Expansão Portuguesa Na Região Oriental Do Prata-dissertação 1997

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA A EXPANSÃO PORTUGUESA NA REGIÃO ORIENTAL DO PRATA: A AÇÃO DO ESTADO LUSO Álvaro de Souza Gomes Neto Dissertação apresentada no Curso de Pós-Graduação em História no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, para a obtenção do grau de Mestre em História. Área de concentração História das Sociedades Ibero-Americanas. Porto Alegre 1997

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O trabalho trata da ação do Estado Português em direção ao sul do Brasil Colonial, evidenciando conflitos ocorridos e tratados que se firmaram ao longo do tempo até o Tratado de Badajós, assinado em 1801.

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  • PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DO RIO GRANDE DO SUL

    FACULDADE DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA

    A EXPANSO PORTUGUESA NA REGIO ORIENTAL DO PRATA: A AO DO ESTADO

    LUSO

    lvaro de Souza Gomes Neto

    Dissertao apresentada no Curso de Ps-Graduao em Histria no Instituto de Filosofia e Cincias Humanas da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul, para a obteno do grau de Mestre em Histria. rea de concentrao Histria das Sociedades Ibero-Americanas.

    Porto Alegre

    1997

  • SUMRIO

    Introduo......................................................................................4

    Cap.1 Estado Luso: Estrutura e Funcionamento....................8

    Cap.2 Sacramento: confronto e envolvimento.......................19

    Cap.3 Aorianos no processo de ocupao do sul colonial....44

    Concluso.......................................................................................60

    Bibliografia....................................................................................64

  • Introduo

    O estudo que ora se apresenta aborda o processo ocupacional portugus em uma

    determinada parte da regio platina oriental. Responsvel pela expanso e a permanncia do

    elemento portugus em algumas reas ao sul do Brasil-Colonial, nos sculos XVII e XVIII, o

    Estado luso empreendeu uma ao que atuou como fator externo nessa dinmica.

    O tema abordado neste trabalho diz respeito ao do Estado portugus durante o

    processo de ocupao de reas, e a movimentao de alguns dos grupos sociais participantes

    dessa ao. Analisa-se o grau de intensidade do poder estatal luso sobre estes grupos sociais.

    Ressalte-se que dentro do trabalho realizado no foi inteno enfatizar a histria

    da formao do que se denominou posteriormente de Rio Grande do Sul, mas apenas relacion-lo

    como fazendo parte do processo de ocupao de reas e de conflitos entre Espanha e Portugal.

    Neste sentido, as referncias objetivam ressaltar a ao do Estado luso, como conseqncia da

    expanso portuguesa em parte da regio platina oriental.

    O territrio que serve como ponto referencial deste trabalho refere-se parte da

    rea situada no lado oriental do Rio da Prata. Assim, a Colnia do Sacramento e reas adjacentes,

    incluindo as terras que formam o atual estado do Rio Grande do Sul, definem-se como sendo

    parte da regio platina oriental. As referncias feitas a Buenos Aires so apenas na inteno de

    ilustrar ou reforar determinadas situaes surgidas ao longo da anlise. Ressalte-se que no se

    leva em considerao, portanto, a regio platina como totalidade, excluindo-se o lado ocidental

    espanhol e o Chaco platino, por no serem objeto deste estudo.

    Em funo do exposto, pode-se afirmar que os objetivos que balizam esta

    pesquisa so: estudar a ao do Estado luso, agindo como fora externa em relao ao processo

    de ocupao de reas na regio platina oriental e o carter dinmico desta regio em funo de

    alguns grupos sociais participantes que, pelas suas prprias caractersticas, interagiam,

    escapando, muitas vezes, ao controle estatal. Alm disso, buscou-se tambm demonstrar que o

    processo de ocupao e de luta nesta regio, em relao ao Estado luso, foi resultado de foras

    internas e externas, que, combinadas, ocasionaram a permanncia do portugus em determinadas

    reas do sul-colonial.

    Ressalte-se que o estudo dos fatores econmicos imprescindvel nesta

    abordagem, na inteno de melhor entender o processo interativo scio-poltico que se apresenta.

    Dentro deste contexto, admite-se como grupos sociais no apenas os aorianos em

    particular, mas tambm jesutas, luso-brasileiros, espanhis e indgenas, no levando em

    considerao qualquer outra classificao que estes grupos possam adquirir.

    Em Sociologia um grupo social uma reunio definida de indivduos, dotada de

    certa permanncia, cujos membros possuem relaes explcitas entre si.1 Nessa medida,

    qualquer dos grupos anteriormente citados podem ser classificados como sendo grupos sociais.

    Chinoy define grupo social como um certo nmero de pessoas cujas relaes se

    fundam numa srie de papis e status interligados.2 Interagindo de forma relativamente

    padronizada, so determinadas, em grande parte, pelas normas e valores que aceitam. Essas

    pessoas so unidas e mantm-se juntas por um sentido de identidade comum ou mesmo uma

    semelhana de interesses, permitindo distinguir-se entre os que so e os que no so membros.

    Conforme Chinoy, o grupo social identifica-se por trs atributos: interao padronizada, crenas

    e valores partilhados ou semelhantes e uma conscincia de espcie.3 Os grupos sociais tm sido

    1RUNNEY Jay e MAIER, Joseph. Manual de Sociologia. Zahar : Rio de Janeiro, 1963, p. 89. 2CHINOY, Ely. Sociedade. Uma introduo Sociologia. Cultrix : So Paulo, 1973, p. 76. 3Idem, p. 76.

  • classificados de diferentes maneiras.4 Tambm podem ser divididos quanto proximidade fsica,

    objetivos comuns e funes simblicas. Alm disso, podem sofrer uma classificao mais

    elaborada, como: a famlia, grupos por idioma e raa, grupos territoriais, grupos de conflito e

    grupos de acomodao.5

    Os agrupamentos humanos citados nesse trabalho podem ser classificados como

    grupos sociais na medida em que possuem, mesmo diferenciadamente, caractersticas

    mencionadas que os justificam como tais. A inteno, nessa abordagem, a percepo

    diferenciada entre os vrios grupos humanos agindo em um processo de interao, o que

    demonstra o carter dinmico existente na regio estudada.

    Lembrando que em qualquer trabalho histrico o passado decomposto e as suas

    realidades cronolgicas so escolhidas conforme preferncias e excluses conscientes.6 Dessa

    forma, a delimitao cronolgica adotada define-se a partir da Restaurao do Estado portugus

    (1640), estendendo-se ao perodo pombalino (iniciado em 1750 e findo em 1777). Justifica-se

    pelo reaparecimento de um Estado independente, que assume certa caracterstica (carter

    patrimonialista) e a transforma posteriormente a partir do reinado de D. Jos I (carter

    burocrtico).

    Para atingir os objetivos propostos apresentam-se trs captulos. No primeiro deles

    estuda-se o Estado portugus na sua organicidade. Tido como atpico em relao aos outros

    Estados absolutistas da Europa, segundo alguns autores, agiu conforme suas caractersticas

    particularizadas. Se durante o sculo XVII o Estado luso imps uma poltica imperialista

    territorial, mudou seus objetivos a partir da segunda metade do sculo XVIII. Tal transformao

    foi acompanhada de mudanas organizacionais internas, nas quais o patrimonialismo cedeu lugar

    ao Estado burocrtico.

    Estas caractersticas so evidenciadas, nesta linha de anlise, na inteno de

    identificar tipicamente o Estado, a fim de compreender suas aes no Prata. A ao poltica

    empreendida pelo Estado portugus ao longo dos sculos XVII e XVIII na regio platina oriental,

    foi resultante do processo de transformao sofrido por ele durante este perodo. Esta mudana

    fez com que seus objetivos fossem alterados, passando da ao blica s relaes diplomticas.

    No segundo captulo desenvolve-se um estudo sobre o estabelecimento e a

    importncia poltico-econmico-social da Colnia do Sacramento. Fundada por portugueses

    margem esquerda do Rio da Prata, em fins do sculo XVII, tornou-se o radical lusitano na regio

    platina. Cumprindo vrias funes, entre elas, a de garantir a presena lusa, Sacramento foi de

    vital importncia na expanso e ocupao portuguesa no sul-colonial.

    Aglutinadora, mediadora, divergente, a Colnia do Sacramento cumpriu, durante o

    tempo em que foi ponto de discusso entre Espanha e Portugal, diversas funes. Nessa medida,

    tornou-se a legtima representante das aes na parte oriental da regio platina, coadjuvando

    movimentaes de diversos grupos sociais, e servindo como instrumento de reivindicaes

    polticas entre as duas naes ibricas.

    Finalmente, no terceiro captulo, enfatiza-se o papel dos colonos aorianos como

    instrumentos do Estado, na ao deste durante o processo ocupacional. Instrumentalizados a

    partir do poder do Estado, esses imigrantes cumpriram funes especficas que garantiram a

    presena portuguesa em determinadas reas do sul colonial. A preocupao governamental em

    manter a posse de certas reas, direcionou os imigrantes a cumprirem funes polticas

    prioritrias, em detrimento de outras, sociais e econmicas, evidenciando-se o exerccio do poder

    estatal, nesta ao.

    4KOENIG, Samuel. Elementos de Sociologia. Zahar : Rio de Janeiro, 1976, p. 242. 5Op. cit, p. 244. 6BRAUDEL, Fernand. Histria e Cincias Sociais. Presena : Lisboa, 1986, p. 9.

  • O estudo se conclui na medida em que se demonstra, ao longo do trabalho, a ao

    do poder estatal portugus interagindo com os grupos sociais que o representavam, mais

    particularmente os luso-brasileiros de Sacramento e adjacncias, assim como os colonos

    aorianos, durante o processo de ocupao lusa de algumas reas da regio platina oriental.

    A dinamicidade social o tema central desse estudo. A interao entre o processo

    ocupacional do Prata oriental e a formao da prpria regio, torna o territrio um emaranhado

    social onde os diversos grupos humanos interagem, causando uma dinmica especfica regio

    platina. Essa especificidade, a partir dos contatos entre os grupos sociais, com maior ou menor

    participao dos Estados ibricos, mais especialmente o portugus, o que se tenta demonstrar

    nos captulos seguintes.

  • CAPTULO 1

    Estado Luso: estrutura e funcionamento

    Os sculos XVII e XVIII foram marcados por importantes transformaes, no que

    tratou da histria de Portugal. A Restaurao, realizada em 1640, reinstalou a autonomia poltica

    do Estado luso. A partir da, iniciou-se a busca pela consolidao do novo governo, tendo como

    conseqncia lgica, um perodo de instabilidade, gerado pela transio. O reaparecimento de um

    Estado Nacional politicamente independente, em Portugal, inaugurou uma nova fase de

    monarquias absolutas, representadas por reis que, em maior ou menor intensidade, exerceram um

    poder centralizado.

    Ascenderam ao trono, no perodo entre a Restaurao e o Tratado de Santo

    Ildefonso, os seguintes reis: D. Joo IV (1640-1656), Dna. Lusa de Gusmo (1656-1662), D.

