experiência em foucault e thompson

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ISSN 0104-236X Porto Alegre Anos 90 Porto Alegre v.11 n. 19/20 p. 1-400 jan./dez. 2004

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ISSN 0104-236X

Porto Alegre

Anos 90 Porto Alegre v.11 n. 19/20 p. 1-400 jan./dez. 2004

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

Reitor: José Carlos Ferraz HennemannDiretora do IFCH: Celi Regina Jardim PintoComissão Coordenadora do Programade Pós-Graduação em História

COMISSÃO EDITORIAL EXECUTIVAAnderson Zalewski VargasBenito Bisso Schmidt (Editor)Francisco MarshallRegina WeberTemístocles Cezar

CONSELHO EDITORIALBarbara WeinsteinState University of New York, EUACaio César BoschiPUCMGEdgar de DeccaUNICAMPEduardo SilvaFundação Casa de Rui Barbosa, RJHilda SabatoUniversidade de Buenos Aires, ArgentinaIgnacio Sosa AlvarezUniversidad Nacional Autonoma de MexicoJosé Pedro RillaUniversidad de la República, Uruguai

© 2005 Programa de Pós-Graduação em História, IFHC/UFRGSQualquer parte desta publicação pode ser reproduzida,

desde que citada a fonte.Tiragem deste volume: 400 exemplares

Publicação semestralPede-se permutaOn demandé échangeWe demand exchangeSe pide permuta

Temístocles Américo Correa Cezar(Coordenador)Anderson Zalewski VargasCesar Augusto Barcellos GuazzelliCláudia WassermanHelen Osório

EQUIPE TÉCNICARevisão:Benito Bisso Schmidt eNara Widholzer (NIP)Tradução dos títulos e revisãodos abstracts:Marília Marques LopesBibliotecária:Maria Lizete Gomes Mendes (BSCSH)Editoração eletrônica:Daniel Clós Cesar (NIP)Capa e projeto gráfico:Daniel Clós Cesar (NIP)Charge da capa:Santiagocharge publicada em 1977no livro ilustrado Refandangopela LP&M Editores LTDA

CORRESPONDÊNCIAAnos 90Programa do Pós-graduação em HistóriaUniversidade Federal do Rio Grande do SulAv. Bento Gonçalves, 9500Bloco 3, prédio 43311, sala 114CEP 91509-900 - Porto Alegre, RS - BrasilFone/fax (51) 3316-6639E-mail: [email protected]ítio: http://www.ufrgs.br/ppghist

Apoio:PROPESQ/UFRGSNIP/IFCH/UFRGS

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO-NA-PUBLICAÇÃO (CIP)Bibliotecários responsáveis: Leonardo Ferreira Scaglioni (CRB-10/1635)e Raquel da Rocha Schimitt (CRB-10/1138)

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Apresentação

DOSSIÊ I – TRABALHISMO(S)

Brizola e o trabalhismoAngela de Castro Gomes

Vargas e a gênese do sistema partidário brasileiroLucia Hippolito

As várias cores do socialismo morenoJoão Trajano Sento-Sé

DOSSIÊ II – FOUCAULT: JOGOS E DIÁLOGOS

A História em jogo:a atuação de Michel Foucault

no campo da historiografiaDurval Muniz de Albuquerque Júnior

A narrativa da experiência em Foucault e ThompsonFernando Nicolazzi

Bourdieu e Foucault:derivas de um espaço epistêmico

José Carlos dos Anjos

SUMÁRIO

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Históriaande do Sul

RS - Brasil

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ARTIGOS

A experiência como recuperaçãodo sentido da tradição em Benjamin e GadamerRoberto Wu

Os desafios na produção do conhecimento históricosob a perspectiva do Tempo PresenteEnrique Serra Padrós

“A su usanza y según el aderezo de la tierra” –devoção e piedade barrocanas reduções jesuítico-guaranisEliane Cristina Deckmann Fleck

Revoltas regenciais na Corte:o movimento de 17 de abril de 1832Marcello Basile

A Carta Niemeyer de 1846e as condições de leitura dos produtos cartográficosRenato Amado Peixoto

Tradição, identidade nacional e modernidadeem Joaquim NabucoRicardo Luiz de Souza

Regionalismo, Historiografia e memória:Sepé Tiaraju em dois temposLetícia Borges Nedel

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CONTENTS

Introduction

DOSSIER I – LABOURISM(S)

Brizola and labourismAngela de Castro Gomes

Vargas and the beginning of Brazilian party systemLucia Hippolito

The many colors of “moreno” socialismJoão Trajano Sento-Sé

DOSSIER II – FOUCAULT: GAMES AND DIALOGUES

History in focus:the role of Michel Foucault in the field of historiography

Durval Muniz de Albuquerque Júnior

The narrative of experience in Foucault and ThompsonFernando Nicolazzi

Bourdieu and Foucault:derivation of an epistemic space

José Carlos dos Anjos

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ESSAYS

Experience as recovery of tradition sensein Benjamin and GadamerRoberto Wu

The challenges of productionof historical knowledge in perspectiveof Present TimeEnrique Serra Padrós

“A su usanza y según el aderezo de la tierra” –baroque devotion and pityin Jesuit-Guaranis missionsEliane Cristina Deckmann Fleck

Regency revolts in Court:the movement of April 17, 1832Marcello Basile

Niemeyer Chart of 1846and the reading conditions of cartographic materialsRenato Amado Peixoto

Tradition, national identity and modernityin Joaquim NabucoRicardo Luiz de Souza

Regionalism, Historiography and memory:Sepé Tiaraju in two turnsLetícia Borges Nedel

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Apresentação

Datas. Mas o que são datas?

Datas são pontas de icebergs.

Alfredo Bosi

A revista Anos 90 – cujo título é uma referência à década emque foi criada – prossegue, pelo século XXI adentro, com seu objetivode contribuir para o debate qualificado sobre temas e questõesteóricas, metodológicas e historiográficas relevantes ao campo doconhecimento histórico. Neste número, apresentamos dois dossiêsque aludem a datas bastante lembradas em 2004: o cinqüentenáriodo suicídio de Getulio Vargas e os vinte anos do falecimento deMichel Foucault. Poderíamos acrescentar ainda, à lista dos eventosmotivadores de nossos dossiês, a morte de Leonel Brizola, ocorridatambém em 2004.

Pensando em tais datas como “pontas de icebergs”, queremosconvidar nossos leitores a refletirem, inicialmente, com Angela deCastro Gomes, Lucia Hippolito e João Trajano Sento-Sé, sobre osdiversos “trabalhismos” que, na esteira do legado de Vargas,encontraram em Brizola seu último grande representante. A seguir,na trilha dos “jogos e diálogos” sugeridos por Durval Muniz deAlbuquerque Júnior, Fernando Nicolazzi e José Carlos dos Anjos,propomos que atentem para os desafios colocados pela obra deFoucault aos historiadores e as suas convergências e divergênciascom o pensamento de E. P. Thompson e o de Pierre Bourdieu.

Os demais artigos abordam facetas e temáticas distintas einstigantes do conhecimento histórico. Roberto Wu e Enrique SerraPadrós examinam questões teórico-metodológicas referentes,respectivamente, às noções de experiência e tradição em Benjamine Gadamer e aos desafios da chamada história do tempo presente.

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Eliane Cristina Deckmann Fleck apresenta as reduções jesuítico-guaranis do século XVII como um espaço de reinvenção designificados, tendo em vista a apropriação seletiva e criativa e aressignificação de expressões da cultura indígena guarani e da culturacristã ocidental. Marcelo Basile trata de revoltas ainda poucoconhecidas ocorridas na Corte no período regencial brasileiro. RenatoAmado Peixoto realiza um criativo exercício de análise da CartaNiemeyer de 1846, a primeira Carta Geral do Brasil, discutindo aleitura dos produtos cartográficos pelos historiadores. Ricardo Luizde Souza investiga as noções de tradição, identidade nacional emodernidade na obra de Joaquim Nabuco. Finalmente, LetíciaBorges Nedel enfoca as disputas de memórias relacionadas ao “heróimissioneiro” Sepé Tiaraju.

Como os leitores poderão notar, a revista apresenta um novoprojeto gráfico, fruto da criatividade de Daniel Clós e da contribuiçãodo talentoso cartunista Santiago, a quem agradecemos. Agradecemosigualmente às profissionais de Letras Nara Widholzer, que revisouos textos, e Marília Marques Lopes, que traduziu os títulos para oinglês e revisou os abstracts; aos alunos Evandro dos Santos e SandroGonzaga, pelo apoio na organização da revista; à Pró-Reitoria dePesquisa da UFRGS, na pessoa da Pró-Reitora Marininha AranhaRocha, pelo imprescindível auxílio financeiro, através do programade apoio à editoração de periódicos; e aos pareceristas ad hoc dosartigos enviados para este número, Eliane Colussi (da UPF), JoãoAdolfo Hansen (da USP), Carla Brandalise, Carla SimoneRodeghero, Céli Regina Jardim Pinto, Cesar Augusto BarcellosGuazzelli, José Augusto Avancini, Paulo Vizenti, Regina Célia Lima

Xavier, Temístocles Cezar e Benito Schmidt (da UFRGS).

Desejo a todos uma boa leitura...

Benito Bisso SchmidtEditor

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Dossiê I

Trabalhismo(s)

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Brizola e o trabalhismoAngela de Castro Gomes*

Resumo. A partir de reflexões suscitadas pelos funerais de Leonel Brizola, o artigo

analisa o trabalhismo enquanto uma ideologia e uma tradição política, que compõe

uma cultura política compartilhada no País a partir de 1945. Mostra como o

trabalhismo, que tem sua gênese no pós-30, foi relido e apropriado por

trabalhadores e lideranças políticas e sindicais ao longo do período 1945-1964 e

discute as transformações decorrentes do suicídio de Vargas, bem como aquelas

pelas quais o trabalhismo passou após 1979, quando ele se encarnou no brizolismo.

Palavras-chave: Brizolismo. Trabalhismo. Cultura política.

*Angela de Castro Gomes é pesquisadora do CPDOC/FGV e Professora Titularde História do Brasil da UFF. Este texto foi escrito para ser apresentado na Mesa-Redonda Brizola e o trabalhismo, que a autora coordenou no Encontro Regionalda ANPUH-RJ, em 19 de outubro de 2004; daí as características de tamanho eforma do artigo.

O tema deste pequeno texto é Brizola e o trabalhismo. O artigotem como objetivo realizar alguns poucos comentários, e, comomanda o figurino, começarei por Leonel Brizola. Foi, sem dúvida, ofalecimento de Brizola, ocorrido em 21 de junho de 2004, uma

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segunda-feira, que deu o mote para essas reflexões. Mas não porqueBrizola precisasse morrer para ser objeto de estudo de cientistas sociaise da atenção de uma ampla parcela da população brasileira. Afinal,ele era e continua sendo reconhecido como uma das grandes figurasda política brasileira contemporânea, isto é, da política que temcomo marco simbólico a Revolução de 1930. Essa foi uma revoluçãode elites ou uma revolução pelo alto, como foi e ainda é considerada,e, justamente por isso, produziu uma renovação, inclusive geracional,nos integrantes da classe dirigente do País, na qual passou a se incluiro gaúcho Leonel Brizola.

Com longa trajetória política, que atravessou várias dasrepúblicas do Brasil, Brizola foi um personagem que deixou a marcade sua presença, para o bem ou para o mal, como quisermos, emmais de um momento estratégico da história recente do País. Eleagiu e falou muito, mas morreu sem conceder uma entrevista dehistória de vida, apesar de tê-la prometido muitas vezes, nos últimoscinco anos. Estou convencida de que Brizola morreu “antes da hora”,ao menos segundo sua própria perspectiva. Ele mesmo garantiu,em várias oportunidades, que viveria ainda muitos anos e que nãofaltariam oportunidades para a tal entrevista “de historiador”, comogostava de dizer.1

De qualquer modo, quando Brizola morreu, o que se viu, emseu funeral, foi uma grande e espontânea manifestação popular deapreço tanto por um político, como por um certo passado político.No Rio de Janeiro, em Porto Alegre e, não casualmente, em SãoBorja – onde Brizola foi enterrado ao lado de Getúlio e Jango –, opovo, o povo mesmo, participou do último ritual cívico em que ocorpo do político esteve presente. E esse é o primeiro ponto quequero destacar no texto.

Funerais, como os antropólogos advertem-nos com fartura,são rituais estratégicos, plenos de significados religiosos e também,em episódios específicos, políticos. No caso da morte de figuraspolíticas, os funerais costumam se tornar um momento deconsagração de suas vidas. Trata-se da ocasião em que, morto o corpo,a alma torna-se imortal, como imortais tornam-se alguns de seus

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“feitos”, selecionados e ressignificados pela memória, poderosa forçaque permite “que se saia da vida para entrar na história”.

Nessa chave, os funerais de Brizola inserem-se em uma tradiçãode rituais desse tipo que, no Brasil, data pelo menos da PrimeiraRepública (cf. Gonçalves, 2000). Diversas personalidades – domundo político, da ciência e das artes, por exemplo – foramconsagradas por rituais cívicos de enterramento nesse período. Dessaforma, era clara a existência de uma estratégia de se produzir umagaleria de heróis nacionais ou, pelo menos, de figuras exemplaresque mereceriam ser lembradas e que se situariam ao lado de outras,que vinham sendo consagradas pela narrativa histórica. Aliás, valetambém lembrar, uma narrativa histórica que se reestruturava emfunção do novo regime republicano e que, exatamente por isso, eracampo de disputas simbólicas acirradas, evidenciando reavaliaçõesde personagens e eventos.

Rituais, como se sabe, são encenações sofisticadas, plenas designificados simbólicos, em que uma linguagem é mobilizada ehierarquias de valores são expostas e confirmadas. Porém, tudo issonão elimina a possibilidade de os rituais comportarem espon-taneidade e participação, até certo ponto imprevistas. Os rituais polí-ticos, como tudo na política, guardam um certo grau de incerteza eimprevisibilidade. Como fenômenos de delicada construção e apren-dizado político-cultural, eles também conservam as inúmeras einsuspeitas possibilidades de leituras e apropriações de seus públicos,que são sempre muito diversos.

Os funerais de Brizola, nesse sentido, têm um passado longo.Na Primeira República, pode-se lembrar o de Machado de Assis(1908), de Euclides da Cunha (1909), de Joaquim Nabuco (1910),do Barão do Rio Branco (1912), de Pinheiro Machado (1915), deOsvaldo Cruz (1917), de Rui Barbosa (1923) e de João Pessoa(1930), entre outros.2 Esse foi um período estratégico à proposiçãoe encenação desse tipo de cerimônia e, particularmente, para suasignificação e uso na construção de uma cultura política republicanano País. Para que a lista não se alongue, é bom lembrar logo dosfunerais de Getúlio Vargas (1954), Juscelino Kubistchek (1976) e

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Angela de Castro Gomes

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de Tancredo Neves (1985), para não falar no funeral de um novotipo de herói nacional, cuja figura emblemática é Airton Senna.

Conforme os antropólogos ensinam e os historiadoresaprendem com rapidez, funerais, enquanto rituais cívicos, sãomomentos em que os mortos ilustres são identificados como figurasentre sagradas e insignes. De toda forma, são situados como figurascuja ausência é uma inequívoca perda para a nação e para o povobrasileiro pelo que eles significaram em vida. Assim, nesse momentoliminar, quando a morte física conduz à imortalidade, realiza-se umaoperação extremamente sofisticada de “trabalho da memória”, quedeve ser reforçada e consolidada com o passar do tempo. Mas, comotodo “trabalho da memória”, esse também não é arbitrário, emboraseja evidentemente seletivo, pois ocorre uma seleção que tem comocampo de explicação o presente e não, necessariamente, a trajetóriado morto, em suas complexidades e ambigüidades. Em palavrassimples, trata-se exatamente de dizer/escolher sob a ótica do presente,o que torna o morto uma figura exemplar, símbolo de algo quepode e deve ser amplamente admirado e lembrado daquela data emdiante. Por isso, a proposta de se trabalhar com a idéia de “alegoriaàs avessas” é muito atraente.

Como mencionei, os funerais são cerimônias que podem setransformar em rituais cívicos, nos quais o que se cultua, porexcelência, é a Pátria, ali representada pela pessoa do morto ilustre.Nessa dinâmica simbólica, o que geralmente ocorre é que cada umadessas figuras encarna um certo aspecto da Pátria, o que permite emesmo exige a sua celebração como imortal. Logo, esses indivíduosmaterializam, para a sociedade como um todo, um certo atributoespecial que possuíam em vida e que passa a estar ligado a eles demaneira definitiva após a morte. É a essa operação cultural que estouchamando de “alegoria às avessas”, ou seja, ao invés de uma idéia ousentimento serem dotados de um corpo para representá-los, umcorpo real e morto passa a simbolizar uma idéia e a ser com elaidentificado: Osvaldo Cruz, a ciência; Rui Barbosa, o Direito etc.

Observando os funerais de Brizola e também delesparticipando, bem como lendo com cuidado uma parte do material

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da imprensa produzido sobre ele, neste momento, arrisco umahipótese:3 Leonel Brizola, no momento de sua morte, foi alçado àcategoria de um nome ligado às lutas pela democracia no Brasil. Ameu juízo, portanto, a imagem mais recorrente e forte de sua presençapolítica, a imagem que se escolheu fixar para ser especialmentelembrada, foi a do defensor da legalidade institucional, através doepisódio de 1961, de luta pela posse do presidente João Goulart.Foi então que Brizola emergiu como uma figura de líder inconteste:corajoso e guardião dos valores democráticos. No caso, não importaque ele não tenha tido tais posições ao longo de toda a sua vidapolítica, e ele, de fato, não as teve, como atestam os mesmos jornais,que reconhecem esse fato claramente, assumindo tons críticos e nãoescamoteando os pendores autoritários da personalidade e presençapolíticas de Brizola. O funeral, como uma data comemorativa –que faz lembrar –, não encontra sua justificativa no passado, mas nopresente; não somente naquele que é lembrado, mas tambémnaqueles que estão lembrando. Por conseguinte, os funerais e todoe qualquer ritual cívico operam com os valores que se querem guardarem determinado momento do tempo e do espaço. Se, em 2004,Brizola permitiu-nos reforçar o culto aos valores democráticos, tantomelhor para ele e para nós, arrisco também a dizer. Agora, então, éa vez do trabalhismo, ou melhor, dos trabalhismos.

Minha idéia, aqui, é deixar claro que estou entendendo otrabalhismo tanto como uma ideologia política, quanto como umatradição política, pertencente ao universo de fenômenos queintegram o que se pode considerar uma cultura política bastantecompartilhada no País a partir da República que se instaurou em1945, após a queda do Estado Novo. A categoria trabalhismo,portanto, desde então, passou a ser utilizada e identificada quer emtextos da academia, quer em textos da grande imprensa, quer novocabulário político comum, com razoável abundância e facilidade.Ideologias e tradições fazem parte das culturas políticas de umasociedade e devem ser pensadas como construções intelectuaispossuidoras de uma dinâmica e de uma história próprias.

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Quero dizer, com isso, que o trabalhismo, como ideologia, foi“inventado” em momento e circunstância bem precisos, não tendoorigens remotas, nem imemorias, muito pelo contrário. Envolvendoum conjunto de idéias, valores, vocabulário e também práticas festivas(como um certo tipo de comemoração do Dia do Trabalho), otrabalhismo, como ideologia, foi um produto do Estado Novo emseu segundo movimento. Isso significa que tal ideologia foi articuladae difundida através de uma série de modernos e sofisticadosprocedimentos e atos comunicativos, a partir do ano de 1942,possuindo como base operacional o Ministério do Trabalho, Indústriae Comércio, então comandado por Alexandre Marcondes Filho.

Desde então, passou a ser propagada e fortemente vinculada àfigura pessoal do então Chefe de Estado, Getúlio Vargas, além detraduzir a idéia capital de responder aos interesses dos trabalhadores,por meio do acesso a uma legislação trabalhista, previdenciária esindical. Portanto, a ideologia trabalhista nasceu vinculada aogetulismo, ao nacionalismo e ao intervencionismo de um Estadoprotetivo que Vargas então encarnava. Do mesmo modo, a ideologiatrabalhista nasceu vinculada a um modelo de organização sindicalde extração corporativista, o que, naquele contexto político, significa-va uma forma de representação de interesses profissionais e não deidéias políticas, religiosas etc. A ideologia trabalhista e o sindicalismocorporativista compunham o que se designava “democraciaautoritária” brasileira, vale dizer, uma forma de democracia que con-sagrava os direitos sociais e criticava e desprezava a democracia políticae, por conseguinte, o voto, os partidos, as eleições, o parlamento etc.

Como ideologia política (e não uso a categoria comosignificando deformação de idéias), o trabalhismo caracterizou-sepor um projeto que se vinculou ao nacionalismo e à promessa dejustiça social, centrada nos direitos do trabalho. Antes de 1945,utilizou-se dos direitos sociais, desvinculando-os dos políticos e, porisso, pouco contribuiu para o estabelecimento de uma sociedadedemocrática. No pós-1945, isso se alterou, havendo outra relaçãoentre os direitos de cidadania que integrariam a idéia de justiça social,embora ela ainda permanecesse sendo afiançada pelo Estado.

