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EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR 2º VICE-PRESIDENTE DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Ref. Processo n. 0008566-71.2016.8.19.0001 - Ausência de fundamentação do decreto prisional A decisão atacada não demonstra como a liberdade do acusado poderá ofender a ordem pública ou prejudicar o julgamento do recurso. - Inexistência de perigo na liberdade O paciente foi preso sozinho e sem portar armas. Não há periculosidade social. A reincidência (não específica) não pode ser utilizada como único elemento para a decretação automática da custódia cautelar. Os advogados, LUCAS DA SILVEIRA SADA, CARLOS EDUARDO CUNHA MARTINS, EDNARDO MOTA DE OLIVEIRA SANTOS e JOÃO HENRIQUE DE CASTRO TRISTÃO, regularmente inscritos na OAB/RJ, respectivamente, sob os números 178.408, 145.531, 187.838 e 179.996, in fine assinados, com escritório profissional à Av. Presidente Vargas, nº 446, Sala 1205, Centro, nesta cidade, os quais, desde já, pugnam para serem intimados da data de julgamento do presente writ, vêm, com fundamento nos artigos 1º, III; 5º, incisos LIV e LXVIII da Constituição da República do Brasil de 1988, e nos artigos 647, 648, I, e 651 do Código de Processo Penal, impetrar ordem de: HABEAS CORPUS LIBERATÓRIO COM PEDIDO LIMINAR em favor de RAFAEL BRAGA VIEIRA, brasileiro, solteiro, auxiliar de serviços gerais, portador da cédula de identidade nº 24.859.453-3, expedida pelo IFP, residente e domiciliado na Rua Ministro Moreira de Abreu, número 602, Fundos, Olaria, nesta comarca, apontando-se como autoridade coatora, para fins de direito, o Juízo da 39 a Vara Criminal da Comarca da Capital do Rio de Janeiro, em razão dos fatos e fundamentos a seguir expostos.

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EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR 2º VICE-PRESIDENTE DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

Ref. Processo n. 0008566-71.2016.8.19.0001

- Ausência de fundamentação do decreto prisional A decisão atacada não demonstra como a liberdade do acusado poderá ofender a ordem pública ou prejudicar o julgamento do recurso. - Inexistência de perigo na liberdade O paciente foi preso sozinho e sem portar armas. Não há periculosidade social. A reincidência (não específica) não pode ser utilizada como único elemento para a decretação automática da custódia cautelar.

Os advogados, LUCAS DA SILVEIRA SADA, CARLOS EDUARDO CUNHA MARTINS, EDNARDO MOTA DE OLIVEIRA SANTOS e JOÃO HENRIQUE DE CASTRO TRISTÃO, regularmente inscritos na OAB/RJ, respectivamente, sob os números 178.408, 145.531, 187.838 e 179.996, in fine assinados, com escritório profissional à Av. Presidente Vargas, nº 446, Sala 1205, Centro, nesta cidade, os quais, desde já, pugnam para serem intimados da data de julgamento do presente writ, vêm, com fundamento nos artigos 1º, III; 5º, incisos LIV e LXVIII da Constituição da República do Brasil de 1988, e nos artigos 647, 648, I, e 651 do Código de Processo Penal, impetrar ordem de:

HABEAS CORPUS LIBERATÓRIO COM PEDIDO LIMINAR

em favor de RAFAEL BRAGA VIEIRA, brasileiro, solteiro, auxiliar de serviços gerais, portador da cédula de identidade nº 24.859.453-3, expedida pelo IFP, residente e domiciliado na Rua Ministro Moreira de Abreu, número 602, Fundos, Olaria, nesta comarca, apontando-se como autoridade coatora, para fins de direito, o Juízo da 39a Vara Criminal da Comarca da Capital do Rio de Janeiro, em razão dos fatos e fundamentos a seguir expostos.

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BREVÍSSIMO RESUMO DOS FATOS

a) Síntese Processual

O paciente foi denunciado pela alegada prática dos crimes tipificados nos arts. 33, caput, e 35, caput, da Lei federal nº 11.343/2006.

A inicial acusatória veicula que, no dia 12 de janeiro de 2016, por volta das 9h, policiais militares da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da Vila Cruzeiro faziam patrulhamento na favela, que é parte do Complexo da Penha, nesta comarca, mais precisamente na Rua 29, em localidade conhecida como “Sem Terra”, nas proximidades da residência do paciente, quando supostamente receberam notícia de um “morador não identificado” de que, a poucos metros do local, havia um indivíduo que “portava material entorpecente a fim de comercializá-lo”. Os milicianos afirmam que abordaram o ora paciente, tendo encontrado em seu poder um saco plástico contendo 0,6 (zero vírgula seis) gramas de maconha e 9,3 (nove vírgula três) gramas de cocaína.

Segundo o douto Ministério Público, nas mesmas condições de tempo e lugar, o paciente estaria associado a outros indivíduos não identificados, todos subordinados à facção criminosa que domina o tráfico na localidade em que foi preso, com o fim de praticar reiteradamente o crime de tráfico de entorpecentes.

No curso da instrução, foram colhidos os depoimentos da testemunha de defesa, Evelyn Barbara Pinto Silva, bem como das testemunhas de acusação, os policiais militares Pablo Vinicius Cabral, Victor Hugo Lago, Farley Alves de Figueiredo, Fernando de Souza Pimentel e Luiz Renato Faustino da Silva, tendo, ao final, o acusado sido interrogado.