    Afonso VI (1662-1667), D. Pedro II (1668-1706), D. Joo V (1706-1750) e D. Jos I (1750-

    1777).7

    Esta abordagem no objetiva uma anlise mais aprofundada do processo de

    formao dos Estados Modernos. inteno, no entanto, expor algumas caractersticas,

    direcionando o estudo para as monarquias portuguesas dos sculos anteriormente citados.

    A transio do feudalismo ao capitalismo um dos temas mais polmicos,

    existentes entre os historiadores. Controverso, possibilitou, e ainda hoje o faz, amplas discusses

    entre especialistas no assunto.8 No ocaso desse processo, define-se o Estado Moderno, tambm

    chamado Estado Nacional, ou Estado Absolutista, como resultado de idias ainda divergentes.

    Dessa forma, encontrar uma definio fechada para o termo absolutismo, no se torna possvel,

    em funo do que foi exposto. No entanto, procurou-se exemplificar com algumas opinies, na

    inteno de se chegar a uma generalidade, resultado do senso comum.

    Alm da questo da definio do que foi o absolutismo na Europa, questiona-se o

    tempo de permanncia em que este vigorou. Esta problemtica incide exatamente sobre o

    conceito de absolutismo, visto alguns autores acharem que este sistema terminou com a

    Revoluo Francesa, e outros, no entanto, no concordarem.

    ...no h tal meio temporal uniforme: pois os tempos dos absolutismos mais

    importantes da Europa - Oriental e Ocidental - foram , precisamente, caracterizados por

    uma enorme diversidade, constitutiva ela mesma de sua natureza respectiva, enquanto

    sistemas estatais. [...]...a histria do absolutismo tem mltiplos e sobrepostos pontos de

    partida e pontos finais dspares e escalonados. A sua unidade subjacente real e

    profunda, mas no a de um continuum linear.9

    O absolutismo na Espanha foi derrubado, pela primeira vez, em fins do sculo

    XVI, mas o absolutismo russo s desapareceu no incio do sculo XX.10

    Os historiadores

    marxistas vem o absolutismo ligado a pontos que garantiram, em outros moldes, a permanncia

    do feudalismo. O regime poltico da monarquia absoluta ligava-se a novas formas polticas, que

    garantiam o controle e a explorao feudal. Isto se dava atravs de uma economia mercantil.11

    7WEHLING, Arno e Maria Jos C. de. Formao do Brasil Colonial. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1994, p.153. 8Em relao a isso ver SWEEZY, Paul, DOBB, Maurice, e outros. Do Feudalismo ao Capitalismo. So Paulo : Martins Fontes,

    1977. 9ANDERSON, Perry. Linhagens do Estado Absolutista. So Paulo : Brasiliense, 1985, p. 194. 10Idem, p. 194. 11Lous Althusser. Montesquieu, a Poltica e a Histria. In : ANDERSON, ibidem, p. 19.

  • Esta idia ratificada por Hill, quando diz que a monarquia absoluta foi uma forma de

    monarquia feudal diferente das monarquias dos Estados medievais que a precedera.12

    Para Engels, o poder do Estado, nos sculos XVII e XVIII, serviu como mediador,

    mantendo o equilbrio entre a nobreza e o povo.13

    Na opinio de Perry Anderson, o advento do

    absolutismo apareceu como uma mudana importante, ocorrida na estrutura do Estado

    aristocrtico.14 Nesse sentido, o autor considera que a resultante foi um aparelho real reforado,

    tendo por funo poltica permanente reprimir as massas, dos campos e das cidades.15

    Outros

    historiadores, no marxistas, consideram o absolutismo formado a partir da desestruturao do

    sistema feudal. Nessa medida, percebem uma transferncia do poder feudal para a realeza,

    afastando-se de uma continuidade necessria. Sob esta tica, Serro afirma o absolutismo como

    um sistema poltico dos Estados nascidos com a Idade Moderna, onde se atribua realeza uma

    autoridade plena e de cariz divino.16 Assim , a autoridade do rei passou a controlar toda a

    estrutura poltico-institucional. A centralizao poltica na pessoa do rei torna-se o ponto comum

    entre as diversas correntes historiogrficas.

    No entanto, o conceito de absolutismo revela-se mais complexo, se for entendido

    em toda a sua dimenso poltica e sociolgica. Isto acontece devido complexidade dos fatores

    que o formaram e que acabaram aparecendo na sua prpria estrutura. Esses fatores no surgiram

    com igual qualidade e intensidade, nem no mesmo instante. Seria mais correto falar em

    absolutismos do que em absolutismo, embora idnticas, so diversificadas as estruturas polticas

    absolutistas e at por vezes muito afastadas no tempo.17

    As transformaes econmicas ocorridas a partir dos fins da Idade Mdia, aliadas

    a outros fatores, acabaram por centralizar a renda feudal no rei. Em vista disso, o absolutismo

    apareceu com funes econmicas prprias (no apenas no sistema de tributos), ampliando-se a

    partir da expanso martima e da formao de colnias. Esse sistema poltico aprofundou razes

    na fora dos Estados, retirando os lucros da revoluo econmica, fruto da expanso ultramarina.

    Os Estados autoritrios, portanto, passaram a representar o Antigo Regime, baseados na

    centralizao poltica e no colonialismo.18

    importante ressaltar o fator religioso, atinente ao sistema absolutista nos pases

    catlicos. Na fundamentao do poder do rei encontrava-se a religio, que apareceu como ltima

    base da ao poltica. O cetro que o rei detm deriva em ltima anlise de Deus e a religio ,

    para ele, o que d a essncia atuao rgia.19 Em funo disso, o absolutismo veio imbudo,

    em certos pases, de uma concepo poltica relacionada religio catlica romana. Portugal

    inseriu-se nesse contexto. O binmio poltica-religio, atinente a estes Estados, caracterizou-se

    no sculo XVII, aliado s mudanas econmicas e sociais.

    Em Portugal, o Estado exerceu seu poder sobre a Igreja atravs do padroado.

    Colocado sob a forma de proteo, o catolicismo foi a religio oficial e nica vigente no pas.

    Traduzido como uma forma tpica de compromisso, entre a Igreja e o Estado portugus, o

    padroado foi aceito por Roma como um acordo, e no como uma dominao poltica. Atravs da

    unio dos direitos polticos da monarquia com os ttulos de gro-mestre de ordens religiosas, os

    reis portugueses acumulavam o direito civil e religioso, principalmente nas reas coloniais.20

    Tal

    12Christopher Hill. Cincia e Sociedade In : ANDERSON, ibidem, p. 18. 13ENGELS, Friederich. A Origem da Famlia, da Propriedade Privada e do Estado. Rio de Janeiro : Civilizao Brasileira,

    1979, p. 194. 14Op. cit. , p. 19. 15Idem, p. 20. 16SERRO, Joaquim Verssimo. Histria de Portugal. Lisboa : Verbo, 1980, vol.5, p. 193. 17TORGAL, Lus Reis. Ideologia Poltica e Teoria do Estado na Restaurao. Coimbra : Biblioteca Geral da Universidade,

    1982, p. 155. 18SERRO, op. cit. , p. 193. 19

    Op. cit. , pp. 234-235. 20

    HOORNAERT, Eduardo e outros. Histria da Igreja no Brasil. Petrpolis : Vozes, 1979, p. 163.

  • sistema dava aos reis o direito de cobrana e administrao dos dzimos eclesisticos. A partir do

    sculo XVI a cobrana passou a ser realizada diretamente pela pessoa do rei de Portugal, alm de

    zelar tambm pelo bem-estar espiritual dos habitantes das colnias lusas. Os reis portugueses

    tornaram-se, na prtica, os chefes efetivos da Igreja, cabendo ao Papa, confirmar as atividades

    religiosas praticadas por eles.21

    Em nvel estrutural, foi instituda a Mesa da Conscincia e Ordens, para auxiliar

    na administrao religiosa das colnias. Este rgo funcionava como uma espcie de

    departamento religioso do Estado.

    Constava de um tribunal composto de um presidente e cinco telogos

    deputados juristas. Iniciou suas atividades em 1532. Seus despachos

    informativos ao rei diziam respeito a estabelecimentos piedosos de

    caridade, capelas, hospitais, universidades, resgates de cativos, parquias

    etc. O provimento de todos os cargos eclesisticos e os assuntos

    religiosos necessitavam o parecer jurdico da Mesa.22

    Neste perodo criou-se uma situao de transio, que realmente caracterizou o

    sculo XVII na generalidade, e pareceu salientar-se tambm em Portugal, por razes estruturais e

    conjunturais.23

    Em relao ao absolutismo existente em Portugal, sabe-se que este manteve-se fiel

    concepes mais conservadoras. Se pelo lado econmico, o Estado luso conseguiu evoluir, em

    certa medida, manteve-se esttico e conservador em nvel de estrutura poltica.24

    Assim, marcado

    por certas caractersticas, o Estado Nacional portugus assumiu, a partir de 1640, um tipo prprio

    de definio. O Estado portugus, de 1640 a 1750, tomou a forma de uma monarquia

    centralizada, sem, contudo, os reis exercerem poder de carter ilimitado. Cercados por uma

    estrutura de apoio, esses monarcas criaram diversos rgos consultivos que acabaram por

    influenciar em suas decises. Os reis portugueses tiveram sempre apoio de rgos de poder para

    consulta ou execuo da poltica interna, externa e ultramarina.25 Essa realidade vem

    demonstrar que os reis no exerciam um poder sem limites.

    Essa cumplicidade no uso do poder, entre o rei e seus rgos consultivos,

    descaracterizou, para muitos historiadores, a existncia do absolutismo em Portugal. No entanto,

    importante perceber que, apesar das opinies serem levadas em considerao, a palavra final

    sempre era do rei. Essa questo, portanto, , no mnimo, discutvel. Como no governo de D. Joo

    V, acontecido entre 1706 e 1750, o poder real, em Portugal, foi resultado de uma poltica de

    21

    Op. cit. , p. 163. 22

    Idem, p. 164. 23

    Op. cit. , p. 236. 24

    Informa Falcon sobre o absolutismo em Portugal : Muito mais atuante no campo econmico, [...], esse Estado mercantil, ao

    mesmo tempo, converte os lucros do empreendimento colonial em fontes de sustentao, direta ou no, da aristocracia feudal em

    crise. FALCON, Francisco Jos Calazans. A poca Pombalina. So Paulo : tica, 1982, p. 173. 25

    Conforme Serro: Assim sucedeu com o Conselho de Estado, que no tempo de D. Pedro II, era formado por 10 membros, e

    com os Secretrios de Estado, cujo nmero, at o reinado de D. Joo V, variou entre dois e trs membros. O voto dos

    conselheiros era sempre tomado em conta pelo monarca. Sabe-se tambm que os secretrios de D. Pedro II, votavam em todos os

    negcios que iam despachar.[...]...far-se- meno dos vrios conselhos e juntas que ajudavam o monarca na resoluo de

    problemas financeiros, judiciais, militares e econmicos, um sistema que afastava o exerccio do poder exclusivo por parte de D.

    Pedro II e, mais tarde, do seu filho e sucessor. SERRO, op. cit. , p. 194.

