade, se não vai buscar a sua realidade a nenhum precedente? Como?

Para concluir como historiador: Europa, parece que o dado é, ou demasiado vasto, porque a palavra Europa abarca não uma, mas várias unidades políticas e culturais distintas, ou demasiado restrito, pois já

não podemos referir-nos à Europa sem nos referirmos ao universo inteiro...294

Lição XXVI

Para onde se encaminharam as nossas últimas lições? Para mostrar o modo como esta sedutora imagem de uma Europa realizada, de uma Europa que se tornou a verdadeira pátria de todos os Europeus, de uma Europa de paz, de clareza, de luz e de civilização que agrupa no seu seio nacionalidades que se tornaram finalmente, no termo do seu lento trabalho, no termo de uma gestação por vezes milenar, nações e nações que se tornaram, no termo de uma história de sangue e de crimes, partes fraternas e reconciliadas de uma grande unidade europeia; nações que renunciam finalmente aos seus títulos, diziam elas há muito tempo, numa linguagem de proprietários de imóveis e de terrenos, numa linguagem de pessoas que conhecem oficiais de diligências e a maneira de os utilizar, numa linguagem de pessoas que sabem que, por trás dos burocratas, para lhes servir de esteio, para lhes dar força, há a força armada.

As minhas últimas lições pretenderam mostrar-vos como esta sedutora Europa, esta prestigiosa Europa, esta plausível Europa se tinha tornado, no fim do século XVIII, uma quimera, um sonho, uma miragem. Os homens que tinham sido os portadores desta ideia eram homens que tinham a felicidade de viver num tempo em que Europa era, acima dos Estados, acima das fronteiras, dos exércitos e das diplomacias, era, acima do fragor das batalhas e do ruído dos exércitos (pois combatia-se na Europa, e ru| demente, no tempo em que os filósofos sonhavam com uma Europa pa-295LUCIEN FEBVREcífica), era a linguagem comum e a convivência quotidiana de uma sociedade de homens cultos.

Estes homens viviam num tempo em que, acima de todas as realidades, existia outra realidade, pois era realidade e não quimera, imaginação, sonho, uma outra realidade, a unidade, a fraternidade, o entendimento profundo dos espíritos livres que falavam a mesma língua, liam os mesmos livros ou os escreviam, agitavam os mesmos pensamentos, concebiam os mesmos projectos.

E notem bem o seguinte: diante dos seus olhos, os diplomatas antagonizavam-se, os generais afrontavam-se, os navios afundavam-se em todos os mares do globo, as guerras perpetuavam-se durante décadas, sim, mas os reis, as rainhas, os imperadores e as imperatrizes de um tempo tão fértil em grandes mulheres como em grandes homens sim, os reis e as rainhas, de Frederico II a José II, de Catarina da Rússia a Maria Teresa de Áustria, estes reis, estas rainhas falavam, também eles, a linguagem dos povos; estes reis, estas rainhas que comandavam todo o jogo das forças políticas, estes reis, estas rainhas que manejavam as forças materiais, estes reis, estas rainhas reflectiam nos mesmos pensamentos que os filósofos, que os cidadãos da Europa da Luzes, que os mestres do jogo das forças intelectuais, o Voltaire de Frederico II, o Diderot da grande Catarina e quantos outros de importância secundária...

E estes reis, estas rainhas, a estes filósofos não pediam apenas pensamento, todo o alimento dos seus espíritos em ideias. Não, pediam-lhes muito mais, constituições, projectos de reforma, esquemas de organização dos seus Estados. Não somente falavam, não somente pensavam europeu, agiam como bons Europeus. Então como poderiam os filósofos duvidar de que as suas concepções europeias fossem realizáveis? Não eram os únicos a formar estas concepções, eles, os filósofos, os homens de ideias, os homens que tinham, muito naturalmente, a ilusão de que a ideia era tudo, de que o acordo quanto às ideias era tudo, de que o acordo sobre as ideias entre homens da mesma cultura, da mesma educação, com os mesmos296A EUROPAcostumes e o mesmo ideal de vida estava acima de tudo... Não eram os únicos. Tinham com eles os senhores do momento: os reis, as rainhas, os imperadores, as imperatrizes, filósofos cujo despotismo aceitavam porque este despotismo não podia deixar de ser, parecia, um despotismo de filósofos tendente a fazer reinar, triunfar a filosofia, o despotismo de Trajano para retomarmos a expressão favorita deles... pois não concebia Trajano que a paz seria por fim a condição resultante da sua obra benfazeja? Não concebia Trajano que o acordo entre ele e os seus vizinhos, os outros reis, era necessário para o bem da humanidade? E afinal, se Trajano, para realizar este acordo, usasse a força, se, para unificar a Europa, ele suprimisse os outros reis, o mesmo que, em tempos merovíngios, acontecia já nos nossos países, como ensinam os livros de história, seria afinal um mal menor, um pequeno mal por um grande bem, pelo bem superior, a paz, a civilização, a Europa... Não, eles não tinham consciência de serem sonhadores, uma vez que tinham um público tão grande, viam-no bem e toda a gente o

via, príncipes, reis, donos do mundo, daqueles que não sonham mas agem, que agem para realizar no interior dos seus Estados as reformas reclamadas pelos filósofos; que amanhã, porque não, era a lógica das coisas, agiriam para realizar, com a ajuda de todos os Estados unidos de uma Europa desarmada contra si própria, mas fortemente armada contra o resto do mundo (a questão não se punha, a Europa não tinha então rivais possíveis fora dos seus limites) que, amanhã, agiriam para realizar a Europa, a grande Europa, a Europa unificada, a pátria de todos os Europeus e esta Europa seria de imediato aceite pela elite, pelos filósofos, pelos Europeus da inteligência. Mas os cérebros obscuros do popular, os espíritos lentos e grosseiros das massas, pois bem, teriam que se vergar, aceitar, sofrer primeiro o que não tinham concebido por si, o que talvez tivessem recusado em nome dos seus preconceitos e da sua estupidez. Tanto pior. A força que actua ao serviço da razão é benfazeja.297LUCIEN FEBVREEis a Europa que os filósofos do século XVIII, que os homens esclarecidos do século XVIII, apoiados na fé que tinham na ideia soberana, eis a Europa que os homens do século XVIII julgavam ter à mão.

Ora o modo como esta Europa se lhes tinha furtado, como esta Europa, em lugar de se realizar, se tinha dissipado nas nuvens, vimo-lo nós: estamos a começar a vê-lo. Vimos as nações em acção, diferentemente, mas tão temíveis como os reis; vimos em acção, no interior dos limites da Europa, as nacionalidades, as violentas, as tresloucadas, as fanáticas, que só pensavam em realizar o seu sonho, em passar de nacionalidades a nações, nem que para tal tivessem que atear o incêndio nos quatro cantos da Europa, nem que tivessem que, para apurar o seu cozinhado a fogo lento, abrasar o universo inteiro.

Então, retomamos o problema em termos novos, em termos, desta vez, de nações, de nacionalidades? Falar de uma federação de nações? De uma Europa das nações e das nacionalidades satisfeitas e por isso mesmo pacificadas? Pensar que, propondo isto, continuamos a falar a língua dos homens do século XVIII, a língua dos contemporâneos de Voltaire e de Diderot? Lá estava a quimera, lá estava a ilusão, digamos, o disparate. A nação era uma coisa muito diferente da dinastia.

O combate que viria a acender-se no povo alemão quando ataca a França em [18]70 para selar a sua unidade, para fazer com que a Alemanha, para acabar de fazer com que a Alemanha passasse, de nacionalidade aspirante em vias de realizar-se plenamente, de

encarnar, a Alemanha imperial de 1871 sob a égide da Prússia; a batalha que iria acender-se fora de qualquer interesse dinástico entre este povo alemão, reformulado no mais profundo do seu ser, e o povo francês, surpreendido com esta agressão maciça de um povo e sem ter, para a repelir, mais que um exército que não era um exército nacional, no sentido verdadeiro e profundo do termo, mas (a despeito das medidas apressadas de última hora) um exército profissional, com os quadros, a organização e o espírito de um exército profissional; esta batalha era uma coisa diferente e, o que é mais grave, o298A EUROPAque é vital e trágico, para o povo francês, e para o povo alemão, e para a Europa, como não o foram os velhos conflitos de outrora, por mais sangrentos, por vezes, e tão devastadores, os velhos conflitos entre as casas, como se dizia, a rivalidade entre a casa de França e a casa de Áustria, a oposição e os conflitos larvares, os jogos diplomáticos, ora concordantes, ora contrariados, dos dois lados da família Habsburgo, o de Madrid e o de Viena, etc., etc.

A diferença? Era exactamente da mesma ordem da diferença que separa os exércitos de outrora, os exércitos profissionais do século XVII, do século XVIII, tão numerosos, tão bem organizados, tão poderosos para o tempo em que puderam existir, dos exércitos da recruta, os exércitos da mobilização em massa que a Revolução Francesa concebe, os exércitos que mais não são que a nação em armas, nações inteiras transpostas para o plano militar, nações a estenderem todas as suas forças pacíficas para os furores e os sonhos da guerra.

E então, a partir do momento em que a Europa era isto, uma espécie de arena fechada de nações ardentes, dinâmicas, orgulhosas dos seus primeiros sucessos, todas elas desejosas de os consolidar ou de os engrandecer, ou ainda de se vingarem dos fracassos que não aceitavam, a partir desse momento, sonhar a harmonia europeia, a união europeia, a república europeia era precisamente quimera, paradoxo e loucura. Era querer a quadratura do círculo.

E a prova... a prova está à vista. Nunca, em todo o século XIX, essa harmonia se realizou. Houve remissões pacíficas para um clima de guerra latente, houve hesitações quanto a desencadear a guerra e uma tendência para entreter as combinações diplomáticas por forma a retardar a entrada em cena dos canhões, esta fatalidade,

desde que houve canhões dos dois lados e em número praticamente igual e de calibres semelhantes. Mas espírito de verdadeira paz, de desarmamento dos apetites, das ambições, dos rancores, isso nunca houve, nunca.

Aliás, algo veio a incidir sobre tudo isso, algo de poderoso e novo. O299LUCIEN FEBVREquê? O surto industrial, o advento da grande indústria. Quando aparece a nação, é a nação armada. Brunot observa com razão que no século XVIII são os exércitos, são os soldados e os oficiais do exército que fizeram fortuna que lançam a palavra nação.

A nação é a nação armada. Mas para se armar, a princípio, ela mobiliza a ciência. Mobiliza Monge, para resumir num único nome todo este esforço. Mobiliza a academia das ciências, o Instituto. Mobiliza a ciência para que a ciência, a ciência filha de Lavoisier, ao abandonar as suas especulações desinteressadas, realize engenhos de morte mais destruidores e mais aperfeiçoados, mais científicos que os existentes. Mobiliza a ciência. E a ciência mobiliza a indústria ao serviço da guerra científica que ela improvisa. E a indústria já não é a que era no tempo da manufactura. É a indústria nova, aquela que começa a chamar-se indústria. Porque antes desta época, «indústria» era o nome de uma qualidade da inteligência, de uma qualidade individual, pessoal. Era o nome da qualidade que distinguia os homens industriosos (o epíteto, tal como chega, conservou o velho sentido da palavra). Mas precisamente nesta época «indústria» deixa de ser o nome de uma qualidade, a que caracteriza os cavaleiros de indústria, Torna-se o nome de uma instituição, de uma força, de um poder enorme e em breve colossal que altera o mundo e reina no mundo, que os donos do mundo, os chefes das nações, empregam para os seus fins, utilizam para os seus objectivos. Mas em breve será ela a dominá-los, a submetê-los e a comandá-los...

Os homens e a própria indústria sonharão fazer dela uma força pacífica e filantrópica. Entoarão, com Lamartine, o hino à criação industrial, essa criação maior, mais pacífica e benéfica para o homem. Nesse tempo, as máquinas de Krupp em Essen, as máquinas de Schneider no Creusot tornearão [tubos] de canhão cada vez mais resistentes e cada vez mais potentes. E não será só isso. Haverá as próprias indústrias pacíficas, as indústrias que têm por objectivo vestir as pessoas, as indústrias têxteis; haverá as indústrias subsidiárias da lã, do algodão, da seda que, na sua300A EUROPA

validade, no seu esforço para dominar, para conquistar os mercados não apenas nacionais (esses, não é preciso conquistá-los, é preciso observá-los e excluir deles o estrangeiro, o que nem sempre é fácil, pois pode dar-se o caso de ser concedida liberdade de concorrência a este estrangeiro para compensar uma liberdade análoga obtida dele noutro domínio), haverá portanto as indústrias têxteis que, no seu prodigioso esforço, obrigadas, depois de terem saturado os mercados nacionais, a procurar os chamados escoamentos, fora, no território das outras nações, nos coutos de caça das outras nações, tornar-se-ão desse modo causas de guerra. »

E uma coisa coincide com a outra. E a nação, a nação armada, o exército nacional de recrutas, o exército nacional cada vez mais industrializado para uma guerra cada vez mais científica, tudo isso coincide no tempo, tudo isso surge simultaneamente, tudo isso se manifesta ao mesmo tempo, tudo isso compõe o quadro de uma Europa das nações que cada vez mais se torna impossível conceber como uma Europa de paz, como uma Europa de união, como uma Europa de fusão se não se conceber esta Europa, entenda-se, como unificada pela força de um dos seus membros, como unificada pela conquista de um só, pelo domínio de um só, como que realizada pela absorção e pela sujeição a um só; E até isso, será possível? Mistério. Evidentemente... as forças de que hoje dispõe, de que pode dispor hoje um homem que possua esta anacrónica, esta monstruosa, esta criminosa loucura da dominação, digo criminosa porque ela só consegue alcançar os seus fins destruindo tudo o que, ao longo de séculos e séculos, gerações e gerações que exerceram a sua liberdade [?] e o seu génio no quadro geográfico da Europa conseguiram criar em civilização, as forças, evidentemente, de que hoje pode dispor este homem se se apoiar, condição indispensável, numa nação não apenas armada até aos dentes mas industrializada da cabeça aos pés, toda ela, e com uma força irresistível, as forças de que este homem, actuando em nome desta nação, pode dispor, essas forças são terríveis, de um poder tremendo. E não se entenda poder apenas no sentido material da palavra, não,301LUCIEN FEBVREpoder, irresistível poder no sentido moral da palavra, no sentido filosófico da palavra, trabalho sobre a matéria, trabalho sobre o espírito, sobre os espíritos. Sobre a pele dos homens, não basta. Já não basta ter o corpo dos homens, os pés da infantaria, o garbo da cavalaria, a força

física, a força física e o sangue-frio da artilharia, a habilidade e a audácia da aviação, essa novidade de destruição, isso tudo já não basta. É preciso os cérebros, os corações, as almas. E aí está a rádio para os cegar, para os moldar, para os trabalhar, para os transformar à custa de mensagens ora cínicas, ora patéticas, ora interesseiras.

Contra isso, quanto pesaria esta federação pacífica de nações com que continuam a sonhar os bons Europeus do início do século XX? Quanto pesaria? Porquê este condicional? Vimos operar a força conquistadora da nação voraz que queria fazer a Europa pela absorção de todos os membros da Europa, de todas as partes da Europa. Vimo-la operar. E ainda não recuperámos. Ainda mal nos libertámos. Ainda nem acreditamos que nos livrámos dela. E a nossa alegria de estarmos livres está estragada, irremediavelmente estragada. Porquê?

Porque a questão que se põe é: aquilo vai recomeçar amanhã? Pelos mesmos? Ou por outros? E como impedir que aquilo recomece? Destruindo as máquinas, como os operários de Lyon insurgidos contra Jacquard e contra o seu tear mecânico? Acarinhando o sonho de Ruskin, de um regresso ao passado, de uma abolição da «maquino-factura», de um restabelecimento do artesanato. Quimera, porque ao mundo já nada resta. O mundo perdeu tudo na confusão e primeiro sem dúvida os seus tesouros artísticos mais preciosos, e por toda a parte, e mais ainda que em qualquer ] outro sítio em Itália, nessa Itália que é mãe das artes, nessa Itália cujas feridas não são feridas italianas, mas feridas nossas, lutos nossos cuja amargura medimos quando sabemos que, em Nápoles, Santa-Chiara já’ não existe, que os túmulos dos Angevinos estão todos destruídos; quando sabemos que no museu de Nápoles Os Cegos de Brueghel foram roubados; quando sabemos que nos Uffizzi de Florença, embora se tenha en-302A EUROPAcontrado, por acaso, numa vivenda, desemoldurado, a Primavera de Boticelli sujeita a todos os ultrajes e a todas as cobiças, em contrapartida não se recuperou o David de Donatello, nem o Concerto de Giorgione, também eles roubados, levados sabe Deus para onde; quando sabemos que em Pisa o Campo Santo foi [...], o Ponte Vecchio, quando sabemos de todos estes lutos, todos estes lutos de famílias, que não são lutos italianos, que são lutos nossos, tragédias domésticas para todos nós1.

Mas não é só a arte. É todo o material da vida quotidiana, dos objectos mais simples às máquinas mais complicadas, desde os pregos, os parafusos, os alfinetes e as agulhas aos mais complicados aparelhos de aquecimento, até às locomotivas, até às

centrais eléctricas, até às metalurgias cujas ruínas juncam o chão; desde os pratos e tijelas de faiança até aos sapatos de couro, até aos vestidos de pano, até aos utensílios de cozinha, até aos móveis de pinho... um desastre. E era o momento adequado para travar a indústria? Para voltar para trás, para o artesanato? Para sonhar com os velhos tempos? Ora, ora! A força da indústria vai ser mais irresistível do que nunca. E manifestar-se-á onde estiver a força das armas, não nos iludamos. E portanto o seu potencial nocivo, o seu potencial mortífero virá somar-se ao potencial nocivo, ao potencial mortífero e destruidor das armas. Não, não, nada de sonhos. Não vai ser amanhã que a indústria se vai desarmar. E se ela não desarmar, quem desarmará?.

Não argumento. Não tenho soluções para oferecer. Limito-me a registar os factos. É aqui que estamos. Não é uma razão para não agir, para não fazer tudo para evitar o pior, a nova guerra da qual a Europa, desta vez, supondo que consegue recuperar desta, por certo não recuperará. Não é razão para não fazermos o impossível para conjurar o perigo de amanhã num momento em que ainda não estamos inteiramente, plenamente fora do perigo de hoje. Não é razão. Mas não nos venham falar de Europa porque, menos que nunca, um historiador não pode saber o que é a Europa; porque, menos que nunca a noção de Europa é uma noção clara, uma no-303LUCIEN FEBVREção simples, uma noção inteligível; porque a Europa já não é a Europa. Está toda, para parodiar os versos de Corneille, está toda onde se encontrar a civilização industrial a que nos conduziu o desenvolvimento prodigioso, o desenvolvimento ao mesmo tempo desregrado, desmedido e mesmo assim magnífico, mesmo assim inebriante precisamente por causa da sua força e do seu génio, o desenvolvimento monstruoso de uma indústria cujos progressos, seria estúpido pensar que vão cessar, que ela vai parar, quando a ciência não pára, que vai limitar as suas ambições a fabricar panelas, autocarros e couro para sapatos, inocentemente, como uma bela industriazinha familiar que soletra com delicadeza no seu alfabeto as três letras da palavra «paz». Não, isso é impossível. Há que sabê-lo. Não será assim.304

Lição XXVIIRecorde-se: falta esta lição; ver introdução, p. 12305306

Lição XXVIII

Conclusão: queimar a etapa?

Eis-nos chegados ao termo da nossa viagem1. Eis-nos chegados à grande questão: Europa, Europa..., palavra fetiche, palavra remédio, palavra de salvação. Realizemos a Europa. Criemos a república europeia. Constituamos a nação europeia, a nação europeia cujas províncias serão as nações actuais, mais nada. Criemos a república europeia. Constituamos a nação europeia. Está na lógica das coisas. Está na linha de evolução. A Europa é o termo necessário desta longa marcha para a unidade e a concentração que todos os países europeus começaram há um milénio, no tempo em que o Império Carolíngio deu a ver como que uma primeira configuração da Europa, e que prossegue. Isto, disseram-no os espíritos livres filosóficos do século XVIII. Isto, disseram-no os grandes espíritos, os generosos espíritos românticos do século XIX. Isto, como havíamos nós, homens do século XX, como havíamos nós de não o repetir com eles?

A Europa está tão dentro da linha da evolução pacífica e previsível da civilização e da organização dos países do Ocidente que os homens que tentara captar em seu proveito, confiscar, desviando-as da sua finalidade, a civilização e a organização europeias, que estes homens, também estes,307LUCIEN FEBVREnão têm na boca mais que uma palavra. E para se justificarem, chamam ao monstruoso poder com que sonham, ao monstruoso edifício de poder pessoal que é o seu, chamam-lhe Europa.

Pois bem, o problema coloca-se. Ainda estaremos a tempo, se é que alguma vez estivemos? Quero dizer: a Europa será efectivamente uma etapa necessária na estrada, na imensa, interminável estrada das esperanças e desesperanças humanas? E dever-se-á necessariamente marcar esta etapa ou pode-se queimá-la e considerá-la inútil, perigosa, talvez, e se for preciso estender diante dos olhos um ideal, estender diante dos olhos um ideal de fraternidade e de união já não europeu, mas mundial?

Eis o problema, o grande problema tal como se levanta, hoje, ao historiador: na verdade, trata-se aqui de história. Não trato a questão como político, nem como militante, nem sequer a trato. Coloco-a

Ora, olhemos para as coisas e não para as palavras, para as coisas diferentes que cabem nas mesmas palavras. Europa? A Europa de hoje é a mesma Europa de que falavam Voltaire, e Diderot, e Rousseau? A Europa de hoje é a mesma Europa de que falava ainda Victor Hugo nos

seus arroubos líricos e retóricos? Não, não, por onde quer que se lhe pegue.

Olhemos para o sul, para o lado do Mediterrâneo. Contei-vos o trágico acidente que aconteceu no século VII da nossa era ao Mediterrâneo. De uma assentada, rasgou-se em dois por um grande rasgão que ia de este para oeste. A norte deste rasgão [encontravam-se], de uma maneira geral, as terras europeias, as terras cristãs. A sul [encontravam-se], igualmente de uma maneira geral, as terras não europeias, africanas, as terras do Islão. E deste corte tentei eu marcar para vós as consequências, as enormes consequências para a história da civilização ocidental.

Tinha razão. Mas em 1830 os Franceses desembarcaram na Argélia. E não é esse o facto importante. Muitas vezes os Europeus desembarcaram308A EUROPAna Argélia desde que o contorno africano do Mediterrâneo se separou por completo do contorno europeu. O facto importante é que, se até aí os Europeus tinham tido que embarcar de volta pouco tempo após a sua chegada, em Argel, desta vez, os Franceses não reembarcam. Ficam lá. Fixam-se. De Argel irradiam para toda a Argélia. Atingem o Saara, o Saara para além do qual há o Sudão, este Sudão que os Franceses ocupam também, um século mais tarde. E que mantêm, continuam a manter. É um grande facto. Nada mais nada menos que a vingança dos acontecimentos trágicos do século VII. Nada mais nada menos que, talvez, a reinstalação duradoura da civilização ocidental nesta África Menor que outrora desempenhou tão grande papel no desenvolvimento desta civilização, a África Menor de Santo Agostinho, para evocar apenas um nome que baste.

Olhemos para oeste, do lado do Atlântico. Aí, não há reconquista, [mas] conquista, uma brusca e recente conquista, uma colonização além-mar. O mar era um oceano, um enorme e temível oceano, tão enorme, tão temível que foi preciso esperar pelo fim do século XV para haver quem ousasse atravessá-lo à aventura... para que os brancos do Ocidente o atravessassem e, tendo-o atravessado, se instalassem do outro lado, nas margens, frente à Europa. Frente à Europa, mas eis que a Europa, precisamente já não fica toda na Europa. Eis que é a América o espectáculo, a América inteira, a do Norte e a do Sul, somente um pouco mais os Estados Unidos e o Canadá do que a Argentina e o Brasil, um pouco mais o Uruguai

que o Paraguai, não continuo, são questões de grau, mas se um americano, sobretudo um norte-americano, visitar o Extremo Oriente, será imediatamente classificado como europeu, e com razão, com justificação. Ora esta evolução do colono europeu instalado nas índias Ocidentais para cidadão da livre América, instalado nos Estados Unidos ou no Canadá, esta evolução só ao longo das últimas décadas se precipitou. Precipitou-se ao ponto de a indústria americana, a prodigiosa indústria americana ter estado muitas vezes a309LUCIEN FEBVRE !frente da produção industrial universal. Esta evolução é tal que, na guerra de 1914-1918, vimos intervir uma primeira vez a Americanos assuntos do nosso continente e a sua intervenção foi decisiva.

Esta evolução é tal que, na guerra de 1940-1945, vimos intervir uma segunda vez a América nos assuntos do nosso continente com uma força crescente e a sua intervenção ser decisiva. Digo: «nos assuntos do nosso continente», é um erro, nos assuntos do mundo inteiro, solidário em todas as partes, nos assuntos do mundo inteiro que compreende, entre outros, os assuntos da Europa; estes assuntos que não são os mais importantes aos olhos dos Europeus da América, longe disso, mas que eles tratam com outros, ao mesmo tempo que outros...

E agora, olhemos para leste. Também aqui, tantas mudanças! Dizia-vos da última vez, numa palavra. Para quem olha para leste, como quem olha para sul e para oeste, não, a Europa de 1945 já não é certamente a Europa de 1900, que não era de maneira nenhuma a de 1800, que já não era a de 1700, não vamos mais para trás, não é aqui necessário.

A Europa, como vimos, é a união, a fusão do Norte e do Sul, digamos, do mundo mediterrânico e do mundo nórdico. Ora, nestes dois domínios, para estas duas partes constitutivas da Europa, o problema foi o mesmo: fazer frente ao leste, o lado dos nómadas das estepes, o lado da Ásia; fazer frente ao leste, defender as fronteiras de leste, abrigar a civilização europeia nascente, frágil, instável, dos ataques vindos de leste e, aliás ao mesmo tempo, introduzir nesta civilização europeia nascente o mais possível de elementos culturais provenientes de leste, das civilizações orientais, do mundo oriental da Ásia.

Com efeito, se por intermédio das populações nórdicas, pela estepes que prolongam as grandes planícies da Alemanha do Norte, se introduziram numerosas e preciosas aquisições vindas do este mais longínquo no tesouro comum da civilização europeia, por esta mesma

via das estepes entraram, em massas enormes, populações em movimento que310A EUROPAnão se detinham perante nenhum obstáculo natural, nenhuma fronteira natural, que só uma muralha de homens, uma muralha de peitos humanos podia deter.

Como qualificar estas populações? Bárbaras? Se se quiser, na condição de admitirmos que as populações mais próximas sobre as quais essas se abateram não eram, afinal, muito menos bárbaras nessa altura. Mais vale chamar-lhes pagãs. Mais vale opor à massa das populações, não direi cristãs, mas cristianizadas, à massa das populações que foram baptizadas, digamos melhor, as enormes reservas de pagãos a converter, as enormes reservas de futuros cristãos que ainda restam, lá para leste, à margem da cristandade, mas que, de momento, constituem uma tal ameaça para a Europa já alinhada pelo cristianismo que a tarefa de as deter parece tão grande, tão primordial, tão vital que o Império, o Império com tudo o que a palavra tem de ressonância, o Império com tudo o que a palavra desperta de recordações, o Império com toda a auréola que rodeia o seu chefe, o Império pertencia sempre aos povos que erguiam esta muralha, aos povos que detinham a invasão e a repeliam e finalmente a levavam para casa do inimigo.

Este povo foi o povo franco, já com Clóvis, sobretudo com Carlos Magno. Este povo, foi o povo germânico que, detendo em Merseburgo em 933, em Augsburgo em 955 a invasão magiar, constituindo pela conquista aos eslavos a marca de Brandeburgo e a marca da Áustria, bem mereceu, há que dizê-lo, a Europa e a sua civilização precária, incerta e durante muito tempo trémula, uma civilização de que este povo era menos o portador e mais o escudo. ;~.

Lutava-se então contra os Eslavos, é o primeiro tempo. A seguir lutou-se pelos Eslavos, é o segundo tempo. Eslavos são primeiro e sobretudo os Checos, esses grandes pioneiros da Europa, os Checos primeiro, os Checos que fundam uma grande comunidade latina que, na Europa do século X, faz as vezes de bastião, de cunha plantada na carne viva dos pa-311LUCIEN FEBVRE I

gãos, mas também de vanguarda, depois de centro de irradiação do cristianismo latino, do cristianismo de obediência romana, do cristianismo tal como se implanta, se organiza na Germânia.

Em 973 ou 974 é criado o bispado de Praga, no quadro da grande arquidiocese de Mogúncia, a grande mãe do cristianismo oriental. Mas já cinquenta anos antes o herói nacional checo, Vesceslau, nobre modelo do soberano cristão aos olhos dos homens do seu tempo, já S. Venceslau tinha pago com a vida o seu demasiado ardor cristão (em 929). Já, em 965, o casamento de uma princesa checa, Boleslas Dubravka, com um príncipe | polaco, Mieczyslaw, contribuíra poderosamente para a difusão do cristianismo na Polónia.

E em breve o segundo bispo de Praga, um checo, Adalberto, mas que sofria a forte influência da Alemanha dos Otões, um checo mas portador, lá longe, bem longe, das ideias clunicenses, em breve Adalberto de Praga conheceu o martírio, em 997, quando levou aos prussianos pagãos a palavra cristã.

Ora o primeiro arcebispado da Polónia foi criado junto da igreja de Gniezno onde foram sepultados os restos mortais do santo mártir e o primeiro arcebispo de Ostrigom na Hungria foi igualmente um discípulo de Adalberto que mudou para Anastácio o seu nome checo, Radia.

A Boémia, mal foi conquistada para a fé cristã, ajudou portanto a Polónia, depois a Hungria a obter uma organização eclesiástica autónoma, 3 esta indispensável duplicação de qualquer organização política estável neste mundo sempre em movimento. A Boémia deu, na pessoa de Adalberto, a estes países do Norte oriental o exacto simétrico daquele Bonifácio que tanto fizera por conquistar para a fé as terras renanas.

A Boémia primeiro, a Boémia de Venceslau e de Adalberto, depois a Polónia, a norte desta Boémia, depois, a sul, a Hungria, assim se constitui, em três panos, a muralha do este. Assim se formam os quadros da cruzada! terrestre, a cruzada do Norte. E esta cruzada chama, atrai de toda a parte aventureiros, soldados, príncipes do Oeste, sobretudo os franceses. Porque312

A EUROPAnós não sabemos até que ponto esta história está cheia do nosso sangue, cheia da nossa acção, cheia das nossas iniciativas.

No século XIII, o sangue de S. Luís, o sangue dos Angevinos corre por toda a parte nas veias das dinastias do Norte, na Polónia

através do sobrinho-neto de S. Luís, Luís o Grande, [rei em] 1370, a que se seguem as suas filhas, Maria e Heduíge; na Hungria, através do sobrinho de S. Luís, Carlos Roberto, [rei em] 1308, a quem se segue o mesmo Luís o Grande seu filho, Maria e Carlos o Pequeno de Nápoles; mas já Estêvão III, [na] segunda metade do século XII, desposara uma Châtillon, Inês, de pois uma filha do nosso Luís VII.

E verifica-se a lei, a lei que testemunha a importância capital que a Europa dá a toda esta história, a toda esta cruzada; a lei que quer que a mais alta coroa, a coroa imperial, a que o papa dá, impõe ele próprio desde Carlos Magno, a lei que quer que a coroa imperial recompense o verdadeiro chefe da cruzada, o comandante cristão contra os mais temíveis dos pagãos. Verifica-se quando, em 1347, o rei da Boémia na pessoa de Carlos, filho do rei João da Boémia que acaba de morrer em Crécy de armas na mão pela defesa da França cujos gostos, cuja cultura ele amava e propagava, verifica-se quando, em 1347, o rei da Boémia se torna o imperador Carlos IV.

Estes Luxemburgo não eram de sangue francês. Faziam parte de uma família condal alemã, estabelecida nos confins franco-alemães, mas ligada à realeza de França por um vínculo de vassalagem e fortemente imbuída de cultura alemã. E através deles é a cultura francesa que se introduz na Boémia, através de João, através de Carlos que foi educado na corte de França, Carlos, o fundador do arcebispado de Praga que desmembra o imenso arcebispado de Mogúncia e dá à Igreja checa a sua autonomia, Carlos, o fundador da universidade de Praga em 1348, a primeira e durante algum tempo a única universidade da Europa central, Praga que estabelece com Paris, que mantém com Paris relações estreitas.

E quando se pensa que na mesma época os Franceses, nomeadamente na pessoa dos Angevinos, estavam por toda a parte, na frente marítima do313LUCIEN FEBVREMediterrâneo como na frente terrestre da Europa oriental, quando se pensa que até na Lituânia, em 1386, foi uma princesa de sangue francês, Heduíge, filha de Luís, rei da Hungria e da Polónia, Heduíge Capeto, Heduíge Angevina que, ao desposar o seu marido, o dinasta lituano [Ladislau] Jagelão, cristianizou, arrastou para o cristianismo de obediência romana a Lituânia ainda pagã e desempenhou ali o papel de

uma nova Clotilde, compreende-se enfim a força, a persistência destes laços de simpatia entre a França, a Boémia, a Polónia, a Hungria de que a política francesa foi beneficiária e que nos explica o prestígio, a irradiação da França nestas terras distantes.

A seguir há um eclipse e uma recuperação, desta vez pela Rússia. A Rússia, pensamos nós, os nossos livros, as nossas escolas levam-nos a crer que o seu papel europeu data de Pedro o Grande. Mas não. Na realidade, é ela que retoma, é ela que prolonga mais para leste, sempre mais para leste a tarefa de propagação das ideias cristãs no Oriente, para Oriente, contra o Oriente. É ela que ergue a muralha, o bastião da Europa para leste, contra a Ásia. Somente, esta história que se desenrola lá longe, bem longe, para além da Polónia, junto ao Dniepr e mais além, os ocidentais não a conhecem. Seguem-na mal. Desinteressam-se dela. Os Russos retomaram de facto a tarefa dos Polacos, dos Checos, dos Húngaros, empurraram para leste os limites do mundo europeu, mas são ignorados. O seu esforço não é seguido. Não se sabe nada deles.

Porquê? Por razões muito simples, é que a Rússia não está ao serviço de Roma. É que a Rússia não impulsiona o cristianismo latino. É que o seu cristianismo não é o do papa de Roma, o que fala latim, aquele que, nesse tempo, todo o Ocidental reconhecia como seu, aquele cuja progressão ele pode seguir servindo-se da sua língua, do latim.

E no entanto os dois elementos que compõem o povo russo ocidental, um, o elemento eslavo, é aquele com que se formaram os Estados da Polónia e da Boémia; o outro, o elemento escandinavo, é aquele a que per-314A EUROPAtencem os Normandos. Porque os Varegues que, no século IX, fundam as marcas de Kiev e de Novgorod são os irmãos destes normandos que se estabelecem, primeiramente no litoral atlântico, de onde irradiam para a Islândia, a Gronelândia, o Labrador; em segundo lugar, no reino de França onde criam o ducado da Normandia; em terceiro, no reino de Inglaterra, que fundam, com Guilherme.

E no entanto, a curiosidade detém-se nos limites da Polónia e da Hungria. Não vai até essa longínqua Rússia, até essa misteriosa Rússia que se cria lá, lentamente, pacientemente, secretamente, na floresta que ela semeia de clareiras, na terra negra que ela cobre de searas, na pradaria que ela transforma em campos. E no entanto o que os Russos, os Eslavos e os Varegues todos juntos

propagam através das estepes em direcção a leste são as ideias, as crenças do mundo greco-romano. Receberam nas cedo, ao mesmo tempo que as recebia a Boémia por intermédio da Alemanha. É em 988 ou 989 que Vladimir, príncipe de Kiev, desposa uma princesa grega, Ana, se faz cristão, baptiza o seu exército, destrói os ídolos, impõe pela força o baptismo em Novgorod e, ao cristianizar o seu país, o abre para as ideias novas. Mas já a sua avó, Olga, viúva de Igor, era cristã, embora o seu filho e neto tenham permanecido pagãos e o cristianismo, graças ao comércio com os Gregos, tinha-se difundido pouco a pouco entre os Varegues.

Kiev, a primeira grande cidade russa, torna-se desde o primeiro dia metrópole santa, rival e sucursal de Constantinopla. E é a religião, a legislação, a literatura, as artes vindas do sul que dão à nação constituída pelos Varegues a civilização que os príncipes de Moscovo propagaram para leste a partir da criação desta cidade cujo nome aparece pela primeira vez nos anais russos em 1147. Em redor da metrópole de Kiev, agrupam-se cinco bispos, mais tarde quinze. Multiplicam-se as igrejas e os conventos. Toda a sua clientela fica submetida à jurisdição eclesiástica. Toda a arte, no início, é tributária destas igrejas: é de Bizâncio que vêm os arquitectos e os pintores de ícones. E os livros de culto são escritos nesta315LUCIEN FEBVRElíngua eslava usada pelos santos Cirilo e Metódio e que os eslavos do oriente compreendiam. Em breve os próprios russos redigem nesta língua Anais que são as primícias de uma literatura original, religiosa e laica.

Todo este grande trabalho é ignorado pela Europa. Trata-se de cristãos gregos, desses cristãos gregos que a Europa trata como cismáticos, isto é, pelo menos como estrangeiros, quando não como inimigos. Não esqueçamos que a palavra escravo provém dos Eslavos e que estes Eslavos que os cristãos reduzem sem escrúpulos à escravidão deviam ser antes pagãos, mas quando passaram a ser cristãos, cristãos gregos, muitas vezes não ficaram menos expostos às violências dos cruzados do Ocidente estimulados pelo lucro.

E a ignorância durou até ao dia em que a Europa teve que se aperceber de que os Russos existiam. Quando? No momento em que ela própria, Europa, se desvia da sua tarefa oriental, da sua guarda postada a leste para se lançar inteiramente na direcção oeste, para o lado do Atlântico.

É o momento em que a Espanha lança Colombo, o genovês, à descoberta de um continente novo; é o momento em que a Espanha já só tem olhos para a terra providencial de onde lhe chegam os galeões carregados de ouro e de prata; é o momento em que o pequeno Portugal se dota, além-Atlântico, do enorme Brasil; é o momento em que a França do século XVI, a de Francisco I, a das guerras religiosas, depois a França do princípio do século XVII, a de Richelieu, se dota do Canadá, das Antilhas, do Senegal, de Madagáscar; é o momento em que a Inglaterra anda absorvida nas suas querelas religiosas, mas elas vão dar-lhe toda a América do Norte; é o momento em que a Holanda encontra o seu Peru na Malásia e de lá tira especiarias, logo, a riqueza que coloca por toda a parte com grossos lucros; é o momento em que, próximas da Rússia, a Suécia e o Brandeburgo olham para oeste e se sentem humildes.