A despeito da prova produzida nos autos, a sentença julgou procedente a pretensão acusatória para condenar o paciente pelos crimes de tráfico de drogas e associação para o tráfico, em concurso material, às penas de 11 (onze) anos e 03 (três) meses de reclusão e ao pagamento de 1.687 (um mil seiscentos e oitenta e sete) dias-multa, à razão unitária mínima.

b) Fatos que não exigem revolvimento probatório e interessam ao julgamento do habeas corpus

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Não se desconhece que a via estreita do writ não comporta maior dilação acerca da veracidade dos fatos e da qualificação jurídica a eles atribuída, no entanto, o caso em análise requer que alguns elementos sejam pontuados a fim de se aferir a inexistência de fundamento cautelar para a subsistência da prisão do paciente.

i) Quando de sua prisão em flagrante o paciente possuía ocupação lícita e

residência fixa comprovadas.

O paciente trabalhava como auxiliar de serviços gerais no “João Tancredo Escritório de Advocacia” desde outubro de 2014, percebendo cerca de R$ 1.330,00 mensais, possui família estável e residência fixa nesta comarca, residindo com suas irmãs e sua genitora, Adriana Braga de Oliveira, no endereço indicado nesta petição.

Ressalte-se que, em caso de deferimento do presente writ, o paciente voltará a exercer a atividade laborativa indicada, bem como regressará ao domicílio já citado.

ii) Desde o início do processo em epígrafe o paciente sustenta com veemência e retidão ter sido vítima da odiosa prática de “flagrante forjado”.

iii) A despeito de ter sido condenado pela prática de associação para o tráfico, o

paciente foi preso sozinho.

Essa assertiva é extraída da narrativa que os próprios policiais responsáveis por sua prisão-captura fizeram constar em seus termos de declaração na Delegacia de Polícia. Disseram os milicianos:

“um morador não identificado informou que havia um indivíduo a poucos metros do local onde se encontravam com material entorpecente, a fim de comercializá-lo. Ato contínuo, foram até o local informado e encontraram Rafael Braga Vieira”. (fls. 03/04 do processo físico e 06/08 do arquivo digital)

Ainda que, em audiência, os militares tenham alterado sua versão e afirmado que viram um grupo correndo e que o paciente foi o único que permaneceu parado é importante, em juízo de cognição sumária, que se considere a contradição entre as narrativas dos policiais.

iv) O paciente foi preso sem portar quaisquer armas e não ofereceu nenhuma resistência à ação policial.

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Não há nos autos qualquer indicação de que o paciente portasse armas ou tenha praticado qualquer conduta com violência ou grave ameaça contra a pessoa.

v) Existe uma testemunha do fato que contraria a versão dos policiais.

Evelyn Barbara Pinto Silva relatou em juízo que presenciou a abordagem policial sofrida pelo paciente, quando pode constar que o mesmo estava com os braços soltos e não carregava qualquer saco plástico em suas mãos que pudesse conter o material ilícito cuja posse lhe foi atribuída.

vi) A quantidade de drogas ilícitas cuja posse é atribuída ao paciente é diminuta.

Trata-se de 9,3 g de cocaína e 0,6 g de maconha. De tal circunstância defluem duas

conclusões: I) a reduzida quantidade indica não se tratar de venda de droga, sendo, em especial, a quantidade de maconha insignificante para o comércio; II) ainda que se entenda pela ocorrência de traficância, ela é de pequena monta, o que poderia ensejar a fixação da pena em regime menos gravoso do que o fechado (onde hoje o paciente se encontra).

vii) Inexiste qualquer investigação que afirme com quem o paciente seria associado, por quanto tempo e de que forma.

Com a devida vênia ao juízo de piso, a condenação do paciente pelo crime do art. 35 da Lei 11.343/2006 se deu exclusivamente através de um questionável raciocínio dedutivo. Primeiro se afirmou a ocorrência do crime de tráfico, apesar da declaração da testemunha defensiva, das contradições nos depoimentos dos policiais e da reduzida quantidade de drogas ilícitas cuja posse é atribuída ao paciente. Na sequência, considerando que a localidade onde o paciente reside (e onde ocorreu sua prisão) é “dominada” por uma facção criminosa que realiza comércio de drogas ilícitas, se conclui que necessariamente ele estaria associado de forma estável e permanente com pessoas não identificadas para prática reiterada do crime de tráfico de drogas.

Nesse sentido, a defesa insiste que não quer antecipar o julgamento de mérito, mas que traz tais elementos para que os eminentes desembargadores possam aferir, em cognição sumária, pela inexistência de especial gravidade na conduta imputada ao paciente ou de qualquer outro elemento do caso concreto que recomende seu encarceramento provisório.

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SÍNTESE DO PEDIDO LIBERATÓRIO

A defesa se insurge contra a manutenção da prisão preventiva do paciente por (a) ausência de fundamentação idônea do decisum; e (b) inexistência do periculum in libertatis.

O paciente está cautelarmente preso desde o dia 12 de janeiro de 2016, portanto há mais de 1 (um) ano e 4 (meses).

Ao proferir o decreto condenatório, o juízo da 39ª Vara Criminal restringiu indevidamente o direito do paciente de recorrer em liberdade ao manter sua já desnecessária custódia cautelar. Sua prisão, neste momento, configura inaceitável antecipação de pena que poderá ser inteiramente afastada no recurso de apelação.

Ser presumido inocente até o esgotamento das vias recursais é conquista histórica da cidadania que deflui diretamente do texto constitucional (art. 5º, LVII da CRFB/88). Não se pode admitir que sem fundamentação idônea, em nome dos valores da “segurança” e “ordem pública”, sejam afastados direitos individuais conquistados em séculos de luta democrática.