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É evidente que, como ideologia e projeto políticos, o traba-lhismo lançou raízes na experiência do movimento operário e sindicalda Primeira República, no sentido thompsoniano. Logo, se essaideologia foi inventada no pós-1930, não o foi de modo fortuito,arbitrário e a partir do nada. Seu poder de significação e mobilização(a “comunidade de sentidos” que logrou estabelecer) veio da releituraque as elites políticas do pós-1930 realizaram daquilo que ocorreuno terreno das lutas dos trabalhadores antes de 1930. Dizer isso nãoé admitir que houve trabalhismo ou trabalhistas no pré-1930. Porconseguinte, quando, em 1945, iniciou-se, ainda sob o Estado Novo,um movimento de organização de partidos políticos, os ideólogosdo trabalhismo realizaram um certo esforço para criar um partidocapaz de abrigar tal ideologia, que conviveria com eleições, voto etc.Contudo, é bom remarcar, isso não foi nada extremamente difícil,sobretudo com a bênção de Vargas e o suporte do aparelho sindicaljá razoavelmente estruturado. Foi assim que nasceu o PartidoTrabalhista Brasileiro (PTB) ou o trabalhismo em seu primeirotempo, constituindo-se numa desejada e clara alternativa aos apelosdo Partido Comunista junto aos trabalhadores.

Esse tempo primordial foi o da República de 1945-64, quando,por meio dos sindicatos e do PTB, o trabalhismo seria relido eapropriado por trabalhadores e por lideranças políticas e sindicais,ganhando novos sentidos, forças e possibilidades. Foi então, a meujuízo e de outros analistas, que o trabalhismo transformou-seefetivamente em um instrumento de inclusão social e de alargamentoda participação política, mesmo que se considere a existência delimites e constrangimentos a tal operação e também sua vinculaçãoa práticas demagógicas e assistencialistas. Como escreve Renato Lessa,

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[...] o trabalhismo enquanto fenômeno político e

social só pode ser entendido se o associarmos à

experiência da República de 1946 e a seus traços

básicos: democracia política, legislação social

progressiva, nacionalismo, presença marcante do

Estado, modernização social e crescimento econômico

(Lessa, 2004, p.12).

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Isso significa que o trabalhismo foi um dos principais legadosda chamada Era Vargas, ainda que só possa ser bem entendido apartir das apropriações decorrentes do regime liberal-democráticoestabelecido em 1946.

Desde 1946, portanto, o trabalhismo começou a ser compar-tilhado, em novas bases, em um circuito que comunica setores daselites com setores populares, ganhando sentidos específicos em cadaum deles, o que se altera em cada conjuntura política. Assim, épossível dizer, correndo alguns riscos, que é justamente durante essaexperiência que o trabalhismo começou a se constituir em umatradição da política brasileira, capaz de mobilizar eleitores e de sermobilizada por políticos. Sobretudo após a morte de Vargas, oprimeiro e maior nome do trabalhismo, abriu-se uma temporadade disputas iniciadas pela redefinição dos conteúdos do trabalhismo,bem como uma luta, até antropofágica, pela herança do carisma deVargas e pela força da legenda trabalhista. De 1954 a 1964, váriosforam os partidos trabalhistas e várias as lideranças que, no interiordo PTB, disputaram o poder de redefinir os conteúdos programáticosdo partido e suas bases de atuação. Esse foi um segundo tempo dotrabalhismo, de um trabalhismo sem Vargas, dominado pelas figurasde Jango, Fernando Ferrari, Lúcio Bittencourt, Leonel Brizola e SanTiago Dantas, entre outros.4

Nesse segundo tempo, a ideologia e a tradição trabalhistascontinuaram marcadas pela defesa dos direitos do trabalhador, pelonacionalismo e pela proposta de um Estado intervencionista eprotetivo, mas vincularam-se a novos temas e interpelações, entreos quais o da luta pelas reformas de base. A tradição trabalhistatransformava-se para sobreviver à perda de Vargas e para acompanharo próprio crescimento do PTB, que se interiorizava, tornando-seum partido de âmbito nacional presente nas cidades e no interior.

Esse movimento do PTB e do trabalhismo para a “esquerda”teve episódios de grande disputa e radicalização, sendo interrompidopelo golpe civil e militar de 1964. E foi sobre o PTB e sobre aslideranças sindicais trabalhistas que a repressão mais rápida eduramente se abateu. Somente na década de 1980, após a anistia,

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em 1979, e com a volta de Leonel Brizola, anunciou-se um terceirotempo da tradição trabalhista. Dessa feita, o trabalhismo encarnou-seno brizolismo, e a tradição, mais uma vez, transformou-se para sefortalecer e sobreviver. Nessa conjuntura, os temas da defesa dos direitosdo trabalhador e do nacionalismo igualmente permanecerampatrimônio indiscutível que eram dessa tradição. Mas, ao lado deles,cresceram em importância tanto a questão da defesa da democracia,até porque minimizada em 1963-64, como a busca de uma definiçãopara um socialismo brasileiro. Isso, de certa forma, pode ser entendidocomo uma nova tentativa de se realizarem as reformas de base, dessafeita na lei, e não mais na marra.

De 1942 a 2004, quando Brizola morreu, foram vários ostrabalhismos que existiram e ainda existem no Brasil. O que éinteressante enfatizar, para concluir, é que o trabalhismo pode serconsiderado uma das tradições a integrar o que seria uma culturapolítica brasileira do pós-1945. Estou entendendo, portanto, comomuitos historiadores e antropólogos, que uma cultura política é umconjunto de referências, mais ou menos formalizadas em instituições(no caso, partidos e sindicatos) e mais ou menos difundidas nasociedade. Ela não é homogênea e sofre transformações temporais eespaciais. É uma categoria polêmica, mas sua utilidade vem sendotestada em pesquisas que procuram entender de forma menos abstratao comportamento e os valores políticos de atores individuais e coletivos.O trabalhismo é, nesse caso, uma boa oportunidade. Ainda que sejamuito difícil saber se ele vai conseguir se transformar e renovar-se parasobreviver, não há dúvida de que o trabalhismo pode ser reconhecidocomo uma das ideologias e tradições mais importantes da culturapolítica do Brasil republicano.

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Brizola and labourism

Abstract. According to reflections risen by Leonel Brizola’s funeral, this article

analyses labourism while political tradition and ideology, as part of a political

culture shared in Brazil after 1945. This article shows how labourism, emerged

after 1930’s, was re-read and taken by workers, political and union leaders between

1945-1964. It shows also the changes occured after Vargas’ suicide, as well as the

changes labourism has suffered after 1979, when labourism became “brizolismo”.

Keywords: Brizolismo. Labourism. Political culture.

Angela de Castro Gomes

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Notas1Nos últimos cinco anos, o professor Jorge Ferreira e eu insistimos muito para

realizar uma entrevista de história de vida com Leonel Brizola. Telefonamos,

escrevemos carta, conversamos. Ele concordava com a importância do depoimento,

mas jamais aceitava marcar o início das gravações. Ficava evidente que, para ele,

outras ações, mais urgentes, impunham-se, sendo a entrevista uma tarefa para o

futuro. Infelizmente, esse futuro não chegou e, a despeito de se terem muitas

entrevistas de Brizola, ele não deixou uma história de vida.2Seria possível realizarem-se outras inclusões, verificando-se os funerais realizados

nos estados, com as mesmas características de fundo. O funeral de João Pinheiro,

em Minas Gerais, é um bom exemplo. Sobre esse episódio, ver Gomes (no prelo).3Foram consultados apenas alguns jornais para a elaboração dessas reflexões, que

se pretendem preliminares. Na cidade do Rio de Janeiro, o Jornal do Brasil, de 22

e 23 de junho de 2004, e O Globo, de 23 de junho de 2004, que dedicou um

caderno especial à morte de Brizola: O fim de uma era. Em Porto Alegre, consultou-

se Zero Hora, de 26 de junho de 2004.4Sobre esse momento, ver Gomes (1994).

GOMES, Angela de Castro. Trabalhismo e democracia: o PTB sem Vargas.

In:______ (Org.). Vargas e a crise dos anos 50. Rio de Janeiro: Relume Dumará,

1994. p. 133-160.

______. Memória, política e tradição familiar: os Pinheiro de Minas Gerais.

In:______ (Org.). Minas e os fundamentos do Brasil moderno. Belo Horizonte:

Ed. UFMG. No prelo.

GONÇALVES, João Felipe. Enterrando Rui Barbosa: um estudo de caso da

construção fúnebre de heróis nacionais na Primeira República. Estudos

Históricos, Rio de Janeiro, v. 14, n. 25, p. 135-162, 2000.

LESSA, Renato. Dois legados que mudaram o país. O Globo, p.12, 22 ago.

2004. Caderno Especial Getúlio Vargas.

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Referêncas

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Brizola e o trabalhismo

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Vargas e a gênese

do sistema partidário brasileiro*

Lucia Hippolito**

Resumo. A consolidação do sistema partidário do período 1945-64 ocorreu durante

o segundo governo Vargas, tendo como referencial a figura e a atuação do presidente

da República. O que emerge da crise de agosto de 1954 é um sistema partidário

moderado, com o PSD solidamente instalado no centro do espectro político-

ideológico, fiador da estabilidade política e atraindo os extremos (PTB e UDN)

para o compromisso com o regime democrático. A construção da identidade e da

maioridade do sistema partidário brasileiro é um legado de Getúlio Vargas, mas

que requereu, em larga medida, a superação da própria figura do estadista.

Palavras-chave: Getúlio Vargas. Sistema partidário.

Fundados em 1945, antes do final do Estado Novo, com oobjetivo de contribuir para uma transição negociada da ditadurapara a redemocratização, os principais partidos políticos do período1945-65 foram criaturas de Getúlio Vargas. O estadista era o

*Agradeço a cuidadosa leitura e as preciosas achegas de Edson Nunes e Edgar

Flexa Ribeiro, os quais não são responsáveis, evidentemente, por eventuais

insuficiências.

** Lucia Hippolito é historiadora (PUCRJ) e cientista política (Iuperj-Rio).

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referencial, não importando se esses partidos haviam sido criadospor ele, ou se nasceram contra Vargas.

Segundo Amaral Peixoto, interventor no Estado do Rio, genrode Getúlio e participante das reuniões que precederam a criação dospartidos, alguns interventores queriam que os novos partidos fossemregionais, como na República Velha, mas Getúlio teve a palavrafinal e decidiu por partidos políticos nacionais.

Todos os fundadores do PSD eram homens quetinham colaborado na administração do Estado Novo,homens que tinham realizado o programa do EstadoNovo nos estados. Nós nos reuníamos na casa doValadares, aqui no Rio: Fernando Costa, Agamenon,Barbosa Lima e eu. Em algumas reuniões o Góis estavapresente. A primeira questão foi: os partidos seriamnacionais ou estaduais? O Benedito e o FernandoCosta queriam partidos estaduais, o Agamenon e euqueríamos partidos nacionais. [...] Levamos o casoao dr. Getúlio, e ele decidiu pelos partidos nacionais(apud Camargo et al., 1986, p.289-290).

22

O Partido Social Democrático (PSD), fundado em 17 de julhode 1945, começou a ser organizado primeiro nos estados, sob aliderança dos interventores, reunindo prefeitos, membros daadministração estadual e outras forças que apoiavam o governo, comoproprietários rurais, industriais, comerciantes, funcionários públicose outros. O Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), fundado em 15 demaio de 1945, reuniu, sob a coordenação do Ministério do Trabalho,basicamente operários urbanos e sindicatos. É consensual a idéia deque Getúlio concebeu o PTB como um anteparo entre os traba-lhadores e o Partido Comunista, que acabara de reingressar nalegalidade.1 Já a União Democrática Nacional (UDN) nasceu em 7de abril de 1945, como frente de oposição à ditadura do EstadoNovo, defendendo liberdades democráticas e a candidatura dobrigadeiro Eduardo Gomes à presidência da República. Reunia

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oligarquias apeadas do poder pela Revolução de 30, aliados deGetúlio que passaram para a oposição a partir de 1932 até 1937,participantes do Estado Novo que se afastaram antes de 1945, gruposliberais nos estados e as esquerdas.2

Embora constituídos como agremiações nacionais, os partidospolíticos tiveram, desde suas origens, que se adaptar à poderosa lógicada política estadual. Assim, questões locais e regionais tiveramconsiderável peso na definição das filiações a uma ou outra legenda.Aos três maiores partidos, agregaram-se o Partido ComunistaBrasileiro (PCB), o Partido Social Progressista (PSP), o PartidoRepublicano (PR), o Partido Libertador (PL), o Partido DemocrataCristão (PDC), o Partido Republicano Progressista (PRP), o PartidoTrabalhista Nacional (PTN), o Partido Social Trabalhista (PST), oPartido Republicano Trabalhista (PRT), o Partido SocialistaBrasileiro (PSB) e o Movimento Trabalhista Renovador (MTR).3

Esse foi o sistema partidário brasileiro que funcionou, com uma ououtra alteração, até 1965, quando todos os partidos políticosexistentes no País foram arbitrariamente extintos pelo AtoInstitucional n° 2, de 27 de outubro de 1965.

A eleição presidencial de 1950

Desde sua criação, em 1945, até o início do segundo governoVargas, os partidos políticos constituíram um sistema partidárioapenas no número, mas não na dinâmica de funcionamento. Aindaera muito difícil determinar-se o lugar preciso de cada partido noespectro político-ideológico.

A cassação do registro e dos mandatos do Partido Comunista,em 1947-48, iniciou a organização do espectro à esquerda, quepassou a ser ocupada pelo PTB.4 Entretanto, os limites à direitaainda estavam apenas esboçados, carecendo de uma sintonia umpouco mais fina.

O próprio Getúlio Vargas contribuiu poderosamente paraimpedir um funcionamento adequado do sistema partidário.Associaram-se, de um lado, os enormes poderes conferidos ao Poder

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Executivo no Brasil e, de outro, as características peculiares dapersonalidade de Getúlio.5 Republicano de formação castilhista eautoritária, nutria forte descrença pelas instituições democráticas e,por isso, não se interessou em lidar com elas. Ao contrário, sempreprocurou ultrapassá-las, visando ao contato direto com as massas.Segundo Oliveira Brito (1983), do PSD-BA, “Getúlio Vargas, porsua própria formação, tinha uma certa incapacidade para tratar comas instituições do regime democrático”.6 As circunstâncias da eleiçãopresidencial de 1950 contribuiriam, de um lado, para o apro-fundamento da relação personalista entre Vargas e os principaispartidos políticos brasileiros e, de outro, para o início da constituiçãode um verdadeiro sistema partidário.

Eleições presidenciais seguem, em geral, um modelo queabrange três fases: na primeira, a tentativa de superação dos limitespartidários conduz à busca de uma candidatura de união nacional,diluindo os contornos partidários e negando, aos partidos, legiti-midade como veículos de tendências políticas diferenciadas. Nasegunda fase, fracassa a união nacional, pois os partidos tentam forta-lecer-se pela imposição do candidato de consenso; múltiplas coalizõesde veto impedem o acordo. Finalmente, na terceira fase, os partidosfazem retornar a discussão aos limites da política partidária, esco-lhendo cada um o seu candidato e formando alianças com partidosmenores.

A primeira fase, da busca do nome de consenso, foi de iniciativado PSD, partido majoritário no Congresso, que entendia ser suaresponsabilidade a liderança do processo.7 Em junho de 1949, ogovernador do Rio Grande do Sul, Válter Jobim, lançou a fórmulaJobim, segundo a qual o candidato deveria ser escolhido após amplaconsulta a todos os partidos políticos. O presidente da República,Eurico Dutra, vetou a indicação do candidato natural, Nereu Ramos,ex-interventor em Santa Catarina, vice-presidente da República epresidente nacional do PSD, pois Dutra considerava-o excessi-vamente ligado a Getúlio Vargas. Desde o início, o Presidente ma-nobrou para que o candidato escolhido fosse o seu preferido, omineiro Bias Fortes. Assim, em novembro, a fórmula Jobim foi

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substituída pela fórmula mineira, proposta pelo deputado mineiroBenedito Valadares e submetida à apreciação do comando nacionaldo PSD. A fórmula mineira estreitou os limites da fórmula Jobim,pois sugeria um candidato de união naciona que fosse, a um tempo,pessedista e mineiro. A lista de Valadares foi composta pelos nomesde Israel Pinheiro, Ovídio de Abreu, Bias Fortes e Carlos Luz.

A clara inspiração do Catete na fórmula mineira gerouimediatamente resultados negativos para a negociação. Nereu Ramos,alijado da disputa, renunciou à presidência do PSD em 26 denovembro de 1949 e foi substituído pelo paulista Cirilo Júnior. Odiretório do Rio Grande do Sul, que apoiava Nereu, abandonou asnegociações, ao ser rejeitada a fórmula Jobim.8 A aceitação da fórmulamineira pelo PSD marcou o fracasso da candidatura de uniãonacional.

Na UDN, as conversações interpartidárias foram lideradas pelopresidente nacional do partido, o deputado fluminense Prado Kelly,e pelo governador de Minas Gerais, Mílton Campos. Entretanto, ogovernador da Bahia, Otávio Mangabeira, que pretendia ser oescolhido por Dutra, rompeu com o presidente em dezembro edeclarou que o candidato udenista seria o brigadeiro Eduardo Gomes,criando uma situação de fato. Assim, uma vez mais foi a UDN oprimeiro partido a iniciar a corrida eleitoral, apresentandocandidatura própria, e sua Convenção Nacional homologaria o nomede Eduardo Gomes em 12 de maio de 1950.9 Embora Prado Kellyapoiasse nova candidatura do Brigadeiro, outros udenistas entendiamque o partido deveria procurar um candidato com maiores chancesde vitória. O jornalista Carlos Lacerda, udenista em ascensão,começou a advogar a busca de outro candidato.

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Foi quando sustentei que a UDN era um partido quenão tinha vocação de poder e que eu não tinha vocaçãopara “derrotas gloriosas”. Que eu achava que estavana hora de disputar o poder. É para isso que os partidosexistem. [...] Mas chegou ao ponto em que a escolhaera entre o Getúlio (o Cristiano já estava derrotado) e

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o Brigadeiro. Então é evidente que eu apoiei oBrigadeiro. Fiz comícios onde o Brigadeiro [...] repetiaos mesmos realejos de 1945 (Lacerda, 1975, p.101).

A hipótese de enfrentar Getúlio Vargas nas eleições reacendeuo antigetulismo dos udenistas. Já em 1º de junho, Lacerda escreviaem seu jornal, Tribuna na Imprensa: “O sr. Getúlio Vargas senadornão deve ser candidato à presidência. Candidato, não deve ser eleito.Eleito, não deve tomar posse. Empossado, devemos recorrer àrevolução para impedi-lo de governar”.

O PSD ainda realizou duas tentativas de entendimento. Aprimeira foi a candidatura suprapartidária do mineiro Afonso PenaJúnior, que naufragou antes do lançamento. A segunda, que seria ade um candidato comum PSD/PTB, foi paralisada por doisobstáculos, sendo o primeiro o próprio Vargas, que se negou a apoiarum candidato imposto pelo Catete. Rompido com Dutra em razãodas críticas feitas por este à política econômico-financeira do EstadoNovo e pelas atitudes tomadas contra getulistas dentro do PSD,10

Vargas reafirmou, a Amaral Peixoto, a intenção de apoiar um nomesaído de negociações entre as lideranças do PSD e não de inspiraçãodo palácio do Catete. Segundo Amaral, Getúlio não fazia qualquerobjeção aos nomes de Nereu Ramos e do mineiro CristianoMachado, ambos vetadas por Dutra.11 O segundo obstáculo residiano próprio PTB, que via grandes chances de vitória na candidaturade Getúlio Vargas, negando-se portanto a ser o sócio minoritáriodo empreendimento. Sem grandes nomes nacionais que pudessemsensibilizar a opinião pública, o PTB aferrou-se ao nome de Getúlio.Este, após o rompimento com Dutra, começou a fazer oposiçãoaberta ao governo e aproximava-se cada vez mais dos trabalhadores.

No exílio gaúcho, desaparecia gradativamente o Getúlio ditadore começava a se consolidar o Getúlio democrata e populista. Assim,mesmo quando ainda não tinha revelado o desejo de se candidatar,Getúlio já era o candidato dos sonhos do PTB. Nesse reino deincertezas, crescia a candidatura de Vargas, fortalecida por umaaliança firmada entre ele e o governador paulista Ademar de Barros,

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fundador e maior cacique do PSP, partido que forneceria o candidatoa vice na chapa de Getúlio: o deputado Café Filho (PSP-RN).12

Uma visita de Ademar a Getúlio em sua estância gaúcha em 12 dedezembro de 1949 resultara em nota conjunta em que os dois líderesafirmaram estar tratando de problemas referentes à sucessão.

Em 28 de janeiro, Ademar anunciou oficialmente a retiradade sua candidatura à presidência da República. A aliança Getúlio-Ademar fortaleceu-se com a visita do primeiro a São Paulo três diasdepois, a convite de Ademar. Na ocasião, Getúlio declarou que oPTB estava disposto a colaborar para que se chegasse à fórmula ideal,o acordo entre os partidos a partir de um programa que consultasse“as necessidades regionais e com um candidato único para evitarentrechoques”.13

A terceira fase, caracterizada pela definição dos partidos emtorno de seus candidatos, significou, para o PSD, o agravamento dacrise interna. Candidaturas sucederam-se sem que se conseguisseum nome que ao mesmo tempo unisse o partido e agradasse aopresidente Dutra.14 O lançamento de Getúlio contribuiu paraaprofundar as divergências, pois as lideranças pessedistas hesitavamentre a fidelidade à legenda e a lealdade pessoal a Vargas.

