EXERCÍCIOS DE ESCRITA ETNOGRÁFICA LISBOA NUMA TARDE ...
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Exercícios de escrita etnográfica
Lisboa numa tarde de julho em 2012
Autores
João de Pina-Cabral, Susana Durão, Ambra Formenti, Carla Almeida, Dina
Maria Rosário dos Santos, Frank-Ulrich Seiler, Gustavo Monzeli, Irene
Rodrigues, Joana Sousa, Joana Vasconcelos, Mara Leite, Márcio Sá, Murilo
Rodrigues Guimarães, Raquel Carvalheira, Alexandra Rosa, Sonia Miceli,
Susana Boletas, Tiago Marques.
ICS Estudos e Relatórios 2013
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Introdução
A escrita etnográfica é uma das formas de contar o mundo. Se bem que, como
parte das ciências sociais, o seu formato seja marcado predominantemente por
considerações de natureza metodológica, a escrita etnográfica depende de uma escolha
de estilos narrativos, isto é, ela implica um gesto criativo. O 1.º Workshop de Escrita
Etnográfica nasceu com o intuito de aprofundar o nosso conhecimento desse processo.
Quisemos explorar o lado criativo da escrita etnográfica através da constituição de um
espaço colectivo de reflexão e partilha de experiências. O presente Relatório é o resultado
material dessa experiência, que se materializou no Curso de Verão que decorreu no
Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa entre 23 e 27 de Julho de 2012. 1
Num dos módulos do curso, resolvemos criar um modelo de exercício de recolha
etnográfica sumária. Este seguiu uma opção central: colocar em foco a observação
situacional. Isto é, não nos centrámos nas metodologias de obtenção verbal de
informação (histórias de vida, de família, entrevistas dirigidas, etc.), mas sim nos métodos
de observação participante não interventiva. Assim, o conceito central seria a ‘situação
social’ ou o ‘evento social’. Propunha-se um encontro com o mundo do quotidiano
enquanto um campo estruturado por socialidades. O método obrigou-nos, assim, a olhar
para o contexto escolhido com acuidade analítica – todos de caderno em punho,
produzindo exercícios de objetivação, isto é, fixando na descrição o que é fluído na
experiência. Cada pessoa focou um local que lhe fosse interessante, mantendo-se
disponível para ser informada pelo local. Preferimos evitar os exercícios de autoanálise.
As experiências práticas de observação decorreram em alguns pontos e lugares
de uma cidade – Lisboa. Num primeiro momento foram criadas equipas de dois.
Escolheram-se os locais a estudar, podendo cada equipa visitar e narrar sequencialmente
dois lugares. O exercício de observação passou-se nas poucas horas de uma tarde, a tarde
quente de 25 de Julho. Enquanto um membro da equipa observava e relatava, o outro
tirava notas do que lhe ia sendo descrito. No dia seguinte, já na sala do curso, no ICS-UL,
1 Agradecemos à Maria Goretti Matias todo o apoio prestado.
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aquele que observava pegava nas notas do parceiro e escrevia um breve texto
etnográfico. Os textos foram lidos e comentados em público, durante várias sessões de
trabalho.
É preciso dizer que esta forma de organização do exercício seguiu a inspiração de
modelos de escrita criativa em cursos de poesia. Do nosso curso resultaram vinte relatos,
pois a maioria dos vinte e dois participantes aceitou partilhar a sua experiência em cada
um dos trechos que integram este relatório. A experimentação é parte integrante do
processo de criação. Nesse sentido, a escrita da etnografia não é muito diferente de fazer
compota: é preciso achar o ‘ponto’ certo. A ‘evidência’ em etnografia envolve processos
que resistem à rigidez metodológica, esquivando-se às fases fixas e perfeitamente
segmentadas – da observação à coleta, da escrita descritiva à interpretação, do contraste
à classificação e, por fim, à análise – embora as consubstancie. Para esta forma de
trabalho/escrita continuará sempre a não existir um manual técnico. Parece mais útil a
ideia de explorar, em diversas modalidades, o exercício de escrita criativa. Nesse sentido,
o que vão ler é uma dessas possíveis modalidades; são exercícios práticos de observação e
descrição de situações em Lisboa, na tarde de 25 de Julho de 2012.
01. Da burocracia ao espaço público
Instituto de Registos e Notariado (IRN)
Irene Rodrigues (com João de Pina-Cabral)
Esta repartição do IRN, na Avenida Fontes Pereira de Melo, fornece vários tipos
de serviço: registo de cidadão, feitura do cartão de cidadão e do passaporte, registo e
realização de casamentos, divórcios, registo predial, registo automóvel, registo de
empresa, habilitação de herdeiros. Estes momentos em que o cidadão surge perante o
Estado, de algum modo são coincidentes com momentos de transição ou de crise nas suas
vidas: o nascimento, o casamento, o divórcio, a morte, a aquisição de propriedade
(habitação e automóvel) e o tornar-se empresário (que pode também marcar uma
transição profissional importante). A observação decorreu na sala dos passaportes e dos
cartões de cidadão, que fica no Piso -1, onde também se situam as salas de casamentos.
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Aquela sala é um lugar onde os cidadãos se tornam cidadãos, o que significa que se
apresentam perante o Estado para assegurarem direitos e deveres, sobretudo direitos de
propriedade (num primeiro momento) e deveres como contribuintes. Trata-se de um
espaço de atendimento ao público com dez guichets, sendo que apenas seis estavam em
funcionamento. Como havia poucos utentes, várias funcionárias (havia apenas um
funcionário do sexo masculino) estavam desocupadas do atendimento público. Talvez por
isso, já quase no final da observação, a nossa presença foi notada e fomos interpelados
por uma funcionária sobre se precisávamos de alguma coisa. Também nós estávamos sob
observação.
Dada a pouca afluência de utentes, a nossa atenção ficou concentrada numa
única situação que se destacou das restantes. Os utentes que durante esse período
passaram pelo espaço foram várias mulheres isoladas, um casal que usou dois postos de
atendimento em separado, uma mãe com uma filha de cerca de oito anos, e uma família
com um bebé. Foi sobre esta família de três gerações pais, avós e o bebé que acabei por
concentrar a minha observação, que irei usar para pensar o modo como a partir do
nascimento uma pessoa surge perante o Estado precisamente para se tornar cidadão, e
como o Estado formata, regista e legaliza esse laço cidadão–Estado através de uma série
de procedimentos aos quais é preciso atender, mas que surgem como desadequados em
relação à situação.
Neste caso, um bebé de cerca de um mês é apresentado pelos pais perante o
Estado numa repartição pública para se tornar cidadão. O dispositivo de divulgação de
informação na sala garante que apenas é preciso escolher o nome, indicar a naturalidade
da criança e identificar os pais (o registo é gratuito). No local, o procedimento de
materialização da identidade de um cidadão (a recolha dos dados) faz-se através de um
aparelho digital que concentra informações como o nome, a filiação e a naturalidade,
assim como o registo digital de uma imagem do bebé cidadão para relacionar a
informação com a pessoa física. No caso dos bebés não se regista a impressão digital do
dedo indicador ou a altura/comprimento – pois estes estão em mudança acelerada nesta
fase. O protocolo é que a ligação seja estabelecida por meio de um único marcador
biológico: uma fotografia do bebé. Contudo, é necessário que o bebé se adeqúe ao
dispositivo e às necessidades de imagem exigidas a um cidadão. O aparelho – que
incorpora uma câmara fotográfica – encontra-se num guichet público e as suas dimensões
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adequam-se à apresentação em pé de um adulto de estatura média. Perante este mesmo
aparelho deve surgir um bebé, posicionado frente à câmara numa posição vertical e ereta;
ideia relativamente absurda para um ser humano com um mês de idade, cuja condição
biológica não lhe permite individuar-se de outro ser humano nesta mesma posição. Deste
modo, a mãe e o pai do bebé cidadão, assim como a funcionária, esforçavam-se para que
ele mantivesse em posição vertical frente à câmara do Estado. No processo, o bebé
chorava e os pais tentavam acalmá-lo com um biberão de leite, uma chupeta, afeto
corporal. Porém, o bebé continuava desconfortável, não sendo talhado de todo para
assumir a posição exigida. Finalmente, a funcionária sugeriu afetuosamente à mãe que
tentasse colocar-se de modo a que a sua presença aparecesse o menos possível na
fotografia. Posteriormente, os serviços tentariam eliminar a parte do seu corpo que
residualmente ficasse na imagem através de um programa de tratamento de imagem. O
importante era que o bebé ficasse com a face virada para a câmara.
É de notar que esta é uma obrigação recente para os bebés nascidos em Portugal
e que se prende com o registo fiscal das crianças e a possibilidade do Estado controlar o
número de dependentes por família. Este procedimento deriva, portanto, de um desejo
de assegurar a “verdade fiscal perante o Estado”, de mostrar a verdade sobre as relações
de dependência económica existentes no seio das famílias portuguesas, mas assenta num
documento onde bebé cidadão se faz representar (em termos de imagem) perante o
Estado numa posição artificialmente ereta e independente (sem apoio), cristalizando a
imagem de um “indivíduo independente” sem apoio biológico e social... mesmo se o
documento acaba por ter como finalidade imediata provar a existência desse mesmo
apoio.
Jardim da Estrela, Lisboa. Fim de tarde com sol e pouco vento
João de Pina-Cabral (com Irene Rodrigues)
O parque estava ocupado e foi-se enchendo durante o tempo que lá estivemos. É
um espaço quase autoritário, construído para dirigir os movimentos de pessoas que ficam
ali por tempos pouco prolongados. Há três tipos de equipamentos construídos: (a) cafés,
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(b) coretos, mesas e relvados abertos, e (c) creches/ parques infantis, para adultos e para
crianças.
Quem não está no parque – A população presente estava dividida em três tipos
etários muito diferenciados: velhos (mais de 60 anos); jovens (em torno dos 17-25);
crianças (menos de 7 anos) e respectivos acompanhantes. Conforme o tempo ia passando
iam aparecendo mais pais entre os 40 e os 50 com crianças.
Não estavam presentes classes médias altas nem gente rica; não estavam
presentes pessoas de meia-idade com emprego; não estavam presentes pessoas de classe
baixa nem migrantes de países mais pobres (excepto eventualmente como empregados
ou turistas). Não vimos pessoas sem tecto, pedintes, utilizadores de droga; não
percebemos qualquer marginalidade criminal ou comércio informal. O espaço estava
intensamente policiado – os polícias armados circulavam de carro, o que não é o molde
normal de presença no parque.
O parque tem duas características dominantes: (a) não é um espaço de trabalho – i.e.,
só lá está quem já ganhou a vida ou não tem vida para ganhar; (b) é um espaço que
dialoga com o espaço doméstico – i.e., presume-se que as pessoas que lá vão saem de
espaços domésticos e estão constantemente a remeter para eles.
Que fazem com quem – O que as pessoas fazem prende-se com as pessoas com
quem se agregam: há solitários, acompanhados e grupos. O telemóvel faz parte integrante
e universal da forma de estar no parque, para gerir os movimentos dos membros da
família e amigos dentro da cidade.
Os homens velhos constituem a maioria dos solitários; há menos mulheres de
meia-idade solitárias. Todos os outros estão em grupo ou em parelha. Há mais grupos de
dois do que de mais de dois. As associações a mais de dois são: (a) os homens velhos (c. 70
anos) que ocupam as mesas de jogo numa zona protegida por telheiro nas margens do
parque, escondidas por detrás da creche; (b) os jovens com sinais de quem ainda não está
envolvido no mundo do emprego mas que podem ir até os 20 e poucos anos e que se
organizam para dançar no coreto, para treinar em aparelhos de mountain climbing ou
para fazer piqueniques com violas; (c) algumas crianças que, tentativamente, e sob o olhar
atento de mães, avós ou empregadas, jogam a bola juntas.
Os velhos em causa, que nós abordámos, eram pessoas que tinham saído de
carreiras de serviços, sobretudo do Estado. De facto, os dois com quem falámos eram
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reformados da Marinha e do Exército, respectivamente. Tinham vivido em Lisboa a vida
inteira, desde os 16 anos num caso e, no outro, desde o serviço militar, e não tinh am já
pronúncias nortenhas, apesar de um ter nascido em Barcelos e ter sido criado numa
creche no Porto e o outro ter vindo de Trás-os-Montes. Juntam-se num grupo de cerca de
dez homens, mas o grupo subdivide-se e é passageiro. Jogam às cartas e estão prontos a
integrar qualquer recém-chegado. Na forma como confrontaram a minha abordagem
havia um certo “agonismo” relacional muito tipicamente masculino, relacionado com
honra e respeito (mas a Irene acha que observa a mesma coisa em grupos de mulheres).
Nota: não há grupos de mulheres de média idade ou velhas! Desapareceram as “viúvas”
que ocupavam os parques da minha juventude.
Abordámos um grupo de jovens que dançavam algo do tipo hip-hop no coreto e
que vão lá várias vezes por semana, mas não todos os dias e que adoraram ser filmados
por nós. A Irene ficou impressionada pelo facto de alguns destes jovens já terem
ultrapassado a idade da escolaridade e da sua presença no parque ser sinal de que (a)
vivem com pais e (b) não têm emprego. É possível que a crise económica venha a alterar a
população do parque ou que já a tenha alterado.
As crianças estão todas emparelhadas com adultos. Nenhuma criança estava
tempo algum fora do campo do olhar de um adulto e, mesmo quando brincavam entre
elas, faziam-no sempre com o adulto a assistir. Ouviam-se constantemente, nas zonas de
lazer infantil do parque, nomes de crianças ou chamamentos a mães, avós ou
empregadas. Só cerca de um terço ou menos dos cuidadores eram homens (pais ou avôs),
mas estavam lá.
Sentem-se os efeitos da nova estrutura etária da população: há casais de mais de
60 anos em que o marido segue vivo; há muitas avós a olhar por crianças; há mesmo
namorados com idades médias bem superiores aos 50 (aliás, foi o único caso que vimos de
envolvimento erótico declarado). Os namorados do antigamente não existem já ou não
namoram em espaços extra-domésticos.