  • fortalecimento contnuo, embora tenha sofrido oscilaes e vicissitudes vrias, acabando por

    avanar decisivamente nos fins do sculo XVIII.26

    A inexistncia de uma base doutrinria oficial no governo joanino certamente

    contribuiu para dificultar a manuteno do poder decisrio, em nvel centralizado. Na medida em

    que foi um governo de carter prtico, ensejou oportunidades para o surgimento de obstculos ao

    exerccio do poder real. Isto no significa que a autoridade real e o poder absoluto no se

    mantivessem, mas enfrentaram, como conseqncia, uma variao na intensidade do mando.

    A reao obstaculizao do poder se fazia sentir, muitas vezes, de modo

    violento. Em alguns casos a autoridade do rei D. Joo V sofreu indisciplina e desrespeito. Prises

    e desterro da corte corresponderam preocupao de punir abusos e violncias. Afirmando o

    carter flutuante do poder real destacam-se tambm os privilgios e as concesses dadas pelo rei,

    principalmente s ordens eclesisticas, no que tange a impostos, sem, no entanto, aboli-los

    totalmente.

    Em relao Teoria Divina dos Reis, de Bodin, ressalte-se que, apesar de embasar

    o poder das monarquias catlicas, era contraditria e limitava, na prtica, o exerccio do poder.27

    Na verdade, a monarquia portuguesa mantinha uma estreita relao com a sociedade, em funo

    da necessidade de defender a independncia ps-1640. Nesse sentido, a divindade dos reis no

    cabia em Portugal, em virtude da aproximao entre o corpo social e o rei.28

    Em relao a essa

    questo alguns autores defendem uma monarquia mais liberal: 29

    ...havia em Portugal uma conscincia terica e prtica juspoltica que

    se inseria numa tradio cultural escolstica, caracteristicamente

    ibrica, onde se salientava a teoria da origem popular do poder

    rgio.[...], esta teoria no chocava propriamente com as tendncias

    centralizadoras do Estado e com um certo realismo e empirismo poltico

    caracterstico do mundo moderno que desabrochava, que tambm em

    Portugal se ia verificando dentro da sua prpria dinmica.30

    Neste sentido, enfatiza-se que absolutismo no significa necessariamente

    despotismo ou arbitrariedade.31 A limitao, porm, no caso do rei D. Joo V, se dava

    justamente pelo fato do monarca ser vigrio de Deus, que, mesmo em um grau mais fraco,

    desempenhava uma funo de promoo do bem comum e realizao da justia. Nessa medida, o

    26

    ALMEIDA, Lus Ferrand de. Pginas Dispersas. Estudos de histria moderna de Portugal. Coimbra : Faculdade de Letras,

    1995, p.183. 27

    DE CICCO, Cludio. Dinmica da Histria. So Paulo : Palas Athena, 1985, p. 83. Esse autor esclarece que a Teoria do

    Direito Divino dos Reis foi obra do pensamento de Jean Bodin. Teoricamente concedia ao rei direito ilimitado de governo.

    Contudo, havia uma diferena entre justia e lei, sendo que uma implica a eqidade enquanto a outra implica o mando. O rei

    detinha o direito de mandar executar as leis da natureza ordenadas por Deus, mas no tinha o direito de cobrar arbitrariamente de

    seus sditos, ou de tomar posse de suas terras, conforme mandasse sua vontade. 28

    SERRO, op. cit. , p. 236. 29

    Diz esse autor que tal concepo de monarquia radicava-se na Idade Mdia uma repblica christiana, organizada na base

    da famlia e da propriedade; uma monarquia em que o rei, atravs de um pacto feito com o povo, reconhece e respeita as

    liberdades, dos municpios, das corporaes, das famlias; uma monarquia em que o poder rgio, apesar de autoritrio,

    limitado pelas liberdades existentes, no se afirmando no absoluto e no arbitrrio, mas s interfere para estabelecer a ordem e a

    justia; uma monarquia em que apesar de existir uma centralizao poltica h tambm uma descentralizao administrativa. Op. Cit. , p. 30 30

    Idem, p. 189. 31

    ALMEIDA, op. cit. , p. 194.

  • poder do soberano limitava-se pela moral e pelo prprio direito divino, assim como pelo direito

    natural e das gentes. 32

    Em realidade, o que se poder afirmar, pelas contradies aqui expostas, que D.

    Joo V enfrentou, ao longo do seu governo, uma srie de obstculos que no puderam cercear em

    definitivo o exerccio e o fortalecimento do poder real. Por ter sido um sistema de governo

    desorganizado, agindo conforme as circunstncias, as dificuldades foram maiores.

    Contudo, na continuidade desse processo, o aparelho de Estado ir se fortalecer,

    chegando a atingir um rompimento poltico-ideolgico em relao aos governos anteriores,

    quando no reinado de D. Jos I. O que no invalida as tentativas de manter e conservar o poder

    centralizado, acontecidas desde a Restaurao.

    Assim, o Estado portugus enquadrava-se dentro dos parmetros conceituais do

    Estado Absoluto sui generis, por possuir uma estrutura administrativa diferenciada, em que os

    diversos rgos criados pelos monarcas atuavam efetivamente na feitura e execuo das ordens

    da Coroa, mas, onde a divinizao dos monarcas no se sustentava, em funo do carter popular

    destes.

    Uma das caractersticas fundamentais do feudalismo, que ele no criou, no

    sentido moderno, um Estado.33 No sistema feudal, os poderes polticos foram corporificados,

    caracterizando o Estado corporativo. O contrrio aparece no Estado Absolutista. O Estado que se

    formou em Portugal passou a assentar-se em uma caracterstica patrimonialista, onde os

    servidores desse Estado, integrados estruturalmente, eram vinculados ao poder centralizado. Foi

    a partir do incremento do comrcio que o Estado patrimonial tomou corpo. O rei, ao centralizar o

    poder, criou uma estrutura que foi conservada em conjuno com a economia e a administrao.

    O sistema patrimonial, ao contrrio dos direitos, privilgios e

    obrigaes fixamente determinadas do feudalismo, prende os servidores

    numa rede patriarcal, na qual eles representam a extenso da casa do

    soberano.34

    A rede patriarcal pressupe um posicionamento de fidelidade. No entanto, a

    fidelidade referida ao cargo de funcionrio patrimonial no exatamente aquela que faz com que

    esse dito servidor pblico execute suas tarefas objetivamente, mas sim uma fidelidade natureza

    pessoal, vinculado ao seu senhor, em grande parte baseada numa relao de afeto e devoo ao

    seu rei.35

    No patrimonialismo, o funcionrio escolhido de acordo com a confiana pessoal,

    e no pela capacidade deste em exercer determinada funo, 36

    . Nesse sentido, a Coroa passou a

    exercer uma poltica de poder, quando, ao escolher os componentes dos diversos rgos

    governamentais, f-lo pela confiana pessoal. Houve, na verdade, uma influncia sobre a

    distribuio do poder, no interior do Estado. O monarca tornou o escolhido um membro poltico,

    ao esperar por uma resposta adequada ao seu grau de confiana.

    32

    ALMEIDA, op. cit. , p. 194. 33

    FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder. Porto Alegre : Globo, 1979, vol.1, p. 18. Para este autor, o que acontece no

    feudalismo a corporificao de um conjunto de poderes polticos, separados de acordo com o objeto de domnio, sem que as

    diversas funes, privativas, sejam levadas em considerao. 34

    Idem, p. 20. 35

    WEBER, Max. Economia y Sociedad. Mxico : Fondo de Cultura Econmica, 1944, pp. 775-776. 36

    Idem, p. 837.

  • Dentro do Estado patrimonialista o poder se tornou uma realidade tangvel,

    dividido entre o rei e seus representantes. Nessas circunstncias, o campo de poder atingiu no

    apenas a unidade central, mas espalhou-se, delegando, subjetivamente, autoridade. Esta, mesmo

    que no levada a termo, a nvel poltico, foi compartilhada, durante certo tempo. O poder a partir

    de relaes de fora entre as posies sociais, garante aos seus ocupantes um quantum de fora

    social.37

    Assim, mesmo com possibilidade de lutas pelo monoplio do poder, reforou-se,

    em Portugal, a presena do Estado absolutista existente que legitimou o poder centralizado,

    mesmo lanando mo de instrumentos auxiliares. O Estado luso dividiria o poder, at o momento

    em que sofresse ameaa de enfraquecimento, ou perda deste, o que, de fato, no aconteceu.

    Essa afirmao poderia ser contestada, caso se levasse em considerao a

    concentrao de poder ocorrida durante o governo do ministro Pombal, no reinado de D. Jos I.

    Contudo, sem querer aprofundar discusses, ressalte-se que, mesmo aglutinando funes

    poltico-administrativas, em nenhum momento a Coroa foi ameaada de deposio. Nessa

    medida, a ao do Marqus de Pombal visou sempre o mantenimento e o fortalecimento do

    poder centralizado, representado pelo rei D. Jos I.

    Percebe-se, portanto, que, mesmo o rei respeitando e levando em considerao os

    vrios pareceres de seus representantes, estes estavam diretamente vinculados ao seu bem-estar e

    preservao do Estado. Em Portugal, o Estado passou por dois estgios distintos e importantes:

    o patrimonialista e o burocrtico. Embora o segundo tenha conservado traos do primeiro, a

    diferena aparece atravs da ao administrativa e econmica.

    O Estado patrimonialista surgiu a partir do desenvolvimento do comrcio,

    expandindo-se com a expanso martima e a formao de colnias. Dessa forma, a chamada

    monarquia territorial preocupou-se mais especificamente com a expanso, ocupao e

    preservao de reas coloniais, do que com a administrao das mesmas. Explica-se, dessa

    maneira, porque Coroa interessava mais funcionrios leais a ela, que garantissem com sua

    pessoa a preservao territorial.

    Em relao regio platina, a prpria fundao da Colnia do Sacramento

    demonstra essa idia, e tambm na medida em que, nessa ao, foram designados militares para

    proteg-la. claro que o constante estado de guerra em que Sacramento se encontrava, assim o

    exigia, mas, no sculo XVIII, ao preocupar-se com a administrao colonial, o Estado acabou

    cedendo a Colnia aos espanhis.

    Assim, a ao do Estado foi permeada pela tentativa de conquista e ocupao de

    territrios no sul-colonial, desde fins do sculo XVII at a metade do sculo XVIII. A partir da, a

    poltica administrativa apareceu mais fortemente, com o surgimento do Estado burocrtico.

    Portugal expandiu-se economicamente a partir do sculo XVI, originando, nessa ao, um Estado

    monopolista, atuando como elemento reforador do poder. No sculo XVII, ps-Restaurao,

    Portugal comeou a atravessar uma crise econmica e territorial. Em vista disso, verificou-se o

    desejo de um controle da economia e das finanas por parte do Estado, caracterstico do

    absolutismo.38

    Como foi salientado, a Coroa criou uma estrutura organizacional, visando buscar

    apoio, tanto poltico quanto administrativo. A partir de 1640, os monarcas portugueses

    estabeleceram prioridades administrativas. Foram criados o Conselho de Guerra (1640), a Junta

    37

    BOURDIEU, R. O Poder Simblico. Lisboa : Difel, 1989, p. 27. 38

    Op. cit. , p. 247.