Finalmente, a reunião dos dirigentes pessedistas, ocorrida em15 de maio de 1950, resultou na indicação do mineiro CristianoMachado. Ficou também decidido que, após lançado oficialmente,este deveria entender-se pessoalmente com Vargas e oferecer a vice-presidência ao PTB. Contudo, segundo Amaral Peixoto (apudCamargo et al., 1986), Cristiano Machado decidiu não procurar oex-ditador, para não colocar em risco as possibilidades de obter oapoio do presidente Dutra. Sendo assim, Getúlio recusou-se a tomarainiciativa de apoiar o nome de Cristiano. A atitude de Vargas tevesérias conseqüências no interior do PSD, sendo uma delas a não-aceitação da candidatura (homologada pela Convenção Nacionalem 10 de junho) por várias seções estaduais, que partiram para apoiarGetúlio. Cristiano Machado, nome sem expressão nacional, nãoconseguiu unir o partido em torno de sua candidatura.

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Aproveitando-se da crise pessedista, Getúlio fez alianças como PSD em vários estados, tendo em vista também as sucessões esta-duais: no Espírito Santo, Rio de Janeiro, Santa Catarina, Bahia,Amazonas, Goiás, Mato Grosso, Paraná e Paraíba, Vargas apoiou oscandidatos do PSD ao governo e foi por eles apoiado, velada ouostensivamente.

O PSD, por seu turno, pôs em prática a cristianização: ocandidato do partido foi abandonado à própria sorte, e suacandidatura foi praticamente esvaziada, uma vez que os maisexpressivos líderes pessedistas aderiram a Getúlio Vargas. Para boaparte dos políticos pessedistas, a cristianização representava simplesautopreservação, pois apoiar Cristiano Machado significaria “incorrerem derrotas eleitorais provavelmente fatais” (D’Araujo, 1982, p.62).O resultado das eleições, como era previsto, consagrou a vitória deGetúlio Vargas. O candidato do PSD chegou em terceiro lugar,vencendo apenas nos estados do Pará e do Maranhão e nos territóriosdo Amapá e do Acre.15

Nos estados, o PSD elegeu 11 governadores: no Amazonas,Álvaro Botelho Maia (PSD/PDC); na Bahia, Luís Régis PachecoPereira; no Ceará, Raul Barbosa (PSD/PSP/PR); no Espírito Santo,Jones dos Santos Neves (PSD/PTB); em Goiás, Pedro Ludovico(PSD/PTB); em Minas Gerais, Juscelino Kubitschek (PSD/PR); naParaíba, José Américo de Almeida (PSD/PL); em Pernambuco;Agamenon Magalhães; no Piauí, Pedro de Almeida Freitas; no Riode Janeiro, Ernani do Amaral Peixoto (PSD/PR/PRT/PST/PTN/PTB); e, em Sergipe, Arnaldo Rolemberg Garcez (PSD/PR). NoRio Grande do Norte, Jerônimo Dix-Sept Rosado Maia, do PSP,foi eleito em coligação com o PSD e a UDN.

A UDN, por sua vez, elegeu cinco governadores: em Alagoas,Arnon de Mello; no Mato Grosso, Fernando Correia da Costa; noPará, Alexandre Zacarias d’Assunção (UDN/PSP/PST/PL); noParaná, Bento Munhoz da Rocha (UDN/PR/PST/PL/PRP); emSanta Catarina, Irineu Bornhausen. No Rio Grande do Norte, comovimos, a UDN participou da coligação que elegeu Dix-Sept Rosado.

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Finalmente, o PTB elegeu apenas o governador do Rio Grandedo Sul, Ernesto Dornelles, mas participou da coligação vencedorano Espírito Santo, em Goiás e no Estado do Rio.16

Na Câmara dos Deputados, os três principais partidosaumentaram suas bancadas em relação a 1945-47.17 O PSDconfirmou sua posição majoritária, elegendo 112 deputados (36,8%),enquanto a UDN ocupou 81 cadeiras (26,6%). O PTB, fortementeajudado pela cassação do registro do Partido Comunista e pelodesempenho de Getúlio na eleição presidencial, mais do que dobrousua bancada: de 24 deputados em 1945-47, elegeu 51 deputadosfederais em 1950, alcançando 16,7% do total de 304 deputados.

No Senado, que renovava um terço das cadeiras, das 22 vagasem disputa, o PSD ocupou seis, a UDN, quatro, e o PTB, cinco.18

A vitória de Getúlio, o crescimento do antigetulismo udenistae as condições em que ocorreu a derrota do PSD – principalmentea crise intrapartidária que a precedeu – seriam os principaisingredientes da crise que se desenrolou por todo o segundo governoVargas e terminou no desenlace trágico de 24 de agosto de 1954.

A construção da dinâmica do sistema partidário

Desde o primeiro momento, o governo federal foi constituídoà imagem e semelhança do presidente da República. Getúlio tentoudeslegitimar os partidos, diluindo sua atuação e seus contornos.Mesmo chamando o PSD para o governo, ele não governoupartidariamente, limitando-se a fazer escolhas pessoais nos partidosque comporiam o ministério – faz isto inclusive na UDN. No PSD,partido majoritário no Congresso e cuja divisão havia contribuídopoderosamente para sua eleição, Getúlio selecionou ministros basea-do em critérios regionais e/ou pessoais muito mais do que em indica-ções dos partidos. Para a Fazenda, escolheu o paulista Horácio Lafer(indicado por Ademar de Barros); para a Justiça, nomeou doismineiros que se sucederiam, Negrão de Lima e Tancredo Neves,ambos indicados pelo governador Juscelino Kubitschek, recém-eleito; para a Educação, optou por dois baianos, Simões Filho

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e Antônio Balbino, que também se sucederiam na pasta. O gaúchoJoão Neves da Fontoura, que ocuparia a pasta das Relações Exteriores(1951-53), embora pessedista, foi da cota pessoal de Vargas; aamizade dos dois era bastante anterior à Revolução de 30.

O PTB recebeu o Ministério do Trabalho, Indústria e Comér-cio, com todas as suas autarquias. Seriam petebistas os quatroministros: o paulista Danton Coelho (jan./set. 1951), o cariocaSegadas Viana (1951-53), o gaúcho João Goulart (1953-54) e obaiano Hugo de Faria (fev./ago. 1954).19 O fato de o presidente daRepública pertencer formalmente ao PTB não significounecessariamente o fortalecimento do partido. Praticamente durantetodo o governo Vargas, o PTB esteve envolvido em problemas elutas internos, visando ao fortalecimento dos laços entre o partido eo mundo sindical e entre o partido e os comunistas, “não só paraatuar frente aos problemas sindicais como na defesa de princípiosnacionalistas” (Ferreira, 2001, p.4.422).

Finalmente, a UDN também participou do governo. Opernambucano João Cleofas, aliado de Getúlio na campanhaeleitoral, ganhou o Ministério da Agricultura (1951-54).20

Entretanto, a própria UDN apressou-se em declarar que Cleofasassumia a pasta “em caráter pessoal”. Aliás, durante o governo Dutra,Carlos Lacerda já combatera ferozmente a presença de ClementeMariani e Raul Fernandes no ministério, acusando-os de adesismo.21

Dessa forma, Getúlio Vargas, eleito pelo PTB e pelo PSP, governoucom o PSD e cortejou a UDN. Essa busca do consenso máximo,como bem salientou D’Araujo (1982), foi altamente prejudicial aosistema partidário e ao próprio Getúlio.

O sistema partidário parlamentar

Mais uma vez foi a UDN a primeira a se mover no tabuleiro,a se constituir e funcionar como partido. Durante todo o governoVargas, a UDN foi o grande interlocutor do governo no Congresso,pois foi quem respondeu às iniciativas do Executivo,

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para criticá-las e combatê-las. Cortejada por Getúlio, a UDN recusoua corte e partiu para comandar a oposição. A Banda de Música, suafração mais aguerrida, liderou os ataques ao governo, denunciandoirregularidades ou mesmo tomando a frente do próprio governo.22

Os esforços de Getúlio para cooptar o partido foram recebidos comenormes suspeitas. Já em fevereiro de 1952, Afonso Arinos de MeloFranco, líder da UDN na Câmara, expressava suas desconfianças,pois

É importante observar que a UDN já começava a funcionarcomo partido, mas identificando-se como partido de direita, o quea votação do projeto de lei da Petrobrás ilustrou com precisão.Enviado ao Congresso em dezembro de 1951, o projeto de criaçãode uma empresa de economia mista foi passivamente apoiado peloPSD, mas encontrou resistências no PTB e na UDN, quesurpreendentemente se uniram-se em defesa do monopólio estatalsobre a produção do petróleo (Carvalho, 1976). Ansiosa porencontrar um tema que a fizesse mais popular – sua pregaçãoantigetulista atingia apenas as elites e as camadas médias – e captandomelhor o sentimento da opinião pública, favorável ao monopólio –a campanha “o petróleo é nosso” ganhava as ruas –, a UDNdesengavetou uma emenda do deputado mineiro Bilac Pinto,apresentada inicialmente na Assembléia Nacional Constituinte de46, que propunha o monopólio estatal sobre a exploração dopetróleo, e a reapresentou em julho de 1952, como emenda aoprojeto do governo. Para não ficar a reboque de uma iniciativa daoposição e do potencial eleitoral que ela poderia mobilizar, o PSDaprovou a emenda udenista, e a Petrobrás foi transformada em leiem 21 de setembro de 1953, quase dois anos após o Executivo terenviado a mensagem ao Congresso.

31

[...] se supõe que o dr. Getúlio queira desmoralizar aUDN e enfraquecê-la, a fim de manobrar no sentidode reformar a Constituição na parte referente àsinelegibilidades, para se reeleger, ou eleger presidenteo comandante Amaral Peixoto.23

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Propor monopólio estatal sobre o petróleo não é bem o quecaracteriza um partido liberal de direita, mas foi o que a UDN fez.E o fez porque já começava a exercer uma das funções de um partidopolítico: perceber o potencial político e eleitoral de determinadaquestão que mobiliza a sociedade e transformar-se em seu canal deinterlocução junto ao Estado. A UDN foi o primeiro partido políticobrasileiro a desempenhar essa função de intermediação entre asociedade civil e o Estado.

A campanha pelo monopólio estatal sobre o petróleo estavanas ruas, a mobilização era enorme e o primeiro partido a perceberisso e a transformar em emenda o projeto de lei foi a UDN. Naquelemomento, ela se converteu num partido e praticamente obrigou osoutros a acompanhá-la, o que fez não por ser de direita, mas por seter transformado num verdadeiro partido político.

A oposição a Getúlio faz da UDN um partido aguerrido,presente e atuante no plenário e nas tribunas do Congresso,fiscalizando e criticando os atos do Executivo. isso se repetiu nocaso do Banco do Brasil, da CPI da Última Hora e, finalmente, nainvestigação do atentado de Toneleros. A UDN teve um compor-tamento implacável, mas impecável, como partido político deoposição.

Desde o início do governo, as maiores dificuldades localizavam-se na área econômica, minada pelas orientações antagônicas doministro da Fazenda, Horácio Lafer, e do presidente do Banco doBrasil, Ricardo Jafet. Tentando controlar a inflação e dinamizar osetor da indústria de base, Lafer formulara um programa deestabilização. Para tanto, limitou a expansão do crédito, indo contraJafet, que insistia numa política de crédito fácil.

A UDN começava a acusar Ricardo Jafet, um dos grandesfinanciadores da campanha de Getúlio em 50, de ter recebido dogoverno as jazidas de ferro de Mato Grosso. Os deputados AliomarBaleeiro (BA), Adauto Lúcio Cardoso (DF), José BonifácioLafayettede Andrada (MG) e o jornalista Carlos Lacerda, entre outrosudenistas, compraram um pequeno lote de ações do Banco do Brasile, durante dois anos, compareceram a todas as assembléias do banco,

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submetendo Jafet a interrogatórios minuciosos e penosos sobre todosos pontos da política do banco. Em junho de 53, após ver todos osseus esforços de estabilização minados pela política de Ricardo Jafet,Horácio Lafer pediu demissão do ministério. A forte oposição daimprensa tinha também desgastado a posição de Jafet, e Getúliooptou por demiti-lo.24

Enquanto isso, o desempenho dos partidos governistas, PSD,PTB e PSP, ficava altamente prejudicado pela atuação do própriopresidente da República. A identificação do primeiro ministériocomo “ministério da experiência” enfraquecera os ministrospessedistas, pois conferira, à equipe, uma aura de transitoriedade.Além disso, a corte à UDN, oferecendo-lhe postos federais nosestados, desagradara profundamente os governadores do PSD.Getúlio não conseguiu atrair a UDN, mas afastar os pessedistas.Acrescente-se a isso o fato de que Getúlio não fora eleito pelo PSD,mas por uma parcela do partido. Assim, vários diretórios regionaisinsurgiram-se contra o alinhamento automático ao governo. SegundoTancredo Neves, deputado federal e depois ministro da Justiça deGetúlio,

33

Desde o momento em que teve que partilhar partedo governo com a UDN, o PSD já se sentiu lesado.[...] O PSD, por esses motivos, não era um partidototalmente identificado com o governo. Em algunsestados houve também um problema muitoimportante: a UDN se aliara ao PTB e tinha nessesestados todas as prerrogativas de partido do governo,e o PSD era tratado como oposição. Então, era muitodifícil nesses estados a gente realmente trazer o PSDpara um apoio entusiasta ao presidente Vargas (Neves,1984, p.9).

Nasceu daí a estratégia do PSD durante o governo Vargas, ade “omissão preventiva”: o PSD não defendia vigorosamente ogoverno, mas tampouco o atacava, porque ocupava vários ministériose precisava do Poder Executivo para tentar vencer as

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eleições de 54 e preparar a sucessão presidencial de 55. Mas o partidoomitiu-se, pois qual era o sentido de apoiar um Executivo quefavorecia a UDN nos estados e permitia que o PTB, aproveitando-se do Ministério do Trabalho, aliciasse pessedistas?25

A CPI do Última Hora foi outro momento de consolidaçãoda UDN como principal partido de oposição, principal interlocutordo governo dentro do Congresso. Ela permitiu ainda acompanhar-se a performance dos partidos da base governista, PSD, PTB e PSP.

A campanha contra a Última Hora foi a mais importante levadaa efeito por Carlos Lacerda na Tribuna da Imprensa. Samuel Wainer,repórter do Diário da Noite, de Assis Chateaubriand, fora destacadopara ir ao Sul e entrevistar Getúlio, na campanha eleitoral de 1950.Wainer permaneceu ligado ao político e, após a posse, como a maioriada imprensa passou a fazer oposição, Wainer convenceu o presidentede que o governo precisava de um jornal que o apoiasse.

Francisco Matarazzo forneceu os primeiros recursos, e o Bancodo Brasil fez um contrato para financiamento da compra de papeldurante 20 anos, nascendo, assim, o Última Hora, jornal moderno,com um suplemento diário em cores. O periódico vendia espaçospublicitários a preços baixos, publicava a publicidade de todos osinstitutos e autarquias e, sobretudo, atraía bons colaboradores comaltos salários. Por tudo isso, Última Hora começou a ameaçar osoutros jornais.

Na Tribuna de Imprensa, Lacerda começou a escrever sobre ocaso, mostrando Última Hora como um fenômeno de corrupçãoatravés da imprensa. Intimidados pela concorrência, O Globo e osDiários Associados abriram espaço no rádio e na TV para Lacerdadenunciar o caso da Última Hora. A seqüência natural do caso era,como foi, a proposta de instalação de uma Comissão Parlamentarde Inquérito na Câmara dos Deputados para apurar as denúnciasde favorecimento ilícito ao Última Hora. A CPI foi proposta pelodeputado Aliomar Baleeiro, da Banda de Música da UDN.

Surpreendentemente, após entendimentos entre o líder daMaioria, Gustavo Capanema (PSD-MG), e as lideranças da oposição,o governo perdeu o controle da CPI, que ficou assim constituída:

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presidente, Castilho Cabral (PSP); relator, Guilherme Machado(UDN); membros, Aliomar Baleeiro (UDN), Ulisses Guimarães(PSD) e Frota Aguiar (PTB). Enquanto Castilho Cabral e FrotaAguiar, membros de partidos que apoiavam o governo, foraminteiramente envolvidos pela UDN, o PSD desvinculou-se da sorteda comissão; “Ulisses desinteressou-se do problema e deixou decomparecer às reuniões” (Brandi, 1983, p.271). O governo ficousem defesa, entregue às acusações da UDN.

PSD e PTB omitiram-se e preferiram assistir à derrota dogoverno, porque, a partir de meados de 1953, a lógica das eleiçõesde outubro de 1954 passou a presidir as ações partidárias. Tais eleiçõesteriam evidentes repercussões na sucessão presidencial de 1955.

Enquanto o PTB dedicava-se com afinco à política deestruturação do partido em todo o País, o PSD preferiu omitir-sena CPI da Última Hora para não correr o risco de aprofundar, comuma defesa ardorosa do governo, as denúncias contra Wainer. Eraimportante evitar que, no desenrolar da CPI, aparecesse o nome deum dos primeiros financiadores do jornal, o então governador deMinas Gerais, Juscelino Kubitschek, que determinara a um bancomineiro o desconto de “três mil contos em promissórias da EditoraÚltima Hora S/A, a serem pagos futuramente em publicidade”(Hippolito, 1985, p.96; Wainer, 1989). De fato, o nome de Juscelinojamais apareceu durante os trabalhos da comissão, e o PSD pôdepreservar um de seus potenciais candidatos à sucessão presidencialde 1955.

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A crise no Congresso

O acirramento da crise política teve como pano de fundo oano eleitoral de 1954. A omissão dos partidos governistas, PSD ePTB, no que dizia respeito à defesa do governo diante da ferocidadecrescente dos ataques da UDN, aumentava na razão direta daaproximação das eleições de outubro. Os 24 deputados do PSPdeixaram de compor a Maioria, restando a base de apoio ao governobasicamente com 163 deputados, encurralados pela Minoria,

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composta de pouco mais de 116 deputados (81 da UDN, 11 do PRe 24 do PSP, além de deputados de pequenos partidos) (Hippolito,1985, p.58). Alegando compromissos eleitorais, grande parte dospessedistas e petebistas recolheu-se a seus estados, deixando, nocenário federal, uma luta sempre mais acirrada entre UDN e governo.PSD e PTB fizeram escassos no Congresso.

A ausência do PSD nos debates parlamentares foi aproveitadapela UDN, cujos deputados atacavam diariamente o governo. Se aomissão era parte do cálculo político pessedista, a oposição cerradaera parte da estratégia eleitoral udenista, que tentava capitalizar acrescente impopularidade de Vargas junto à opinião pública do Riode Janeiro.26

Discursando na Câmara em março de 54, Aliomar Baleeiro(UDN-BA) acusou o presidente da República de promover umbloqueio econômico ao estado de Pernambuco, governado pelopessedista – e dissidente – Etelvino Lins, que se opunha ao governofederal. Baleeiro propôs o início de um processo contra o presidente:“Admitindo como verdadeiro o fato, temos que o sr. Getúlio Vargasdelinqüiu, cometeu um crime de responsabilidade que o sujeita aoimpeachment e à cadeia”.27

Às denúncias iniciais agregam-se outras, sobre entendimentosentre Vargas e o ditador argentino Juan Domingo Perón e sobrecorrupção e conivência com atos ilícitos. Votada em junho, aproposta de impeachment foi derrotada por 136 votos contra 35.28

Dessa vez, o PSD jogou toda a sua força parlamentar e derrotou oprojeto, pois um eventual impeachment do presidente da Repúblicapoderia arrastar os ministros pessedistas a serem acusados de crimesconexos, o que, a menos de quatro meses das eleições, representaria,para o PSD, um desastre de proporções incalculáveis. Entretanto, apartir de 5 de agosto, quando o atentado da rua Toneleros conduziua crise para sua fase mais aguda,29 o PSD retornou à tática de “omissãopreventiva”: aguardava os acontecimentos, negava-se a defender oua acusar o governo no Congresso, negava combate à UDN econtribuía para que a crise se reduzisse à insatisfação pela presençade Vargas na chefia do governo.

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Na Câmara, enquanto crescia a violência dos discursos daoposição udenista, menos da metade da bancada pessedistacomparecia ao plenário. Discursando em 9 de agosto, AliomarBaleeiro declarou estranhar “que nesta emergência as bancadas doPSD estejam quase desertas! [...] Esperava, hoje, que o nobre líderda Maioria estivesse em seu posto, pronto a dar à Nação as explicaçõesque ela ansiosamente espera”.30 O discurso de Baleeiro não recebeuaparte de nenhum membro da Maioria, embora a Mesa registrasse apresença de 39 deputados pessedistas na Câmara.31

No dia seguinte, o udenista Herbert Levy afirmou que opresidente da República tornara-se incompatível com a naçãobrasileira; nenhum dos 43 pessedistas presentes o aparteou-o paratomar a defesa do governo.32 A mesma coisa foi ocorrendo nos diasseguintes; o PSD não se pronunciou diante dos violentos discursosde Bilac Pinto (11.08) e Afonso Arinos (13.08) pedindo a renúnciado presidente.33

Só em 17 de agosto, o líder da Maioria, Gustavo Capanema,defendeu o governo em discurso fraco, hesitante, quando foibombardeado por 153 interrupções de deputados da UDN, do PR,do PSP e do próprio PTB, que atacavam o governo. Enquanto isso,apenas dois deputados do PSD – Augusto do Amaral Peixoto (DF)e José Joffily (PB) – acorreram em seu auxílio.34 Impotente diantedo massacre que sofria por parte da oposição udenista, Capanemaapelou para que os brasileiros ficassem “todos juntos, a fim de que acrise transcorra de tal maneira que a Constituição continue ilesa”.35

Mas, a essa altura, já era consensual, entre os pessedistas, ainconveniência da permanência de Getúlio à frente do Executivo. Aopinião pública era contra Vargas, os militares estavam contra Vargas.