Conclusão – O parque é um espaço intermédio entre a vida pessoal e a vida
salarial destas baixas classes médias por meio do qual o “lazer” é mobilizado como
actividade estruturante da inserção social das pessoas.
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02. Comboios e centros comerciais
'Para baixo... para cima... o importante é a transição.'
Ambra Formenti (com Dina Maria Rosário dos Santos)
Entrecampos tem uma estação ferroviária suburbana servida pelas companhias
Comboios de Portugal (CP) e Fertagus. A primeira serve as linhas de Sintra e Azambuja,
ligando o centro de Lisboa com aquelas vilas; a segunda liga o centro de Lisboa com
Setúbal e a Margem Sul.
Espaços - Entrámos pelo acesso secundário, na rua Infante Dom Pedro. Uma
senhora com cruz pendurada ao colo, aparentemente de origem africana, estava a fazer
limpeza. Na entrada, dois funcionários da segurança falavam entre si, trocando umas
palavras com ela de vez em quando.
A arquitectura da estação era de estilo moderno, com matérias metálicos e largas
janelas de vidro. Dava uma sensação de abertura e luminosidade. No átrio estava um lindo
mural colorido, com animais em cima dum comboio. À frente, os pontos de venda de
bilhetes. Para além das bilheteiras mecânicas (pouco utilizadas pelos passageiros), os
bancos de venta das duas companhias de transporte distinguiam-se por cores diferentes:
o vermelho para a Fertagus, o verde para a Comboios de Portugal. Do outro lado, um
carro para crianças, um dispensador de bebidas e snacks, uma máquina de fotos para
documentos e uns cacifos para o depósito de bagagens. No átrio havia vários ecrãs, que
comunicavam os horários de chegada e partida dos comboios. Mais afastada, uma loja de
roupas e sapatos femininos.
Atravessámos o piso inferior e alcançámos a entrada principal, na Rua Dr.
Eduardo Neves, que, tal como o outro acesso, tinha escadas e rampas para deficientes. O
espaço ao redor das duas entradas estava cheio de escritos nas paredes e no chão,
eminentemente com carácter político. O segurança veio dar-nos uma olhada... No átrio,
estavam vários passageiros em trânsito. Muitos deles, julgando pelo vestuário e pelos
traços físicos, sugeriam uma origem estrangeira. Entre eles, uma senhora com roupas de
estilo africano e vários que pareciam oriundos de países asiáticos. Duas idosas,
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aparentemente nativas portuguesas, talvez amigas, encontraram-se na entrada e ficaram
a falar.
Subimos uma das escadas de acesso ao primeiro piso. Aqui vimos um café e outra
loja de roupas para mulheres, com uma empregada provavelmente de origem chinesa.
Este piso estava bastante vazio. Por uma escada rolante subimos para o segundo piso, o
dos comboios, e alcançámos a plataforma da direita. Alguns dos cartazes presentes davam
informações sobre as rotas e os horários, outros eram cartazes publicitários. Entre os
cartazes publicitários, a maioria promovia escolas de formação privadas (talvez supondo
um público jovem). Os restantes cartazes anunciavam produtos alimentares. Havia várias
máquinas que vendiam bebidas, aparentemente inutilizadas.
Pessoas – Ao chegar aos comboios, o meu olhar foi preso menos pelos elementos
espaciais e mais pelas pessoas. O fluxo de homens e mulheres mudava ao ritmo de
chegada e partida dos comboios. Porém, tal como nos pisos inferiores, as pessoas
pareciam bastante tranquilas. Nesta tarde de verão, ninguém parecia estar atrasado ou
ter pressa.
As idades eram bastante variadas: havia alguns idosos, vários adultos, muitos
jovens, poucas crianças. Não havia preponderância do género masculino ou feminino.
Muitos dos jovens tinham auriculares ou mexiam continuamente no telemóvel, falando e
mandando mensagens. Várias pessoas estavam a ler jornais (principalmente o Metro), ou
livros. O vestuário dos transeuntes era geralmente prático e colorido, exceptuando dois
rapazes vestidos de fato e gravata. A maioria dos passageiros parecia ter origem africana,
talvez um testemunho da relativa concentração residencial desta população ao longo da
linha de Sintra e na Margem Sul.
Enquanto estávamos a caminhar na plataforma, ouvi alguém dizer
“Obrigadinho!” O senhor que falou, um homem idoso, devia ter pedido alguma
informação, mas não percebi com quem estava a falar, pois nem levantou a cabeça. De
repente, dei-me conta que ninguém estava a falar com ninguém, para além de uns pares
de amigos.
Encontros - Na plataforma em frente, estavam sentados três idosos que tinham
ar de nativos portugueses, que eu observara enquanto estávamos na entrada. Um deles
tinha um boné na cabeça. Estavam sentados num banco a conversar tranquilamente, não
pareciam prestar atenção à passagem dos comboios. Intrigadas pelo tipo de relação que
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eles mantinham com o espaço e entre si, tão em contraste com o comportamento dos
outros passageiros, atravessámos para o outro lado da plataforma de embarque e
sentámo-nos no banco onde eles estavam. Tentámos ouvir a sua conversa, mas
infelizmente não conseguimos perceber nada.
Entretanto um homem adulto, aparentemente alcoolizado, abordou-me,
perguntando-me se eu era mãe. Colocou na minha roupa um laço vermelho, símbolo da
luta contra a SIDA. Cheirava a álcool e pedia dinheiro para os doentes com SIDA. Eu pedi -
lhe informações sobre a associação da qual, supostamente, ele fazia parte. O homem
apresentou um caderno velho e sujo com o nome da associação. Dei-lhe uma moeda e ele
afastou-se. Ao mesmo tempo, os idosos conversavam animadamente sem dar atenção ao
nosso diálogo.
Como não conseguíamos ouvir as palavras dos idosos, decidi interpelá-los
directamente:
Ambra - Vocês estão à espera dum comboio?
Um deles acenou afirmativamente com a cabeça.
Ambra - Para onde vão?
Idoso 1 - Para baixo... para cima... o importante é a transição...
Expliquei-lhes que éramos estudantes da Universidade de Lisboa e estávamos a
fazer um exercício para um curso de verão. Ao ouvir as minhas palavras, o segundo idoso
precisou com intenção:
Idoso - Nós não somos daqui. Somos do Alentejo.
Ambra - Esses comboios são de curta distância?
Idoso 3 - Sabemos muito pouco... Sabemos nada...
Os idosos fecharam-se em copas. Passei a observar a plataforma em frente. O
suposto colector de ajudas para doentes de SIDA continuava o seu trabalho. Escolhia
evidentemente mulheres. Várias senhoras recusaram, outras deram dinheiro.
Aparentemente, quando ele conseguia colar o laço vermelho nos vestidos era mais fácil
que recebesse uma moeda. Evidentemente, esta estratégia tinha uma certa eficácia. De
repente chegou um comboio. Quando passou, já não havia ninguém na plataforma e o
nosso amigo também devia ter apanhado o seu comboio. Como os idosos alentejanos não
pareciam ter vontade de conversar connosco, pusemo-nos em pé e afastámo-nos
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lentamente. Entretanto, um senhor com ar de alcoólico e mala cor de laranja foi sentar-se
ao lado deles.
Cruzámos a plataforma, uma vez mais, retornando para a anterior. Do outro lado,
os nossos três amigos continuavam a conversar sentados, em contraste com o resto dos
passageiros. Ao lado deles, o senhor bêbado tinha adormecido. Provavelmente o seu
objectivo não era viajar, mas sim descansar. Sem ser observadas, tirámos uma fotografia.
Descemos para o átrio. Os homens da segurança tinham permanecido na entrada lateral,
onde a senhora da limpeza continuava trabalhando, sempre no mesmo sítio, sempre com
muita calma.
Que aconteceu na hora e meia em que fomos observando este lugar?
Por um lado, o espaço que tínhamos atravessado podia ser descrito através da
categoria de ‘não lugar’, ou seja como um espaço de passagem, provisório e efémero,
caracterizado pelo trânsito e pela falta de comunicação interpessoal; um espaço onde as
relações, as identidades e a história não estavam em jogo. Por outro lado, nos interstícios
deste lugar de ninguém, encontrámos pessoas ocupadas a cultivarem relacionamentos e
afirmarem orgulhosamente a própria identidade, curiosamente inspiradas pelo trânsito
dos outros.
Cosmo polis ismo - das espacialidades urbanas
Dina Maria Rosário dos Santos (com Ambra Formenti)
Por volta das 17 horas de uma mormacenta tarde de Julho a Avenida de Roma
dormita. É uma rua tranquila e mais tranquilo ainda parece ser o seu Centro Comercial:
Acqua Roma. A sua suposta calma contradiz a fachada revestida em aço inox. Forte e
robusta, serve de preâmbulo a um espaço de compras quase vazio onde o moroso ritmo é
quebrado pelo esparso som de crianças brincando, bengalas, andadores e saltos agulha.
Ao entrar, as portas isolam o burburinho da rua. Sou saudada por uma larga
rampa e uma escadaria. As paredes são cinza e o acesso é negro. Não sei se esta primeira
visão convida as pessoas ou se as expulsa da Meca das compras. Uma idosa,
meticulosamente, limpa o átrio – a mim, parece bastante limpo, mesmo antes da sua
chegada. A sua farda verde e os seu ténis com detalhes em laranja contrastam com a sua
expressão cansada. Logo entendo para que serve a larga rampa ... Durante os primeiros 2
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ou 3 minutos em que estive parada na entrada, a faixa etária dos transeuntes rondava os
70 anos. A estrutura do Centro Comercial está sustentada por colunas forradas com metal
cinza. O conjunto forma algo entre o futurístico e o lúgubre. O acesso às lojas é por entre
as pilastras e, no centro do edifício, as vigas aparentes dão uma sensação de opressão. O
olhar é entrecortado por escadas de metal e paredes. As cores dominantes são o cinza, o
negro e o marrom.
No final do corredor há um espaço para recreação infantil. A entrada está
tomada por um barco colonizador marrom onde brincam três crianças. Atrás dele, uma
casinha amarela de plástico, alguns cavalinhos de baloiço, mães, avós, carrinhos e bebés,
todos reunidos em volta de um tapete vermelho. Não sei se é intencional ou coincidência,
mas a loja de preços mínimos fica ao lado das crianças e das mães. É engraçado notar
como tudo está no mesmo sítio: a roupa infantil, o lanche, a lavandaria, o conserto para
roupas. Talvez uma mãe pós-moderna não precise de sair do piso inferior.
O primeiro piso é um pouco mais claro e menos lúgubre. Estão lá as lojas de
marca, de roupa feminina e masculina, bebidas, joias... e o passadiço de madeira
completamente vazio. Três senhoras conversam, confortavelmente sentadas em
poltronas, em frente a uma loja de roupa feminina. Parece uma reunião de amigas. (A
funcionária da limpeza observa-me enquanto, lentamente, sobe as escadas.) A reunião
segue tendo como tema principal o quotidiano dos filhos e netos. A troca de informações
sobre magia e receitas para quebrar encantamentos utilizando a igreja e os seus símbolos
é, no mínimo, pitoresca. Comentam sobre o 'mau-olhado' e como podem proteger netos e
filhos. Uma delas fala de um ritual contra no qual se utilizam as portas e paredes de uma
igreja. Uma outra esclarece que existe o mau-olhado do bem e o mau-olhado do mal. A
conversa passa para o tema de uma pessoa que só gosta de homens casados. E daí evolui
para o uso da borra do café para fazer leituras divinatórias. Discutem sobre formas para
ler a sorte no casamento através da borra do café. Surgem controvérsias sobre a
possibilidade de usar folhas de chá. Uma delas, enfaticamente, afirma: - “Eu sei porque já
fiz isso!” A sua postura assertiva põe fim à discussão.
Essas senhoras portuguesas fazem-me lembrar Chico César: 'No meu peito
católico tudo é descrença e fé'. Cosmopolitamente, três avós encontram-se num shopping
para discutir formas de proteção dos membros de suas respectivas famílias. Tradicionais e
contemporâneas, essas mulheres expõem saberes de um sincretismo, supostamente,
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lusitano em um espaço coberto de aço inox. Os encantamentos - testemunhos do desejo
de controle/poder e da fragilidade humana – persistem, resistem e sobrevivem na
inventada laicidade das metrópoles. A magia atravessa as racionalidades urbanas.
Enquanto as senhoras trocam saberes uma jovem fala ao telefone. O ambiente
está dominado por mulheres, crianças e idosos de ambos os sexos. As vendedoras entram
e saem das lojas como se o movimento delas pudesse aumentar a quantidade de clientes.
É interessante notar como chama atenção a postura de quem não está no centro
comercial para comprar. Talvez porque seja clara a origem estrangeira... ou o olhar que
não se dirige aos objetos de compra mas às pessoas... ou salte aos olhos que não vou
consumir. Estou consumindo-as... Os dois funcionários que circulam no shopping – o
segurança e a senhora da limpeza – continuam observando-me de perto e atentamente.
O local mais claro do edifício é a praça de alimentação. E finalmente dou-me
conta de que o shopping tem forma de navio. As fotografias de barcos e partes de barcos
na parede do último piso não deixam margem para dúvidas. Talvez a metáfora seja a de
embarquemos nos mares do consumo. É interessante notar como num Centro Comercial
vazio o movimento das escadas produz uma sensação de vida.
A praça de alimentação alimenta dezanove pessoas: quatro adolescentes comem
e quinze homens e mulheres leem. Será este Centro Comercial frequentado pelos
vizinhos? Será que, aos fins de semana, é para ele que se dirigem os jovens da vizinhança?
Será que navega, silenciosa e lentamente, para a falência? Num ecrã exibem um jogo de
futebol. O ecrã está posicionado em frente a três adolescentes. Ou o jogo é pouco
importante, ou a fome é mais importante. O fato é que eles conversam entre si e não
olham para a televisão. A tela exibe notícias da Síria. Enquanto um país sangra um único
homem assiste...
Do terceiro piso vejo que o trio de amigas se dissolve... primeiro uma e depois
duas despedem-se e seguem... Aqui e ali passam mulheres com suas sacolas de compras.
