Expectativa de mudança -...

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  • 36 z abril DE 2016

    Lei da Biodiversidade cria novas regras

    para pesquisadores e empresas,

    mas regulamentao atrasa

    LegisLao y

    Expectativa de mudana

    Um impasse burocrtico criou um obstculo inusitado para cientistas e empresas que fazem pesquisas com material genti-

    co de organismos terrestres e marinhos plantas, animais, algas e microrganismos provenientes da biodiversidade brasileira. H cinco meses eles esto impedidos de enviar amostras para estudos no exterior ou publicar resultados cientficos desses materiais. Ocorre que a nova Lei da Bio-diversidade (n 13.123) entrou em vigor em novembro de 2015, mas sua regula-mentao atrasou. Isso gerou um vazio jurdico, impedindo que rgos como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renovveis (Iba-ma) e o Conselho Nacional de Desenvol-vimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq) apreciem pedidos para envio de amostras de pesquisas em curso, como faziam an-teriormente. Novas autorizaes para iniciar pesquisas tambm esto suspensas.

    Interromperam, do dia para a noite, o nosso trabalho. inadmissvel que no

    se tenha pensado em regras para a transi-o de uma legislao para outra, afirma Lus Fbio Silveira, curador de colees ornitolgicas do Museu de Zoologia da Universidade de So Paulo (USP). Em dezembro, ele recebeu um comunica-do do Ibama negando solicitao para enviar amostras de tecidos de aves a um laboratrio nos Estados Unidos, no qual seria feito o sequenciamento gentico do material. O rgo justificou que est sem amparo legal para emitir licenas.

    O problema aconteceu depois que o governo optou por fazer consultas infor-mais sobre o decreto de regulamentao aps a sano da lei, em maio de 2015. As sugestes recolhidas foram consolidadas num texto apresentado em novembro, s vsperas da data em que a lei entrou em vigor. O decreto, porm, teve pontos contestados pelo Ministrio Pblico e entidades da comunidade cientfica e dos ambientalistas e seu texto foi recolhido. Uma nova proposta foi aberta somente em abril para consulta pblica at o dia

    Bruno de Pierro

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    dgenas, pequenos agricultores e comu-nidades tradicionais, como os quilombo-las, tambm sero afetados pela lei. Isso porque eles podem ser detentores dos chamados conhecimentos tradicionais, isto , de informaes e prticas relacio-nadas ao uso de espcies nativas, como plantas com propriedades medicinais, e sero recompensados pelo seu uso.

    A principal novidade da lei que, pa-ra ter acesso ao material biolgico de espcies, passa a ser necessrio apenas um cadastro eletrnico do pesquisador ou da empresa, que dever ser realizado nas etapas mais avanadas da pesquisa, isto , antes da remessa de material ao exterior, do requerimento de direito de propriedade intelectual, da comerciali-zao do produto ou da divulgao de resultados em meios cientficos ou de comunicao. A legislao anterior, uma medida provisria de 2001, obrigava o pesquisador ou a empresa a fazer soli-citao prvia a rgos como o Ibama e o CNPq e, sem tal autorizao, no era

    possvel iniciar a pesquisa. Ao desbu-rocratizar o acesso biodiversidade, a medida dever agilizar o processo de desenvolvimento de novos produtos, diz Elisa Romano, especialista em poltica e indstria da Confederao Nacional da Indstria (CNI), uma das instituies que representaram o setor empresarial durante a elaborao da lei.