E então, quando todas as nações assim se expandem para além-mar, é então que a Rússia dos Romanov vela por elas, a leste. É ela a fiel guardiã316A EUROPAda planície oriental, às portas da estepe; é ela, unida em torno do seu chefe, o czar moscovita unificador da terra russa e ao mesmo tempo pontífice; é ela, pronta a lançar o seu primeiro apelo contra o inimigo implacável e detestado, o Tártaro, o Turco; é ela que, não apenas detém na sua passagem os Orientais sempre tentados pelas riquezas e pela facilidade do Ocidente, mas ainda o empurra para leste, sempre mais para diante, uma civilização que, afinal, na medida em que [é] ao mesmo tempo grega e nórdica, é realmente uma civilização da Europa, a civilização europeia.

Não se pense que o perigo do Este foi para a Europa um perigo imaginário. Este perigo tinha um nome, desde o início do século XIII, era o perigo tártaro. No princípio do século XIII, as numerosas tribos tártaras que erravam pela Mongólia encontravam-se unidas sob o grande Khan, Gengis Khan. Depois, atravessando a Ásia, tinham-se abatido sobre as estepes do mar Negro. Em 1223, tinham batido o montão de gente que os príncipes russos de Kiev, de Tchernigov, de Galitch lhes opuseram à pressa e depois, sem tirarem proveito da vitória, tinham voltado a partir. As hordas tártaras reapareceram ainda muitas vezes e, vitoriosamente, batendo os exércitos russos, apoderando-se de cidades, de Moscovo, de Kiev, etc.

A principal, a Horda de Ouro, acampava junto aos rios Don e Volga; o seu campo estava sediado em Saraj. Os Tártaros cobravam um tributo sobre as terras russas submetidas, mas deixavam livre a Igreja russa. Separam-na, aliás, bem como toda a Rússia, das suas raízes bizantinas.

Privam-na das suas terras novas [?]. É contra os Tártaros, é contra a Horda de Ouro que os príncipes de Moscovo, antes dóceis protegidos dos Tártaros, que os vêem com bons olhos, lhes conferem privilégios, fazem deles, de certo modo, seus intendentes para a administração dos territórios russos conquistados, começam a erguer-se, quando, graças ao poder que os Tártaros lhes concedem, se reúne sob o seu mando não apenas a Rússia Central, entre Oka e o alto Volga, como também a região dos lagos e o litoral do Norte.317LUCIENFEBVREAproveitando a fragmentação da Horda em principados independentes que se combatiam, Ivan In furta-se ao tributo, que deixa de pagar a partir de 1480. E começa a surgir na Rússia a ideia de que Moscovo seria o terceiro trono, depois de Roma e Constantinopla, que será o centro do mundo ortodoxo, que o chefe do Estado moscovita deve ser considerado vigário de Deus e que o seu poder deve ter a extensão, a natureza, a grandeza do poder do imperador bizantino, do ex-imperador, uma vez que, desde 1453, já não há imperador em Bizâncio. E é o protocolo da corte bizantina que surge em Moscovo. É o Kremlin construído pelo arquitecto italiano Fioravanti com a ajuda de operários italianos, o Kremlin coroado de torres renascentistas e rodeado de palácios, de igrejas, de catedrais de pedra que substituem as velhas construções moscovitas de madeira.

É toda uma obra de civilização, de guarda também, de guarda do leste. Porque os Tártaros continuam a ter capacidade para fazer incursões e não se privam delas. Ainda no século XVI, progridem até Moscovo, que devastam e despovoam,

E não eram só os Tártaros! Havia os Turcos! Este perigo tinha um nome: era o perigo turco. Os Turcos ocupavam o Império grego desde 1453. Não se tinham instalado verdadeiramente lá. Acampavam: eles, os seus cavaleiros e as suas crianças-soldados, tiradas aos cristãos, educadas no Islão e que se tornavam janízaros. A sua política resumia-se numa palavra: a guerra santa, a missão prescrita no versículo do Corão «Tenho a missão de combater os infiéis até que eles digam: só Alá é Deus».

Em vão a França, ao operar uma revolução que provocou um escândalo inimaginável, em vão a França exigira fazer entrar a Turquia de Suleimão nas combinações diplomáticas europeias. Economicamente, comercialmente, tinha ganho muito, uma vez

que o sistema das capitulações que abria ao comércio francês as rotas do Levante havia de fazer em dois séculos, do Império Otomano, uma espécie de império colonial francês,318A EUROPAuma vez que as escalas do Levante penetravam no Oriente, não apenas os mercadores, mas também os missionários do Ocidente. Mas o império turco estava assim a deixar passar para a Ásia, pelas malhas da rede islâmica, notáveis penetrações europeias. A política francesa não triunfara, não conseguira fazer dos turcos colaboradores desta Europa em cujo território se tinham instalado; a política francesa não conseguira voltar os Turcos contra o Oriente saturando-os de civilização europeia o bastante para que eles parecessem, em relação à Ásia, a vanguarda da Europa. E como a força da Europa também não tinha conseguido repelir a Turquia inteira para a Ásia, o poder otomano permaneceu, forte, assente nos Balcãs, para além do Danúbio e a dominar a Hungria até à paz de Karlowitz, em 1699.

Entretanto, dentro dos seus limites instáveis e que se estendiam pouco a pouco em todas as direcções, a Rússia povoava-se. Este obscuro e poderoso trabalho de colonização interna, para cuja importância chamámos a atenção, que incide sobre toda a Europa, este trabalho prosseguia, sem trégua e sem quartel. Primeiro no interior e no âmbito dos velhos principados russos de Novgorod, de Tver, de Moscovo, de Riazan, depois, no impulso para sul, na estepe aonde chegam, no século XVI, massas de camponeses livres e de servos, a despeito dos perigos, das incursões dos Tártaros que vinham do mar Negro e contra os quais, no século XVII, será preciso construir linhas de fortificação, depois, por extensão, na Sibéria, onde a princípio só se arriscam aventureiros caçadores de peles que trabalham para o mercado de Constantinopla. Muitas vezes organizam-se em expedições protegidas e armadas: por exemplo, em 1465, em 1483, em 1499, ao tempo de Ivan III. Vão resultar na construção de ostroghi, postos fortificados ao mesmo tempo que depósitos de peles, também depósitos de armas e de víveres que formam uma cadeia e acabam por atingir a Kamtchatka, enquanto, do outro lado, na direcção do Amur e a despeito da resistência organizada dos imperadores manchús só em 1689 atingem a região sita a montante do afluente do Argun e do Chilka, e também a319

LUCIEN FEBVRETansbaicália onde penetram a partir de Irkutsk. Pouco a pouco, os ostroghi do início iam-se tornando cidades. Aos caçadores, aos cossacos juntam-se padres, monges, mercadores, foras-da-lei, dissidentes religiosos ou deportados políticos.

Há um comércio caravaneiro através das imensas planuras; em 1638 chega à Rússia, pela Sibéria, o primeiro chá da China recebido na Europa. , Nesta mesma China, os russos da Sibéria vendem então peles; recebem» em troca chá, sedas, algodão ao mesmo tempo, descobria-se que a Sibéria! é uma região rica em minas. Havia que as explorar e para as explorar, mandar para lá operários que foram sobretudo deportados e condenados, Mas para os alimentar era preciso cultivar. Portanto, os camponeses da coroa foram transplantados, também eles, para leste. O povoamento é lento. I Em 1709, os europeus na Sibéria contam-se por uns meros 229 000. Mas este número cresce depressa ao longo do século XVIII. Em 1797, os 2291000 tinham-se transformado em 707 000, e em 1816, 540 000. Mas é sobretudo no decurso do século XIX que a colonização se intensifica. Deportados (em número crescente, 324 000 no total, de 1863 a 1881, em 181 anos), cossacos, sempre prontos a pegar em armas, sobretudo depois que é abolida a servidão, em 1861, camponeses que se precipitam sobre as terras novas, primeiro à aventura, depois por encargo regular do Estado que organiza a distribuição de talhões, comboios especiais e aldeias, conta-se que a Sibéria, que continha, em 1897, 5 727 888 habitantes nos seus limites oficiais da época (ou seja, 12 394 000 quilómetros quadrados) contava, em 1926, 11 milhões e meio numa superfície menor (na sequência de uma delimitação administrativa nova), de 1 333 000 quilómetros quadrados. Ora estes homens eram russos, verdadeiros Russos da Rússia. Já em 1897 o elemento russo [representava] 82% dos 5 727 000 habitantes da época. E depois?

Conclusão: o nosso universo político europeu não é um universo com duas dimensões. É um universo com três dimensões. É preciso320A EUROPApensá-lo em profundidade. A sua superfície é realmente na Europa. Mas ele mergulha de costas, de todos os lados (e mesmo pelo norte, pelo pólo que os aviões sobrevoam), mergulha, está envolvido em toda a crescente complexidade dos interesses

universais. E como poderiam agora passar uma sem a outra, por exemplo, a Europa e a Ásia? Mais ainda, como poderiam elas soltar-se, distinguir-se uma da outra? Onde começa uma, onde acaba a outra? Aqui, uma Turquia ocidentalizada, com turbantes e instituições europeias, universidades, escolas, serviços de belas-artes; além, uma Sibéria ocidentalizada, industrializada, provida de altos fornos surpreendentes, de fábricas colossais de todas as espécies, de um equipamento ultramoderno operado por massas operárias cada vez mais numerosas. Desta Europa para esta Ásia, desta Ásia para esta Europa passa-se por uma série de transições insensíveis. A Turquia actual pouco difere de um Estado balcânico do passado, é já o vestíbulo de um mundo que conduz da Europa para a Ásia. E o resto? Quanto ao resto, vimos, em 1929, uma crise abalar toda a nossa economia. Partiu de Nova Iorque, mas, em 1921, tinha-se manifestado uma primeira crise. Partiu de Tóquio. E depois? Pregar ao Japão o regresso ao passado, o regresso ao tempo dos samurais, ou seja, à ruína, à miséria para as multidões humanas que se acotovelavam nas suas ilhas e que, se não encontrassem vida nessas ilhas, emigrariam. E se os impedissem de emigrar, que se passaria neste recipiente a transbordar? Se os deixassem emigrar, que se seguiria nos países para onde emigrassem?

*[A questão também já não é assim. O Japão cobriu, de 1940 a 1945]*, o Japão cobriu com a sua gente, as suas frotas, metade do mundo, não apenas a Ásia. Recorde-se que os contratorpedeiros japoneses foram até Madagáscar, em busca de bases no oceano Índico. O Japão, mas não é só o Japão; a Ásia, mas não é só a Ásia. Não, não, estes problemas não são simples. Antes da guerra, a França contava 40 milhões de habitantes na Europa, mas recenseava cem milhões no total, dispersos pelas diversas321LUCIENFEBVREpartes do seu império colonial. Se entrar para uma federação europeia, vai deixar à porta todos os membros da sua família? A Argélia, por exemplo, que é um grupo de três departamentos franceses, com senadores, deputados, ministros e até ministros que já foram muito marcantes, os Étienne, os Thomson? E a Martinica e Guadalupe? E a índia? E o Senegal? E tudo o resto? E se for tudo o resto, é o mundo inteiro, por amostras, que entra na federação europeia.

Não insistirei. Concluo: o problema da Europa ultrapassa a Europa; o problema da Europa situa-se à escala planetária; o problema da Europa é o problema do mundo. ’

Mas consideremos as coisas um pouco mais de perto. Fazer a Europa quer dizer três coisas: uma, que nos hipnotiza, é uma tarefa político-administrativa; a outra, sobre a qual lançamos um véu púdico, é uma tarefa económico-financeira; a terceira, que tratamos como entrada ou sobremesa, é uma tarefa cultural.

Três tarefas... Somente, no estado actual das coisas do mundo, as duas tarefas essenciais são, a meu ver, os dois dados essenciais do problema, são a primeira e a terceira. Note-se que não diria isto há trinta ou quarenta anos, pelo contrário, teria salientado a segunda. Porque não hoje? Para o explicar, preciso de tentar desenhar a traços largos, convosco, a história das relações recíprocas entre o Estado e a economia nestes últimos três séculos, desde o Estado mercantilista, que utiliza a economia como arma política ao seu serviço, até ao Estado liberal, pouco a pouco devorado, dominado, relegado para um canto por uma economia cada vez mais presente, cada vez mais senhora de si, cada vez mais orgulhosa e conquistadora e, finalmente, até ao Estado dos nossos dias, o Estado cuja intervenção crescente no domínio económico denunciávamos antes de1940, aliás sem nos darmos conta de que, se ele intervinha, era quase sempre porque a economia se tinha colocado na situação de necessitar dessa intervenção, desse apoio, dessa protecção e porque a sua força crescente,322A EUROPAa afirmação da sua autoridade eram na realidade feitas de fraquezas, de erros, de abandonos da economia... Falava-se então de neo-mercantilismo, isto é, na condição de se pôr o acento em «neo». Mas é um facto que tal expressão implica uma subordinação da economia, por mais forte que ela ainda esteja, aos desígnios políticos do Estado.

Portanto, antes do mais, há duas tarefas, dois dados fundamentais: [a primeira é] a política (que arrasta a economia e é arrastada pela economia), [a segunda é] a cultura e a civilização; duas tarefas, e ainda é muito» é mesmo esta dualidade que faz a gravidade do problema.

Vamos dizendo, nós, homens de boa vontade e belas intenções, vamos, desolados com tudo o que se tem passado nestes anos, sangrando de todas as feridas do mundo, esgotados, esvaziados

por estas sangrias, vamos dizendo: «Sejamos bons europeus!» Sim, temos toda a razão. Sejamos bons Europeus. Mas vejamos as coisas a nu. Quem aproveita com isso? Primeiro, nós, pessoalmente, individualmente. Nós que assim nos alargamos, que adquirimos maior amplitude, uma maior abertura de ângulo em relação ao todo, grandes alegrias do espírito. E talvez a comunidade receba daí qualquer coisa, por nosso intermédio. Mas... ser um bom europeu não é um fim. É um meio. Ser um bom europeu quer dizer (senão não quer dizer nada) ser um bomportador de um ideal. Sim, mas lá está, o nosso ideal não é necessariamente o dos outros. O nosso ideal de europeus não é de facto o ideal dos não europeus. Não podemos fazer com que um hindu, um chinês adopte as nossas ideias, partilhe os nossos sentimentos, entre nos nossos hábitos de pensamento, o que quer dizer, renuncie às suas próprias ideias, aos seus sentimentos, ao seu pensamento...

Então substituímos a nossa fórmula por outra. Dizemos: «Europeus, bons Europeus, sejamos bons parteiros de civilizações.» Os nossos antepassados teriam dito, e diziam: «Sejamos bons padrinhos de nacionalidades» (estão a ver este constante alargamento das noções, em todos os domínios? Esta passagem, aqui, de nacionalidade para civilização?). Bons parteiros de civilizações, sim, é a fórmula que nos seduz. Escravizar, não. Reduzir pela força,323LUCIEN FEBVREnão. Assimilar, não. Ajudar à expansão, sim. Sermos bons jardineiros que não contrariem a natureza, mas ajudem as plantas a crescer, a desenvolver-se, a expandir-se e a dar bons frutos, as plantas extra-europeias.

Sim, e depois, a Europa? A Europa, a construção político-económica? A Europa com que tantos sonharam? A Europa em que tantos viram o remédio? O meio de sair dos conflitos nacionais? Europa é um nome flutuante e que durante muito tempo não se soube muito bem sobre quê, sobre que realidades o pousar...

Europa é um equilíbrio de forças, um balanço de forças, uma balança de Estados rivais.

Europa é uma pátria ideal, o ideal de pátria dos livres espíritos do século XVIII...

Europa é um campo de batalha, é a Europa das nações armadas até aos dentes, divididas, dilaceradas por conflitos de nações e de nacionalidades...

--Europa é um remédio desesperado, uma vez que nunca se falou tanto de Europa, nunca se pensou tanto Europa como depois do tratado de Versailles, como entre 1920 e os dias de hoje, uma vez que foi então que a Europa se tornou, que Europa se revelou uma noção de crise...

.-Todos os países, todos os Estados saíram da tragédia de 1914-1918 exangues, cobertos de ruínas, com a ferida dos seus mortos, dos seus milhões de mortos aberta no flanco... Era um facto e era preciso admiti-lo, olhá-lo de frente; era um facto: num país como a França, na agricultura, na indústria, no comércio, nas artes, nas letras, nas ciências havia, após a tragédia, após a primeira tragédia de quatro anos, digamos, para não exagerar, sentia-se a falta, duas a três centenas de homens, duas ou três centenas de cabeças dirigentes, criativas, originais, arrebatadoras. Havia duzentos ou trezentos príncipes do espírito e da acção insubstituíveis, insubstituídos e por trás deles, alguns milhares de homens fortes, sólidos, inteligentes, aptos a formar excelsamente a armadura de um país que sem dúvida é fecundo em colheitas humanas, mas, enfim, mesmo assim não324A EUROPApode suportar, sem danos terríveis, o desaparecimento de dez gerações e as consequências desta terrível selecção às avessas que a guerra sempre opera... E falo da França; e nos outros sítios? Nos outros sítios é a mesma coisa, exactamente. E então? Então, todos os países, todos os Estados que, entretanto, após a guerra, permaneceram armados até aos dentes, os países que, tendo experimentado o que conferia de poder o diabólico arsenal de que se tinham munido, devem ter-se sentido garantidos, fortes, seguros de si, esses países tiveram medo. E ainda têm medo. E amanhã terão medo. Medo de quê? De tudo.

A Europa tinha semeado indústrias pelo mundo. [Fê-lo] com total imprevidência? Não, pretendê-lo seria introduzir, a coberto do acaso, um elemento de generoso desinteresse numa história onde só contam os mais imediatos interesses, as mais mortíferas realidades de vistas curtas. Mas as indústrias semeadas pelo mundo tinham ganho raízes na Ásia, na América, por toda a parte. E eis que produziam em melhor conta do que as indústrias mães da Europa, e eis que se perfilava o perigo, eis que se erguia o espectro da morte por paragem das máquinas... A Europa tinha medo.

A Europa tinha semeado colónias pelo mundo com uma maravilhosa imprevidência, sem se perguntar o que podia dar para as populações negras ou amarelas o contágio do exemplo, o desenvolvimento normal de acontecimentos trágicos. E surgem os problemas. E velhas nações de civilizações requintadas, lá longe, no Extremo Oriente, na índia e noutros pontos agitavam-se sob a hegemonia mal regulamentada dos brancos. E muito mais perto, no Próximo Oriente, nações ao mesmo tempo novas e muito antigas agitavam-se também, exigindo o seu lugar ao sol, a sua liberdade... o Egipto para os Egípcios, a Síria para os Sírios, o mundo árabe para os Árabes... Erguia-se o espectro da insurreição colonial. A Europa tinha medo.

A Europa tinha semeado as suas ideias pelo mundo, livremente, tais como a prodigiosa diversidade dos cérebros que alberga as forneciam aos325LUCIENFEBVREseus filhos, livre e indiferenciadamente: ideias de tradição, ideias de inovação; ideias de conservação, ideias de revolução. E eis que estas últimas ganham corpo, aqui e além, sobretudo além, no leste da Europa. Eis que elas se combinam, aliás estranhamente, com outras ideias de tendência oposta; eis que palavras de ordem desconhecidas, aberrantes, hostis às velhas maneiras de pensar e de sentir se propagam com uma extrema violência, com uma brutalidade de crescimento imprevisto nos países ao mesmo tempo muito antigos e muito novos. A Europa tinha medo.

Enfim, para abreviar, a Europa tinha semeado nações pelo mundo. Foi o fruto da política das nacionalidades, cara ao século XIX. Nações, nacionalidades: desde há cinquenta anos, só se falava disso. E as nações estavam mais do que nunca encerradas no seu egoísmo nacional; e as nacionalidades, no interior das nações recentemente criadas ou das velhas nações ao mesmo tempo enfraquecidas e reforçadas, manifestavam com mais virulência que nunca. Assim que foram fundados, os novos Estados que se pensara corresponderem ao desejo unânime dos seus membros, dividiam-se, cortavam-se em bocados que se opunham com violência. E perante estes conflitos que dilaceravam, que dividiam nomeadamente os países balcânicos e os países da Europa central, a Checoslováquia, a Jugoslávia e outras, perante estes conflitos, estas disputas que prenunciavam guerras, a guerra, a Europa tinha medo, medo, medo...

A Europa... eis que nela se produzem fissuras profundas. Guerra e paz tinham operado, de 1914 a 1920, prodigiosas liquidações de velhas formações políticas em que já nem sequer pensamos! Víramos morrer as mais velhas monarquias da Europa e os mais velhos imperadores de direito divino. Liquidada a Casa de Áustria, derrubadas as suas coroas, tanto a imperial como a de Santo Estêvão e de São Venceslau... mas o outro ramo da velha casa, a Espanha, caiu, o trono de Espanha; em breve iria ruir o de Portugal e o da Grécia, e o da Prússia, e com ele todos os pequenos tronos subsistentes na Alemanha; lá longe, ruiu o trono do sultão;326A EUROPAruiu o trono do czar. Por toda a parte [são criadas] repúblicas, e nós, republicanos, rejubilamos. Para além de nós, outros, que não o eram, rejubilam também e confirmam-nos no nosso sentimento, outros, como o conde Sforza, por exemplo.

Se uma união europeia pode ser considerada de outro modo que não uma utopia, é, diziam-nos, por causa da liquidação dos Hohenzollern, dos Habsburgos, dos Romanov, dos Bourbon de Espanha. É por causa do voo frustrado de todas estas águias, brancas e negras, com dois e três bicos, de garras aduncas, que os povos varreram. Porque todas estas velhas dinastias encarnavam privilégios de casta fortes como os interesses, os interesses efémeros que as ditaduras cristalizaram no pós-guerra.

Parecia tudo muito sensato. Mas entretanto os povos, incomodados nos seus hábitos, privados bruscamente da sua velha armadura, agitavam-se, inquietavam-se. Verificava-se que não estavam maduros, não estavam maduros por igual para estas belas instituições novas que lhes tinham dado, o que havia de melhor, obras-primas de juristas, um pouco complicadas somente para as mãos grossas dos camponeses às quais as entregavam, as mãos grossas que, em poucos meses, com cordialidade e sem maldade, as fizeram em cacos sem se darem conta. [Nascem] então os problemas, uma inquietação que crescia, crescia, e [começa] a queda para o abismo. Então surge aqui e além um remédio grosseiro, um remédio de outras eras, administrado violentamente, brutalmente por homens obrigados a romper de uma assentada e sem delicadezas com as tradições de antes da guerra, com as inovações de depois da guerra, as inovações, porque era contra elas que eles haviam edificado a sua usurpação. Aliás, eles tinham encontrado o meio bompara as tornar odiosas aos povos, era dizê-

las estrangeiras, importadas, hostis ao génio dos povos, dos povos cujo génio confundiam com a sua empresa. E os povos consentiam. As tradições, porque, se se tivessem mantido, o seu poder não teria podido estabelecer-se e se elas se restabelecessem, o seu poder não poderia manter-se. Tradições políticas? Sim, mas tam-327LUCIEN FEBVREbem culturais. Estas tradições chamam-se: religião, ciência, moral, concepção geral do mundo e da vida.

Para que se preparasse, para que se firmasse, para que se perpetuasse o poder destes homens era preciso que todos estes velhos valores comprovados fossem postos em questão, contestados, suprimidos, substituídos por outros.

Vemos então o problema destacar-se. O problema, para os homens que viviam na inquietação de todos estes movimentos, de todos estes remoinhos, o problema era: restabelecer a ordem em tudo isso! Repor a ordem, a paz, a confiança, a lealdade e a segurança, a colaboração leal dos povos entre si, dar à vida dos homens perspectivas normais de duração. Enquanto por toda a parte o efeito dos higienistas tendia a alargar os limites da vida dos indivíduos, fazer com que o esforço dos políticos alargasse os limites da vida dos povos e para tal, [fazer] a Europa, a Europa.

Gritava-se Europa com todas as forças na Europa que tinha medo, em1930, em 1935, em 1938. Europa: mas será a fórmula? A palavra? A verdadeira palavra? A palavra mestra? A boa fórmula, a fórmula da salvação? Quero dizer: é concebível que substituir pela Europa o caos das nações rivais, eriçadas, armadas; é concebível que a criação de uma Europa promovida ao nível de instituição, de organismo, de super-Estado; é concebível que a criação de uma Europa que se sobreponha às nações europeias, que delas faça províncias de um grande Estado unificado; é concebível que a realização do velho ideal dos Estados Unidos da Europa, tantas vezes proclamado como salutar e soberano; é concebível que esta realidade ponha verdadeiramente fim aos problemas, às guerras, às misérias de toda a espécie que são fundamento da humanidade?

Está aqui o problema enunciado e, segundo creio, correctamente enunciado. Mas acabamos de o ver, acabamos de o dizer, o

problema da Europa ultrapassa a Europa hoje. O problema da Europa já não é um pro-328A EUROPAblema europeu, é um problema mundial. A Europa, se é preciso fazê-la, é em função do planeta.

A Europa [será] uma formação política possível? Ora, enfim, olhemos. Que existia em 1939? Havia três Europas: primeiro, uma Europa das ditaduras totalitárias [formava] um bloco; em segundo lugar, a URSS [formava] um outro bloco a cavalo em dois continentes; e depois, como dizer, o bloco dos velhos valores tradicionais... havia três blocos, três Europas.

Então o problema político, a operação política é agrupar estes três blocos, reuni-los, levá-los a colaborar politicamente, lançar sobre eles uma armadura ao mesmo tempo resistente e leve que os mantenha em ligação... Esta armadura tem nome. Chama-se, necessariamente, balança, a famosa balança, adequada para equilibrar as massas políticas. Porque se trata de fazer a Europa com os elementos consentidores. Trata-se de fazer a Europa com o consentimento, a boa vontade, a colaboração dos três blocos.

Balança política? Equilíbrio? Há muito tempo que Herder, nas suas Lettres pour l ’humanité, deplorava que a política das cortes tivesse, dizia ele, obrigado Frederico II, o seu herói, a meios violentos. Mas quê, concluía: a humanidade terá alguma vez tido na Europa inimigo pior que a política dos grandes Estados2?

Balança política? Mas balança de quem, de quê? Só dos Europeus? Ora, vamos lá. É impensável. Já vimos isso, é o mundo inteiro que, quer queiramos quer não, se encontra comprometido neste assunto, no seu todo. E o quadro europeu logo destruído que rebenta sob a agressão das forças contraditórias, que rebenta no domínio político, como rebenta no domínio cultural. Porque, há que dizer isto, estamos muito mais próximos de um chileno, de um californiano culto do que de muitos homens, que no entanto nasceram dentro dos limites geográficos da Europa, da velha Europa, e que deixaram de ter uma linguagem que nos fosse comum.

Encaremos as coisas de frente. Nunca, nunca, nem mesmo em 1914, semelhante situação se pôs, nunca foi tão trágica. Em 1914, uma civiliza-329LUCIEN FEBVREção sólida, unificada, brilhante estendia-se através da Europa. Ninguém pensava que ela pudesse perecer. Servia de esteio, tinha-se o sentimento de que era um esteio. A sociedade dos cérebros europeus trabalhava com pleno rendimento, sem preocupações de fronteiras, pela ciência, pela filosofia, pela arte, pela verdade. À cabeça, na vanguarda, na direcção do movimento científico, sucediam-se os grandes físicos. Era um inglês a prolongar o trabalho de um francês, um alemão a prolongar o trabalho de um inglês, um dinamarquês que, por seu turno, leva um pouco mais longe a sua descoberta, um americano que, saído da fila, inova e cria uma outra série, um novo encadeado.

Ciência? E a arte? A pintura francesa conquistava o universo e primeiro a Alemanha. A nova arquitectura, a dos volumes cheios e do cimento armado, tomava toda a Europa. Qualquer sala de concertos era um esplêndido rendez-vous da «Paneuropa». Os mestres russos sucediam aos mestres alemães, Albeniz a Debussy, e não continuo...

Grandes filósofos entendiam-se livremente por toda a parte, sem preocupações de fronteiras. O bergsonismo coloria com os seus matizes, cambiantes como um papo de pombo, o pensamento de um sem-número de homens de todas as raças. A própria religião assumia, um pouco por toda a parte, aspectos novos. O modernismo não passava de um facto francês. Uma grande leveza do viver, sem grosserias, sem rudeza, sem gozos vulgares invadia toda a Europa. Havia ali algo de suave e de sólido, uma pátria dos espíritos.

Que fizemos desta pátria? Ó Florença, Florença dos nossos vinte anos, com os seus grandes mosaicos que ressoavam sob os nossos passos... E gostaria de dizer também: ó Munique de antes da guerra, Munique das artes plásticas, da música e da cerveja. E tu, querida, terna Viena, toda vibrante de violinos, e todas as grandes universidades da Alemanha, e todos esses professores da Alemanha de então, que nem sempre compreendíamos, é certo, e que nem sempre seguíamos, que não nos compreendiam, a nós e que não nos seguiam, mas, enfim, o tra-

330A EUROPAbalho deles, a iniciativa deles, o método deles exigiam o nosso respeito...

Ah, a amargura do querido e grande Pirenne forçado a dizer, ele, que se tinha formado nos métodos de lá, a amargura de Pirenne forçado a dizer aos seus amigos, aos seus alunos quando, logo a seguir à guerra, regressou à sua cátedra, em Gand, a amargura de Pirenne forçado a dizer-nos, é o título do seu discurso: «O que temos que desaprender sobre a Alemanha... »

Tratava-se ainda da outra Alemanha, da imperial, a de antes de 1914.

Bem sei! Há uma solução. E houve quem pensasse nela. Houve quem se deixasse ir até ao ponto de julgarem possível essa solução, precisamente aquela contra a qual se instituiu o sistema do equilíbrio, a solução da Europa feita por um único homem, em nome de uma só nação e de um só ideal, o dele. Foi-nos proposta, esta solução. Disseram-nos: vamos, aceitem, devem ter tido o dilema, terão que aceitar.

Vamos, depressa, braços ao alto, mãos ao alto... baixem os braços, estendam as mãos às algemas e o pescoço à canga... É preciso. Afinal, é para bem da humanidade. Assim salvareis a vida! Etpropter viíam vivandi perdere causas...

Na verdade, para que serve tão cruel sacrifício? Para que havia de servir? Para a paz? Ora, vamos lá. Nem sequer o escondem: serve para guerras entre continentes, serve para novas ruínas, para novos armamentos. Porque esta Europa unificada pela conquista, esta Europa nascida da força é pela força que se terá que a manter. Pela força, pela política, pela tortura, logo, [pelo] medo, também pelos prazeres, pelas satisfações animais e elementares, ossos na mesa, panem et circenses, sim, mas melhor ainda, bellum et praelia. Bellum..., é uma alegria, a guerra. Mata-se, bebe-se, massacra-se, rouba-se, pilha-se, viola-se e morre-se numa apoteose.

Uma Europa assim unificada estaria imediatamente pronta para as lutas inter-continentais. Devoraria a África. Atirar-se-ia à Ásia. Mas... que diria a América?331LUCIEN FEBVREE depois, depois esta Europa unificada, alguém acredita que uma Europa possa viver verdadeiramente sem ideal, sem civilização? E que civilização? A mesma contra a qual nos erguemos, nós e os Ingleses, em 1939. Não, non possumus. Mais vale perder a vida, mais vale fazer já o que tantos fizeram, ainda se lembram do dia em que eles perceberam que viver, viver daqui em diante seria para eles uma perpétua renúncia, melhor o suicídio, deixar um mundo demasiado feio.

Sou desesperante. Não; nem desesperante, nem desesperado. Faço o meu ofício, sem mais, o meu ofício de historiador. Trato de ver, bem de frente, o passado e de prolongar a sua curva, com exactidão, até hoje, sem me deixar desanimar por nada neste dever. O resto? Não sou profeta, nem pastor dos povos. E não queria ocupar-vos aqui com as minhas pequenas memórias pessoais.

Europa? Falando como historiador, parece-me que o dado é, ou demasiado vasto, porque a palavra Europa abarca não uma, mas várias unidades, unidades políticas, unidades culturais, ou então demasiado restrito, porque já não se pode falar de Europa sem se referir o universo inteiro. Sim, creio, creio-o há muito tempo. Permitam-me citar-me a mim próprio. Claro que não é por vaidade, é para que não pensem que os acontecimentos me ditam, que as circunstâncias me ditam as minhas opiniões de historiador.

Em 1932, escrevia eu nos Annales (tomo IV, página 207), já escrevia:

«com efeito, ao lado dos interesses materiais, ao lado das tradições políticas, vejo, na Europa deste tempo, «realidades» não menos substanciais que inquietantes na sua instabilidade: as nações. Estas nações de que a história gosta de fazer a análise; a síntese, nunca ou quase nunca. Se tentasse fazê-la, se, honestamente, se dedicasse a esta tarefa delicada, mas premente, talvez percebêssemos bem depressa que é ainda mais fácil, e mais rápido falar à humanidade do que às nações da Europa.»4332A EUROPAPois é, o bomCloots, com todas as suas quimeras e as suas ilusões, talvez não andasse mais longe das realidades que tantos apóstolos dos Estados Unidos da Europa... A menos que... A menos que esteja

ainda presente o velho sonho; fazer a Europa para a dominação universal.

* [Falar à humanidade, como? Encontrando a linguagem da humanidade. Um amigo meu, que viajou muito, dizia-me um dia destes: os direitos do homem..., os direitos do homem... Que é que eu pensava disso? Um velho chavão para um discurso de político liberal? Vento? Menos que nada?]* É que me apercebi de que, uma vez passado o canal de Suez e dobrado o cabo de Aden, os direitos do homem eram para tanta gente que aparentemente nada tem de comum connosco, toda a gente que vamos encontrar na índia fértil e mais além, eram para tanta gente que de comum connosco só tem a humanidade um alimento, uma necessidade, um ideal vivo, e eu acrescento, uma gratidão persistente à França.

Sim, e o meu amigo poderia ter dito o mesmo se tivesse transposto, na rota das Américas, o trigésimo grau de longitude oeste. Lá, sim, os direitos do homem são ainda uma coisa viva. E não querem pensar, lá, que aqueles que os proclamaram já só os invocam para se rirem deles ou deles tirarem proveito. «Nem pense nisso... desencadearia a tempestade ainda mais depressa, a tempestade já não sobre a Ásia, mas sobre todo o planeta.»

É possível. Não sei, seja como for, nesse dia nada teremos a censurar-nos, nós, Franceses, nós, povos. Teremos feito os possíveis. Teremos sido, até ao fim, os portadores de um ideal, do nosso ideal, do ideal humano, do ideal sem o qual nada se faz, nada se cria.

E não é um ideal manter a ordem, estabelecer a segurança, proteger a liberdade e outras fórmulas caras aos juristas e aos políticos, outro pathos de um liberalismo abastardado e sem fé que não sabe despertar interesse, dedicação, sacrifício, não. O negativo nada cria, nada determina, nada ex-333LUCIEN FEBVREcita. É preciso um entendimento, um entendimento positivo ou uma emulação para grandes tarefas, para grandes obras humanas realizadas era comum. É preciso um mundo que abata as suas divisórias de autarcia. A autarcia é a guerra. É preciso um mundo sobre o qual possam passar livremente grandes sopros de alegria, de labor e de dedicação, um mundo que se entregue a grandes obras mundiais de prestígio e a uma escala tal que permitam o sonho, o sonho mais

necessário aos homens do que o pão, o sonho sem o qual não há acções.

É preciso que o prestígio de que goza a guerra, o sacrifício da guerra, o heroísmo da guerra, seja a paz que os goze, não uma paz mole, inerte, egoísta e malsã, mas uma paz viril, uma paz que lute, que vele, por quê? Pela salvação da humanidade.

E se assim não for, como será? Não digo nada. Pequenas precauções? Uma redefinição da Europa e do mundo, um novo traçado dos atlas, de alto a baixo? [Seria] loucura. Aquele velho país retalhado em quatro, em seis, em oito? Aqueloutro desdobrado?

Tenho medo, teria medo se só nos restasse o último recurso, o último viático, a esperança, esta pequena esperança que tem um ar de quase nada, diz Péguy no seu Mystère de l’esperance. Recordam-se... A imagem é tão fresca, tão nova, tão forte que fica para sempre inscrita no olhar dos que a viram...

«No caminho ascendente,

Puxada, pendurada do braço das suas irmãs mais velhas

Que a levam pela mão,

A pequena esperança

Avança...

E a meio... parece deixar-se levar,

Na realidade é ela que leva as outras,

Que as arrasta,

Que faz andar o mundo.334A EUROPAÉ ela, esta pequenita, que tudo arrasta

Tudo morreria de cansaço,

Esta enorme aventura,

Como, após uma ceifa ardente,

A lenta descida de um entardecer de verão

Se não fosse a minha pequena esperança... »5335336

NOTAS

Introdução

1. Ver lição V, p. 91.2. O manuscrito provém dos arquivos de Lucien Febvre, pasta «Europe»; o fundo de arquivos constituído pelos papéis de Lucien Febvre foi oferecido aos Arquivos Nacionais pelos seus filhos; estão em curso a sua classificação e inventário. „3. Ver lição X, p. 142.4. Folheto manuscrito isolado colocado na pasta «Europa»; «Lições em diversos lugares, adaptadas do curso.»5. Note-se que Fernand Braudel teve durante muito tempo na sua posse, depois de Robert Mandrou, este texto que desejara publicar, bem como outros inéditos de Lucien Febvre; Marleen Wessel, que efectuou nos anos de 1980 uma primeira classificação dos papéis de Lucien Febvre, teve conhecimento disso e consagrou ao assunto um artigo: Marleen Wessel, Lucien Febvre et 1’Europe: aux frontières de l’histoire, em Yearbook of European Siudies, 4 (1991), p. 203-216.6. Trata-se do curso de 1938-1939, intitulado: «História de um problema: as origens históricas do capitalismo.»7. Henri Sée (1864-1936) foi professor de história moderna e contemporânea na universidade de Rennes; ver Lucien Febvre, Capitalisme et capitaliste: mots et choses, em Annales d’histoire sociale, t. I (1939), p. 401-403, retomado em: Pour une histoire à part entière. Paris, 1962, p.325-329, p. 326.8. Ao contrário dos cursos anteriores à guerra, o conjunto de cursos que Lucien Febvre deu durante a guerra apresenta-se sob uma forma semi-redigida; ver, por exemplo, os cursos intitulados: «Margarida de Navarra», «Michelet e o Renascimento», «Michelet e a história de França», «A Europa».9. Ver: Lucien Febvre, Lês Métamorphoses de la Cite de Dieu, em Annales, Économies, Sociéíés, Civilisations, t. IX (1954), p. 371-374, p. 371 (a propósito de: Étienne Gilson, Lês Métamorphoses de la Cite de Dieu, Paris, 1952); o manuscrito deste relatório foi colocado por Lucien Febvre a seguir às notas da lição IX do curso de 1944-1945.10. Ver o curso de Genebra, 1940, na pasta «Europe», fundo Lucien Febvre.337LUCIEN FEBVRE11. «Toda esta história [da Europa] foi trazida até aos nossos dias. Há a esperança de que seja retomada para fornecer matéria para um livro», escreve Lucien Febvre no resumo do seu curso publicado no Annuaire du Collège de France, 45e année, Paris, 1946, p. 151-152, p. 152; ver infra, Anexo In, p. 401-2.12. Lucien Febvre, Lettres à Henri Berr, apresentadas e anotadas por Jacqueline Pluet e Gilles Candar, Paris, 1997, p. 612-613,13. Foi ao jovem historiador Robert Mandrou, a quem Lucien Febvre entregou o secretariado de redacção dos Annales em 1954, que Suzanne Febvre confiou a missão de realizar esta obra a partir das notas deixadas por seu marido; ver o artigo de Jean Lecuir em: Robert Mandrou, Introduction à la France moderne, nova edição revista e aumentada por Monique Cottret, Philippe Joutard, Jean Lecuir, Paris, 1998, p. 431-468.