  • dos Trs Estados (1643), o Conselho Ultramarino (1643), a Junta do Comrcio (1649), alm de

    ser reformado, em 1642, o Conselho da Fazenda.39

    Foi restabelecido, tambm, o cargo de Secretrio de Estado, alm da presena de

    ministros, para auxiliarem nos despachos. Nessa continuidade, surgiram as Secretarias de Estado

    e das Mercs e Expedientes. Somados a isso, foram aumentados os rgos consultivos, em

    Conselhos, Mesas e Juntas, com a finalidade de apoiarem a administrao do sistema

    ultramarino, cujo rei centralizava o poder.40

    Criado em 1642 e efetivado em 1643, o Conselho Ultramarino ocupava-se da

    administrao e das finanas do imprio colonial portugus. Os interesses comerciais lusos,

    resultantes do comrcio ultramarino, passaram a ser representados atravs do Conselho. A

    existncia de tal rgo demonstra que o Estado luso iria, a partir da, ocupar-se com mais

    seriedade dos negcios do ultramar, mais precisamente a frica e o Brasil.41

    Os membros da presidncia do Conselho eram escolhidos pelo rei, entre a alta

    nobreza. Destacaram-se os condes de Vale de Reis (1674), de Alvor (1693), de So Vicente

    (1708), e de Tarouca (1749). O nmero de conselheiros oscilou entre trs e seis membros.

    Quanto aos conselheiros, alguns tiveram notadas atuaes, tais como Bernardim Freire de

    Andrade (1694), Gonalo Manuel Galvo de Lacerda (1724), Martinho Mendona de Pina e de

    Proena (1738), e o mais conhecido, pela sua atuao na elaborao do Tratado de Madri,

    Alexandre de Gusmo (1743). 42

    Em 1736, o Conselho Ultramarino passou a ser subordinado Secretaria de

    Estado dos Negcios da Marinha e Domnios Ultramarinos. O perodo de maior poder de atuao

    situou-se entre os anos de 1750 e 1770, em virtude da grande documentao despendida,

    conforme informa Hellosa Bellotto.43

    A crescente importncia atribuda ao Conselho, ao longo

    do tempo, atestou a influncia deste na poltica e na administrao do Estado, sobre as colnias

    lusas. As decises e as ordens emitidas, com o aval da Coroa, atuaram na movimentao do

    processo de ocupao. A fundao da Colnia do Sacramento, a sua manuteno, e a vinda de

    colonos aorianos ao sul colonial, foram exemplos marcantes dessa participao.

    A conjuno poltico-administrativa impediu o desenvolvimento de setores que,

    por interesses privados, quisessem desvincular-se do poder central. Assim, conjugando a

    economia e a administrao, a Coroa exerceu um maior controle sobre os segmentos sociais. A

    estrutura patrimonial estabilizou a economia, expandindo o capitalismo comercial, mas, de certa

    maneira, estancou o desenvolvimento do capitalismo industrial. O patrimonialismo no ofereceu

    condies para o desenrolar desse processo. O monoplio, mesmo fomentando intensamente as

    trocas, reduziu a burguesia nascente a simples intermediria, na compra e venda de produtos.44

    O

    monoplio era fruto do mercantilismo. Nesse sentido, a arte de governar, praticada pelo monarca,

    revelou-se mais fortemente quando este racionalizou o poder que o Estado lhe conferiu.

    39

    Na seqncia, Serro informa que o Conselho de Guerra tinha por funo a expedio de ordens para os exrcitos (terra e

    mar), opinando junto ao rei na ocupao de cargos militares e julgando os crimes dessa jurisdio. A Junta dos Trs Estados

    administrava os recursos usados na guerra contra a Espanha, os soldos, o abastecimento das tropas e materiais necessrios

    mesma. Era composta por seis membros, eleitos em Cortes. A Junta do Comrcio garantia a navegao comercial com o Brasil.

    Competia-lhe a nomeao de generais, almirantes e capites das frotas mercantes, alm do provimento dos armazns, cobrana de

    direitos alfandegrios e pagamento dos encargos respectivos. Op. cit. , pp. 332-333. 40

    Idem, p. 125. 41

    Ibidem, p. 88. 42

    Ibidem , p. 277. 43

    Cf. Hellosa Liberalli Bellotto. O Estado portugus no Brasil: sistema administrativo e fiscal. In : SERRO, Joel e

    MARQUES, A.H. Oliveira. Nova Histria da Expanso Portuguesa. O Imprio Luso-Brasileiro 1750-1822. Coordenao de

    Maria Beatriz Nizza da Silva. Lisboa : Estampa, 1986, vol.8, p. 289. 44

    FAORO, op. cit. , p. 201.

  • O mercantilismo tornou-se um instrumento para que o Estado se identificasse

    como tal, e pudesse ser utilizado como ttica de governo. Ao mesmo tempo em que isso

    aconteceu, o processo acabou por ser cerceado, quando a fora do rei tornou-se o principal

    objetivo.45

    Assim, por se ter desenvolvido um grande aparelho de Estado,46

    o cerceamento da

    economia, pelo exerccio do poder centralizado, justificava a posio subordinada da burguesia

    portuguesa, afastada das decises econmicas. 47

    No que tratou da ocupao da rea platina, das constantes lutas entre luso-

    brasileiros e espanhis, a realidade evidenciou-se nas caractersticas do Estado portugus, no

    perodo. Preocupado com o apossamento de territrios, no sculo XVII, principalmente, o Estado

    luso tratou de justificar a ao ocupacional atravs da guerra defensiva. A Colnia do

    Sacramento, s margens do Rio da Prata, era defendida militarmente, em funo da agressividade

    do imperialismo espanhol.

    Ideologicamente, a partir de Sacramento, a preservao do territrio conquistado

    assentou-se no mantenimento de uma rea que, por direito, pertencia ao Estado luso, segundo a

    sua prpria concepo. Os autores portugueses do sculo XVII percebiam a violncia do

    imperialismo espanhol, que no respeitava direitos e agredia Estados cristos europeus. A

    Espanha, para esses autores, tinha um desejo ambicioso de expanso militar e econmica no

    ultramar.48 No rastro, portanto, de um Estado patrimonialista, estruturado organicamente para

    servir a uma monarquia centralizada, seguiu a teoria da defesa das gentes, dos direitos e dos

    pases cristos.

    Ao aproximar-se a segunda metade do sculo XVIII, a composio orgnica do

    Estado luso mudou. Ao reinado de D. Jos I (1750-1777), alinhou-se a crise econmica colonial,

    com o declnio da produo de ouro e o cerceamento da expanso territorial, esboada no

    Tratado de Madri e sancionada em tratados posteriores.

    A poltica de conquista de territrios deu lugar administrao e preservao das

    reas conquistadas, e negociao diplomtica, envolvendo espaos ainda no oficializados. O

    antigo Estado patrimonialista, composto por agentes da confiana do rei, cedeu lugar ao Estado

    burocrtico, tecnicamente mais capacitado, preservando, ao mesmo tempo, o bem-estar da

    monarquia, no sentido poltico-administrativo.

    Todavia, com a invaso espanhola aos atuais territrios do Rio Grande e Santa

    Catarina, compunha-se o Estado luso, paralelamente ao intento administrativo, reao armada.

    Esse enfrentamento militar, sob ordens governamentais, justifica-se na poltica mantenedora de

    reas j ocupadas, e consideradas parte da colnia brasileira. Dessa forma, mesmo parecendo

    descaracterizar-se, dentro da nova poltica estatal que viria adotar, agia o Estado burocrtico

    pombalino, de acordo com esses novos objetivos. Era primordial manter espaos j preenchidos

    por portugueses, em funo do prprio processo administrativo dessas reas coloniais. O governo

    do ministro Pombal (1750-1777), iniciou o sistema burocrtico, quando tecnocratas de nuances

    estrangeiradas procuraram desembaraar a rede de cargos e funes, formada em governos

    anteriores.49

    A monarquia e a burocracia constituram uma verdadeira superestrutura, garantindo

    45

    FOUCAULT, Michel. Microfsica do Poder. Rio de Janeiro : Graal, 1992, p.284. 46

    Segundo Foucault, ...a partir dos sculos XVII e XVIII, houve verdadeiramente um desbloqueio tecnolgico da produtividade

    do poder. Nesse perodo, as monarquias instauraram procedimentos, fazendo circular os efeitos do poder de modo contnuo, em todo o corpo social. Idem, p. 288. 47

    Utiliza-se o termo aparelho de Estado segundo a concepo althusseriana, sem levar-se em conta, conforme o prprio

    Althusser, a comprovao de tal conceito. Conforme este autor, no aparelho de Estado, a coero fsica condio imanente,

    exceto na coero administrativa, que pode tomar formas no fsicas, agindo, neste caso, o poder de Estado sob forma indireta.

    ALTHUSSER, Louis. Aparelhos Ideolgicos de Estado. Rio de Janeiro : Graal, 1983, p. 70. 48

    Op. cit. , p. 339. 49

    Op. cit. , p. 267.

  • ao Estado o controle sob os mais diversos nveis.50

    Dessa maneira, a formao desse extenso

    poder de controle, por parte do Estado, atingiu todas as reas do imprio, alm daquelas que

    poderiam ser anexadas a ele.

    Em relao ao Brasil, o Estado instituiu uma rede burocrtica que acabou por

    constituir-se no instrumento de controle do Despotismo Esclarecido. Sob a administrao de

    Pombal, o Estado passou a controlar seus aparelhos, tanto religiosos como os relativos censura,

    educao, assim como polticos e econmicos.51

    Foi em funo dos novos tempos enfrentados

    pela Metrpole, que mudou o rumo do Estado luso. O pombalismo responsabilizou-se por essas

    mudanas, assumindo, de certa forma, os destinos da nao. O governo de Pombal teve,

    concretamente, o objetivo de salvar economicamente o pas, e desprend-lo da economia inglesa.

    Isto significou a virada do absolutismo, que deixou de condicionar-se na nobreza,

    transformando-se na afirmao de uma burguesia intelectual e mercantil. Alm disso, fez surgir

    um novo clero e uma nova nobreza.

    Este processo de transformao caracteriza concretamente uma mudana poltica e

    ideolgica, iniciada j a partir do incio do sculo XVIII. Apesar do esplendor e do luxo vivido

    pela corte de D. Joo V, assentada num fluxo aurfero crescente, os primeiros indcios

    aconteceram em meados deste sculo, marcado pelo volumoso contrabando e o crescimento do

    aparelho burocrtico. O aumento dos funcionrios estatais, ao longo do sculo XVIII, acabou por

    constituir um grupo independente em relao camada nobre, fazendo crescer a especializao

    funcional, o que fez por favorecer a burguesia que competia com a nobreza pela ocupao dos

    cargos pblicos. Efetivou-se num crescendo a modernidade, anunciando-se sob D. Joo V e

    desencadeando-se, como processo, sob D. Jos I. 52

    No entanto, apesar do Estado se diversificar

    internamente, no deixou de gerar conflitos e divergncias em sua estrutura. 53

    Dessa maneira, estruturou-se o Estado burocrtico alinhando a aristocracia

    senhorial, a nobreza e o clero com os integrantes do aparelho burocrtico, que passaram a dividir

    o poder com aquelas camadas dominantes. A conjuntura poltica do Estado burocrtico, desta

    forma, caracterizou-se pela constituio deste novo bloco de poder, onde interesses econmicos

    e/ou comerciais, aliam-se aos polticos na preservao no apenas da eficcia de um Estado cada

    vez mais tecnicista, mas na administrao e definio de reas perifricas, tanto a nvel de

    colnias constitudas, como de territrios disputados em perodos precedentes.