    A medida atende a um pleito antigo da comunidade cientfica e das empresas, que nos ltimos tempos trabalharam sem seguir risca a legislao. Isso acon-teceu devido s dificuldades impostas pela medida provisria de 2001 e pela insegurana jurdica que ela causava, explica Elisa Romano. Em alguns casos, empresas tiveram de pagar multas vul-tosas. Em 2010, por exemplo, a empresa de cosmticos Natura foi autuada em R$ 21 milhes por uso da biodiversidade sem autorizao. O cadastro represen-ta um avano. Ser possvel iniciar uma pesquisa sem a necessidade de aguardar a permisso de algum rgo pblico,

    2 de maio. Esse problema poderia ter sido evitado se o governo tivesse aberto a consulta pblica formal no dia seguinte sano da lei e discutido todas as su-gestes previamente, j que ela tinha 180 dias para entrar em vigor. Dessa forma, no dia seguinte entrada em vigor da nova lei, a regulamentao j estaria pu-blicada, diz Bruno Sabbag, professor de direito ambiental da Pontifcia Univer-sidade Catlica de So Paulo (PUC-SP). No se pensou em manter a legislao anterior, porque havia muitos proble-mas na sua aplicao. Tinha pedido de autorizao de empresas tramitando h anos por conta da burocracia excessiva.

    Quando houver regulamentao, ins-tituies de pesquisa e empresas tero novas regras para realizar estudos com a biodiversidade brasileira. J possvel destacar um conjunto de mudanas que dever afetar o trabalho de pesquisado-res e empresas que dependem do acesso ao patrimnio gentico, como indstrias farmacuticas e de cosmticos. Povos in-Fo

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    avalia Helena Nader, presidente da So-ciedade Brasileira para o Progresso da Cincia (SBPC).

    O texto da regulamentao prev a criao do Sistema Nacional de Gesto do Patrimnio Gentico (SISGen), vin-culado ao Ministrio do Meio Ambien-te (MMA), que ser responsvel, entre outras funes, por gerenciar o cadastro. O objetivo simplificar a pesquisa e fa-cilitar a fiscalizao dos cadastrados,

    o que muda com a nova Lei da

    Biodiversidade

    Cadastro

    Para ter acesso a material biolgico

    de espcies, passa a ser necessrio

    apenas um cadastro eletrnico

    do pesquisador ou da empresa.

    ele ser exigido antes da

    remessa de material ao exterior,

    do requerimento de direito

    de propriedade intelectual, da

    comercializao do produto ou da

    divulgao de resultados em meios

    cientficos ou de comunicao

    Consentimento prvio

    cientistas e empresas sero

    obrigados a pedir

    autorizao a povos

    indgenas e comunidades

    tradicionais quando a

    espcie a ser estudada

    estiver associada a um

    conhecimento cuja origem

    for atribuda a eles

    diz Rafael Marques, diretor do Departa-mento de Patrimnio Gentico do MMA. Outra exigncia que, em certos casos, cientistas e empresas sero obrigados a pedir autorizao diretamente a povos indgenas e comunidades tradicionais envolvidos antes de comear a fazer uma pesquisa com o patrimnio gentico. Isso ser feito apenas quando for pos-svel identificar que uma espcie a ser estudada est associada a um conheci-

    mento cuja origem pode ser atribuda a uma comunidade. A autorizao po-der ser feita por escrito, assinada por um representante da comunidade, ou por meio de recursos audiovisuais, com um depoimento gravado em vdeo do representante dando anuncia. Caber ao Conselho de Gesto do Patrimnio Gentico (CGEN), ligado ao MMA, fis-calizar a autorizao e a distribuio da compensao financeira.

    ComPEnSAo EConmICAA lei traz tambm novas diretrizes refe-rentes repartio de benefcios. Como regra geral, a empresa dever depositar 1% da receita lquida do produto no Fun-do Nacional de Repartio de Benefcios. O dinheiro ser distribudo pela Unio a povos indgenas e comunidades tradicio-nais. Mas, caso a espcie estudada estiver comprovadamente associada a um conhe-cimento tradicional, a empresa ter de negociar uma compensao diretamente com o grupo que detm esse conheci-mento. Alm disso, ter de repassar 0,5% da receita lquida do produto ao fundo. Esto isentos de compensao econmica fornecedores de produtos intermedi-rios, como insumos e matrias-primas, microempresas, microempreendedores individuais e pesquisadores. Elisa Ro-mano, da CNI, explica que a lei permite que a compensao seja feita sem envol-ver dinheiro. A empresa pode fazer um acordo com a comunidade tradicional e transferir a ela alguma tecnologia. So possveis ainda outras formas de coope-rao entre as partes envolvidas, como capacitaes e projetos de conservao da biodiversidade, diz.