14. O curso sobre Margarida de Navarra, que data de 1940-1941, foi a matriz do livro publicado em 1944; ver: Lucien Febvre, Autour de l’Heptaméron: amour sacré, amour profane, Paris, 1944.15. O curso de 1942-1943 foi publicado: ver Lucien Febvre, Michelet et lê problème de Ia Renaissance, texto estabelecido por Paule Braudel, Paris, 1992; o volumoso manuscrito do curso de 1943-1944, que Lucien Febvre intitulou no seu resumo do Annuaire du Collège de France, «Michelet, criador da história de França» está ainda inédito.16. Ver: Lucien Febvre, «Honneur et Patríe», texto fixado, apresentado e anotado por Thérèse Charmasson e Brigitte Mazon, Paris, 1996.17. Ver Lucien Febvre. Lettres à Henri Berr, op. cit., p. 209, 257; Lucien Febvre comenta assim o primeiro projecto: «É um livro que faria com prazer. [...] Em resumo, no centro haverá a decomposição da ideia imperial e a génese dos imperialismos modernos. E em volta um quadro do espírito europeu enquanto tal, espírito moderno que se distingue do espírito de busca medieval.»18. Marc Bloch, Project d’un enseignement d’histoire compares dês sociétés européennes [Estrasburgo], Tipografia, das Dernières nouvelles de Strasbourg, 1934, 16 p., retomado em Marc Bloch, Histoire et historiem, textos reunidos por Étienne Bloch, Paris, A. Colin, 1995.

19. Ver: Marc Bloch, Problèmes d’Europe em Annales d’histoire économique et sociale, t. VII (1935), p. 471-479, p. 476; ver lição V, p.81.20. Ver: Bryce e Mary Lyon, The Birth of Annales History: the Letters of Lucien Febvre and Marc Bloch to Henri Pirenne (1921-1935), Bruxelas, 1991; Henri Pirenne, Histoire de l’Europe, dês invasions au XVf siècle, Paris-Bruxelas, 1936.21. Ver lição V, p. 91.22. Defendida em Março de 1947, a tese de Fernand Braudel foi publicada em 1949.23. Marc Bloch.24. Esta correspondência de guerra encontra-se em Henri Febvre, sob a forma de fotocópias para as cartas de seu pai, de originais para as de Fernand Braudel; para a análise das relações de Lucien Febvre com Fernand Braudel durante este período, ver a tese de Erato Paris: La génese intellectuelle de l’oeuvre de Fernand Braudel’. La Mediterrâneo et lê monde méditerranéen a 1’époque de Philippe II, (1923-1947), Paris, Ecole dês hautes eludes en sciences sociales, 1998.25. Ver: Lucien Febvre, Lettres à Henri Berr, op. cit., p. 553.26. Fundo Lucien Febvre, pasta «Europe», lições de Genebra.27. Ver lição II, p. 39.28. Agradecemos a Lionel Galand ter-nos autorizado a publicar o excerto desta carta, que ele conserva. ...-•”-••••••.338

A EUROPA29. Membro do grupo de Resistência do Intelligence Service (I.S.), no Jura (grupo Henri Clerc), Henri Febvre era um dos soldados que se tinham alistado como voluntários durante a guerra, no 159° regimento de infantaria alpina, em Setembro de 1944; em Janeiro de 1945 baixou a Estrasburgo por ocasião de uma violenta ofensiva alemã que ameaçava gravemente a cidade.30. Primeira folha do manuscrito da quarta lição do curso para o Collège de France, 1945-1946, «A Reforma», arquivos de Lucien Febvre, actualmente no domicílio do seu filho, Henri Febvre.31. Annuaire do Collège de France, 44e année, Paris 1945, p. 142: «Programa dos cursos para o ano escolar 1944-1945»; o ensino de Lucien Febvre na sua cadeira de «História da civilização moderna» é anunciado para «quartas e sextas, às 15h 30, sala 6 (abertura do curso a 1 de Dezembro)».32. Ver lição V, p. 91.33. O conjunto das suas notas sobre o assunto representa, nos arquivos do historiador, um volume com cerca de 600 folhas das quais metade é constituída por textos semi-redigidos, a outra metade por notas de trabalho; Lucien Febvre, aliás, publicou apenas uma das suas conferências: a sua lição de encerramento do curso sobre a noção de Europa dado durante o ano de 1946-1947 na Universidade Livre de Bruxelas, lição intitulada «Europa: queimar ou marcar a etapa?» em Synthèses, t. II (1947), n° 4, p. 15-24; este texto, que publicamos em anexo, retoma, sob uma forma mais acabada, a lição conclusiva do curso de 1945; ver infra, Anexo I, p. 379.34. Robert Mandrou, a quem Suzanne Febvre confiara um grande número de documentos do seu marido, pouco depois da morte deste, em 1956, anotou na capa desta pasta: «incompleto, faltam cinco lições, 14, 15, 16, 17»; a quinta lição em falta é a lição XXVII.

35. Um curso anual no Collège de France representava cerca de 28 a 30 sessões que Lucien Febvre consagrou a um tema único durante a guerra e a dois temas diferentes antes e depois da guerra; em 1944-1945, parecem faltar várias sessões a Lucien Febvre por causa de um «acidente de saúde»; ver as primeiras linhas da lição VIII, p. 117.36. Ver: Lucien Febvre, Au cur religieux du XVf siècle, Paris, 1957.37. Ver: Lucien Febvre, Un destin: Martin Luther, Paris, 1928.38. Publicamos integralmente esta nota de Lucien Febvre em anexo; ver infra, Anexo II, p. 393.39. Esta primeira transcrição foi feita por Sarah Lildemann.40. Esta primeira fixação do texto foi feita por Brigitte Mazon.41. Preparada por Thérèse Charmasson, esta edição crítica poderá servir para o estudo genético do texto; foi apensada aos arquivos de Lucien Febvre no Centro Histórico dos Arquivos Nacionais, em Paris.42. Esta anotação foi realizada por Thérèse Charmasson com a colaboração de Brigitte Mazon.43. Ver: Romain Rolland, Au-dessus de Ia mêlée, Paris, 1915.44. Ver: Romain Rolland, Péguy, Paris, 1944, 2 vols., t. I, p. 271, 293; ver lição XXVIII, nota 5, p. 335.45. Ver lição X, p.150-1; lição XI, p. 154.46. Marcei Proust, À la Recherche du temps perdu. La Prisonnière, Paris, Gallimard (Bibliotèque de Ia Plêiade), 1988, p. 666.47. Ver lição VI, p. 98.48. Ver: Lucien Febvre, Vivre avec 1’histoire. Propôs d’inltiation, conférence aux eleves de 1’École normale supérieure, 1941, retomado em Combats pour l’histoire, Paris, 1953, p. 18-23, p. 26.339LUCIEN FEBVRE49. A impressionante Bibliographie dês travaux de Lucien Febvre elaborada por Bertrand Milller, publicada em 1990, recenseia 2 143 referências.50. Ver Lição III; p. 53.51. Ver Lição V; p. 91.52. Ver infra, Anexo I, p. 379.340

NOTAS BIBLIOGRÁFICAS

Lição I

1. Para esta passagem, ver: Marc Bloch, Projet d’un enselgnement d’histoire comparée dês sociétés européennes [Estrasburgo], Tipografia das Dernières nouvelles de Strasbourg, 1934, 16 p., retomado em: Marc Bloch, Histoire et historiens, Textes reunis por Étienne Bloch, Paris, 1995, p.124-129, p. 126-127; trata-se de um projecto de ensino apresentado por Marc Bloch aquando da sua candidatura ao Collège de France em 1934.2. Sobre este ponto, ver: Alphonse Aulard, Lê Patriotisme /rançais de Ia Rennaissance à Ia Révolution. Paris, 1921, que refere, a propósito das origens do patriotismo francês, p. 17: «As origens do patriotismo francês antes do humanismo devem evidentemente reportar-se à época em que começou a existir uma França enquanto pessoa moral. Que é esta época. Tudo o que podemos dizer é que a palavra France é tão velha como a língua. Recorde-se, na Chanson de Roland, o grito de Rolando em Roncesvaux: ”Terre de France, mult estes dulz paísl”»’, Lucien Febvre utiliza a obra de Alphnonse Aulard repetidamente para o seu curso sobre «Honra ou pátria?»; ver Lucien Febvre, «Honneur et Patrie», texto fixado, apresentado e anotado por Thérèse Charmasson e Brigite Mazon, Paris, 1996, p. 51, 58, 143, 231, 232, 256, 257, 260, 266, 267.3. Ver: Camille Jullian, L’Ancienneté de 1’idée de nation em Au seuil de notre histoire. Leçons faltes au Collège de France (Chaire d’histoire et antlqultés nationales), t. I, 1905-1914, Paris,

1930, p. 162-192; sobre Camille Jullian, ver: Christophe Charle e Eva Telkès, Lês Pro/esseurs du Collège de France. Dictlonnaire biographique, 1901-1939, p. 111-113; sobre as relações entre Lucien Febvre e Camille Jullian, ver: Lucien Febvre, «Honneur et Patrie», op. cit., p. 2284. Lucien Febvre faz aqui alusão a Henriette Psichari, secretária da Encyclopédie française, e aos seus dois filhos: Michel, oficial no L’Argonaute, morreu a 8 de Novembro de 1942 diante de Oran, aquando do desembarque das tropas americanas no norte de África; Jean-Gabriel, oficial de carreira, depois de ter ouvido o apelo de 18 de Junho de 1940, quando se encontrava na fronteira da Líbia e do Saara, a caminho de alcançar a Nigéria inglesa; ver: Henriette Psichari, Desjours et dês hommes (1890-1961), Paris, 1962, p. 165-167, 199-207, 261-263, 265-268; este episódio situa-se em 1942 e não 1943; a ele alude Lucien Febvre por várias vezes nas notas do curso que deu no Collège de France em 1945-1946, «íjonra ou pátria?», bem como no prefácio341LUCIEN FEBVREao livro que se propunha publicar sobre o mesmo assunto; ver: Lucien Febvre, «Honneur et patrie», op. cit., p. 28, 47, 182, 227, 228-229, 279.5. Ver o prefácio que Jules Michelet dá em 1869 à nova edição da sua Histoire de France: «Esta obra laboriosa com cerca de quarenta anos foi concebida num momento, à luz de Julho. Nesses tempos memoráveis fez-se uma luz muito clara e eu vi a França. Tinha anais e não uma história. Homens eminentes tinham-na estudado sobretudo do ponto de vista político. Ninguém tinha penetrado no infinito pormenor dos diversos desenvolvimentos da sua actividade (religiosa, económica, artística, etc,). Ninguém a tinha ainda abarcado com o olhar na unidade viva dos elementos naturais e geográficos que a constituíram. Fui o primeiro a vê-la como uma pessoa», Jules Michelet, Histoire de France, nova edição revista e aumentada, Paris, 1871-1874, 17 vols., t. I, Paris, 1871, Prefácio de 1869, p. I-XXXVIII, p. I; Lucien Febvre cita esta mesma passagem no seu curso no Collège de France, em 1942-1943, sobre «Michelet e o Renascimento» e no seu curso sobre «Honra ou pátria?» em 1945-1946; ver: Lucien Febvre, Michelet et Ia Rennaissance, Paris, 1992, p. 115-116, e Lucien Febvre, «Honneur et patrie», op. cit., p. 49, 229-230.6. Ver: Jean-Baptiste C. Tricornot, Mémoires du baron de Trícornot, lieutenant-colonel du régiment de Schomberg-dragons publié par son petit-flls, Besançon, 1894, p. 396-397: o barão de Tricornot estava para casar com Mademoiselle de Dommarien, sobrinha e pupila do abade Simonet, cónego e arcediago de Langres: «O senhor abade de Simonet é um ancião de muito bomsenso, cheio de espírito e de erudição; recebeu-me perfeitamente; o seu advogado, M. Musset, estava lá para defender os interesses da sobrinha; M. Cournot era o meu. Estes senhores não estavam de acordo; M. Musset queria que, no caso de a futura vender os seus bens para serem colocados no Franco Condado, estes bens colocados seguiriam o costume de Champagne. ”Nunca levaremos a servidão para a nossa terra”, disse-lhe Cournot e, voltando-se para mim: ”Senhor, se este artigo não foi aceite, está tudo sem efeito, vamos embora.” O senhor abade Simonet serviu de árbitro entre eles e declarou que seria injusto querer introduzir o costume de Champagne no Franco Condado e que cada terra com seus usos”; Lucien Febvre utiliza esta mesma passagem no seu curso sobre «Honra ou pátria?»; ver: Lucien Febvre, «.Honneur et patrie», op. cit., p. 151,261.7. Jean-Baptiste C. Tricornot, Mémoires, op. cit., p. 125; ver também: Lucien Febvre, «Honneur et patrie», op. cit., p. 151, 260-261.8. Ver: Franz Funck-Brentano, Joliclerc, volontaire aux armées de Ia Révolution. Sés lettres (1793-1796), recuillies et publiées por, 4a ed., Paris, 1905, p. 142; um caderno de notas relativas a esta obra figura nas notas de trabalho reunidas por Lucien Febvre para o seu curso sobre «Honra ou pátria?» e para a obra que pensava tirar daí, ver: Lucien Febvre, «Honneur et patrie», op. cit., p. 219; ver, infra, lição XXIV, notas 11 a 14, p. 276-277.

Lição II

1. Ver: Heródoto, Histoires, traduction nouvelle avec une introduction et dês notes por P. Guiguet,

3a ed., Paris, 1870, livro IV, p. 219-284, XXXIII, p. 229; esta tradução das Histórias de Heródoto que pertencia a Lucien Febvre encontra-se ainda actualmente na posse do seu filho.2. Ver: Marco Polo, Lê Livre de Marco Polo, citoyen de Venise, conseiller prive et commissaire imperial de Khoubilai-Khaãn, redige en français sous sã dictée em 1298 par Rusticien de Pise, publiépous Ia premièrefois d’après trais manuscrits inédits de Ia Bibliotèque impériale de Paris,342

A EUROPAprésentant Ia rédaction primitive du Livre, revue par Marc Pol lui-même et donnée par lui en1307, à Thiébault de Cépoy, accompagnée de variantes, de 1’explication dês mots hors d’usage, et de commentaires géographiques et historiques tires dês écrivains orientaux, principalemente chinois... por Guillaume Pauthier, Paris, 1865, 2 vols., t. I, p. XXVII: «[Lê] Devisement dês diversités habitualmente dividido em três livros [é] efectivamente a descrição, separada e por ordem, das coisas que no Prólogo são apenas afloradas.»; p. 3, nota 1: «Este Prologue é precedido no manuscrito A por estas palavras escritas a tinta vermelha: ”Ci commencent lês rebriches de cest Livre qui est appelez: Ia devisement du monde, lequell, ie, Grigoires, contrescris du Livre de Messire Marc Pol, lê meuilleur citoien de Venisse, creant Crist.” [...] O manuscrito B começa assim: ”Cy commence lê Livre de Marc Pol et dês Marveilles.” Depois, após uma bela miniatura ou histoire (há 84 em todo o livro de Marco Polo), lê-se a tinta vermelha ”Cy après commence lê Livre de Marc Paul e dês Merveilles d’Aise (Ásia) Ia grant; et d’Inde Ia maiour et minour, e dês diverses regions du monde”.-»3. Ver: Recueil general dês bas-reliefs de Ia Caule romaine, Paris, 1907-1981, 16 vols. (Colecção de documentos inéditos sobre a história de França, n” 90), t. I: Émile Espérandieu, Alpes maritimes, Alpes cottiennes. Corse. Narbonnaise, Paris, 1907, p. 226, n° 299: «Altar descoberto no território de Vaison. No castelo de Colombier, perto de Gigondas, em casa da viúva de Eugène Raspail. Calcário grosseiro. Altura, l m 52; largura, O m 74; espessura, O m 62. Altura dos personagens, O m 60. do lado oposto ao baixo-relevo, a base e o coroamento foram refeitos e a pedra foi escavada para servir de túmulo. [...] à direita, Júpiter de pé, com túnica, elmo, couraça e manto militar (paludamentum), com o raio na mão direita, uma roda na mão esquerda. À esquerda, Juno de pé, drapeada, com uma pátera na mão direita. Aos pés de Júpiter, uma águia; um pavão aos de Juno. É possível que houvesse uma serpente representada sob a roda; um exame muito atento da pedra não pôde decidir-me a este respeito.»; o carro descoberto em Trundholm, na Dinamarca (e não na Noruega) transporta um disco de ouro puxado por um cavalo de fogo.4. Segundo as notas de trabalho que Lucien Febvre tinha reunido par este curso, esta referência à Ilíada tirada do Dictionnaire grec-français de Anatole Bailly, que distingue: «Ásia az(ç): a Ásia, especialmente a Ásia Menor [...] » e «Asioz, on, adjectivo = de Ásis ou de Asos na Lídia; donde o verso de Homero, 2, 461, muitas vezes relacionado erradamente com a Ásia».5. Para toda esta passagem, ver: Abel Rey, La Jeunesse de Ia science grecque. Paris, 1933 (A Evolução da humanidade, síntese colectiva, 1a secção. Série complementar, La Science dans l’Antiquité, 2), p. 498-499: «O mapa, a tábua de estanho de Anaximandro foi, segundo Eratóstenes, a que Hecateu retocou e que foi introduzida pelo seu compatriota Aristágoras em Esparta. Hecateu, acabamos de o nomear grande geógrafo e grande historiador do nosso período; um homem que fundou a ciência histórica fora de qualquer inspiração mítica, até exagerou, em conformidade com a sua época - a de Parménides e a da verdadeira fundação da geometria - o que hoje é chamado, pejorativamente, o racionalismo. [...] Foi nesta mesma Mileto, cidade da civilização intelectual e do pensamento do século VI, berço do milagre grego, que nasceu Heceteu na segunda metade do século VI. A sua obra, a sua Volta ao Mundo (Períodos gês) deve datar do início do século V, o mais tardar. É composta por três livros sobre a Geografia, um para cada continente do mundo então conhecido (o

Antigo Continente): Europa, Ásia, Líbia (África) e quatro últimos livros das suas Genealogias. Apenas chegaram até nós alusões e alguns fragmentos inconsistentes.»6. Estes parênteses rectos foram acrescentados por Lucien Febvre; ver: Herodoto, Histoires, op. cit., livro IV, p. 219-284, XIV, p. 233-234: «Ninguém sabe de maneira positiva se a Europa,343LUCIEN FEBVREquer no Levante, quer no norte, é rodeada de água, mas sabe-se que, em comprimento, atinge as outras duas. Não posso conjecturar em que se basearam, sendo a terra una, para lhe darem os seus três nomes, nem porque é que estes nomes são nomes de mulher, nem porque é que o Nilo no Egipto, o Fásis na Cólquida foram considerados limites (alguns substituem o Fásis pelo Tanaís, rio da Meócia, e o estreito cimério). Não posso saber os nomes dos que estabeleceram estes limites nem onde foram buscar estas denominações. A maior parte dos gregos dizem que a Líbia tem o nome de uma mulher dessas paragens, que a Ásia recebeu o nome da mulher de Prometeu [...]. portanto, ninguém entre os homens sabe se a Europa é rodeada de água, nem de onde lhe vem o nome, nem quem possa ter-lho dado; a menos que admitamos que tenha recebido o nome da tirense Europa e que antes não tivesse nenhum, tal como as outras duas. Mas é evidente que esta mulher era da Ásia e que nunca veio a esta região a que os Gregos chamam agora Europa; as suas viagens limitaram-se a passar da Fenícia para Creta e de Creta para a Lida. E basta sobre este assunto; quanto a nós, usaremos os nomes habituais.»7. Ibid., livro IV, XLII, p. 231: «Admiro portanto aqueles que dividiram e repartiram a terra entre a Líbia, a Ásia e a Europa pois não é pequena a diferença entre elas. com efeito, a Europa, em comprimento, atinge quase as outras duas, mas em largura não me parece digna de lhes ser comparada.»8. Ver: Trabon, Géographie de Strabon. Traduction nouvelle por Amédée Tardieu, Paris, 1867-1890, 4 t., t. In, Paris, 1880, livro XVII (e não XVI como indica Lucien Febvre), capítulo In, parágrafo l, p. 466: «Abordemos agora o que deve formar a última parte da nossa Geografia Universal, isto é, a descrição da Líbia; e como já tivemos várias ocasiões de falar desta terra, comecemos por recordar o que antes dissemos de essencial, após o que acrescentaremos tudo o que ainda falta. - O que primeiro faremos notar é que aqueles que pretendem dividir a terra habitável em alguns continentes dividiram-na de modo muito desigual: uma divisão em três partes implicava que estas partes fossem iguais. Ora de maneira nenhuma a Líbia pode ser um terço da terra habitável, uma vez que não se conseguiria, acrescentando-a à Europa, igualar a Ásia, correndo-se mesmo o risco de, ao compará-la à Europa, a achar inferior a esta terra em extensão, além de lhe ser sensivelmente inferior em relação à riqueza e à fertilidade.»9. Para toda esta passagem, ver: Mareei Granel, La Pensée chinoise. Paris, 1934 (A Evolução da humanidade, síntese colectiva, XXV, bis), livro II «As ideias directrizes», capítulo I, «O tempo e o espaço», p. 86-114, p. 90: «A virtude própria do Tempo é proceder por revolução. Esta natureza cíclica aparenta-o ao redondo e opõe-no ao Espaço, cuja principal característica é ser quadrado. [...]. Mas o Espaço, em princípio, é quadrado, todas as superfícies são portanto quadradas. [...] A Terra, que é quadrada, divide-se em quadrados. As muralhas exteriores dos principados devem formar um quadrado e o mesmo quanto às muralhas das cidades que englobam

- sendo os campos e os prados quadrados também [...].»; p. 92: «A superfície não se mantém j indefinidamente a mesma. Para além dos quatro lados do Espaço encontram-se, formando uma espécie de franja, quatro vastas regiões chamadas os Quatro Mares. Nos diversos mares habitam quatro espécies de Bárbaros. Estes, aparentados com diferentes animais, fazem parte da natureza das Bestas. Os Chineses - os humanos - não podem residir nas Marcas do Mundo sem imediatamente perderem o seu estatuto de homens [...].»; p. 92-93: «O Espaço pleno só existe onde a superfície foi socializada. Quando um Chefe que se encarrega de arranjar o mundo promulga as suas leis, para além do quadrado que os fiéis formam reunidos em redor dele, os chefes selvagens chamados para a cerimónia desenham um quadrado mais largo para representar a Barbárie e as vagas distantes onde bate o Universo. Mas os Bárbaros dos Quatro Mares devem alinhar-se

344

A EUROPAfora da cintura ritual que só os fiéis guarnecem, pois só eles fazem parte de uma sociedadeconstituída.»

10. O indianista a que Lucien Febvre alude é Jules Bloch, director de estudos na Escola Prática de Altos Estudos, professor na escola de Línguas Orientais, depois professor de língua e literatura sânscritas no Collège de France, a partir de 1937; ver: Christophe Charle e Eva Telkès, Lês Professeurs du Collège de France. Dictionnaire biographique (1901-193)9, Paris, 1988 (História biográfica do ensino), p. 34-35; para toda esta passagem, ver nas notas de trabalho que Lucien Febvre tinha reunido para este curso, duas páginas (talvez extraídas de uma carta) assinadas J. B. (para Jules Bloch): «Não esperes nada de útil da índia. Em sânscrito (como em djezizé, árabe) a palavra que traduzimos por continente é o nome da ilha. Mas a noção... O mundo consiste em 7 (ou 4, ou etc.) ”ilhas” concêntricas, separadas por mares, de leite, de mel, etc. A ilha central, rodeada por um mar salgado, é definida pela árvore da coxa (Eugenia jambolana, rose apple tree); há uma montanha no centro e a índia está a sul desta montanha. O resto, real ou imaginário, dispõe-se conforme pode, segundo as épocas e os sistemas. Por volta de 250 a. C., Açoka enviou missionários budistas até ao Mediterrâneo, mas ele não coloca a questão da Ásia nem da Europa. [...]. Hoje? Quando eu estava lá (há trinta anos, acrescentado à margem) era difícil fazer compreender às pessoas que a França, não sendo Germany, nem por isso é uma província inglesa. - E continuo, infelizmente, a receber cartas seladas como para Inglaterra, mesmo de pessoas que sabem escrever inglês e têm cursos universitários. A noção de Ásia deve ter nascido por altura da guerra russo-japonesa (à margem: é a Ásia das missões); noção reivindicativa, que o Japão explora actualmente para a sua propaganda: é a resposta ao ”East and \vest shall never meef (que cito mal) de Kipling. É na China ou no Japão, talvez, onde a questão do Branco-Europeu se colocou claramente, que encontrarás, suponho, respostas mais úteis.»

Lição III

1. Ver: Abel Rey, La Science orientale avant lês Grecs, Paris, 1930; La Jeunesse de Ia science grecque, Paris, 1933; La Maturitê de Ia pensée scientifique en Grèce, Paris, 1939 (A Evolução da humanidade, síntese colectiva, l” secção. Série complementar, La Science dans VAntiquité, l, 2, 3); estes três volumes serão ulteriormente completados por dois outros, editados, respectivamente, em 1946 e 1948, com os números 4 e 5 nesta série: L’Apogée de Ia science technique grecque. Lês sciences de Ia nature et de Vhomme. Lês mathématiques d’Hippocrate à Platon, Paris, 1946; L’Apogêe de Ia science technique grecque. L’essor de Ia mathématique, Paris, 1948; ver supra, lição H, nota 5, p. 48.2. Ver: Antoine Meillet, Aperçu d’une histoire de Ia langue grecque. Paris, Hachette, 1913, terceira parte «Constituição de uma língua comum», cap. II «Condições históricas da constituição de uma língua comum», p. 278-279: «Pouco apropriada à literatura, a koin era, em contrapartida, um instrumento excelente para a ciência e a filosofia. O uso prolongado tinha fixado o sentido das palavras, aligeirado a frase e os filósofos e sábios encontraram no grego do século III antes de Cristo o meio de exprimir as suas ideias da maneira mais exacta e mais colorida. A filosofia e as ciências fizeram então grandes progressos. Fosse por influência directa do grego dos filósofos e dos sábios, fosse indirectamente, por intermédio do latim, que vai buscar todo o vocabulário filosófico e científico ao grego helenístico ou o imita, a koin exerceu sobre todas as línguas345LUCIEN FEBVREeuropeias uma acção cuja importância nem sempre é bem avaliada. [...] O vocabulário abstracto das línguas modernas da Europa remonta pois ao que empregaram, e em grande medida criaram, os pensadores da época helenística. Foi também sob a influência da frase grega que os Latinos aprenderam a aligeirar a sua língua para lhe permitir a transmissão de ideias complicadas; e foi o modelo grego ou o modelo latino feito a partir do grego que, por sua

vez, reproduziram todos os escritores que, depois, vieram a exprimir as suas ideias nas diversas línguas da Europa. Todos os que hoje exprimem ideias abstractas se servem de palavras e de expressões que vêm dos Gregos, em particular dos gregos da época helenística. Forjando palavras novas com elementos gregos, os pensadores modernos continuam uma tradição e o facto de se ter dado a invenções novas, como o telégrafo, o telefone, o fonógrafo nomes inteiramente gregos atesta hoje a influência da koin que ainda é por isso, em certo sentido, a língua comum da ciência»; sobre este livro, ver: Lucien Febvre, Lê Développement dês langues et 1’histoire, em Revue de synthèse historique, t. 27 (1913), n” 79-80, p. 52-65, retomado em Combats pour 1’histoire, Paris, 1953, p. 158-168 ver: Bertrand Miiller, Bibliographie dês travaux de Lucien Febvre, Paris, 1990 (Cahiers dês Annales, n° 42), n° 93, p. 41; n° 1812, p. 187.3. Esta passagem é retomada por Lucien Febvre no artigo que consagrou à evolução da palavra «civilização»; ver: Lucien Febvre, Civilisation, évolution d’un mot et d’un groupe d’idées en la Première semaine Internationale de synthèse, Civilisation, lê mot et Vidée, Paris, 1930 (Publicações do Centre international de synthèse), p. 1-56, retomado em: Pour une histoire à part entière. Paris, 1962, p. 481-528, p. 485-486; ver: Bertrand Mtiller, Bibliographie dês travaux de Lucien Febvre, op. cit., n° 322, p. 62; n° 2119, p. 211.4. Ver: Jules Renard, Lê Journal, Paris, 1927, 4 vol., t. I, 1887-1895; t. II, 1897-1901; t. In, 1902-1905; t. IV, 1906-1910.5. Ver: Marcel Mauss, Lês Techniques du corps, em Journal de psychologie normale et pathologique, t. 32 (1935), p. 271-293, p. 273: «Mas esta especificidade é o carácter de todas as técnicas. Um exemplo: durante a guerra pude fazer numerosas observações sobre esta especificidade das técnicas. Por exemplo, a da enxada. As tropas inglesas com que estive não sabiam usar as pás francesas, o que obrigava a trocar 8 000 pás por divisão quando rendíamos uma divisão francesa e vice-versa. Aqui está a prova de que um jeito de mão só se aprende lentamente. Toda a técnica , propriamente dita tem a sua forma.»6. Para toda esta passagem, ver: Lucien Febvre, Lês surprises d’Hérodote ou lês acquisitions de1’agrículture méditerranéenne, em Annales d’histoire sociale, t. II (1940), p. 29-32 (a propósito de: Auguste Chevalier, Lês Origines de l’évolution de 1’agrículture méditerranéenne em Revwe de botanique appliquée et d’agriculture tropicale, 1939, nos. 217 e 218, 50 p.) retomado em: Pour une histoire à part entière, Paris, 1962, p. 283-288, p. 283-284; ver: Bertrand Miiller, Bibliographie dês travaux de Lucien Febvre, op. cit., n° 1104, p. 131; n° 2119, p. 211.7. Esta fórmula é tirada de Marc Bloch; a fórmula exacta é a seguinte: «Ora, a Europa, creio, surgiu muito precisamente quando o Império romano se esboroou»; Marc Bloch conclui assim a recensão que faz, ao mesmo tempo que a de duas outras obras sobre a Europa, do livro de Corrado Barbagallo, // medioevo, Turim, 1935 (Storia universale, t. III), em Marc Bloch, Problèmes „ d’Europe em Annales d’histoire économique et sociale, t. VII (1935), p. 471-479, p. 473-476, , p. 476; esta ideia é retomada e desenvolvida por Lucien Febvre na lição V, ver supra, nota l, p. 81; ver igualmente lição VI, nota 5, p. 99.346

A EUROPA

Lição IV

1. Não pudemos identificar estes artigos de Gheorghe I. Bratianu, professor na universidade de Jassy; ver lição XIII, nota 7, p. 87.2. As duas frases precedentes figuram já, numa formulação quase idêntica, na obra que Lucien Febvre consagrou ao Reno; ver: Lucien Febvre, Lê Rhin. Histoire, mythes et réalltés, nova edição fixada e apresentada por Peter Schõttler, Paris, 1977, p. 95-96: «[...] Não menos activos, os marinheiros de água doce, bateleiros renanos, mosanos ou moselanos cujas barcas a remos, munidas de mastros, levam de campo em campo e de cidade em cidade ora pesados fardos de louça de barro vermelho vidrada com que enchiam o Império, antes da concorrência das fábricas locais, gaulesas ou renanas, das oficinas toscanas de Arezzo; ora as cargas sonoras das caldeiras da Campânia: caçarolas e frigideiras made in Italy e que, devidamente assinadas com nomes tão conhecidos como são hoje Gratieux ou ontem Japy, refluíam para Inglaterra ou então para a Jutlândia e a Pomerânia... »3. Para esta passagem ver: Lucien Febvre, Lê Rhin, op. cit., p. 96.

4. Para toda esta passagem sobre as cidades do Reno e o exército romano, ver: Lucien Febvre, Lê Rhin, op. cit., p. 97-98.5. Sobre este ponto, ver: Camille Jullian, La faillite d’un regime, em Au seuil de nolre histoire. Leçons faites au Collège de France (Chaire d’histoire et d’antiquités nationales), t. In, 1923-1930, Paris, 1931, p. 140-172, p. 141.6. Ver: Vie de Cn. Julius Agrícola em oeuvres completes de Tacite traduites en français avec une introduction et dês notes por Jean-Louis Burnoff, Paris, 1859, p. 649-677; esta obra fazia parte da biblioteca de Lucien Febvre; seu filho Henri Febvre ainda a conserva.7. Ver: Camille Jullian, La Faillite d’un regime, em Au seuil de notre histoire, op. cit., p. 141-172; ver igualmente, do mesmo, Histoire de Ia Caule, t. VI, La Civilisation gálio-romaine. Etat moral, Paris, 1920, capítulo VI «A obra de Roma», p. 528-554.8. Para esta passagem, ver: Lucien Febvre, Lê Rhin, op. cit., p. 99.9. Ver: Ferdinand Brunot, Histoire de Ia langue française dês origines à 1900, 18 vols., em 9 t., Paris, 1906-1943, e mais particularmente o tomo VI, Lê XVIII” siècle, primeira parte, Lê Mouvement dês idées et lês vocabulaires techniques. Paris, 1930; Lucien Febvre fez a recensão de vários tomos desta obra: Langue et nationalité en France au XVllf siècle em Revue de synthèse historíque, t. 42 (1926), p. 19-40 (a propósito do t. VII); Lê Français sous Ia Révolution, d’après M. Ferdinand Brunot; em Revue de synthèse historíque, t. 45 (1928), p. 112-118 (a propósito do t. IX, primeira parte); Un grand livre d’histoire: lê Brunot, em Mélanges d’histoire sociale, t. V (1944), p. 84-88; ver: Bertrand Miiller, Bibliographie dês travaux de Lucien Febvre, op. cit., nº171, p. 49; n° 230, p. 54; n° 1329, p. 149; Lucien Febvre recorre frequentemente a esta obra no curso sobre a Europa, mas também no seu curso «Honra ou pátria?»; ver: Lucien Febvre. «Honneur et Patrie», op. cit.. p. 57-58, 170, 173, 231-232, 271, 273.10. Ver: E.-F. Gautier, La Conquête du Sahara, essai de psychologie politique. Paris, 1910, capítulo III, «Lês Méharistes», p. 79-80, em particular p. 79: «No Saara propriamente dito, o acontecimento capital, e que explica a conquista do deserto, não foi a tomada de In-Salah, nem a vitória de Tit, foi a entrada definitiva dos camelos, muito particularmente dos mearis, ao serviço do Estado francês.»11. Não pudemos identificar com rigor esta citação.347LUCIEN FEBVRE

Lição V

1. A formulação exacta de Marc Bloch é a seguinte: «Ora, a Europa, creio, surgiu muito precisamente quando o Império romano se esboroou»; Marc Bloch conclui assim a recensão da obra de Corrado Barbagallo, // medioevo, Turim, 1935 (Storia universale, t. In), em Marc Bloch, Problèmes d’Europe em Annales d’histoire économique et sociale, t. VII (1935), p. 471-479, p.473-476, p. 476; ver supra lição III, nota 7, p. 65.2. Ver: Henri Pirenne, Mahomet et Charlemagne, Paris/Bruxelas, 1937; Marc Bloch fez a recensão deste livro póstumo de Henri Pirenne para os Annales, ver: Marc Bloch, La dernière ouvre d’Henri Pirenne em Annales d’histoire économique et sociale, t. X (1938), p. 325-330; Henri Pirenne, Histoire de 1’Europe, dês invasions au XVf siècle, Bruxelas, 1936: Lucien Febvre consagrou, nos Annales, uma notícia necrológica a Henri Pirenne: Lucien Febvre, Henri Pirenne, 1862-1935, em Annales d’histoire économique et sociale, t. VII (1935), p. 529-530; ver: Bertrand Miiller, Bibliographie dês travaux de Lucien Febvre, op. cit., n° 742, p. 100.3. Ver: François Delaisi, Lês deux Europes, prefácio de Daniel Heineman, Paris, 1929, em particular p. 21: «Imaginem um aviador, dotado de uma capacidade de visão infinita, a planar muito alto no céu para abarcar de uma assentada todo o continente europeu, dos Urais a Gibraltar. Oferecer-se-ia primeiro um duplo espectáculo ao seu

olhar. De um lado, veria uma região coberta por uma rede extremamente cerrada de caminhos de ferro, entre os quais avistaria um rendilhado extremamente ténue de estradas e caminhos. Do outro, algumas longas vias férreas separadas por vastos espaços onde só raros caminhos, carreiros ou pistas aparecem. Teria assim a impressão de duas Europas muito diferentes: uma, em que a circulação de pessoas e mercadorias é intensa, a outra, onde é ainda rudimentar. Se procurasse delimitá-las, a linha de fronteira passaria aproximadamente por Estocolmo, Danzig, Cracóvia, Budapeste, Florença, Barcelona, Bilbau, depois contornava a França passando entre a Inglaterra e a Irlanda e iria por Glasgow até Bergen e Estocolmo.»4. Ibid., p. 22: «[...] Por toda a parte, na chaminé da fábrica, na locomotiva que arqueja ao longo das vias férreas e mesmo na estrada da aldeia onde rouqueja o pesado camião ou a motocicleta, por toda a parte se distingue um jacto de fumo, floco ou penacho. E o observador, do alto do seu avião, saberá que está no reino do cavalo-vapor.»5. Sobre este ponto, ver: Lucien Febvre, Lê Rhin, op. cit., p. 127-128; Lucien Febvre utiliza aia mesma fórmula para qualificar o trabalho de Fredegário.6. Ibid., p. 129.7. Lucien Febvre retoma esta mesma citação em: Lê Trícentenaire de Ia mort de Descartes, lln homme libre, em L’Éducation nationale, 2 de Março de 1950, p. 3-6, retomado em: Ao cur religieux du XVf siècle. Paris, 1957 (Biblioteca geral da École pratique dês hautes eludes, 6a secção), p. 310-320); ver Bertrand Mtiller, Bibliographie dês travaux de Lucien Febvre, op. cit., n° 1587, p. 169; n° 2094, p. 209.8. O manuscrito da lição V termina com estes dois pontos.