Nessa linha, e conforme entendimento firmado pelo Egrégio Supremo Tribunal Federal nas Ações Declaratórias de Constitucionalidade 43 e 44, só é viável a execução provisória de pena após a publicação do acórdão condenatório.

Inexistindo qualquer fundamento cautelar para a manutenção da segregação provisória do paciente, como se demonstrará a seguir, sua prisão se configura como constrangimento ilegal que enseja a impetração do presente writ.

(a) A prisão do paciente é ilegal ante a insuficiência de fundamentação esposada no trecho da sentença condenatória que manteve sua custódia cautelar.

Faz-se tão somente referência à decisão que impôs, de início, a medida constritiva, sem que se explicite quais são estes fundamentos e por que eles permanecem hígidos. Ainda que se entenda como válida a remissão a anterior decreto de prisão preventiva, no caso em tela, há dois problemas a serem enfrentados.

Em primeiro plano, a decisão anterior que negou a revogação preventiva do paciente

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não se encontra devidamente fundamentada. De um lado, suscita base legal já declarada inconstitucional, a chamada vedação de concessão de liberdade provisória ao crime de tráfico de drogas. De outra banda, aponta para a gravidade abstrata do crime sem descrever quais circunstâncias da conduta imputada ao paciente inviabilizariam a utilização de medidas cautelares diversas da prisão.

Vale dizer, há um vácuo argumentativo entre a conduta imputada e a explicação sobre por que o paciente colocaria em risco a ordem pública. Insistimos: o juízo se furtou ao dever de apresentar os motivos pelos quais a utilização das medidas previstas no art. 319 do CPP seriam insuficientes para a contenção do alegado perigo na liberdade. Inexiste, ainda, qualquer pormenorização da citada “descrição fática do delito imputado”, de modo que resta inviável a compreensão das razões de decidir.

Ademais, ainda que o decreto prisional ao qual se fez remissão estivesse perfeitamente fundamentado (o que, insistimos, não é o caso), tal fato seria insuficiente para negar ao paciente o direito de recorrer em liberdade. Como se sabe, as medidas cautelares no processo penal são regidas pelo “Princípio da Provisionalidade”, isto é, só deverão persistir enquanto a situação de fato que as ensejou se protrair no tempo (§§ 4º e 5º do artigo 282 do CPP).

Nesse sentido, não basta argumentar que o “réu passou toda a instrução preso” para se que torne lícita a manutenção de sua prisão, eis que esta, mesmo com a condenação em primeiro grau, tem natureza meramente cautelar e não pode se prestar a funcionar como antecipação de pena.

(b) A prisão do paciente é igualmente ilegal, eis que inexiste perigo da liberdade do paciente. Não só isso: ainda que tal perigo existisse, poderia ser mitigado com a adoção de medidas cautelares não-prisionais.

Embora a defesa se mantenha firme no intento de demonstrar, em recurso de apelação, que o paciente foi vítima de conduta criminosa dos policiais, que lhe atribuíram a posse do material ilícito em razão do não fornecimento de informações sobre o tráfico de drogas na localidade da prisão, compreende-se que a via estreita do habeas corpus não comporta tal discussão.

Nesse sentido, é possível dizer que a sentença condenatória é suficiente para a configuração do fumus comissi delicti.

Entretanto, não existe o periculum in libertatis, eis que o paciente não oferece qualquer risco ao julgamento do recurso, bem como à sociedade em geral. Como já afirmado: foi preso sozinho, sem portar armas, supostamente na posse de pequena quantidade de drogas

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ilícitas, além de possuir atividade laborativa lícita e residência fixa comprovadas nos autos do processo em epígrafe.

Todavia, ainda que se reconheça perigo na liberdade do paciente, é importante salientar que o Egrégio Supremo Tribunal Federal (STF) vem solidificando seu entendimento sobre a necessidade de contenção do uso abusivo do encarceramento preventivo mesmo quando há gravidade concreta da imputação e estando presente o risco de reiteração criminal.

Em recentes julgamentos dos processos oriundos da denominada “Operação Lava Jato”, o STF substituiu a prisão provisória de acusados condenados em primeiro grau de jurisdição por outras medidas cautelares previstas no rol do art. 319 do CPP. Essa tendência foi confirmada na decisão oriunda do Habeas Corpus 136.728/PR1 onde o paciente, além de ter contra si sentença condenatória recorrível, já havia sido condenado pelo próprio STF pelos crimes de corrupção passiva e formação de quadrilha.

Dito de outro modo, a jurisprudência da mais alta corte de justiça do país reconhece, com absoluta razão, que pessoas pertencentes a poderosos grupos políticos ou econômicos, acusadas do cometimento de infrações penais “econômicas” que teriam lesado o patrimônio público na ordem de milhões, mesmo quando reincidentes, devem ser presumidas inocentes e ter resguardado o direito constitucional de recorrer em liberdade.

Sendo assim, por qual razão, o paciente, pobre, semianalfabeto, morador de favela, acusado de praticar, sem violência, o comércio de uma quantidade pequena de drogas ilícitas deve ser privado de sua liberdade antes da formação definitiva de culpa?

O Estado de Direito se caracteriza pela sujeição de todos, de modo igualitário, à Lei. No tema do encarceramento preventivo, a Lei Maior determina que a regra é a liberdade, sendo a prisão cautelar a mais absoluta exceção. Nesse sentido, a defesa pleiteia que o mesmo respeito com o qual são tratados os direitos individuais dos acusados por “crimes de colarinho branco” seja aplicado ao paciente.