A hierarquia do shopping organiza-se da seguinte forma: Lazer e serviços no piso inferior;
Compras no piso intermédio; Alimentação no piso superior. Aos três níveis pode aceder-se
por escadas normais ou rolantes. Do último piso é possível observar todos os outros. Nos
três pisos está presente um anúncio de um atelier infantil para os sábados. O mesmo
anúncio está na porta de entrada... Será esta a estratégia para garantir clientela e
movimento? Se for, é possível imaginar a que público se destina o espaço...
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Testemunho da geopolítica urbana.
03. Circulações urbanas: a praça e o metro
A praça da tolerância
Rosa Alexandra (com Murilo Rodrigues Guimarães)
Às 16 horas, o centro da Praça de São Domingos, em Lisboa, está praticamente
vazio. O fluxo pouco intenso de pessoas que a atravessam quase não se detém. Os
transeuntes usam-na quase só como local de passagem para os seus afazeres. Há
habitantes ou trabalhadores locais que atravessam o largo nas suas rotinas diárias mais ou
menos apressadas, há também turistas, principalmente casais com crianças pequenas,
alguns empurrando carrinhos de bebé, que a atravessam, talvez, entre o fim do almoço
numa esplanada nas ruas circundantes a São Domingos e a próxima escala nos seus
roteiros, há igualmente devotos que se dirigem para a igreja, o edifico mais imponente de
toda a praça. O calor aperta (a meteorologia dá 28ºC mas parece mais) e no centro da
praça não há sombras, nem fontes, nem bebedouros que convidem a uma pausa para dois
dedos de conversa. Mesmo os poucos pombos que por aqui planam, depressa esvoaçam
para poisos mais amenos. O piso branco da calçada lisboeta e o chão contíguo de blocos
de mármore igualmente brancos no adro da igreja aumentam a sensação de aridez. O
único elemento contrastante é um camião vermelho da Super Bock onde se lê Avenida da
Liberdade a letras garrafais. Passa das 16 horas mas pouco se passa nesta tarde quente no
centro da Praça de São Domingos. A acção está nas margens.
A Praça de São Domingos, freguesia de Santa Justa, fica paredes-meias com o
Rossio e é uma praça pequena de forma quadrada. O lado superior é delimitado pelo
Teatro Nacional D. Maria II, enquanto no lado inferior está a igreja de São Domingos, do
século XIII, embora com reconstruções posteriores, em particular após o terramoto de
1755 (descubro eu já em casa pela Internet).
Foi neste largo que em 1506 centenas de judeus foram massacrados por
católicos. Em 2008, António Costa, presidente da câmara, inaugurou aqui dois pequenos
memoriais às vítimas, um judaico e outro católico. O monumento judaico, uma estrela de
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David, é hoje o centro da praça, enquanto o católico está em frente à igreja. Para
fomentar a tolerância e “tornar a capital uma cidade mais atractiva a todos os níveis”, leio
eu numa notícia de 22 de Abril de 2008, publicada online no Jornal de Notícias, Costa
inaugurou também um mural com “Lisboa, cidade da tolerância” em 34 línguas. Mas
quem passa e, mesmo, quem fica é indiferente aos memoriais.
O resto do quadrado é delimitado num dos lados pelo Palácio da Independência
e o edifício da Ordem dos Advogados. Este edifício fica situado numa zona mais elevada da
praça, por onde se tem acesso subindo uma pequena rampa ladeada por um gradeamento
que separa esta zona do largo propriamente dito. É por baixo deste gradeamento que se
encontra o mural da tolerância. Esta é também a zona mais fresca e convidativa ao
descanso de todo o lugar devido às três grandes oliveiras plantadas em frente ao edifício
dos advogados que sombreiam todo o passeio. Finalmente, o quarto lado do quadrado
fecha-se nas Chapelarias Azevedo Rua Lda., “fundadas em 1886” e “especializadas em
chapéus e bonés” (resquícios da Lisboa dos filmes dos anos 40, do “chapéus há muitos,
seu palerma!”), na Ginjinha Espinheira, conhecida pela Ginjinha do Rossio, e por uma
grande e solitária oliveira, o único elemento vegetal, fonte de frescura e sombra, na parte
baixa da praça, acabando este lado no adro da igreja. É aqui, debaixo das oliveiras, na
igreja, na Ginjinha, que os frequentadores habituais ou ocasionais da praça param.
Indiferentes uns aos outros.
Para os turistas, a Ginjinha, da família Espinheira desde que foi fundada em 1840,
é a maior atracção da Praça São Domingos. Nesta tarde de verão, casais de turistas muito
brancos, frequentemente com crianças em carrinhos, aglomeravam-se à porta do
estabelecimento para beber a sua ginjinha, com ou sem ela. Inclinam-se ligeiramente para
a frente enquanto beberricam os primeiros goles, por vezes partilham o mesmo copo. Mas
para estas pessoas, São Domingos começa e acaba aqui, às portas da Ginjinha Espinheira.
Há também os frequentadores da igreja de São Domingos. Mas são poucos os
que a meio da tarde se dirigem para lá. Na maior parte são homens idosos, mas muito
aprumados, que aparentam ser da classe média-alta e entram na igreja focados no
cumprimento da oração diária ou semanal. Entra também uma idosa puxando uma
mochila do ginásio Holmes Place. No interior, o verde fosforescente da mochila, colocada
no corredor central da igreja, contrasta com os tons cinzentos e vermelhos das colunas e
do tecto. O interior tem, ainda assim, pouca gente. A próxima missa é só às 17:30 e as filas
ICS Estudos e Relatórios 2013
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de cadeiras de madeira fazem lembrar uma plateia vazia, como provavelmente
acontecerá, a esta hora, no outro lado da praça, nas salas do Teatro D. Maria II.
Para outro grupo, no entanto, a Praça São Domingos é local de convívio e de
(algum) negócio. É o grupo dos negros africanos que aproveitam a sombra fresca das
oliveiras para estar, simplesmente estar, ou conversar. Na oliveira em frente à igreja seis
homens e uma mulher sentam-se em cima de cartões de papelão que já foram
embalagens: de frigoríficos? Ventoinhas? Ares-condicionados? Nesta praça não há grande
tecnologia, o calor suporta-se calmamente, aproveitando a sombra fresca das oliveiras.
Quando me aproximo, a mulher do grupo chama-me. Oferece-me um pequeno saco de
plástico transparente com feijões? “Amendoins”, diz num sorriso. Não percebo à primeira
nem à segunda. Aponto para uma espécie de nozes que tem na mão. É cola, explica-me, é
para comer. Desconfio, mas compro uma, 50 cêntimos. Quando chego a casa, procuro na
Wikipedia. Para mim, cola para ingerir, só a coca-cola. Mas desta cola também se fazem
refrigerantes (vem-me à cabeça a imagem do copo de refrigerantes da McDonald’s
estendido pelo mendigo à porta da igreja).
Visito depois o grupo de africanos que estão em frente à Ordem dos Advogados.
Aqui é a estrutura do canteiro que serve de assento às mulheres de vestidos étnicos,
verdes, amarelos, vermelhos, e turbantes coloridos, que vendem amendoins (compro um
saquinho por um euro), camarão seco e malaguetas. Os homens estão de pé à roda das
árvores a conversar e alguns, mais jovens, espalham-se, à sombra, pelos assentos que o
gradeamento permite.
São 16 horas e 50 minutos, o meu tempo acabou. Dou uma última olhada à
praça. Nada mudou na praça da tolerância multicultural, um centro de passagem, ladeado
por grupos culturais fechados a ocuparem as margens.
Ir e Voltar de metro ao Aeroporto
Murilo Rodrigues Guimarães (com Alexandra Rosa)
Optei, de entre os cerca de oito viajantes identificados, por seguir um casal que
se posicionara ao meu lado, logo que cheguei à plataforma da estação da Alameda.
ICS Estudos e Relatórios 2013
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Tratava-se de um jovem homem, com cerca de trinta anos, caucasiano, louro, a usar
uma camisola azul, com estampa tipo cartoon, calça de cor bege e sandálias de fivela.
Ela, também jovem, de tez morena, com cabelos negros a descerem-lhe até abaixo dos
ombros, calçava umas sandálias de tiras de couro e usava um vestido com ténues
desenhos brancos sobre fundos azul e vermelho, que se misturavam como uma colcha
de retalhos.
O homem levava uma enorme mala preta, com rodinhas, trancada por um
cadeado grosso, diferentemente do que normalmente se vê a trancar malas deste tipo,
além de uma pequena bolsa a tiracolo, onde possivelmente estariam guardados
documentos e dinheiro. Ela, por sua vez, levava apenas uma bolsa de tecido verde. Ele,
em pé, cuidava da mala ao lado da mulher que, sentada, mantinha uma expressão de
desconfiança.
Resolvi aproximar-me deles, para saber de onde eram e aonde iriam. Julguei
tratarem-se de portugueses e minha aproximação foi em português. Ele riu, a olhar-me
fundo os olhos. Ela cerrou ainda mais as feições e gesticulou de modo a indicar-me que
nada tinham a dizer. Ao dar-me conta do meu erro crasso de julgá-los portugueses,
tentei uma abordagem em inglês, o que aumentou tanto o riso dele como a
desconfiança dela. Ele disse algo numa língua absolutamente estranha para mim,
levando-me a perguntar-lhe, Itália?, e ele, ao repetir a mesma frase, sempre a rir,
indicava que a nossa comunicação seria absolutamente impossível. Eu levei
idiotamente o corpo à frente e atrás, num tosco pedido de desculpas e, depois disso,
retornei ao lugar onde estava.
Na carruagem, o casal posicionou-se ao meu lado e ele, embora levasse consigo
a enorme mala, permanecera de pé, enquanto ela se sentara no único banco vago
naqueles arredores. À cabeceira da carruagem, um jovem, com vestes rotas e
sandálias, tinha uma mala aos pés. Um outro jovem ao seu lado, com roupas
igualmente despojadas e sandálias, seria seu companheiro de viagem? Ao meio do
carro, um grupo de três raparigas e um rapaz formavam um grupo e era evidente que
também viajavam. No final, vi que estavam todos juntos, cada qual com sua pequena
mala.
ICS Estudos e Relatórios 2013
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As evidências foram sempre as mesmas: malas de viagem e roupas de verão
bastante usadas. Um objecto, mais uma corporalidade coincidente no que diz respeito
às roupas e ao ar cansado, eram, portanto, os elementos que à primeira vista os
ligavam a todos. Não pude deixar de construir uma metáfora óbvia entre a mala e a
casa, esta carregada às costas, como uma extensão do corpo, de modo a acentuar uma
outra característica comum subjacente: o estatuto de passageiro, de quem está a sair
ou a retornar ao local de origem e as implicações que esta provisoriedade representa,
especialmente as de ordem política e jurídica.
Revolvendo-me neste nível de conjecturas, reflecti: como etnógrafo, não me
era suposto tecer cenários sobre suas vidas, inferir-lhes nacionalidades, imaginar-lhes
passados e futuros. No entanto, eu fizera-o. Eu era um cientista preconceituoso. Senti-
me sozinho e desprotegido, porém logo me dei conta de que era essa a posição ideal
para mim: a solidão empática, disposta à descoberta daquelas vidas, tal qual eles, ao
olhar para mim, poderiam querer, por este homem estranho a eles, saber mais sobre a
vida em Lisboa. A dimensão do encontro que trespassa a ventura do viajante é a
mesma que consubstancia a “viagem” do antropólogo. Éramos, todos ali, etnógrafos.
Segui aquele casal até o terminal de embarque 2, o que significava que
viajariam numa companhia aérea de baixo custo. Antes, eles foram à casa de banho
separadamente e, enquanto ele lá estava, ela bebeu goles de água de uma garrafa de
litro e meio. Compunham uma dupla com evidente divisão de tarefas – estariam elas
baseadas em concepções peculiares dos papéis masculino e feminino? Estaria ela
grávida? Como sabê-lo? Foram-se e o trabalho com eles acabou ali.
No percurso de volta, acompanhei um par de jovens brancos. Um deles
viajante, o outro era o amigo que o fora buscar ao aeroporto e que lhe ensinava a
estar em Lisboa. Foram juntos, conversando, lendo mapas da cidade. Ambos usavam
roupas despojadas, sendo que a enorme mochila denunciava a presença de um turista.
A bolsa foi colocada no banco à frente de um deles e, mesmo quando, na estação
Oriente, o vagão se encheu de passageiros, eles não a retiraram dali. Evidente era a
despreocupação de ambos os jovens para com a situação um pouco embaraçosa. A
mochila-casa ocupava um lugar na cidade, pensei.
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Cheguei à Alameda, desci do vagão, deixei-os seguir, a conversarem
animadamente. Enquanto subia as escadas para sair da estação, fui recuperando os
pedaços de mim deixados de lado, em nome do trabalho etnográfico. Era eu de volta
aos meus preconceitos. Era eu, finalmente, a retirar a máscara pretensiosamente
neutra e a tornar-me, novamente, naquele self familiar, igualmente aventureiro,
viajante entre as paisagens da minha mente e da minha curiosidade antropológica. O
quanto pesavam em mim as notas de campo, enorme espaço passaram a ocupar na
minha cidade interna. Eu bem deveria ‘dar uma chegada’ à Espanha ou à Ucrânia.
Quem sabe não reencontrasse aquele jovem casal numa praça de Kiev, ou dançasse
com o grupo de rapazes e raparigas, numa das ruas de Chueca?
04. A baixa lisboeta
As longas sombras duma luz ofuscante
Frank-Ulrich Seiler (com Joana Sousa)
É a tarde do dia 25, uma quarta-feira no mês de Julho, anno domini 2012. O céu
mostra-se aberto com um azul claro, o sol brilha com todo o seu esplendor, apenas
uma ligeira brisa ajuda a suportar o calor e a intensidade dos raios. Encontro -me na
margem sul da Baixa de Lisboa, onde a estreiteza do emaranhado de ruas num estado
de degradação avançado e a acumulação de prédios antes pomposos, agora apenas
sufocantes, dão lugar à abertura da Praça do Comércio com o seu vazio imenso.