Lição VI

1. Ver supra, lição III, nota 7, p. 65. Lição V, nota l, p. 81.2. A passagem entre parênteses rectos figura em duas folhas, do mesmo formato das desta lição, mas não paginadas, insertas entre as folhas com os números 2 e 3.348A EUROPA3. Ver supra, nota 1.4. Para toda esta lição, e em particular para esta passagem, ver: Henri Pirenne, Mahomet et Charlemagne, Paris/Bruxelas, 1937; ver supra, lição V, nota 2, p. 84.5. Ver: Convegno di scienie morale e storiche. Tema: 1’Europa, Roma, 1933, 2 vols., 707 e 443 p. (Reale Academia d’Italia, Fundazione Alessandra Volta, Atti dei Convegni, 2); Marc Bloch fez a recensão destes volumes para os Annales, ao mesmo tempo que a de duas outras obras sobre a Europa, entre as quais a de Corrado Barbagallo em: Marc Bloch, Problèmes d’Europe, em Annales á”histoire économique et sociale, t. VII (1935), p. 471-479, p. 471-473, ver p. 472: «Mr Argetoiano teve, a este respeito, uma palavra que não deixa de ser profunda. ”A noção de Europa”, disse ele - entenda-se, tal como é hoje proposta - ”é uma noção de crise”. » E Marc Bloch acrescenta: «Gostaríamos de ousar definir melhor: uma noção de pânico. Medo da morte por inanição com que todas as concorrências, de toda a parte surgidas, ameaçam as grandes indústrias europeias; medo das revoltas que rugem contra as velhas hegemonias coloniais; medo de ver as nossas nações invadidas por formas sociais de momento muito diferentes das nossas [...]; medo de nós próprios, enfim, e das nossas discórdias: desta combinação de temores nasceu, sem sombra de dúvida, a conversão súbita que, de tantos dos nossos contemporâneos até aqui inteiramente estranhos a tais pensamentos, fez inopinadamente, do fundo do coração à ponta dos lábios, tão bons Europeus.» Ver igualmente supra, lição III, nota 7, p. 65.6. Sobre Maurice Holleaux, professor de história helenística na faculdade de letras de Paris, depois professor de epigrafia grega no Collège de France, de 1927 até à sua morte, em 1932, ver: Christophe Charle, Lês Professeurs de Ia faculte dês lettres de Paris. Dictionnaire biographique, volume 2, 1909-1939, Paris, 1986 (História biográfica do ensino), p. 108-110; sobre Charles Seignobos, professor de história política da idade moderna e contemporânea na faculdade de letras de Paris de 1921 a 1925, ver: ibid., volume l, 1809-1908, Paris, 1985, p.

163-165; Lucien Febvre fez diversas recensões de obras de Seignobos; ver em particular: Lucien Febvre, Entre 1’histoire à thèse et 1’histoire manuel: deux esquisses recentes d’une histoire de France: M. Benda, M. Seignobos, em Revue de synthèse, t. V (1933), p. 205-236 (a propósito de Julien Benda, Esquisse d’une histoire dês Français dans leur volante d’être une nation, Paris, 1932, e Charles Seignobos, Histoire sincère de la nation française: essai d’une histoire de évolution du peuple français, Paris, 1933), retomado em Combats pour 1’histoire, Paris, 1953, p. 80-98; ver: Bertrand Miiller, Bibliographie dês travaux de Lucien Febvre, op. cit., n° 586, p. 87; Lucien Febvre, Un essai d’histoire européenne em Annales d’histoire sociale, 1.1 (1939), p. 293-295 (a propósito de Charles Seignobos, Essai d’une histoire comparée de 1’Europe, Paris, 1938); ver: Bertrand Miiller, Bibliographie dês travaux de Lucien Febvre, op. cit., n° 1043, p. 126.7. Esta comparação entre dois habitantes de Lyon pertencentes a séculos diferentes inspira-se em Marc Bloch que, em Problèmes d’Europe, compara os sentimentos de um habitante de Lyon no século IV com os de um habitante de Lyon no século XII; ver: Marc Bloch, Problèmes a”Europe, op. cit., p. 479.

Lição VII

1. Ver supra, lição VI, nota 7.2. A palavra «Europa» está em maiúsculas e sublinhada no manuscrito de Lucien Febvre.3. Ver: Richard, Joseph, Édouard, Charles Lefebvre Dês Noêttes, comandante, L’Attelage.349LUCIEN FEBVREcheval de selle à travers lês ages. Contribution à 1’histoire de 1’esclavage, prefácio de Jérôme Carcopino, Paris, 1931.4. Esta passagem inspira-se nas observações de Jules Sion sobre as obras do comandante Lefebvre dês Noêttes publicadas nos Annales: Jules Sion, Quelques problèmes de transport dans l’Antiquité: lê point de vue d’un géographe méditerranéen, em Annales d’histoire économique et sociale, t. VII (1935), p. 628-633, p. 630: «[...] E sobretudo empregava-se uma quantidade de bestas de carga. É singular que as pesquisas tão aprofundadas de Mr. Lefebvre dês Noêttes não lhes tenham prestado atenção. No entanto, a região mediterrânica, tão acidentada por vezes, é muito mais o domínio da albarda do que da carroça. Ainda hoje, um mercado dos Apeninos, da Arcádia, da Bósnia é abastecido sobretudo por cavalos, mulas ou burros de carga. Há um século a carroça era quase desconhecida na maior parte do Peloponeso e de Creta.»5. Ver: Marc Bloch, Avènement et conquêtes du moulin à eau em Annales d’histoire économique et sociale, t. VII (1935), p. 538-563.6. Esta passagem inspira-se nas observações de Jules Sion acima citadas, nota 3: Jules Sion, op. cit., p. 632: «Mas em redor do Mediterrâneo a grande dificuldade não era transportar a madeira, era encontrá-la. Nesta zona em que a floresta desaparece tão depressa e se regenera tão dificilmente, que luxo devastador a lareira teria representado! É certo que a higiene reprova o fogareiro; mas ele utiliza todo o poder calórico que as nossas lareiras perdem; é a lareira dos pobres em r combustível.»

Lição VIII

1. Não pudemos identificar esta obra; talvez se trate de má leitura nossa do nome do autor.

Lição IX

1. O artigo de Henri Pirenne, Mahomet et Charlemagne, em Revue belge de philologie et d’histoire, t. I (1922), p. 77-86, marca o ponto de partida dos trabalhos de Henri Pirenne sobre as relações entre Oriente e Ocidente na alta Idade Média; o livro que tem o mesmo título foi publicado postumamente pelo seu filho Jacques, em 1937; ver supra, lição V, nota 2, p. 84.2. A fórmula «O homem, esse desconhecido» faz talvez referência à obra de Alexis Cairel que a tem por título; ver infra, lição X, nota 2, p. 148.

Lição X

1. Ver: Marc Bloch, La société féodale. La formation dês liens de dépendance, Paris, 1939 (A Evolução da humanidade, síntese colectiva, XXIV), em particular p. 270-292: Segunda parte, «Os laços de homem a homem», livro II, «A vassalagem e o feudo», capítulo II, «Panorama europeu».2. A fórmula «O homem, esse desconhecido» faz talvez referência à obra de Alexis Cairel publicada em 1935 que a tem por título: Alexis Cairel, L’Homme, cet inconnu. Paris 1935; ver supra, lição IX, nota 2, p. 140.350

A EUROPA

Lição XI

1. Ver: Henri Pirenne, Lês Villes du Moyen Age: essai d’histoire êconomique et sociale, Bruxelas,1927; Lucien Febvre fez uma recensão deste livro e de outras obras de Henri Pirenne em: Lucien Febvre, Deux oeuvres recentes d’Henri Pirenne, em Revue de synthèse historique, t. 45 (1928), p. 95-109 (além deste livro, recenseia igualmente: Henri P., Histoire de Belgique, t. 6, La Conquête française, lê Consulat et VEmpire, lê royaume dês Pays-Bas, Ia Révolution belge, Bruxelas, Mélanges d’histoire offerts à Henri Pirenne, Bruxelas, 1926, 2. vols.); este texto é retomado em Combats pour 1’histoire, Paris, 1953, p. 357-369; ver: Bertrand Miiller, Bibliographie dês travaux de Lucien Febvre, op. cif., n° 54, p. 229; n° 1812, p. 187.2. Ver: Lucien Febvre, Lê Rhin, op. cit., p. 155.3. Para toda esta passagem, ibid., p. 155-156.4. Pierre Joseph Proudhon, Idée générale de Ia Révolution au XIX1 siècle (Choix d’études sur Ia pratique révolutionnaire et industrielle), Paris, 1851, p. I-II: «A vós, Burgueses, a homenagem destes novos ensaios. Fostes sempre os mais intrépidos, os mais hábeis revolucionários. Fostes vós os primeiros, no quinto século da era cristã, com as vossas federações municipais, a estender a mortalha sobre o Império Romano nas Gálias [...] . fostes vós, enfim, que, há oitenta anos, proclamastes uma após outra todas as ideias revolucionárias, liberdade dos cultos, liberdade da imprensa, liberdade de associação, liberdade do comércio e da indústria; que, pelos vossos sábios contributos, vencestes o altar e o trono; que estabelecestes em bases indestrutíveis a igualdade perante a lei, o controlo legislativo, a publicidade das contas do Estado, a subordinação do governo ao país, a soberania da opinião pública. Fostes vós, e só vós, sim, vós, que erigistes os princípios, lançastes os fundamentos da Revolução no décimo nono século. Nada do que foi tentado sem vós, contra vós, vingou; nada do que empreendestes falhou; nada do que preferistes falhará [...]»; esta obra, que pertenceu a Lucien Febvre, figura ainda na biblioteca do seu filho.5. Ver: Jules Michelet, Histoire de France, Paris, 1833-1867, 17 vols.; o tomo In saiu em 1837; ver p. 32-40: livro V, capítulo II, «Filipe o Belo, Bonifácio VIII, 1285-1304»; p. 107-149: capítulo III, «O ouro. O fisco. Os Templários»; a passagem citada figura na p. 107-108: «A época a que chegamos deve ser considerada o advento do ouro. É o deus do mundo novo em que entramos. Filipe o Belo, mal subiu ao trono, excluiu os padres dos seus conselhos para neles dar entrada aos banqueiros. Guardemo-nos de dizer mal do ouro. Comparado com a propriedade feudal, com a terra, o ouro é uma forma superior da riqueza. Coisa pequena, móvel, intermutável, divisível, fácil de manusear, fácil de esconder, é a riqueza já subtilizada; ia para dizer espiritualizada. Enquanto a riqueza foi imóvel, o homem, ligado por ela à terra e como enraizado, já não tinha outra locomoção além da gleba em que rastejava. O proprietário era uma dependência do solo; a terra levava a melhor sobre o homem. Hoje, é justamente o contrário: arrebata a terra, concentrada e resumida no ouro. O dócil metal serve para todas as transacções; segue, ávido e fluido, toda a circulação comercial, administrativa. O governo, obrigado a agir de longe, rapidamente, de mil maneiras,

tem como principal meio de acção os metais preciosos. A criação súbita de um governo no princípio do décimo quinto século cria uma necessidade súbita, infinita de prata e de ouro»; «décimo quinto» século é sem dúvida, aqui, um erro, em vez de «décimo quarto» século.6. Para esta passagem, ver: Gheorghe I. Bratianu, L’hyperpêre byzantin et Ia monnaie d’or dês republiques italiennes au Xllf siècle, em Mélanges Charles Diehl, Études sur 1’histoire et sur351LUCIEN FEBVREl’art de Byzance, Paris, 1930, 2 vols., t. I, p. 38-48.7. Toda esta parte é grandemente inspirada na obra de Henri Pirenne, Mahomet et Charlemagne; ver supra lição V, nota 2, p. 84.

Lição XII

1. As palavras «primeiramente», «em segundo lugar» e «em terceiro lugar» substituem os l, 2 e3 que figuram no manuscrito de Lucien Febvre.2. Não pudemos identificar este autor, que não figura em nenhum catálogo de biblioteca nem obra de referência em história; talvez se trate de má leitura nossa.3. Ver: Philippe de Commynes, Mêmoires, editadas por Joseph Calmette com a colaboração do cónego G. Durville, Paris, 1924-1925, 3 vols. (Clássicos da história de França na Idade Média), t. II, 1474-1483; livro V, «Janeiro de 1476-Abril de 1477», capítulo IX (e não VIII), «Considerações sobre o destino do Temerário e da sua casa», p. 153-158, p. 156-157 (a propósito das derrotas de Carlos o Temerário, duque da Borgonha): «E por isso, como disse, parece que esta perda terá sido igual ao que tiveram em felicidade. Porque, como digo tê-lo querido grande, e rico, e honrado, posso bem dizer que vi tudo isso nos seus súbditos, pois julgo ter visto e conhecido a melhor parte da Europa. Todavia, não conheci senhorio nem país, igual ou de muito maior extensão ainda, que fosse tão abundante em riqueza, em móveis e em edifícios e também em todas as prodigalidades, despesas, festejos e carnes como o que vi pelo tempo que lá estive.»4. Ibid., livro VI «1477-1483», capítulo XI, «Morte de Luís XI», p. 313-335, p. 313-314: «E se nunca tinha feito sofrer ninguém, era tão obedecido que parecia que toda a Europa tinha sido feita para lhe obedecer; pelo que este pouco que sofria contra a sua natureza e costume lhe era mais penoso de suportar.»5. Ibid., livro V (e não VI), capítulo XVIII, p. 207-216: «Aqui fala o autor de como as guerras e divisões são ordenadas e permitidas por Deus para mal das gentes e principalmente para a correcção dos maus príncipes e alega várias coisas singulares e dignas de serem lidas e entendidas tocantes ao estado dos ditos príncipes e dos seus senhorios.»6. Ibid., p. 208: «Porque ao reino de França deu por oposto os Ingleses; aos Ingleses deu os Escoceses; ao reino de Espanha Portugal. Não quero dizer Granada, porque esses são inimigos da fé. Todavia, até aqui, o dito país de Granada deu mais problemas ao país de Castela. Aos príncipes de Itália (a maior parte dos quais possuem as suas terras sem títulos se não lhes forem dados pelo céu; e isso só podemos adivinhar), os quais dominam assaz cruelmente e violentamente sobre os seus povos quanto a dinheiros, Deus deu-lhes por oposto as cidades de comunidade que ficam no dito país de Itália, como Veneza, Florença, Génova, por vezes Bolonha, Siena, Pisa, Luca e outras, as quais, em vários casos, são opostas aos senhores e os senhores a elas e todos vigiam para que o seu vizinho não cresça.»7. Ibid., p. 210-211, a frase de Commynes termina do modo seguinte: «porque eu soube nesta África de vários lugares onde se vendem uns aos outros os cristãos, e à parte é verdade para os Portugueses que muitos escravos tiveram e têm sempre.»8. Ibid., p. 211: «Podia portanto parecer que estas divisões fossem necessárias para o mundo e que estes escalões e coisas opostas que Deus deu e ordenou a cada Estado e quase a cada pessoa de que falei acima fossem também necessárias. E, de prima face, falando como homem não letrado, não quero ter opinião outra que a que devemos ter, assim me parece, e principalmente quanto à352

A EUROPAbestialidade de vários príncipes e também quanto à maldade de outros que têm senso e experiência bastante, mas querem usá-los mal.»

Lição XIII

1. Philippe de Commynes, op. cit., livro V, capítulo IX (e não VIII), p. 156-157; ver supra, lição XII, nota 3, p. 178.2. Md., livro V, capítulo XVIII, p. 210-211; ver supra, lição XII, nota 7.3. Jules Michelet, op. cit., t. IV, Paris 1840, livro VII, capítulo I, «Juventude de Carlos VI, 1380-1383», p. 1-3: «Se o grave abade Suger e o seu devoto rei Luís VII tivessem acordado, do fundo das suas tumbas, com o ruído dos estranhos festejos que Carlos VI ofereceu na abadia de Saint-Denis, e voltado ao mundo para verem a nova França, é certo que teriam ficado deslumbrados, mas também cruelmente surpreendidos; ter-se-iam persignado da cabeça aos pés e corrido a deitar-se de novo nos seus caixões. [...] Os nossos mortos do décimo segundo século não teriam visto sem humilhação, que digo?, sem horror os seus sucessores do décimo quarto. Grande teria sido o seu escândalo quando a sala se enchesse dos monstruosos trajes destes tempos, dos imorais e fantásticos ornamentos que as pessoas não temiam usar. Primeiro, homens-mulheres, graciosamente ataviados, arrastando molemente os seus vestidos de doze braças; outros cingidos nas suas jaquetas da Boémia com meias coladas, mas as mangas pendentes até ao chão.»4. Ibid., p. 4; «As mulheres usavam cornos na cabeça, os homens nos pés; os bicos dos seus sapatos retorciam-se como cornos, como garras, como caudas de escorpião. Elas, sobretudo, eram de tremer: o seio nu, a cabeça erguida, passeavam acima da cabeça dos homens o gigantesco hennin armado com cornos; tinham que rodar e baixar-se para passarem as portas. Ao vê-las assim belas, sorridentes, nédias na segurança do pecado, duvidava-se que fossem mulheres; pensaríamos reconhecer, na sua beleza terrível, a Besta descrita e predita; vinha à memória que o Diabo era frequentemente pintado como uma bela mulher cornuda... »5. Ibid., p. 5-6.6. Ibid., p. 6.7. Não pudemos identificar estes artigos de Gheorghe I. Bratianu; ver lição IV, nota l, p. 70.8. Ver: Gustave Soulier, Lês Influences oríentales dans Ia peinture toscane, Paris, 1924.9. Ver: Richard, Joseph, Édouard, Charles, Lefebvre Dês Noêttes, comandante, L’Attelage. Lê cheval de selle à travers lês ages. Contribution à l’histoire de 1’esclavage, prefácio de Jérôme Carcopino, Paris, 1931; ver supra, lição VII, notas 3 e 4, p. 113-114.

Lição XVIII

1. Ver: Jean Du Bellay, oeuvres poétiques, t. VI, Discours et traductions, édition critique publiée por Henri Chamard, Paris, 1931 (Sociedade dos textos franceses modernos), Discours au Roy sur la tresve de l’an M. D. LV., relativo à paz de Vaucelles, versos 211-230, versos 222-224, p.14-15: «Depois sentar-vos-ei num assento de marfim / Em traje triunfal num carro de vitória / Pomposamente puxado. Mas atrás dos vossos carros / não farei marchar Príncipes nem Reis, / /braços atados nas costas à moda romana / Triunfo dos Gentios. A Discórdia inumana / com353LUCIEN FEBVREtranças de serpentes, as filhas da Noite, / E o horror que Belonne à guerra conduz, / Marcharia depois de vós vergonhosamente cativo. / A Paz iria adiante, e com ramo de oliveira / a cobrir os seus cabelos revoltos na fila dianteira, / Cada qual em seu traje, caminhando lado a lado / A vossa França e a Espanha, com toda a sua tropa, / E a maior parte das províncias da

Europa, / /Que em boa harmonia vossa insígnia seguindo / Cristãs levariam suas forças ao Levante, / E de lá recuperando as nossas perdas antigas, / Trariam para cá dos pagãos as insígnias, / Que de vossa Majestade a mão plantaria / No santo templo romano sob a grande arcaria.»2. Ver: Pierre Ronsard, Oeuvres completes. Paris, 1914-1934, 7 vols. (Sociedade dos textos franceses modernos), 1.1 e II Odes et bocage de 1550, précédées dês Premières poésies, édition critique avec introduction et commentaire por Paul Laumonier, Paris, 1914, t. I. Livro 2, ode XXVI11, p. 259-264: «Pinturas contidas dentro de um quadro», verso 79-82, p. 261: «Rodeado por grande tropa / O seu poder fá-lo orgulhoso, / Arrastando as forças da Europa / Consigo, pelo seu braço maravilhoso. / Aí está a Espanha, e os povos que vivem / Longe sob a Ursa, e os Húngaros o seguem.»3. Ver: Pierre Ronsard, Premières poésies, em Oeuvres completes, t. I, op. cit., p. 17-23: «Entrada do rei cristianíssimo em Paris», verso 1-8, verso 1, p. 17: «Eis que vem da Europa toda a honra / Abre os braços Paris, cheia de ventura, / Para abraçar o teu rei que te respeita, / E com suas virtudes perfeito te honra. / Paris feliz, o tesouro da tua glória / Será suspenso do templo da Memória, / Tão grande será tua ventura teu bem / Havida da Europa a grandeza que tem.»4. Ver: Pierre Ronsard, Odes, em Oeuvres completes, 1.1, op. cit.. I, ode XVII, p. 147-154 «Advento da primavera», verso 3-6, p. 147-148: «Touro, que na tua garupa / Roubaste a bela Europa / Pelos caminhos da água / Tocas os confins do céu, / Empurrando com a ponta dos cornos / As portas do ano novo.»5. Ver: Maurice Scève, Oeuvres poétiques completes de Maurice Scève: Délie, La Saulsaye, lê Microcosme, Arion et Poésies diverses, reunidas pela primeira vez por Bertrand Guégan e publicadas com uma introdução, um glossário, notas e uma bibliografia, Paris, 1927, p. 235: «Não fora entre eles a carícia acabada / E não longe dali, onde ele a encontrara / Nas margens de ouro tingidas / Pelo rico vergel das três irmãs Hespérides / Quando, sobre o fruto dourado, o Sol radioso / Encontrou o meio-dia cujo clarão dá aos olhos / Do viajante perturbado, que os pomos ainda / Não vê resplandecentes de ouro, / Pois o ventre do monte descendente lhos encobre, / E do vale ao bosque tudo radioso se abriu. / Ouros, coisa de aprazível novidade / Ao vê-los os admira e os colhe descuidado: / Depois com seu cavalo volta a embarcar / Para, com todo o vagar passar para o outro lado / Sem temer que com o peso sua barca se afunde / Seguindo a direito chega à extrema Hespérie, / Europa, cabeça inclinada no regaço de Tétis / Que, pendente, se deita com sua amada Bétis.»6. Ver: Chronique parisienne de Pierre Driart, chambrier de Saint-Victor (1522-1535), por Fernand Bournon, em Mémoires de Ia société de Paris et de l’íle-de-France, t. XXII (1895), p. 67-178, p. 85-89 «Fevereiro 1523 [1524, n. st.]», p. 87-88 «Notou grandes águas que se dizia irem cair»; «Item, é de notar que, antes do presente mês de Fevereiro, há muito tempo se dizia que os astrólogos afirmavam e mesmo que se encontrava por escrito que se dariam coisas maravilhosas de muitas maneiras, e singularmente que haveria tão grande abundância de águas que seria quase um segundo dilúvio [...]; e entre os outros dizia-se o seguinte: que no primeiro dia do dito mês iria haver grandes chuvas e pelo VI iria haver por todo o mundo tremor da terra [...]. No XII também, devia haver tremor da terra [...] Nos XVII e XVIII dias do dito mês iria [haver] inúmeras águas e grandes enxurradas com ventos pestíferos [...]. A XXVII do dito mês todo o mundo iria354

A EUROPAsofrer tremor de terra, chuvas muito fortes com ventos e estaria em perigo toda a Europa.»7. O catálogo da Biblioteca Nacional de França comporta duas edições do De eversione Europae prognosticon de António Torquato, uma publicada sem indicação de lugar em 1534: De eversione Europae prognosticon D. Magistri Anthoni Torquati, ... ad... Mathiam regem Ungarorum, anno... 1480 conscriptum et ab eodem anno usque ad 1538 durans, s.L, 1534, in-4°, 9 ff., a outra publicada em Antuérpia em 1552: Antonii Torquati Prognosticon de eversione Europae et alia quaedam, quorum catalogum sequens docebit pagina, Antverpiae, apud M. Nutium, 1552, in-8°,51 ff.; comporta igualmente vários exemplares da obra publicada por Andres de Laguna: Europa èain-fiv Tinupoij(iei^|/joc est misere se discrucians, suamque calamitatem deplorans, publicado em Colónia em 1543; a edição de António Torquato de que fala Lucien Febvre parece não estar conservada na Biblioteca Nacional de França; sobre Laguna, ver: Marcel Bataillon, Érasme et VEspagne. Recherches sur 1’histoire spirituelle du XVf siècle, Paris, 1937, p. 712-735, em particular p. 721, nota 1.

8. A carta de Juan Luis Vives, De Europae statu ac tumultibus... Adriano VI, publicada em Lovaina em 1522, figura no tomo II da edição póstuma das obras de Vives publicada em Basileia em1555 que a Biblioteca Nacional de França possui: Juan Luis Vives, Opera, in duos distincta tomos, quibus omnes ipsius lucubrationes quotquot unquam in lucem editas volui complectuntur..., Basileia, 1555; sobre Vives, ver: Juan Esterlich, Catalogue de l’exposition Vivei, Paris, Biblioteca Nacional, 1941, de que Lucien Febvre fez uma recensão em Mélanges d’histoire sociale, t. VI (1944), p. 106; ver: Bertarnd Miiller, Bibliographie dês travaux de Lucien Febvre, op. cit., n° 1344, p. 150.9. O De Europae dissidiis et bello turcico dialogus ou De Bello turcico de Juan Luis Vives figura no tomo II da edição póstuma das obras de Vives que figura no catálogo da Biblioteca Nacional de França; ver supra, nota 8, p. 348.10. Ibid.11. Não pudemos identificar esta citação de Ronsard.12. Ver: Jean Bodin, Lês Six Livres de Ia Republique, Paris, 1576.13. A primeira edição do Moriae encomium, Erasmi,... dedamatio, título latino de O Elogio da Loucura, foi publicada sem lugar nem data, em 1511; a primeira tradução francesa data de1520; ver: Augustin Renaudet, Préréforme et humanisme à Paris pendant lês premières guerres d’ltalie (1494-1517), Paris, 1916 (Biblioteca do Instituto Francês de Florença, universidade de Grenoble, 1a série, t. VI), p. 248; Percy Stafford Allen, Helen Mary Allen, Heathcote Willliam Garrod, Opus epistolarum Dês. Erasmi Roterodami, Oxford, 1906-1958, 12 vols., t. I, Oxford, 1906, 12 vols., t. I, p. 514.14. Ver: Didier Érasme, Éloge de la folie, traduzido por Victor Develay e acompanhado de desenhos de Hans Holbein, Paris, 1872, p. 146-149, que dá uma tradução ligeiramente diferente da que figura no texto de Lucien Febvre; este possuía uma edição de o Elogia da Loucura de 1727, com as gravuras de Hans Holbein, que também não dá os termos exactos do texto citado por Lucien Febvre: O Elogio da Loucura composto em forma de declamação por Erasmo e traduzido por Mr. Guendeville, com as notas de Gérard Listre e as belas figuras de Holbein: tudo sobre o original da academia de Basileia, nova edição revista com cuidado e posta por melhor ordem, Amsterdam, casa François 1’Honoré, 1727.15. Ver: Didier Érasme, Bellum, Basileia, 1517, in-4°, 20 ff. ; a Pacis querella foi publicada com outros textos num volume editado em Veneza em 1518.16. Não pudemos identificar quem era Delille.355LUCIEN FEBVRE17. Ver: Percy Stafford Allen, Helen Mary Allen, Heathcote Willliam Garrod, Opus epistolarum Dês. Erasmi Roterodami, Oxford, 1906-1958, 12 vols., t. I, Oxford, 1906-1958, 12 vols., t. II,1514-1517, Oxford, 1910, carta 586 «To Dukes Frederick and George of Saxony», p. 578-586, p. 585, linha 231 e seguintes: «Verus et unicus orbis monarcha Christus est, in cuius edicta si nostri príncipes consenserínt, sub uno príncipe vere florebunt universo: sin humanis cupiditatibus rés gerentur, aeterna rerum vicissitudine semper fluctuabimus iactabimurque.»18. Esta citação não pôde ser identificada.19. Ver: Thomas More, Libellus vere aureus nec minus salutaris quam festivus de Óptimo reip. Statu deque nova insula Utopia, authore claríssimo viro Thomas Moro, inclytae civitatis Londinensis eive et vicecomite, cura M. Petri Aegidii Antverpiensis et arte Theodorici Martini Alustensis, typographi almae Lovaniensium Academiae nunc prtmum accuratissime editus, Lovaina, 1516, 2 partes em l vol., in-4°; Lucien Febvre possuía uma edição crítica da Utopia de Thomas More publicada em 1936: Thomas More, L’Utopie ou lê traité de lameilleure forme de gouvernement, texto latino editado por Marie Delcourt com notas explicativas críticas, Paris, Droz, 1936.20. Ver: Thomas More, L’Utopie ou lê traité de la meilleure forme de gouvernement, texto latino editado por Marie Delcourt, op. cit., Praefatio in opus de óptimo Reipublicae statu, p. 35-41.21. A primeira edição do martirológio de Jean Crespin foi publicada em Genebra em 1554; a Biblioteca Nacional de França conserva dele duas edições, uma impressa em Genebra em 1565, intitulada Actes dês martyrs déduits en sept livres, depuis lê temps

de Vuiclefet de Husjusques a présent, contenans un recueil de vraye histoire ecclésiastique de ceux qui ont enduré Ia mort és derniers temps pour Ia véríté du Fils de Dieu (por Jean Crespin), a outra publicada sem indicação de lugar em 1597, sob o título: Histoire dês martyrs persécutés et mis à mort pour la véríté de l’Évangile, depuis lê temps dês apostres jusques à Van 1597, comprinse en douie livres (por J. Crespin e S. Goulart); uma edição de 1570, conservada no Museu da Reforma, de Genebra, foi objecto, em 1964, de uma reedição anastática por iniciativa do Centro Nacional de Investigação de História Religiosa de Liège (Bélgica); traz o título seguinte: Histoire dês vrays témoins de la véríté de 1’Evangile, qui de leur sang l’ont signée, depuis Jean Husjusques au temps présent comprinse en VIII livres [...]; traz à cabeça um poema latino traduzido ao lado em francês com o título «Voto pelos mártires deste tempo», cujas páginas não estão numeradas: «[...] Ala, então, Livro, parte para além do Jura / E do lago genebrês, depois, magnífico, vai / Os povos distantes do Oriente conhecer. / E de uma das pontas do mundo, tendo tido por mestre / Outrora o Romano, atravessa o Tanaís: / Depois entra dos Cimérios no país: / Também do Helesponto trata o fundo de atingir. / O povo Polaco que outrora rastejava / Nas trevas do erro e que o Todo-poderoso / ora com seu espírito esclarece e regenera. / Navega para as ilhas Órcades e ancora a galera / Na praia da Escócia da clara flâmula de Deus, / O seu Evangelho sagrado lê e dá neste lugar: / Que será refúgio e morada da tropa / Dos servidores de Cristo expulsos da Europa / [...] Vai, Livro, e gemendo contempla na Alemanha / Tantas antigas cidades que o largo Reno banha / E a Espanha onde o Tejo rio tão decorado / Pela rica beleza das suas areias douradas, / Correndo docemente acrescenta o mar largo. / Que também esta Roma, que os maus comanda, / E domina sobre eles, leia o que conténs.»22. A Sommaire description de la France, Allemagne, Italie et Espagne não é uma obra de Louis Turquet de Mayerne, mas do seu filho Théodore Turquet de Mayerne, médico e químico genebrês, nascido em 1573 e falecido em Chelsea em 1655; ver: La Grande Encyclopédie. ínventaire raisonné dês sciences, dês lettres et dês arts par une société de savants et de gens de lettres,356A EUROPAParis, s.d., t. XXIII, p. 463; a Biblioteca Nacional de França possui desta obra apenas uma edição com data de 1615: Sommaire descríption de la France, Allemagne, Italie et Espagne, avec la guide dês chemins et postes... à quoy est adjousté un recueil dês foires... et un traité dês monnoyes..., Rouen, 1615.23. A Biblioteca Nacional de França possui apenas duas edições do Itinerarium Germaniae, Galliae, Angliae, Italiae de Paul Hentzner, uma de 1617, a outra de 1629.24. Esta obra parece não estar conservada na Biblioteca Nacional de França.25. Ver: Jean Sleidan, De Statu religionis et reipublicae, Carolo quinto Caesare, commentarii, Argentorati [Estrasburgo] per heredes W. Rihelii, 1555, in-fol., 469 ff.; sobre Jean Sleidan ou Johann Philipp de Sleida, dito Sleidanus, nascido em Schleiden em 1506 ou 1508, morto em Estrasburgo em 1556, ver: La Grande Encyclopédie, op. cit., t. XXX, p. 103.26. Ver: Jean Sleidan, Histoire de l’estai de la religion et republique sous 1’empereur Caries V, [Genebra), Jean Crespin, 1557, in-8°, 474 ff. (traduzido por Robert Lê Prévost): a edição de1561 não figura no catálogo da Biblioteca Nacional de França.27. Ver: Aeneas Sylvius Piccolomini, papa com o nome de Pio II, Historia rerum ubique gestarum, Veneza, 1477, in-fol.

Lição XIX

1. Sobre as Oeconomies royales de Sully e o «grande desígnio» ver: Christian Pfister, Lês Économies royales de Sully et lê Grand Dessein de Henri IV, em Revue historique, t. LIV (Janeiro-Abril1894), p. 300-324, t. LV (Maio-Agosto 1894), p. 67-82 e 291-302; t. LVI (Setembro-Dezembro1894), p. 39-48 e 304-339; ver mais particularmente o artigo publicado na Revue historique, p. LV , (Maio-Agosto 1894), p. 67-82.2. Ver: Mémoires dês sages et royales economies d’Estat d’Henri lê Grand, em M. Petitot, Collection dês Mémoires relatifs à l’histoire tíe France, t. VIII, Paris, 1821, capítulo XIII, «Continuação do desenvolvimento do projecto de confederação», ver: p. 239-240: «Mais, os assuntos acima especificados de Cleves, do império da Germânia, dos reinos da Boémia e da Hungria e de outros seus dependentes, os da Suíça, dos Países Baixos, da Lombardia, dos pequenos príncipes de Itália supramencionados, do Papa, dos Venezianos, e dos reis de França e de Espanha, tendo tido uma questão como a pressuposta acima, teve o Papa que admoestar o rei de Espanha e todos os príncipes da sua casa, por um legado expresso em como este, associado com os reis de França, de Inglaterra, da Dinamarca, da Suécia, da Polónia, a senhoria de Veneza, os príncipes, Estados e cidades da Germânia, o duque da Sabóia, a república dos Suíços e seus aliados, e os Estados da Holanda, se tinham aliado para o estabelecimento de uma república cristianíssima na Europa e a tornar capaz de travar e sustentar uma guerra continuada contra os infiéis inimigos do sagrado nome de Jesus Cristo [...].»; ibid., p. 245-246: «[...] ao qual desígnio não há qualquer dúvida de que a forma do estabelecimento desta república cristianíssima da Europa não seja de todo contrário, porquanto ela não tende a favorecer nenhum interesse particular, mas somente o da honra e glória de Deus, a exaltar o sagrado nome de Jesus Cristo e a fazer publicar altamente o seu sagrado Evangelho, à pacificação e tranquilidade de todos os potentados cristãos entre eles, e por conseguinte unir e conjugar mais que nunca uns com os outros, a fim de que as armas comuns os façam abraçar as propostas que lhes forem feitas muito amistosamente.»; ibid., p.246: «Tendo todos estes desígnios enfim sucedido de um modo feliz segundo o projecto do Rei,357LUCIEN FEBVREassim metodicamente conduzido, Sua Majestade devia então declarar abertamente a ordem que estimava a propósito de ser observada para o estabelecimento desta grande e magnífica república cristianíssima, sempre pacífica dentro dela própria, composta por todos os Estados e dominações da Europa que fazem profissão do nome de Cristo.»; ver igualmente: ibid., capítulo XIV, «Reflexões dos autores sobre a casa de Áustria e sobre os projectos de Henrique IV. Situação da França após a sua morte. Diversos acontecimentos do século de Luís XIII. Elogio do cardeal de Richelieu. Conselho dado a Sully para instigar Luís XIII a seguir os passos de seu pai»; p. 289, V- (a propósito de Henrique IV): «Em lugar de o nosso grande Rei [...] dar garantias infalíveis de a. que no regresso da viagem que empreendeu para prestar assistência aos seus aliados, vendo-se g possuir absolutamente o amor e benquerença de todos os súbditos e amigos, tanto de uma como de outra religião, ter abatido todas as potências demasiado elevadas que podiam infestar os po-- tentados da cristandade da Europa, e unido à sua associação, pelas suas benfeitorias e pela sua » modéstia nos deveres, os mais poderosos Estados e potentados da Europa [...].»3. Ibid., capítulo XIII, p. 240: «[...] tinha sido aconselhado e resolvido entre eles (a fim de que esta santa e magnífica república que se tinha tornado pacífica dentro de si, comunicasse esta felicidade entre todos os reis, príncipes e potentados de que ela seria composta) estabelecer tais ordens, temperamentos e moderações, que eles

ficassem muito contentes por se terem tornado quase todos iguais em extensão do domínio, força, poder e autoridade na Europa cristã.»4. Ver supra, notas 1 e 2.5. Ver supra, nota 3.6. Estas duas palavras estão em maiúsculas no manuscrito de Lucien Febvre; Lucien Febvre propusera-se fazer uma comunicação sobre este tema da dominação universal ao quinto congresso internacional das ciências históricas em Bruxelas, em 1923; ver, sobre este assunto, uma carta de Lucien Febvre a Henri Pirenne, datada pelos editores do texto do fim de 1922, que fala da sua participação no congresso de Bruxelas: Bryce e Mary Lyon, The Birth o/Annales history: the Letters of Lucien Febvre and Marc Bloch to Henri Pirenne (1921-1935), Bruxelas, 1991, p. 43-45, p. 43-44; «[...] Foi só hoje, e completamente in extremis, que dirigi a M. Ganshof duas notas. Uma inteiramente sumária, com o esboço de uma comunicação que tenho ainda que tornar apresentável sobre as origens borguinhãs da ideia de Dominação Universal. Tomo a fórmula tal como ela circula um pouco por toda a parte, mas, entenda-se, não me responsabilizo por ela; é de um estudo crítico que se trata. Penso que é possível sistematizar mais talvez a política de um Filipe o bome de um Carlos o Temerário tentando adivinhar as ideias directrizes que podiam animá-los; mas penso também, e gostaria de o demonstrar, que a Dominação Universal não passa de uma dessas quimeras que vogam no livre reino dos sonhos ocos - ou de um argumento de polémica nas mãos de publicistas astuciosos [...]. Na realidade, as condições históricas de uma ”Dominação Universal” por um Temerário, ou por um Carlos Quinto, ou por um Filipe II - ou Luís XIV - teriam sido diferentes, tão profundamente dissemelhantes que qualquer ideia de filiação deve ser repelida por quimérica»; acabou por renunciar a este projecto; todavia, foi publicado um resumo; ver: Lucien Febvre, L’Idée moderne de domination universelle. Sés origines historiques et sés caracteres fondamentaux, em Compte rendu du Ve congrès International dês sciences historiques, Bruxelles, 1923, publicado por G. Dês Marez e F.-L. Ganshof, Bruxelas,1923, p. 328-329: «[...] Em particular, falou-se muitas vezes, mas sempre sem a preocupação de a definir, de uma ”concepção moderna da dominação universal” que corre através da história dos séculos XVI, XVII e XVIII e que teria suscitado sucessivamente os grandes desígnios de um Carlos Quinto, de um Filipe II, de um Luís XIV - para falar apenas destes soberanos. Que358A EUROPApensar desta concepção? Quais são os elementos constitutivos e descritivos desta noção moderna de dominação? Desempenhou ela verdadeiramente o papel que gostam de lhe atribuir? Aliás, poderia ela desempenhá-lo e seria ela susceptível de transmissão de um século a outro, de um Estado, de uma dada Europa a uma Europa diferente? Tantas perguntas que parecem nunca ter sido feitas com clareza. De um modo mais rigoroso, onde convém ir buscar as origens e as primeiras manifestações da concepção assinalada? Aos Valois da Borgonha, Filipe o bom,depois Carlos o Temerário? Quais foram as suas ideias políticas gerais ou, se se quiser, os seus sistemas? Faz a ”dominação universal” parte da vastíssima herança de tradições, de instituições e de ideias que a morte de Carlos o Temerário abriu bruscamente em Nancy, em 1477? Tal é a questão que nos esforçaremos por esclarecer. Toca toda uma série de problemas, históricos e intelectuais, cuja solução importa grandemente ao conhecimento e à compreensão do mundo moderno.»7. Ver supra, nota 6.8. Lucien Febvre escreveu contra por «pelo contrário»; substituímos esta palavra latina pela sua tradução para facilitar a leitura.