    O pombalismo representou a primeira grande tentativa - que as

    prprias circunstncias graves haviam criado - de encarar de frente os

    grandes problemas econmico-polticos do pas...A nvel ideolgico, tal

    absolutismo orientou-se sua maneira, pelas vias do despotismo

    50

    Idem, p. 267. 51

    Op. cit. , vol.1, p. 7. 52

    FALCON, op. cit. , p. 152. 53

    Falcon refora e explica em parte esta questo: Na prtica, portanto, o processo de debilitao

    do poder do Estado, com suas inevitveis seqelas, traduzidas sob a forma de inrcia, ineficincia e aumento da

    corrupo no aparelho burocrtico abriu caminho aos descontentamentos e s pretenses daquelas camadas ou

    grupos da burguesia mais diretamente prejudicados, ou mais dispostos a contestar o crescimento relativo da

    aristocracia. Desse modo, o poder do Estado tendia, na prtica, a tornar-se objeto de disputas, incessantes e renhidas,

    entre as diversas fraes de classes a ele mais diretamente ligadas, ou seja, o prprio bloco no poder apresentava

    fissuras que o comprometiam e paralisavam, em termos gerais. Op. cit. , p. 372.

  • esclarecido, afirmando assim, sem subterfgios, a origem divina do

    poder real e a concentrao total da soberania no poder.54

    Assim, atravs da especializao de funes do Estado burocrtico, o governo

    pombalino passou a controlar mais amplamente tudo o que, de uma maneira ou de outra, estava

    ao alcance do poder do Estado. Enfatiza-se aqui uma ruptura concreta com a ideologia vigente

    at ento, que se pode considerar tradicional, enraizada ps-Restaurao. Neste raciocnio, se

    permite pensar que na verdade o Estado burocrtico, consolidado sob Pombal, no pode ser

    colocado sob uma perspectiva continuista, pois renovou-se ideologicamente, caracterizando-se

    mais firmemente como um perodo que se inicia, com nuances prprias, do que ligado ao perodo

    que o precedeu.

    Na medida em que no pombalismo o Estado manteve slidas caractersticas no

    nvel econmico, radicalizou-se em outros nveis.55

    Pensa-se, neste caso, a ao administrativa

    colonial e a poltica externa adotada pelo Estado luso, que traduziu-se em tratados bilaterais e

    jogos diplomticos, no lugar do constante e crescente estado de beligerncia e territorialidade.

    Atenta-se que no plano poltico a ao se revelou com posicionamentos radicais,

    marcando cada vez mais o fortalecimento do Estado em seus aparelhos e em suas bases sociais.

    Isto no seria possvel sem a ruptura com o poder eclesistico e com a ideologia desse poder.56

    O

    choque com o poder jesutico era inevitvel, eliminando a autonomia da Inquisio, e abrindo

    para uma metamorfose das mentalidades inseridas nesses conflitos, alm de possibilitar o

    reformismo que acabou por caracterizar o governo pombalino.57

    Neste sentido, os discursos do Estado pombalino revelaram-se com uma relativa

    diversidade de perspectivas, pois expressaram formas de pensamento e nveis de conscincia

    que se contrapunham ideologia oficialmente defendida pelo aparelho ideolgico dominante - a

    Igreja - e seus aparelhos subsidirios.58 A Igreja passou, dessa forma, a assumir vrias

    atribuies dentro do Estado.59

    Caracterizou-se, na prtica, as disposies do governo que se instaurava, sob a

    coroa de D. Jos I e sob a gide do Marqus de Pombal. Nessa medida, se reorganizou e se

    reforou o aparelho de Estado, visando no apenas definir funes internas, mas recuperar as

    rendas nacionais atravs da eliminao dos canais burocrticos que impediam e/ou diminuiam a

    circulao comercial e a arrecadao fiscal. A preocupao em fazer funcionar a mquina do

    governo em novas bases organizacionais atingia diretamente o mantenimento das reas coloniais.

    E aqui aparece uma questo fundamental, que diz respeito ao do poder do

    Estado luso sobre territrios em disputa e reas coloniais sob seu domnio. Questionou-se nesse

    momento a eficcia desse poder, ameaado de deslocamento, ao menos em potencial, dessas

    reas perifricas. O Estado perdia progressivamente a sua presena nos territrios perifricos,

    54

    Op. cit. , vol 1, p. 7 55

    FALCON, op. cit. , p. 225. 56

    Idem, p. 225. 57

    Ibidem, p. 226. 58

    Ibidem , p. 227. 59

    Cf. Althusser: ...no perodo histrico pr-capitalista [...] evidente que havia um aparelho ideolgico de Estado dominante,

    a Igreja, que reunia no s as funes religiosas, mas tambm as escolares e uma boa parcela das funes de informao e de

    cultura. No foi por acaso que toda a luta ideolgica do sculo XVI ao XVIII, desde o primeiro abalo da Reforma, se concentrou numa luta anti-clerical, anti-religiosa. Foi em funo mesmo da posio dominante do aparelho ideolgico do Estado

    religioso. Ressalte-se que aparelhos ideolgicos de Estado, segundo Althusser, definem-se por funcionarem principalmente atravs da ideologia, e secundariamente atravs da represso (atenuada, dissimulada ou simblica). ALTHUSSER, op. cit. , p.

    78.

  • mais precisamente no ultramar. Isto era reflexo de uma certa incapacidade de ao eficaz do

    aparelho de Estado produzindo resultados altamente negativos, sob vrios aspectos. A ameaa

    dos pases rivais, que aumentavam sua audcia e ambio, como o caso dos espanhis na regio

    oriental platina, preocupava muito o Estado portugus.60

    Alm disso, isolava grupos sociais, instituindo veleidades autonomistas que

    comprometiam a prpria estabilidade das reas perifricas, e do sistema colonial como um todo.

    Isto afetava no apenas a ecomonia estatal, pelo aumento dos contrabandos, reduo dos quintos

    e diminuio de rendimentos, mas atingia diretamente o poder poltico do Estado luso, que

    enfraquecia-se e at mesmo, em certos momentos, desaparecia totalmente.

    Na ao direta da transformao, aparece novamente a violncia e a coero como

    fatores e instrumentos caractersticos do Estado burocrtico, que se impunha. Se fazia presente

    ...a eliminao sistemtica de todas as formas de oposio ao poder do Estado absolutista luso

    [...] alm de corrigir abusos e modernizar a estrutura administrativa, centralizando decises em

    escala crescente.61 A coerso mantida tambm sobre os jesutas. 62 Essa violncia processou-

    se fora dos limites teoricamente aceitos pelo poder de Estado absolutista, envolvendo grupos e

    instituies suspeitos de desafiarem, de alguma forma, o poder do Estado. Refora-se aqui o uso

    desta violncia sobre determinados grupos sociais na regio platina oriental e no sul do Brasil

    colonial, especificamente os colonos aorianos, instrumentalizados como frutos deste poder.

    No plano diplomtico, os tratados de Madri (1750) e Santo Ildefonso (1777),

    foram significativos, por retratarem os novos objetivos do Estado luso, e representarem

    definies que se enquadravam com suas novas necessidades administrativas. Na verdade,

    politicamente o Tratato de Madri iria representar, caso fosse levado a cabo, o incio do trmino

    das lutas armadas e dos conflitos fronteirios hispano-portugueses. Tal atitude coadunava-se

    ideologicamente com o Estado que se concretizava, em bases mais administrativas e

    preservadoras de reas. Contudo, apesar deste Tratado ter sido anulado pelo de El Pardo (1761),

    a poltica de reconciliao com a Espanha no cessou, mas concretizou-se com o Tratado de

    Santo Ildefonso.

    preciso dizer que quando o Marqus de Pombal assumiu o ministrio luso em 3

    de agosto de 1750, o Tratado de Madri j havia sido assinado em 13 de janeiro do mesmo ano; e

    tambm a sada de Pombal do governo acontecida em 4 de maro de 1777 precedeu a assinatura

    de Santo Ildefonso, que foi em outubro deste ano.63

    Isto quer dizer que no se pode atribuir ao

    governo pombalino exclusivamente, a responsabilidade pelas atitudes geradas pela mudana

    ideolgico-poltica ocasionada neste perodo. Na verdade, o Estado constituiu-se numa estrutura

    muito maior que os desmandos de um nico ministro. Destaque-se a importncia de Pombal, mas

    insira-se tal governo como fazendo parte do processo de transformao por que sofreu o Estado

    luso, a partir da segunda metade do sculo XVIII.

    Ressalte-se tambm que a luta armada empreendida pelos portugueses, contra as

    invases espanholas, entre 1762 e 1777, inter-relaciona-se poltica de preservao de reas j

    conquistadas, para oportunizar uma organizao administrativa mais eficaz. O estado de

    beligerncia foi de ocasio, originado pela agressividade castelhana, desprendendo-se da

    ideologia imperialista e territorial anterior. Revela-se assim uma mudana expressiva realizada

    no Estado luso, no plano poltico-administrativo, onde os tratados firmados a partir de 1750

    60Op. cit. , p. 373. 61Ibidem, p. 374. 62Ilustre-se aqui a questo da violncia sobre os jesutas, embora estes no sejam objeto deste estudo. Cita Avellar: fase restritiva ir seguir-se outra, repressiva precedendo punitiva. AVELLAR, Hlio de Alcantara. Histria Administrativa do Brasil. Administrao Pombalina. Braslia : FUNCEP, 1983, p. 27. 63

    RODRIGUES, Jos Honrio e SEITENFUS, Ricardo A. S. Uma Histria Diplomtica do Brasil (1531-1945). Rio de Janeiro :

    Civilizao Brasileira, 1995, p. 96.

  • expressavam estes objetivos, complementando de uma maneira transformadora o processo de

    ocupao de reas meridionais. O que interessou ressaltar, todavia, foi a necessidade de se

    identificar que tipo de Estado atuou no processo de expanso e ocupao portuguesa, na rea

    platina oriental, e no sul do Brasil-colonial.

    Mostrou-se, num primeiro momento, o ressurgir do Estado Nacional portugus,

    ps-Restaurao, assim como sua composio orgnica e seu pensamento poltico-

    administrativo; posteriormente, exps-se as mudanas ocorridas, em funo da crise econmica e

    territorial e de uma nova ideologia poltica. Nas prximas abordagens aparece esse Estado agindo

    de acordo com o perfil aqui apresentado, onde, de certo modo, so justificadas suas aes

    poltico-administrativas, e diplomticas.