FUNDAMENTOS DE FATO E DE DIREITO

Cotejando os elementos fáticos apresentados acima com os requisitos que autorizam a segregação cautelar, a defesa pretende comprovar que, não apenas a decisão atacada

1 HC 137728/PR, rel. orig. Min. Edson Fachin, red. p/ o ac. Min. Dias Toffoli, julgamento em 02 de maio de 2017.

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apresenta fundamentação insuficiente, mas que, em uma análise rigorosa dos elementos de informação, se impõe a conclusão da inexistência de perigo na liberdade do paciente.

De plano, para melhor compreensão da ilegalidade do encarceramento preventivo do paciente, cumpre realizar a cronologia dos decretos que determinaram sua segregação cautelar. Isto pois, nenhuma das decisões às quais, de modo tautológico, se faz referência, está suficientemente fundamentada de acordo com a jurisprudência dos Tribunais Superiores.

Quando da comunicação da prisão em flagrante, o juízo plantonista reconheceu a legalidade do ato e decretou a prisão cautelar do paciente. A seu turno, o juízo da audiência de custódia manteve a prisão preventiva:

“A descrição fática dos delitos imputados ao indiciado, bem como a gravidade dos crimes, salientando a natureza hedionda do crime de tráfico, além da vida pregressa do mesmo, denotam que as demais medidas cautelares diversas da prisão se revelam inadequadas ou insuficientes. Pelo que a prisão em flagrante delito deve ser convertida em prisão preventiva. A Constituição Federal, em seu art. 5º, inciso LXI, contempla a prisão preventiva, dispondo que: ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei. Tal mandamento constitucional encontra correspondente no art. 283 do CPP em sua redação atual, conferida pela Lei nº 12.403/2011, que prescreve: ¿Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva. Os requisitos da prisão cautelar estão presentes: O fumus comissi delictii se afere com a comprovação da materialidade do crime, através dos autos de apreensão das drogas e do artefato explosivo apreendidos em poder do indiciado. Os indícios de autoria se extraem da situação flagrancial em si, além do que, tratam-se de crimes dolosos atribuídos ao indiciado com pena privativa de liberdade máxima superior a 04 (quatro) anos, de forma a demonstrar a adequação e razoabilidade da medida extrema de restrição da liberdade de forma cautelar. O indiciado possui antecedentes criminais sendo duplamente reincidente, ressalvando que ainda se encontrava em cumprimento de prisão albergue domiciliar. O periculum in libertatis se extrai da própria periculosidade do indiciado, o que se afere com as circunstâncias fáticas do crime, além de ter a sua vida pregressa a apontar que o indiciado tem a personalidade voltada para a prática delitiva. A prisão cautelar deve ser fixada para garantia da ordem pública ao contrário da manifestação da defesa, já que esta está atrelada diretamente à plausibilidade do indiciado voltar a delinquir. Deve-se também fixar a prisão preventiva do indiciado com alicerce na necessidade de assegurar a aplicação da lei penal, tendo em vista que o indiciado em PAD voltou a delinquir. Por tudo dito, converte-se a prisão em flagrante delito em prisão preventiva que, pelo caráter provisório da medida cautelar, poderá vir a ser reavaliada pelo juiz natural, para garantia da ordem pública e para assegurar a aplicação da lei penal.”

Em 02 de fevereiro de 2016, a autoridade coatora indeferiu o pedido defensivo de relaxamento da prisão ou, subsidiariamente, a revogação da prisão preventiva do ora paciente. No tocante ao segundo pleito, o douto juízo de piso aduziu que:

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“(...) Não se pode perder de vista que a infração tratada neste processo é grave, equiparada a infração hedionda, na forma da Lei nº 8.072/90, insuscetível de liberdade provisória, como estabelece a Lei nº 11.343/06. A descrição fática do delito imputado ao indiciado, bem como a gravidade do crime, denotam que as demais medidas cautelares diversas da prisão se revelam inadequadas ou insuficientes. Tanto é assim que a prisão em flagrante foi convertida em prisão preventiva. Sendo assim, INDEFIRO o pedido formulado pela douta Defesa, às fls. 35/49.” (grifamos)

Na primeira audiência de instrução e julgamento, em 12 de abril de 2016, a defesa novamente postulou a revogação da prisão preventiva do paciente. O pedido formulado foi novamente indeferido pelo juízo de primeira instância:

“Mantenho a decisão de fls. 111/112 e 167/168, por seus próprios fundamentos. Ao contrário do que alega a aguerrida Defesa, há indícios de autoria, aptos a respaldar a custódia cautelar. O Policial Militar inquirido em Juízo na última audiência foi firme em confirmar os fatos tais como delineados na denúncia. A tese de mérito defensiva poderá ser analisada apenas por ocasião da sentença. Mesmo porque, ainda não se encontra finda a instrução probatória, de forma justificada, já que o Policial Militar ausente encontrava-se no regular gozo de licença para tratamento de sua saúde (fls. 188). Assim, o funcionamento da AIJ deu-se de forma justificada. Incorporo a esta decisão, ademais, os argumentos do autor (parecer de fls. 201/202). Por outro lado, o Réu é multirreincidente (FAC de fls. 114/120), possuindo duas anotações por roubo, delito de alta gravidade. Considerando a reinciência e a pena máxima cominada ao tráfico, a prisão preventiva é autorizada. Indefiro, pois, o pedido de liberdade. “

Quando da prolação da sentença condenatória, em 20 de abril de 2017, a autoridade coatora rejeitou o pedido da defesa para que o ora paciente pudesse aguardar o julgamento do recurso em liberdade:

“No tocante ao recurso em liberdade, a decisão contida na sentença não se baseou no art. 59 da lei repressiva, tida pela nobre defesa de inconstitucional, mas sim na necessidade de manutenção da custódia pela persistência dos motivos que a ensejaram, decorrendo daí o despropósito da arguição de inconstitucionalidade, que nem faz sentido em razão de reiterados julgados do STF sobre a não recepção pela Carta Federal do art. 594 do CPP, que versa dispositivo idêntico. Recurso improvido. Permanecem hígidos os motivos ensejadores da custódia cautelar do réu, ora reforçados pela presente condenação. Ademais, permaneceu preso durante toda a instrução criminal, e não há qualquer motivo ensejador da alteração processual no que se refere à prisão cautelar. Inexiste constrangimento. Portanto, considerando a presença dos pressupostos da prisão preventiva, mantenho a custódia cautelar do acusado.”