Lição XX

1. Ver: Robert Lenoble, Mersenne ou Ia naissance du mécanisme. Paris, 1943 (Biblioteca de história da filosofia); Lucien Febvre fez uma recensão a este livro ao mesmo tempo que ao livro de René Pintard, Lê Libertinage érudit de Ia première moltié du XVlf siècle, Paris, 1943, 2 vol.; ver: Lucien Febvre, Aux origines de 1’esprit moderne: libertinisme, naturalisme, mécanisme, em Mélanges d’histoire sociale, t. VI (1944), p. 9-25; esta recensão é retomada em Au coeur religieux du XVf siècle, op. cit., p. 337-358; ver: Bertrand Miiller, Bibliographie dês travaux de Lucien Febvre, op. cit., n° 1330, p. 149; n° 2094, p. 209.2. Lucien Febvre consagrou um curso no Collège de France, em 1942-1943, à «Formação do mundo moderno: Michelet e o problema do Renascimento»; ver: Annuaire du Collège de France, Paris,1945, p. 125-128; Bertrand Miiller, Bibliographie dês travaux de Lucien Febvre, op. cit., n° 1280, p. 145; este curso foi publicado em 1992: Lucien Febvre, Michelet et la Renaissance, Paris,1992.3. Ver supra, lição XIX, nota 6, p. 215.4. Para esta passagem, ver: Ferdinant Brunot, Histoire de la langue française dês origines à 1900, t. VI, Lê XVllf siècle, primeira parte, op. cit., p. 124-125, p. 125: «A ideia oposta à de equilíbrio exprimia-se por ”preponderância”: a Europa ainda era então inimiga da Casa de Áustria, quando esta já tinha perdido inteiramente a sua ”preponderância”. Acabava de ser derivada de «preponderante»; a nota 2 desta mesma página remete para exemplos tirados das obras de Turgot, d’Argenson, Mirabeau, Buffon e da Encyclopédie e indica: «só entrará na academia em 1798.»5. A palavra «Europa» está em maiúsculas no manuscrito de Lucien Febvre.6. Ver: Gottfried Wilhelm, Freiherr von Leibnitz, Codex júris gentium diplomaticus, in quo tabulae authenticae actorum publicorum, tractatuum, aliarumque rerum majoris momenti per Europam gestarum... continentur, afine seculi undecimi ad nostra usque têmpora... quem, ex manuscriptis praesertim Bibliothecae augustae guelfebytananae codicibus... edidit C. G. L., Hanover, 1693, in-fol.; Frédéric Léonard, Recueil dês traitez de paix, de trève, de neutralité, de conféfération, d’alliance et de commerce, faits par lês róis de France, avec tous lês prínces et potentats de1’Europe, et autres, depuis près de trois siécles, en six tomes, assemblé, mis en ordre, et imprime359LUCIEN FEBVREpar, Paris, 1693, 6 vols. In-4”: este exemplar é o único que figura no catálogo da Biblioteca Nacional de França; sobre Frédéric Léonard e a família de tipógrafos Léonard, ver: La Grande Encyclopédie, op. cif., t. XXII, Paris, s.d., p. 33; Georges Lepreux, «Gallia typographica» ou Répertoire bibliographique et chronologique de tous lês imprimeurs de France depuis lês origines de l ’imprimerie jusqu ’à Ia Révolution, Paris, 1911-1914, 4 t. Em 6 vols., Série de Paris (Paris e íle-de-France), t. I, Livre d’or dês imprimeurs du rói, Paris, 1911, p. 307-320.7. Ver: Jean-Philippe Abelinus, dito Johann Ludwig Gottfried, Theatrum europeaeum, oder auszfiirliche und warhafftige Beschreibung aller undjeder denckwurdiger Geschichten, só sich hin una wider in der Welt, furnâmlich abe r in Europa und teutschen Landen só wol im Religion-als-Prophan-Wesen, vom Jahr... 1617 bisz auffdas Jahr 1629... zugetragen haben..., Frankfiirt-am-Main,1635-1667, 8 vols., in-fol.: esta edição é a primeira que figura no catálogo da Biblioteca Nacional de França que possui uma segunda edição publicada em 1643-1644 e uma terceira edição em 19 volumes in-fólio continuada até 1712, publicada entre 1672 e 1720; La Grande Encyclopédie, op. cit., tomo I, Paris, s.d., p. 82 menciona uma edição em 12 vols. In-fólio, publicada entre 1662 e 1738.8. Podemos deduzir, da consulta do Dictionnaire dês ouvrages anonymes de Antoine-Alexandre Barbier e do catálogo da Biblioteca Nacional de França que a primeira edição do texto inglês não data de 1637, uma vez que existe uma tradução francesa,

com o título supracitado, com data de 1626 e publicada em Genebra; ver: Antoine-Alexandre Barbier, Uictionnaire aes ouvrages ~ anonymes, terceira edição revista e aumentada, t. IV, R-Z, Paris, 1879, col. 208: Relation de l’état de Ia religion, etc., tirée de 1’anglois du chevalier Edwin Sandis, avec lês additions notables (extraites de Paolo Sarpi), lê tout traduit enfrançois par Jean Diodati, Genebra, P. Aubert,1626, in-8°, Amsterdam, Elzvier, 1641, in-12°; o autor da notícia indica além disso que a edição mais completa do texto inglês foi publicada em Londres em 1634; ver: Edwin Sandys, sir, Europae speculum, or a View or survey of the state of religion in the Westerne parts of the world..., Londres, 1637, in-4°.9. Segundo o catálogo da Biblioteca Nacional de França, a primeira edição da obra de P. Linage de Vauciennes foi publicada em Paris em 1677: P. Linage de Vauciennes, Mémoires sur 1’origine dês guerres que travaillent 1’Europe depuis cinquante ans, Paris, 1677; uma outra edição foi publicada em Colónia em 1678; ver: Jacques-Charles Brunet, Manuel du libraire et de 1’amateur de livres..., 6 vol., Paris, 1860-1865, t. In, Paris, 1862, col. 1080.10. Ver supra, nota 6.11. Ver: Bernard Lê Bovier de Fontenelle, Éloge de M. Leibnitz, em Histoire de VAcadémie royale dês sciences. Année 1716, Paris, 1718, Parte «História», p. 94-128, p. 98-99: «Os Príncipes de Brunsvic destinaram-no a escrever a História da sua Casa. Para cumprir este grande desígnio e reunir os materiais necessários, correu toda a Alemanha, visitou todas as Antigas Abadias, pesquisou nos Arquivos das Cidades, examinou os Túmulos e as outras Antiguidades, e passou para além da Itália, onde os Marqueses da Toscana, da Ligúria e de Este, que tinham a mesma origem dos Príncipes de Brunsvic, haviam recebido os seus Principados e os seus Domínios. [...]. Regressou das suas viagens a Hanover em 1690. Tinha feito uma abundante recolha, mais abundante do que era necessário para a História do Brunsvic, mas a actividade erudita levara-o a querer tudo. Fez do que lhe sobrou uma ampla Recolha de que publicou o primeiro volume in-fólio em 1693 sob o título de Codex Júris Gentium Diplomaticus [...]. Reúne as coisas de História mais singulares que as suas Actas lhe descobriram e delas tira conjecturas novas e engenhosas sobre a origem dos Eleitores do Império fixados em número. Confessa que tantos360A EUROPATratados de Paz tantas vezes renovados entre as mesmas Nações são a sua vergonha e aprova com desgosto a Insígnia de um Mercador Holandês que, tendo adoptado por título À Paz perpétua, tinha mandado pintar no Quadro um Cemitério»: agradecemos a Christianne Demeulenaere-Douyère, conservadora-chefe dos arquivos e do património da Academia das Ciências, ter tido a bondade de verificar para nós esta citação.12. Ver: Jean Baruzzi, Leibnii et 1’organisation religieuse de la terre d’après dês documents inédits, Paris, 1907.

Lição XXI

1. Não pudemos identificar a edição utilizada por Lucien Febvre; ver: François de Salignac de la Mothe-Fénelon, Directions pour la conscience d’un rói, composées pour l’instruction de Louis de France, duc de Bourgogne, Haia, 1748, p. 82.2. Ibid., Supplément, p. 74.3. Ver: Friedrich Sieburg, Dieu est-il/rançais?, Paris, 1930; Lucien Febvre fez uma recensão deste livro ao mesmo tempo que de vários outros sobre assuntos afins em: Lucien Febvre, De la France à 1’Europe: histoires, psychologies et physiologies nationales em Annales d’histoire économique et sociale, t. IV (1932), p. 199-207, p. 201-202; este artigo é retomado em: Combats pour l’histoire, Paris, 1953, p. 239-246; ver: Bertrand Miiller, Bibliographie dês travaux de Lucien Febvre, op. cif., n° 443, p. 77; n° 1812, p. 187.

4. François de Salignac de la Mothe-Fénelon, Directions pour la conscience d’un rói, op. cit., p. 91.5. Ibid., p. 82.6. Para esta passagem, ver: Ferdinand Brunot, Histoire de la langue française dês origines à 1900, t. VI, Lê XVIlf siècle, primeira parte, op. cit., p. 118: «Humanidade. - Devemos muito a esta palavra, pensa Mercier. Bem raros são os que empregaram humanidade no século XVII para dizer «conjunto dos humanos», «género humano». Cem anos depois, «humanidade» está mais que na moda, estabeleceu-se num emprego necessário. Onde se dizia cristandade diz-se, e deve-se dizer, «humanidade», não apenas porque o mundo se emancipa do jugo da Igreja, mas porque a concepção se alargou, porque povos até então esquecidos ou desconhecidos entram em consideração: assegurar gradualmente e em todas as partes da terra a paz e a felicidade da «humanidade»; ver também supra, lição III, nota 3, p. 59.7. Charles de Secondat, barão de Montesquieu, L’Esprit dês Lois em: Oeuvres de Montesquieu. Nouvelle édition contenant l’éloge de Montesquieu por M. Villemain, lês notes d’Helvétius, de Condorcet et lê commenlaire de Voltaire sur L’Esprit dês lois, Paris, 1889, 3 t., t. II, livro XXI, «Das leis, na relação que elas têm com o comércio, considerado nas revoluções que houve no mundo», p. 212-282, capítulo III, «De como as necessidades dos povos do sul são diferentes das dos povos do norte», p. 214-215; esta edição das Oeuvres de Montesquieu pertencia a Lucien Febvre e ainda se encontra na posse do seu filho.8. Ibid., t. II, livro XXI, capítulo XXI, «Descoberta de dois novos mundos; estado da Europa a este respeito», p. 269-274, p. 274; a frase termina do modo seguinte: «mesmo quando elas são mais inúteis e só se as tem por ostentação.»9. Ibid., t. II, livro XVII, «De como as leis do serviço político estão em relação com a natureza do clima», p. 98-108, capítulo III, «Do clima da Ásia», p. 99-103, p. 102: «Daqui se segue que na Ásia as nações se opõem às nações do forte para o fraco; os povos guerreiros... “361LUCIEN FEBVRE10. Md., t. II, livro XXI, capítulo XXI, p. 273.11. Ibid., t. I, livro VIII, «Da corrupção de princípios de três governos», p. 185-212, capítulo VIII, «Perigo de corrupção do princípio do governo monárquico», p. 195-200, p. 195.12. Ibid., t. II, livro XIII, «Das relações que a cobrança de tributos e o montante dos rendimentos públicos têm com a liberdade», p. 1-24, capítulo XVII, «Da aprendizagem das tropas», p. 18-19, p. 19.13. Charles de Secondat, barão de Montesquieu, Cahiers (1716-1755). Textes recueillis et presentes par Bernard Grassei, entièrement revus sur lês manuscrits par A. Masson, Paris 1941, p. 9-10; esta citação é igualmente utilizada por Lucien Febvre no seu curso «Honra ou pátria?», lição XII bis; ver: Lucien Febvre, «Honneur et Patrie», op. cit., p. 153, 263.14. Charles de Secondat, barão de Montesquieu, Cahiers (1716-1755), p. 10; Lucien Febvre, «Honneur et Patrie», op. cit., p. 263.15. Charles de Secondat, barão de Montesquieu, Cahiers (1718-1755). op. cit., p. 11.16. Ibid., p. 181.17. Ibid.’, a citação completa é a seguinte: «Poder-se-ia comparar Carlos XII, rei da Suécia, ao ciclope da fábula, que tinha tanta força, mas era cego. O mesmo rei, depois de ter durante muito tempo abusado dos seus sucessos, foi menos que um homem nos seus reveses, isto é, nesse estado da vida em que deveria ser mais homem. O mesmo, sempre no prodígio, e nunca na verdade. Enorme, e não grande.»18. Ibid., p. 182.19. Ver: Voltaire, Éloge fúnebre dês officiers morts dans la guerre de 1741, em Oeuvres completes, Paris, P. Dupont, 1823-1827, 70 vol. 2. vol. de índices, t. XXI, Siècle de Louis XV, Paris, 1823, p. 438-458, p. 443: «Que tinham pois a mais estes

centuriões e estes tribunos das legiões romanas? Em que é que os superavam, senão talvez no amor invariável pela disciplina humana? É verdade que os antigos Romanos eclipsaram todas as outras nações da Europa, quando a Grécia foi enfraquecida e desunida e quando os outros povos eram ainda bárbaros destituídos de boas leis, sabiam combater e não sabiam fazer a guerra, eram incapazes de se reunir a propósito contra o inimigo comum, privados de comércio, privados de todas as artes t de todos os recursos. Ainda nenhum povo igualou os antigos Romanos. Mas a Europa inteira vale hoje muito mais do que esse povo vencedor e legislador; quer consideremos tantos conhecimentos aperfeiçoados, tantas novas invenções; o comércio imenso e hábil que abarca os dois mundos; tantas cidades opulentas erguidas em lugares que eram desertos no tempo dos cônsules e dos Césares; quer lancemos os olhos sobre estes exércitos numerosos e disciplinados que defendem vinte reinos organizados; quer penetremos na política sempre profunda, sempre actuante que mantém a balança entre tantas nações. Enfim, a própria cobiça que reina entre os povos modernos, que excita o seu génio e anima as suas obras, serve também para elevar a Europa acima do que ela esterilmente admirava na antiga Roma, sem ter a força nem sequer o desejo de a imitar. Mas, de tantas nações, haverá uma que possa gabar-se de encerrar no seu seio um número de oficiais como os nossos?»; não pudemos identificar a edição das obras de Voltaire utilizada por Lucien Febvre; com efeito, o catálogo da Biblioteca Nacional de França não cornporta a edição das obras completas de Voltaire da casa Garnier.20. Ver: Voltaire, L’A. B. C., ou Dialogues entre A. B: C., traduit de l’anglais de M. Huet, 1768, em Voltaire, Oeuvres completes, op. cit., t. XXV, Dialogues et entretiens philosophiques, Paris, 1824, p. 232-364, p. 232, nota: «Ao enviá-los para impressão na data de 1768, o autor mandou pôr na primeira edição a data de 1762. É verosímil que esta data de 1762 seja suposta. Sendo362A EUROPAcitado no décimo sexto destes diálogos UHomme aux quarente écus, que só saiu em 1767, é evidente que o A, B, Cê posterior a este romance.»21. Ibid., «Sétima conversa. De como a Europa moderna vale mais que a Europa antiga», p. 291-296; p. 291-292: «C. Sereis vós ousado o bastante para me afirmardes que vós, Ingleses, valeis mais que os Atenienses e os Romanos; que as vossas lutas de galos ou de gladiadores, num recinto de tábuas podres, ganham ao coliseu? Que os remendões e os bufões que desempenham os seus papéis nas vossas tragédias são superiores aos heróis de Sófocles? Que os vossos oradores fazem esquecer Cícero e Demóstenes? Enfim, que Londres está mais bem organizada do que a antiga Roma? - A. Não; Mas Londres vale dez mil vezes mais do que valia então e o mesmo quanto ao resto da Europa. - B. Ah! Exceptuai, rogo-vos, a Grécia, que obedece ao Grão-Turco, e a infeliz parte de Itália que obedece ao papa. - A. Exceptuo-as eu também; mas pensai que Paris, que é apenas uma décima parte menor que Londres, não passava então de uma vilória bárbara. Amsterdam era um pântano, Madrid um deserto; e da margem direita do Reno até ao golfo da Bótnia era tudo selvagem; os habitantes destes climas viviam, como os Tártaros sempre viveram, na ignorância, na fome, na barbárie. Contais por coisa pouca que hoje haja filósofos no trono, em Berlim, na Suécia, na Polónia, na Rússia e que as descobertas do nosso grande Newton se tenham tornado o catecismo da nobreza de Moscovo e de Petersburgo?»22. A palavra «civilização» está em maiúsculas no manuscrito de Lucien Febvre; ver supra, lição III, nota 3, p. 59.23. Ver: Voltaire, L’A. B. C., ou Dialogues entre A. B: C., traduit de 1’anglals de M. Huet, 1768, em Voltaire, Oeuvres completes, op. cit., t. XXXV, p. 292-293: «C. Confessar-me-eis que não é a mesma coisa nas margens do Danúbio ou nas do Manzanares; a luz veio do Norte, porque vós, gentes do Norte, pois sois gentes do Norte relativamente a mim que nasci no quadragésimo quinto grau: mas todas estas

novidades farão com que sejamos mais felizes nestas terras do que quando César desembarcou na vossa ilha, onde vos encontrou seminus? - A. Creio-o firmemente; boas casas, boas roupas, boa carne, com boas leis e liberdade valem mais que a fome, a anarquia e a escravidão. Os que se sentirem descontentes em Londres mais não têm que ir para as Órcades; aí viverão como nós vivíamos em Londres no tempo de César: comerão pão de aveia e degolar-se-ão à facada por um peixe seco ao sol e por uma cabana de palha. A vida selvagem tem os seus encantos, aos que a pregam só resta dar o exemplo.»24. Ver: Voltaire, Lê siècle de Louis XIV, em Voltaire, Oeuvres completes, op. cit., t. XIX e XX, Paris, 1823, t. XIX, capítulo II, «Dos estados da Europa antes de Luís XIV», p. 230-255, p.230: «Há já muito tempo que se podia olhar a Europa cristã (menos a Rússia) como uma espécie de grande república dividida por vários Estados, una monárquicos, outros mistos; estes aristocráticos, aqueles populares, mas todos em correspondência uns com os outros; todos com um mesmo fundo de religião, embora divididos em várias seitas; todos com os mesmos princípios de direito público e de política, desconhecidos nas outras partes do mundo. É por estes princípios que as nações europeias não fazem escravos os seus prisioneiros, que elas respeitam os embaixadores dos seus inimigos, que elas estão de acordo quanto à preeminência e a alguns direitos de certos príncipes, como do imperador, dos reis e outros potentados menores; e que elas se põem de acordo sobretudo na sábia política de manter entre elas, tanto quanto possível, uma balança igual de poderes, empregando constantemente as negociações, mesmo no meio da guerra, e mantendo reciprocamente embaixadores ou espiões menos honrosos que podem avisar de todo o decurso dos desígnios de uma só, dar ao mesmo tempo o alarme à Europa e preservar363LUCIEN FEBVREas mais fracas das invasões que o mais forte está sempre pronto a empreender.»25. Ver supra, nota 24.26. Ver supra, nota 24.27. Ver: Voltaire, Essai sur lês moeurs, em Voltaire, Oeuvres completes, op. cit., t. XV, XVI, XVII e XVIII, Paris, 1823, t. XVIII, Essai sur lês moeurs, tome quatrième, capítulo CXCVII, «Resumo de toda esta história até ao tempo em que começa o belo século de Luís XIV», p. 430-448, p. 441.28. Ver; André Monglond, Lê Préromantisme /rançais, Grenoble, 1930, 2 t., t. I, Lê Héros préro,- mantique, t. II, Lê maítre dês ames sensibles; o essencial do tomo II é consagrado à influência de Rousseau na literatura e na filosofia do século XVIII.29. Ver: Jean-Jacques Rousseau, Considérations sur lê gouvernement de Pologne et sur sã réfor, mation projetée en avril 1772 em Oeuvres de J.-J. Rousseau, Paris, 1817, p. 519-589, capítulo i. In, «Aplicação», p. 526-531, p. 526-527; esta edição das obras de Jean-Jacques Rousseau pertencia a Lucien Febvre e figura ainda na biblioteca do seu filho.30. Ver: Comenius, Panegersia sive Excitatorium universale...; a Biblioteca Nacional de França possui apenas uma edição deste texto, publicada com outros opúsculos de Comenius na obra de 1702: Jan-Amos Komensky, dito Comenius, Historia fratrum Boohemorum, eorum ordo et disciplina ecclesiastica... cum Ecclesiae Bohem. Ad Anglicanem paraenesi. Accedit ejusdem auctoris Panegersia, sive Excitatorium universale... quomodo communis rerum humanaram emendatio suscipi atque fieri possit, ex opere ejus, ut vocal, Pansophico, nondum edito desumtum. Praemissa est praefatio J o. Francisci Buddei, ...de instaurando disciplina ecclesiasi:, tica, Halae, 1702; sobre Comenius, ver: La Grande Encyclopédie, op. cit., t. XII, Paris, s.d., p.13-15.31. Ver: Charles de Secondat, barão de Montesquieu, L’Esprit dês Lois, op. cit., t. In, livro XXV «Das leis, na relação que elas têm com o estabelecimento da religião de

cada país e a sua . política externa», capítulo XV, «Da propagação da religião», p. 78-101, p. 100-101: «Um Europeu pode tornar-se agradável por certos conhecimentos que proporciona: isso é bompara os começos [...]; Jean-Jacques Rousseau, ver supra, nota 29.32. As duas palavras «humanidade» e «cristandade» estão em maiúsculas no manuscrito de Lucien Febvre; ver supra, nota 6, p. 359.33. Não pudemos identificar esta citação.34. Para esta passagem, ver: Ferdinand Brunot, Histoire de la langue française dês origines à 1900, t. VI, Lê XVIIf siècle, primeira parte, op. cit., p. 120-121: «Cosmopolita aplica-se tanto aos banqueiros, aos comerciantes como às grandes almas generosas de que fala Rousseau»; a nota 1 da página 121 dá o texto da citação de Jean-Jacques Rousseau tirado do Discours sur inégalité: «Comiseração natural que, perdendo de sociedade para sociedade quase toda a força > que tinha de homem a homem, já habita apenas algumas almas ”cosmopolitas” que transpõem as barreiras imaginárias que separam os povos e que, a exemplo do Ser soberano que as criou, abarcam todo o género humano... »35. Sobre este ponto, ver: Ferdinand Brunot, Histoire de la langue française dês origines à 1900, t. VI, Lê XVIII6 siècle, primeira parte, op. cit., p. 120: «Há porém que fazer justiça a Fénelon. Podemos atribuir-lhe ”filantropia”, epíteto programático que arvoram as Sociedades criadas sob os auspícios do duque de Orleães nas vésperas da Revolução.»36. Para «cosmopolita», ver: Ferdinand Brunot, Histoire de la langue française dês origines à 1900, t. VI, Lê XVIIf siècle, primeira parte, op. cit., p. 120-121, supra, nota 34, e infra, nota 39.364A EUROPA37. Esta citação é talvez tirada da obra de Ferdinand Brunot: Ferdinand Brunot, Histoire de la langue française dês origines à 1900, t. VI, Lê XVllf siède, primeira parte, op. cit., p. 119: «Holbach, Diderot, o abade Terrasson definiram e celebraram o ”patriotismo humanitário”. O abade Raynal pronunciou: ”O Universo é a pátria de um grande homem.»38. Para esta passagem, ver: Ferdinand Brunot, Histoire de la langue française dês origines à 1900, t. VI, Lê XVllf siècle, primeira parte, op. cit., p. 119-120: «O homem que deu o primeiro impulso a este movimento de aproximação foi o Abade de Saint-Pierre. A novidade das palavras não o assustava, tal como a novidade das coisas. Todas as fórmulas de esperança que foram compondo pouco a pouco o que alguns chamaram a ”bruma das ilusões europeias” devem-lhe o seu aparecimento: ”Sociedade europeia”, ”Organização europeia”, ”República europeia”, ”Tribunal europeu”»; a expressão «bruma das ilusões europeias» é atribuída na nota 1 da página 120 a Turgot.39. Para esta passagem, ver: Ferdinand Brunot, Histoire de la langue française dês origines à 1900, t. VI, Lê XVllf siècle, primeira parte, op. cit., p. 120-121: «Cosmopolita aplica-se tanto aos banqueiros, aos comerciantes como às grandes almas generosas de que fala Rousseau. O mesmo quanto a ”cidadão do mundo”, expressão esquecida desde os estóicos, que reaparece. Turgot toma-a desfavoravelmente e Du Belloy protesta contra a ideia que ela representa [...]. Cidadãos do universo encontra-se em Saint-Simon. Tê-la-ia lido em La Fontaine?»; a nota 4 da página 121 precisa: «Aplica-se ao príncipe de Vaudémont. A edição de Boilisle remete com razão para La Fontaine que, em 1687, se qualificava de ”sensato cidadão deste vasto universo” .»; ver: Pierre Paul François Joachim Henri Mercier de Ia Rivière ou Lê Mercier de Ia Rivière, L’Ordre naturel et essenciel dês sociétés politiques..., Londres / Paris, 1767, 2 vols., in-12; o catálogo da Biblioteca Nacional de França assinala igualmente uma outra edição de 1767, publicada em Londres num único volume in-4°: sobre Mercier de Ia Rivière, ver: La Grande Encyclopédie, op. cit., i. XXIII, Paris, s.d., p. 697.

40. A palavra «civilização» está em maiúsculas no manuscrito de Lucien Febvre.

Lição XXII

1. As duas palavras «humanidade» e «cristandade» estão em maiúsculas no manuscrito de Lucien Febvre; Jean-Jacques Rousseau, Considérations sur lê gouvernement de Pologne et sur sã réformation projetée en avril 1772, ver supra, lição XXI, notas 29 e 31, p. 240-1; Charles de Secondat, barão de Montesquieu, Cahiers (1716-1755), op. cit., ver supra, lição XXI, notas 13 e14, p. 235.2. Ver supra, lição XXI, notas 34 e 36, p. 242.3. Ver supra, lição XXI, nota 37, p. 242.4. Ver: Charles de Secondat, barão de Montesquieu, Cahiers (1716-1755), op. cit., p. 7, 14, 13.5. Ver: Ernest d’Hauterive, Journal d’émigration du comte d’Espinchal publié d’après lês manuscrits originaux por, Paris, 1912, p. 528-529: «Fevereiro de 1793. - Soube indirectamente, no fim deste mês, notícias das minhas terras do Auvergne. Venderam tudo no castelo que eu habitava. Há perto de três séculos que era a morada habitual dos meus antepassados. A casa estava cheia de móveis e desde a morte do meu pai eu tinha aumentado consideravelmente o que encontrara. Garantem-me que todo o meu mobiliário de Massiac montou a 76 000 libras, o que me parece enorme. O que mais lamento é uma biblioteca de cerca de 6 000 volumes que365LUCIEN FEBVREcontinha obras preciosas, tais como a Encyclopédie em 33 volumes, Moreri, o padre Anselmo; uma soberba edição de Buffon in-4°, bem como uma belíssima e muito completa de Voltaire, de Rousseau, etc., 10 vol. gr. in-fólio das viagens de Nápoles e da Sicília, da Grécia, da Suíça, de França, etc., tendo-me chegado cada volume a mais de 300 libras. Todas estas perdas são irreparáveis. Além isso, já muitos dos mais ricos senhores do reino passaram pela mesma infelicidade f...] .»; Lucien Febvre utiliza igualmente esta obra, por várias vezes, para o seu curso «Honra ou pátria?»; ver: Lucien Febvre, «Honneur et Patrie», op. cit., p. 165-166, 269-270 em particular.

6. Ver: Charles de Secondat, barão de Montesquieu, Cahiers (1716-1755), op. cit., p. 6-7.

7. Ver: Antoine Rivaroli, dito conde de Rivarol, De l’Universalité de Ia langue française; discours qui a remporté lê prix à 1’Académie de Berlin, Berlim/Paris, 1784, in-8°, 92 p.; esta obra foi reeditada recentemente com outros opúsculos de Rivarol, segundo o texto reproduzido nas obras completas de Rivarol editadas em 1808: ver: Rivarol, Pensêes diverses, suivi de Discours sur1’Universalité de Ia langue française, Lettre sur lê globe aérostatique, edição apresentada, fixada e anotada por Sylvain Menant, Paris, 1998, p. 101-157.

8. Lucien Febvre, como indica nas sua notas de trabalho, cita o opúsculo do marquês Domenico Caraccioli, embaixador de Nápoles na corte de Luís XVI, Paris, lê modele dês nations étrangères, ou l’Europe française, segundo a obra de Louis Réau, L’Europe française au siècle dês Lumières, Paris, 1938 (A Evolução da humanidade, síntese colectiva, LXX): este último indica ora que foi publicada em 1776 (p. 1), ora em 1777 (p. 20, 32): ver também p. 5, 31; ver: L’Esprit de Ia France et lês Maximes de Louis XIV découvertes à V Europe, Colónia, Marteau,1688.

9. Não pudemos encontrar esta citação de Saint-Simon; ver: Louis de Rouvroy, duque de Saint-Simon, Mémoires, nouvelle édition collationée sur lê manuscrit autographe, augmentée dês additions de Saint-Simon au Journal de Dangeau et de notes et appendices, por Arthur de Boilisle, Paris, 1879-1929, 41 vol.

10. Jean-Jacques Rousseau, Extrait du projet de paix perpétuelle de M. 1’abbé de Saint-Pierre, em Oeuvres de J.-J. Rousseau, citoyen de Genève, Paris, 1817, t. In, segunda parte, p. 369-400: Projet de paix perpétuelle, p. 373-393, Jugement sur Ia paix perpétuelle, p. 393-400.

11. Ferdinand Brunot, Histoire de Ia langue française dês origines à 1900, t. IX, La Révolution et1’Empire, segunda parte, Lês Événements, lês institutions et Ia langue, Paris, 1937, p. 640, nota1: «Que palavra, outrora! E que palavra hoje! Quando saímos do colégio e de ler as belas arengas de Tito Lívio, tínhamos então sobre a palavra pátria quase a mesma ideia que temos

__ hoje. Mas ao cabo de 20 anos de estarmos entregues aos negócios e aos homens que os fazem, lembrávamo-nos da pátria como das botas de sete léguas do ogre... De onde vinha então esta indiferença? - De onde? De que a palavra pátria não passava então de um som vão; porque não há pátria onde há... bastilhas; não há pátria onde há Padr...s e Pari...tos; não há pátria, enfim, onde não há pátria. Mas hoje... haverá uma pátria; será tudo para nós; seremos tudo para ela.»

12. Não pudemos identificar com segurança esta citação.

13. Lucien Febvre vai buscar esta citação à obra de Ferdinand Brunot; ver: Ferdinand Brunot, Histoire de Ia langue française, t. IX, segunda parte, op. cit., p. 17; Lucien Febvre utiliza igualmente esta citação no seu curso sobre «Honra ou pátria?»; ver: Lucien Febvre, «Honneur et Patrie», op. cit., p. 157, 266.

14. Ver;,Chatl_els NicQullaud, Réçits.d’tine tante, Mémoires d,e.Ia comtesse de Boigne, née d’Os-

366

Í3f A EUROPA

mond, publiés d’après lê manuscrit original por, t. I, 1781-1814, Paris, 1907, p. 205, a citação exacta é a seguinte: «Por mim, não sei bem o que era, inglesa, creio, mas certamente não francesa»; Lucien Febvre utiliza esta mesma citação no seu «Honra ou pátria?»; ver: Lucien Febvre, «Honneur et Patrie», op. cit., p. 164-165, 269.

15. Para todo este parágrafo, ver: Lucien Febvre, «Honneur et Patrie», op. cit., p. 163-167, 267-271.

16. Esta imagem é já empregue por Lucien Febvre na sua obra sobre o Reno; ver: Lucien Febvre, Lê Rhin, op. cit., p. 199.

17. Esta passagem é tirada de Ferdinand Brunot; ver: Ferdinand Brunot, Histoire de Ia langue française, t. IX, segunda parte, op. cit., p. 641: «Um gramático tinha tido a ideia de criar a palavra «leino». Chamamos reino, dizia ele, a um país regido soberanamente por um rei; a um país onde só a lei manda chamarei Leino. Felicitaram-no pela sua invenção bizarra, mas ”análoga” às ideias que reinavam.»

18. Ver sobre este ponto: Ferdinand Brunot, Histoire de Ia langue française, t. IX, segunda parte, op. cit., p. 636, nota 2: «O próprio Rei, na sua resposta de 4 de Outubro de 1789, distinguia Nação de Estado, isto é, de si próprio e da sua administração: ”Num momento”, disse, ”em que convidamos a Nação a vir em socorro do Estado” (Point du Jour, In, p. 214, n° XCIX, 6 de Outubro de 1789).»

19. Ver sobre este ponto: Ferdinand Brunot, Histoire de Ia langue française, t. IX, segunda parte, op. cit., p. 637-638: «A ”questão do botão” suscitou uma acesa - e cómica - disputa a respeito da divisa La Nation, Ia Loi, lê Rói. Primeiro tratava-se apenas de inscrever estas duas palavras, La Loi, lê Rói, no interior da coroa cívica gravada nos botões do uniforme da Guarda Nacional. Havia que acrescentar La Nation. A Assembleia Nacional deliberou e emitiu um decreto (23 de Dezembro de 1790). Mas as três palavras não cabiam no espaço previsto. Os fabricantes de botões avistaram-se com a Comissão da agricultura e comércio. Que fazer? Suspender? A questão baixou à Comissão militar, etc.»

20. Ibid., p. 139, 638; ver também: Lucien Febvre, «Honneur et Patrie», op. cit., p. 157, 266.

21. Sobre este ponto, ver: Ferdinand Brunot, Histoire de Ia langue française, t. IX, segunda parte, op. cit., p. 639, nota 1.

22. Ibid., p. 637: «A 9 de Julho de 1789, Grégoire falou na Tribuna do crime de ”lesa-Majestade Nacional”. Nada indica melhor que esta expressão a categoria assumida pela Nação. A assimilação era desejada. com efeito, crime de lesa-Nação, que foi adoptado, não dizia outra coisa.»

23. Ver: Histoire socialiste de Ia Révolution française (1789-1900), sob a direcção de Jean Jaurès, Paris, s.d., 13 vol., t. II, Jean Jaurès, La Législative (1791-1792), Paris, s.d., p. 882: «A 29 de Dezembro, Brissot recomeça a batalha. A propósito da votação dos 20 milhões pedidos pelo ministro da Guerra, expõe de novo num longuíssimo discurso toda a política externa e interna. Repete sobre as disposições da Europa o que tinha dito a 20 de Outubro. Não era de temer uma agressão da maior parte dos soberanos. Aliás, os povos são amigos da França revolucionária. ”Não devemos limitar-nos a examinar agora as pequenas paixões, os pequenos cálculos, tanto dos reis como dos

ministros. A Revolução Francesa alterou toda a diplomacia. Embora as nações ainda não sejam livres, todas pesam agora na balança política; os reis são forçados a contar os seus votos para seja o que for... O sentimento da nação inglesa sobre a Revolução já não oferece dúvidas: ama-a... Na Hungria, o servo luta conta a aristocracia, e a aristocracia contra o trono... Não somos esse punhado de burgueses batávios que querem conquistar a liberdade ao stathouder sem a partilhar com a classe indigente... Em vão os gabinetes políticos multiplicarão as negociações secretas; em vão agitarão toda a Europa para atacar a

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LUCIEN FEBVRE

r França, todos os seus esforços falharão porque, em útlima análise, é preciso ouro para pagar aos soldados, soldados para combater e uma grande concertação para ter muitos soldados. Ora

f os povos já não estão dispostos a deixar-se esgotar por uma guerra de reis, de nobres e, sobretudo, por uma guerra imoral, ímpia.”»

Lição XXIII

1. Sobre este ponto, ver: Ferdinand Brunot, Histoire de Ia langue française, t. IX, segunda parte, r op. cit., p. 639.

2. Ver supra, lição XXII, nota 16, p. 254.

3. Ver supra, lição XXII, nota 19, p. 254.

4. Ver supra, lição XXII, nota 17, p. 254.

5. Ver supra, lição XXII, notas 20 e 21, p. 254.

6. Ver supra, lição XXII, nota 22, p. 254.

7. Esta fórmula é tirada de Ferdinand Brunot, Histoire de Ia langue française, t. IX, segunda parte, op. cit., p. 636: «Sois da Nação?, é dado, a partir de 1789 como palavra de passe. com efeito, é essa a questão fundamental. A resposta classifica um homem.»

8. Ver supra, lição XXII, nota 23, p. 255.

9. Md.

10. Ver o artigo de Brissot de 15 de Dezembro de 1791, citado por Jaurès: Jean Jaurès, La Législative, op. cit., p. 882-883: «À guerra! À guerra!, é esse o grito de todos os patriotas, é esse o

E voto de todos os amigos da liberdade espalhados pela superfície da Europa que já só aguardam esta feliz diversão para atacarem e derrubarem os tiranos.»

11. Ver: Jean Jaurès, La Législative, op. cit., p. 886: «Uns dias antes, o orador popular Louvet exclamara na Assembleia, com um lirismo extraordinário: ”À guerra! Que a França se levante

«” em armas já. Será que a coligação dos tiranos está formada? Ah! Melhor para o universo! Já

milhares de soldados, rápidos como o raio, se precipitam sobre todos os domínios dos feudais!

*’• Só se detêm onde acabar a servidão; rodeiem-se os palácios de baionetas; levemos a Declaração

”’ dos Direitos do Homem às casas; o homem, em todos os lugares instruído e liberto, há-de

* retomar o sentimento da sua dignidade original! Erga-se e respire o género humano! Sejam <*• todas as nações uma só; e quer esta incomensurável família de irmãos envie os seus sagrados

* plenipotenciários jurar no altar da igualdade de direitos, da liberdade de culto, da eterna filosofia, da soberania popular, jurar a paz universal!”»