Esplanadas de cafés perdidas mal conseguem quebrar esse oco, não obstante a
presença duma pequena multidão de turistas neste local e o monumento no seu
centro.
Aqui até o cavaleiro régio de ferro, um tal Dom J., parece ter perdido o norte
que se vislumbrava glorioso, se dermos crédito à placa que enaltece os seus feitos,
numa linguagem esotérica para os transeuntes. O único combate que ainda trava,
embora sem hipótese de sair vitorioso, é com os cliques imparáveis das câmaras
ICS Estudos e Relatórios 2013
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“made in Asia” nas mãos dos atacantes multi-línguas. No entanto, nenhum escudo,
nenhuma espada conseguem impedir o avanço desses invasores!
À praça é atribuída uma importância nacional: será pela existência do ‘Arco
Triunfal’ ou dum aglomerado de prédios amarelos “mi(ni)steriosos” que a esquadra
policial na esquina tem sob um olhar atento? Em seu redor estendem-se esses
palacetes-ministérios, uma parte dos quais foi esvaziada do seu caráter público através
da apropriação por meio dum pequeno depósito privado na conta do poderoso
ministério residente, o das Finanças. Segundo rezam as lendas da atualidad e, a ação
deste rege-se consoante a vontade de espíritos obscuros, sobretudo exógenos, dum
mercado anónimo de vendedores e compradores de valores.
A sul, este espaço é delimitado por uma espécie de fronteira, i. e., uma rua
marginal na qual se deslocam milhares de carros num vaivém imparável e ruidoso. Os
apitos frequentes dão-nos ideia do nervosismo e da pressa sentidos pelos condutores
no interior das caixas metálicas redondas. Abandonamo-los ao seu destino de sucata e
vagamos com o nosso olhar até à ponta da praça.
O meu local de escolha situa-se ao lado do cenário anterior. Sento-me num dos
bancos de pedra que integra os muros laterais e protetores do “Cais das Colunas”, que
prolonga e finaliza a cidade nesta área. É constituído por um semicírculo com um chão
de pedras de mármore que me conduz aos degraus centrais, descendendo depois para
as águas do Tejo. O rio engole a parte inferior de duas colunas que dão o nome ao
antigo cais de embarque.
Daqui saíram numa empresa de conquista, contando com o financiamento por
banqueiros exógenos, os valentes ansiosos por ouro, os condenados em nome
dalguma justiça, como também os falidos nobres da terra, endividados até à medula.
Ouvem-se quase os choros dos seus filhos e das mulheres entregues a si próprios
perante o destino incerto dos seus homens, não obstante toda a ciência de navegação
empregue.
Aqui chegaram humanos de terras longínquas, de nome “Guiné” ou “Congo”, a
quem os valentes tinham arrancado a sua condição de Ser, i. e., tratavam-nos como
ICS Estudos e Relatórios 2013
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“escravo”, o que significava “coisa”. O seu destino enquanto mercadoria estava à
mercê dos mesmos espíritos do mercado, i. e., dos banqueiros. Os lamentos, os choros
de homens antes orgulhosos, aqui atormentados e quebrados, de mulheres violadas
pelos bravos conquistadores, com bebés a amamentar no seu peito antes da sua
separação para sempre, as chicotadas como técnica de educação para o trabalho e
como instrumento de subjugação, a sua distribuição pelas casas do comércio de
escravos nas imediações da praça – como é que as colunas terão recordado isso tudo?
Viram desembarcar aqui o guerreiro Gungunhana, rei duma sociedade africana
nas terras de Moçambique, derrotado militarmente, humilhado e transformado em
objeto humano dum espetáculo de afirmação do poder colonial.
Será que sentem vergonha quando a maré-baixa liberta as inscrições no seu
corpo de pedra que glorificam a passagem por este local de dois ditadores, Carmona e
Salazar, além dos seus atos colonialistas ainda recentes nas terras dos que se
contorceram de dor na sua chegada forçada a este local há alguns séculos?
Da sua esfera, i. e., do ponto mais alto, duas gaivotas contemplam o atual
movimento, enquanto os seus colegas pombos passeiam sem preocupação à procura
de pequenas delícias deixadas pelos visitantes que afluem a este lugar. Aparentemente
reina um convívio pacífico entre humanos e pássaros, embora, fora daqui, estes
tenham o estatuto de inimigo público pelo fato de se libertarem em cima dos heróis
nacionais petrificados.
Os humanos, muitos deles loiros, suponho turistas, afluem ao local em
pequenos grupos de duas a quatro pessoas, dirigindo o seu primeiro olhar às águas do
Tejo como se fossem capturados por um estranho feitiço. Andam vestidos uniformes
com calções, t-shirts, com sandálias ou ténis de marca, as máquinas fotográficas ficam
penduradas ao pescoço. Uma senhora encosta os restantes membros da família à
margem do rio na tentativa de os levar presos numa fotografia. As caras mostram
distração, sorrisos são frequentes e um relaxamento evidencia-se. Alguns sentam-se
na escadaria, esticando as pernas ou procurando algo longe daqui com um olhar
perdido. Duas jovens viram as suas caras ao sol, num ato de adoração de quem
pretende trocar a sua palidez por uma tonalidade escura mais bonita. A meu lado, um
ICS Estudos e Relatórios 2013
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homem, com cerca de 30 anos, escreve num pequeno caderno um texto denso,
levantando a cabeça apenas esporadicamente: o mundo é mesmo dos etnógrafos!
Há um ambiente tranquilo, com conversas num tom discreto, baixo, em línguas
sobretudo europeias e com gestos contidos. Após uma curta passagem, esses
humanos de classe média seguem o seu caminho para um outro lugar, o guia turístico
na mão.
No meio deste ‘para trás e para frente’, permanece um grupo de cinco homens
africanos. Pela sua aparência escultural atribuo-lhes como origem a Guiné ou o
Senegal. Eles estão sentados no muro do outro lado do cais, vestindo camisas leves,
calças vincadas com sandálias simples. A sua conversa sucede com emoção o que se
manifesta nos gestos que os seus braços e as mãos descrevem, nos movimentos do
seu corpo inteiro, como se quisessem sublinhar os argumentos proferidos oralmente.
Os seus olhares quase não tocam este lugar – será que as suas preocupações são
tantas, ou será para evitar o contato com os espíritos históricos que ainda habitam o
local?
Uma jovem portuguesa, num vestido-calções com desenhos africanos,
bamboleia-se na sua conversa com um senhor africano, de calções e sandálias. A sua
linguagem corporal contrasta com a do acompanhante que, por sua vez, mostra uma
distância através da sua posição reta. Os dois parecem estar com pressa. Um outro
homem ainda dirige um olhar classificativo de vendedor às pessoas, escondendo na
sua mão um cubo de caldo “Knorr”. Depois afasta-se para um outro local.
Nem este senhor, nem os pombos parecem causar um maior interesse aos
turistas; aliás, a sua comunicação limita-se ao grupo de companheiros ou destina-se a
este rio enigmático.
Entretanto, no cais ao lado, os barcos atravessam o Tejo e, no regresso,
despejam os passageiros com celeridade como se estivessem sob uma grande pressão.
Um cruzeiro gigantesco observa atentamente essa confusão, enquanto espera
calmamente o regresso dos seus viajantes que invadiram a cidade à conquista de
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monumentos e saldos. Depois o paquete vai levá-los para outros lugares, sendo
invejado pelos turistas do cais velho. E o que será feito dos homens africanos?
Tanta tranquilidade e aceleração, tanta natureza e destruição, tantas dores,
miséria humana e arrogância colonizadora que constituem este lugar! Quantas
sombras a luz deste local terá criado ao longo dos tempos?
Parados numa passadeira de peões sem semáforo
Joana Sousa (com Frank-Ulrich Seiler)
Um ponto. Entalado entre o hotel mundial e as obras da EPUL. Ao lado do hotel
a bandeira da cidade de Lisboa, ao fundo a bandeira nacional hasteada por cima do
castelo. De verde há nove árvores que consigo avistar à esquerda. Não há pombos ou
vento. Entre o hotel, as árvores e as obras há estradas que se encontram num ponto e
que são atravessadas por duas passadeiras de peões. Não há semáforos. Estamos
sentados no fundo do passeio num bloco de cimento deixado pelas obras ou por um
resto de muro antigo ou feito à pressa.
Notam-se dois tipos de canais distintos, um por onde se movem carros e outro
por onde se movem pessoas. Estes dois tipos de organismos, os carros e as pessoas,
circulam no seu local apropriado a uma cadência marcada pelo fluxo de uns e outros,
numa negociação constante que assenta numa linguagem de corpos. À medida que as
pessoas param em pé à beira do passeio insinuam querer atravessar. Alguns carros não
param logo. A uma pessoa que espera junta-se outra e outra e outra que forçam, sem
força, os carros a parar. É um entendimento nervoso que se estabelece entre gentes e
carros – carros que também têm gente – e assim, gente a pé e gente em carros. Ainda
assim, os carros que param na passadeira e os peões que atravessam a estrada
materializam-se num encontro forçado. O nervosismo é mais evidente nos carros que
nas pessoas, apesar de ser a fragilidade física da pessoa que sustem a pujança do
carro, é ele que transborda ansiedade. Por algum motivo as pessoas que se movem de
carro parecem estar mais apressadas, ou têm mais problemas em controlar esse
sentimento, que as pessoas que se movem a pé.
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Muitos carros param já em cima da passadeira, começando a arrancar pouco a
pouco, forçando o ritmo do transeunte e acelerando logo que o caminho fica livre.
Alguns carros não param mesmo. Ocasionalmente há peões que agradecem a
condutores. Além da linguagem corporal do peão que atravessa ou do peão que
agradece não há mais comunicação. Pode dizer-se que há uma certa ordem
estabelecida que substitui a comunicação. Uns aqui e outros ali. Desordens ocasionais
de pessoas que atravessam obliquamente a estrada ou de carros que estacionam em
cima do passeio não colocam em causa a estrutura do que deve ser. Desafiam-na por
momentos para tudo voltar ao que é suposto.
A maioria são carros, mas há também motas ocasionais, alguns autocarros e
bicicletas – passaram duas apesar de não haver uma via que lhes seja dedicada, neste
cenário compartimentado parece não ser suposto existirem. Os carros que passam são
velhos, novos, grandes e pequenos, de várias cores. Muitos têm uma pessoa, alguns
mais. Igualmente homens e mulheres conduzem. Os que andam a pé são como os
carros: há novos e velhos, há grandes e pequenos, há de várias cores. Há homens e
mulheres, meninos e meninas. A maioria anda só ou a pares. Mesmo os que andam
acompanhados não conversam muito, andam apenas.
A maioria move-se sem expressão no rosto, apesar de elementos da roupa e do
corpo convidarem a interpretações ambíguas. Detecto extremos. A magreza, a pele
oleosa, a roupa suja anunciam uma vida marginal que acontece em pessoas de várias
cores, idades e géneros. Os engravatados, ou quase engravatados, de pasta na mão
acontecem da mesma forma. Estas inferências de classe, ou no mínimo de ocupação,
ocorrem na diversidade e criam uma outra diversidade transversal a “grupos naturais”.
Há um tipo evidente de transeunte, que se movimenta de maneira diferente e
que não é a maioria. A maioria sabe para onde vai, move-se pelo canal, na sua via,
deslocando-se de um sítio para outro sítio, olhando o chão ou o vazio em frente.
Aquele outro tipo é fundamentalmente louro e fala inglês. Aparecem essencialmente a
pares ou mais. São também de várias idades e ambos géneros. Têm máquinas
fotográficas, mapa e mochila; elementos que podem surgir todos numa só pessoa ou
combinados entre si. O seu andar é diferente, as cabeças rodam, os corpos rodam,
ICS Estudos e Relatórios 2013
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olhando em volta à procura de para onde ir. Chegando ao cruzamento são obrigados a
tomar decisões relativamente à via de movimento a seguir, ao canal a escolher. Rodam
mapas e comentam entre si, olham à volta e olham o mapa, olham à volta e andam.
Enquanto a maioria passa apressada junto à estrada sem passeio encostada às
obras do lado esquerdo um grupo de turistas para, lê o sinal que proíbe
determinantemente a passagem de pessoas naquele lado. O grupo hesita vendo a
maioria dos transeuntes a passar mecanicamente ao lado do sinal mas acaba por voltar
para trás decidindo não avançar. Eu, que passo ali frequentemente, nunca tinha visto o
sinal e iria jurar que o meu olhar nunca tinha tocado aquele sinal – talvez por me ter
sempre distraído a fitar o chão ou o vazio em frente? Como será quando lá passar
outra vez? Agora que vi este sítio com os olhos dos turistas, ou dos não-turistas que se
sentam onde ninguém se senta, irei (re)embeber-me no meu quotidiano antigo, ou
haverá um novo quotidiano para mim neste cruzamento depois de o observar?
A única pessoa que reparou em nós foi uma velha gorda que carregava o seu
peso e o peso de um grande saco de roupa que parecia ir vender. Olhou para mim
enquanto o Frank escrevia e sorriu. Foi a única vez que penso ter feito parte do
pensamento de alguém desde que me sentei ali. Só comuniquei de facto com a velha
que se arrastava e com o sinal que proíbe a passagem. O sentimento de não
comunicação impera. Este cruzamento é rico em diversidades, de carros e pessoas, e
nulo em relações humanas. O interior dos carros é um mundo inacessível, embalado.
As cabeças das pessoas que passam são cápsulas de pensamentos. Os olhos olham mas
não olham mesmo.
É um local de anonimatos, simples canal cujo fluxo varia com a densidade de
pessoas e carros, local em que a física se impõe e torna o movimento mais ou menos
viscoso. O barulho é constante, a comunicação mínima, só a suficiente para evitar
colapsos. É quente e abafado. É um sítio para se entrar ou sair, não é um sítio para se
estar. É um ponto para alguma coisa. É um ponto de movimento. Vou-me embora.