A última decisão colacionada, que ora se ataca, menciona “a permanência da higidez dos fundamentos ensejadores da custódia cautelar do réu”. Ocorre que esses fundamentos jamais foram hígidos e, ainda que fossem, haveria necessidade de demonstrar sua permanência para que fosse possível negar ao paciente o direito de recorrer em liberdade.

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Note-se que nenhuma das decisões que molestaram a liberdade ambulatorial do paciente se utilizou de elementos específicos de sua imputação para demonstrar qualquer gravidade concreta apta, segundo o entendimento do Supremo Tribunal Federal, a ensejar a decretação ou manutenção da prisão preventiva para garantia da ordem pública.

Há, outrossim, quatro inidôneos fundamentos delineados: i) a suposta impossibilidade de concessão de liberdade provisória do crime de tráfico de drogas; ii) a gravidade abstrata, bem como a hediondez do delito imputado; iii) a suposta periculosidade do paciente que seria determinada exclusivamente pela existência de condenações criminais pretéritas; e iv) a permanência do réu preso durante a instrução processual.

A SUPOSTA IMPOSSIBILIDADE DE CONCESSÃO DE LIBERDADE PROVISÓRIA DO CRIME DE TRÁFICO DE DROGAS

Quanto ao primeiro elemento não há necessidade de maior esforço argumentativo, posto que na sentença o próprio juízo de piso refutou a tese anteriormente utilizada para negar o primeiro pedido da defesa de revogação da prisão preventiva. Isto é, reconheceu a inconstitucionalidade da vedação de concessão de liberdade provisória no tráfico de drogas.

Nesse ponto, é importante salientar que embora conste da decisão atacada que ”a decisão contida na sentença não se baseou no art. 59 da lei repressiva, tida pela nobre defesa de inconstitucional, mas sim na necessidade de manutenção da custódia pela persistência dos motivos que a ensejaram”, tal fundamento foi expressamente utilizado pelo juízo coator ao rejeitar o pleito defensivo em 02 de fevereiro de 2016, conforme já demonstrado acima.

GRAVIDADE ABSTRATA E HEDIONDEZ DO DELITO DE TRÁFICO

No que se refere à gravidade abstrata dos delitos imputados e, especificamente à hediondez do crime de tráfico de drogas, também não há que se ir muito além do que já está sedimento na jurisprudência pátria2, em especial pelo Supremo Tribunal Federal e pelo

2 EMENTA: HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. DECISÃO MONOCRÁTICA DE MINISTRO DO SUPERIOR

TRIBUNAL DE JUSTIÇA COM FUNDAMENTO NA SÚMULA 691/STF. TRÁFICO DE DROGAS. ILICITUDE DO

MEIO DE PROVA. MATÉRIA NÃO EXAMINADA PELO TRIBUNAL DE ORIGEM. DUPLA SUPRESSÃO DE

INSTÂNCIA. PRISÃO PREVENTIVA. MANIFESTA ILEGALIDADE. AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO IDÔNEA.

(...) 3. Segundo o art. 312 do Código de Processo Penal, a preventiva poderá ser decretada quando houver

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Superior Tribunal de Justiça. Tais elementos não autorizam em hipótese alguma a decretação da prisão preventiva, sendo absolutamente indispensável a existência de fatos do caso concreto que reivindiquem a utilização da medida estatal mais gravosa contra a liberdade individual.

Ou seja, não basta alegar que o delito de tráfico é grave, atormenta a sociedade e gera abalo na ordem pública. É preciso explicitar como a conduta imputada ao acusado se reveste de especial gravidade ante seu modus operandi. Nessa toada, grande quantidade de drogas ilícitas apreendidas, o emprego de violência armada, a demonstração de uma enorme cadeia de comércio ilegal são exemplos de elementos que eventualmente podem servir para configurar a gravidade concreta.

Todavia, não há absolutamente nada nos autos do processo que indique especial gravidade na conduta atribuída ao paciente: a quantidade de drogas cuja posse lhe é atribuída é reduzidíssima, foi preso sozinho, sem quaisquer armas e toda a instrução processual foi incapaz de apontar uma única pessoa com que estivesse associado para a prática do varejo de psicoativos – muito menos que houvesse uma grande rede de distribuição da qual fizesse parte.