    Vanderlan Bolzani, professora do Ins-tituto de Qumica da Universidade Es-tadual Paulista (Unesp), campus de Ara-raquara, e membro da coordenao do Programa Biota-FAPESP, destaca o fato de a lei exigir que apenas empresas, e no os pesquisadores, faam a repartio de benefcios. A pesquisa bsica ser be-neficiada, por exemplo, em estudos da estrutura molecular de plantas. A cincia no acessa a biodiversidade apenas para fins econmicos, explica.

    Outras questes ainda dependem da regulamentao da lei para serem defini-das. A proposta apresentada inicialmen-te pela Casa Civil, feita pelo MMA aps consultas pblicas, preocupa diversas entidades. A SBPC, por exemplo, queixa-

    Compensao

    como regra geral, a empresa dever depositar 1% da

    receita lquida do produto no Fundo Nacional de repartio

    de Benefcios. mas, caso a espcie estiver associada a um

    conhecimento tradicional, a empresa dever negociar

    uma compensao diretamente com os povos indgenas

    ou comunidades envolvidos. alm disso, ter de repassar

    0,5% da receita lquida do produto ao fundo

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    -se do ponto que obriga o pesquisador a fazer um cadastramento prvio, junto ao governo brasileiro, se quiser utilizar bancos de dados pblicos de sequn-cias de DNA e de protena do exterior, como o GenBank. Em nenhum outro pas exige-se que o pesquisador faa um cadastro para utilizar informaes de bancos internacionais pblicos, diz Beatriz Bulhes, especialista em poltica cientfica e representante da SBPC no Congresso Nacional.

    A SBPC tambm contrria criao do SISGen, que est previsto na regula-mentao, mas no era citado na lei. E defende que o novo cadastro seja cen-tralizado no CNPq. J existe hoje uma plataforma do CNPq na qual so regis-tradas as pesquisas com biodiversidade. Bastaria apenas ampli-la, em vez de se criar um sistema do zero. Isso vai gerar custos desnecessrios administrao pblica, observa Helena Nader.

    RAStREAmEntoOrganizaes no governamentais, co-mo o Instituto Socioambiental (ISA), tambm tm restries proposta. O argumento de que a nova legislao e o decreto que a regulamentaria excluem questes de interesse de povos indgenas e comunidades tradicionais. Pela lei, se uma empresa encontrar uma aplicao inovadora de uma planta medicinal que no tenha relao com o uso feito pela

    comunidade tradicional, no precisaria dar compensao alguma. O ISA defen-de uma compensao mais abrangente. Nesses casos, as comunidades tiveram um papel no manejo da espcie, sem o que ela no estaria disponvel para ex-plorao, diz Nurit Bensusan, coordena-dora adjunta de Poltica e Direito do ISA.

    O ISA tambm prope que se invista em iniciativas para rastrear com eficin-cia a origem do conhecimento tradicio-nal para produzir compensaes mais justas. O problema que esse conhe-cimento, com frequncia, difundiu-se por vrias comunidades. No caso de povos mais antigos, costuma ser difcil

    rastrear a origem exata do conhecimen-to, diz Maria das Graas Lins Brando, coordenadora do Centro Especializa-do em Plantas Aromticas, Medicinais e Txicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Ela cita o exem-plo de uma rvore tpica do Cerrado, o barbatimo, cuja casca rica em uma substncia utilizada para tratar feridas e doenas da pele. A bibliografia anti-ga mostra que esse conhecimento era compartilhado por vrias populaes que viviam no Cerrado. No h registros suficientes para determinar a origem exata de quem comeou a explorar o barbatimo, explica. n

    A pesquisa bsica ser beneficiada. A cincia no acessa a biodiversidade s para fins econmicos, diz Vanderlan Bolzani

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    rvore de copaba no Instituto de Botnica em So Paulo: planta usada h sculos para tratar ferimentos na pele