  • CAPTULO 2

    Sacramento: confronto e envolvimento

    No inteno recuar ao tempo do Tratado de Tordesilhas, firmado em 1494, mas

    ressaltar que a regio localizada ao sul do Brasil - Colonial era, desde esse perodo, objeto de

    discusso de posse, na medida em que a linha demarcatria no mais definia limites polticos

    respeitveis. Apesar de causar conflitos entre os colonos que vieram para a regio, foi com a

    fundao da Colnia do Santssimo Sacramento que esta questo agravou-se perigosamente.

    Qualquer ao lusitana nessa rea justifica-se teoricamente em funo do significado que passa a

    ter um territrio colonial para um Estado. Passa a ser, quando conquistado ou incorporado na sua

    comunidade poltica, um espao a ser salvaguardado, defendido e usufrudo, estando refletidas

    nessa rea, suas linhas de ao poltica, caracterizando seu domnio e ao mesmo tempo,

    permitindo seu desenvolvimento e prestgio.

    Ressalte-se que o jogo diplomtico empreendido pelos reis espanhis e

    portugueses no foi capaz de dirimir antigas rivalidades, no sendo o Tratado de Tordesilhas o

    instrumento esperado que permitisse estabelecer concordncias mtuas, principalmente em

    relao bacia do Rio da Prata.64

    Desde antes da fundao de Sacramento, o Estado portugus

    preocupava-se com a expanso territorial rumo ao sul. O bandeirantismo, em seu avano

    irregular e no-oficial tomara a iniciativa, mesmo que no intencional, de aumentar o territrio,

    onde a presena portuguesa passou a fazer-se sentir.65

    O esprito bandeirante foi o responsvel

    pelo avano do Brasil para o Oeste. Se num primeiro momento, esta ao foi devastadora, em

    seguida transformou-se em colonizao, pondo em prtica uma dilatao fronteiria irreversvel.

    Esta realidade tornou-se um imperativo econmico, reconhecido pelo Prncipe D. Pedro, atravs

    de atos polticos e administrativos.66

    Um imperativo econmico que iria, forosamente,

    transformar-se em um imperativo poltico. Nessa dilatao seriam atingidos os interesses do

    lado espanhol. Os antecedentes da luta que se travou, a partir da Colnia do Sacramento,

    atestaram a importncia da expanso territorial. O papel do Estado luso neste sentido foi

    decisivo, corroborado por doaes de terras na regio:

    Em 1676, apagado o pesadelo da era dos Filipes, o Regente D. Pedro

    doou ao Visconde de Asseca e a Joo Correa de S, neto e filho,

    respectivamente de Salvador Correa de S e Benevides, dois largos

    64CESAR, Guilhermino. Histria do Rio Grande do Sul. Perodo Colonial. So Paulo : Editora do Brasil, 1970, p. 49.

    65Srgio Buarque de Holanda informa: Em relatrio de 1647 onde advogara a convenincia de se redigirem as capitanias do

    sul numa unidade administrativa independente da autoridade do governador da Bahia, maneira do Estado do Maranho,

    Salvador Correia de S e Benevides tinha proposto a criao de uma nova capitania hereditria, com seu centro em Santa

    Catarina, destinada a ele prprio, que se comprometia a coloniz-la e aument-la sem nus para a Real Fazenda. [...] Embora

    levadas as peties ao Conselho Ultramarino, tiveram consulta favorvel em maro de 1658 e meses mais tarde foram apoiadas

    por uma informao do Provedor e Procurador da Fazenda Real, Salvador Correia de S no tomou posse, e nem seu oponente

    Agostinho Barbalho Bezerra, a quem teria sido concedida a referida Capitania. Conforme HOLANDA, Srgio Buarque de. (direo) Histria Geral da Civilizao Brasileira. - A poca Colonial - Do Descobrimento Expanso Territorial. So Paulo

    : Difel, 1976, vol.1, p. 323. 66

    Op. cit. , p. 49.

  • quinhes de terra nessa faixa at ento abandonada da costa brasileira.

    Ao faz-lo tomou como limite setentrional a Laguna (que era, por sua

    vez, o ponto mais meridional da primitiva Capitania de Santana, doada a

    Pero Lopes de Souza) e mencionando que a propriedade correria da

    para baixo at a boca do Rio da Prata.67

    Havia uma extensa rea de terras sem donatrios estendendo-se da costa do Rio

    Grande do Sul at a boca do Rio da Prata. As terras, cerca de trinta lguas, deveriam ser

    ocupadas por doao do Estado, em continuidade outras terras anteriormente cedidas.68

    O

    interesse em receber doaes de reas localizadas ao sul, por particulares, deveu-se

    principalmente ao comrcio mantido por estes com os centros urbanos espanhis, localizados s

    margens do Rio da Prata. A importncia desse comrcio era to grande, que se fazia necessrio

    um meio de ligao entre os centros urbano-comerciais platinos e os grandes centros de comrcio

    e escoamento de produtos, localizados no Brasil.69

    Dessa forma, a prata extrada das minas

    espanholas, e o lucro advindo do comrcio realizado com estes centros, despertava ambies de

    indivduos que tinham alguma influncia junto ao poder central.

    Buenos Aires encontrava-se numa situao peculiar em relao ao Imprio

    Espanhol. Servindo como porto de escoamento da prata que vinha do Peru pela rota de Crdoba,

    era alvo de grande atividade comercial e criao de gado. Buenos Aires h muito tempo vinha

    mantendo relaes comerciais ilegais, do ponto de vista oficial, com cidades brasileiras como

    So Vicente e Rio de Janeiro. Havia contatos entre Buenos Aires e comerciantes do Rio de

    Janeiro, alm do prprio Salvador Correia de S e Benevides, antigo governador, membro do

    Conselho Ultramarino de 1644 a 1680 e grande proprietrio territorial.70

    Essa questo refora um

    ponto importante, isto , o interesse de particulares em estender o Imprio luso at s margens do

    Prata, baseado em adquirir benefcios prprios ou continuar, e melhorar, atividades que j

    vinham desenvolvendo anteriormente. Na verdade, no se pode negar a influncia desses

    indivduos sobre as decises do Estado, que mesmo no demonstrando oficialmente, por certo

    no as ignorou por completo. Contudo e apesar disso, coube Coroa a iniciativa de pr em

    prtica essa expanso, com a fundao de Sacramento, alguns anos depois. Assim, apesar da

    posse no ter-se efetivado, e tendo as terras voltado ao poder real, atesta-se aqui a preocupao e

    o interesse da Coroa lusa em fazer povoar uma rea que apesar de no estar bem definida, era

    tida como de propriedade portuguesa.

    A expanso territorial at o Rio da Prata era significativa pela importncia que o

    referido rio tinha em relao navegao, ao transporte de mercadorias, ao contrabando e ao

    comrcio que se estabeleceu na regio. O Rio da Prata continuou sendo, a partir desse momento,

    67

    Idem, p. 49. 68

    Conforme Jos Honrio Rodrigues, a Carta Rgia de 17 de julho de 1674, que faz esta doao, encontra-se in Documentos

    Histricos, transcrita por Capistrano de Abreu in Nota 9, p.17, da introduo Histria Topogrfica e Blica da Nova Colnia do Sacramento do Rio da Prata, de Simo Pereira de S. Rio de Janeiro, 1900. Op. cit. , pp. 82-83. 69

    Segundo Srgio B. de Holanda, Salvador Correia de S redige um memorando em 1643, em resposta indagao de Sua

    Majestade sobre o melhor meio de reabrir-se o comrcio entre o Brasil e Buenos Aires, tendo em vista a prata que vinha

    antigamente atravs desse porto. A soluo encontrada foi, sem mais nem menos, a da remessa de uma camada para tomar o

    porto, com o apoio por terra dos paulistas que marchariam com o mesmo destino atravs do Paraguai. Assim facilitava-se o

    intercmbio desejado, assegurava-se grande proveito em carnes para o sustento do Brasil e em couramas finalmente ganharia Portugal alm do esturio do Prata, o caminho seno o prprio tesouro de Potosi. Op. cit. , p. 324. 70

    Op. cit. , pp. 124-125. Vale ressaltar que o rei D. Joo V havia morrido, estando no trono de Portugal D. Lusa de Gusmo,

    como Rainha Regente, at a ascenso de D. Afonso VI. Na questo acima fica claro o intento dos polticos influentes na inteno de estender o territrio portugus at o Prata. Apesar do no atendimento imediato das idias e sugestes advindas desses

    homens, que tinham tambm interesses comerciais bastantes fortes, a presso exercida certamente foi importante nas aes

    posteriores do Estado luso.

  • o ponto de referncia e de interesse dos Estados Ibricos. A mudana de direcionamento, ao se

    tratar da regio platina, fez a Coroa lusa buscar apoio na Igreja Catlica:

    Muitos fatos, nesse perodo, atestam a mudana de orientao da

    Metrpole no que respeita ao recuo do meridiano de Tordesilhas. [...] E

    ao mesmo tempo se pode dizer da bula Romani Pontificis, que erigiu o

    Bispado do Rio de Janeiro, dando-lhe como limites austrais o Rio da

    Prata.71

    A possibilidade do Estado luso ter sofrido forte influncia pela elaborao da bula

    Romani Pontificis, e decidido estender seus domnios at o Rio da Prata confirmada pela quase

    imediata cogitao da realizao desse projeto, logo aps sua assinatura pelo Papa.72

    O apoio

    indireto da Santa S ao Estado luso, permitindo, por ordem do Papa, o prolongamento territorial,

    atestava a importncia da relao entre a Igreja e o Estado. Essa relao acabou por influenciar,

    mesmo que indiretamente, no andamento da ao ocupacional em geral, e at em relao

    instalao de Sacramento, no extremo-sul. Na verdade, o Tratado de Tordesilhas, firmado no fim

    do sculo XV, passou a ter influncia sobre Sacramento, nos fins do sculo XVII. Fronteiras

    renovaram-se a partir da fora e da presena marcada do portugus e do espanhol. Isto aconteceu

    devido impreciso e no mantenimento do referido Tratado, pelas partes interessadas.73

    Essa

    flutuao acabou por atingir a Colnia do Sacramento, obstculo ampliao territorial

    castelhana a partir de 1680:

    Na Amrica do Sul, muito antes de haver uma fronteira entre os

    imprios coloniais, houve apenas um limite, representado pela linha

    imaginria de Tordesilhas. Somente no sculo XVII, de uma maneira

    gradual, a fronteira se delineou, com todos os problemas correlatos de

    oposio e coexistncia que lhe so tpicos. Isto ocorre desde o vale

    amaznico at o esturio do Prata. Foi, entretanto, no sul, que a

    problemtica fronteiria tornou-se complexa...[...], a partir da dcada de

    80, portugueses e espanhis derramaram o sangue de seus exrcitos

    frente aos muros da Colnia do Sacramento.74

    Em relao questo Estado-Igreja, pode-se dizer que, na verdade, houve um

    fortalecimento de ambas as partes, a partir do mtuo apoio. O Estado Absolutista necessitava da

    Santa S para reforar seu poder poltico atravs do controle ideolgico.75

    Naturalmente que o

    interesse antes apenas superficial por parte do Estado luso, e que passou a ser convertido em

    ao, com a fundao de Sacramento, explica-se no apenas pelo que foi afirmado pelo autor

    antes citado, mas tambm em funo de uma conjuntura econmica em crise por que passava a

    71

    Op. cit. , p. 49. 72

    Op. cit. , p. 327. 73

    Op. cit. , p. 48. 74

    Idem, p. 149. 75

    Na verdade o poder do Estado se fortalece em relao Igreja, a partir do ponto de vista poltico. Arno Kern afirma que

    quando mais tarde o Papa tentou recuperar suas prerrogativas, isto foi impossvel. O absolutismo luso-espanhol no cedeu. E chegou mesmo a atingir o auge do Real Patronato na Espanha ou Real Padroado em Portugal, quando da expulso da Companhia

    de Jesus, no sculo XVIII. Op. cit. , p. 83.