Durante todo o período mais agudo da crise, PSD e PTBomitiram-se, deixando a UDN livre no Congresso. Com isso, oPSD preservara-se para encaminhar uma solução política para oconflito. Permitindo que toda a patologia da crise concentrasse-sena figura de Getúlio, o encaminhamento da proposta de licençapôde contribuir para a solução do impasse e preparar a volta ànormalidade.

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Ao se negar a combater frontalmente o governo, o PSDdesqualificava a crise como um conflito entre Executivo e Legislativo,este sim, de resultados imprevisíveis para a estabilidade do regime.Ao mesmo tempo, negava combate à UDN, que, por falta decontendor, concentraria ainda mais seus ataques em Getúlio. O PSDdeu seu consentimento tácito ao afastamento “voluntário” dopresidente, mas o suicídio de Getúlio em 24 de agosto lancetou otumor e acelerou a solução da crise.

A atuação do PSD durante todo o processo que encerroutragicamente o segundo governo Vargas constitui seu ato de batismocomo verdadeiro partido político. Reduzindo o conflito a limitespoliticamente administráveis, evitando que extravasasse as fronteirasde um confronto entre governo e oposição, o PSD definiu seu perfile ocupou seu espaço no sistema político do período 1945-64: o departido de centro, chave da dinâmica do sistema partidário e fiadorda estabilidade do regime.

A recomposição do poder

Ao sair de cena, Getúlio Vargas beneficiou duplamente a vidapolítica brasileira: primeiro, como o cerne da crise estava concentradonele, seu suicídio permitiu uma solução politicamente negociada,sem a interferência concreta de elementos estranhos à dinâmicapolítica, como viria a ocorrer em 64.36 Segundo, conferiu ao sistemapartidário exatamente aquilo que lhe faltava: uma dinâmica defuncionamento. O sistema partidário brasileiro que emergiu a partirdaí foi um sistema moderado, com o PSD solidamente instalado nocentro e atraindo os extremos (UDN e PTB) para um compromissocom a estabilidade do regime. Mas, mais relevante ainda, o governoVargas legaria ao sistema partidário a própria tentativa de superaçãodo getulismo. Ao introduzir novos temas em discussão, o governoVargas contribuiria fortemente para que o sistema partidáriosuperasse o dilema getulismo X antigetulismo, predominante desde1930, e passasse a se diferenciar em torno de temas político-ideológicos.

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A discussão política mudou qualitativamente de patamar apartir do governo Vargas. Temas como monopólio, industrialização,estatização, participação do capital estrangeiro no desenvolvimento,alinhamento automático com os Estados Unidos, extensão dalegislação trabalhista ao campo, reforma agrária, acesso à terra, votodo analfabeto, fortalecimento do mercado interno, crescimento daurbanização, modernização administrativa, entre outros, assomaramao centro dos debates.37

O processo geral de complexificação que atingiu a sociedadebrasileira teve óbvios e relevantes reflexos. No âmbito dos partidospolíticos, tais mudanças tiveram graves conseqüências, embora suaabsorção por parte das oligarquias partidárias ocorresse maislentamente. O avanço da urbanização teve efeitos interessantes notocante à redefinição da competição eleitoral. A mudança dacomposição do eleitorado fez com que o debate dos novos temas,enumerados acima, ganhasse significado e implicações sempremaiores.

Na verdade, o peso do eleitorado urbano ainda não determinavainteiramente os contornos da disputa eleitoral. Afinal, em 1960, apopulação rural ainda representava 54,9% do total da populaçãobrasileira,38 mas as áreas rurais, já tradicionalmente ocupadas porPSD e UDN, passaram a ser disputadas com tenacidade pelo PTB,em sua estratégia de disseminação por todo o território nacional(cf. Hippolito, 1985; Benevides, 1981; D’Araujo, 1996). Assim, odiferencial do voto urbano assumia cada vez maior importância nacomposição das vitórias eleitorais. Ora, o crescente eleitorado urbanosofisticava suas demandas em termos socioeconômicos e políticos,o que exigia dos partidos uma revitalização e uma atualização pararesponder a esses novos desafios.

A sucessão presidencial de 55 representou já uma tentativa desuperação do trauma do suicídio de Getúlio. Juscelino Kubitschek,eleito com o menor percentual de votos da história da República(33,8%), venceu com a ajuda decisiva dos votos do interior. Perdeuno Rio, perdeu em São Paulo. Paradoxalmente, o homem quepregava a modernidade foi eleito pelos grotões, pelos burgos podres.39

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Essa mudança de eixo na discussão política iria produzir arecomposição das diferenciações partidárias e até mesmo dos debatesintrapartidários. Juscelino foi muito certamente efeito e causa dessamudança de patamar na discussão política brasileira, como bemapontou Celso Lafer (1970) em seu trabalho pioneiro sobre oPrograma de Metas. Era Juscelino quem aceleraria a superação dadicotomia getulismo/antigetulismo, pois o debate ideológico agregar-se-ia ao debate meramente político. O centro ideológico caminhavapara a esquerda, e a disputa partidária teria que se defrontar comesta nova realidade.

É exaustivamente enfatizado por aqueles que aderiram àcandidatura de Juscelino o fato de que, pela primeira vez no Brasil,um candidato à presidência da República apresentava-se ao eleitoradocom um programa de governo: o Programa de Metas.40 Por isso, opresidente da República foi o estimulador dessas novas realidades.O debate sobre o desenvolvimentismo permeou todo o período,estabelecendo os laços do governo JK com os governos anteriores eos subseqüentes. Por sua vez, a implementação do Programa de Metasacelerou a evolução das novas realidades, gerando novas demandas.

Quanto ao sistema partidário, a urbanização acelerada dadécada de 50 levou os partidos mais nitidamente urbanos, como oPTB e a UDN, a penetrar mais fortemente no interior: O PTB,com o Ministério do Trabalho e os Institutos de Previdência e depoiscom o Ministério da Agricultura e suas autarquias; a UDN, com oslíderes do interior ganhando espaço na direção nacional, contra-balançando o poder da UDN do Distrito Federal. Os dois partidoscomeçaram a pressionar os redutos eleitorais do PSD, cuja liderançacomeçava a ser ameaçada. O PSD seria obrigado a tentar vir para osgrandes centros, a reformar seu discurso, a modernizar-se comopartido. Juscelino obrigou-a a discutir temas antes impensáveis parao partido.

Esse foi o pano de fundo sobre o qual iria se acelerar aradicalização político-ideológica do final da década de 50 e inícioda de 60, que iria polarizar o sistema partidário e contribuir parasua desagregação. Foi o processo de radicalização o grande responsável

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pela crise do sistema partidário, parte importante da crise do governoJoão Goulart, e muito mais do qualquer processo de fragmentaçãoou dispersão partidária que possa ter ocorrido (cf. Hippolito, 1985;Lima Júnior, 1983; Castello Branco, 1985; entre outros).

Afinal, o período 1945-64 inaugurou-se com 12 partidos eterminou com 13. Não houve um aumento significativo no númerode partidos políticos que justificasse a hipótese de fragmentação.De outro lado, os três maiores partidos – PSD, UDN e PTB –controlavam, em 1945-47, 261 cadeiras na Câmara dos Deputados(85,8% do total de 304). Em 64, controlavam 325 cadeiras (79,4%do total de 409), o que também desqualifica a hipótese de dispersão.41

O legado de Vargas

A superação da crise do segundo governo Vargas e aadministração política do conflito conferiram identidade emaioridade ao sistema partidário brasileiro do período. A ocupaçãodos espaços no espectro político-ideológico, a definição mais clarade papéis por parte dos partidos, enfim, a dinâmica defuncionamento do sistema partidário são legados do governo Vargas.Legados de Getúlio, um homem que criou os partidos, mas quenão sabia lidar com os instrumentos do regime democrático. Porisso mesmo, a independência do sistema partidário exigiu, em largamedida, a superação da figura de Getúlio Vargas.

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Vargas and the beginning of Brazilian party system

Abstract. The consolidation of Brazilian party system between 1945-64 tookplace during Vargas administration (1951-54), having as the major reference thepresident’s personality and performance. After the August 1954 crisis, a moderateparty system arises, with the PSD strongly installed at the political-ideologicalcenter as the guarantee of political stability, attracting the extremes (PTB andUDN) as a compromise with democracy. The construction of Brazilian partysystem’s identity and emancipation is a legacy of Getúlio Vargas, and it requiredat large the surpassing of his own figure of statesman.Keywords: Getúlio Vargas. Party system.

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Notas

1 Ver, entre outros, Amaral Peixoto (1960) e D’Araujo (1982).2 As informações sobre a origem e composição inicial dos partidos estão emHippolito (2001), Ferreira (2001) e Benevides (2001).3 O PCB foi extinto em maio de 1947, quando o TSE cancelou seu registro. OPSB foi criado a partir da Esquerda Democrática da UDN e fez sua estréia naseleições de 1950. Quando ao MTR, de curtíssima existência, trata-se de uma alado PTB que passou a funcionar como partido a partir das eleições de 1962. VerHippolito (1985), texto em que este artigo é fortemente inspirado.4 Sobre a trajetória do Partido Comunista, ver, principalmente, Pandolfi (1995).5 É vasta a bibliografia sobre Getúlio Vargas. Cito, entre outros, Brandi (1983),Skidmore (1969), D’Araujo (1982, 1996) e Amaral Peixoto (1960).6 Oliveira Brito (1908-97) foi deputado federal (PSD-BA) entre 1951 e 1965 eentre 1967 e 1968 (Arena-BA); Ministro da Educação (1961-62) e das Minas eEnergia (1963-64); e secretário de Estado da Bahia (1967-69). Cassado pelo AI-5, não retomou as atividades políticas. Durante o governo Sarney (1985-90),presidiu a Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf). Ver Hippolito (1985)e Abreu et al. (2001).7 As informações contidas nesta seção foram retiradas de meu trabalho A campanha

eleitoral de 1950 (Hippolito, 1977), e de D’Araujo (1982).8 A atitude de independência do PSD do Rio Grande do Sul em relação ao Catetee à direção nacional do PSD seria fonte permanente de divergências daí em diante.Ver Hippolito (1985).9 Essa seria a segunda candidatura de Eduardo Gomes à Presidência da República.Em 1945, o brigadeiro foi derrotado pelo general Eurico Dutra, candidato doPSD e do PTB. Ver Abreu et al. (2001).10 Não se deve menosprezar, tampouco, a mágoa de Getúlio pela participação doentão general Dutra, Ministro da Guerra do Estado Novo e um dos principaisarticuladores do golpe de 1937, nos acontecimentos que deram fim ao EstadoNovo e depuseram Vargas em 29 de outubro de 1945.11 Amaral Peixoto declarou que Dutra vetava Cristiano Machado sob a alegaçãode que este tinha “um irmão comunista”, o escritor Aníbal Machado (apudCamargo et al., 1986, p. 313-14).12 Ver Café Filho (1966) e Sampaio (1982).13 Correio da Manhã, dezembro de 1949 e janeiro de 1950.14 Durante todo o processo sucessório, foram ventiladas, no PSD, as candidaturasde Nereu Ramos, Cristiano Machado, Ovídio de Abreu, Adroaldo Mesquita daCosta, Válter Jobim, Pinto Aleixo, Góis Monteiro, Miguel Couto Filho, IsraelPinheiro, Carlos Luz, Barbosa Lima Sobrinho, João Neves da Fontoura, Cirilo

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Júnior, Pereira Lira e a já mencionada candidatura suprapartidária de AfonsoPena Júnior.15 Os resultados oficiais da eleição presidencial de 1950 foram: Getúlio Vargas –3.849.040 votos; Eduardo Gomes – 2.342.384 votos; Cristiano Machado –1.697.193 votos; e João Mangabeira – 9.466 votos. TSE, Dados estatísticos, v. 7.16 TSE, Dados estatísticos, v. 7.17 Em 1947, houve eleições suplementares para o preenchimento de 19 cadeirasna Câmara dos Deputados (TSE, Dados estatísticos, v. 7).18 TSE, Dados estatísticos, v. 7.19 Ver Abreu et al. (2001).20 Embora o candidato do PSD em Pernambuco fosse Agamenon Magalhães, ex-colaborador de Getúlio durante todo o Estado Novo, este preferiu apoiar ocandidato da UDN, João Cleofas, que terminou derrotado por Agamenon erecebeu como prêmio de consolação o Ministério da Agricultura. Ver, a respeitodo episódio, o relato de Amaral Peixoto em Camargo et al. (1986, p.321-22).21 Clemente Mariani foi ministro da Educação, e Raul Fernandes, de RelaçõesExteriores. Ver Abreu (2001) e Lacerda (1978).22 Sobre a Banda de Música da UDN, ver Benevides (1981), entre outros.23 Conversa entre o deputado Gurgel do Amaral e o deputado Afonso Arinos, em15.02.52. Arquivo Getúlio Vargas, CPDOC/FGV, ref. GV52.02.21/1 (Novais,1983, p. 14).24 Ver Hippolito (1978) e Andrada (1977).25 Em 12 de dezembro de 1952, o Correio da Manhã noticiava a existência de umacarta de Amaral Peixoto, já então presidente nacional do PSD, dirigida ao presidenteGetúlio Vargas, referindo-se abertamente à luta que travava com o deputado JoãoGoulart, presidente nacional do PTB. Segundo o jornal carioca, Amaral queixava-se dos favores que o Catete concedia aos trabalhistas, “em fase de reorganização earregimentação eleitoral”. O PTB estaria desfalcando o PSD, “oferecendo as boasgraças do Catete para os que se transferissem para o partido”. Amaral jamaisconfirmou nem desmentiu a existência da carta. Ver Hippolito (1985, p. 95).26 Sobre a impopularidade de Getúlio no período mais agudo da crise, ver Jurema(1977), entre outros.27 Discurso de Aliomar Baleeiro (30.03.1954). Anais da Câmara dos Deputados, v.II, p. 754-61, 1954.28 Ver a relação nominal da votação do impeachment em Novais (1983, p. 294-96).29 Em 5 de agosto de 1954, elementos ligados à guarda pessoal de Getúlio Vargasatentaram contra a vida de Carlos Lacerda. No atentado, morreu o major daAeronáutica Rubens Florentino Vaz. Ver Abreu et al. (2001).30 Discurso de Aliomar Baleeiro (09.08.1954). Anais da Câmara dos Deputados, v.XIV, p. 222-31, 1954.

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31 Idem, p.3, 232-33.32 Discurso de Herbert Levy, 10.08.1954. Anais da Câmara dos Deputados, v. XIV,p. 323-29, 1954. Os deputados presentes estão relacionados às p. 283, 330-31.33 Nos dois dias, estavam presentes 41 deputados do PSD. Anais da Câmara dos

Deputados, v. XIV, p. 385, 412-13, 540, 563-65, 1954.34 Discurso de Gustavo Capanema, 17.08.1954. Anais da Câmara dos Deputados,v. XIV, p. 795-823, 1954. Vale lembrar que, nesse dia, a Mesa registrou a presençade 76 deputados, dos quais 37 do PSD. Anais da Câmara dos Deputados, v. XIV, p.737, 789-90, 1954.35 Anais da Câmara dos Deputados, v. XIV, p. 823, 1954.36 É consensual a noção de que a solução política encontrada para a crise de 1954adiou por dez anos o golpe de 1964. Ver, entre outros, Hippolito (1985); D’Araujo(1982, 1996); Amaral Peixoto (1960); Camargo et al. (1986); Brandi (1983).37 Ver, a propósito, a atuação do Instituto Superior de Estudos Brasileiros – Iseb –em Toledo (1977).38 O avanço da urbanização pode ser avaliado pelos dados do Censo Demográfico

de 1960, do IBGE. Em 1950, a população rural era de 33.101.000 hab. (63,8%da total), e a urbana era de 18.783.000 hab. (36,2%). Em 1960, a populaçãorural era de 38.976.000 hab. (caindo para 54,9% da total), e a urbana passou a31.991.000 hab. (elevando-se para 45,1% da total).39 Os números finais da eleição presidencial de 1955 foram: Juscelino Kubitschek– 3.077.411 votos; Juarez Távora – 2.610.462 votos; Ademar de Barros –2.222.725 votos, e Plínio Salgado – 714.379 votos. TSE, Dados estatísticos, v. 7;Correio da Manhã, 25.01.1956.40 Para o Programa de Metas, ver Lafer (1970) e Benevides (1976). Para osdepoimentos sobre a campanha de Juscelino e seu compromisso com promessasconcretas de campanha, ver principalmente Archer (1977-78), Oliveira Brito(1983), Guimarães (1971), Jost (1983), Chaves (1977, 1978), Joffily (1983) eRiedinger (1988).41 Ver a evolução da representação partidária na Câmara dos Deputados emHippolito (1985, p. 58).

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João Trajano Sento-Sé*

Resumo. O artigo analisa a construção do Partido Democrático Trabalhista nadécada de 1980, tomando como cenário privilegiado o Rio de Janeiro. Concentra-se na análise de entrevistas com lideranças que estavam ligadas ao partido,divulgadas na coluna Que socialismo é esse?, do jornal Espaço Democrático. Aí,atenta para o tratamento dado aos temas democracia, socialismo e trabalhismo,revelando os dilemas e as divergências quanto à definição do novo partido. Chamaa atenção para a importância política que o PDT teve no cenário do Rio de Janeiro,tanto no âmbito municipal, quanto no estadual.

Palavras-chave: PDT. Democracia. Socialismo. Trabalhismo.

Apresentação

Dada como perdida no que diz respeito à economia,politicamente a década de 1980 foi das mais intensamente vividasna história brasileira recente. Seu início foi marcado pelo retornodos exilados ao longo do Regime Militar e pela sua reincorporação,

* João Trajano Sento-Sé é cientista político e professor do Departamento deCiências Sociais da UERJ.

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junto com os demais cassados, à vida política partidária. No outroextremo, em 1989, o Brasil deu um passo decisivo no processo dedemocratização ao realizar a primeira eleição presidencial direta desde1960. Entre um momento e outro, ambos marcados por grandesmobilizações cívicas, o País viveu uma série de experiências históricas,como as eleições estaduais de 1982, a campanha pelas diretas em1984, a convocação da Assembléia Constituinte em 1986 e apromulgação da “Constituição Cidadã”, em 1988. Esse é, portanto,um breve período, que ainda há de suscitar o interesse de muitoshistoriadores e estudiosos da política.

Uma das características mais acentuadas dessa década foi alaboriosa atividade voltada para a reestruturação do sistema políticodemocrático, devastado pela ditadura que se encontrava em vias deexaustão. Nessa perspectiva, lideranças (antigas e novas, já em plenaatividade ou retornando do ostracismo imposto pelos militares)moveram-se com o intuito de interferir na nova ordem que seinstituía, de firmar posições e imprimir uma certa direção aosacontecimentos futuros. Se desejamos fazer um recorte singular doquadro macropolítico, com a intenção de recuperar alguns aspectosde um processo tão relevante para os desdobramentos políticosposteriores quanto intenso para a fundação de uma ordemamplamente democrática no Brasil, temos, no Rio de Janeiro, umdos cenários privilegiados de análise.

Tradicionalmente, a cidade do Rio de Janeiro funcionou comoreferência de alcance nacional ao longo de toda a história políticado País. Ainda que sua importância tenha declinado desde atransferência da capital federal para Brasília e que a fusão, ocorridaem 1975, tenha representado uma redefinição de seu perfil, a cidadedo Rio de Janeiro preserva, ainda hoje, algo da vocação política quelhe conferiu uma certa peculiaridade na história republicanabrasileira, estendendo ao estado de que agora é capital um pouco desua antiga mística. Na década aqui em questão, a vida política localesteve fortemente associada à política nacional, e isso se deveu, emgrande parte, à presença da liderança de Leonel Brizola.

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De volta do exílio, Brizola desembarcou no Rio de Janeirodecidido a fazer dali a base para a realização de uma antiga ambição,prematuramente abortada pelo movimento militar de 1964: chegarà presidência da República, confirmando sua condição de herdeiroe continuador da obra varguista e trabalhista. Identificando o Riode Janeiro como o “tambor político” da República, Brizola fixou aliseu domicílio eleitoral, tornando-o a base de onde articularia a criaçãoe consolidação de um novo partido trabalhista. O fato de seu lídermáximo ter se radicado no estado fez com que o chamado novotrabalhismo e os debates a ele relacionados tivessem, no Rio deJaneiro, uma repercussão bastante significativa. Historicamente, essevínculo já havia sido estabelecido em 1962, quando Brizola alcançouvotação expressiva como candidato a deputado federal pelo entãoestado da Guanabara. Em seu retorno, tal vínculo foi rapidamenterefeito, o que é patenteado pela vitória consagradora na eleição parao governo do estado, em 1982.

Passo decisivo para o cumprimento dos desígnios seus e dosque com ele se irmanaram, a vitória eleitoral de 1982 representouum impulso para a consolidação das bases políticas indispensáveis àconcretização do projeto maior de Brizola. Sua realização, contudo,dependia da definição dos rumos políticos, ainda imprecisos evoláteis. Uma série de tarefas impunha-se. A organização do novopartido trabalhista em nível nacional e a definição de uma agendacapaz de viabilizá-lo politicamente, conferindo-lhe um perfilcompetitivo, eram duas delas. O vínculo à tradição trabalhista e aoantigo PTB foi, sem dúvida, o poderoso mote inicial a articular taisesforços. Porém, tal vínculo, a despeito de sua força simbólica, nãoera infenso a problemas. Embora fixada na memória política comouma corrente à esquerda no espectro político e comprometida comas causas populares, a tradição trabalhista também era associada auma série de práticas tomadas por demagógicas, assistencialistas econservadoras. Além disso, seu desempenho pretérito estavainevitavelmente ligado a alguns dos aspectos mais traumáticos doregime extinto em 1964. Finalmente, ao longo do tempo,compreendido entre a extinção dos antigos partidos e a retomada

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do pluripartidarismo, o País sofreu modificações profundas, o quereduziria a pura e simples retomada da tradição trabalhista a ummero revival extemporâneo e anacrônico.