Ademais, ainda que fosse inteiramente verdadeira a imputação acolhida na sentença condenatória, o paciente deveria ser tomado com uma simples peça descartável na estrutura do comércio ilícito de drogas. Fossem verdadeiras as acusações que lhe fazem, na interpretação mais severa possível, o paciente ostentaria a condição de “mula”, posto que não lhe foi atribuída a posse de arma de fogo – item indispensável para os denominados “soldados do tráfico”.

prova da existência do crime (materialidade) e indício suficiente de autoria, mais a demonstração de um

elemento variável: (a) garantia da ordem pública; ou (b) garantia da ordem econômica; ou (c) por

conveniência da instrução criminal; ou (d) para assegurar a aplicação da lei penal. Para qualquer dessas

hipóteses, é imperiosa a demonstração concreta e objetiva de que tais pressupostos incidem na

espécie, assim como deve ser insuficiente o cabimento de outras medidas cautelares, nos termos do

art. 282, § 6º, do Código de Processo Penal 4. A jurisprudência desta Corte é firme no sentido da

impossibilidade de decretação da prisão preventiva com base (a) na gravidade abstrata do crime de

tráfico de drogas, e (b) em presunção de fuga. Precedentes. 5. Ordem concedida, em parte. (grifamos)

(STF - HC: 126003 SP, 2ª Turma Relator: Min. TEORI ZAVASCKI, Data de Julgamento: 30.06.2015)

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A SUPOSTA PERICULOSIDADE DO PACIENTE QUE SERIA DETERMINADA EXCLUSIVAMENTE PELA EXISTÊNCIA DE CONDENAÇÕES CRIMINAIS PRETÉRITAS

Em relação à utilização da reincidência como argumento apto a ensejar a prisão cautelar do paciente, é preciso esclarecer algumas questões de fato e de direito.

O Supremo Tribunal Federal já decidiu3 que a circunstância de o acusado ser reincidente, ainda que específico, não autoriza, por si só, a decretação de sua prisão preventiva. Isto é, sob pena de violar o princípio da presunção de inocência, em sua dimensão de tratamento, e criar inaceitável espécie de prisão automática, o cometimento anterior de delitos não pode ser usado de forma isolada para determinar o encarceramento provisório durante o curso de todo o processo.

Ter sido condenado criminalmente não suprime do indivíduo seu status constitucional de inocente sobre futuras acusações que lhe sejam feitas. Mais do que isso: se um dos objetivos declarados da pena privativa de liberdade é a ressocialização, não se pode estigmatizar um egresso do sistema prisional lhe impondo um tratamento diferenciado e discriminatório em razão de sanção criminal anteriormente imposta.

O paciente, embora ostente condenações criminais pretéritas, não é reincidente específico. Mais do que isso: até a deflagração da ação penal que deu origem ao presente processo jamais havia sido sequer investigado por tráfico de drogas, associação para o tráfico ou qualquer outro crime da Lei 11.343/2006. Nesse sentido, o histórico criminal do paciente não indica que ele se dedique à traficância, razão pela qual deve ser afastada a hipótese de “reiteração criminal”.

Nesse particular, embora se trate de matéria extra autos, a defesa pugna pela consideração da situação concreta em julgamento. Por evidente, não se pretendente usar essa via estreita do habeas corpus para discutir fatos que serão objeto de revisão criminal. Contudo,

3 1. AÇÂO PENAL. Prisão preventiva. Réu citado por edital. Revelia. Decreto ilegal. Não ocorrência de nenhuma das causas do art. 312 do CPP. Constrangimento ilegal caracterizado. HC concedido. Inteligência do art. 366 do CPP. A só revelia do acusado citado por edital não lhe autoriza decreto de prisão preventiva. 2. AÇÃO PENAL. Prisão preventiva. Decreto fundado em conveniência da instrução criminal. Encerramento desta. Desnecessidade daquela. Constrangimento ilegal caracterizado. Precedentes. Inteligência do art. 312 do CPP. Se a custódia cautelar foi decretada com fundamento na conveniência da instrução criminal, o encerramento desta torna desnecessária aquela. 3. AÇÃO PENAL. Prisão preventiva. Réu já condenado pela prática de igual delito. Reincidência ou periculosidade presumida do agente. Decreto ilegal. Constrangimento ilegal caracterizado. Ofensa à garantia da presunção de inocência. Art. 5º, LVII, da Constituição Federal. O fato de o réu já ter sido condenado pela a prática do mesmo delito não lhe autoriza decreto de prisão preventiva. (STF - HC: 86140 SP, Relator: Min. CEZAR PELUSO, Data de Julgamento: 03/04/2007, Segunda Turma, Data de Publicação: DJe-032 DIVULG 06-06-2007 PUBLIC 08-06-2007 DJ 08-06-2007 PP-00046 EMENT VOL-02279-02 PP-00277 RMDPPP v. 3, n. 18, 2007, p. 115-121)

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é preciso relatar de maneira pormenorizada o histórico do paciente com a Justiça Criminal.

O paciente possui duas condenações transitadas em julgado por tentativa de roubo simples – sem o emprego de arma. Ocorre que sua última condenação criminal nada tem a ver com esses delitos. Ao contrário, se refere a um caso que ganhou enorme repercussão social e virou destaque na imprensa, nacional e internacional4, pelo descabimento do tratamento recebido pelo ora paciente.

Trata-se de uma injusta condenação pela prática do crime de porte de artefato explosivo ou incendiário (art. 16 da Lei 10.826/2003), onde o paciente foi acusado de carregar consigo um coquetel molotov próximo a uma enorme manifestação ocorrida no dia 20 de junho de 2013. Ocorre que o material consistia em duas garrafas plásticas: uma de água sanitária e outra de desinfetante “Pinho Sol” preenchida com solução que continha etanol e vedada com pano. Segundo o próprio laudo pericial, os referidos objetos possuíam “mínima aptidão para funcionar como coquetel molotov”.

A despeito disso, com base exclusiva no potencial inflamável de pequena quantidade de álcool contido em uma das garrafas, o acusado foi condenado à pena de reclusão de 5 (cinco) anos em regime inicialmente fechado, que posteriormente foi reduzida em 4 (quatro) meses no julgamento da apelação. Quando foi vítima do flagrante forjado que originou a acusação por tráfico e associação, o paciente cumpria, de forma digna e honesta, o restante de sua pena em regime aberto com monitoramento eletrônico.