  • Metrpole portuguesa. Dessa forma os pedidos do Estado luso que foram atendidos e

    amparados pela Santa S, viriam a completar-se pela ao das armas, com a fundao da praa

    forte da Colnia do Sacramento (1680).76 Ressaltando a importncia da fundao de

    Sacramento, percebe-se que em pleno sculo XVII, eram os portugueses os grandes

    comerciantes desse rio (Prata) e, decerto, os seus melhores prticos.77 A significao da

    expanso territorial portuguesa explica-se de muitas maneiras. A questo fundamental em relao

    ao Prata era a comercial, conforme dito anteriormente, mas no se totalizava nesse enfoque:

    ...as relaes internacionais de Portugal no Brasil visavam acumular poder e torn-lo uma

    nao do HAVE....78

    A poltica do Estado portugus direcionou-se no apenas visando o

    enriquecimento da Metrpole (riqueza imediata atravs do contrabando e do comrcio

    legalizado), mas tambm pela posse de maiores reas coloniais, objetivando o engrandecimento

    desse Estado, assentado na soberania colonialista, atravs do aumento do territrio.

    O interesse do governo luso em relao a tudo o que dissesse respeito ao Brasil

    passou tambm a acentuar-se a partir da Restaurao. Ao recuperar sua independncia poltica,

    livrando-se do domnio espanhol, Portugal necessitava reerguer-se tanto poltica quanto

    economicamente. Depauperado pela poltica beligerante dos Habsburgos na Europa, a nao

    portuguesa estava beira do colapso. Havia fortes sinais da decadncia de Portugal, no campo

    econmico, com perdas sofridas ao longo do tempo e uma situao de fragilidade. Nesse quadro,

    Portugal encontrava-se com a sua marinha destruda e ia perdendo aos poucos seu imprio

    colonial. A Inglaterra e a Espanha se apossaram de grandes reas antes controladas pelos

    portugueses. Em relao aos contratos comerciais com o Oriente, o autor afirma estarem em

    franca diminuio, no sendo mais renovados. Na sia, se conservaram apenas algumas colnias

    sem maior importncia monetria.

    Na realidade, o que restou a Portugal do antigo imprio do ultramar foram o Brasil

    e umas poucas possesses africanas, fornecedoras de escravos.79

    Essa situao trouxe profundas

    modificaes poltica portuguesa, que dependia exclusivamente de um melhor direcionamento

    do governo, junto ao futuro incerto que se vislumbrava. Em vista disso, a imigrao ocorreu em

    grande escala, com a transferncia de contingentes significativos da Metrpole (sem recursos)

    para a sua colnia americana, que abria possibilidades de sobrevivncia e prosperidade. As

    conseqncias para o Brasil foram enormes. Houve um rpido aumento da populao e estendeu-

    se a colonizao. Isto fez com que houvesse tambm um avano territorial e invases de reas

    que pertenciam efetivamente ao Estado espanhol.80

    Cita-se aqui a rea platina oriental, que, se

    no era oficialmente espanhola, to pouco era portuguesa. Nesse sentido, em funo da mudana

    da orientao poltica do Estado, oriunda da crise por que passava a Metrpole, a colonizao

    iniciou-se mais concretamente, atingindo, dessa forma, o sul colonial que se apresentava no

    contexto ocupacional portugus, inserido como rea despovoada.

    importante abordar a questo relativa condio econmica de Portugal, que

    mudou de direo a partir da Restaurao, conforme foi salientado anteriormente. Enquanto

    estavam unidas as duas Coroas, Portugal aproveitava-se amplamente da riqueza gerada pela

    Amrica Espanhola, exercendo atividade comercial por todo o imprio espanhol. Tanto o

    comrcio regular quanto o contrabando beneficiaram amplamente os portugueses nesse perodo,

    76

    Op. cit. , p. 49. 77

    Op. cit. , p. 83. 78

    Idem, p. 28. 79

    PRADO JNIOR, Caio. Histria Econmica do Brasil. So Paulo : Brasiliense, 1962, p. 49. 80

    Idem, p. 50.

  • e, naturalmente, o Estado obteve suas vantagens. Havia portugueses instalados na Espanha, que

    acabaram por controlar o comrcio interno. Ao mesmo tempo, os comerciantes lusos exploravam

    o trfico de escravos negros, bastante lucrativo, alm do comrcio hispano-americano, atravs de

    Buenos Aires, estendendo essas atividades Europa.81

    As rotas de contrabando, formadas a partir

    de Buenos Aires, acrescentaram ainda mais vantagens econmicas a Portugal. Assim, Buenos

    Aires se assemelhava a uma colnia portuguesa, e atravs dela penetravam os lusitanos at a

    fonte da prata: Potosi.82 A importncia do Rio da Prata era tanta que o seu mantenimento, para o

    Estado luso, significava um acrscimo volumoso no numerrio gerado pelas atividades

    comerciais. Havia grandes afinidades econmicas entre as duas regies, Rio da Prata e Brasil,

    com uma importao muito grande e diversificada de produtos. Alm disso, vinham produtos

    manufaturados europeus, somando-se ao escravo, ao acar, ao tabaco e aos produtos

    alimentcios. Portugal levava grandes vantagens nessas trocas, recebendo como produto de troca

    couros e prata.83

    Na verdade, ainda durante o perodo de domnio espanhol, foi tentada a obteno

    do trmino desse comrcio, ficando proibida a exportao da prata para alm da cidade de

    Crdoba, que ficava entre Buenos Aires e a regio das minas do Potos. O contrabando

    intensificou-se, reagindo a esta proibio. Buenos Aires justificava sua ao pela necessidade de

    sobrevivncia, e de continuidade das atividades comerciais. O Estado espanhol manteve o porto

    buenairense preso ao complexo Pacfico-Carabas, ignorando sua capacidade de sada pelo

    Atlntico. As autoridades de Buenos Aires, por sua vez, acabaram por no impedir e at mesmo

    colaborar com este comrcio ilegal. 84

    A Espanha tentou por todos os meios obstaculizar pelo menos o comrcio legal,

    na medida em que emitiu uma grande legislao. Era objetivo do Estado espanhol preservar o

    mximo possvel o comrcio colonial com a metrpole. Em relao a isso, criou as cdulas reais,

    que impediam as atividades comerciais entre os que no fossem cristos e espanhis. Essa atitude

    visava no apenas os comerciantes portugueses, como tambm os ingleses. A partir da surgiram

    vrias modalidades de fiscalizao, restringindo cada vez mais o comrcio na regio.85

    O permanente comrcio, tanto legal como ilegal, com vantagem portuguesa, teve o

    seu perodo de estabilidade. No entanto, a decadncia foi inevitvel, principalmente devido a

    alguns aspectos ressaltados. Um dos obstculos foi a penetrao dos holandeses no Atlntico Sul.

    Conquistando reas como Pernambuco (1630), Elmina (1637) e Luanda (1641), os batavos

    desorganizaram o comrcio afro-americano, atingindo no somente Portugal, mas abalando as

    transaes comerciais entre as colnias portuguesa e espanhola. Tambm a prata comeou a ser

    adquirida com dificuldade. A situao econmica portuguesa tendeu a agravar-se com a

    Restaurao devido aos gastos com a reinstalao do Estado portugus (j tratados no primeiro

    captulo desse trabalho), e tambm pela sensvel diminuio da produo de prata da Amrica.86

    Medidas foram tomadas pelo governo luso para tentar estabilizar o quadro em

    declnio. Essas medidas revelaram-se frgeis, em funo de uma realidade mais complexa. Havia

    problemas com a balana de comrcio do imprio, agravando a situao monetria. Vtima de um

    contnuo dficit, gerava uma crise que atingia os vrios setores da economia metropolitana, e

    diminua os mercados consumidores. Para contrabalanar as perdas, a diferena na balana de

    81

    E. DOliveira Frana. Portugal na poca da Restaurao. In : PINTO, Virglio Noya. O Ouro Brasileiro e o Comrcio Anglo-

    Portugus. So Paulo : Nacional, 1979, p. 6. 82

    Alice P. Canabrava. O Comrcio Portugus no Rio da Prata (1580-1640). In : PINTO, idem, p. 7. 83

    PINTO, ibidem, p. 8. 84

    Ibidem, p. 9. 85

    Op. cit. , p. 351. 86

    Op. cit. , p. 8.

  • comrcio ocasionava a fuga de numerrio para o exterior. O dficit de metal precioso foi a

    constante de toda a segunda metade do sculo XVII.87 A necessidade da preservao de uma

    rea lucrativa para a Coroa lusa era de extrema importncia, principalmente nesse perodo de

    crise aguda. A situao econmica do imprio portugus no sculo XVII colocava de sobreaviso

    a Coroa, posicionando-a para determinadas decises em relao s suas colnias, notadamente o

    Brasil.88

    O quadro apresentava-se deficitrio em todos os setores da economia, com retrao na

    agricultura, a partir da exportao do vinho, concorrente com os fabricados na Frana e Espanha,

    atingindo at o mercado interno. Alm disso, havia uma recesso de preos, apesar de o acar

    ajudar a diminuir o dficit comercial. Tal situao estava levando a um perodo de crise e

    afetando os demais segmentos. A crise comercial associava-se crise de metais preciosos,

    depauperando o imprio portugus.89

    Com a expulso dos holandeses do Brasil em 1654, iniciou-se o perodo de

    declnio da produo aucareira. Impossibilitado de concorrer em igualdade de condies com o

    acar holands produzido na Amrica Central (Ilhas Antilhas), e ainda tendo que enfrentar o

    acar de beterraba produzido na Europa a baixo custo e preo menor, a decadncia tornou-se

    inevitvel, dadas as condies econmicas da Metrpole nesse momento. A regio aucareira, ao

    enfrentar tal queda, afetou o comrcio escravista, indo tal fenmeno atingir tambm a regio

    sulina, que necessitava de produtos comerciais. O comrcio de couros aumentou de importncia,

    fixado nas exportaes pelos portos sulinos, fazendo com que a criao preocupasse cada vez

    mais a Coroa lusa.