A perda da legenda do PTB para sua concorrente, Ivete Vargas,representou um duro golpe sofrido por Brizola, ainda em 1980. Adisputa mereceu cobertura atenta por parte da imprensa e propicioulances que merecem ficar registrados na crônica política nacionalpor sua bizarrice e pela devoção com que os envolvidos dedicaram-se à conquista da antiga legenda. Seu desfecho resultou na perda dequadros importantes para o partido que deveria representar o novotrabalhismo sob o comando de Brizola. Com a deserção de algunsantigos trabalhistas, principalmente daqueles radicados no antigoestado do Rio de Janeiro, figuras sem vínculos com o antigotrabalhismo ganharam maior densidade nos debates. Antigos quadrosdo PTB original, lideranças consolidadas que não haviam militadonaquele partido e jovens promissores, dando seus primeiros passosna atividade política, protagonizaram um enorme esforço deformulação, no que estiveram implicados não poucos confrontos,cisões e acordos pontuais. É fundamentalmente sobre taisintervenções que versa este artigo. Elas são manifestações deconvicções políticas, valores e princípios normativos de atoresempenhados na definição programática e ideológica do novo partidoque então se organizava, o PDT. Além disso, testemunham, aindaque parcialmente, a atmosfera que vigorava em meados dos anos de1980 e a intensa mobilização política decorrente do processo dereinstitucionalização da democracia no Brasil.

O jornal Espaço Democrático

Houve um tempo, ainda não muito longínquo, em que aimprensa escrita era um instrumento eficaz e fartamente utilizadona divulgação dos valores e posições dos partidos políticos. Entreseu material de propaganda, cada partido de expressão contava comum periódico de circulação regular, voltado não somente para seus

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membros e militantes, mas, também, para um público um poucomais amplo, encarado como potencialmente simpático às posiçõesdefendidas pela agremiação partidária. No caso do PDT, nos anosde 1980, o jornal Espaço Democrático cumpriu esse papel.

O Espaço Democrático começou a circular no primeiro semestrede 1984, quando o governo Brizola completava um ano. Criadosob os auspícios do Instituto Alberto Pasqualini (órgão do PDTdestinado a funcionar como centro de reflexão e formulação teóricado partido e de tratar de seu acervo documental, da produção dematerial e implementação de atividades ligadas à sua doutrina), oEspaço Democrático era um periódico de circulação semanal, comtiragem de três mil exemplares, disponível em algumas bancas dejornal ao preço, no ano de seu lançamento, de trezentos cruzeiros.

Ao longo do tempo em que circulou de forma regular, osemanário pedetista sofreu algumas modificações. É possível, todavia,verificar, no período aqui estudado (o ano de 1984 e os primeiroscinco meses de 1985), algumas regularidades em sua linha editorial.Em suas doze páginas, eram publicadas matérias sobre a conjunturapolítica nacional e os acontecimentos da última semana. Haviatambém artigos sobre questões internacionais relevantes e, em espaçomais reduzido, sobre questões locais dos vários estados da federação.A maior parte do jornal, no entanto, era destinada à publicação decolunas assinadas por articulistas vinculados ao partido, a matériassobre as várias seções do PDT, a entrevistas com intelectuais e figuraspúblicas, a informações sobre iniciativas do governo Brizola e adiscussões sobre os rumos futuros da política nacional. Nas discussõessobre política, não faltavam críticas diretas a outras agremiaçõespartidárias. Embora compreensivelmente mais raras, notícias e artigossobre acertos de contas em querelas internas do partido tambémtinham seu lugar.

Uma variedade tão grande de intervenções oferece uminteressante quadro de alguns dos principais debates travados naqueleperíodo decisivo para a democracia brasileira, com o atrativoadicional de estarem marcadas por clivagens políticas e ideológicasabertamente assumidas. Entre essa variedade de material, uma seção,

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publicada entre março de 1984 e maio de 1985, merece atençãoespecial. Chamava-se Que socialismo é esse? Nela, o jornalista paulistaJosé Fucs entrevistava lideranças e quadros do partido sobre o modelopolítico que consideravam mais adequado para o Brasil. Como opróprio título sugere, a seção era um espaço para que os entrevistadosexplicitassem o modo como entendiam o compromisso com osocialismo, defendido oficialmente pelo partido, desde antes de suacriação formal, como princípio ideológico orientador de sua açãopolítica. Publicada sempre em página inteira e com chamadadestacada na primeira página do jornal, essa seção originou-se deum conjunto de vinte entrevistas feitas por José Fucs. Em sua ediçãode 26 a 31 de março de 1984, o Espaço Democrático descrevia assima origem da seção:

A partir de uma entrevista histórica de Darcy Ribeirono Pasquim, sobre as nuances de um governo socialistademocrático, o jornalista paulista José Fucs teve a idéiade aprofundar o tema. Durante mais de um ano ouviulideranças do PDT – de Juruna a Brizola – numtrabalho que acabou resultando em seu livro “Quesocialismo é esse?”. Nesse último número, iniciamosa série de vinte dessas entrevistas, a começar pelopresidente nacional do PDT, Doutel de Andrade.1

Aparentemente, a idéia teve boa repercussão, e o número deentrevistas aumentou das vinte iniciais para um total de quarenta ecinco.2 A consulta à coleção revela uma ausência significativa: adespeito da menção a ela, no texto de abertura, a suposta entrevistacom Leonel Brizola jamais foi publicada. A omissão dessa entrevista(caso ela tenha realmente se realizado) talvez se explique pelo próprioconteúdo do que estava em discussão: os fundamentos do perfilprogramático e ideológico do partido. Ao não trazer a público suaspróprias convicções, Brizola punha-se a salvo das contendasdecorrentes dos diversos sentidos atribuídos ao socialismo,

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preservando, ao mesmo tempo, sua posição de líder e árbitro doconfronto que se travava publicamente.

A relevância historiográfica da análise crítica dessas discussõesé indiscutível. Afinal, elas são trazidas a público num momento emque o partido estava em franco processo de organização, governandoum dos mais importantes estados da federação, num contexto emque faziam parte da agenda os debates em torno do processosucessório federal, do qual o PDT esperava participar com grandeschances de fazer de seu maior líder o novo presidente da República.Finalmente, cabe salientar o fato de que estavam alinhadas ao partidoalgumas figuras históricas cujas biografias, em muitos casos, erammarcadas pela militância, antes do Regime Militar e/ou durante ele,em campos concorrentes, quando não opostos.

A seção Que socialismo é esse?, portanto, pode ser encarada comouma tribuna ampliada, em que forças diversas, forjadas em trajetóriasvariadas, disputavam o significado de sua participação naquelemomento histórico singular. Nela, temos intervenções de antigostrabalhistas ligados ao ex-presidente João Goulart, de trabalhistasoutrora identificados com a linha “mais radical” assumida por Brizolaantes do golpe de 1964, de trabalhistas outrora identificados com ascorrentes “fisiológicas” do antigo PTB, de lideranças do antigo PSB,de remanescentes da luta armada, de jovens que haviam ingressadona política já no Regime Militar e de representantes das esquerdasmarxistas e não-marxistas, cabendo, inclusive, a intervenção de umex-membro da ARENA e do PDS, filho de pai ilustre: Ademar deBarros Filho. A pluralidade de filiações era atestada pelo breve resumobiográfico apresentado como cabeçalho da cada entrevista, em queeram destacadas as principais informações acerca da trajetória políticado entrevistado.

O mote do socialismo tem sua razão de ser. Ainda em 1979,quando a movimentação em torno da fundação de um novo partidotrabalhista ganhava força, um encontro, realizado em Lisboa, reuniuexilados brasileiros espalhados por várias partes do mundo. Desseencontro, de que também fizeram parte figuras radicadas no Brasil,foi produzido um documento que ficou conhecido como Carta de

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Lisboa, síntese da atualização do trabalhismo ao novo contextonacional e internacional. Nele, ficou estabelecido que o novotrabalhismo seria uma força política pautada pela implantação deum regime socialista de corte democrático no Brasil.

Em 1982, no auge da campanha pelo governo do estado doRio de Janeiro, Darcy Ribeiro, candidato a vice-governador na chapaencabeçada por Brizola e trabalhista histórico ligado a João Goulart,lançou a máxima do socialismo moreno, entendido como o caminhobrasileiro para a fundação de uma ordem política socialista no Brasil.A máxima alcançou enorme sucesso, tornando-se uma das marcasregistradas da campanha vitoriosa. Cabia, após a primeira vitória,definir com precisão o seu conteúdo. Desse modo e tendo em vistao perfil de vários quadros que se empenharam na fundação do novopartido trabalhista, a discussão sobre o tipo de socialismo a serencampado no Brasil aparecia como matéria central, quando, adespeito da vitória eleitoral no Rio de Janeiro, o novo partidotrabalhista ainda mobilizava esforços para consolidar-seinstitucionalmente.

As razões do debate

O debate em torno do socialismo que seria esposado pelo novopartido trabalhista explicita, de imediato, ao menos uma conver-gência, conquanto precária: a aceitação geral, ainda que em algunscasos meramente retórica, do socialismo como princípio “filosófico”para a orientação do partido. O mote de confluência parecia fornecerum solo comum e aproximar trajetórias tão díspares entre si comoas do trotkista Edmundo Muniz, do eurocomunista Pedro CelsoUchoa Cavalcante, do trabalhista histórico Doutel de Andrade, daex-militante da ALN Moema São Thiago, do Cacique Juruna e dolíder das Ligas Camponesas Francisco Julião. Isso para não mencionaros casos de Ademar de Barros Filho e do antigo udenista “bossanova” José Carlos Guerra. O arco era, portanto, amplo e variado.

Abarcar lideranças expressivas das diversas correntes que entãose aglutinavam no PDT foi, por razões óbvias, uma estratégia

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intencional dos responsáveis pela seção Que socialismo é esse? Afinal,a formação desse novo partido, que provisoriamente se chamavaPDT, era um projeto em gestação, forjado em um contexto demudanças políticas importantes e de expectativas otimistas. Sendoassim, eram recorrentes as afirmações favoráveis a que o novo partidotrabalhista fosse caracterizado pelo pluralismo e pela capacidade deagregar correntes e experiências variadas.

A despeito de tal orientação, ou em função dela, asconvergências verificadas eram acintosamente precárias. A adoçãodo socialismo e a defesa do pluralismo interno não dissimulavamtensões e conflitos, o que, de resto, seria previsível e mesmo salutarpara a intensidade do debate, desde que conduzidos de forma hábile paciente. Curiosamente, contudo, as discrepâncias praticamentenão aparecem de forma explícita nas entrevistas. Elas são flagradasapenas mediante a leitura atenta, nas entrelinhas dos posicio-namentos quanto à ênfase que seria dada aos princípios definidoresdo novo partido e às filiações históricas e teóricas que deveriamancorá-lo. Uma das raras exceções é a avaliação do ex-membro daesquerda democrática da UDN, liderança histórica do antigo PSBe, então, presidente interino do PDT, professor Bayard Boiteux:

O PDT é um partido democrático – ainda com algunssenões autoritários – mas segundo o meu ponto devista, é o melhor programa dentre as organizaçõespolíticas. Afirma-se socialista, porém, para trans-formar-se em um partido verdadeiramente socialista,precisa fazer importantes modificações em seuprograma, métodos de trabalho e atitudes de seusdirigentes (Boiteux, 1984).

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A dureza com que Bayard Boiteux avalia a precariedade daestrutura organizacional do partido não é o tom dominante das

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entrevistas. Nelas, o que se pode observar são as nuanças das diversaspercepções sobre o perfil desejado para o partido e sobre seu papelhistórico. Uma boa pista para se perceberem as disputas entre asvárias tendências é o debate em torno da legenda. Disputas pelonome do novo partido trabalhista fazem parte dessa história desdesuas origens. Nessas querelas, não estavam em jogo somente prefe-rências casuais. No contexto em que o sistema político partidárioreestruturava-se e em que novos partidos movimentavam-se para sefirmar no novo quadro institucional, as disputas por posições noplano simbólico não eram irrelevantes. Após a já mencionada perdada sigla histórica do PTB, a escolha da nova denominação recaiu noPDT, Partido Democrático Trabalhista. Por essa sigla, marcava-setanto a filiação do partido à tradição trabalhista, quanto se acentuavaseu conteúdo democrático. No entanto, ao que tudo indica, talescolha foi encarada como provisória por várias correntes, recursode emergência num contexto em que o partido devia se prepararrapidamente para o pleito de 1982. Passada essa fase inicial, cabiaretomar a discussão e adotar uma marca mais condizente com alinha mestra do partido.

A discussão sobre a mudança de legenda tomava espaço nadadesprezível do jornal Espaço Democrático. Regularmente, erampublicados artigos, entrevistas e reportagens em que posições acercada mudança da sigla e da criação de um novo partido eram assumidas.Na seção Que socialismo é esse?, na parte superior esquerda da página,alinhada ao cabeçalho em que constavam os dados do entrevistado,aparecia a sigla que, aparentemente, ele esposava. As propostas maisrecorrentes eram PSPTB (Partido Socialista Popular TrabalhistaBrasileiro), PSDT (Partido Socialista Democrático Trabalhista),PDTS (Partido Democrático Trabalhista Socialista) e PTS (PartidoTrabalhista Socialista). Em raros casos, não há registro de qualquersigla ao lado dos dados do entrevistado. Embora essa possa pareceruma discussão bizarra, tanto quanto as propostas aventadas, percebe-se claramente ter havido uma tendência a fixar no próprio nome dopartido sua inclinação socialista sem, contudo, abrir mão do legadotrabalhista e, simultaneamente, firmar seu compromisso com a democracia.

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Nos debates sobre o partido e sobre a legenda que deveria seradotada, três eixos centrais destacavam-se claramente: a democracia,o trabalhismo e o socialismo. Nos significados atribuídos a cada umdesses termos, as diferentes filiações revelavam-se e antecipavam asdificuldades de articulação que posteriormente marcariam a trajetóriado partido que, finalmente, manteria a denominação inicial – PDT.

Socialismo e democracia

Entender os problemas do arranjo institucional que entraramem colapso com o golpe de 1964 foi uma das árduas tarefas impostasà geração que testemunhou a débâcle da frágil democracia fundadano Brasil em 1945. Esse trabalho ocupou alguns dos mais talentososanalistas políticos dessa mesma geração e resultou no reconhecimentoda importância que deveria ser dedicada à preservação do sistemapolítico representativo e de suas instituições. Simultaneamente etambém como parte do doloroso ajuste de contas com a experiênciaabortada pelo golpe militar, consolidou-se a percepção de que oradicalismo de certos setores da esquerda, do qual faziam parte Brizolae seus seguidores, aliado à negligência para com os dispositivos dachamada democracia formal, concorreu decisivamente para a imersãodo País no autoritarismo e no arbítrio. Certamente, esses fatorescontribuíram decisivamente para que se criasse uma forte tendênciaao consenso em torno da preservação e consolidação das instituiçõesdemocráticas.

No caso do novo trabalhismo, exatamente por estar seconstituindo em torno da liderança de Brizola, a preocupação emfirmar compromisso com a institucionalidade democrática foibastante enfatizada. Eram recorrentes as declarações quanto aoimperativo de se fortalecerem as instituições democráticas, àimportância do pluralismo partidário e ao estímulo à participaçãopolítica da sociedade através das suas várias formas associativas. Adespeito das menções recorrentes a cada um desses aspectos dademocracia formal, pode-se perceber claramente que era pelo terceiroque alguns dos entrevistados procuravam diferenciar o projeto do

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socialismo democrático. É esse o espírito traduzido pelo depoimentode Brandão Monteiro, representante da UNE na frente deMobilização Popular, nos idos de 1962, e então secretário detransporte do governo Brizola:

Em primeiro lugar nós temos que garantir a conso-lidação democrática do país. Não podemos dar umsalto para o socialismo sem que as massas organizadaspossam direcionar o nosso processo político. Então,a primeira tarefa é a unificação democrática do país(Brandão Monteiro, 1984).

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A expectativa de que as “massas organizadas”, no dizer deBrandão Monteiro, assumissem a condução do processo políticoera reforçada por Luiz Alfredo Salomão, quadro da nova geraçãoque se filiara ao PDT egresso do antigo MDB e então secretário deobras e de meio ambiente do estado do Rio de Janeiro: “A sociedadedeve estar envolvida não apenas na consulta e na definição doplanejamento, como na definição e na supervisão dos atosgovernamentais” (Salomão, 1984).

Temos, assim, uma combinação curiosa entre a adoção dademocracia representativa e a expectativa de que fossem criados, amédio prazo, mecanismos bastante próximos do que poderia serentendido como uma democracia direta, com uma sociedade civilatuante e em estreita cooperação com agentes e instituições estatais.Essa era uma perspectiva não muito incomum naquele momento.Desde meados da década anterior, a sociedade civil brasileira conheciaum processo de intensa mobilização, revelando uma vitalidade rarana história política do Brasil. É compreensível que ela aparecessecomo uma referência importante para aqueles que defendiam aconstrução de uma sociedade democrática que, sendo simulta-neamente socialista, pudesse ir além da pura e simples adoção dosmecanismos próprios das democracias liberais organizadas com basena representação parlamentar. Era possivelmente animado por essaexpectativa de dar alguns passos à frente em relação ao modelo

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político liberal que Pedro Celso Uchoa Cavalcante, intelectualafinado com as teses daquilo que ficou conhecido comoeurocomunismo e principal redator da famosa Carta de Lisboa,rejeitava o modelo social-democrata:

Eu não sou social-democrata, sou até muito críticoem relação à social-democracia, como também nãofaço parte do “socialismo real”. Eu me identifico, àguisa de síntese, com uma busca que existe hoje nomundo para conciliar essa vontade igualitária que osocialismo carrega consigo e o desejo de liberdade quevem do liberalismo. O socialismo democráticosimboliza essa busca, abrindo a possibilidade históricade avançar a igualdade e ampliar a liberdade [...].Grosso modo, a social-democracia é uma propostade reforma numa sociedade capitalista, onde apropriedade dos bens de produção, para usar umalinguagem marxista, não é atacada (Uchoa Cavalcante,1984).

A despeito do uso da terminologia marxista, o socialismo doredator da Carta de Lisboa era inspirado, conforme seu própriodepoimento, nos valores iluministas, no humanismo e no socialismoutópico. Também para ele, a construção do socialismo implicavaneces-sariamente a ampla participação popular nos processosdecisórios. No entanto, Uchoa Cavalcante posicionava-se maisclaramente quanto à importância das instituições políticas aointroduzir, no debate, a proposta de descentralização do poderpolítico e o conseqüente fortalecimento da municipalidade. Haviaem curso um trabalho de engenharia institucional, e era dele queseriam produzidos os mecanismos de ampliação dos canais departicipação política.

Ainda na passagem extraída do depoimento de UchoaCavalcante, observa-se a preocupação de diferenciar o socialismo alidefendido daquele ainda vigente na União Soviética. Essapreocupação aparece em praticamente todas as entrevistas. A

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distinção entre o socialismo moreno e o “socialismo real” tinha váriossignificados. Ela representava, para alguns, a rejeição peremptóriado modelo soviético, assim como de todos os demais regimes departido único. Em outros casos, tal rejeição restringia-se simples-mente à adoção dos meios revolucionários para a instauração doregime socialista e a seus desdobramentos historicamente conhecidos,para o caso brasileiro. Havia aqueles que exaltavam abertamente osavanços sociais obtidos pelo “socialismo real”, ressalvando que taisavanços seriam alcançados no Brasil por outros meios. Finalmente,havia aqueles que fundavam sua rejeição de modo enfático narelevância que conferiam às liberdades democráticas. Emborahouvesse, em cada uma dessas grandes famílias, nuanças significativas,a tradução teórica dessa diferença pode ser expressa na percepção dolugar da teoria marxista como instrumento de análise e orientaçãopolíticas.

Historicamente, o trabalhismo brasileiro jamais se identificoucom o marxismo, mas, ao contrário, consolidou-se como umconcorrente das forças marxistas na disputa pela representaçãolegítima dos anseios dos trabalhadores e das classes subalternas. Aindaassim, as relações entre trabalhistas e marxistas não foram, no períodode 1945 a 1964, marcadas apenas por disputas. Aproximações ealianças pontuais também ocorreram.

No contexto do início dos anos de 1980, o mesmo padrão deinteração estabeleceu-se. À época em que as entrevistas foramrealizadas, a criação de um partido comunista ainda não era permitidapor lei, o que só viria a ocorrer em 1985, após a instauração daNova República. Diante disso, e mesmo após a recriação do PCB edo PC do B, não poucos marxistas optaram por se integrar na frenteampla de oposição ao regime militar postulada pelo PMDB ou porse engajar na construção do PT. Ainda assim, alguns marxistasdecidiram unir forças em torno do projeto de fundação do novotrabalhismo, recuperando os contatos mantidos em tempos passados.Foi Francisco Julião, antigo líder das ligas camponesas, quemdeclarou:

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[...] quando nos encontramos, fiz uma consulta préviaao Brizola: o seu projeto, essa idéia de fundação deum partido trabalhista moderno, dinâmico, jávisualizando o socialismo admite a colaboração de umgrupo de marxistas independentes que pretendemformular toda a vida política do país, marchar paraum projeto eminentemente nacionalista e que querdescobrir na própria história do povo brasileiro, nassua grandes lutas sociais aquilo que nós consideramoscomo válido para a implantação do socialismo noBrasil? Ele disse: sim, eu aceito a colaboração tambémdo pensamento científico, embora eu seja umpragmático, um espiritualista [...] (Julião, F., 1984).