Ademais, o paciente é um homem profundamente humilde, semianalfabeto, de complexão física diminuta, que jamais, nesse processo ou em qualquer outro, foi acusado de portar armas ou de praticar ato de violência contra pessoa. Não possui poder econômico, bélico ou de qualquer outra natureza, de tal sorte que somente uma análise abstrata dos elementos à disposição da Câmara conduziria à equivocada conclusão de que RAFAEL BRAGA VIEIRA (paciente) representa um risco à sociedade carioca.

4 Nesse sentido há reportagem da “Al Jazeera”. Disponível em: <http://www.aljazeera.com/indepth/opinion/2017/05/justice-poor-brazil-170511102159339.html> acesso em: 19 de maio de 2017. Da gigante inglesa, BBC. Disponível em: <http://www.bbc.com/news/world-latin-america-35578395> acesso em 19 de maio de 2017 Do “El País”: <http://brasil.elpais.com/brasil/2013/12/05/politica/1386204702_079082.html> acesso em: 19 de maio de 2017.

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A PERMANÊNCIA DO RÉU PRESO DURANTE A INSTRUÇÃO PROCESSUAL NÃO JUSTIFICA A MANUTENÇÃO DE SUA CUSTÓDIA CAUTELAR

Por fim, o último argumento trazido pela r. decisão que se impugna, sugere que a manutenção da prisão durante a instrução justificaria a negativa do direito a recorrer em liberdade, posto que não haveria alteração na situação fática.

Em princípio, é preciso dizer que esta é a primeira vez que a defesa traz ao conhecimento da Câmara a ilegalidade do encarceramento provisório do paciente. Deste modo, conforme se busca demonstrar ao longo de toda esta petição: não estão presentes os elementos que fundamentaram a medida constritiva. Espera-se, portanto, que os doutos desembargadores possam restituir a liberdade ambulatorial do paciente, eis que essa jamais deveria ter sido retirada.

Como já salientado em momento anterior, as medidas cautelares no âmbito do processo penal guardam estrita vinculação com a situação de fato que lhes deu ensejo, isto é, só se sustentam enquanto perdurar circunstância que justificou sua decretação. Na hipótese dos autos, não há explicitação sobre os motivos que fundamentam o receio de que o paciente, em liberdade, poderia ofender a ordem pública, tão pouco de que forma o faria. Nessa toada, igualmente inexiste argumentação sobre a permanência indefinida desse suposto periculum in libertatis.

Sob pena de transformar a prisão preventiva em instrumento de vingança social, aplicando uma pena antecipada, não se pode admitir que o paciente seja rotulado como perigoso, sem qualquer demonstração concreta dessa alegada periculosidade e que, a partir desse etiquetamento, tenha seu direito constitucional de responder ao processo criminal em liberdade suprimido durante o julgamento do recurso.

IMPOSSIBILIDADE DE SUBSISTÊNCIA DE DECRETO PRISIONAL CARENTE DE FUNDAMENTAÇÃO IDÔNEA

Conforme demonstrado nos tópicos anteriores, a decisão que se ataca está fundamentada de modo insuficiente, razão pela qual não pode subsistir.

A exigência de fundamentação em qualquer decisão judicial é componente da racionalidade do exercício da jurisdição. No entanto, trata-se, na hipótese, da intervenção mais gravosa em matéria de direitos fundamentais que o Estado pode realizar: a privação da

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liberdade antes de sentença penal condenatória irrecorrível. Neste cenário, tal requisito ganha especial relevo, devendo ser estritamente observado pela autoridade judiciária.

Não encontram amparo no texto constitucional decisões de caráter genérico, na qual não se desenvolve um mínimo de raciocínio descritivo que permita ao jurisdicionado conhecer as razões que motivam o agir do julgador. In casu, insista-se, a decisão é omissa em apontar elementos concretos que evidenciem a necessidade de manter o ora paciente privado de liberdade.

Ante a ausência de fundamentação idônea, o decisum perde sua forma democrática e passa a ser simples ato de arbítrio. No Estado Democrático de Direito, o poder deve ser exercido de maneira racional em rígida obediência aos parâmetros constitucionais e legais. Desse modo, ainda que por outros percursos fosse possível se concluir pela necessidade da prisão, a que foi decretada pelo juízo coator deve ser imediatamente relaxada.

A NECESSIDADE IMPERIOSA DE CONCESSÃO DO PEDIDO LIMINAR

No caso em análise estão presentes os dois clássicos requisitos que autorizam a concessão do pleito liminar, isto é, o fumus boni iuris e o periculum in mora.

Por tudo que foi exposto, está perfeitamente demonstrada a verossimilhança das alegações trazidas pelos impetrantes. Vale dizer, a decisão que mantém a custódia do paciente apresenta fundamentação insuficiente, inexiste perigo em sua liberdade e, por fim, outras medidas cautelares diversas da prisão se mostram adequadas ao presente caso.

Como regra, há “perigo na demora” em toda situação que envolva privação de liberdade em estabelecimento prisional. Mesmo em condições minimamente adequadas, o recolhimento ao cárcere gera, por si só, danos irreparáveis ou de difícil reparação a qualquer ser humano, conforme fartamente comprovado por pesquisas empíricas. O efeito nocivo da prisão sobre a saúde física5 e mental6 das pessoas é uma realidade mundial que ganha contornos ainda mais dramáticos na lamentável situação em que se encontra o sistema prisional brasileiro.