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05. Mulheres e igrejas
Praça da Figueira
Gustavo Monzeli (com Raquel Carvalheira)
Dirigimo-nos à Praça da Figueira, às 17h35, a um local específico que a Raquel
havia dito ser, possivelmente, um ponto onde algumas mulheres trabalhavam no
mercado do sexo pago. Assim que chegámos avistámos três mulheres, uma morena,
uma loira e uma anã, que logo foi embora por uma rua perpendicular ao ponto onde
elas estavam. A morena vestia uma camiseta rosa, umas bermudas jeans, ténis e um
boné branco, era bastante magra e aparentava ter por volta de 40 anos; já a loira era
um pouco mais gordinha, aparentava ter a mesma idade e estava vestindo umas calças
jeans e camiseta. Demos uma volta na Praça à procura de um lugar estratégico no qual
pudéssemos melhor observar as mulheres, que eram o nosso foco neste exercício.
Primeiramente pensámos em parar num bar ou café que tivesse mesas na rua,
mas o café localizado mais perto estava com todas as mesas ocupadas, e o café
seguinte estava muito distante do sítio onde elas estavam. Depois pensámos em ficar
numa paragem de autocarro, mas logo percebemos que também estava inteiramente
ocupada. Desta forma, acabámos por nos sentar na entrada do metro do Rossio, que,
além de ficar relativamente perto do local onde elas estavam, dava a possibilidade de
nos sentarmos na sombra.
Neste momento ficaram as duas, loira e morena, paradas num ponto a esperar.
Assim como elas, estávamos, Raquel e Gustavo, também a esperar. A espera neste
momento parecia ser o que de comum havia na cena, a diferença é que julgamos
existir, por parte das mulheres, uma intencionalidade que desconhecíamos, ao mesmo
tempo em que a nossa espera significava uma expectativa e esperança de que algo
acontecesse, de forma a confirmar ou contradizer nossas expectativas.
O que aconteceu é que as duas se levantaram e foram embora pelo mesmo
caminho que a anã tinha tomado. Percebemos que até então só tínhamos observado
as mulheres e o local específico onde elas estavam, que era uma espécie de banco em
frente a um café e um mercado. No momento em que elas saíram, pudemos perceber
ICS Estudos e Relatórios 2013
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um pouco melhor o resto da praça, a perda do “objeto de observação” proporcionou
uma ampliação do espaço onde estávamos. Quando acreditámos que tínhamos
perdido o foco, pensámos que seria preciso encontrar outras possibilidades para a
nossa observação.
A praça é um local no centro da cidade e com diferentes acessos. Existe uma
entrada e saída de metro, pontos de paragem de autocarros, paragens de táxi e
também uma paragem do autocarro que leva aos lugares turísticos da cidade. Também
por isso esta praça é bastante movimentada no período da tarde. Além dos turistas e
das pessoas que por ali passam, existem residências e diferentes lojas de joias,
sapatos, roupas, comidas, dentre outras tantas. Havia também a presença da polícia,
coisa que o Gustavo até então havia notado pouco em Lisboa (em comparação com
Brasil). Naquele local os polícias estavam mais presentes, alguns passando por pontos
da praça, além de carros de polícia e um “camburão2” que parou bem à nossa frente, o
único visto por Gustavo até então.
Mas logo as duas mulheres voltaram, assim como voltaram também as nossas
suposições. De qualquer forma, os deslocamentos continuaram, menos por parte da
morena, que voltou a sentar-se no mesmo banco, onde permaneceu por praticamente
todo o tempo. Já a loira movimentava-se constantemente, primeiro em direção ao
café em que havia uma mesa cheia de homens e onde conseguiu um cigarro, por ali
ficando, conversando e fumando até que o fogo se apagasse. Depois voltou ao banco,
e dali foi à esquina, e logo ao banco, e à esquina, e posteriormente à rua onde ela e a
morena tinham saído da outra vez, logo depois da anã. Esses deslocamentos pareciam-
nos um tanto intencionais, não meramente uma caminhada descomprometida de um
local ao outro, mas distanciamentos e aproximações lentas e sobretudo intencionais.
Enquanto isso a morena permanecia sentada, no mesmo banco, mas com
outros cigarros. Logo a loira voltou, com o mesmo andar e o mesmo deslocamento.
Até que parou um homem para conversar com a loira, um senhor que aparentava ter
entre 60 e 70 anos, carregando uma espécie de bengala. Eles ficaram a conversar por
um tempo e logo o senhor foi-se embora para um lado da praça.
2 Camburão no Brasil é um carro de polícia grande onde geralmente se colocam as pessoas que são
detidas e levadas à delegacia.
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Neste momento apareceram amigos da Raquel, um rapaz e uma rapariga com
um bebé de quatro meses que era carregado pelas costas da rapariga. Depois de um
tempo de conversa, a Raquel explicou-lhes o que estávamos a fazer ali, e eles, por
morarem perto da praça, já sabiam um pouco do movimento da prostituição naquele
local, e contaram-nos alguns detalhes sobre os cafés que algumas mulheres
frequentavam, além de pensões que elas costumavam usar para levar os clientes para
realizar o programa.
Enquanto a Raquel conversava com os amigos, Gustavo continuou a observar
as mulheres e percebeu que o senhor que tinha ido embora chegou até à esquina,
voltou a olhar para a loira e imediatamente virou à esquina. Nesse momento a loira
dirigiu-se ao local onde o senhor foi, seguindo o mesmo caminho.
Enquanto isso a morena, que continuava a fumar sentada no mesmo banco, foi
abordada por outro senhor que se sentou ao lado dela. Eles conversaram um pouco e
logo se levantaram juntos, saíram a caminhar na direção oposta à que a loira e o
senhor seguiram.
O fim da observação foi por volta de 18h45.
Igreja de São Domingos
Raquel Carvalheira (com Gustavo Monzeli)
Entrámos na Igreja de São Domingos, no centro de Lisboa, sem um foco de
observação definido. Ao longo da cerca de uma hora que aí estivemos, cinco
personagens foram constantes e mereceram especial atenção. Dois deles trabalham na
igreja, a apressada e aparentemente sisuda senhora das limpezas, que varria e lavava
os diversos altares que compõem a igreja, sobretudo com santos e santas, e um rapaz
entre os 23 e 25 anos, que vende velas num pequeno espaço à entrada da igreja. As
outras três personagens são dois homens e uma mulher de origem africana. É através
deles que construímos esta narrativa; falaremos deles, acompanhando os seus
movimentos, já que eles estiveram sempre presentes nos nossos. Um dos homens e a
mulher aparentavam ter trinta anos; o outro seria um pouco mais velho. Não os
ICS Estudos e Relatórios 2013
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conhecemos, mas damos-lhes nomes para que sejam mais fáceis de identificar. O
homem mais velho será o António, o homem mais novo João e a mulher será a Júlia.
A observação e escrita foram discutidas pelos dois, atentos às movimentações
das pessoas neste espaço circunscrito, e por isso, este é de alguma forma um texto a
duas vozes.
Se as personagens que referimos foram recorrentes ao longo do tempo da
nossa observação, elas circularam entre outras, anónimas. Uma igreja no centro de
Lisboa atrai turistas, sobretudo famílias e casais de várias idades, que andam
descontraidamente pelos corredores laterais do templo, observando as imagens dos
santos, os locais das velas, olhando sempre para o altar central e para cima, talvez na
expectativa de ver um teto tecnicamente trabalhado. Os crentes, por outro lado, são
maioritariamente pessoas idosas, homens e mulheres, e concentram-se na parte
dianteira ou traseira das longas filas de cadeiras que compõem a nave central.
Expressam a sua religiosidade através da oração em genuflexão, da recitação do terço
ou ainda do sinal da cruz, e comentámos o ar de sofrimento dos seus rostos e a
preocupação expressa nas suas corporalidades. O silêncio contrasta com o exterior é
acompanhado de uma suave música sacra.
Alguns lugares afiguram-se particularmente importantes na expressão da
devoção. Entre as imagens, a Virgem Maria, que se encontra na parte inferior
esquerda da igreja, perto da porta, merecia um dos mais extensos suportes de velas,
inclusive electrónicas, e a maior concentração de pessoas. Este local parecia ser
passagem obrigatória de oração. Outro local, na nave direita da igreja, perto do altar,
contém uma Pietà, uma imagem da Virgem das Dores com o seu filho descido da cruz,
já morto e no seu colo, e uma tumba de vidro com uma imagem de cristo em tamanho
natural com as chagas bem visíveis. As imagens pareceram-nos mórbidas. Como a
imagem da Virgem Maria, este altar parece atrair particularmente a devoção dos
crentes e tem ao lado um grande suporte para velas. Uma caixa de esmolas encontra-
se perto, com o descritivo “Almas”, remetendo imediatamente para uma espécie de
economia do etéreo.
Uma pequena imagem de Cristo com um manto vermelho mereceu a nossa
particular atenção. Várias pessoas tocam o pé direito desta imagem, ou ainda a base
dourada que o sustenta, e parecem fazer uma prece. Quando nos aproximámos da
ICS Estudos e Relatórios 2013
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imagem vimos que pequenos ex-votos, placas em metal, estão coladas no altar de
madeira que sustenta a imagem. Expressam agradecimento pela graça de Jesus.
Voltemos agora às nossas personagens. No início do nosso roteiro decidimos
falar com o rapaz que vende as velas, para perguntar se existiam missas e a que horas.
Foi este o momento em que observámos pela primeira vez a entrada de António, João
e Júlia na igreja. Falavam com o rapaz das velas algo que não entendemos e a mulher
comprou uma ou outra vela, que colocou no altar da Virgem Maria. Assim que saíram
dali, comprámos uma vela e perguntámos sobre as missas. Sentámo-nos ao pé da
imagem da Virgem Maria, guardada por outras duas pequenas imagens dos
pastorinhos, Francisco e Jacinta Marto, e observámos ex-votos de mármore que
expressam algum tipo de agradecimento, colocados na base do altar. Um deles dizia
“Eterna gratidão” e tinha umas iniciais. Movemo-nos depois para um conjunto de
cadeiras que se encontram entre a nave esquerda e o altar, onde vimos João, o rapaz
mais jovem, e Júlia sentados a rezar. O homem mais velho, António, não está com eles.
É nesse momento que notamos pela primeira vez que uma mulher toca na base da
imagem de Jesus Cristo, o tal coberto por um manto vermelho. E é aí que decidimos
observar de perto essa imagem, até então, uma entre tantas e que percebemos que é
recorrentemente tocada e não apenas orada de distante como as outras imagens.
Um certo roteiro da devoção pareceu-nos claro. A entrada pela igreja, a
passagem e realização de uma oração em frente à imagem da Virgem Maria, o
seguimento pelo corredor lateral, onde se olha para o Santo António, São Francisco de
Assis e Santa Clara de Assis. Depois a transição para a nave esquerda, com a imagem
do Sagrado Coração de Jesus. A genuflexão e a realização do sinal da cruz em frente ao
altar. O caminho leva à nave direita, com a Pietà e a imagem de Jesus com o manto
vermelho. As pessoas seguem depois pelo corredor lateral direito, já prestando pouca
atenção à sucessão de imagens de santos, Santa Justa e Santa Rufina, São Domingos e
Nossa Senhora do Rosário, e saem pela porta que é também de entrada. O rapaz das
velas apressa-se a atravessar uma porta lateral à direita do altar, que deixa aberta, e é
aqui que as nossas personagens, António, João e Júlia voltam a chamar-nos a atenção.
Sentam-se perto de nós e falam com o rapaz das velas. Aí esperam um pouco. O rapaz
das velas entra no altar e parece preparar o espaço para a realização da missa: coloca
o cálice e a taça das hóstias no altar, testa o microfone de um púlpito.
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António, João e Júlia dirigem-se então para umas cadeiras, perto do lugar que
pensámos ser o confessionário e de que tínhamos falado poucos minutos antes.
António desaparece. João e Júlia sentam-se. O padre surge então, envergando uma
longa túnica branca e uma estola roxa, e dirige-se para o confessionário. Aí ouve
primeiro João e depois Júlia. Logo que terminam perdemos de vista as nossas
personagens. À saída, perguntamos ao rapaz das velas, que entretanto voltou para a
entrada, se existe um panfleto com a história da igreja. Aponta para um placard.
Perguntamos se vai haver missa, já que assistimos à preparação do altar. Diz-nos que
às 17.30 há a Reconciliação, ou seja, a recitação do terço.
06. Martim Moniz
Muralhas móveis?
Márcio Sá (com Joana Vasconcelos)
A praça do Martim Moniz, situada a menos de um quilómetro da baixa lisboeta,
antes frequentada sobretudo por alguns moradores da Mouraria — membros de
comunidades imigrantes diversas (africanos, indianos, chineses, entre outros) — e por
elementos de franjas pobres e socialmente estigmatizadas da população portuguesa
(toxicodependentes, alcoólicos, prostitutas), foi urbanisticamente reabilitada há cerca
de mês e meio. O investimento económico e simbólico feito na praça visa, através de
um programa municipal que atribuiu a exploração comercial de parte do loca l a uma
empresa privada, dinamizar um espaço urbano antes estagnado ou irrelevante para a
maioria da população da cidade e dos turistas, transformando, nos planos urbanísticos
e no imaginário sociocultural da cidade, a anterior fraqueza daquela praça (como
gueto étnico e frequentado por pessoas de franjas desfavorecidas da população
portuguesa) numa nova força, de multiculturalidade cosmopolita e fluidez de fruição
turística.