O fato de não se apresentar como um partido marxista nãoimpedia, portanto, que o PDT abrigasse lideranças históricas afinadascom o marxismo. Esse era o caso de Julião, tanto quanto o deEdmundo Muniz, intelectual trotskista que chegava mesmo adeclarar-se favorável à opção revolucionária:

Eu acredito que chegou o momento, no Brasil, decriar um partido revolucionário, capaz de mobilizaras massas de todas as camadas sociais, conforme aoriginalidade brasileira, tendo emvista o desen-volvimento desigual de nossa vida econômica (Muniz,1985).

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Continuando na mesma linha de raciocínio, buscandocompatibilizar a opção revolucionária com a defesa das liberdadesdemocráticas, Edmundo Muniz afirmava:

Para mim, todo socialismo é democrático. O termoaí é uma redundância. Não há socialismo semdemocracia. Eu considero a União Soviética, porexemplo, como uma nação democrática. Ela não

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Pelo depoimento de Edmundo Muniz, pode-se depreender aexistência de uma perspectiva à esquerda mais radical, embora,mesmo nesse caso, a combinação entre a perspectiva marxista erevolucionária, por um lado, e o imperativo da liberdade política,por outro, preservasse a adesão amplamente declarada ao pluralismoe às liberdades políticas. A adoção do marxismo, bem como a deseus principais postulados, como teoria orientadora da linha dopartido era, no entanto, claramente residual. Não só a defesa daopção revolucionária era rejeitada como indesejável ou inaplicávelpara o caso brasileiro, mas também a própria centralidade da luta declasses como chave para o entendimento das contradições básicasda sociedade era encarada por vastos setores do partido, como recursoprecário para a orientação da atividade política. Quanto a esse ponto,Darcy Ribeiro estava entre os que se manifestavam de forma maiscontundente:

Se quisermos uma explicação para a maior parte dascoisas, temos que partir do fato de que o quedetermina o destino de cada pessoa é a classe em queela nasceu. Nada é explicável sem referência à luta declasses. Mas é uma estupidez querer reduzir tudo àluta de classes. Por exemplo, mais importante do quea luta de classes é a lei da gravidade. Mas ninguémdiria que quando o catarro cai para baixo do nariz épela lei da gravidade. Não é. É outra coisa. Agora,tem muita gente que confunde o catarro com a lei dagravidade e diz que tudo é luta de classes. Tem outrascoisas, além da luta de classes no mundo. Há, porexemplo, a infecção intestinal (Ribeiro, 1984).

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necessita mais realizar a sua revolução, o que elanecessita é de uma liberalização política (idem).

Ao rejeitar a luta de classes como eixo de análise para o conflitopolítico, Darcy Ribeiro, simultaneamente, definia a luta socialistacomo uma tarefa predominantemente política, voltada para a

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conquista dos instrumentos de poder do Estado mediante aparticipação nos processos eleitorais para, a partir de então, “passaro Brasil a limpo”, efetuando as reformas estruturais necessárias àconsagração da democracia social.

A despeito da convergência na defesa do pluralismo político,são perceptíveis as diferentes perspectivas sobre o alcance e o sentidodo termo democracia quando associado ao mote do socialismo. Taisdiferenças podiam ir bem mais longe do que as nuanças aquiapontadas. Do mesmo modo, eram menos compatíveis entre si doque sugere o tom cuidadoso com que muitas vezes as várias posiçõeseram assumidas. É possível perceberem-se filiações diferentes (ossocialismos utópicos, os marxismos, o humanismo, o solidarismocristão etc.), perspectivas mais identificadas com as chamadasliberdades dos antigos contrapostas a outras, mais afinadas com asditas liberdades dos modernos.3 A ênfase na referência às “massas”organizadas, por exemplo, combinava apenas precariamente com asposições mais atentas para a realização de mudanças constitucionaiscapazes de alterar os padrões de distribuição de poder. O discursofavorável ao fortalecimento das instituições deixava várias vezes deser prioritário quando cotejado com a urgência de mudançasestruturais radicais. Finalmente, o imperativo da organização dasociedade civil era, com freqüência, confrontado com a estratégiade tomada do poder do Estado, ainda que pelos meios legais econstitucionalmente estabelecidos. Se a percepção do sentido dademocracia surpreende um leque variado de posicionamentos, nãomenos multifacetadas eram as formulações acerca da combinaçãodo socialismo com a tradição trabalhista brasileira. Esse é o pontotratado a seguir.

Trabalhismo e socialismo

Tradicionalmente, as relações entre trabalhistas e socialistasno Brasil foram tão ambíguas quanto aquelas que pautaram oscontatos entre os primeiros e os marxistas ligados ao antigo PCB.Na república de 1945, o PSB foi formado a partir da mobilização

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pelo fim do Estado Novo. Nessa ocasião, portanto, tínhamossocialistas irmanados com os grupos que viriam a criar a UDN,contra Vargas e pela redemocratização. Esse dissenso de origem jamaisse desfaria completamente, mesmo após udenistas e socialistasafastarem-se uma vez deposto o inimigo comum e cerrarem fileirasem campos opostos e partidos diferentes.

Ao longo do regime de 1945 a 1964, o PSB foi um partidorelativamente pequeno, predominantemente urbano, de classe médiae sem grande penetração junto às classes trabalhadoras. Nesseperíodo, seus quadros e líderes eram, em sua maioria, bastante críticosem relação aos métodos do PTB. Ainda assim, no contexto dosanos de 1980, quando a legislação também interditava a criação deum partido socialista, muitos dos ex-membros do antigo PSBcerraram fileiras no projeto voltado para a criação de um novo partidotrabalhista. O depoimento de José Maria Rabelo, ex-dirigente doantigo PSB, é elucidativo acerca tanto da postura crítica de algunssocialistas, quanto à revisão feita por eles àquele momento:

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Nós que vínhamos do antigo PSB – Partido SocialistaBrasileiro – carregávamos conosco os mesmospreconceitos que as elites brasileiras sempre tiveramcontra o trabalhismo. Nós nos deixávamosimpressionar pelos aspectos adjetivos do fenômenotrabalhista – o peleguismo, o fisiologismo de grandessetores do antigo PTB, a inegável corrupção de muitoslíderes, etc. e olvidávamos os seus aspectosfundamentais, substantivos, que coincidiam com ospontos mais altos de nossa história contemporânea,da história brasileira (Rabelo, 1984).

O mesmo tom pode ser observado no depoimento de MoemaSão Thiago, ex-militante da ALN, quando se recorda da aproximaçãode seu grupo, ainda no exílio, a Brizola: “Tentávamos pegar otrabalhismo naquilo que ele tinha de positivo, naquilo que ele tinhade compromisso social, de mudanças profundas nas relações detrabalho e de participação na riqueza nacional” (São Thiago, 1984).

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Pode-se perceber, em ambos os depoimentos, uma tentativade releitura do papel do antigo trabalhismo no cenário político esocial brasileiro. Simultaneamente, há implícita a expectativa de“purificação” dos antigos vícios trabalhistas – o peleguismo, acorrupção, o tráfico de influência – em sua versão moderna. Emsuma, talvez fosse possível dizer que quadros oriundos de outrascorrentes da esquerda alimentassem a expectativa de fundação deuma espécie de trabalhismo ilustrado, impermeável aos vícios desua versão original.

O reconhecimento de algumas virtudes do antigo trabalhismoera ponto comum entre boa parte daqueles que não remontavamsua carreira política ao velho PTB. Cabia tanto extrair algumas desuas teses, como atestam as posições assumidas por José Maria Rabeloe Moema São Thiago, quanto alimentar-se do lastro históricoacumulado pelas antigas lideranças trabalhistas. Era nessa segundadireção que se colocava Clóvis Brigagão, intelectual auto-exiladoque tomou contato com Brizola em Lisboa, ao descrever as discussõesorganizadas na capital portuguesa, os chamados cabildos abiertos:

Nestas discussões, o Brizola dava a parte histórica,resgatando a memória do trabalhismo, e nós, osbarbudinhos – como, no início, até ele nos chamava– que tínhamos uma inquietação do mundo de hoje,querendo abrir novos caminhos, puxávamos estahistória, que é muito importante, para os dias atuais.Houve, assim, a junção daquilo que era a tradiçãodas lutas sociais e populares, que Brizola encarnava,com os vários segmentos que representavam a lutaarmada, a luta pelo socialismo, pela soberania e peloanti-imperialismo. E a marca que cimentava esta uniãoera a nossa preocupação de resgatar a democracia paraa esquerda brasileira (Brigadão, 1984).

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Também nessa perspectiva, havia uma clara demarcação, aindaque mais sutil, dos limites impostos à contribuição da experiênciatrabalhista anterior a 1964 para sua nova configuração. O

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trabalhismo era admitido como crivo para a compreensão de umcerto experimento histórico, marcado por avanços e erros quedeveriam ser bem conhecidos por aqueles que buscavam trazer parasi a bandeira democrática e socialista. Havia, por outro lado, umaexplicação pragmática para o encontro entre as duas correntes.Anacleto Julião reconhecia que:

[...] o trabalhismo foi o maior movimento de massasque existiu no Brasil em toda a sua história. Mesmoantes de 1964, já existia uma identificação muitogrande entre os trabalhistas e os socialistas brasileiros.O Partido Socialista Brasileiro era composto degrandes personalidades, de intelectuais do maiorgabarito, mas era um partido que tinha pouca massa,exatamente porque era um partido teórico. [...]exatamente porque um precisava do outro é que nóstemos hoje a unidade dos trabalhistas e socialistas nopaís (Julião, A., 1984).

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Pelo depoimento de Anacleto Julião, temos não somente umaexplicação pragmática, mas, principalmente, a proposição de umaespécie peculiar de divisão do trabalho partidário. Por ela, caberiaaos quadros socialistas, em virtude de sua capacidade intelectual, atarefa de formulações teórica e programática do partido. Aostrabalhistas históricos, em função de sua experiência e capacidadede recrutamento das massas, competiria conferir densidade popularao novo trabalhismo.

Escusado dizer que nenhuma das posições anteriormenteapresentadas satisfazia aos antigos trabalhistas. Em linhas gerais, elesse dividiam em duas versões. De um lado, havia aqueles que viam otrabalhismo antigo como a própria experiência socialista à brasileirae, de outro lado, aqueles que encaravam o trabalhismo como aexperiência de transição brasileira para o socialismo, uma etapa,portanto, que seria futuramente superada. Da primeira vertente, odepoimento de Eduardo Chuay, ex-ajudante de ordem do gabinete

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militar de João Goulart, é elucidativo: “O trabalhismo é o socialismono Brasil. É o socialismo das condições brasileiras. Eu acho que omundo atual provou que cada nação tem o seu caminho para osocialismo” (Chuay, 1984).

Possivelmente, essa era a perspectiva da maior parte doschamados trabalhistas históricos, sobretudo daqueles que, no períodoanterior a abril de 1964, eram mais próximos de Jango. Para eles, aassociação do trabalhismo às teses socialistas representava uma espéciede retratação histórica a que estavam procedendo alguns dos seuscríticos mais ferrenhos: os próprios socialistas.

Uma segunda posição assumida entre alguns antigostrabalhistas abordava o socialismo como um passo adiante em relaçãoao antigo trabalhismo. No calor dos debates travados em meados dadécada de 1980, mesmo entre trabalhistas históricos havia aquelesque identificavam a adoção das teses socialistas como um avanço,uma radicalização das bandeiras populares empunhadas pelo antigoPTB. Foi Cibilis Vianna, ex-assessor econômico de Jango e deBrizola, quando esse último foi governador do Rio Grande do Sul,quem reconheceu que, comparativamente ao antigo trabalhismo,“[...], o socialismo democrático já é outro passo. É a continuidadedesse mesmo movimento. Hoje, nós achamos que a visão trabalhistaseguiria, normalmente, seu caminho, desembocando no socialismodemocrático” (Viana, 1984).

Embora sutil, a diferença entre os dois últimos depoimentoscitados era, na prática, bastante significativa. Entender o trabalhismocomo a versão brasileira do socialismo denotava abraçarincondicionalmente essa tradição e retomá-la do ponto em que forabrutalmente interrompida. Essa era uma perspectiva diferente,portanto, daquela que reconhecia simplesmente que o própriotrabalhismo, caso não fosse devastado por cassações e pelo exílio,acabaria se tornando algo diferente de si mesmo, o que caberia fazernaquele novo momento histórico.

Nenhuma dessas duas perspectivas encampadas pelostrabalhistas históricos aproximava-se do radicalismo com que outrossetores defendiam a necessidade, quando não a urgência, de se operar

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a superação do trabalhismo pelo socialismo. Esse era o caso, porexemplo, de Amaury Muller, que começara sua carreira política noMDB gaúcho e, como deputado federal, fora cassado pelo governoGeisel, em 1976:

Nós não podemos ficar parados no tempo e no espaço,patinando na idéia do trabalhismo porque ele nãoserve como proposta para o futuro. Se nós pregamosuma sociedade livre, aberta e igualitária, se falamosem justiça social e respeito aos direitos do trabalhador,nós temos que construir uma sociedade socialista,onde os interesses da coletividade se sobreponhamaos interesses privilegiados dos de uma minoria(Muller, 1985).

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A percepção de que o trabalhismo deveria ser superado era,dessa forma, uma posição assumida publicamente, mesmo em umveículo oficial do partido. É possível, portanto, perceber-se que aconvivência entre segmentos diferenciados no interior do PDT estavalonge de ser pacífica. As tensões eram muitas e não eram encaradascomo questões menores. Da perspectiva de dirigentes e quadros não-vinculados à tradição trabalhista original, essa corrente deveria sersuperada; ao antigo, era preciso contrapor urgentemente o novo. Opartido trabalhista deveria se tornar, rápida e inequivocamente,socialista, o que era atestado pela declaração direta e sem rodeios deSebastião Néri (1984), para quem “[...] à medida que aredemocratização avança, a tarefa do PDT vai se acabando, porqueo PDT, na verdade, é mais trabalhista do que socialista e nós temosque ser mais socialistas do que trabalhistas”.

Dessa expectativa de superação, depreende-se o sentido dodebate em torno da sigla. Não eram poucos os quadros do partidoque julgavam ter o PDT já cumprido sua missão histórica. Paraesses, o socialismo deveria ser encarado como o norte predominantedo partido, já que a tradição trabalhista realizara sua tarefa. Daí arelevância das discussões em torno da mudança do nome do partido

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e, conseqüentemente, da legenda. É evidente que tal posturaimplicava um alto nível de tensão interna, o que é atestado por LuizAlfredo Salomão, quando inquirido sobre as relações entre a tradiçãovinculada às figuras de Vargas e Jango, de um lado, e a propostasocialista, de outro: “[vejo] como um conflito potencial. O que euobservo no dia a dia da política é um embate ainda silencioso, aindanão explicitado, entre a corrente do trabalhismo tradicional e acorrente socialista” (Salomão, 1984).

Está claro que havia pontos em comum que, em muitos casose durante alguns anos, falaram mais alto do que as diferenças deperspectiva. No plano econômico, rigorosamente todos os entre-vistados defendiam a combinação da iniciativa privada com umaforte ação do Estado, entendido como agente planejador e distri-butivo. Postulavam o controle estatal das áreas estratégicas, referentesaos interesses e à segurança nacionais. Dependendo das filiaçõespolíticas e ideológicas, a definição de tais áreas abarcava desde asjazidas de minérios e de petróleo até o sistema financeiro. Aconsolidação de um Estado a um só tempo distributivista eplanejador tornaria dispensável, num primeiro momento, asocialização dos meios de produção, como sugeria, por exemplo,Theotônio dos Santos, membro fundador da POLOP:

Não é necessário socializar os meios de produção. Nãonecessariamente na sua totalidade. O socialismo é umregime intermediário. É um processo de transiçãohistórica que não resolve totalmente a questão daeconomia mercantil. No socialismo continuamexistindo relações mercantis. O que muda é que osocialismo submete as relações mercantis aoplanejamento econômico. Para alcançar isso, énecessário ter o controle e a propriedade das forçasprodutivas nos setores mais estratégicos da economia(Santos, 1984).

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É claro que tal postura conhecia variações. No plano maisgenérico, porém, as teses econômicas não davam lugar a maiores

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conflitos. Possivelmente, pensavam que esses conflitos poderiamesperar pelo dia em que o novo trabalhismo, liderado por Brizola,tivesse finalmente conquistado o poder federal. Do mesmo modoque esposavam as teses nacionalistas e antiimperialistas, todosdefendiam a adoção de uma política agressiva de reforma agrária ede incentivo aos pequenos produtores e às cooperativas. Algunssustentavam ainda a participação dos trabalhadores na gestão dasempresas, e todos, reconhecendo a condição de subdesenvolvimentodo País, advogavam, como condição de possibilidade da implantaçãodo socialismo democrático no Brasil, o rompimento da dependênciaeconômica.

Diante do quadro aqui apresentado, pode-se perceber que apergunta sobre o conteúdo do socialismo encampado tinha muitasrespostas plausíveis. Da máxima de Juruna (1984), “[...] socialistamesmo é a tribo de índio”, à remissão ao passado da populaçãoafro-brasileira de Abdias do Nascimento (1984), “O socialismobrasileiro tem que se basear, irredutivelmente, na experiênciaquilombista, se não quiser ser uma flor de estufa”, passando pelasinspirações solidarista, eurocomunista, marxistas de várias tendênciase trabalhistas idem, o socialismo democrático dos novos trabalhistastinha várias cores. Daí, talvez, o alcance do adjetivo moreno,expressão da mestiçagem fundamental que marca a formação étnicada sociedade brasileira. Ele traduzia, certamente, o traço que uniacorrentes e apaziguava, ainda que precariamente, as tensões internas:a defesa incondicional de se encontrar o tom local, o modo brasileirode ser socialista. Em suma, uma intuição nacionalista atravessava odiscurso de novos e velhos trabalhistas voltados para a conquista deum espaço privilegiado do qual pudessem interferir nos rumosfuturos da política brasileira em um de seus mais delicados e férteismomentos.

Pode-se dizer que os eixos que articulavam os debates giravamem torno da definição de socialismo, democracia e trabalhismo. Domesmo modo, os mecanismos de articulação de cada um desseselementos eram, também, motivos de polêmicas acaloradas. Vistoretrospectivamente, havia apenas dois pontos realmente comuns às

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várias correntes: o lugar atribuído a Brizola e uma espécie de intuiçãonacionalista. Quanto ao primeiro, a liderança de Brizola era incon-testável. É evidente que essa aceitação tinha motivações diversas,que poderiam ir da devoção incondicional ao líder até o diagnóstico,em certos casos atravessado por uma ponta de oportunismo, de quecom ele o novo trabalhismo chegaria ao poder federal. Indepen-dentemente disso, a adesão irrestrita a Brizola acabou por dar o tomdo novo trabalhismo. Rebelar-se contra ela, ou simplesmenterelativizá-la, provocou seguidos processos de expurgo. Daí o novotrabalhismo ter se transformado gradativamente em brizolismo.

A intuição nacionalista é o segundo ponto comum flagradoem todas as correntes. Ainda que também ela aparecesse de formasdiferenciadas, a pluralidade aí observada não era suficientementeforte para precipitar maiores polêmicas. Talvez não seja gratuito quea expressão mais precisa dessa intuição encontre-se na declaração deDarcy Ribeiro, o inventor da expressão socialismo moreno, moteque obteve tanto apelo popular:

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A posição socialista é a posição dos que querem passaro Brasil a limpo, no sentido de fazer com que o Brasilse torne habitável, para que todos os brasileiros tenhamos mínimos indispensáveis. Mínimos a partir dos quaisnós passaríamos a existir como povo civilizado entreoutros. Esse mínimo é o socialismo brasileiro. E umsocialismo brasileiro surgirá de nossa história, com anossa carne e com a nossa cor, moreno. Um socialismobrasileiro começa por assumir o povo moreno quenós somos, mas sobretudo a nossa pobreza. Assumiresta pobreza sabendo que ela dá lucro para muitagente. Muita gente quer que o país continue assim.Nós somos contra isso (Ribeiro, 1984).

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Considerações finais

Como que para punir os que não ficam a contemplá-lo, otempo passa rápido. Cerca de vinte anos após as publicações daseção Que socialismo é esse?, o conteúdo das intervenções pode soardatado, superado pelas transformações ocorridas no Brasil e nomundo. Muitos de seus personagens estão mortos; outros serecolheram às sombras do esquecimento. Há ainda aqueles quepautaram sua carreira posterior por escolhas pouco compatíveis comos princípios ali defendidos. Coisas da chamada política real.Reunidos no PDT, sigla de que vários deles não gostavam,alimentavam a expectativa de chegar ao poder federal, alavancadospela liderança de Brizola, herdeiro incontestável do legado trabalhista,e proceder às mudanças estruturais que advogavam. Esse projeto,como outros, fracassou. Ainda assim, a bem da memória políticanacional, ele não deve ser esquecido, pelo que teve de virtudes eequívocos. Ao mesmo tempo, é inegável que sua tessitura confunde-se com a história política recente do estado do Rio de Janeiro.