12. Ver: Arthur Chuquet, Lettres de 1793. Prímière série, Paris, 1911 /Biblioteca da Revolução e do Império, In), p., 268.

13. Não pudemos identificar esta citação.

14. Não pudemos identificar esta citação.

15. Para esta passagem, ver: Histoire socialiste, op. cit., t. IV, Jean Jaurès, La Convention, H, La mort du rói, Ia chute dês Girondins, idées sociales de Ia Convention, Gouvemement révolu-

* tionnaire, 1793-1794 (9 thermidor). Paris, s.d., p. 1512-1521, em particular p. 1512: «mais ’” excêntrico, mais exterior à Revolução parece o alto pensamento de Anacharsis Clootz. É no ”; meio dos risos irónicos e das interrupções da Convenção que ele lê, na sessão de 26 de Abril, «••’ o seu famoso manifesto sobre a soberania una e indivisível do género humano, sobre a organi$• zação unitária de todo o planeta. Não é que tudo isso repugnasse à Convenção, que concebia

368

«WW A EUROPA

as nações livres enquanto órgãos de uma mesma humanidade. Mas as posições de Cloots, que propunha a fusão de todos os povos numa única república humana, numa só nação de que as nações presentes seriam meras secções, ”departamentos”, estavam tão longe que à maioria dos delegados pareciam um jogo intelectual. Além disso, no momento em que a França revolucionária lutava tão gloriosamente mas tão penosamente contra quase toda a Europa e contra os preconceitos dos povos, como contra a sanha dos reis, esta espécie de nacionalismo humano podia parecer a alguns uma diversão, ou mesmo um enfraquecimento vital do nacionalismo revolucionário francês»; a frase de Rabaut de Saint-Étienne a propósito de Anacharsis Cloots figura na mesma página: «Podemos dizer (por mais girondino que Cloots fosse) que a Gironda, que por momentos embalara o mundo na sua esperança, reconhecia nele um dos seus quando Rabaut de Saint-Étienne escrevia: ”Surgiu em França um desses homens que sabem alçar-se do presente para o futuro: anunciou que chegaria o tempo em que todos os povos seriam um só, em que acabariam os ódios nacionais; previu a república dos homens e a nação única; intitulou-se orgulhosamente orador do género humano e disse que todos os povos da terra eram seus constituintes; [...] era prussiano, e nobre, e tornou-se um homem.”»

16. Ibid., p. 1515-1516; a réplica de Ducos, citada por Jaurès, p. 1516, é a seguinte: «Exijo a união da lua e da terra.»

17. Ibid., p. 1516.

18. Ver: Philippe Joseph Benjamin Buchez e P. C. Roux. Histoire parlementaire de Ia Révolution française au Journal dês assemblées nationales depuis 1780 jusqu’à 1815 contenant Ia narration dês événements..., precede d’une introduction sur 1’histoire de France jusqu’à Ia convocation dês États gênéraux. Paris, 1834-1838, 40 vol., t. XXVI, Paris, 1836, p. 155-157, p. 156: «O orador [Anacharsis Clootz] queria que, para apagar todos os pretextos e todos os mal-entendidos, e para tirar aos tiranos, bem como aos nossos inimigos, uma arma pérfida, se suprimisse ”o nome francês, a exemplo do nome borguinhão, normando, gascão”. Pensa que seria muito sensato, muito político, muito conveniente adoptar o nome Germano, inteiramente em relação com uma verdadeira união fraterna, eminentemente própria para nos reconciliar com uma vasta terra vizinha»; esta referência é dada por Lucien Febvre nas suas notas de trabalho.

19. Para toda esta parte sobre a imprensa, ver: Eugène Hatin, Bibliographie historique et critique de Ia presse périodique française ou catalogue systématique et raisonné de tous lês écrits périodiques de quelque valeur publiés ou ayant circule en France depuis l’origine du Journal jusqu’à nos jours, avec extraits, notes historiques, critiques et morales, indication dês prix que lês principaux journauux ont atteints dans lês ventes publiques, etc., precede d’un essai historique et statistique sur Ia naissance et lês progrès de Ia presse périodique dans lês deux mondes, Paris, 1866.

20. Ver: Eugène Hatin, op. cit., p. 39: UEurope savante, Haia, 1718-1920, 12 vol., in-8°; Histoire littéraire de VEurope, contenant Vextrait dês meilleurs livres, un calagogue choisi dês ouvrages nouveaux, lês nouvelles lês plus interessantes de Ia republique dês lettres et lês pièces fugitives lês plus curieuses, 6. vol. in-8°; p. 42: Bibliotèque raisonnée dês ouvrages dês savants de VEurope, por Armand de Ia Chapelle, Barbeyrac e Desmaizeaux, Amsterdam, 1728-1753, 52 vol. in-8°, com dois índices.

21. Ibid., p. 48: Cazette littéraire de VEurope, por Arnaud e Suard, 1764-1766, 8 vol. in-8°.

22. Ibid., p. 74: Courrier de l ’Europe, gazeta anglo-francesa por Serre de Latour, Morande, Brissot, conde de Montlosier, Londres e Bolonha, 1776-1792, 32 vol. in-4”; para Lê Patriote français, ver infra, nota 26. ,

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LUCIEN FEBVRE

23. Ibid., p. 79-81: Journal general de VEurope. Política, comércio agricultura, por P.H.M. Lebrun (Tondu). J. J. Smits e outros, Liège e Herve, l de Junho de 1785-1790, 29 vol in-8°; segundo a notícia, parece que se trata, em ambos os casos, do mesmo jornal.

24. Ibid., p. 73: Journal historique et polítique dês principaux événements dês différentes cours de VEurope, Genebra, 10 de Outubro de 1772-10 de Agosto de 1792, 79 vol., in-12°; ver igualmente p. 219.

25. Ibid., p. 40: «Em 1722, a Suíça teve determinado jornal literário francês, o Nouvelles littéraires de Ia Suisse, cuja publicação foi muito irregular e que, ao cabo de dez anos, deu lugar ao Mercure suisse ou Journal helvétique de Neuchâtel, o qual, tendo-se arrastado até 1775, foi nessa data rendido pelo botânico Chaillet com o título Nouveau Journal de Ia littérature de VEurope et surtout de Ia Suisse e foi até 1784; ao todo, 158 volumes.»

26. Ibid., p. 94-96: Lês Actes dês apôtres, Novembro de 1789-Outubro de 1791, 311 nos., em 10 l&-, ou 11 vol. in-8°; p. 110: Lês Annales patríotiques et littéraires de Ia France e assuntos políticos

da Europa, jornal livre, por uma sociedade de escritores patriotas e dirigido por M. Mercier, l de Outubro de 1789-30 do frimário ano 3, 11 vol. in-4°; p. 114-115: La Chronique de Paris,24 de Agosto de 1789-25 de Agosto de 1793, 8 vol. in-4°; p. 116: Lê Courrier de Paris, ou o Publicista francês, jornal político, livre e imparcial, por uma sociedade de patriotas (por Sainthi, aliás Descentis), 1789-1790, 3 vol. in-8°; p. 123: Lê Courrier de Provence, para dar sequência ao Lettres..., termina a 30 de Setembro de 1791, no 350° n”, ao todo 17 vol. in-8°; p. 116: Lê Courrier de Versailles à Paris et de Paris à Versailles, por Gorsas, 5 de Julho de 1789, t. I-IV,

*$- 4. vol in-8°; p. 117-120: Courrier français por Poncelin, Junho de 1789-fructidor ano 5, in-8°; p. 139-131: Journal dês dêbats et décrets, 29 de Agosto de 1789- floreai ano 5, 93 vol. in-8°; p. 125-127: La Gazette nationale ou Lê Moniteur universel, 5 de Maio de 1789-1865, in-fol.. e gr. in-fol. desde l de Janeiro de 1853; p. 142-143: Lê Patriote français por Brissot, Abril de1789, in-8°; p. 144-147: Révolutions de France et de Brabaní e dos reinos que, pedindo uma

aí Assembleia nacional e arvorando a roseta, merecerem um lugar nos fastos da liberdade, por Camille Desmoulins, da sociedade da Revolução, 28 de Novembro de 1789-Julho de 1791, 86 nos. in-8°; p, 147-149: Lês Révolutions de Paris, dedicado à nação e ao distrito dos Petits-Augustins, 12 de Julho de 1789-28 de Fevereiro de 1794 (10 ventoso ano 2), 17 vol. in-8°.

27. Ibid., p. 97-100: L’Ami du Peuple, por Marat, 12 de Setembro de 1789- 14 de Julho de 1793, in-8°; p. 113: La Cause du peuple soumise au tribunal de Ia Raison, 2 nos. in-8°; p. 151: Lê Tribun du peuple, por N. de Bonneville, 4 nos. in-8°; p. 183-185: L’Orateur du peuple, Maio de 1790-Setembro de 1792, 14 vol. in-8°; p. 189: Lê Tribun du peuple ou o Publicista nacional,

-»f jornal anti-aristocrático por M. Ma***, autor de várias obras patrióticas, nos. 1-4, 29 de Março-1 de Abril [1790] in-8”; p. 207: Lê Défenseur du peuple, por Cousin Jacques,

9 de Julho-29 de Setembro de 1791, 83 nos. in-8°; Lê Déjeuner patriotique du peuple, 20 de Janeiro- 24 de Abril, 91 nos. in-8°; p. 209: L’Instituteur du peuple, in-12.

28. Ibid., p. 68-69: Journal dês révolutions de VEurope em 1789 e 1790, Neuwied-am-Rhein, ed. Société Typographique, e em Estrasburgo, ed. Treuttel, 14. t em 7 vol., in-8°.

29. Ibid., p. 150: Révolutions de VEurope, na sequência das de Paris, por M. Tournon, autor das Révolutions de Prudhomme, 11 de Maio-7 de Junho, 24 nos. in-8°; p. 171: La Gazette dês cours de VEurope. Lê Royaliste ami de Vhumanité, Setembro 1790-Agosto 1792, in-4°: trata-se de um só e mesmo jornal e não de dois, como parece dizer Lucien Febvre.

30. Estas duas obras são citadas segundo: André Monglond, La France révolutionnaire et impériale, Annales de bibliographie méthodique et descriptive dês livres illustrés, Grenoble, 1930-1938,

370

*SV A EUROPA

5 t., t. I, 1789-1790, Grenoble, 1930, col. 491: «[Dumont-Pigalle e Marron.] Lês Prussiens dénoncés à 1’Europe par une société de témoins et de viclimes de leur invasion de Ia province de Hollande, Paris, Gueffier, 1790, in-8°»; col. 908: «[Bourgoing (Barão J.-F. de).] Jugement de 1’Europe impartiale sur sur Ia Révolution de Ia France, par un Suédois, ami de cette nation, Upsala, in-8°, 96 p.

31. Esta obra é citada segundo: André Monglond, op. cit., col. 25-26: [Aubusson (P.A., Visconde de).] Manifeste de Ia souveraine raison, cette dominatrice du genre humain, à tous lês róis et poíentats de VEurope... Março 1789, in-8°, 69 p. Mesma obra, com uma adição de algumas páginas, que a «Adresse au Clergé welche”, impressa em 1713 e novamente em 1790 com o título ”Ode au Clergé de France”»; ver infra, nota 32.

32. Ver: André Monglond, La France révolutinnaire et impériale, Annales de bibliographie méthodique et descríptive dês livres illustrés, Grenoble, 1930-1938, 5 t.; Lucien Febvre fez uma recensão desta obra: Lucien Febvre, Une révolution: lê romantisme, em Annales d’histoire sociale, t. I (1939), p. 282-287, retomado em Pour une histoire à pari entière, op. cit., p. 752-762; ver: Bertrnad Muller, Bibliographie dês travaux de Lucien Febvre, op. cit., n” 1042, p.126: n°2119, p. 211.

33. As duas palavras «nação» e «nacionalidade» estão em maiúsculas no manuscrito de Lucien Febvre.

Lição XXIV

1. Ver: Eugène Hatin, Bibliographie historique et critique de Ia presse périodique française, op. cit., p. 47-48: Journal étranger, pelo abade Prévost, Grimm, Toussaint, Fréron, Deleyre, Arnaud e Suard, etc., 1754-1762, cerca de 45 vol. In-12; Eugène Hatin, Histoire politique et littéraire de Ia presse en France, avec une introduction historique sur lês origines du journal et de Ia bibliographie générale dês journaux depuis leur origine, Paris, 1859-1861, 8. vol., t. I, p. 93: «contribuir para reunir numa única confederação todas as repúblicas particulares em que se dividia a república das letras que, confinada por assim dizer nos limites de cada povo , reconhecia limites que a política não tinha interesse algum em prescrever-lhe e que ela não devia receber a não ser na medida do espírito humano.»

2. Ibid.

3. Ibid., t. II, p. 304: «Na Alemanha, diz-se, cultiva-se a jurisprudência e as compilações estão extremamente na moda. Em Inglaterra, todas as profissões metem teologia. Em França, disseca-se as frases, compara-se os poetas, dá-se ordens, mandamentos, orações fúnebres, discursos de academia. Um jornal universal, onde se mete aquilo que se produz de melhor em toda a Europa, tanto nas artes como nas ciências, será portanto muito útil.»

4. Ver: Eugène Hatin, Bibliographie historique et critique de Ia presse périodique française, op. cit., p. 51: Nouvelles de Ia Republique dês lettres et dês arts. Janeiro de 1779-1788, grande in-4°: «Esta folha, fundada por Pahin de Champlin de Ia Blancherie [...] tinha a finalidade de dar a conhecer todos os objectos da ciência, da literatura e das artes, em todos os países onde fosse possível estabelecer relações. [...] O Nouvelles de Ia Republique dês lettres era o órgão de uma espécie de círculo artístico

e científico por meio do qual La Blancherie se tinha proposto fornecer aos eruditos e aos artistas o que até então lhes faltara, um centro de encontro, com os meios de se conhecerem e de se darem a conhecer.»

I371

LUCIEN FEBVRE

5. A referência completa desta obra póstuma de Condorcet é a seguinte: Jean Antoine Nicolas de Caritat, marquês de Condorcet, Esquisse d’un tableau historique dês progrès de iesprit humain, obra póstuma publicada por P.-C.-F. Daunou e Mme. M.-L.-S. de Condorcet, Paris, ano In, in-8°, VIII-389 p.

6. Ver supra, lição XXII, nota 7, p. 248: Antoine Rivaroli, dito conde de Rivarol, De 1’Universalité de Ia langue française; discours qui a remporté lê prix à 1’Académie de Berlin, em: Rivarol, Pensées diverses, suivi du discours sur l’universalité de Ia langue française, op. cit., p. 124; «Às produções do espírito somam-se as da indústria; pompons e modas acompanhavam os nossos melhores livros ao estrangeiro porque em toda a parte queriam ser intelectuais e frívolos como em França. Aconteceu portanto que os nossos vizinhos, que incessantemente recebiam móveis, tecidos e modas sempre renovados, não tinham termos para os designar; ficaram como que esmagados sob a exuberância da indústria francesa; de modo que toda a Europa foi tomada por uma espécie de impaciência geral e, para não ficar separada de nós, estudou a nossa língua de todas as maneiras.»

7. Esta citação de Napoleão, como todas as outras citações de Napoleão que Lucien Febvre faz, é tirada da seguinte obra: Napoléon, Vues politiques, introdução de Adrien Dansette, Paris, 1939, p. 429; Lucien Febvre assinalou a publicação desta obra em: Lucien Febvre, Coupons combines, em Annales d’histoire sociale, t. I (1939), p. 442-444, p. 444: «Quanto ao livro intitulado: Napoléon, vues politiques, constitui uma recolha muito interessante de ditos napoleónicos sobre a Doutrina imperial, a Ditadura, os Poderes, a Família, a Religião, a Nobreza, a Instrução e a Economia, o Exército e a Guerra, a Diplomacia. - A escolha é inteligente, a colecção feliz e, coisa rara, o livro é útil»; ver: Bertrand Miiller, Bibliographie dês travaux de Lucien Febvre, op. cit., n° 1089, p. 130.

8. Ver: Napoléon, Vues politiques. op. cit., p. 9-10: Carta ao comissário das guerras Naudin; Julho de 1791, p. 9: «Teremos guerra?... Andam a perguntar há vários meses, eu fui sempre pela negativa, ajuízem das minhas razões, a Europa está dividida entre soberanos que mandam em pessoas e soberanos que mandam em bois ou em cavalos. Os primeiros compreendem perfeitamente a revolução, ficam aterrorizados com ela, facilmente fariam sacrifícios pecuniários para a aniquilar, mas jamais ousarão tirar a máscara, com medo que lhes chegue o fogo a casa. É a história da Inglaterra, da Holanda, etc. Quanto aos soberanos que mandam em cavalos, não podem abarcar o conjunto da constituição, desprezam-na. Crêem que este caos de ideias incoerentes acarretará a ruína do Império francês. Ao ouvi-los, pensar-se-ia que os nossos bons patriotas vão esganar-se uns aos outros, purificar a terra com o seu sangue dos crimes cometidos contra os reis e a seguir vergar a cabeça mais baixo que nunca diante do déspota mitrado, do faquir tonsurado e sobretudo do bandido com pergaminhos. Estes não farão portanto qualquer movimento. Esperarão o momento da guerra civil que, segundo eles e os seus tristes ministros, é infalível.»

9. Ver: Napoléon, Vues politiques, op. cit., p. 326: «A Europa não pára de fazer a guerra à França, os seus príncipes, a mim; temos que atacar, sob pena de sermos atacados. A coligação há-de existir sempre, pública ou secreta, confessa ou disfarçada; sempre existiu; cabe apenas aos aliados dar-nos a paz: por nós, estamos fatigados; os Franceses temem conquistar de novo... Se estive a pontos de realizar esta monarquia universal, foi sem cálculo e porque para aí me levaram passo a passo.»; ibid., p. 321: «A França, obrigada a ser ao mesmo tempo potência marítima e potência continental, terá sempre grandes necessidades de dinheiro; está a braços

com os ciúmes da Europa desde Henrique IV (No Conselho de Estado; Fevereiro de 1806; Pelet de Ia Lozère.)

372

gfv A EUROPA

10. Esta citação não pôde ser identificada. «.^. . , **çr*.^imiat, ,stí.,< «í«i j.»«*4 «^s.-ii, «.«,-,,.

11. O manuscrito da lição XXIV comporta apenas as primeiras palavras do texto de Joliclerc; este figura nas notas de trabalho reunidas por Lucien Febvre para a preparação do seu curso sobre «Honra ou Pátria?»; ver: Lucien Febvre, «Honneur et Patrie», op. cit., p. 219; transcrevemos aqui o texto para facilitar a leitura; ver: Frantz Funck-Brentano, Joliclerc, volontaire aux armées de Ia Révolutlon. Sés lettres (1793-1796), recueillies et publiées por, 4° ed., Paris, 1905, p. 167; ver supra, lição I, nota 8, p. 36.

12. O manuscrito da lição comporta apenas as primeiras palavras do texto de Joliclerc; ver supra, nota 11; Frantz Funck-Brentano, Joliclerc, volontaire aux armêes de Ia Révolution, op. cit., p.142.

13. O manuscrito da lição comporta apenas as primeiras palavras do texto de Joliclerc; ver supra, notas lie 12; Frantz Funck-Brentano, Joliclerc, volontaire aux armêes de Ia Révolution, op. cit., p. 162.

14. O manuscrito da lição comporta apenas as primeiras palavras do texto de Joliclerc; ver supra, nota 11 e 12; Frantz Funck-Brentano, Joliclerc, volontaire aux armêes de Ia Révolution, op. cit., p. 168.

15. Ver supra, lição XXII, nota 13, p. 252.

16. Ver: Émile Littré, Dictionnaire de Ia langue française, t. II, Paris, 1869: «Nationalité, observação. Nationalité só está no Dictionnaire de VAcadémie desde a edição de 1835; foi admitido por volta de 1823 em Boiste, com esta citação: ”Os Franceses não têm nacionalidade, Bonaparte”. É de crer que neste exemplo a palavra seja empregada como sinónimo de raça.»; ver: P. C. Boiste, Dictionnaire universel de Ia langue f rançaise, avec lê latin et l’éthimologie..., Paris, 14° edição revista, corrigida e consideravelmente aumentada... por Charles Nodier e Louis Barre, 1857, p. 483: «Nacionalidade, s.f., carácter nacional [...]; espírito, amor, união, confraternidade nacionais; patriotismo comum a todos. O despotismo destrói as nacionalidades.»

17. Ver: J. M. Quérard, La France littéraire ou Dictionnaire biographique dês savants, historiens et gens de lettres de Ia France..., t. IV. Paris, 1830, p. 200: Frédéric-Louis Jahn, Recherches sur Ia nationalité, 1’esprit dês peuples allemands et lês institutions que seraient en harmonie avec leurs murs et leurs caracteres, traduzido do alemão com notas por P. Lortet, médico, Paris, 1825, in-8°; sobre Pierre Lortet, médico, nascido em Lyon em 1792, morto em Moulins em 1868, ver: La Grande Encyclopédie, op. cit., t. XXII, Paris, s.d., p. 571.

Lição xxv ;-;1. Ver supra, lição XXIV, nota 8, p. 273.

2. Ver supra, lição XXIV, notas 16 e 17, p. 278-279.

3. O manuscrito da lição XXV comporta apenas as primeiras palavras deste texto, que figura nas notas de trabalho deixadas por Lucien Febvre para este curso; tendo Lucien Febvre

praticado um certo número de cortes nesta passagem, segue-se a reprodução integral, tal como figura em Napoléon, Vues politiques, op. cit., p. 329-330: «Uma das minhas ideias mais fortes tinha sido a aglomeração, a concentração dos mesmos povos geográficos que as revoluções e a política dissolveram, fragmentaram. Assim, contamos, na Europa, embora dispersos, mais de trinta milhões de Franceses, quinze milhões de Espanhóis, quinze milhões de Italianos, trinta milhões de Alemães: gostaria de ter feito de cada um destes povos um único e mesmo corpo de nação. corn

373

LUCIEN FEBVRE

esse cortejo teria sido belo entrar para a posteridade e para a bênção dos séculos. Sentia-me digno desta glória! Após esta simplificação sumária, teria sido possível subir à quimera do belo ideal da civilização: neste estado de coisas teria havido mais oportunidades de levar a toda a parte a unidade dos códigos, a dos princípios, das opiniões, dos sentimentos, das perspectivas e dos interesses. Então, talvez, com o favor das luzes universalmente difundidas, fosse permitido sonhar, para a grande família europeia, a aplicação do congresso americano ou a dos Anfictíons da Grécia; e então, que perspectiva de força, de grandeza, de júbilo, de prosperidade! Que grande e magnífico espectáculo!... A aglomeração dos trinta ou quarenta milhões de Franceses estava feita e perfeita; a dos quinze milhões de Espanhóis estava também quase; pois nada é mais corrente do que converter o acidente em princípio; como não submeti os Espanhóis, pensar-se-á agora que era impossível submetê-los. Mas o facto é que foram submetidos e que, no preciso momento em que me escaparam, as Cortes de Cadiz tratavam secretamente connosco. Portanto, não foi a sua resistência nem os esforços dos Ingleses que os libertaram mas sim os meus erros e os meus reveses distantes; sobretudo o de me ter transportado com todas as minhas forças para mil milhas dali e de aí ter perdido; pois ninguém poderia negar que, quando eu entrei nesse país, se a Áustria, não me declarando guerra, me tivesse deixado mais três ou quatro meses de permanência em Espanha, tudo teria terminado; o governo espanhol ia consolidar-se, os espíritos teriam acalmado, os diversos partidos ter-se-iam unido; três ou quatro anos teriam apresentado entre eles uma paz profunda, uma prosperidade brilhante, uma nação compacta e eu tê-los-ia merecido; ter-lhes-ia poupado a terrível tirania que os esmaga, as terríveis agitações que os esperam. Quanto aos quinze milhões de Italianos, a aglomeração estava já muito avançada: só lhe faltava ganhar idade e todos os dias amadurecer entre eles a unidade de princípios e de legislação, a do pensar e do sentir, esse cimento garantido, infalível dos aglomerados humanos. A união do Piemonte à França, a de Parma, da Toscana, de Roma, tinham sido apenas temporárias no meu pensamento e não tinham outra finalidade que a de vigiar, garantir e promover a educação nacional dos Italianos. E vede que bem eu pensava e qual a força das leis comuns! As partes que se tivessem unido a nós, embora esta união pudesse parecer, da nossa parte, a injúria da invasão, e a despeito de todo o seu patriotismo italiano, estas mesmas partes foram precisamente as que em muito permaneceram mais ligadas a nós. Hoje, que estão entregues a si próprias, crêem-se invadidas, deserdadas, e assim estão!... Todo o sul da Europa em breve estaria portanto pejado de localidades, opiniões, sentimentos e interesses compactos. Neste estado de coisas, que nos teria feito o peso de todas as nações do Norte? Que esforços humanos teriam vindo bater contra uma tal barreira? O aglomerado dos Alemães exigia mais lentidão. Por isso eu só tinha que simplificar a sua monstruosa complicação: não que eles estivessem preparados para a centralização, muito pelo contrário, teriam podido reagir cegamente contra nós antes de nos compreenderem. Como foi possível que nenhum príncipe alemão tenha percebido as disposições da sua nação, ou não tenha sabido aproveitá-las? Seguramente, se o céu me tivesse feito nascer príncipe alemão, através das numerosas crises dos nossos dias, teria governado infalivelmente os trinta milhões de Alemães reunidos; e para o que julgo conhecer deles, ainda penso que, uma vez que eles me tivessem elegido e proclamado, nunca me teriam abandonado e eu não estaria aqui... Seja como for, esta aglomeração chegará, mais cedo ou mais tarde, pela força das coisas; o impulso está dado e não penso que, após a minha queda e o desaparecimento do meu sistema, haja na Europa outro grande equilíbrio possível fora da aglomeração e da confederação dos grandes povos. O primeiro soberano que, no meio do primeiro grande confronto, abraçar de boa fé a causa dos povos, encontrar-se-á à cabeça de toda a Europa e poderá tentar o que quiser.»

374

4. Ibid., p. XV.

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HÍÍ A EUROPA

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5. Ibid., p. 313.

6. Ibid., p. 296-297, p. 297: «A presença do general é indispensável; é a cabeça, é tudo num exército: não foi o exército romano que submeteu a Gália, mas César; não foi o exército cartaginês que fez tremer a República às portas de Roma, mas Aníbal; não foi o exército macedónio que se instalou no Indo, mas Alexandre; não foi o exército francês que levou a guerra ao Véser e ao Inn, mas Turenne; não foi o exército prussiano que defendeu sete anos a Prússia contra as três maiores potências da Europa, mas Frederico o Grande.»

7. Ibid., p. 66.

8. Esta citação do marquês de Argenson foi utilizada várias vezes por Lucien Febvre no seu curso «Honra ou pátria?»; figura numa das fichas de trabalho reunidas para este curso com o comentário seguinte: «D’Argenson exagera mas nota um facto real; as duas palavras de que fala tendem a assumir então significados que não tinham antes. Brunot, VI, I, 137.»; esta citação é tirada do tomo VI da obra de Ferdinand Brunot, Histoire de Ia langue française; ver: Lucien Febvre, «Honneur et patrie», op. cit., p. 146, 156, 162, 259, 266, 267; Ferdinand Brunot, Histoire de Ia langue française dês origines à 1900, t. VI, Lê XVIII6 siècle, primeira parte, op. cit., p. 137.

9. Para toda esta parte sobre a concepção da nação, ver: Lucien Febvre, «Honneur et patrie», op. cit., p. 146-147, 207-210; ver igualmente a recensão de Lucien Febvre, em 1932, do livro de Étienne Martin Saint-Léon, Lês Sociêtés dans Ia nation, étude sur lês éléments constitutifs de Ia nation française, publicado em 1930, em: Lucien Febvre, De Ia France à l’Europe: histoires, psychologies et physiologies nationales em Annales d’histoire économique et sociale, t. IV (1932), p. 199-207, p. 199-200.

10. Ver supra, lição XXIV, nota 17, p. 279.

11. Apenas as primeiras palavras desta citação de Victor Hugo figuram no manuscrito da lição XXV; o texto aqui reproduzido encontra-se nas notas de trabalho reunidas por Lucien Febvre para este curso; transcrevemo-lo para facilitar a compreensão; ver: Victor Hugo, Actes et paroles, t. I, Avant Vexil, 1841-1851, Paris, 1875, «O direito e a lei», p. I-XLVII, p. In; «Esta grandeza, a França tem-na e tê-la-á cada vez mais. A França tem uma coisa admirável, é que está destinada a morrer; mas a morrer como os deuses, por transfiguração. A França tornar-se-á Europa. Certos povos acabam pela sublimação, como Hércules, ou pela ascensão, como Jesus Cristo. Poder-se-ia dizer que, a dado momento, um povo entra em constelação; os outros povos, astros de segunda grandeza, agrupam-se em redor dele e é por isso que Atenas, Roma, Paris são plêiades. Leis imensas. A Grécia transfigurou-se e tornou-se o mundo pagão; Roma transfigurou-se e tornou-se o mundo cristão; a França transfigurar-se-á e tornar-se-á o mundo humano.»

12. Apenas as primeiras palavras desta citação de Lamartine figuram no manuscrito da lição XXV; o texto aqui reproduzido encontra-se nas notas de trabalho reunidas por Lucien Febvre para este curso; ver: Alphonse de Lamartine, Souvenirs, impressions,

pensées et paysages pendant un voyage en Orient, 1832-1833, ou Notes d’un voyageur. Paris, 1859, 2 vol., t. II, «Resumo político da viagem ao Oriente», p. 496-513, p. 496: «As ideias políticas [e não humanas] conduziram a Europa a uma dessas grandes crises orgânicas de que a história conservou apenas uma ou duas datas na sua memória: épocas em que uma civilização gasta dá lugar a outra, em que o passado já não vale, em que o futuro se apresenta às massas com todas as incertezas, todas as obscuridades do desconhecido; épocas terríveis quando não são fecundas; doenças climáticas do espírito humano que o matam para séculos ou o vivificam para uma existência

375

LUCIEN FEBVRE

longa e nova. A Revolução Francesa foi o canto de cisne do mundo. Várias das suas fases estão realizadas, mas ela não está terminada; nada termina nestes movimentos lentos, intestinos, eternos, da vida moral do género humano: há tempos de pausa; mas mesmo durante estas pausas os pensamentos amadurecem, as forças acumulam-se e preparam-se para um nova acção. Na marcha das sociedades e das ideias, a meta nunca é mais que um novo ponto de partida. A Revolução Francesa, a que mais tarde se chamará a revolução europeia, pois as ideias ganham nível como a água; não é apenas uma revolução política, uma transformação do poder, uma dinastia em vez de outra, uma república no lugar de uma monarquia; tudo isso é acidente, sintoma, instrumento, meio. A obra é tão mais grave e mais alta que poderia realizar-se sobre T* todas as formas de poder [...].» ” <•• ’

13. Apenas as primeiras palavras desta citação figuram no manuscrito da lição XXV; o texto aqui reproduzido encontra-se nas notas de trabalho reunidas por Lucien Febvre para este curso; ver:

«fe Victor Hugo, Actes et paroles, op. cit., «Congressos da paz em Paris, 1849», p. 377-393», «Discurso de abertura», p. 377-389, p. 381-384.

14. Ver supra, lição XIX, nota 6, p. 215.

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Lição XXVI

1. Após «Campo-Santo» faltam sem dúvida diversas palavras: a folha do manuscrito de Lucien Febvre apresenta um rasgão neste sítio.

Lição XXVIII

1. Em 1947, Lucien Febvre dá um título quase idêntico ao desta última lição à «lição de encerramento de um curso sobre a noção de Europa ministrado, durante o ano académico 1946-1947, na Universidade Livre de Bruxelas (cátedra Francqui)»; ver: Lucien Febvre, Europe: Brúler ou marquer 1’étape?, em Synthèses, 2° ano (1947), n° 4, p. 15-24, p. 15, nota 1; ver Bertrand Miiller, Bibliographie dês travaux de Lucien Febvre, op. cit., n°. 1446, p. 158; ver infra, Anexo I, p. 379.

2. Esta citação de Herder foi tirada por Lucien Febvre da Histoire socialiste de Jean Jaurès; ver: Histoire socialiste, op. cit., t. In, Jean Jaurès, La Convention, I La Republique. Lês idées politiques et sociales de 1’Europe et Ia Révolution (1792), Paris, s.d., p. 476: «Foi Herder, creio,

,quem com mais vigor glorificou e comentou Frederico II. Nas suas Lettres pour l’humanité,

escreveu, pouco após a morte do rei: ”Todos pensamos que se houve um grande nome que actuou

poderosamente sobre a Europa, foi Frederico. Quando ele morreu, parecia que um alto génio

acabava de deixar a terra. Comoveram-se amigos e inimigos da sua glória: disse-se que mesmo

sob a sua forma terrestre ele se tornara imortal... [...]”. Foi verdadeiramente um drama heróico

que mexeu com a alma alemã e que das nuvens incertas e ainda lentas do pensamento fez brotar

,.-, o raio sublime. Não é, no espírito de Herder, um grosseiro fascínio da vitória e do orgulho. Pelo

contrário, ele deplora que a política das cortes tenha a tal ponto constrangido Frederico II aos

r, meios violentos: ”Por essa via, sem dúvida, muitos ramos tenros de humanidade que se teriam

, desenvolvido naturalmente a partir da sua alma generosa se perderam: terá a humanidade alguma

376

;K, A EUROPA

vez tido inimigo pior que a política dos grandes Estados?”»; o título exacto da obra de Herder é o seguinte: Lettres pour servir à 1’avancement de 1’humanité; ver: J.-G. Herder, Une autre philosophie de l’histoire pour contribuer à 1’éducation de 1’humanité. Contribution à beaucoup de contributions du siècle, tradução com notas e introdução por Max Rouché, Paris, s.d., p. 359, nota 1; sobre Johann-Gotfried von Herder, ver: La Grande Encydopédie, t. XIX, Paris, s.d., p.1163-1164.

3. A citação completa e exacta de Pirenne é a seguinte: «A seguir à guerra de 1870, von Sybel intitulava uma conferência: Was wir von Frankreich lernen kônnen. Devemos perguntar-nos hoje ”o que temos a desaprender da Alemanha”; ver: Henri Pirenne, De 1’influence allemande sur lê mouvement historique contemporain, em Scientia, vol. XXXIX (1923), p. 173-178, p. 177-178.

4. Ver: Lucien Febvre, De Ia France à 1’Europe: histoires, psychologies et physiologies nationales em Annales d’histoire économique et sociale, t. IV (1932), p. 199-207, p. 199-200, p. 207.

5. Lucien Febvre cita estes versos de Charles Péguy segundo a obra, publicada em 1944, que Romain Rolland consagrou a Péguy; ver: Romain Rolland, Péguy, Paris, 1944, 2 vol., t. I, p. 271,293; estes versos são porém tirados de duas obras diferentes de Charles Péguy, Lê Porche du Mystère de Ia deuxième vertu e Lê Mystère dês saints Innocents, segunda e terceira partes de uma trilogia cuja primeira é Lê Mystère de Ia Charité de Jeanne d’Arc; Lucien Febvre retoma também esta mesma «citação» de Péguy na lição de encerramento do curso que dá em 1946-1947 em Bruxelas sobre a noção de Europa; todavia, em lugar de «ma petite esperance», no último verso, o texto publicado em Synthèses traz «une petite esperance»; ver: Lucien Febvre, Europe: Brúler ou marquer Vétape?, op. cit., p. 24, e supra, nota l, infra, Anexo I, p. 379.

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Queimar ou marcar a etapa?

... Eis-nos chegados ao termo da nossa viagem - de uma longa busca através das eras.

Europa: há muito tempo que nos vimos perguntando porque, como, em que assentava, após muitos tacteios e hesitações - assentes na terra e na ambição dos homens - esta palavra harmoniosa que nos veio dos Gregos.

Europa: vimos como, ao sair da Idade Média, pouco a pouco, num tempo em que as nações em crescimento ensaiavam as suas forças uma contra a outra, esta palavra postulou o que os diplomatas, durante muito tempo, chamaram equilíbrio de forças: o sistema do equilíbrio europeu. ^

Após o que esta palavra com um destino milenar - vimo-la, ao longo do século XVIII, para os grandes espíritos planando, ao sabor da sua filosofia, acima das contingências da história - vimo-la tornar-se o nome, invocado com fervor, de Pátria superior às Pátrias: esta Europa de paz, de luz, de razão com que todos eles sonhavam - cuja imagem eles ergueram acima das nacionalidades transformadas em nações, acima das nações votadas, no seu pensamento fácil e generoso, a tornar-se as grandes pátrias fraternas de um grande império onde reinaria a Razão. «Se eu soubesse- escrevia o seu valioso intérprete Montesquieu - se eu soubesse algu-

379

LUCIEN FEBVRE

ma coisa que me fosse útil e que fosse prejudicial à minha família, expulsá-la-ia do meu espírito. Se soubesse de uma coisa útil à minha família e que não o fosse à minha Pátria, procuraria esquecê-la. Se soubesse de uma coisa útil à minha Pátria e que fosse prejudicial à Europa - ou então que fosse útil à Europa e prejudicial para o Género humano - considerá-la-ia um crime.»

É tudo? Não, uma vez que Europa, este belo nome, vimo-lo, ao terminar um dia de esperança, tornar-se o nome de um campo de batalha, de carnificina e de desolação. Eis onde chegámos. Este nome que procurámos através de todas as eras, Europa, Europa, tê-lo-emos encontrado hoje - quando ele enche os ares, retine por toda a parte?, voa em todos os lábios?

Europa: palavra fetiche, dir-se-ia. Palavra remédio. Palavra de salvação que todos os ecos repetem. Realizemos a Europa, depressa. Criemos a república europeia, já. Fabriquemos, enfim, as nações da Europa que, por províncias, terá os nossos Estados soberanos. E eis que Europa se torna noção de crise. A última esperança dos passageiros que a tempestade arrasta, num mar enfurecido, para um naufrágio quase certo, na angústia, na noite...

Ninguém sente a necessidade de colocar o problema. Ele coloca-se por si. Foram as circunstâncias, foram os elementos que reuniram os seus dados inflexíveis. O problema coloca-se: Europa, uma etapa necessária ou uma etapa supérflua na estrada das esperanças e das desesperanças? Uma etapa: e não digo, historiador que sou, dever-se-á marcar esta etapa? Não tenho a candura de querer ditar, em nome do passado, leis aos tempos futuros. Uma etapa: pergunto-me simplesmente, e na angústia comum, se ela será marcada amanhã - marcada ou então queimada.

I

<: Problema de hoje? Não.

-•’ A nossa memória é curta. Teremos já esquecido que nunca falámos

tanto de Europa, nunca sonhámos tanto com a Europa como a seguir à

380

íSPMí A EUROPA

guerra de 14 - no tempo em que, subitamente desenganados, fomos forçados a admitir o que Albert Demangeon, num livro que, entre nós, esteve à cabeça da lista, chamou simplesmente o Declínio da Europa!