Esta transformação da fraqueza em força, sob os auspícios do município, está
de certo modo visualmente inscrita na própria praça, materializada nas muralhas ali
presentes que dividem o espaço em duas grandes áreas. Uma, a área do “mercado da
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fusão”, dispõe de esplanadas e quiosques onde se vendem bens alimentares e bebidas
de origem “exótica” ou dita alternativa (sushi, comida indiana, chinesa, africana, e
refeições à base de produtos de agricultura biológica) a preços bastante superiores aos
dos cafés ou restaurantes envolventes nas ruas da Mouraria ou na Av. Almirante Reis,
ostentando nomes que vincam a trademark do cosmopolitismo alternativo, como
“Casa da Preta” ou “Família Latina”. Esta área de consumo é pontuada, aqui e ali, por
bancos estreitos não pertencentes a nenhum quiosque onde o não-consumidor “à
paisana” pode ficar e ouvir a volta ao mundo em 80 minutos que o DJ do "mercado da
fusão", do alto do seu púlpito tecnológico, partilha com clientes (maioritariamente
jovens e europeus, tanto portugueses como turistas) e não clientes, num roteiro que
vai de Frank Sinatra a Seu Jorge, passando por rap norte-americano, drum’n’bass,
bossa nova, música contemporânea de capitais africanas e fado em toada pop. A outra
área, do outro lado da muralha, próxima do Hotel Mundial, não apresenta qualquer
proposta comercial e os seus muros, definindo a cintura da praça, podem ser ocupados
sem constrangimentos monetários por qualquer pessoa. Ali, uma profusão labiríntica
de repuxos de água movimenta a paisagem visual de quem se senta e assiste aos
ziguezagues infantis e de turistas acalorados que se refrescam, entre cliques e flashes
de máquinas que agora objectivam, com poses e sorrisos para a posteridade, um
espaço que antes constituía um soluço urbanístico e cultural no percurso turístico. A
transformação da praça implica também uma transmutação de muralhas: da policial
ou social, face a quem a frequentava, para salvaguardar quem ali passasse, para a
videovigilância destinada a proteger quem ali vem, investe e consome, com câmaras
incorporadas nos candeeiros e bem anunciadas em placas.
Textualmente registadas, há também pistas sugestivas de uma tensão histórica
e social de reivindicação de um espaço. Nas muralhas que dividem a praça, encontra -
se uma placa inscrita com a explicação do seu nome: Martim Moniz, fidalgo e capitão
do exército de Afonso Henriques, cuja acção foi decisiva na batalha de Ourique em
1147 para a transformação de Al-Ushbuna em Lisboa e que, "trespassado pelas lanças
mouriscas, morreu por Lisboa cristã". Por outro lado, e no outro extremo da praça, na
parede do metro que dá para a esplanada, lê-se, escrito a spray: “ESTA PRAÇA AOS
IMIGRANTES”.
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Lidas no momento actual, ambas as inscrições deixam um rasto de ironia em
quem as lê e observa a área envolvente. Alguém que morreu por uma Lisboa cristã,
recordado oficialmente num local que se converteu historicamente no epicentro da
concentração de imigrantes de origens diversas e religiões múltiplas, que ali vivem e
permanentemente cruzam a praça entre os dois centros comerciais — o da Mouraria e
o do Martim Moniz —, trazendo e levando produtos para venda e falando em
múltiplos idiomas; por outro lado, o registo, por parte de um indivíduo ou grupo
anónimo, da preocupação suscitada pelos planos do município de uma suspeita
operação de higienização da cidade — a de empurrar quem lá mora para outros
espaços menos visíveis, por ser este demasiado central e potencialmente turístico
para, economicamente, permanecer “praça baldia”, utilizando precisamente a
multiculturalidade, a diversidade e a diferença como instrumento de lavagem do
espaço, percorrido simbolicamente em toda a sua extensão por repuxos que, agora
reactivados, dinamizam fluxos culturais que ali se materializam e propõem.
Mas estas ironias — a de evocar Martim Moniz morrendo por uma Lisboa cristã
e a de reivindicar a pertença aos imigrantes de uma praça que era o centro de um
gueto étnico, socioeconómico e cultural antes estigmatizado e agora
promocionalmente multicultural — coloca também a questão da unicidade e
linearidade de intenção e resultado, e da precariedade de ambos, bem como da
solidez ou esboroamento da distinção entre estratégia e táctica de Michel de Certeau,
relativamente às formas como as pessoas se apropriam dos espaços, distintas das
projectadas e/ou temidas por diferentes quadrantes sociais, económicos e políticos.
Vinga necessariamente o projecto daquele que é tido à partida como mais forte, da
instituição ou do poder com controlo espacial? E qual a homogeneidade do forte e do
fraco? A pertença da praça aos imigrantes, reivindicada porque "ameaçada", implica
atentar em como este novo espaço é também habitado e apropriado pelos moradores
de comunidades imigrantes que ali se encontram — mais no espaço de não consumo,
a beber iogurtes ou cervejas comprados no supermercado, uns sentados apenas,
outros a passear de um lado para o outro, um grupo de mulheres indianas à conversa
em círculo no recato da sombra e da ocultação do arvoredo que filtra as olhadelas
ocasionais para os seus filhos que correm por entre os repuxos de água. Mas eles
ressurgem também como empregados nos quiosques, alguns como donos, outros a
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falar com clientes sobre negócios noutros espaços, alguns a interagir com os turistas
(jovens de origem africana num flirt com duas norte-americanas), outros a vigiar quem
utiliza a casa de banho e a trancá-la depois de o cliente, ou de alguém com ar limpinho
que pediu para lá ir, sair. (Eu passei o teste.)
Há novos ocupantes da praça que são também elementos de comunidades
imigrantes, há continuidade mas também mudança de funções e propósitos de quem
já lá ia, há uma habituação gradual ao novo espaço e uma mútua constituição do
mesmo por aqueles que agora lá vão e os que já lá estavam. Será que a pertença da
praça aos imigrantes, simbolicamente projectada através do multiculturalismo
promovido e transaccionado, mas física e economicamente distinta, com outras
funções ou ocupando outros espaços, constitui uma margem mais agradável hoje do
que o centro da marginalidade que eles antes ocupavam? E mais agradável para
quem? Quem são os mouros e quem são os cristãos, hoje? Quais as novas
coordenadas das muralhas?
Corredores Orientais na Velha Lisboa
Joana Vasconcelos (com Márcio Sá)
Entramos no Centro Comercial da Mouraria e lá percorremos seus corredores.
Eis um lugar no qual se pode ver mais proximidade com outro continente do que com
algumas das ruas da Velha Lisboa que o circundam. Nota-se que estamos em Portugal
por algumas bandeiras, pela ordenação dos correios, em propagandas escritas em
português e mesmo na possibilidade de encontrar e conversar com guineenses.
Além da etnia revelada em seus olhos, cor da pele e postura corporal, pessoas
de vínculos afetivos e históricos com outros distantes lugares do globo ocupam e
transitam por tais corredores, comunicam-se noutros idiomas. Um indiano
apresentou-nos os seus produtos em inglês. No anúncio de “moda italiana”, acima
estava o dizer em mandarim.
Sentadas em cadeiras de praia, comendo amendoins, assistem uma celebração
de casamento indiano, ou então conversam no seu idioma materno ao telefone
enquanto alguns passam vestidos com batas brancas ou de colorido forte. Outros,
vestidos de jeans e malha, lá estão à espera de um novo cliente. Há pessoas de origem
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cigana e africana transitando. Será que levam aquelas roupas com tecidos e cores
diferentes naqueles sacos grandes? Serão elas para revenda?
Noutro canto, conversam ali mesmo com um conterrâneo que pode estar
sentado numa caixa de papelão (repleta de mais mercadorias) ou apoiado num
carrinho de carga, daqueles que se utiliza para o transporte de produtos para revenda.
São pessoas que parecem viver entre dois “mundos”. Ao mesmo tempo, aqui e lá.
Estar à vontade parece ser comum naquele lugar, ele parece ser uma extensão das
suas próprias casas (ou seria dos seus lugares de origem?), mas e quando saírem às
ruas? Como se sentirão?
Há algo mais que também nos parece diferente entre eles, especulamos
depender do lugar que ocupam na hierarquia implícita que deve haver no próprio
centro comercial. Chineses, indianos e africanos lá estão em posições, negócios ou
ocupações que podem diferenciá-los. A postura perante quem circula, o tipo e o lugar
do negócios, ou mesmo quem faz a limpeza e a segurança são elementos
possivelmente distintivos em tal hierarquização.
Oferta-se para a compra um tanto de quase tudo. Esperam vender
produtos dos lugares de onde vêm, há caixas com eles por todo lado. São roupas das
mais diversas, muitas de colorido forte. Para homens, mulheres e crianças. Biquínis
expostos parecem-nos diferentes daqueles que portuguesas “bem nascidas”
utilizariam. Mas há também DVDs, produtos eletroeletrónicos, especiarias, e são
oferecidos serviços de cabeleireiro, barbearia, contabilidade, viagens, alfaiataria etc.
Estes últimos não ocupam propriamente os lugares centrais e parecem ser também
(ou mesmo principalmente) ofertados para eles próprios.
Fica a sensação de que não só o que vendem, mas também aquilo que
vivem, está disposto-e-exposto por aqueles corredores. Foi por entre eles que vimos
crianças indianas a descer conversando em português e outras chinesas a subir, em
mandarim.
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07. Instituições
Hospital Júlio de Matos
Sonia Miceli (com Tiago Marques)
O hospital é constituído por vários pavilhões situados num recinto, que inclui
pequenos jardins e outros edifícios, como o da Informed, ligados ao hospital, mas que
parecem não lhe pertencer directamente. Dirigimo-nos para o café e, após ter pedido
algo para beber, sentamo-nos na esplanada. Começo a observar as pessoas que
acabam de almoçar ou que tomam café com o propósito de distinguir os pacientes dos
que não o são – médicos, auxiliares, visitantes e/ou acompanhantes. Em alguns casos é
relativamente fácil, devido à postura e ao aspecto da pessoa. Em outros, menos. Por
exemplo, numa mesa ao nosso lado, estão sentadas três pessoas: uma mulher de cerca
de 60 anos, outra mais nova e um homem de meia-idade. Ao grupo, junta-se pouco
depois um rapaz de cerca de 20 anos. Não parecem trabalhar aqui. Haverá um doente
entre eles ou serão apenas visitantes? Tento ouvir a conversa, mas não consigo – não
sendo falante nativa, tenho dificuldades em apanhar as conversas dos outros. O Tiago
ajuda-me e compreendemos que a doente era a mulher mais nova, que ia fazer um
tratamento para toxicodependentes. A conversa vertia sobre o tema da felicidade e a
mulher dissera que o objectivo dela era ser feliz. Porém, o homem empenhou-se em
tirar-lhe essa ideia da cabeça, dizendo: “Nunca vais ser feliz”.
Noutra mesa ao lado da nossa, há dois homens de cerca de 60 anos, que são
visivelmente doentes mentais. Um tenta entabular conversa com o outro, mas não dá,
pois este parece não ouvir ou não compreender; é, de facto, muito apático, não se
mexe, não toma qualquer tipo de iniciativa. O outro, pelo contrário, mostra-se activo e
falador. De vez em quando, troca umas palavras com duas mulheres sentadas noutra
mesa – parecem se conhecer, devem trabalhar no hospital, provavelmente como
auxiliares ou enfermeiras, pois pela postura não parecem médicas –, também para
pedir cigarros, o que, como perceberei de seguida, é uma das actividades distintivas
dos pacientes do hospital.
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De repente, chega outro indivíduo, cuja forma de andar, roupa e olhar
denunciam de imediato a sua condição de doente mental. Anda com uma mão de trás
a segurar as calças – está a precisar de um cinto – e nunca a tira. Vem para a esplanada
e, sem qualquer hesitação, vai para uma mesa recentemente desocupada, pega num
copo que continha um resto de sumo de laranja e bebe-o de um trago. Esta acção,
surpreendente para mim, não causa qualquer reacção no outro sujeito – o da mesa do
lado –, que tinha estado a observar em silêncio. O homem vira-se então para aquele
pedindo um cigarro. Como o outro diz que não tem, vai-se embora – sempre
segurando as calças com a mesma mão.
A esplanada começa a ficar vazia: passou da hora do almoço e as pessoas já
devem ter voltado para as suas actividades. Estamos a ponto de ir embora, quando
chega uma senhora com uma miúda de cerca de 8 anos. Suponho que se trate de uma
mãe, que acompanhe a filha a algum tratamento. No entanto, o que vejo a seguir
deixa-me duvidosa: a mulher aproxima-se dos dois indivíduos que continuam sentados
ao meu lado e pede um cigarro. Este gesto é, pelo que pude observar, muitíssimo
frequente entre os pacientes do hospital e o facto de ela ter feito isso assim que
chegou, dirigindo-se aliás só a pessoas claramente doentes (será que os conhecia?)
leva-me a pensar que ela também seja. Entretanto, a miúda mantém-se calada e séria.
Quando as duas abandonam a esplanada, a mulher mostra-se incerta sobre a direcção
a tomar e parece ser a miúda quem conduz...
Deixamos a esplanada e começamos a andar pelo espaço do hospital. Nessas
andanças, encontramos o tipo que segura as calças, na mesma postura, e o outro, a
quem sorrio e que me responde sorrindo e acenando com a mão.
Na entrada do pavilhão "Gestão de doentes" há três pessoas sentadas em
outros tantos bancos. Um deles pede cigarros aos outros, que o ignoram. Pedir
cigarros responde não só ao desejo de fumar, como também à necessidade de os
pacientes se entreterem, pois a procura do cigarro e o fumo ajudam-nos a ocupar o
tempo, em dia longos e provavelmente pouco variados. É também uma forma de se
abordar as pessoas, conhecidas ou não.
Junto ao pavilhão, um homem de meia-idade, sentado num banco, olha
fixamente para uma planta seca e rega-a abundantemente com a água fresca da sua
garrafa. A seguir, bebe e continua a olhar para a planta. Está muito calor.
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Num pequeno jardim, uma rapariga arranja as unhas a uma senhora idosa.
Noutro, um homem está deitado à sombra de um arbusto. Parece estar a dormir, mas,
ao darmos a volta, notamos que tem os olhos abertos e olha para nós. Ter-se-á sentido
observado?