5 Basta citar o terrível surto de tuberculose que assola a população carcerária nacional. Disponível em:<https://nacoesunidas.org/tuberculose-nos-presidios-brasileiros-e-emergencia-de-saude-e-de-direitos-humanos-dizem-especialistas/ >. Acesso em 01 de junho de 2017. 6 Especificamente sobre saúde mental, há inúmeras pesquisas realizadas nos EUA, por todos, citamos “James, D. J., & Glaze, L. E. (2006, December 14). Mental health problems of prison and jail inmates. Washington, D.C.: U.S. Department of Justice Bureau of Justice Statistics”. Disponível em: < https://www.bjs.gov/content/pub/pdf/mhppji.pdf> Acesso em 01 de junho de 2017.

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No Estado do Rio de Janeiro, superlotação7, falta de atendimento médico, terríveis condições de higiene, ventilação e alimentação8 são responsáveis por transformar os presídios fluminenses em verdadeiras casas de tortura. Não se trata aqui de retórica defensiva ou de um posicionamento “ideológico”: o paciente, assim como as cerca de 51 mil pessoas presas no Estado, está sob perigo constante de morrer9 ou de sofrer graves lesões devido às condições desumanas a que está submetido.

Não se pode deixar de frisar que o cenário acima descrito vai ao encontro do Estado de coisas inconstitucional do sistema prisional nacional – assim reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal no bojo de medida cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 347. A mais alta corte brasileira admite a existência de um “quadro de violação massiva e persistente de direitos fundamentais, decorrente de falhas estruturais e falência de políticas públicas.”10

Há evidente ofensa a diversos dispositivos constitucionais e legais que asseguram, genérica ou especificamente, que pessoas em privação de liberdade sejam tratadas com dignidade (art. 1º, III). Ora, o constituinte originário determinou que se respeite a integridade física e moral dos presos (art. 5º XLIX) e vedou a aplicação de penas cruéis (art. 5º, XLVII, “e”).

Agride-se, também, o estabelecido pela Organização das Nações Unidas (ONU) como regras mínimas para o tratamento de presos (“Regras de Mandela”). O documento firma os padrões necessários para garantir o cumprimento de pena, sem a ocorrência de violações de direitos humanos. Cite-se, por exemplo, a regra de número 13 que determina que “todos os ambientes de uso dos presos e, em particular, todos os quartos, celas e dormitórios, devem satisfazer as exigências de higiene e saúde, levando‑se em conta as condições climáticas e,

7 Não por acaso foi criado um comitê estadual de emergência para lidar com o problema. “O sistema penitenciário fluminense possui, atualmente, de acordo com dados do Instituto de Segurança Pública (ISP) e da Secretaria de Estado de Administração Penitenciária (SEAP), cerca de 51 mil encarcerados ocupando as 43 unidades prisionais do estado, 23.871 presos a mais do que o sistema comporta (27.242 vagas oficiais). Dessas 43, 33 estão superlotadas e 13 operam com mais de 100% de excesso de presos, ou seja, têm mais de dois presos por vaga. Seis delas estão no Complexo Penitenciário de Gericinó, em Bangu, na Zona Oeste”. Disponível em <http://www.mprj.mp.br/home/-/detalhe-noticia/visualizar/901>. Acesso em: 01 de junho de 2017. 8 Que inclusive corre risco de interrupção devido ao não pagamento de fornecedores pelo governo do Estado. Disponível em <https://oglobo.globo.com/rio/mp-pede-liminar-para-garantir-alimentacao-de-presos-no-rio-21297970>. Acesso em: 01 de junho de 2017. 9 Tanto é verdade que, segundo dados levantados pela Defensoria Pública, apenas esse ano, quase 100 (cem) detentos morreram no sistema prisional do Estado do Rio de Janeiro. Disponível em: <http://odia.ig.com.br/rio-de-janeiro/2017-05-31/quase-cem-detentos-morreram-em-presidios-do-rio-em-2017.html>. Acesso em: 01 de junho de 2017. 10 Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=10300665>. Acesso em: 01 de junho de 2017.

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particularmente, o conteúdo volumétrico de ar, o espaço mínimo, a iluminação, o aquecimento e a ventilação”11.

Definitivamente, nada disso é respeitado no Complexo Penitenciário de Gericinó, onde o paciente está custodiado.

Desse modo, não servindo para relaxar a prisão do paciente ante a inconstitucionalidade das condições de custódia, que o quadro relatado se preste, ao menos, para demonstrar o indubitável perigo de dano irreversível representado pela demora em fazer cessar o ilegal encarceramento provisório ora combatido.

O PEDIDO

Pelo exposto, o paciente requer à Vossa Excelência que lhe seja concedida liminarmente a presente ordem de Habeas Corpus a fim de que ocorra a revogação de sua prisão preventiva com base nos arts. 5º, LXVI, da CRFB/88, e 312, 313, I, 321, 325, § 1º, I, e 350, caput, do CPP.

Concedidas quaisquer das medidas aqui postuladas pelo paciente, o mesmo requer a imediata expedição de seu alvará de soltura e a confirmação da ordem quando do julgamento de mérito.

P. Deferimento.

Rio de Janeiro, 06 de junho de 2017.

Lucas da Silveira Sada Carlos Eduardo Cunha Martins OAB/RJ 178.408 OAB/RJ 145.531 Ednardo Mota de Oliveira Santos João Henrique de Castro Tristão

OAB/RJ 187.838 OAB/RJ 179.999

11 <http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2016/05/39ae8bd2085fdbc4a1b02fa6e3944ba2.pdf>. Acesso em: 01 de junho de 2017