1919, 1920: recordemos. Todos os países, todos os Estados saíam de uma imensa tragédia, uns exangues, outros gravemente feridos. Milhões de cadáveres juncavam o solo, mas o seu número não dizia tudo. Hoje, entre nós, por causa desta guerra, faltam duas ou três centenas de homens- insubstituíveis, insubstituídos, duas ou três centenas de homens de primeiríssima ordem, duzentos ou trezentos príncipes do Espírito e reis da Acção que, sem esforço, conduziriam a enorme nau, entregue a tenentes de boa vontade, mas sem envergadura. Eis o que conta. E também, por trás deles, alguns milhares de cabeças bem formadas que foram engordar a carniça: uns milhares de consciências rectas e firmes que nada substituiu nem nunca substituirá.

1919, 1920: o tempo em que, bruscamente, os países mutilados, sentindo-se atingidos, reflectiram - e sentiram medo.

A Europa tinha semeado as suas indústrias pelo mundo. E estas indústrias tinham ganho raízes. Na Ásia, na América, por toda a parte. E eis que produziam em melhor conta do que as indústrias mães do nosso velho mundo, tanto tempo orgulhoso dos seus monopólios. Perante este primeiro perigo, este espectro da morte por inanição que surgia, a Europa tinha medo.

A Europa tinha semeado as suas colónias pelo mundo. com uma maravilhosa imprudência. Sem se perguntar o que podia dar o contágio do exemplo para as populações negras ou amarelas que ela intentara tornar iguais aos Brancos. E nascia a perturbação. Estalavam revoltas, aqui, além. Provocadas, diziam, para se consolarem. Mas enfim, velhas nações de civilização requintada, lá longe, no Extremo Oriente, na índia, noutros sítios agitavam-se sob a hegemonia mal regulada dos brancos: a Europa tinha medo.

381

LUCIEN FEBVRE

t A Europa tinha semeado as suas ideias pelo mundo. Ao acaso. A granel. Ideias de tradição, ideias de inovação, ideias de conservação, ideias de revolução. E eis que, ganhando corpo e raiz - sobretudo lá no Este, onde se combinam com outras ideias de tendência oposta - elas se realizavam de um modo estranho e lançavam um desafio às nações antigas. Propagavam-se palavras de ordem desconhecidas. Realizavam-se velhos sonhos. E a Europa, a Europa burguesa, a Europa regrada tinha medo. .’ A Europa, a Europa, enfim - pois temos que abreviar - tinha semeado nações pelo mundo. Tinha dado à luz as nacionalidades. E eis que, mais do que nunca, as nações se revelavam egoístas, tacanhas, de vistas curtas. Eis que no interior destas «unidades» recém-estabelecidas ou recém-criadas, em que não seria de crer satisfeitos todos os desejos seculares, eis que se revelam ainda outras nacionalidades que falam alto, conspiram e se agitam. E perante tantos conflitos novos, a Europa, cansada, tinha medo, medo, medo...

t.

y* A Europa: mas eis que nela se produzem feridas profundas...* De 1914 a 1920, a guerra e a paz tinham operado grandes liquidações- em que, esquecidos que somos, já nem sequer pensamos. Víramos morrer as mais velhas monarquias, os velhos imperadores de direito divino. Liquidado esse pesadelo, a Casa de Áustria, caídas por terra as suas três coroas: a de Carlos V, a de Santo Estêvão e de São Venceslau. E o outro ramo da velha macieira europeia, o ramo espanhol? Caiu, o trono de Filipe II. Como os tronos de Portugal, da Grécia, da Prússia, e todos os dos pequenos príncipes da Alemanha e, mais longe, o velho trono dos sultões; o velho trono dos czares...

Por toda a parte repúblicas - e os republicanos rejubilam, e outros (que não o eram) partilhavam e reforçavam as suas ilusões: como o conde Sforza, que nesses tempos escrevia que, se a união europeia pode ser considerada de outro modo que não uma utopia, era precisamente por causa destas liquidações e por causa do voo frustrado de tantas águias heráldi-382

A EUROPA

cãs, as brancas, as negras, as vermelhas, de garras aduncas, com duas ou três cabeças que os povos, bruscamente, tinham varrido...

E dizia bem. E entretanto, incomodadas nos seus hábitos, privadas bruscamente das suas protecções seculares, as nações agitavam-se. Verificava-se que não estavam todas maduras, não estavam maduras por igual para estas belas instituições a brilhar de novas, parlamentares e democráticas, com que as tinham generosamente dotado. Verificava-se que elas compreendiam mal o seu funcionamento, que se perdiam no meio das suas engrenagens. E no entanto, como luziam, estas instituições, tão polidas, tão bem oleadas! Obras-primas de juristas. Triunfos de professores de direito constitucional. O que de melhor havia no género. Somente, lá estava: as mãos grossas a que foram solenemente confiadas, em dois ou três meses, deram cabo delas. com toda a cordialidade. com toda a simplicidade.

A Europa inquietava-se. Possuía-a uma preocupação crescente. Restabelecer a ordem. Restaurar a confiança. Trazer de novo a paz. Logo, fazer a Europa. Esta Europa que se obstinava em permanecer um nome. Esta Europa sempre desejada e sempre por criar. Passar, enfim (se se pudesse) do país dos sonhos para o domínio das realidade.

II

1920: seria ainda possível? O problema já não era europeu. Somente, unicamente, europeu. A Europa já não ficava toda na Europa. Um cidadão de Québec, de Chicago, do Rio, de Buenos Aires, quando visitava a China, entrava em Nanquim no grande hotel local e via-se logo «Europeu».

Era de justiça, sabemo-lo bem. Mas, prisioneiros das nossas palavras, persistíamos em fazer de conta que o ignorávamos. O nosso universo político era já um universo a três dimensões - e ainda nos obstinávamos a pensar o mundo de Einstein na língua de Descartes. A sua superfície continuava a estender-se pela Europa. Mas mergulhava já, banhava-se já nas profundezas turvas e complicadas dos interesses mundiais. f

383

LUCIENFEBVRE f

E então? Persistia a velha ilusão. A ilusão de antes da guerra de 1914.

Em 1914, gozávamos de uma civilização sólida, brilhante, unificada? Em 1914, não estava a sociedade dos cérebros a trabalhar em pleno sem se preocupar com fronteiras?

Era o tempo em que os grandes físicos se sucediam uns aos outros, um inglês a prolongar o trabalho de um francês que um dinamarquês retomava enquanto um americano, saído da fila, lançava os espíritos numa outra pista. E a Arte? Era também o tempo em que a pintura francesa acabava de conquistar a Europa - e primeiro a Alemanha. A nova arquitectura, a dos volumes cheios e do cimento armado, cobria o mundo com novas construções. Nada se parecia mais com um palácio da justiça italiano do que um ministério do trabalho sueco ou um palácio dos correios holandês. Qualquer sala de concertos era um esplêndido rendez-vous da «Paneuropa». Os compositores russos sucediam aos compositores alemães, Albeniz a Debussy Stravinsky a Fauré - e também Caruso a Chaliapine e Mahler a Campanini. Grandes filosofias irradiavam pelo mundo. Dos seus matizes cambiantes como um papo de pombo, o bergsonismo coloria milhões de pensamentos. A própria religião assumia aspectos novos. Uma grande leveza do viver, sem grosserias, sem rudeza, sem gozos vulgares invadia todo o Ocidente. Não haveria ali algo de sólido? Os primeiros fundamentos de uma pátria espiritual? E se, apesar da guerra, apesar do pós-guerra, os homens de fé refizessem a Europa?

Não se refez a Europa.

Porque rupturas sentimentais muito graves tinham já dissociado, desarticulado o mundo europeu? Porque nesses tempos já a Florença dos nossos vinte anos, cujos grandes mosaicos ressoavam sob os nossos pés de peregrinos místicos - que tinham feito de ti? E de ti também, Munique de antes da guerra, Munique dos móveis pretos e dos concertos, alimento do espírito; e de vós, terna Viena sentimental, toda vibrante de violinos, povoada de cafés onde cintilava o espírito? Não falemos das grandes uni-

384

W A EUROPA

versidades da Alemanha, de todos esses velhos professores que alcançaram, à custa de fichas, as alturas do «von»; não os compreendíamos, eles não nos compreendiam de todo, mas, enfim, esses rudes trabalhadores exigiam o nosso respeito diligente... Também eles uma memória, a partir de1920, uma memória impossível. Ah! a amargura do querido e grande Pirenne forçado a dizer, ele, que se tinha formado nos métodos de lá, a amargura de Pirenne, forçado a dizer (corn que nobreza, com que dignidade) quando, amainada a tormenta, retomou as suas aulas em Gand: «O que temos que desaprender sobre a Alemanha».

Tudo isto no plano sentimental. Mesmo assim, note-se: o problema das relações internacionais colocava-se ainda de um modo bastante simples. Um problema de ordem familiar no interior do mundo europeu; um problema de ordem patronal no exterior: retomo palavras que já disse noutro lugar.

De ordem patronal, sem dúvida - uma vez que, na nossa crença comum, a nós, Europeus, as relações que devíamos manter com os povos não europeus, parecia-nos, simplesmente, que eram relações de um bompatrão, de um patrão sensato e previdente com os seus empregados. E isto porque noblesse oblige. Então não éramos Europa, ou seja, aristocracia? Não devíamos respeitar em nós esta eminente dignidade que não hesitávamos atribuir-nos? Noblesse oblige, não: civilização oblige. E depois, e depois, estes empregados, afinal eram clientes. Impor-lhes pouco a pouco as nossas maneiras de ser, comunicar-lhes as nossas necessidades: política de homens de negócios avisados. Não íamos mais além...

O verdadeiro problema continuava portanto a ser europeu. Um problema de família, para retomarmos uma expressão minha. Dado que as famílias se dividem muitas vezes contra si próprias. Um poço de víboras, a Europa. Que era preciso limpar com precaução, purgar prudentemente do seu veneno. Tratou-se disso. Por vezes com a ilusão de o conseguir. Nós, gente da pena e dos estudos, gente da ciência e das letras, nós deitámo-nos

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LUCIENFEBVRE M_.’_-. - -• t” . l

ao trabalho com uma fé buscada. Ai de nós! Ai de nós! Em 1930, o processo já estava julgado.

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E então hoje, a Europa?

Hoje, houve a guerra e os seus frutos envenenados. Não apenas, de novo, a morte de milhões de homens, não apenas a mutilação e a degradação de outros milhões; não apenas, como sempre, o desaparecimento dos melhores e, para os que restam, a miséria, o velho espectro da fome que há tantas décadas não víamos e que vem bater, a rir-se, às nossas janelas. Não apenas isso. Mas este desarranjo mental e moral, esta contradança dos espíritos, dos homens que, ontem, declaravam só acreditar nas verdades positivas, matemáticas, demonstradas, e que hoje se atulham de verdades reveladas: pelos deuses ou pelos homens. Não apenas isso mas, no domínio político, esta desconfiança que os povos manifestam para com os que são mais fortes do que eles... Afinal, os vencidos não iam sendo os vencedores? E realizando esse velho sonho da dominação universal, esse sonho grandioso e nefasto que nunca podemos dizer que abandonou todos os espíritos? Pelo menos, não há nação que não atribua esse desígnio às suas vizinhas mais próximas. Nestas condições, então, a Europa?

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v E é tudo? Houve a guerra. E as suas consequências geográficas. Refiro-me não somente à extensão das hostilidades por toda a superfície do planeta, como à contracção de um globo que já de si nos parece tão mesquinho, tão exíguo que cada vez mais acarinhávamos o sonho louco, há vinte anos, de transpor os seus limites.

Houve a guerra. E este paradoxo singular de uma humanidade branca que nunca se manifestou com tanto brilho, que nunca tão fortemente mostrou a sua indomável capacidade de criação e de inovação, que não pode pousar os dedos sobre o velho teclado das artes e das ciências sem fazer

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í ir í A EUROPA

soar um som desconhecido de descobertas ontem ainda impossíveis e de transformações ontem inauditas: imaginamos os mecenas de outrora, imaginamos Júlio II perante um Picasso e Descartes, o artilheiro, perante um bombardeamento atómico concebido por um Joliot-Curie? -•< ’-•.•-•^n

Autêntico testemunho de vitalidade, estas criações, estas revolucionárias novidades. Bem podemos recusar o futuro e correr atrás do passado, perdidamente, como um bebé ansioso com a ideia de largar as saias da mãe: os factos estão aí. Toda a arte do Renascimento resvala lentamente para o abismo onde se enterram, se perdem as artes passadas. Uma pintura nova, uma arquitectura nova, uma escultura nova encantam os nossos filhos, para nosso espanto por vezes, para nosso escândalo. E é um mundo novo que, explorando céus que os nossos olhos nunca contemplarão, os nossos astrofísicos se encantam a descobrir. Mas têm medo, por vezes. E por pouco renunciam a acreditar. f K •/

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Posto isto, então nada mudou para nós? Trata-se na verdade, na Europa, agora, de ajustes de contas mais ou menos tempestuosos diante de velhos notários de família, os de Genebra ou os de La Haye. Trata-se do mundo inteiro. Que entra em transe.

Europa? Míopes que somos, míopes que só temos olhos para nós e para os nossos! Ponhamos os óculos: é do planeta inteiro que se trata. Vamos destruí-lo para melhor preservar o nosso berço de meninos?

Europa? Suponhamo-la realizada. Por um milagre de concórdia. Ou então, por esse abuso da força contra a qual, precisamente, lutámos durante cinco anos, até ao esgotamento das nossas forças nervosas. Que ganharíamos nós com isso? Para que serviria esta união imposta? Para a guerra.

Entre continentes, desta vez. O que permite já aos nossos Pangloss modernos pressupor: «Isso vai passar-se lá... muito longe... no Árctico... É agora a vez das focas e dos Esquimós: quanto a nós,

estaremos bem sossegados. Na prisão, naturalmente. Bah! Desde que sirvam uma sopa quente aos presos, vai-se andando... » k

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LUCIEN FEBVRE

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Mas esta Europa nova, criação da força, julgam que vai aceitar calmamente as lições do murro? Que o Espírito é uma força, mais forte que o canhão, o mundo inteiro o testemunha presentemente. Eterna ilusão dos nossos governantes e dos seus «especialistas» - esses desgraçados sem imaginação, sem vida, sem intuição. Os seus técnicos de estatística certificados entregam-lhes números loucos. Mentiras. Sem significado. Porque não vamos acreditar que a terra inteira, em 1947, que todos os povos do mundo estão maduros para o número. Mesmo nos nossos velhos países há sectores inteiros de actividade - aliás os mais notáveis, porque os mais antigos - que se furtam aos príncipes da estatística cega, da estatística para tudo e para todos indiferentemente.

Os patetas dos nossos calculadores esgotam-se a correr, com os seus cartõezinhos perfurados, atrás de quintais de trigo miraculosos que pretendem pôr no mapa. Voltam derrotados todos os anos - derrotados mas satisfeitos e prontos a recomeçar no ano seguinte. Porque não? Os números estão aí, como eles dizem. Ora! Os números que eles próprios inventaram para os fazerem coincidir, no papel, com as nossas necessidades. Vão fazê-los compreender, aos nossos estatísticos, que um método de recenseamento que vale talvez para a agricultura de Manitoba por certo não vale nada para a agricultura da nossa França: hortas multiplicadas por cinco ou por dez.

Arrastem as redes, as belas redes made in USA e que sem dúvida cobrem bem todos os campos de cereais do Minnesota; arrastem-nas pelos nossos campos ao ritmo de puzzles. E vereis como se rasgam em cada chaminé camponesa, em cada galo de campanário, em cada sebe de espinhos... Mas quer eles compreendam ou não, estes primeiros prémios de matemáticas especiais, não importa. Os resultados aí estão. Inelutáveis. A união dos trigos nunca se fará. A da Europa não se fará para já.

Sou desesperante? Não. Nem desesperante, nem desesperado. Sou um historiador que se contenta em dizer: «Aqui estão, vistos por um historia-

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>Í5|V A EUROPA

dor, os dados de uma situação cujos antecedentes ele pode conhecer.» Não proponho remédios. Não profetizo o futuro. Tão-pouco o passado. E mesmo assim, nem sempre com segurança. Mas é sabido que não nos sentamos na história como numa almofada fofa, num clube. -=! Ignoramo-la, ela vinga-se. Depositou, há milénios, no fundo de cada um de nós, fermentos de ódio acumulados, fermentos de rancores inexpiáveis e, sem dramatizar tanto as coisas, fermentos de incompreensão e de diversidade de que os senhores nossos governantes tencionam não fazer caso, como se não contassem, perante o poder absoluto das suas resoluções. Eles são o obstáculo. E não digo que este obstáculo seja intransponível. Digo que são precisas décadas - e não pedaços de papel de uma conferência a três, a cinco ou a vinte. Quando, por uma grande sorte, há no fim bocados de papel. Devidamente registados nas chancelarias.

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Fala o historiador. E o homem? eljit: rr

O homem tem o direito de dizer: «Salvemos a honra». O homem desta Europa que, apesar de tudo, pensou uma civilização moral capaz, por vezes, de impor freios e limites morais a todo o seu poder. Uma civilização que pode fazer muito pelo mal - faz muito por ele - mas acaba por não ir até ao fim dos seus meios de destruição e de dominação. Uma civilização que, por vezes, ainda, recua, incomodada, perante o emprego maciço, indistinto, sem escrúpulos, dos meios de destruição que imaginou.

Salvar a honra desta Europa é trabalhar. Como se nada fosse. Trabalhar pelo progresso desta civilização. Levar a sério estas nobres casas, as nossas universidades - que são repositórios da cultura humana. Impor a todos o respeito por elas. Responder aos seus convites. Estabelecer contacto com os seus mestres, com os seus alunos. Trabalhar o melhor possível, por meio de muitas trocas, para aumentar o património de inteligência e de nobreza de espírito, para que frutifique o capital de saber guardado que

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elas têm a alta missão de gerir para nós todos. É recriar, talvez sem ilusões, mas sem esmorecer, a grande república dos homens de ciência e de meditação que ergue, que deve erguer cada vez mais acima dos povos e muitas vezes contra os governos desses povos, a ideia clara, a ideia rica de humanidade, tal como as gerações a elaboraram.

Nós não escolhemos. Somos o que somos, desempenhamos o nosso papel, nós, funcionários, até ao fim. Em consciência. E foi porque me chamaram a desempenhar aqui o meu, nesta casa livre onde sopra o espírito dos exames; foi porque me chamaram a desempenhá-lo, caros amigos belgas, sem me perguntarem a cada palavra se sou francês ou belga, inglês ou nórdico, mas simplesmente se sou homem capaz de falar a homens com rectidão, virilmente, olhos nos olhos; foi porque, ao longo de todos estes meses de Inverno, me deram esta confiança, e esta alegria, de falar à vossa juventude como falaria, como gosto de falar à nossa própria juventude; é por isso que a vós, que de mim fizestes, mais que um doutor honoris causa da vossa Universidade, um cidadão da vossa comunidade intelectual e moral: é por isso que devo dizer-vos, ao terminar, obrigado.

Um obrigado que, mesmo assim, quero carregar, caros amigos, e apesar de tudo, de esperança. Que me ajude Péguy, o Péguy da admirável evocação que tão alto falava ao espírito de Romain Rolland:

«No caminho ascendente,

Puxada, pendurada do braço das suas irmãs mais velhas ’”: Que a levam pela mão,

A pequena esperança

Avança...

i E a meio... parece deixar-se levar, , Na realidade é ela que leva as outras,* Que as arrasta, í Que faz andar o mundo. ;~ ~

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; A EUROPA• ••* - . ’ f. . .

É ela, esta pequenita, que tudo arrasta

Tudo morreria de cansaço,

Esta enorme aventura,

Como, após uma ceifa ardente,

A lenta descida de um entardecer de verão

Se não fosse a minha pequena esperança... »5

Desta esperança me permitistes preservar a chama. E transmiti-la à vossa bela juventude. Mais uma vez e por toda a minha vida: obrigado.•S1X.1

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Notas e reflexões críticas sobre a Europa e sobre este curso1

O que falta neste curso

Primeiro uma lição sobre a Reforma, pelo menos uma. A reforma é o cisma, o cisma que rompeu a unidade moral e religiosa dos povos europeus, os cismas que romperam a unidade dos povos reformados. Porque há a Inglaterra e a sua religião de Estado e ao lado resta toda a gama das confissões rivais. E há os países calvinistas. E há os países luteranos. Os tratados da Vestfália reconhecem-no oficialmente.

[Há] mais, porém:

a. A religião grega é introduzida na Europa ao mesmo tempo pelos Orientais e pelos Moscovitas.

b. No século XVI, o próprio Islão é introduzido por Francisco I na diplomacia europeia, na diplomacia «cristã» e participa nas relações diplomáticas destas potências como um factor de peso. v

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[É preciso] dizer tudo isto. Há o orgulho de ser europeu. Há o movimento das nações que se isolam, que já não querem a cristandade, que re-

1 Editamos aqui 7 folhas manuscritas (2 folhas, retro e verso, numeradas de l a 4) que se encontravam colocadas na pasta «Europa»: «Lições em diversos lugares, adaptadas do curso.» ’-*

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LUCIEN FEBVRE

clamam Igrejas nacionais, que torcem o nariz à cruzada, que puxam cada qual para o seu lado. Por outro lado, há as grandes ambições, a dominação universal, etc., que tendem a unificar a Europa pela força. Mas Carlos V, no próprio coração do Império, encontra a divisão. Carlos V, na sua frente e desde o início, encontra Lutero. E não tem as mãos livres para realizar o seu sonho europeu. Tem que se armar para defender o passado contra Lutero... Tem que lutar contra as tendências que por toda a parte se manifestam e que obrigam as nações europeias a constituir-se isoladamente, a viver doravante por si próprias, a subtrair-se por instinto a todas as tentativas unitárias.

A Europa, que é tanto um sentimento como uma realidade, um sentimento de comunidade antes de ser uma realidade, antes, muito antes que se realize a comunidade (e realizar-se-á alguma vez?), a Europa só se realizará quando os homens, quando uma elite de homens, quando em particular os Franceses se elevarem acima das confissões, se separarem das confissões por esse deísmo unificador que é uma grande força de união, a tal ponto que, no fim do século XVIII, a liberdade de consciência é legalmente conhecida por toda a parte [duas palavras ilegíveis] em França. Coisa curiosa, quando esta liberdade se realiza, é a nação que triunfa.

Assim se explica a sorte da Europa no século XVIII. Os espíritos já não se sentiam ligados pelas Igrejas, passam por cima das fronteiras das Igrejas. Os seus sonhos não são fragmentados por estas.

Houve Carlos V, que se esgotou para realizar a unidade europeia. Houve Filipe II que esgotou a Espanha para realizar a unidade europeia. Houve Luís XIV, talvez beneficiário ingrato de um Richelieu que, com a sua política externa, pôs fim ao império católico de Carlos V e de Filipe II e permitiu assim ao Cristianíssimo tornar-se o primeiro rei da Europa e da tradição criada, e que até um Luís XV recolhe, Luís XV que sacrifica as colónias francesas para fazer reis no Oriente e na Alemanha, como faziam os imperadores. Há Napoleão que realiza (durante quantos anos?) o sonho de unidade num império.í;ra ;,,:sr,,^,,,,,f:í /;,, .,,,„,,-,_^,

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Perante isto, perante este sonho de unidade pela dominação, poderia ter havido uma república europeia, uma federação (ou mesmo federações) de nações que teriam marcado uma etapa na via da unificação. Mas o sonho de uma república europeia atribuído por Sully a Henrique IV não passou de um sonho. O projecto de uma federação das nações protestantes imaginado por um Cromwell em quem todas as igrejas reformadas, até aos huguenotes do Languedoc, aos pastores alpinos de Vaud reconheciam o seu protector, não passou de uni projecto.

Tudo isso ia de encontro à ambição, ao orgulho, à irredutibilidade do Estado, do Estado soberano, senhor absoluto dos súbditos; do Estado soberano sem outra finalidade que ele próprio; do Estado soberano sem outra preocupação que o seu crescimento a expensas dos vizinhos, com desprezo pelos vizinhos; do Estado soberano que não admite nada acima de si, brutalmente egoísta, feroz no seu egoísmo.

Foi uma força contra as tentativas de dominação pela força. Foi uma fraqueza contra as tentativas de unificação pelo acordo. Foi uma inconsequência: porque as nações que proclamavam o seu direito de nação o recusavam a outras nações que mantinham submetidas.

E assim como se fundam grandes empresas capitalistas que, de início, sob a forma de grandes companhias comerciais, são fundadas pelos Estados, assim os Estados exploram as nações por meio destas companhias.

•- » Duas lições ; si

Não as usar para tapar buracos. Há disso; voluntários. Não se pode dizer tudo [sobre este] assunto presente [?], é preciso escolher. Salientar com força certas ideias, certos factos. Sacrificar... servir a palavra. Regista-se. Se se repetir, retira-se [?], mas é um rio que nunca corre para a nascente.395

LUCIEN FEBVRE [

Buracos, há-os. E, por exemplo, não fiz, talvez porque era demasiado indicado fazê-la, uma lição necessária sobre a Europa e a Reforma; a recarga de elementos nórdicos que ela traz à civilização europeia; o espantoso episódio de Lutero, Lutero o Saxão, filho (e quão representativo) dessa Alemanha que sem dúvida foi inteiramente conquistada para o cristianismo, mas tardiamente para tudo o que fica além do limes renano, uma vez que para além do Elba, desta Alemanha que foi ela própria, é certo, o ponto de partida de toda a conquista cristã no leste, com o poderoso arcebispado de Mogúncia, depois de Magdeburgo que irradia para a Polónia, para a Boémia; mas desta Alemanha que desde a origem viveu o seu cristianismo de um modo particular, que desde a origem reagiu perante o cristianismo diferentemente dos países mediterrânicos, que lhe deu grande estadistas, grandes políticos, grandes administradores mas grandes doutores, não; doutores da estatura de São Tomás de Aquino, de S. Domingos, de S. Francisco, do nosso S. Bernardo e para terminar de Duns Escoto e de Occam: nenhum. Místicos, sim, pelo menos na Renânia, para além do limes, ao longo de toda essa grande rua do Reno que parte de Basileia e por Estrasburgo chega à Holanda. Mas estes místicos, qualquer que tenha sido a sua influência sobre as almas, foram sempre um pouco suspeitos. E até ao fim do século XV agiram apenas sobre os conventos, sobretudo de mulheres, não sobre os laicos. Só o século XVI abrirá aos laicos os misteriosos santuários da meditação e da contemplação. E, por outro lado, estes místicos são sempre um pouco suspeitos, suspeitos de panteísmo, como diziam os teólogos, panteísmo, palavra pesada. Mas é bem verdade que, no seu conjunto, o pensamento cristão alemão se inclina para este lado, e não para o outro. E que isso bastava para criar uma fronteira...

Pois bem, é contudo um alemão, um saxão, este Lutero, filho de contramestre, este Lutero, alemão do povo, alemão de um povo ao mesmo tempo tão grosseiro e tão puro, tão cantante e tão insultuoso, tão brutal e tão musical, é um alemão que desencadeia, no século XVI, sobre todo o

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! ; ’2ííVi A EUROPA

mundo cristão do Ocidente (e não somente na Alemanha) uma grande tempestade que tudo sacudiu, tudo abalou, que deitou por terra tantos velhos edifícios seculares, que sentiu a necessidade de tal recuperação, de tal refeitura de toda a morada cristã. A Alemanha é forte para destruir, para matar, para reconstruir, não. Ou melhor, esta Alemanha só sabe reconstruir uma coisa, uma só: a Alemanha. E se ela sonhou, se ela sonhou sempre com a Europa foi, sabemo-lo, inútil que no-lo diga, com uma única Europa: a Alemanha. Uma Alemanha generalizada, extravasada? Nem isso. Uma Alemanha alemã, dominadora, esmagadora, mas sem fusões.

Como actuou esta reforma luterana para dividir a Europa em duas? Como recarregou esta reforma luterana com uma poderosa carga de elementos nórdicos um cristianismo ressequido?

Como é que esta reforma luterana, impotente para substituir a Igreja romana por uma Igreja wittemburguesa, a Igreja de Pedro pela Igreja de Lutero, como é que esta reforma que, de cristã, se tornou alemã, francesa, suíço-alemã, britânica, escocesa, etc., como é que esta reforma provocou, por reacção, uma recarga em elementos meridionais, em elementos mediterrânicos, no velho mundo europeu perturbado, assombrado, seduzido mas não conquistado e restabelecido nas suas bases pela Reforma, este drama, não falei dele, eu sei. E é uma das numerosas lacunas destes cursos que hoje pretendo apenas colmatar.

Não, o que eu queria era o seguinte. A Europa de que vos falei, o que é? É uma Europa humana. Quando é que há uma Europa? Ou eu me enganei redondamente ou então resulta destas lições que só há uma Europa não quando nos habituámos a reunir sob um mesmo nome países diversos, mediterrânicos e nórdicos, que certos dominadores [?], homens como Carlos Magno, tinham conseguido agrupar por algum tempo sob o seu mando. Porque estas dominações são efémeras e se, uma vez desaparecidas, deixam rasto; se o facto de terem existido não for suficiente; se, por exemplo, tratando-se do Império Carolíngio, insisti nesta prefiguração do que é para

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nós a Europa, não é menos verdade que, dois séculos após a criação em Roma, pelo papa Leão, desta Europa, do que nós chamamos Europa, não é menos verdade, o que nós chamamos Europa não oferece a imagem de um agrupamento, mas, pelo contrário, de uma desunião, do que nós chamamos anarquia feudal.

Não. Houve Europa quando um certo número de Ocidentais, importantes pela acção que exercem sobre os seus contemporâneos - acção intelectual, moral, política - se sentiram e se proclamaram Europeus; quando o facto de se ser europeu (e já não cristão, já não alemão, francês, italiano) assumiu um valor considerável aos seus olhos; quando este facto, o dizerem-se europeus, os opôs aos restantes homens que não eram europeus lhes deu um sentimento de orgulho, de dignidade e em breve de superioridade, precisamente o que faz do Europeu o sal da terra, o rei dos animais, dos animais humanos.

Ora isto aconteceu tarde. Isto, a bem dizer, data do século XVIII. Isto precisou de longa preparação, dois séculos pelo menos de preparação. O grande ponto de partida para esta novidade é só no século XVI, não antes. Foi preciso a América, o Renascimento, a Reforma. Foi preciso a destruição da noção de cristandade. Foi preciso a Reforma, de que falava, que tudo fez para quebrar definitivamente esta noção de cristandade, a Reforma após o que (a despeito dos prolongados esforços dos defensores da cristandade, de uma cristandade renovada, conquistadora, que nunca se confessasse vencida), a Reforma, após o que passou a haver apenas Estados nacionais, estados nacionais que no tempo de Sully houve quem sonhasse unir, federar...

• Plano da política. Plano da organização. Mas não é o importante. O importante é o plano cultural. Houve uma Europa sentida como cultura, uma Europa orgulhosa da sua cultura, antes de haver uma Europa para diplomatas. Houve a Europa dos eruditos, gelehrte Europa, antes de haver a Europa dos estadistas. E esta Europa dos eruditos está ligada à tomada

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i H> A EUROPA

de posse de uma civilização pelas resultantes espirituais da Europa, de uma forma nova ou renovada de civilização. Enquanto a civilização ocidental pôde ser definida [como] civilização cristã, a palavra que serviu para designar de uma assentada os portadores desta civilização no Ocidente foi a palavra, pôde ser a palavra cristandade.

Quando a civilização cristã da Idade Média - essencialmente, fundamentalmente, eminentemente cristã - se torna uma civilização ainda fortemente cristã mas já nutrida de outros elementos (em particular do elemento antigo trazido pelo Renascimento); quando a decoração antiga substitui por toda a parte a decoração cristã; quando já não se diz Deus mas Superi, até mesmo Júpiter; quando já não se diz arcanjos mas heroes, nem santos, mas dive; quando (mantendo-se sempre cristã e, quando era recusado o cristianismo, mantendo-se saturada, quer queira quer não, de cristianismo), quando se usa constantemente maneiras de dizer pagãs e referências morais pagãs, a civilização que assim se afirma ao tempo do Renascimento e que reforça o orgulho dos seus portadores teve que receber um nome, não? Foi a civilização europeia.

Mas uma civilização tende a tornar-se uma organização. Foi assim com a civilização europeia. Tendia a reforçar a Europa, a Europa política. E foi este o trabalho diplomático do século XVII, foi o congresso de Vestfália. Foi o sistema da balança e do equilíbrio, da balança europeia, do equilíbrio europeu.

Em suma, é uma história psicológica. É certo que as realidades históricas e políticas contam. São primordiais. Sim, se quiserem. Mas depressa se esboroam se não forem fortemente apoiadas por outras realidades, realidades psicológicas e morais.

Europa. Tudo isso está muito bem, dir-me-eis, mesmo assim, Europa é um nome geográfico. Fala-nos sempre da Europa como historiador. Fala-nos da Europa como historiador da política e da cultura. Mas, enfim, os livros

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em cuja lombada se lê o nome Europa são atlas e tratados de geografia.

Europa é a tomada de consciência psicológica de realidades históricas. Seja. E as realidades geográficas? Há uma Europa dos geógrafos. A prova é que em todos os escaparates de livraria há mapas da Europa. A prova é que a primeira lição de geografia é a Europa. Porquê o silêncio sobre esta realidade? Falava de lacunas. Aí está uma, e de monta.

Respondo simplesmente: a Europa de que me falam, esta Europa geográfica, mas não é de maneira nenhuma um dado assente. É uma criação, uma laboriosa criação, uma criação tardia. ;|$i

m Sim, o rótulo é velho. Disse-o na minha primeira lição, muito velho, mas durante séculos não passou de um rótulo, ou melhor, de uma simples convenção de cosmografia dos continentes. Foi precisa a tomada de posse científica pelo homem, a exploração que acaba de se consumar (Extremo-Norte).J”iH

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História da civilização moderna M Lucien Febvre, professor1

O curso deste ano incidiu sobre a noção de Europa. Esta noção francesa que vimos, durante quatro anos, voltada contra a França por «Europeus» de promoção recente. Esta noção que ocupou um lugar tão grande na formação do ideal francês de civilização no século passado.

Como nasceu? Que quer dizer e de onde vem a própria palavra Europa? A que correspondia no espírito dos Gregos? Era uma realidade territorial, sentida como tal pelos «Europeus» da proto-história europeia - ou, muito simplesmente, foi uma concepção teórica do mundo terrestre e das suas divisões que traduziu esta palavra para a língua dos que foram os primeiros a empregá-la? Que Europa tenha começado por significar um quadro vazio - e que o problema tenha sido, desde a origem, preencher este quadro com realidades verdadeiras e sólidas - é precisamente isto o que ressalta, sobre a evolução de um dos conceitos mais familiares aos homens de hoje, dia assaz curioso.

l Reproduzimos aqui o resumo do curso dado por Lucien Febvre tal como foi publicado em: Annuaire du Collège de France, 4 f année. Paris, 1946, p. 151-152.

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Como ocorreram na história as sucessivas prefigurações da Europa; como a mais considerável de todas foi o Império Romano; que relação mantém a noção deste Império com a própria noção de Europa; como, na realidade, a Europa só nasceu depois das invasões e da fusão de dois elementos essenciais à sua constituição e concepção: um mediterrânico, o outro nórdico; de maneira que, melhor que o Império Romano, o Império Carolíngio está nas origens da longa história «europeia» no sentido preciso e restrito do termo; como, por outro lado, é por reacção contra a Ásia, o mundo asiático, a civilização asiática que nasce, como por si, a Europa medieval e a civilização europeia - lentamente, dificilmente: todas estas perguntas, feitas sucessivamente, permitiram dar a volta a um problema histórico que, bruscamente, na era moderna, se alarga e amplia. É o século XVIII, herdeiro do século XVII, que dá forma à noção de Europa: a sua forma ideal e cultural. É o século XVIII que faz da Europa uma espécie de pátria dos espíritos, superior às pátrias terrestres. Até ao dia em que a revolução, dando ao conceito de nação um sentido que até então não tivera, introduz no conceito de Europa elementos novos e explosivos.

Toda esta história foi trazida até aos nossos dias. Temos esperança de que seja retomada para fornecer a matéria de um livro. Esse livro colocará como conclusão o grande problema: a Europa, uma noção ultrapassada ou uma necessidade vital para o progresso do mundo? Devemos sonhar com a Europa - ou poupar-nos a esta noção ultrapassada?~CÍ WiíWtó íí.% .!jl’íS*!J>1’^ ”-’”•-

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ÍNDICE DE REFERENCIA

Este índice inclui os nomes de lugares (em itálico) e os nomes de pessoas: personagens históricos, autores ou editores de textos. Esforçámo-nos por, na medida do possível, mencionar as datas de nascimento e de morte de todos os personagens identificados, com exclusão de autores ainda vivos.