Decidimos ir embora e começamos a procurar a saída: não é fácil alguém se
orientar aqui! Mas quando, por fim, a encontramos, há algo que me chama a atenção:
um grupo de pessoas, sete homens e uma mulher, a andar juntos, relativamente
devagar. Na tentativa de descobrir para onde vão (passear? para um tratamento?),
começo a (per)segui-los. Neste, como nos casos anteriores, interessa-me perceber
como vivem a sua quotidianidade os doentes mentais, o que fazem no tempo livre, a
sua forma de utilizar o espaço do hospital e o tipo de relações que estabelecem (ou
não) entre eles e com as pessoas que trabalham lá. A relativa solidão que observei e a
pouca interacção poderão prender-se não só com as suas condições de saúde, como
também com os constrangimentos impostos pelo ritmo do hospital: num lugar em que
os dormitórios e os refeitórios são comuns e as horas do dia pautadas por tratamentos
e outras coisas que desconheço, mas imagino, a liberdade do indivíduo é limitada aos
tempos livres e, nesse sentido, vagar pelo jardim poderá ser um dos poucos momentos
de libertação – inclusive da companhia constante da população hospitalar.
A maioria dos membros do grupo não fala e fica a alguma distância dos outros.
Dois ou três falam com a mulher que fica no meio, que aparenta a posição de quem
conduz o grupo; deve ser uma auxiliar do hospital, enquanto os outros são claramente
pacientes. De repente, um deles pára para espreitar dentro do contentor da
reciclagem. Algo deve ter captado o seu interesse e chama a mulher para lhe mostrar.
Ela e mais dois ou três também olham e trocam umas palavras. A forma como o
homem se dirigiu à mulher e a reacção desta – amável e condescendente – confirma a
minha suposição inicial: ela parece ser alguém em quem os outros confiam e a quem
se dirigem para obter aprovação ou conselhos. O grupo prossegue o seu passeio, mas
nós não podemos ir atrás deles...
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Atitudes corporais e posicionamentos num espaço em recomposição
Tiago Pires Marques (com Sónia Miceli)
O Largo do Intendente encontra-se dividido em dois espaços sensivelmente da
mesma dimensão por uma palco em construção. Chamarei Zona A ao mais próximo do
Martim Moniz e Zona B à metade oposta. Tem um corredor de circulação na sua
retaguarda, a Rua dos Anjos, e comunica com a Av. Almirante Reis por duas ruas
perpendiculares. Forma por isso um recinto relativamente protegido.
Chegámos ao Largo do Intendente pela Rua dos Anjos, e sentámo-nos na
esplanada de um café no ângulo da Zona B com uma saída para a Av. Almirante Reis.
Foi o nosso primeiro ponto de observação.
Na entrada da Rua dos Anjos, há duas mulheres. Usam saia e calções muito
curtos e camisas justas, estão muito pintadas, mas é sobretudo pela atitude que as
identifico como prostitutas. Movem-se com gestualidade expansiva, requebros de
ancas, fazem sobressair as suas formas corporais, riem-se e olham à volta. Junto delas
há 3 homens, com quem conversam animadamente. Um deles abraça uma das
mulheres pelas costas, em atitude de alguma intimidade erótica mas numa postura
que não é usual ver num casal num espaço público, mas também não exactamente a
de um cliente, ou do chulo. Qual é a sua relação? O que permite esse modo peculiar de
proximidade física?
A apresentação e atitude corporal destas mulheres contrastam fortemente
com a da mulher-polícia parada junto ao café onde estamos. A farda, o boné e os
óculos escuros apagam as suas formas, impedem que seja reconhecida e que se saiba
para onde está olhar. Apoia as mãos no cinto, por vezes acaricia o coldre. A sua atitude
sugere-me masculinidade. Mas tal como as prostitutas, o seu modo de presença é a
espera e uma aparente inactividade. As prostitutas marcam o lugar como marginal,
mas a presença da polícia, numa atitude que poderia dizer simétrica da das prostitutas,
assinala a ordem e o Estado. Há uma indiferença mútua entre ambos. Uma estranha
convivência entre marginalidade e autoridade.
Da mesa observamos alguma movimentação na Rua dos Anjos. Há uma porta
aberta, por onde havíamos passado sem perceber de que tipo de lugar se tratava (um
café? Uma garagem? Público ou privado? Mais tarde veremos que é um bar). Em
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frente da porta há mesas de plástico onde se senta um grupo de homens, jovens e de
meia-idade. Não consomem nem mantêm conversa. Também eles me sugerem atitude
de espera e aparente inactividade.
Chegam dois polícias, homens, que também manifestam indiferença em
relação ao que se passa à entrada da Rua dos Anjos. Observam e conversam sobre
uma mota.
O café onde estamos liga-se ao processo de reabilitação simbólica do espaço
(um certo tipo de emburguesamento que se joga na apropriação de espaços populares
ou marginais). A oferta, a decoração, a apresentação e modo de falar das mulheres
que fazem o serviço assim o sugerem, tal como a clientela: não é claramente um café
de bairro nem se inscreve na lógica que atribuo aos bares e cafés que vimos ao passar
na Rua dos Anjos.
Na zona A, o nosso ponto de observação é um banco no meio do Largo. Aí
observo 4 mulheres sentadas no chão, à porta de edifícios não utilizados. Uma delas
está rodeada de sacos de plástico e totalmente coberta com roupas velhas. Identifico
esta mulher como sem-abrigo e, num primeiro momento, também as outras três me
parecem sem-abrigo, já que estão sentadas de forma idêntica. Duas são de pele
escura, a outra é branca. Pouco depois, dou-me conta de que são também prostitutas,
excepto talvez a mulher rodeada de sacos de plástico. Contrariamente às mulheres da
Zona B, estas estão alheadas umas das outras e as duas mulheres de pele mais escura
aparentam mal-estar. Mais tarde, uma delas, talvez sentindo-se observada, levanta-se
e sai do nosso campo de visão, indo colocar-se na Rua dos Anjos.
Vários homens vindos do lado da Avenida passam muito junto destas quatro
mulheres e observam-nas rapidamente sem pararem. Estes homens fazem razias.
Sentados num banco a alguma distância do nosso, um grupo de 9 homens de
origem africana conversam animadamente, indiferentes às mulheres, como se as
vissem todos os dias. A sua atenção é mais cativada por duas crianças que ali brincam.
Nesta zona do Largo, vêem-se barracas fechadas para venda de bebidas à noite,
nas alturas de actividade no palco. Há alguns gradeamentos. Também deste lado do
Largo, os lugares, objectos e atitudes sugerem uma situação de espera. O Largo não
vive só à noite, há ainda alguns lugares de comércio de bairro, mas orienta-se para a
vida nocturna e para receber quem vem de fora em busca de algo que ali, e só ali, se
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oferece. Mostra-o também a situação de abandono em que estão alguns elementos
decorativos da praça (uma fonte), contrastando com o investimento nas actividades de
diversão.
Deslocamo-nos para a saída da zona A pela Rua dos Anjos, mas aí a degradação
urbana (estrada não alcatroada, prédios em ruína), a maior densidade de bares
sugerindo actividades de tráfico de droga e alguma violência verbal fazem-nos recuar.
Em suma: trata-se de um espaço investido por várias lógicas, observáveis desde
logo em aspectos urbanísticos, nas escolhas de prioridade de intervenções de
reabilitação e pela presença de um novo tipo de comércio. A valorização urbana e
simbólica convive com zonas de degradação urbana e marginalidade. A Zona B está
mais valorizada que a Zona A.
Os modos de sociabilidade, ou de isolamento, das prostitutas observadas, a
proximidade entre a polícia na Zona B e as prostitutas, a aparente intimidade amigável
entre as mulheres e o grupo masculino, e o meu próprio erro interpretativo tomando
as mulheres da zona A como sem-abrigo, sugerem alguma hierarquia entre as
prostitutas – talvez determinada pela sua situação no bairro, maior ou menor
familiaridade com os moradores, situação legal, recursos financeiros, protecção. O
território do Largo surge pois como segmentado e a intervenção em curso criou
possivelmente novas condicionantes territoriais com impacto nas actividades que aí já
se exerciam. A actividade da prostituição adaptou-se a essa segmentação utilizando as
novas coordenadas territoriais para se organizar e manifestar uma lógica que lhe é
interna.
08. Andanças
Transições
Mara Leite (com Susana Boletas)
São duas da tarde num dia ensolarado de Julho em Lisboa. Caminhamos até a
entrada do metro de Entrecampos e a luz que ofusca os olhos dá lugar a outra luz. O
espaço do metro revela uma outra cidade, ainda que as suas personagens sejam as
mesmas que andam na superfície. Será? Aqui andamos sorrateiras e a esta altura são
ICS Estudos e Relatórios 2013
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poucos a estar neste espaço amplo, mesmo sendo uma grande estação que interliga
também comboios. Para mim isso é uma surpresa absoluta, por estarmos na capital de
um país.
O subterrâneo parece não conectar as pessoas que, solitárias, seguem em seus
mundos: lendo, ouvindo música, com seus celulares ou simplesmente absortas em
suas viagens internas.
O metro para a estação do Marquês de Pombal aproxima-se e aqueles que
estavam sentados levantam-se apressadamente. A condutora tem o olhar fixo à sua
frente e pergunto-me como será este trabalho que conecta e transporta sem que o
condutor faça contato com os viajantes da sua própria carruagem. As portas
automáticas abrem-se... poucos saem e outros poucos entram ordenadamente. Uma
bênção de tranquilidade num dia laboral de um verão quente.
O metro, dentro ou fora das carruagens, é atravessado pelo consumo com suas
máquinas de comida e bebida ou anúncios de promoções irresistíveis em cores e
letreiros chamativos.
Pouco se ouve das palavras, à exceção de duas mulheres que conversam
animadamente sobre suas vidas.
Experimento o metro como se estivesse numa canoa. Conheço a existência de
ambos mas não os utilizo costumeiramente. Como será que estas pessoas vêem este
espaço de convivência habitual? A Susana diz que o utiliza amiúde e que é prático.
Então não seria uma canoa para ela, penso...
É um transporte seguro, limpo e com horário fixo que permite a população
utilizá-lo para planear bem as suas vidas. Talvez essa gente pense que poderia ser mais
frequente, mais confortável, mais rápido ou mais barato. Quando usamos
diuturnamente algo, a sua utilidade esvai-se com o tempo e buscamos outras
necessidades...
As estações sucedem-se e cada uma abriga uma obra de arte, ou várias. Como
se a linearidade do meio fosse enriquecida por oásis para os sentidos. Todos os
sentidos.
A memória desta cidade é enaltecida com os azulejos a cobrir as suas paredes,
mesmo aqui em baixo. O trânsito modorrento do metro é assaltado por cores e
criatividade em diversas proporções. Aqui a palavra e o sentido da escrita, como marca
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da nossa existência enquanto humanos, apresenta-se. Andar de metro é mais do que
apenas mover-se de um lado a outro sem congestionamentos.
Chegamos ao Marquês de Pombal, outra estação que serve de transbordo, um
pouco mais movimentada que a anterior mas ainda sossegada para um dia laboral.
Entre as linhas do vai e vem uma estátua do Marquês de Pombal espreita as transições
das nossas individualidades: ouvindo música com fones de ouvido, lendo um livro,
conversando animadamente em grupo ou olhando para dentro; de bermudas, shorts,
sandálias, com chapéus ou paletós. Pessoas de todos os lugares, cores, sexo e idades...
Na estrutura, fora o Pombal, esta estação é comum.
A carruagem chega e a dança de levantar-se, aproximar-se e ordenadamente
acomodar-se repete-se em silêncio. Agora vamos sentadas de frente para a marcha,
ouvindo poucas conversas aqui e ali.
Perto da porta, uma senhora veste uma camiseta rosa com o desenho de uma
caveira em renda preta: um paradoxo bem-vindo de virilidade e delicadeza.
À saída para o Chiado atravessamos um túnel de azulejos brancos que seriam
monótonos se não fosse a iluminação azul em certos pontos. Iluminam, como tochas
modernas, este enorme buraco que liga vários mundos. Nas máquinas azuis há gente
comprando os seus bilhetes, com as suas maletas, para uma outra viagem. O ponto de
venda de bilhetes está fechado e seus funcionários conversam e observam o
movimento dos torniquetes. Ir e vir, ali, não depende deles.
Para sair deste profundo mundo subterrâneo, três lances de escadas rolantes.
Felizmente!
No teto, próximo à saída, desenhos de pessoas com asas.
Aqui, voamos para um outro mundo: o Largo do Chiado.
São quase três da tarde.
O gosto da cerveja: o sentido do consumo
Mara Leite (com Susana Boletas)
Susana queria estar na esplanada do Chiado e ainda que cá estivesse quatro vezes, não
lembrava deste lugar. Pensava que não cabia uma esplanada por ali pois esplanada
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para mim significava terreno largo, amplo e extenso ladeado por avenidas
monumentais. Ao sairmos do Metro entendi a esplanada portuguesa...
Sentamos na esplanada d'A Brasileira, debaixo de um imenso sombreiro branco. Eram
15 horas e estávamos a poucos passos do Pessoa e do Chiado.
Susana roía as unhas vermelhas da mão direita enquanto esperava a sua cerveja em
lata pois infelizmente não havia de grifo. O vento que soprava mansamente na
esplanada remexia teimoso seus cabelos enquanto seus clássicos óculos de sol
refletiam a sua impaciência ao revirar a caneta pousada a sua frente.
A esplanada estava rodeada de pessoas de toda sorte de lugares: sentadas em grupos,
passeando pela rua num sobe e desce entre os bares, lojas, Metro e fotos na
companhia do Pessoa- sossegadamente sentado de perfil para nossa mesa.
Esta gente comporta boa parcela de turistas pois ouvimos entre o eléctrico 28, os
carros e as obras próximas, uma babel tão próxima quanto incompreensível se não se
apura bem o ouvido: um dos sentidos que afloram. Outra gente que passa nesse vai e
vem, segue rápido para suas paragens, alheia ao movimento das lojas, bares ou do
Pessoa, certamente por serem residentes na sua rotina diária.
Ali, absorta, constata o ostracismo daquele poeta português do século XVI que
inscreve aquele sítio mas perde em popularidade para o assedio sempre fervoroso e
frequente em direção ao outro poeta contemporâneo.
O encarregado de mesa de nome Augusto chega com as cervejas e a conta. Duas
cervejas custam seis euros e ela diz: É caro!
O ambiente transpira descontração e ares de férias com vendedores de rua a explorar
sua lábia a este público tão disperso e fugidio.