    A crescente importncia do Prata como grande centro criatrio. Portugueses e

    espanhis investiram na produo de couros e organizaram-se, visando disputar o mercado

    nascente. Nessa tica, a penetrao lusa no Prata apresentava-se, com a fundao da Colnia do

    Sacramento, como conseqncia da decadncia da economia aucareira. Portugal objetivava um

    mercado que se havia mantido, apesar do movimento antilhano.90

    Assim, Sacramento faria com

    que Portugal se fortalecesse nos negcios do couro, alm de continuar contrabandeando com o

    porto de Buenos Aires, um dos principais das colnias americanas. Era uma etapa em que a

    Espanha perdera praticamente a sua frota e persistia em manter o monoplio do comrcio com

    suas colnias.91

    Dentro da perspectiva do econmico, o Estado portugus no se permitia outra

    alternativa a no a ser a de tentar dirimir a difcil situao financeira por que passava. Em vista

    disso, tornou-se prioritrio o mantenimento de centros de comrcio que, de alguma forma,

    gerassem lucros Coroa. Conforme foi ressaltado, o Prata era, at 1680, um foco comercial onde

    os portugueses, em atividades diversas, auferiam dividendos, tanto a nvel particular, quanto, em

    certa medida, a nvel de Estado. Manter a regularidade, ou pelo menos, tentar no perder essa

    capacidade lucrativa seria ento, nesse particular, o objetivo do Estado luso.

    87

    Idem, p. 8. 88

    Conforme Celso Furtado: Na medida em que cresciam em importncia relativa os setores de subsistncia no norte , no sul e

    no interior nordestino, - reduzindo-se concomitantemente a participao das exportaes no total do produto da colnia -

    tornava-se mais e mais difcil para o governo portugus transferir para a Metrpole o reduzido valor dos impostos que

    arrecadava. Devendo liquidar-se em moeda portuguesa tais impostos, sua transferncia impunha uma crescente escassez de

    numerrio na colnia, cujas dificuldades tambm por esse lado se viam agravadas. Em Portugal eram ainda mais srias as

    vicissitudes. A queda no valor das exportaes de acar, por um lado, criava dificuldades ao errio e, por outro, impunha a

    necessidade de reajustar todo o sistema econmico a um nvel de importaes bem mais baixo. As repetidas desvalorizaes

    cambiais (o valor da libra sobe de mil-ris para trs mil e quinhentos ris entre 1640 e 1700) refletem a extenso do desequilbrio

    provocado na economia lusitana. Op. cit. , pp. 68-69. 89

    Op. cit. , p. 9. 90

    Op. cit. , p. 69 91

    Idem, p. 68.

  • A Colnia do Sacramento passou a significar a permanncia da produo do

    numerrio portugus na regio sulina, alm de garantir outras vantagens, como a expanso

    territorial. Sob o ponto de vista financeiro, em funo da crise metropolitana e, alm do mais, em

    funo de continuar lucrando com as atividades que se oportunizavam no Prata, o Estado luso

    tratava de avalizar a fundao de Sacramento. H, dessa forma, vrios ngulos de anlise, para se

    tentar justificar Sacramento, sendo fortemente embasada a sua fundao sobre a tica econmica.

    O Estado patrimonialista portugus agiu, assim, de acordo com suas caractersticas. O Estado

    patrimonialista estava ligado questo dos privilgios, mas tambm, prximos essa questo,

    aparecia de um lado uma cobertura de necessidade de carter lucrativo-monopolizador, e de

    privilegiado, por outro.92

    A ao empreendedora da Coroa lusa estava, assim, embasada na

    caracterstica do Estado patrimonialista e justificava pensar Sacramento como, no apenas um

    ponto-futuro de fronteira lusa, mas uma garantia de carter lucrativo. Essa ao era refletida no

    apenas pela necessidade gerada pela crise financeira da Coroa, mas obedecendo a critrios mais

    complexos, que caracterizavam o Estado absolutista portugus visto como um todo, a partir da

    sua formao poltica.

    Na prtica, a fundao de uma povoao s margens do Rio da Prata no era tarefa

    fcil. O processo de deciso tomou vrios rumos, at que realmente o fato se concretizou.

    Diversos pedidos de doaes de terras foram enviados ao soberano portugus. Contudo, os

    problemas advindos de povoao e fortificao de uma futura colnia a ser fundada, eram

    muitos. Por isso, a tomada de deciso partiu diretamente do governo luso: Na tentativa de

    estabelecer os limites do Brasil, e de buscar as fronteiras naturais, o prncipe regente, futuro

    Pedro II, ao nomear Manuel Lobo governador do Rio de Janeiro, incumbiu-o de dirigir-se ao

    Prata e fundar uma nova colnia.93 Simo Pereira de S ilustra tal fato, destacando as gentes que

    acompanharam D. Manuel Lobo. Diz ele que acompanhando o Corpo militar havia alguns

    presos, condenados por delitos graves e que haviam tido sua pena comutada para trabalhos

    forados na Colnia.94

    A composio social de Sacramento, dessa forma, era formada, alm do

    contingente recrutado por D. Manuel Lobo, por presidirios e prias da sociedade lusa.

    A Colnia do Santssimo Sacramento foi fundada a 01 de Janeiro de 1680, s

    margens do Rio da Prata, em frente a Buenos Aires. Estava criado um marco avanado da

    presena portuguesa na regio platina oriental e, ao mesmo tempo, nascia o ponto de maior atrito

    entre Portugal e Espanha, na referida regio. O surgimento de Sacramento, tida para os

    portugueses como a sua ltima fronteira, explica-se aqui a partir de dois pontos de vista: a

    expanso territorial e as atividades comerciais, j existentes anteriormente. A fundao de

    Sacramento tomou caractersticas diferentes do processo de expanso lusa, na formao

    territorial brasileira. O poder do Estado sancionou e fortaleceu a ao privada. No sendo este

    poder o responsvel pela ao inicial. No caso da Colnia do Sacramento, a colonizao foi

    antecedida pela iniciativa governamental, que preparou terreno ao privada. Em vista disso,

    questiona-se o interesse da Coroa lusa com a fundao de Sacramento. Antes do aparecimento da

    Colnia, o ponto mais avanado dos portugueses era a vila do Desterro (Florianpolis). O que

    justificaria o estabelecimento de uma colnia distante mais de mil quilmetros deste ponto e

    colocada em frente cidade espanhola de Buenos Aires? Talvez o motivo mais importante, sob

    o ngulo governamental, fosse o desejo de estender o domnio portugus at o Rio da Prata,

    projeto longamente acalentado...95

    92

    WEBER, op. cit. , p. 835. 93

    Op. cit. , p. 19. 94

    S, Simo Pereira de. Histria Topogrfica e Blica da Nova Colnia do Sacramento do Rio da Prata.1737. Porto Alegre :

    Arcano 17, 1993, p. 11. 95

    Op. cit. , p. 124.

  • Percebe-se a peculiaridade da iniciativa do Estado luso em relao fundao de

    Sacramento, mas, principalmente, a importncia da ao do governo em relao iniciativa da

    prpria expanso e colonizao como um todo. O papel desempenhado pelo Estado foi

    fundamental para o fortalecimento da presena portuguesa na regio platina oriental. Se em

    outras reas coloniais a Coroa deixava, de certa maneira, particulares agirem por conta prpria,

    para posteriormente sancionar suas conquistas, no sul esse processo se apresentou de modo

    inverso, com o Estado encabeando a expanso. claro que, muitas vezes, as ordens reais no

    coincidiam com o que estava acontecendo naquele momento, porm, sempre que podia, o Estado

    impunha seu poder poltico para direcionar o processo ocupacional. A integrao comercial entre

    portugueses e espanhis no Rio da Prata, importante para ambos os lados, e j ressaltada

    anteriormente, traz um outro aspecto a ser colocado. Trata-se da influncia mtua entre ambos os

    grupos sociais, a partir desse contato, mesmo que puramente econmico.

    A simples presena freqente de ambos, em transaes que obrigaram tais

    elementos a trocar informaes, idias, e, conseqentemente, trazer a sua viso de mundo,

    permitiu, mesmo que inconscientemente, certa influncia entre eles. Essa troca recproca, mesmo

    que no transformada em aculturao, revelava a dinamicidade entre os grupos sociais atuantes, e

    projetava futuros grupos que j no teriam as mesmas caractersticas individuais de antes dos

    contatos. As herdades seriam hbridas. A inter-relao entre o elemento humano na regio platina

    oriental tambm se constituiu historicamente a partir de uma relao comercial, gerando

    influncias culturais transformadoras, a serem vislumbradas posteriormente em futuros grupos

    sociais. Na verdade, os embries existiam, apesar da lentido do processo de formao. Os

    homens mantm uma inter-relao contnua no espao e no tempo, originando uma determinada

    ao, formadora dessas foras. A cultura se desenvolve atravs desses processos, que so

    constitudos pela acumulao e pela continuidade. Importante ressaltar que os resultados do

    processo interativo humano progridem, atravs do tempo, em um grau cada vez maior. Assim,

    qualquer contato entre indivduos o ponto de partida para novos contatos sociais mais

    complicados.96

    Sacramento afirmou-se como referencial para posteriores acordos de fronteira

    mas, at que as definies chegassem, o que ocorreu no sculo XVIII, sua importncia tambm

    foi afirmada pelo despertar de divergncias entre espanhis e portugueses:

    A questo exata da jurisdio da Espanha ou de Portugal na Amrica

    s viria a reavivar-se com a fundao da problemtica Colnia do

    Sacramento em 1680. At a, vinham-se dilatando, sem maiores

    restries a conquista e a colonizao: do lado luso, pela posse de

    sucessivas pores do litoral, posse conseguida pelos embates contra

    ndios hostis ou estrangeiros usurpadores (o caso dos ingleses, franceses

    e holandeses); ou pela empresa agrcola da cana-de-acar ou, ainda,

    no interior, pela ao dos padres missionrios de diferentes ordens

    religiosas ou pela dos bandeirantes, nas suas atividades de caa ao ndio

    ou prospeo metalfera. Tudo isto a partir do litoral atlntico. Do lado

    espanhol, a penetrao fazia-se desde o Prata, das costas do Oceano

    Pacfico ou do Caribe, e a conquista efetivava-se mediante a procura e a

    96

    Leopoldo Von Wiese. Os processos de Interao Social. In : CARDOSO, Fernando Henrique e IANNI, Octavio. Homem e

    Sociedade. Leituras bsicas de sociologia geral. So Paulo : Nacional, 1976, p. 216.

  • explorao da prata, na sujeio dos imprios altamente civilizados dos

    Incas, Aztecas e Maias ou, ainda, no rastro do pastoreio.97

    Havia um movimento contnuo, tanto de lusitanos quanto de espanhis,

    demonstrando assim que os espaos estavam sendo ocupados. O homem foi-se fixando terra no

    entrechoque de foras, na sobreposio de grupos, na organizao comercial, ou mesmo na

    procura da sobrevivncia. Surgiram, nesses contatos, ncleos urbanos, propriedades agrcolas

    ou ganadeiras, tanto quanto centros de minerao, de pesca ou de artesanato.98 Pouco a pouco,

    o territrio foi sendo preenchido, mesmo que no de imediato na sua totalidade. Esses focos de

    atividades das mais diversas transformaram-se em um processo de entrelaamento, entre os

    indivduos que praticavam tais aes.

    Embora os espaos territoriais no fossem, nesse momento, grandemente tomados,

    lgico pensar que, a par