Abássidas, 70, 189

Abd-el-Rahmann, emir de Espanha (m. em 732),

164

Abelardo, (1079-1142), 191 Abelinus, Johann Philipp (1600-1634), 226 Açoka, imperador (c.273-237 a.C.), 51 Açores, 109 Adalberto, santo, bispo de Praga (c. 956-997),

312

Aden, 333

Adriano VI, papa (1459-1523), 197, 200 Adriático, 42 África, 34, 40, 49, 54, 78, 96, 104, 108, 118,

120, 124, 127, 141, 164, 168, 184, 188, 204,

217, 233, 331

África Menor, 55, 87, 104, 169 África, Norte de 68, 78, 87, 89, 127 Agostinho, santo (354-430), 77, 79, 87, 309 Agrícola, Cnaeus Julius (40-93), 74 Aix-la-Chapelle, 98, 122, 281 Albeniz, Isaac (1860-1909), 384

Alberto de Brandeburgo, duque da Prússia

(1490-1568), 200

Alberto Magno, santo (1206-1280), 191 Alcuíno (c. 732-804), 98 Alemanha, 70, 101, 106, 107, 111, 125, 136,

144, 178, 181, 205, 207, 236, 270, 271, 287,

291, 298, 310, 312, 326, 330, 382, 385, 394 Alembert, Jean Lê Rond d’ (1717-1783), 271 Alexandre I, czar (1777-1825), 55 Alexandre Magno (356-323 a.C.), 57 Alexandria, 55, 100, 105, 107, 163, 207 •<

Alfarabi (872-950), 191 Allen II, 202

Al-Mansur (Almançor), (7-1002), 128 Alperto, monge (início s. XI), 157 Alpes, 88, 97, 151 Alsácia, 291 Ambrósio, santo, 176 América 40, 68, 109, 141, 168, 173, 204, 233,

309, 310, 325, 331, 333, 381 América do Norte, 124 América do Sul, 49, 78

403

LUCIEN FEBVRE

Amiens, 27, 291

Amur, 320

Amsterdam, 257, 265

Ana, irmã de Basílio II, imperador do Oriente,

esposa de Vladimir I (s. X-XI), 315 Anastácio, bispo, 312 Andaluzia, 63, 79

Andernach, 75 . v^vae*••«+$».-««t*

Angélico, Guido di Pietro, dito Fra, (c. 1400-

1455), 207

Anselmo de Cantuária, santo. (1033-1109), 77 Antilhas, 316 Antioquia, 55, 100, 105 ;: s í*5’*’-*•»- -1 -

Apeninos 69, 196 au •Ot*Ci« <

Apuleio (c. 125-c.lSO), 77

Aquitânia, 27, 96

Arábia Petreia, 79, 109

Arábia, 87, 163

Aragão, 69

Arcoef, 68

Ardenas, 29

Arezzo, 71

Argel,42, 173, 309 ’*•’• =;;! :--í’”-í

Argélia, 78, 104, 107, 308, 322

Argentina, 309

Argenson, René-Louis du Voyer, marquês de

(1694-1757), 224, 285 Argonne, 29 Argun, 320

Aristóteles (384-322 a.C.) 89, 191, 207 Armor, 68

Arnaud, François, abade (s. XVIII.), 265 Artaxerxes, (rei de 465 a 424 a.-C.), 119 Artois, 29 Ásia, 40, 48, 83, 86, 94, 113, 118, 122, 125, 141,

163, 168, 169, 183, 188, 190, 198, 217, 233,

310, 314, 317, 319, 325, 331, 333, 381 Ásia Menor, 55, 56, 63, 68, 100, 105, 163, 169,

171

Assíria, 45

Assurbanípal, (rei de 669 a c.631 a.-C.), 119 Atenas, 100, 105, 137, 290 Ática, 53

Átila (c 395-453), 163 Atlântico (oceano) 40, 64, 164, 168, 182, 309,

316 >

Aubusson, Pierre-Arnaud de (1717-1797), 267; Augsburgo, 311

Augusto, (63 a.-C.-14 d.-C.), 48, 74, 270 ;

Aulard, François-Alphonse (1840-1928), 341 Austrália, 49, 141, 244 Áustria, 106, 123, 179, 207, 224, 225, 255, 260,

274, 283, 291, 299, 311 ^,, f. Autun, 164, 169

Auvergne, 246, 290 *» **# ’*^ Averróis, Ibn Rud, dito (1126-1198), 191 Avicena, Ibn Sina (980-1037), 191 Avignon, 164 :4í/.í||-í

B

Babilónia, 55, 209

Bagdade, 156

Bailly, Anatole (1833-1911), 343

Bakunine, Mikhail Aleksandrovitch (1814- 1876),

126

Balcãs, 68, 107, 132, 319 Báltico, 42, 123, 150, 165, 168, 171 Barcelona, 35, 85, 171, 257 Baruzi, João (1881-1953), 227 Basileia, 75

Bataillon, Mareei (1895-1977), 197 Bergson, Henri (1859-1941), Berlim, 237, 257, 291 Bernardo, S. (1090-1153), 129, 136 Berr, Henri (1863-1954), 7 Besançon, 27 Bética, 100, 105

Beugnot, Albert (1783-1815), 285 Bilbau, 85 Bingen, 75 Bizâncio, 70, 121, 151, 155, 162, 184, 189, 191,

207, 215, 315, 318

Bloch, Marc (1886-1944), 8, 81, 93, 95, 114, 148 Boccacio, Giovanni (1313-1375), 208 Bodin, Jean (1530-1596), 198 Boécio (c. 480-524), 163 Boémia, 56, 101, 123, 125, 145, 181, 312, 396 Boigne, Éléonore-Adèle d’Osmond condessa de

(1781-1866), 253 Boiste, Pierre Claude Victor (1765-1824), 278

404

a»¥« A EUROPA

Boleslas Dubravka, 312 &.&.*$f$%&Wi

born, cabo, 34 .•*?•#&} ã ’• v-:ú^

Bona, 71,75, 79

Bonaparte ver: Napoleão

Bonifácio, S., Wynfrid dito (c. 675-754), 98, 312

Bonnard, Sylvestre (personagem de romance de

Anatole France), 199 Boppard, 75

Barganha, 141, 185, 216, 227, 290, 291 Bossuet, Jacques Bénigne (1627-1704), 77, 209 Boston, 291 Botticelli, Sandro di Mariano Filipepi, dito

(1445-1510), 207, 303 Bougainville, Louis Antoine de (1729-1811),

244

Boulanger, Nicolas-Antoine (1722-1759), 59 Bourbon, Carlos In, duque, dito Condestavel de

Bourbon (1490-1527), 327 Bourgoing, Jean-François de (1745-1811), 267 Brandeburgo, 311, 316 Brasil, 206, 309, 316

Bratianu, Gheorghe I. (1898-1953), 70, 187 Braudel, Fernand (1902-1985), 8 Bremen, 100, 105

Brémond, Henri, abade (1865-1933), 203 Bretanha, 71, 106, 123, 290, 291 Brissot de Warville, Jacques-Pierre (1754-1793),

254, 260, 261, 265 Brueghel, Pieter, dito o Velho (c.1529-1569),

302

Bruges, 216

Brunot, Ferdinand (1860-1938), 76, 251 Buache, Philippe (1700-1773), 49 Buchez, Philippe Joseph-Benjamin (1796-1865),

369

Budapeste, 85 Buenos Aires, 58, 60 Buffon, Georges-Louis Leclerc, conde de (1707-

-1788), 246, 359 Burgos, 207 Burnouf, Jean-Louis (1775-1844), 347

Cabo, Cidade do, 42 Cairo, 107

Calmette, Joseph, 178 ”-11 ^ *”*** ””* ’**«<KI

Calvino, João (1509-1564), 77, 205

Campania, 71

Campbell, John (1708-1775), 49

Campo Santo (Pisa), 303

Canadá, 309, 316

Canárias, 109

Candar, Gilles, 338

Capitant, René, 11

Caraccioli, Luigi António de, (1719-1803), 248

Carcassonne, 164

Caríntia, 123

Carlos In, rei de Nápoles (1345-1386), 313

Carlos IV de Luxemburgo, rei de Boémia, depois

imperador (1346-1378), 313 Carlos Magno (Carolus Magnus), (742-814), 98,

103, 105, 106, 108, 121, 128, 131, 139, 147,

159, 169, 182, 202, 311, 313, 397 Carlos Martel, prefeito do palácio franco (c. 688-

741), 164 Carlos o Temerário, duque da Borgonha (1433-

1477), 183, 294 Carlos V, imperador (1500-1558), 173, 195, 294,

382, 394 Carlos V, rei de França (1338-1380), 144, 200,

202, 217

Carlos VI, rei de França (1368-1422), 186 Carlos XII, rei de Suécia (1682-1718), 236 Carlos-Roberto, rei da Hungria (1288-1342), 313 Carrel, Alexis (1873-1944), 350 Cartago, 55, 79, 100, 104, 105, 164, 171 Caruso, Enrico (1873-1921), 384 Casablanca, 107

Casanova, Giovanni Giacomo (1725-1798), 258 Cáspio, mar, 165 Cassino (monte), 163 Cassiodoro, Flavius Magnus Aurelius, (c. 490-c.

580), 163 Cassis, 109 Catalunha, 69, 187

Catarina II, a Grande (1729-1793), 247, 296 Catai, 204 Cáucaso, 55 Cerbère (cabo), 29 César, Caius Julius (c.101- 44 a.-C.), 108

405

LUCIEN FEBVRE

Cesârio de Aries, São (c. 470-542), 163

Chade,34

Chaliapine, Fedor Ivanovitch (1873-1938), 384

Chamard, Henri (1867-1952), 353

Champagne, 35, 177, 182

Charmasson, Thérèse, 338, 339, 341

Checoslováquia, 326

Chevalier, Auguste (1873-1956), 346

Chilka, 320

China, 61, 63, 127, 187, 190, 320, 383

Chipre, 70, 109, 164, 187

Chuquet, Arthur (1853-1925), 262

Cid Campeador, Rodrigo Diaz de Bivar, El

(1043-1099), 128 Circuncisão (terra da), 49 ;; drena, 105

Cirilo, dito o Filósofo, São (c. 827-869), 316 Ciro o Grande, rei dos Persas e dos Medos (rei

em 550-530 a.-C.), 119 Cirta, 77, 105

Cisalpina (província romana), 74 Cítia, 42 Clemente VII, Júlio de Medíeis, papa (1478-

1534), 200 Clèves, 179

Cloots, Anacharsis (1755-1794), 262, 289, 333 Clotilde, esposa de Clovis, santa (c.475-545),

314

Clovis I, rei dos Francos (c. 466- 511), 25, 311 Cluny, 31, 135 Colombo, Cristóvão (c. 1451-1506), 124, 204,

316

Colónia, 27, 71. 75, 197, 207, 226, 249, 288 Cólquida.48, 55 Comenius, João Amos Komensky, latinizado

(1592-1670), 240 Commynes, Philippe de (c. 1447-1511), 12, 178,

188

Compostela, 128

Conde, Louis-Joseph, duque de Bourbon, príncipe de (1736- 1818), 246 Condorcet, Jean Antoine Nicolas de Caritat,

marquês de (1743-1794) 271 Congo, 118 Conrado In de Hohenstaufen, imperador (c.

1093-1152), 176 •”,.” - • -•> l •„-•(.-.* Constantino I o Grande, (c. 280-337), 121 Constantinopla, 100, 107, 191, 315, 318 Cook, James (1728-1779), 49, 244 Córdova, 100, 189, 191 Corneille, Pierre (1606-1684), 304 Córsega, 97, 104, 155 Cottret, Monique, 338 Cousin, Victor (1792-1867), 252, 278 Cracóvia, 85

Crespin, Jean (1520-1572), 205, 209 Creta, 114 Creusot (Lê), 300

Cristiano II, rei da Dinamarca (1481-1559), 200 Cromwell, Thomas (c. 1485-1540), 395 Curlândia, 26, 247

D

Damasco, 163, 191

Dandolo, Giovanni, doge de Veneza em 1280-

-1284, 176

Dante Alighieri (1265-1321), 77, 128, 191, 208 Danúbio, 42, 56, 100, 106, 319 Danzig, 85 Dardanelos,64

Dario I, rei da Pérsia (522-486 a.-C.), 119 Debussy, Claude (1862-1918), 384 Delaisi, Francis (1873-1947), 85 Delcourt, Marie, 356 Delfinado, 290 Delfos, 42

Dellile (não identificado), 202 Delos, 42

Demangeon, Albert (1872-1940), 381 Descartes, René (1596-1650), 219, 271, 383, 387 Diderot, Denis (1713-1784), 242, 247, 296, 298,

308

Dinamarca, 41, 179, 200 Dniepr, 314 Dodona, 42

Dom Juan, personagem de Molière, 231 Domingos, São (c. 1170-1221), 396 Don, 317 Donatello, Donato di Niccolo di Betto Bardi, dit

(1386-1466), 303

406

•Â EUROPA

Dostoievski, Fiador Mikhailovitch (1821-1881),

125 Dragut, aliás Turgut Reis, corsário turco (s.

XVI), 95

Drake (estreito de), 49 Driart, Pierre (s. XVI.), 196, 197 Du Bellay, Joachim (c. 1522-1560), 195, 203 Duas Sicílias (reino das),26 Ducos, Jean-François (1765-1793), 264, 369 Dumont-Pigalle, P.-A., 267 Duns Escoto, João (c. 1266-1308), 396 Diirer, Albrecht (1471-1528), 207 Duurstede, 157

Edrisi ou al-Idrísi (c.1110-1166), 191

Éfeso,55, 105

Egeu 55

Éginhard ou Einhard (c. 770-840), 98, 128

Egipto, 45, 48, 55, 96, 97, 103, 109, 169. 189,

325

Einstein, Albert (1879-1955), 383 Elba, 70, 100, 106, 123, 236, 396 Erasmo, (1469-1536), 199 Erfurt, 100, 105 Escandinávia, 45 Escócia, 179, 181, 206 Espanha, 32, 41, 63, 70, 79, 88, 96, 103, 107,

120, 162, 168, 169, 179, 181, 190, 202, 204,

205, 283, 291, 316, 326 Espérandieu, Émile (1857-1939), 45 Espinchal, Thornas, conde de, 246, 365 Espira 76 Essen, 300 Estados Unidos, 309 Esterlich, Juan, 355

Estêvão In, rei da Hungria (1147-1172), 313 Estissac, Guillaurne de, bispo (s. XVI.), 197 EstocolmoA\, 85 Estónia, 134

Estrabão (60 a.C.-20), 48 Estrasburgo. 76, 209, 260, 266 Étienne, Eugène (1844-1921), 321 Eubeia, 42 Euclides (323-285 a.-C.), 235

p ”l..-Ki.,tó.t,^.::fi,W >í .;••• . •-: ^w-,..:

Fasélis, 55

Fásis, 48

Fatimidas, 189

Fauré, Gabriel (1845-1924), 384

Febvre, Henri, 15, 21, 338, 339, 347

Febvre, Suzanne, 338, 339

Fénelon, François de Salignac de La Mothe

(1651-1715), 229, 230, 231, 235, 242, 244,

245

Fernando I, imperador (1503-1564), 200 Filadélfia, 291 Filiberto de Chalon, 213 Filipe II, (1527-1598), 9, 294, 382, 394 Filipe In o born, duque da Burgonha (1396-

1467), 185

Filipe o Belo, rei de França (1285-1314), 159 Finlândia, 134 Fioravanti, Aristotele, arquitecto italiano (s.

XVI.), 318 Flandres, 29, 151 Flavius Josephus (37-c. 100), 63 Florença, 62, 69, 85, 175, 178, 189, 215, 257,

302, 330, 384 Fontenelle, Bernard Lê Bouyer de (1657-1757),

226

Forville de (não identificado), 173 Francisco de Assis, S. (c. 1181-1226), 32 Francisco I, rei de França (1494-1547), 200, 316,

393

Franco Condado 35, 223 Frankfiirt-am-Main, 226 Fredegário, pseudo- (meados do s. VII), 88 Frederico II o Grande, rei da Prússia (1712-1786),

202,247,285,296,329 Frederico In o Sábio, eleitor da Saxónia (1463-

-1525), 200 Frísias, ilhas,l06

Fronton, Marcus Cornelius Pronto, retórico latino (c. 100- c.175), 77 Funck-Brentano, Frantz, 36

G

Gades, 100

Galand, Lionel, 11 •407

LUCIEN FEBVRE

Gália, 56, 86, 87, 105, 120, 124, 127, 168, 169

Galileia, 63

Galitch, 317

Galiza, 136

Gand, 27, 192, 331

Garrod, Heathcote William, 355, 356

Gattinara, Mercurino (s. XVI), 199

Gautier, Émile-Félix, 78

Genebra, 10, 12, 209, 387

Genetareth, 63

Gengis Khan Temudjin, grande khan dos

Mongóis (1155 ou 1167-1227), 163, 317 Génova, 69, 171, 175, 178 Genserico, rei vândalo de África, (428-477), 104 Germânia,56, 85, 106, 114, 312 Gibraltar, 64, 95, 97, 164, 169 Gilson, Étienne (1884-1978), 6 Giorgione, Giorgio da Castelfranco, dito (1477-

-1510), 303 Gniezno, 312

Godofredo de Bulhão, (c. 1060-1100), 172 Goethe, Johann Wolfgang von (1749-1832), 252,

271 Gorki, (Alexis Maximovitch, dito Máximo)

(1868-1936), 125 Gotlândia, 165

Goulart, Simon (1543-1628), 205 Gourgaud, Gaspard (1783-1852), 284 Gozzoli, Benozzo (1420-1497), 62 Grã-Bretanha, 86, 106 Granet, Mareei (1884-1940), 50 Granvelle, 199

Granvelle, Antoine Perrenot de (1517-1586), 199

Grécia, 41, 42, 44, 54, 56, 63, 100, 105, 118,

s 122, 168, 189, 207, 209, 237, 282, 290, 326,

382

Grégoire, Henri (1750-1831), 260 Gregório I, dito Gregório o Grande, S. (c. 540-

604), 163 Gronelândia, 315 Grotius, Hugo (1583-1645), 226 Guadalupe, 322 Gueldre, 179 Queima, 79 Guichardin, François (1483-1540), 215

Guilherme de Occam (fim do s. XIII-c. 1349), 396 Guillaume I, o Bastardo ou o Conquistador,

duque da Normandia, rei de Inglaterra (1027-

1087), 315

Guiscard, Robert, 191 Gundestrup, 45 Gutenberg, Johannes Gensfleisch, dito (ant.

1400-1468), 288

H /!

Habsburgo, dinastia, 299, 327 ••#’

Haia, 265, 387 q

Hanover, 123 j,

Hansa, 150, 179

Harun al-Rachid, califa persa (766-809), 122 J Hatin, Eugène (1809-1893), 270 |

Hauterive, Ernest de (1864-1957), 365 n

Hecateu de Mileto (c. 540-c. 480 a.-C.), 47, 48 Heduíge, rainha da Polónia, (1370-1399), 313,

314 Hegel, Georg Wilhelm Friedrich (1770-1831),

252, 278, 287 Henrique IV, rei de França (1553-1610), 143,

211, 214, 224, 273, 395 Henrique VIII, rei de Inglaterra (1491-1547),

200, 203

Henrique, Infante D. (1394-1460), 109 ;

Hentzner, Paul (s. XVII), 208 Herder, Johann Gottfried von (1744-1803), 329 Heródoto (c. 484 - c. 425 a. C.), 42, 43, 48, 62,

78, 120

Hohenzollern, dinastia, 327 Holanda, 316 Holbach, Paul Henri Dietrich, barão de (1723-

1789), 59

Holleaux, Maurice (1861-1932), 99 Hugo, Victor (1802-1885), 272, 289, 290, 308 Hungria, 26,56, 127, 181, 312, 319 Hus, Jan (v.1372-1415), 240

I

Ibéria, 56, 68

léna, 287

Igor, príncipe de Kiev (c. 875-945), 315

Inácio de Loyola, Sto, (c. 1491-1556), 32, 204

408

W” A EUROPA

índia, 43,49,51,55,109,204,309,322,325,333

Indo, 55

Indochina, 43

Inês de França, filha de Luís VII, 313

Inglaterra, 26, 51, 71, 137, 163, 181, 200, 202,

205, 207, 249, 271, 278, 291, 315, 316, 393 Irkutsk, 320 Irlanda, 41, 181 Isabel da Baviera, esposa de Carlos VI (1371-

1435), 185

Isidoro de Sevilha (c. 560-636), 163 Islândia, 315 /síria, 124 Itália, 32, 41, 56, 63, 68, 69, 71, 96, 99, 105,

106, 120, 123, 136, 143, 146, 162, 175, 178,

181, 189, 197, 204, 215, 237, 270, 291 Ivan In, Vassilievitch o Grande (1440-1505), 318

J

Jacquard, Joseph Marie (1752-1834), 302

Jahn, Friedrich Ludwig, 278, 288

Japão, 51, 321

Jaurès, Jean (1859-1914), 254

Jean I de Luxemburgo, dito o Cego (1296-1346),

313

Jerusalém, 105, 163 João Baptista, S., 176 João II o born, rei de França (1319-1364), 177,

313

João Sem Medo, duque da Borgonha, conde de T Nevers (1371-1419), 185 Joliclerc, voluntário no exército da Revolução,

36, 275

Joliot-Curie, Frédéric (1900-1958), 387 Jorge da Saxónia, duque (s. XVI), 200 José II de Habsburgo-Lorena, imperador (1741-

1790), 266, 296

Joubert d’Hérault (s. XVIII), 262 Jourdain de Saint-Ferjeux (s. XVIII), 266 Joutard, Philippe, 338 Jugoslávia, 326 Juliers, 179

Júlio I, S. (papa de 337 a 352), 72 Júlio II, Giuliano delia Rovere, papa (1443-1513),

387 ..

Jullian, Camille (1859-1933), 31, 75 ”A •

Jura, 151, 206, 275

Justiniano I, imperador do Oriente, (482-565),

88, 121, 131, 189 Jutlândia, 71

K

Kairuan, 164

Kamtchatka, 320

Karlowitz, 319

Kiev, 156, 315, 317

Kõnigsberg, 132

Kremlin, 318

Kropotkine, Piotr Alexeievitch, príncipe (1842-

-1921), 126

Krupp, Alfred (1812-1887), 300 Kurratchi, 55

La Fontaine, Jean de (1621-1695), 242

La Haye, 265, 387

La Révellière-Lepeaux, Louis-Marie de (1753-

1824), 262 Labrador, 315 Ladislau II Jagelão, príncipe da Lituânia, rei da

Polónia (c.1350-1434), 314 Laguna, Andres de, 197 Lamartine, Alphonse de (1790-1869), 290, 300 Languedoc, 27, 395

Lãs Cases, Emmanuel de (1766-1842), 282 Lavoisier, Antoine-Laurent de (1743-1794), 220,

300 Lê Mercier de La Rivière, Pierre-Paul-François-

Joachim-Henri (1720-1793), 242, 266 Leão In, papa (750-816), 107 Leão X, João de Médicis, papa com o nome de

(1475-1521), 200 Lebrun-Tondu, Pierre-Henri-Marie Lebrun, dito,

265 Leclerc, (Philippe Marie de Hauteclocque, dito)

(1902-1947), 34 Lecuir, Jean, 338 Lefebvre Dês Noettes, Charles, comandante,

113, 114, 190 Leibniz, Gottfried Wilhelm (1646-1716), 226,271

409

LUCIEN FEBVRE

Léman (lago), 87

Leningrado, 126

Lenoble, Robert (1900-1959), 219

Léonard, Frédéric, 226

Lérins, 163

Leybach, 281

Leyde, 75 -,$

Líbano, 63 i ,

LíWa, 48, 53, 83, 120 •«

Lfcw,55

Liège. 139, 172, 266

Linage de Vauciennes, P., 220

Lisboa, 41, 257

Littré, Émile (1801-1881), 373

Lituânia,l34, 314

Loire, 131

Lombardia, 63, 106, 123

Londres, 203, 207, 226, 291

Lorena, 290, 291

Lortet, P., 278 • • - -

Lotaríngia, 106

Louvet de Couvray, Jean-Baptiste (1760-1797),

261

Lwfcecí:, 9, 70 Lucrécio, Titus Lucretius Carus (c. 98-c. 55 a.

C.), 45 Luís de França, duque da Borgonha (1682-1712),

229

Luís I, rei da Hungria (1326-1382), 312 Luís IX, São, rei de França (1214-1270), 312 Luís VII, o Moço, rei de França (1120-1180),

186, 313 Luís XI, rei de França (1423-1483), 143, 178,

183

Luís XIII, rei de França (1601-1643), 132 Luís XIV, rei de França (1638-1715), 143, 144,

214, 225, 229, 270, 286, 294, 394 Luís XV, rei de França (1710-1774), 229, 249 Luís XVI, rei de França (1754-1793), 251 Lúlio, Raimundo (c. 1233-C.1315), 191 Lusignan, dinastia, 70, 187 Lutero, Maninho (1483-1546), 13, 77, 200, 205,

288, 394 Lyon, 100, 208, 302

M- ••• •:.-.-•_. -n;:

Macedónia, 105

Madagáscar, 316, 321

Madeira, 109 ..•>’

Madrid. 257, 299 Ӓ

Magdeburgo, 70, 100, 105, 396

Maginot (linha), 120 ,

Magrebe, 77, 87, 93, 96, 162, 164 ’

Mahler, Gustav (1860-1911), 384 ’”,

Maillard, Olivier, 201

Maimónides, Moisés (1135-1204), 191 ,,

Ma/áí/a,316

Manitoba, 388

Maomé (c. 570-632), 84, 98, 106, 131, 184, 198

Maquiavel, Nicolau (1469-1527), 215

Marat, Jean-Paul (1743-1793), 266

Marco Aurélio (121-180), 72, 77

Marcos, S., 176

Margarida de Angoulême, rainha de Navarra

(1492-1549), 8

Margarida de Áustria (1480-1530), 199 Maria Teresa, imperatriz da Áustria (1717-

1780), 226, 296

Marot, Clément (1496-1544), 208 ,_.

Marquesas, 244 Marrocos, 104, 107 Marselha, 97, 109, 112, 171, 175 Martinica, 322

Masarick, Thomas Garrigue (1850-1937), 240 Massiac, 246

Mauss, Mareei (1872-1950), 61 Maximiliano I, imperador (1459-1519), 144, 199 Mayerne, Louis Turquet de (c.1550-1618), 208,

356

Mayerne, Théodore Turquet de (1573-1655), 208 Mediterrâneo, 16, 29, 43, 51, 55, 61, 63, 68, 77,

78, 83, 84, 86, 94, 96, 98, 103, 107, 112, 119,

120, 123, 124, 131, 138, 151, 154, 155, 162,

171, 175, 182, 308 Meillet, Antoine (1866-1936), 56 Melgueil, 176 Menant, Sylvain, 366 Menot, Michel (7-1518), 201 Mercator, Gerhard Kremer, dito Gerardus (1512-

1594), 204

410

3&Vl:: A EUROPA

Merseburg, 31L

Mersenne, Mann (1588-1648), 219, 220

Mesopotâmia, 56, 189

Messina, 95, 164

Metódio, São (c. 825-885), 316

Michelet, Jules (1798-1874), 8, 16, 34, 154, 159,

186, 221 Mieczyslaw, 312 Milão,\16, 207, 215 Minnesota, 388 Mirabeau, Honoré Gabriel Riqueti, conde de

(1749-1791), 254, 260 Mogúncia, 71, 76, 312, 313, 396 Monge, Gaspard (1746-1818), 300 Monglond, André, 240, 267 Mongólia,! 17

Montaigne, Michel Eyquem de (1533-1592), 80 Montesquieu, Charles-Louis de Secondat, barão

de Breda e de (1689-1755), 232, 240, 241,

243, 251, 379

Montholon, Charles Tristan (1783-1853), 285 Montpellier, 176 Mosa, 121, 131 Moscóvia, 101, 247 Moscovo, 237, 315, 317, 319 Moussorgsky, Modest Petrovitch (1839-1881),

126 Muller, Bertrand, 340, 346, 347, 348, 349, 351,

355, 359, 361, 371, 372, 376 Munique, 330, 384 M uns te r, 100, 105

Miinster, Sebastian (1489-1552), 204, 226 Murcia, 97

N

Napoleão I, Napoleon Bonaparte dito, imperador

(1769-1821), 108, 145, 272, 282, 294, 394 Nápoles, 41, 109, 215, 248, 257, 302 Narbonne, 164, 284 Náucratis, 55 Neuchâtel, 266 Neuss, 75

Newton, Isaac (1642-1727), 237 Nice, 63 ,

Niceia, 100 ’””” ” ” ”’ - v...” ’ --’

Nicoullaud, Charles, 366

Nilo, 48, 55, 87

Nimègue, 75

Nímes, 100

Ninive, 80

Negro (mar), 64, 165, 171

Normandia, 290, 291, 315

Norte, Mar do, 168

Noruega, 41, 46, 123

Nova Guiné, 49

Nova Holanda, 49

Nova Iorque, 321

Nova Zelândia, 141, 244

Novas Hébridas, 244

Novgorod, 156, 182, 315, 319

Nuretnberga, 208

O

Oceânia, 40, 141

Oder, 136

Odoacro, chefe dos Hérulos (c. 433-493), 88

Oka, 317

Olga, santa, princesa de Kiev (?-969), 315

Omíadas, 70, 189

Osnabriíck, 100

Ostrigom, 312

Otão o Grande, imperador (912-973), 312

Otberto, bispo de Liège (s. XI), 172

Pacífico, 244

Pahin Champlain de La Blancherie, 371

Países Baixos, 181, 200, 207, 216, 266

Palerma, 97, 164

Palmira, 80, 105

Paraguai, 309

Paris, 58, 60, 76, 132, 161, 191, 195, 200, 207,

249, 257, 265, 267, 290, 291 Pastel, Guillaume (1510-1581), 242 Patrick, St. (c. 389-461), 98 Paulo, S. (c. 5/15-c. 62/64), 59 Pauphilet, Albert (1801-1948), 11 Pauthier, Guillaume (1801-1873), 343

411

LUCIEN FEBVRE

Pavlov, Ivan Petrovitch (1849-1936), 126

Péguy, Charles (1873-1914), 15, 334

Peloponeso, 54, 114, 137

Pepino In o Breve, rei dos Francos (714-768), 98

Pergamo, 55

Persépolis, 55

Pérsia, 189, 209 •’ wh .*•

Peru, 316 >!*: ,”’-’’: ,-:-”

Petitot, M., 357

Petrarca, Francesco (1304-1374), 208

Petrogrado, 126

Pfister, Christian (1857-1933), 357

Picardia, 290

Picasso, Pablo (1881-1973), 387

Piccolomini, Aeneas Silvius, papa cora o nome de Pio II (1405-1464), 209

Pedro o Grande, Alexeievitch Romanov, dito, czar (1672-1725), 236, 314

Piemonte, 69

Pintard, René, 359 ’

Pirenne, Henri (1862-1935), 8, 84, 98, 131, 157,331, 385

Pirinéus, 106, 164, 169

Pisa, 69, 175, 303

Pitiusa, 55

Platão (428-348 a. C.), 207, 212

Plotino (c. 205-270), 207

Poitiers, 164, 169

Polo, Marco (c. 1254-1324), 42

Polónia, 101, 125, 132, 181, 237, 312, 314, 396

Pomerânia, 71

Pompadour, Jeanne Antoinette Poisson, marquesa de (1721-1764), 247

Pompeia, 57

Portugal, 179, 316, 326, 382

Potsdam, 247

Poussin, Nicolas (1594-1665), 126

Praga, 41, 312

Proudhon, Pierre Joseph (1809-1865), 158

Proust, Mareei (1871-1922), 16

Provença, 27, 114, 163, 164, 290

Prudhomme, Louis-Marie, (1752-1830), 266

Prússia, 255, 260, 274, 285, 291, 298, 326, 382

Prússia Oriental, 134

Ptolomeu, Claude (c. lOO-c.170), 191, 204

Quérard, Joseph-Marie, 373

R

Rabat, 107

Rabaut Saint-Étienne, Jean-Paul (1743-1793),

262, 279

Rabelais, François (1494-1553), 89, 197 Ramsés II, (c. 1300-1235 a. C.), 57 Ravena, 100 Raynal, Guillaume-Thomas, abade (1713-1796),

242, 244 Reims, 207

Renard, Jules (1864-1910), 60 Renaudet, Augustin (1880-1958), 355 Reno, 27, 56, 71, 72, 74, 88, 100, 105, 106, 121,

123, 131, 157, 169, 206, 236, 396 Rey, Abel (1873-1940), 47, 53 Riazan, 319

Richard, Jean-Pierre, 11 Richelieu, Armand Jean du Plessis, cardeal,

duque de (1585-1642), 132, 143, 224, 316,

394

Rivarol, Antoine de (1753-1801), 248, 272 Robert Guiscard, duque da Apúlia e da Calábria

(c.1015-1085), 128, 155 Ródano, 87, 100, 106 Rodes, 164

Rogério II, rei da Sicília (c.1095-1154), 191 Rolando, personagem de La Chanson de Roland,

30, 129

Rolland, Romain (1866-1944), 15, 339, 377, 390 Roma, 28, 71, 79, 98, 100, 104, 106, 128, 134,

144, 161, 163, 169, 189, 197, 205, 207, 209,

213, 290, 314, 318 România, 56, 57, 72, 93 Romanov, 316, 327

Ronsard, Pierre de (1524-1585), 195,196,198,203 Roão, 291 Rouget de Lisle, Claude-Joseph (1760-1836),

260 Rousseau, Jean-Jacques (1712-1778), 240, 242,

244,246,251, 308 Roux, P. C., 369 Ruskin, John (1819-1900), 302

412

a tf A EUROPA

«ÚJí/a, 41, 56, 101, 125, 156, 236, 237, 238,255, 261, 274, 291, 314, 316, 317, 319, 320

S. Petersburgo, 126, 237, 257, 291

Saara, 74,78, 87, 123,309 ti’-; ,

Sadowa, 146

Saint-Denis (abadia de), 186, 249

Saint-Pierre, Charles Irénée Gastei de, abade de

(1658-1743), 242 Saint-Simon, Louis de Rouvroy, duque de

(1675-1755), 242, 250 Salerno, 191 Samarcanda, 55

Samlândia, ver: Prússia oriental, 134 Samoa, 244 Sandwich, Ilhas, 244 Santa-Chiara (Florença), 302 Saraj, 317

Sardenha, 97, 104, 155 Scève, Maurice (1511-1564), 196 Schneider, Eugène (1805-1875), 300 Schõttler, Peter, 347 Schwarz, Berthold (c. 1310-1384), 288 Sée, Henri (1864-1936), 6 Seignobos, Charles (1854-1942), 99 Seltz, 76

Séneca (4 a.C.-65), 207 Senegal, 316, 322 Séptimo Severo (146-211), 87 Sérvia, 125

Sforza, Giovanni (1846-1922), 327, 382 Sibéria, 320, 321 Sicília, 41, 63, 97, 104, 105, 109, 152, 155, 162,

164, 175

Sieburg, Friedrich (1893-1964), 230 Sion, Jules (1878-1940), 350 Siractisa, 164

Síria, 63, 70, 96, 97, 103, 104, 189, 325 Sirta, 55

Sleidan, Jean (1506-1556), 209 Smits, J.-J., 266

Suleimão o Magnífico, (1494-1566), 318 Soulier, Gustave, 189

Spitzberg, 133

Stael, Germaine de (1766-1817), 287 Sticher (não identificado), 118 Stravinski, Igor Fedorovitch (1882-1971), 384 Suard, Jean-Baptiste-Antoine (1732-1817), 265 Sudão, 309

Suécia, 123, 236, 237, 255, 261, 316 Suez, 168, 333

Suger, abade de Saint-Denis (1081-1151), 186 Sully, Maximilien de Béthune, duque de (1559-1641), 211, 212, 214, 216, 224, 395

Tácito (c. 55-c. 120), 74

Tahiti, 244

Tamerlão, (1336-1405), 163

Tonais, 48, 206

Tânger, 79, 105

Tardieu, Amedée, 344

Tarraconesa, 105

Tartarin, personagem de Alphonse Daudet, 78

Tasman, Abel Janszoon (1603- 1659), 49

Tasmânia, 49

Tchemigov, 317

Telkès, E vá, 341, 345

Tenos, 42

Tertuliano, Quintus Septimius Florens (c. 155-c.

222), 77 Thévenot de Morande, Charles (1741 7-1805?),

265

Thomas More, S. (1478-1535), 203 Thomson, Charles, governador da Cochinchina

no s. XIX, 322 Tibério, (42 a.C.-37), 72, 74 Tiel, 157 Toledo, 164 Tolstoi, Aleksei Konstantinovitch (1817-1875),

126

Tomás de Aquino, S. (1225-1274), 77, 191, 396 Tóquio, 321

Torquato, António, 355 Toscaria, 27, 106, 123, 189 Toulouse, 164

Trajano, (53-117), 57,72,297 Transbaicália, 320

413

LUCIEN FEBVRE

Tricornot, Jean-Baptiste-René-Adrien, barão de,

35,36 Trieste, 132 Trípoli, 78 Trípolitânia, 169 Troppau, 281

Trundholm, 46 •*;’. -1*’! .-.’’., •-:’’’-. Túnis, 164, 171, 173, 195 Tunísia, 104, 107 Turenne, Henri de Ia Tour d’Auvergne, visconde

de (1611-1675), 285 Turgot, Anne Robert Jacques (1727-1781), 224,

242

Turim, 291 ” ’«’í’- ••-•’? 5-

Turíngia, 9 -i-:

Turquia. 204, 318, 319, 321 Tver, 319

U é-”>i .-V- ••:.• - - :

Ucrânia, J25 • rO .•..;*.•. ->-.••-

Upsala, 267

Urais, 40, 125, 126, 132, 133

Uruguai, 309 M ,-.•’-••’>- ;’.

Utrecht, 75, 157, 226, 249, 250 .

V : .

Vaison-la-Romaine, 45 ;• - ’ , < i

Valência, 97 i

Kí2/ray, 250 Van der Weyden, Roger de La Pasture (1399-

1464), 207

Van Effen, Justus (1684-1735), 265 Van Eyck, Jan (c. 1385/1390-1441), 192 Varsóvia, 132, 257 Vaudemont, príncipe de, 242 Vavilov, Serge Ivanovitch (1887-1942), 126

Venceslau, S., duque da Boémia (907-929), 312,

326, 382

Veneza, 68, 151, 155, 171, 176, 178, 189, 215 Verdun, 97

Verona, 281 \ . \ ?

Versailles, 26, 247, 248, 294, 324 Véser, 100 Vestfália, 225

Vesúvio, 57 :

Vichy, 34 - - ; : Viena, 100, 132, 207, 214, 281, 291, 299, 300,

384

Villefranche, 29

Villemain, Abel-François (1790-1870), 284 Villon, François (1431-1463), 208 Vistuia, 136

Vives, Juan Luis (1492-1540), 197 Vladimir I, S. ou o Grande, grão-príncipe de

Kiev (v. 956-1015), 315 Volga, 165, 171, 317 Voltaire, François Marie Arouet, dito (1694-

1778), 200, 235, 236, 237, 238, 239, 242, 246,

247, 296, 298, 308 Vosges, 151

W

Worms, 76, 288

Wurtzburgo, 100, 105

X

Xanten, 75

Zaragoza, 128 Zuydersee, 64

414

ÍNDICE

Introdução por Brigitte Mazon 5

Agradecimentos 21

A Europa

Curso no Collège de France em 1944-1945 23

Lição I Generalidades. Falemos de Europa

e primeiro definamos Europa 25

Lição II Como recebeu nome a Europa 39

Lição In A Europa, o helenismo e o Mediterrâneo 53

Lição IV A Europa, o Império Romano e o Mediterrâneo 67

Lição V A Europa surge quando o Império cai 81

Lição VI O Império Carolíngio, antevisão da Europa? 93

Lição VII 103

Lição VIII A Europa, o seu germe: o Império Carolíngio 117

Lição IX Europa e cristandade 131

Lição X Europa e feudalismo 141

415

LUCIEN FEBVRE jí: ’ ’! - i -i

Í ” í : -i -g

Lição XI Europa e recuperação económica 153

Lição XII A Europa e a recuperação económica: o ouro 167

Lição XIII O texto de Commynes. O Ocidente deixa i

de se sentir inferior ao Oriente 181 ,

Lições XIV a XVII 193 >

Lição XVIII O século XVI e a Europa 195 |

\ r Lição XIX Os textos de Sully. A dominação universal 211

Lição XX 219 •

Lição XXI A Europa do século XVIII 229

Lição XXII 243

Lição XXIII A revolução: de como as ilusões europeias

soçobram na nação 257 j

Lição XXIV 269 !

Lição XXV O outro escolho: a nacionalidade 281 -j

Lição XXVI 295 j i

Lição XXVII 305 ; j

Lição XXVIII Conclusão: queimar a etapa? 307 j

Notas 337 }

Notas bibliográficas 341 i

Anexo I Europa, Queimar ou marcar a etapa? 379

Anexo II Notas e reflexões críticas sobre a Europa e sobre este curso. 393

Anexo In Resumo do curso no Collège de France 401

índice de referência 403

416