O movimento constante dos pedestres revela a face do consumo nesta zona de luxo de
Lisboa. Há o consumo visual de pessoas que passam a fotografar e olhar vitrines mas
nem todos sucumbem a entrar e sair cheios de sacolas. Alguns sequer entram ainda
que apreciem longamente o apelo colorido das vitrines. Penso no papel da vitrine que
contribui para o Chiado tornar-se um produto de consumo.
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Na mesa ao lado um senhor segue concentrado no seu tablet, copo com dois dedos de
água e xícara vazia manchada de café.
É curioso sermos servidas fora do bar e em frente a um Banco mas ainda assim
conectadas A Brasileira.
Ao redor todos os sons do transporte público: o elétrico, a saída do Metro, carros
próprios... Trânsito a nossa volta... curioso ter tanto trânsito ao redor daqueles que
sentam...
Com certo pesar ela comenta: Todos vão direto pro Pessoa e esquecem o Chiado que
está logo ali ao lado...
Os próprios turistas fazem o trânsito do capital. Vir, viver, ver o local pessoalmente.
Um bem de consumo para ser consumido...
Nota-se que alguns clientes são regulares pelo tratamento que recebem do Augusto,
ou seja, faz parte da rotina deles.
Na mesa ao lado um homem pede esmolas a um grupo de tios loiros, com cara de
turistas...
Os ritmos de Lisboa se entrecruzam, lento e rápido: os que passam e os que ficam.
Somos interpeladas por um senhor que vende postais para incentivar aos jovens
seguirem seus estudos. Ela dá-lhe umas moedas e descobre que é um postal do ISCTE
e diz: É um postal free mas o serviço, não!
Com a atenção voltada para a vizinhança ela constata que o registro fotográfico serve
para mostrar a amigos e familiares que estiveram naquele local e quem sabe postar no
Facebook para que desconhecidos saibam do mesmo.
Neste espaço o visual tem precedência sobre os outros sentidos. É muito barulhento
mas as pessoas estão cá, com calma. Assim o visual é mais pregnante que o barulho
das pessoas ou o gosto da cerveja. O sentido do consumo.
Ela pensa alto: A lógica da esplanada de estar fora, de ver as outras vistas. De estar a
consumir. E a gente consome também para satisfazer o gosto, a gula!
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Há questões de cosmopolitismo... Mas quem vem de fora não se mistura ainda que
estejam juntos...
É engraçado falar dessas coisas tendo estado aqui tantas vezes... nunca tinha feito essa
reflexão.
Paga-se mais na Esplanada que dentro da casa.
Quer entrar? Não!
Aqui é o lugar de Lisboa desde tempos!
Um senhor com a T-shirt de Cristiano Ronaldo me faz pensar em Portugal como um
produto do mundo.
Uma camioneta FedEx parada no largo... mais um trânsito: de cartas, encomendas...
Uma dupla de turistas com Segways pára a ouvir a guia explicar o que significa este
sítio. Susana traduz a conversa do inglês que trata do Pessoa e sua importância como
poeta, d'A Brasileira como ponto de encontro de artistas e intelectuais mas a guia nem
cita o poeta Chiado...
Mais barulho vindo de obras próximas... mas ainda assim as esplanadas estão cheias...
Um jornalista conhecido entra na Casa Havaneza ao lado d'A Brasileira. Ele não chega a
ser uma celebridade. É filho de um escritor famoso mas já o vi em outros cantos de
Lisboa. É este, com o capacete... comenta discretamente.
…
Uma hora depois, um senhor tira a foto do poeta Chiado. Finalmente!
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09. É isto um bairro?
Susana Durão (com Carla Almeida)
O lugar da Quinta do Cabrinha é um conjunto de dois blocos de prédios
habitacionais, com uma média de 5 pisos, situado junto ao lado norte da barulhenta e
movimentada Avenida de Ceuta. Esta é um canal de entrada e saída de pessoas,
veículos e bens na cidade de Lisboa. Quem olha para o conjunto habitacional do lado
de fora, vê apenas um continuum de prédios num bloco. Do lado de dentro, entramos
num pátio para onde todos os pisos e as suas varandas se viram, o que convida,
quando não pressiona, à convivência mútua.
Quando chegadas a este lugar, por volta das 15h00, julgamos encontrar um
bairro residencial sem gente. Mas somos imediatamente surpreendidas pelo
movimento intenso de transeuntes: idosas com sacos de compras, crianças de
bicicletas, casais de meia-idade e jovens namorados com cortes e cores de cabelo
sugestivos, a fazer lembrar os ídolos do futebol. A super-presença do elemento
futebolístico no bairro é dada pela vestimenta do senhor Gabriel, o simpático
octogenário com quem entabulamos conversa, do lado de fora, antes de penetrar na
área residencial.
Sentado sobre um lenço branco que tapa um sujo degrau da escadaria que dá
acesso ao piso zero dos prédios, o senhor Gabriel assiste à ‘Operação Stop’ da Polícia,
do lado oposto das oito faixas de rodagem. É como se fosse um espectáculo de ‘caça à
multa’, como diz, numa altura do ano em que os PSPs saem à rua para fiscalizar as
condições de circulação automóvel. Bem-posto, Gabriel enverga uma camisa de um
intenso vermelho. Na lapela do blazer preto tem uns três pins do Benfica futebol clube.
E do lado de dentro do espaço habitacional, um dos principais locais de atração, o
clube desportivo do santo António de Lisboa, tem exposto imagens do dito santo e
símbolos do Benfica.
Somos enredadas nas memórias antigas de Gabriel, bigodinho ao estilo galego,
impecavelmente barbeado, ainda a cheirar ao fresco do after-shave. Ouvimo-lo falar
dos seus amores, mulheres e filhos; ouvimos-lhe a vida e a morte do filho. Chora-o e
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rapidamente se recompõe enquanto vai comentando quem passa: ‘Este [um homem
de 50 anos] era um dos meus melhores jogadores quando os treinava na bola, velhos
tempos do futebol amador…; Aquela que ali vai põe os cornos ao marido, tem um
quiosque em Alcântara, não a viu rir-se para mim?; esta que aqui passou é uma vizinha
minha…’ Quando nos despedimos, para o deixar, fica a conversar com uma mulher que
parece querer dar início a uma discussão à qual não assistimos.
Em pouco mais de meia hora de conversa, Gabriel está longe de imaginar que
nos oferece o mote para pensar vários temas associados a esta urbanização, no caso
com 14 anos de idade, nascida em 1998 para alojar a população pobre que vivia nas
designadas ‘barracas’ do então demolido bairro do Casal Ventoso.
1/ Descreve-nos como viver em lugares e bairros é ao mesmo tempo uma
história de vida de casas, famílias e ocupações que se criam e recriam. Os
entrecruzamentos deste homem com a cidade são-nos narrados através de casas e
elos familiares. Gabriel nasceu e cresceu na Bela Flor, em Campolide, onde trabalhou
numa pedreira, desde os 7 anos de idade, para todos os dias poder comer. Quando
casou, ainda jovem, viveu na tal casa nos Olivais Sul. Entretanto, diz que fez um filho a
uma mulher do Casal Ventoso de Baixo. A pedido da ‘casada’ e da filha de ambos,
convenceu a mãe do filho a levá-lo para ser criado na casa dos Olivais Sul, com essa a
quem o miúdo passou a chamar mãe. Entretanto, nunca deixou de manter ligações
físicas e quotidianas com esta parte da cidade que atravessava também por causa do
trabalho, motorista de uma empresa que o levava frequentemente a conhecer as
pessoas e as ligações dali.
Lá atrás, a sua preocupação era garantir uma estratégia de acesso futuro a um
apartamento, quando se começou a falar na demolição do Casal Ventoso. Gabriel
conta que residia parte do dia com a mulher na casa dos Olivais Sul. Ali dormia,
levantando-se de madrugada para chegar à casa do Vale do Casal onde preparava o
café da manhã e lavava a cara numa pia improvisada com água que ia buscar algures
no vale. Talvez isso faça com que hoje o que mais valoriza no seu T1, pelo qual paga
uma renda de 58 euros (retirados da sua pensão de 450 euros) seja o WC. Nunca antes
tivera uma casa de banho. Conseguimos visualizar o apartamento que nos descreve:
arrumado, apetrechado de azulejos à entrada e bem limpo no conjunto, essa casa que
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hoje partilha com uma outra mulher. ‘Já não estou na mulher há muitos anos’, diz da
primeira.
2/ Gabriel mostra os cartões das associações e entre eles está aquela que o fez,
em tempos, aceder aos serviços sociais e de saúde. Trata-se da principal associação do
bairro, a IPSS Alkantara. Mais tarde, em conversa breve com a técnica Selma, do
Gabinete de Inserção Profissional, e com o Dr. Filipe que, por sorte, nos recebe no
Alkantara, que dirige, ficamos a perceber que esta associação foi instalada alguns
meses antes do alojamento. Ou seja, este lugar, o conjunto das urbanizações que se
interconectam, foram criados para ter uma ‘tecnologia social’ que permita aos
habitantes sustentarem-se de algum modo. A intervenção ‘social’ é co-constitutiva do
espaço.
Gabriel diz que frequentava o posto de saúde do Alkantara até ao dia em que
se recusaram tirar duas fotocópias para o bar Águias, o qual dirigia. Sintetiza o conflito
com uma exclamação: ‘Eu disse-lhes, os senhores pensam que isto é vosso; mas isto
não é vosso; não é de ninguém!’ Este apontamento levanta uma questão importante:
Em espaços desta natureza, de quem é o quê, e a que colectivos pertence o pouco que
ali está: aos moradores, à Câmara Municipal, à Gebalis (empresa de gestão), ao
Governo, às Associações; a quem e a quê? Essa parece ser uma tensão permanente,
algo que, afinal, parece também ser co-constitutivo do lugar de realojamento ‘social’.
3/ Gabriel, ali sentado nas escadas públicas, demonstra que essa aparente
fixidez dos dias e dos quotidianos, naquele pedaço de betão, é para alguns mas não
para todos os que ali vivem (674 pessoas, dispostas em 248 fogos, dizem as estatísticas
do lugar). É verdade que tudo no espaço indica que se passa muito tempo no bairro: as
cadeiras dispostas em frente ao bar Clube Desportivo do Santo António de Lisboa, um
sofá na rua, os matraquilhos, a jogatana das cartas às mesas; o improvisado campo de
futebol com jovens e o parque infantil com crianças a brincar; a capela; o posto da
polícia à entrada do lugar; o pobre mas recheado minimercado... Dir-se-ia que a
mobilidade se reserva sobretudo a quem tem uma ocupação ou aos jovens que
conseguem um carro ou uma motorizada. Mas é também verdade que nos interstícios
do que ouvimos e vemos reconhecemos sinais claros de uma intensa circulação de
pessoas, de dinheiro, de parentes e conhecidos, entre os residentes desses blocos
edificados que constituíram em tempos a população do Casal Ventoso – e que hoje se
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distribui pelos bairros da Quinta do Cabrinha, Quinta do Loureiro, Ceuta-Sul, outros
blocos e prédios na Maria Pia, a caminho de Campo de Ourique e do Vale Flor (em
Campolide).
E o que pontua a circulação? O pequeno tráfico de drogas a retalho, os próprios
espaços associativos, que têm aqui uma sede para muitos residentes a viver nesses
diversos eixos de blocos edificados, não necessariamente próximos ou de fácil acesso
público. Ou seja, talvez se possa dizer que existe uma circulação entre os aglomerados
edificados, como se fossem um bairro, o bairro que foram, mas que é hoje numa outra
geografia. Se urbanisticamente não existe o bairro Casal Ventoso, um fluxo de bairro
entre os diferentes aglomerados urbanos parece manter-se, quer para que as pessoas
tenham acesso a serviços sociais, quer porque esta população se mantém numa
relação que é simultaneamente histórica e actualizada nessas circulações.
Ficamos a saber, pelas palavras de Gabriel, que, por exemplo, uma instituição
importante no bairro, uma das formas da circulação, é um tipo de jogo, um sistema de
lotaria alternativo ao da Santa Casa da Misericórdia, mas com o mesmo tipo de
modelo (usando as terminações dessa lotaria). Este loto parece incluir uma larga
população, esta população que alimenta assim uma certa circulação de dinheiro e que,
por sua vez, pode servir tanto para quebrar umas famílias como para assistir a outras.
Talvez isto responda à dúvida que iniciou a nossa conversa com o psicólogo Filipe. Este
indagava: ‘Como sobrevive esta gente daqui?’ Estaria o técnico a tentar provocar a
nossa curiosidade ou é possível que não soubesse mesmo de algo que nós em poucas
horas e com um pouco de imaginação etnográfica vislumbrámos?
Termino com um certo paradoxo destes lugares: estes aglomerados de prédios
e pessoas parecem ser criados a partir da ideia de uma durabilidade urbana que
(re)faça história. Está impresso algum sentido de continuidade temporal, onde se
estima que as ‘tecnologias’ da governação favoreçam o existir social em moldes
diferentes do bairro anterior. Talvez as nossas breves observações de campo nos
permitam afirmar que a ideia de bairro é mantida pelo acesso à residência e a uma
mobilidade e circulação por entre os vários aglomerados edificados de pessoas que
resultam dessa história e penetram nela. Esse ‘social’ parece não interagir de forma
linear com políticas de intervenção, estas baseadas na temporalidade efémera dos
projetos, intervenções segmentadas em ‘grupos alvo’ (sobretudo crianças e idosos, os
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que mais inspiram a pena e motivam os atores do ‘bem’). Vemos vários projetos
anunciados, de portas fechadas, sem recursos financeiros para poder continuar,
dizem-nos; verificamos que os que perduram não sabem o que os da porta ao lado
estão a projetar. Num lugar tão densamente povoado, espanta a mensagem de um dos
cartazes da associação Alkantara, com a imagem de uma idosa: ‘Esteja atento, não
deixe o seu vizinho morrer sozinho’. Pairam no ar indícios de que muito não se pode
dizer e o que se diz pode suscitar mal-entendidos.
Escola de Verão . Workshop de Escrita Etnográfica . Julho 2012