Se, no plano nacional, a perspectiva de chegar ao poder nãovingou, no Rio de Janeiro as coisas foram bem diferentes. De 1982a 2004, ano em que este pequeno artigo foi composto, apenas umgovernador eleito, Wellington Moreira Franco, vencedor em 1986,não pertencia ao PDT ou havia passado pelas fileiras do partido.No que diz respeito à prefeitura da capital, o mesmo se deu, à exceçãode Luiz Paulo Conde. O PDT não chegou a se firmar como forçapolítica nacional capaz de chegar ao Palácio do Planalto, a despeitodos muitos dirigentes de destaque que, nos mais diversos estados, sefiliaram a ele. No âmbito do estado do Rio de Janeiro, no entanto,o novo trabalhismo deu o tom, para o bem ou para o mal, da políticalocal por, pelo menos, duas décadas. Isso não é pouco.

Pouquíssimos anos após a última publicação da seção, osocialismo entrou em crise profunda e, assim como o nacionalismo,foi desacreditado como uma novidade antiga, sem valor prático.Mudaram os valores, as concepções de Estado, a definição domoderno. Mesmo assim, o legado deixado por essa experiência

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política, o novo trabalhismo, não deveria ser simplesmentedescartado, pois, ao menos no que diz respeito ao entusiasmo e àconvicção no poder transformador da política, ele tem muito aoferecer às gerações vindouras. Além do mais, a despeito dasmudanças radicais ocorridas desde então, a nossa pobreza, de quefalava Darcy Ribeiro, continuou a mesma, à espera de que sejapassada a limpo.

The many colors of “moreno” socialismAbstract. The article analyses the building of Partido Democrático Trabalhista (PDT)in the 80’s, taken as a scenery the city of Rio de Janeiro. Its center is the analysisof interviews with leaders who were linked to the party, published in the sectionWhat kind of socialism is this?, in the newspaper Espaço Democrático. In that sectionthemes as democracy, socialism and labourism are treated, and dilemmas anddivergences concerning to the new party are revealed. It calls attention to thepolitical relevance of PDT in Rio de Janeiro, in the municipal as well as statesense.Keywords: PDT. Democracy. Socialism. Labourism.

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Notas

1Espaço Democrático, ano 1, n. 15, 26/31 mar. 1984.2 A lista completa dos entrevistados, por ordem de aparição, é a seguinte: Doutelde Andrade, Darcy Ribeiro, Saturnino Braga, Matheus Schmidt, Pedro CelsoUchôa Cavalcante, Abdias Nascimento, Francisco Julião, Rogê Ferreira, EuzébioRocha, Sebastião Néri, Cibilis Viana, Neiva Moreira, Theotônio dos Santos, ClóvisBrigagão, Luiz Alfredo Salomão, Ademar de Barros Filho, Anacleto Julião, Moema

São Thiago, José Maria Rabelo, Luiz Henrique Lima, Bayard Boiteux, EduardoChuay, Miguel Bodea, João Paulo Batista Marques, Juruna, Paulo Timm, RosaCardoso, Brandão Monteiro, José Carlos Guerra, Lígia Doutel de Andrade, AlceuCollares, Carlos Alberto de Oliveira (Caó), Terezinha Zerbini, Getúlio Dias,Pernambuco, Amaury Müller, Hélio Rabelo, João Vicente Goulart, Maurício DiasDavid, João Monteiro Filho, Lamartine Távora, Moniz Bandeira, EdmundoMuniz, Paulo Canabrava Filho e Hélio Fontoura.3 Utilizo-me aqui, de forma livre, da célebre diferenciação estabelecida por JoaquimNabuco, em seu vastamente conhecido ensaio Da liberdade dos antigos comparada

às dos modernos; in Filosofia Política n. 2, Bento Gonçalves/Campinas, UFRGS/UNICAMP, 1985.

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Referências

BOITEUX, Bayard. Espaço Democrático, ano 1, n. 35, 19/25 out. 1984.

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As várias cores do socialismo moreno

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Dossiê II

Foucault: jogos e diálogos

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A história em jogo:a atuação de Michel Foucault

no campo da historiagrafiaDurval Muniz de Albuquerque Júnior*

Resumo. Este texto aborda a contribuição dos trabalhos de Michel Foucault paraa historiografia, localizando-a na própria maneira como o autor concebe a história,seja do ponto de vista epistemológico, seja do ponto de vista político. Analisaainda como, no cerne da prática historiográfica de Foucault, está a imagem dojogo, a figuração da sociedade e do passado como campos atravessados pelosmovimentos e enfrentamentos das forças sociais e por suas práticas de simulação,de fabricação de saberes e de subjetividades. A história como saber e como vida éjogo, é agonia, é sorte, é mascarada, é desfalecimento, é corte, é sofrimento e éalegria, é riso e é dor.Palavras-chave: Michel Foucault. Historiografia. Jogo. Poder. Ficção.

Sempre me intrigou o fato de que, durante muito tempo, oshistoriadores e cientistas sociais brasileiros dedicaram pouca atençãoao carnaval e ao futebol, duas manifestações centrais da cultura doPaís. Isso talvez tenha ocorrido devido ao modo como a festa

* Durval Muniz de Albuquerque Júnior é professor da Universidade Federal doRio Grande do Norte.

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e o jogo foram comumente pensados na cultura ocidental, ou seja,como momentos à parte da vida cotidiana, como atividades semfinalidade, improdutivas, opostas à realidade, à seriedade da ordemsocial; como momentos de atividade voluntária, livre e desin-teressada, fruto de atitudes gratuitas, que constituiriam momentos,tempos e espaços apartados da rotina, resultantes de situações ideais,situações artificiais, que não representariam o funcionamento dasestruturas normais e fundamentais que dariam sustentação a umadeterminada sociedade. A festa e o jogo, portanto, não fariam partedas estruturas nucleares e essenciais de uma dada cultura ou de umdado sistema social, sendo práticas consideradas de divertimento,de alienação ou de inversão da vida social regular.

Mesmo autores como Johan Huizinga (2004) e Roger Caillois(1990), que se dedicaram ao estudo dos jogos, de sua importânciapara as várias culturas humanas e seu papel no processo de civilização,vão reafirmar a visão idealizada do jogo, constituindo ele ummomento à parte da normalidade da vida social. À medida que teriamcontribuído para a aprendizagem da obediência a regras, para aobservância de limites, para o exercício do cálculo e levado aoautodomínio, à polidez e cortesia nas relações sociais, tais atividadeshaviam tido um papel civilizador fundamental. Os autores consi-deram, porém, que o mundo contemporâneo, ao contaminar osjogos, as festas e os esportes com elementos como o interesse, olucro e a propaganda, estaria desvirtuando o espírito lúdico quepresidiria essas atividades. Anunciam, assim, o fim do espírito lúdicoe, com ele, a prevalência, nas sociedades contemporâneas, dasperversões das atitudes psicológicas que estariam na base de qualqueratividade de jogo, ou seja, a competição, a sorte, a simulação e avertigem: nessas, a violência substituiria a competição regulamentada(agôn); a superstição ou o abandono da vontade triunfaria sobre aespera ansiosa e passiva pela sorte (alea); a alienação sairia vitoriosasobre o gosto pela simulação (mimecry); e o gosto pela vertigemseria substituído pelo consumo de drogas e álcool ou pelos esportesde risco (ilinx).

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Mesmo no campo da Filosofia, as reflexões em torno dos temasda festa e do jogo não são muito recorrentes; esses não seriam, então,temas dignos de ser pensados. Tanto na Filosofia clássica, quantono cristianismo, o jogo sempre é abordado para fazerem-lherestrições. Ele é considerado apenas um momento de descanso parao retorno renovado ao trabalho ou ao pensamento; ele serve ao bomhumor e pode ser aprendizado de autolimitação e moderação, maspode levar ao desregramento e ao vício.1

Para Leibniz (apud Duflo, 1999, p. 25), o jogo era prova daengenhosidade humana e aprendizado da arte de inventar; ele nosensinaria a pensar, mas sua prática seria uma estima à incerteza etestemunho de um espírito à vontade. Para Pascal, o jogo seria aexpressão da necessidade humana de estar em movimento, danecessidade que teria o homem de divertir a si mesmo para esquecerda morte; o jogo seria uma espécie de ebriedade e vertigem queevitaria o tédio, uma forma de agitação para levar ao esquecimentode nosso caráter mortal, seria, portanto, movimento não-essencial,a busca de enganar-se a si mesmo (Pascal, 1963, frag. 417, p.173). Écom Kant que o jogo torna-se um tema a ser abordado em Filosofia.Ele é tomado como o aprendizado humano de sua liberdade dianteda natureza, como a expressão da autonomia de sua vontade e darazão, como o aprendizado humano de que ele é a sua própria lei, oseu próprio limite. Para o autor, o jogo é o princípio de animaçãode todo o ser, já que o ser humano seria constituído pelo jogo denossas faculdades, esse pensado como a união possível que deixariaexistir a distinção recíproca de seus elementos; nós, humanos,seríamos produto, portanto, do jogo da concordância e distinçãode nossas faculdades (Kant, 1965, p.135). Mas é com Schiller e,posteriormente, com Nietzsche que o jogo deixa de ser insignificantepara tornar-se paradigma.2 A agonística que este representa passa aser tomada como fundamento epistemológico e ético da interpre-tação da vida social e da história humana. O jogo torna-se um modelode representação do mundo, e a luta, a rivalidade, a emulação e aguerra passam a ser pensadas como a base de todo edifício social,como atividades centrais na elaboração das culturas.

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Tendo uma relação privilegiada com o pensamento deNietzsche, a obra de Michel Foucault não conta com qualquer títuloou texto que aborde o tema do jogo. No entanto, a palavra jogo

espalha-se por muitos dos seus escritos e figura em muitas de suasentrevistas e aparições públicas. No texto Nietzsche, a genealogia e a

história (Foucault, 1984a, p.23), a palavra jogo aparece em diversasocasiões, quando Foucault tentar diferenciar a maneira como,normalmente, os historiadores figuram o passado e a relação dahistória com ele, da forma como Nietzsche e, por extensão, o próprioFoucault, praticavam história e relacionavam-se com os relatos queconstituem o que chamamos de memória. A palavra jogo não apareceaí apenas como metáfora, mas como forma de conceber ofuncionamento da sociedade, de figurar como se passa a história,um modo de ver o mundo, de pensá-lo e relacionar as empirias e osconceitos. Para Foucault, a história é resultado de jogos múltiplos,de inúmeros afrontamentos entre forças e saberes, é fruto daemergência de uma dispersão de acontecimentos que sãoconseqüência de embates, que emergem em meio a forças litigantes.Por isso, a história praticada como genealogia “restabelece os diversossistemas de submissão: não a potência antecipadora de um sentido,mas o jogo casual das dominações” (Foucault, 1984a, p.17).

A prática da história para Foucault recusa, como o faz agenealogia de Nietzsche, a pesquisa das “origens”. Se a história éuma competição incessante de forças, nos começos históricos só seencontra o clamor das lutas, o ruído dos enfrentamentos. Oshistoriadores devem estar atentos não para as causas dos fatos,tomadas como um evento anterior que se desdobra e continua emum posterior, mas para a multidão de elementos que se aproximame se cruzam num dado momento e que resultam em umacontecimento. No início não estão a unidade e a identidade deuma causa, mas a dispersão dos fatores, a multiplicidade doselementos, as forças que ingressam em um campo de luta e as matériasde expressão, o arquivo discursivo que essas forças encontram paradar forma às suas reivindicações. “Procurar uma tal origem é tentarreencontrar ‘o que era imediatamente’, o ‘aquilo mesmo’ de uma

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imagem exatamente adequada a si; é tomar por acidental todas asperipécias que puderam ter acontecido, todas as astúcias, todos osdisfarces; é querer tirar todas as máscaras para desvelar enfim umaidentidade primeira” (ibid., p.23). Buscar a origem dos fatos é, então,procurar acabar com a brincadeira dos homens no tempo, é fazercom que eles sejam adequados a si mesmos, idênticos à sua própriadefinição, é o historiador colocando a bola embaixo do braço edizendo: acabou o jogo, não brinco mais! O historiador das origens,criança emburrada, o estraga prazeres.

Para Foucault, se o historiador tiver o cuidado de entrar decorpo e alma na história, admitindo que só se faz a históriaparticipando de seu próprio jogo, que não se pode escrever a históriacomo um espectador, torcendo da arquibancada, sendo umhistoriador atleta e não um historiador assistente, se perceber quesó se escreve a história suando a camisa, não a olhando de binóculode um camarote refrigerado, ele aprenderá que “atrás das coisas há‘algo inteiramente diferente’: não seu segredo essencial e sem data,mas o segredo que elas são sem essência, ou que sua essência foiconstruída peça por peça a partir de figuras que lhes eram estranhas”(Foucault, 1984a, p.17). Como a bola de futebol, os objetos e ossujeitos históricos são feitos de múltiplos gomos, da costura às vezesmal feita e aparente, de diferentes temas, enunciados, conceitos,conteúdos, formas. E todos eles têm furos, rachaduras, por ondesempre ameaçam vazar a sua essência de vento. Suas formasenfatuadas e roliças podem, com um simples gesto de corte feitopelo saber do historiador, pela lâmina de sua crítica, tornar-se alástima de uma bola murcha, traste deixado em escanteio.

Foucault recusa a idéia de que, nas origens, as coisas, o mundo,os homens estavam em estado de perfeição, eram mais autênticos,mais inocentes ou mais puros. A história não é vista como umatrajetória de queda ou, ao contrário, como um percurso que marcauma ascensão. As quedas e levantamentos marcam todo o jogo dahistória, eles são circunstanciais, acidentais, eventuais, fortuitos,repetitivos, mas não formam um percurso coerente, nem marcamuma continuidade. No corpo a corpo que é a história, no combate

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permanente que move suas forças, nada garante de saída aautenticidade, a inocência ou a perfeição do que irá ocorrer.Colocados em uma arena, que é a sociedade, os homens lutam paraatingirem seus objetivos, para realizarem seus projetos, paramaterializarem seus sonhos e, para isso, escolhem caminhos diversos,se posicionam em diferentes lugares, adotam táticas e estratégiasdistintas e lançam mão de suas habilidades e de todo o aprendizadoque puderam fazer em sua vida, mas o resultado final ninguém podeprever. Se a meta será alcançada, se a vitória virá, isso dependerá doimponderável das múltiplas jogadas, dos inúmeros lances edeslocamentos feitos pelos demais jogadores e, inclusive, doimponderável, do golpe de sorte, do lance mágico que destrói todosos esquemas previamente estabelecidos. Pensar a história como sendoum jogo é, inclusive, contar com a bola entre as pernas, com o golcontra, com o drible desconcertante, com o tento feito com a mão,com o impedimento, com a penalidade.

Por que temos tanta dificuldade em pensar a surpresa, o acasoe o improvável como elementos que fazem parte da vida e do processohistórico? Como narradores do passado, ainda buscamos conformaro tempo e suas cambalhotas a esquemas prévios de interpretação,com seus determinantes e personagens fixos, previsíveis, que jogamsempre da mesma forma, que seguem sempre a rotina já esperada e,que, mecanicamente, desempenham a função designada antes doinício do próprio jogo. O historiador, nesses termos, é o técnicoretranqueiro, que busca garantir a previsibilidade do imprevisível,profissional da rotina, que odeia a criatividade, o jogador louco,indisciplinado, rebelde; que retira toda a juventude da própriaexistência, sua capacidade infinita de se tornar diferente do que é, odevir como potência da história.

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É preciso saber reconhecer os acontecimentos dahistória, seus abalos, suas surpresas, as vacilantesvitórias, as derrotas mal digeridas... A história comsuas intensidades, seus desfalecimentos, seus furoressecretos, suas grandes agitações febris como suas

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síncopes, é o próprio corpo do devir. É preciso sermetafísico para lhe procurar uma alma, [um sentido,o anúncio de uma parusia].” (Foucault, 1984a, p.19-20).

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A história tudo e nada promete; ela é tanto a alegria instantânea,o gozo furioso da vitória, que pode se transformar, em minutos, nadesilusão da derrota acachapante, por goleada, como pode ter,inclusive, o rosto sem graça do empate, do zero a zero. Por que nós,historiadores, esperamos sempre falar do grandioso espetáculo, davitória retumbante, da glória que produz heróis ou anti-heróis?Porque somos incapazes de falar do cotidiano cinza, dos sacrifíciosdiários, do suor e lágrimas derramados no silêncio de umaconcentração ou de um vestiário, da angústia e do sofrimento deum ídolo esquecido, de uma estrela solitária, de um grêmio rebaixado,de um internacional desclassificado.

O historiador, como os fãs enlouquecidos, quer viver dasgrandezas repetidas, das promessas de grandes decisões e de grandesconquistas. Mesmo quando nos nomeamos historiadores docotidiano, micro-historiadores ou historiadores dos excluídos, nãoperdemos nossa mania de grandeza: o moleiro friulano torna-se orepresentante de uma classe, o representante de nosso humanismometa-histórico; o rei africano desterrado torna-se o representantede uma etnia em luta por sua libertação; o líder operário é travestidode salvador da humanidade; o triângulo amoroso carioca torna-serepresentante da resistência operária.3 Não conseguimos jogar umjogo rasteiro, não conseguimos olhar para esses personagens da beirado gramado, não conseguimos abordá-los em sua singularidade, emsua maneira muito própria de armar o jogo, de passar a bola, desafar-se das situações de dificuldade. Continuamos pensando o sabere a ciência como práticas que elevam, que vêem de cima mesmoquando dizemos olhar de baixo; queremos sempre as alturas, asexcepcionalidades; adoramos as exceções, mesmo quando dizemosestar tratando das regras, das estruturas. Baixemos a bola, tentemos

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pensar que a história também deve olhar para os peladeiros, para oscanhotos, para os cabeças-de-bagre, para os pés-murchos que tambématuam na história e são responsáveis pelo seu resultado final. Quandoresponderemos verdadeiramente à provocação de Levi-Strauss, quenos jogou em rosto a nossa vocação para a construção de mitos?4

Ver o mundo como jogo é pensá-lo a partir de uma pragmática,é colocar no centro de sua interpretação as práticas humanas, práticasem conflito e que carecem de significação. A história seria fruto dasbatalhas em torno do poder e da verdade. Em suas ações, os homensentrariam em disputas em torno de domínios, fossem políticos,fossem de conhecimento. Nessas disputas, a linguagem representariauma das principais armas, pois seria através dela que seriamdemarcados espaços de poder, campos de atuação, identidades,lugares de sujeito, domínios de objetos; seria através dela que seestabeleceriam as aproximações e os distanciamentos, os pactos e asexclusões, os nomes e os silêncios que instituem uma ordem social.Como um dos sentidos que guarda a palavra jogo, a sociedade seriaum conjunto complexo de relações, de funções, de táticas, deestratégias, de deslocamentos, um conjunto aberto e inumerável emque a imprevisibilidade estaria presente.

Uma história pensada como jogo é aquela aberta às incertezas,em que qualquer teleologia ou previsibilidade são afastadas. Trata-se de uma história que prevê o acaso como possibilidade e comoagente dos processos sociais; uma história em que cada momentoresulta das forças em presença e em luta, sem a atuação externa denenhuma força transcendente ou metafísica; uma história queapresenta racionalidades apenas parciais, regionais, racionalidade decada lance e de cada partida, de cada evento e de cada momento,uma história que não apresenta uma racionalidade absoluta ou emtodo o seu conjunto; uma história na qual os homens são capazes deinventar respostas novas para os desafios que se lhes apresentam, acada momento, em cada tempo diferente. Essa é a história pensada,pois é resultado da própria capacidade de ficção, de imaginaçãohumana. Tanto a história vivida quanto a história escrita seriamtestemunhas da capacidade infinita de os homens imaginarem novos

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lances, novas narrativas, novos caminhos, novas metas, novos sentidospara suas próprias vidas.

Foucault vai retomar o próprio sentido original da palavrainterpretação. Se o saber histórico nasce de um trabalho interpretativo,isso quer dizer que ele surge de uma atividade de simulação, deficção, de representação, de construção de máscaras que permitemdar um rosto, uma fisionomia, uma presença, uma aparência aomundo e aos seres. Nesses termos, o historiador recupera o seuparentesco com os vates da antiguidade, que, mais do que contaremuma história, a interpretavam em praça pública, e seu desempenhoera fundamental para a própria credibilidade daquilo que testemu-nhavam. Interpretar os eventos, interpretar os documentos, significafigurar para eles uma inteligibilidade, dar a eles uma forma, torná-los matéria para a construção de uma dada realidade do passado,dotá-los de uma coerência, tramá-los de forma que pareçam desenhara figura de um passado que emergiria em seu perfil e em suamaterialidade. Interpretar o passado é dar vida a suas possíveis figuras,é recontá-lo, é revivê-lo, encarnando-o em seus possíveis rostos, emsuas gesticulações factíveis, em seus diferentes disfarces e com suasinúmeras astúcias.

Foucault (1984a, p.26) diz que interpretar “é se apoderar deum sistema de regras, é fazê-las entrar em um outro jogo e submetê-las a novas regras”, ou seja, o próprio trabalho interpretativo inscreve-se no campo do lúdico, é fazer o jogo dos sentidos, é dotar os discursosde novas significações, é dar-lhes novas máscaras, é deslocá-los deseu lugar consagrado, é inverter o sentido do jogo levado a efeito atéentão, é brincar com as possíveis alternativas de figuração. Por isso,as figuras de linguagem que mais aparecem nos textos de Foucaultsão as ironias, as catacreses e os oxímoros, ou seja, aquelas em que aspalavras não guardam nenhuma pretensa relação de semelhança comaquilo que pretendem nomear, nas quais o caráter de fabricação, dedisparate, de jogo entre os significados e seus pretensos significantes,os discursos e seus supostos referentes, objetos e sujeitos, sãoadmitidos e explicitados de saída.

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Como em todo jogo, o espetáculo, o aparecer, o vir à cena é opróprio ser das coisas, não existindo uma essência que estariaescondida nos vestiários e só apareceria aos noventa minutos departida, por um suado esforço de interpretação. O jogo, como ahistória, é o que acontece, só é enquanto acontecimento. Da mesmaforma que, a partir das mesmas regras, é possível jogarem-se inume-ráveis partidas, a partir dos mesmos dados, muitas interpretaçõessão possíveis, muitas combinações dos mesmos elementos sãofactíveis. Pode-se, pois, contar inúmeras vezes os mesmos fatos histó-ricos, de diferentes maneiras.

Pensar a história como jogo é pensá-la como atravessada poruma agonística que tem, na luta e na simulação, as atividadesprincipais dos homens. A vida social inexiste sem o conflito, sem aluta pelo poder e sua transformação em representação, em simulação,em sentido, em saber. Todas as culturas humanas seriam produtodesses jogos de poder e saber, que, no pensamento de Foucault,guardam pouca relação com o espírito lúdico idealizado de Huizingae Caillois. Foucault tende a concordar com estes autores sobre acentralidade do lúdico, ou seja, da invenção, da competição, doacaso, da imaginação e da vertigem nas relações entre os homens ena construção da vida social; mas não vê o jogo como uma realidadeapartada da ordem social e uma situação ideal, que serviria de modelopara o funcionamento da sociedade e para as relações sociais. Ojogo seria imanente à vida social, seria imanente à história; noscomeços de qualquer evento histórico, estaria a dispersão de forçasem luta e a posterior elaboração de um sentido, de uma máscara, deuma identidade para aquilo que foi fabricado, para aquilo queemergiu do próprio confronto.

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A emergência de um acontecimento se dá sempre emum determinado estado das forças, que devem sermostradas, pelos historiadores, em seu jogo, a maneiracomo lutam umas contra as outras, ou seu combatefrente a circunstâncias adversas, ou ainda a tentativaque elas fazem – se dividindo – de escaparem da

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degenerescência e recobrar o vigor a partir de seuenfraquecimento (Foucault, 1984a, p.23).

Refletir sobre o jogo da história é pensar, a cada vez, que forçasentraram em campo em dado evento, que regras produziram ouque regras seguiram no momento de atuarem e como essas forçastornaram-se sujeitos desse acontecimento. Tal reflexão implica aindapensar que cada sujeito social faz-se sujeito no próprio momentoque atua, que joga, que sua existência depende da existência do outro,da relação agônica com o outro, que lhe limita e lhe define comoaliado ou como inimigo, pensar que “o grande jogo da história seráde quem se apoderar das regras, de quem tomar o lugar daquelesque as utilizam, de quem se disfarçar para pervertê-las, utilizá-las aoinverso e voltá-las contra aqueles que as tinham imposto” (ibid.,p.25).

A vida social e a história teriam, para Foucault, as mesmascaracterísticas que definem o que seria uma atividade de jogo. Ahistória seria movimento, seria ação criativa, invenção constante denovos lances, mesmo que seus sujeitos estejam limitados por regras,por normas, que tenham que obedecer a regulamentos. A história épossível porque os homens, mesmo limitados por um dado contexto,por um conjunto de regras e prescrições, ainda que atuando em umespaço e em um tempo delimitados, são capazes de driblar a potênciado mesmo e a imposição da repetição e criarem o diferente, anovidade, de produzirem a surpresa e o inesperado. A história, comoo jogo, faz-se de risco e habilidade, de variação e mudança, de limitee invenção, de regras imanentes e de restrições voluntárias.

Foucault pensa a história como mediada, assim como o jogo,por estratégias e táticas, as quais podem estar a serviço da criatividadeou da reação, podem levar à vitória ou serem derrotadas, que podemservir de impedimento ou de incentivo à atuação das forças em luta.A história é feita de disputas em que os contendores tentam aliançase buscam enfrentamentos, em que o domínio das regras, oestabelecimento das regras e a possibilidade de burlá-las ou usá-las

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contra o inimigo é uma constante. Mesmo tendo os homens criadoinúmeras instâncias sociais que buscam arbitrar a observância destasregras, a história faz-se como potência criativa, porque essa arbitragemsempre pode ser enganada, ser corrompida, ser ludibriada e usadaem proveito das forças em luta.

Assim como um jogo, a história está sempre sendo jogada acada vez, ela é descontínua mesmo que se faça por repetições eapresente regularidades. Assim como nas partidas de futebol, queseguem sempre as mesmas regras, em que a semelhança do jogoparece garantida, mas o resultado é sempre incerto, em que acombinação das jogadas e os lances nunca se repete, em que cadapartida é singular e irrepetível, assim também são os eventoshistóricos. A história não tem um sentido dado a priori, não temuma racionalidade e uma finalidade que a atravessam desde ocomeço; como no jogo, o sentido da história é o seu próprioacontecer. O resultado final de qualquer enfrentamento na históriasó se define em seu último instante; não há previsibilidade possível,somente probabilidade de que as coisas se passem tal como oesperado.

A escrita da história é concebida por Foucault como aelaboração de um discurso que, como qualquer outro, não estápermanentemente submetido ao poder, nem oposto a ele. “É precisoadmitir um jogo complexo e instável em que o discurso(historiográfico) pode ser, ao mesmo tempo, instrumento e feito dopoder, e também obstáculo, escora, ponto de resistência e ponto departida de uma estratégia oposta” (Foucault, 1977, p.96). O discursoda história tanto pode veicular e produzir poder, reforçá-lo, comopode vir a miná-lo, debilitá-lo e permitir barrá-lo. Longe estáFoucault da análise simplista e grosseira do poder, como umamaquinaria sem saída, que vez por outra tentam atribuir a ele.5 Pensaro poder como um elemento fundamental do jogo da história é tomá-lo como resultante sempre indefinida e indeterminada do embatedas forças que compõem um dado campo social, é tomá-lo comosendo materializado em um conjunto de regras e de normas, queestão sempre sendo negociadas, jogadas. Ao invés de um monstro

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cinza, o poder em Foucault aparece em sua dimensão lúdica,brincalhona, estratégica, astuciosa, em sua potência de simulação,mascaramento, inversão e traquinagem.

Há uma grande resistência, entre os historiadores profissionais,em aceitar a maneira como Foucault pratica a história. Acostumadosa pensar o processo histórico como uma totalidade coerente eracional, como um processo que possui um princípio de coerência,uma essência ou uma verdade que deve ser buscada, mesmo quandose sabe que dela apenas se pode se aproximar, esses princípios,digamos, morais que o historiador deve seguir são semprereafirmados.6 Ele tem que estar comprometido com a razoabilidadee com a veridicidade do que faz, ou seja, o historiador não devebrincar em serviço, ele seria um mau jogador, um ser sem senso dehumor, um homem sério falando de coisas muito sérias. Mas, parauma criança, brincar ou jogar é também algo muito sério, ela está,muitas vezes sem saber, fazendo o aprendizado das próprias regrassociais, está internalizando a sociedade. Também podemos aprendercom os jogos da história, com suas brincadeiras e mascaradas, comsuas síncopes e seus desfalecimentos. Como em qualquer jogo, nahistória também se pode sorrir ou chorar, afirmar a vida ou morrerem campo, pode-se ganhar ou perder, mas todos os lances levam-nos a um aprendizado, à formulação de uma experiência, que podenovamente ser recolocada em jogo no próximo evento.

Foucault, como Nietzsche, vai procurar recolocar o corpona história. As ciências humanas, por muito tempo, recusaram-se atratar do corpo, da materialidade do corpo. Na Filosofia, tínhamospensamentos e pensadores sem corpo; na História, os personagensnão tinham desejo, nem necessidades corporais, não tinham sangue,mesmo participando de tantas guerras e revoluções. Foucault pensao corpo como a “superfície de inscrição dos acontecimentos(enquanto que a linguagem os marca e as idéias os dissolvem), lugarde dissociação do Eu (que supõe a quimera de uma unidadesubstancial), volume em perpétua pulverização” (Foucault, 1984a,p.22). A história genealógica articula corpo e acontecimento, corpoe linguagem, mostrando as marcas e as ruínas que o tempo produz

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em nossas carnes e nas imagens que temos de nós mesmos. A históriapensada como jogo põe no centro de nosso campo as peripécias doscorpos, a análise do que eles fazem e de como explicam o que fazem,a descrição de suas atuações, deslocamentos, fraturas, indisposições,choques, atrações, desejos, seduções. São os corpos pensados comodocumentos, como pergaminhos em que vêm se escrever e inscreveras memórias das múltiplas experiências que vivenciamos.

Por que temos tanta dificuldade em auscultar os corpos dospersonagens dos quais tratamos, em tateá-los, massageá-los, comoanatomistas do social que devemos ser? Por que fazemos uma históriatão higienizada, em que nossos personagens não têm odor, são feitosapenas para serem vistos e não para agradar ou desagradar aos outrossentidos? A história ainda é o lugar do império do olhar, pois aindacontinuamos, como os gregos, buscando testemunhos, mesmoquando pretendemos fazê-la para estimular os leitores a deixaremde ser meros espectadores de seu desenrolar. Como poderemos tornara história um saber sedutor se ela não tem corpo, se seus personagensestão mortos e parecem mesmo com defuntos conservados emformol? Como pode seduzir os vivos algo que não tem vida, que sefaz por fórmulas conceituais? No espírito do que escrevia Nietzsche(1991, p.22-34), a história conceitual é uma monstruosidade, é oresfriamento do que é calor e vida, é a mumificação do que foi vivoe quer ainda respirar. Como podemos atrair os leitores da históriapara personagens que não têm sexo, não desejam, não brincam, nãojogam?

Como jogadores que somos, a nossa história não estádocumentada apenas nas súmulas que escrevemos e que guardamosem arquivos, não está apenas nas resenhas que produzimos a respeitode nossas vidas e ações, mas ela está documentada em cada cicatrizque marca nossos corpos, em cada sinal, em cada tatuagem, emcada escarificação, em cada dor que veio se alojar em nossas peles ouem nossas entranhas. Cada ferida cicatrizada é um monumento aum instante dolorido que passou, é um resto de tempo petrificado.Embora sendo um saber que privilegia o olhar e seus testemunhos,contraditoriamente a história tem tido uma enorme dificuldade em

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lidar com imagens, talvez porque aí apareça o corpo, o incômodode um corpo, mesmo quando ainda está congelado por uminstantâneo de uma máquina fotográfica. O corpo, mesmo em umapose repetitiva, parece nos amedrontar. Quando ele aparece emmovimento, a dificuldade e a estranheza parecem se ampliar. Essespersonagens que se movem figuram tão diferentes dos personagenscanhestros que conseguimos produzir em nossas narrativas, que nosamedrontam, porque nos interpelam no sentido de sermos capazesde dizer o corpo em movimento, em deslocamento, a identidadearruinada por um simples gesto, o dilaceramento constante daquiloque gostamos de chamar de Eu. Colocados diante de nossa própriaimagem, sentimos a desilusão de ver que nunca correspondemos àimagem que temos de nós mesmos, que dirá a imagem queconstruímos dos outros. Nossas identidades são fruto de um jogopermanente, jogo de esconde-esconde, uma brincadeira de máscaras,num carnaval organizado e submetido a um emaranhado de regras.

Pensar a história como jogo corresponde, em Foucault, a umapostura epistemológica, mas também a uma postura ética. Nosúltimos livros que escreveu, Foucault (1984, 1985) estavapreocupado em entender através de que jogos construímo-nos comoo sujeito de uma sexualidade, de uma moralidade. Sua preocupaçãoera procurar pensar o sujeito para além da imposição socrático-platônica do conhecer a si mesmo. Ele vai deslocar essa questão apartir da pergunta nietzscheana, que era a mesma colocada pelosgregos antes de sua entrada na filosofia racionalista, ou seja: o queestamos fazendo de nós mesmos? A constituição da subjetividade,de uma identidade de sujeito, passa a ter aí uma implicação políticaimediata. Perguntar pelo quê se está fazendo consigo mesmo éperguntar-se pela forma como se está governando a própria vida,como está se fazendo uso dos prazeres, como se está cuidando de simesmo e escrevendo a si mesmo, como se está se relacionando comseu próprio corpo e com seus desejos. A construção de nós mesmospassava por esse jogo incessante que jogamos com nós mesmos ecom os outros. É a pergunta pelo treinamento que estamossubmetendo o nosso próprio corpo e nossa própria mente, que

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exercícios, que dietas, que limites estamos impondo a nós mesmos.Para que sejamos um craque na vida, precisamos desse trabalho deauto-emulação, de autoconstituição, tentando transformar a própriavida na melhor jogada, num gol de placa, numa obra de arte. Nolugar do imperativo de conhecer uma essência que estaria guardadano interior de um si mesmo discutível, coloca-se a conclamaçãopara a fabricação de um si mesmo, que nunca está pronto e quenunca pode deixar de ser convocado a se exercitar novamente.

Nós, historiadores, temos muita dificuldade em pensar o sujeitocomo um exercício, como uma função que se exerce numa ação,num discurso, como algo que não esteja pronto no início da ação,que não venha antes do discurso, mas que seja seu resultado final,sujeito que só aparece já na prorrogação. Estamos sempre buscandoo sujeito originário, aquele que deu o pontapé inicial na ação, aqueleque começou o jogo, que deu a saída, quando isso pouco importa,pois o jogo ou a história são o que se desenrola daí para frente, e seuresultado independe por completo de quem veio por escalaçãomomentânea ou da posição que o sujeito ocupava ao dar o primeiropiparote no jogo. Sempre alertamos para o fato de que os sujeitosem história são coletivos, de que fazem parte de uma grande equipe,de que na história não se joga sozinho; sempre dizemos que a história,como o jogo, passa-se entre os jogadores, é feita das suas jogadas, deseus lances, mas mesmo assim estamos sempre buscando aquele que,da marca da cal, deu o chute decisivo, cobrou o pênalti salvador,aquele herói que sozinho ganhou o jogo, aquela mão salvadora que,no último instante, desviou a trajetória do balão.

Não desconhecemos que as ações individuais são importantes,que há realmente jogadores mais decisivos que outros, aqueles quefazem a diferença, que abrem espaços para outros, mas, mesmo esses,não conseguiriam atuar sem a colaboração dos demais, pelo simplesfato de que, sem outros, não haveria jogo, sem as relações entre ossujeitos e os lugares que essas relações distribuem não haveria histórianem sujeitos. Não importa qual o nome próprio de quem vem ocupara posição de goleiro, de zagueiro ou de atacante, mas a função queexerce no jogo, o papel que lhe é atribuído, o lugar de sujeito ou a

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camisa que lhe tocou envergar; o que importa é a distribuição nocampo e o lugar que assume no coletivo que se movimenta. Só nosconstituímos em destaque em relação aos demais, só nosindividualizamos, nos singularizamos na relação com o outro, sónos reconhecemos e somos reconhecidos como sujeito em confrontocom outros que estão ao nosso lado ou à nossa frente; somos sempre,pois, um produto do coletivo.

Da mesma forma que temos dificuldade em pensar os sujeitosda história como imanentes aos próprios acontecimentos, ao própriojogo das forças e dos saberes que os constituem, temos dificuldadede pensar o objeto histórico, o acontecimento em sua singularidade,em sua fabricação agonística. A tradição teleológica e racionalistaque prevalece no campo da historiografia tende a dissolver oacontecimento singular em uma continuidade ideal – como se ocampeonato, em sua totalidade, fosse o que determinasse o resultadodas partidas que o compõem, como se, entre elas, houvessepreviamente uma determinação que definisse os resultados.

A história efetiva faz ressurgir o acontecimento noque ele pode ter de único e agudo. É preciso entenderpor acontecimento não uma decisão, um tratado, umreino, ou uma batalha, mas uma relação de forças quese inverte, um poder confiscado, um vocabulárioretomado e voltado contra seus utilizadores, umadominação que se enfraquece, se distende, se envenenae uma outra que faz a sua entrada, mascarada. As forçasque se encontram em jogo na história não obedecemnem a uma destinação, nem a uma mecânica, mas aoacaso das lutas. Elas não se manifestam como formassucessivas de uma intenção primordial; como tambémnão têm o aspecto de um resultado. Elas aparecemsempre na álea singular do acontecimento (Foucault,1984a, p.28).

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Foucault tem a coragem de afirmar que a história é um saberperspectivo, ou seja, que as narrativas que fazemos de um dado

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acontecimento têm a nossa própria participação. Nós tambémentramos no jogo quando se trata de escrever a história. Somos, aomesmo tempo, narrador e árbitro, técnico e jogador, torcedor eatacante; estamos implicados naquilo que fazemos, nos resultados aque chegamos. Não dá mais para acreditar na encenação de que nósapenas abrimos mão de nossa individualidade para que outros entremem cena e tomem a palavra. Não dá para levar a sério o jogo de faz-de-conta da objetividade e do princípio da verdade atrás do qualnos escondemos para só falarmos de nossas próprias posições políticase historiográficas como se estivéssemos falando em nome da históriaou da razão, da objetividade e dos fatos. Chega de ensaios racionalistasque mal escondem o seu rancor e sua demagogia, como diziaNietzsche em A Genealogia da Moral.

Eu não posso mais suportar estes eunucosconcupiscentes da história, todos os parasitas do idealascético; eu não posso mais suportar estes sepulcroscaiados que produzem a vida; eu não posso suportarseres fatigados e enfraquecidos que se cobrem desabedoria e apresentam um olhar objetivo (Nietzscheapud Foucault, 1984a, p.32).

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Foucault propõe três usos para a história, três maneiras depraticá-la, que reafirmam essa necessária aceitação do caráter subjetivoe político de nossa atividade. Um deles é o uso paródico ou irônico,que se opõe à história vista como reminiscência ou reconhecimento,propondo uma história praticada como riso, como destruição dasversões consagradas da realidade, como produção de umdistanciamento entre nós e aqueles que nos antecederam, comoreposição diferencial dos saberes, dos discursos que produziramaquilo que achamos que somos. Outro é o uso dissociativo edestruidor da identidade, que se opõe à história como continuidadee tradição, postulando uma história praticada como afastamento dacontinuidade, como dilaceramento dos modelos de identidade quenos chegam do passado e se impõem como indispensáveis. O terceiro

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é o uso sacrificial e destruidor da verdade, que se opõe à história-conhecimento, expressando uma história praticada como descon-fiança em relação a todas as verdades que nos chegam prontas, atodas as certezas que nos chegam sem questionamento. A históriatem assim, para Foucault, todas as características de um saber pensadocomo jogo, pois ela implica a brincadeira com as máscaras, a violênciado embate e do combate, a entrada em cena do acaso e da sorte e odesejo de vertigem, da perda das referências fixas que amarram nossoscorpos e mentes a dadas identidades, razões e lugares. A história éagôn, é álea, é mimecry e é ilinx, ou seja, conflito, acaso, simulação evertigem.

Devemos encarar, pois, a própria luta no campo historiográficocomo um jogo em que cada texto, em que cada livro, em que cadaopinião é um lance que se faz em uma partida. Encarar os debateshistoriográficos desse modo talvez nos ajude a torná-los maisdivertidos e mais corteses, evitando que eles se transformem emuma guerra de todos contra todos, embates nos quais ferozmente sequerem eliminar o contendor e seu pensamento a golpes de adjetivosde desqualificação.

Michel Foucault tem sido vítima sistemática desse tipo decrítica, dentro e fora do País. Quando se trata de avaliar suacontribuição para a historiografia, tem faltado fair play a boa partedos colegas, e vemos um jogo cheio de caneladas, rasteiras,cotoveladas e entradas desleais.7 Todo o seu trabalho no campohistoriográfico é desqualificado com meia dúzia de opiniões epalpites, sendo quase sempre atingida sua pessoa e não seupensamento. Para comentar, é preciso conhecer, regra tão básica emnosso futebol, mas que não é aplicada em nossa academia.

Foucault é sempre tratado como um invasor do campo, comoalguém que, inclusive, quis acabar com a história, mesmo que tenhadedicado toda a sua vida a fazê-la e tenha se mostrado um praticantecriativo de nosso metier, estimulando uma ampla produção na área.8

Tratado como bicão, Foucault seria uma ameaça para a nossa ativi-dade, pois, com ele, a própria história estaria em jogo, nosso sa-crossanto saber estaria ameaçado de ser conspurcado e remetido

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para os obscuros domínios do irracionalismo, do esteticismo e doreacionarismo político. Surgem então, como sempre, os salvadoresde última hora, que vão evitar que a história sofra essa ameaça e esserebaixamento. Aqui, como em futebol ou em religião, devemosdesconfiar desses enunciadores do caos e do apocalipse, que queremtomar o jogo para si e impor regras que só eles estão dispostos aseguir; o que querem é poder disfarçado de verdade; querem acabaro jogo no momento em que acham que estão ameaçados de seremderrotados. Isso sim é o fim do jogo, é o fim do lúdico, é o fim dapossibilidade de invenção e de criação; isso sim é o fim da história.A história morreria não por criatividade, mas por paralisia, por faltade renovação em suas regras de produção. Não é o invasor a maiorameaça ao jogo, mas o que dele participa jogando na retranca,buscando evitar a surpresa e o inesperado; é o que busca torná-lorotina e mesmice, é o que faz um jogo burocrático e odeia aquelecompanheiro que brilha e que desconcerta com a magia de sua arte.Michel Foucault é da genealogia dos craques, dos fora de série,daqueles que, mesmo quando são nosso adversário, só nos resta sentare aplaudir.

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History in focus: the role of Michel Foucault in the field of historiography

Abstract. This text approaches the contribution of Michel Foucault’s works tohistoriography, situating it in his own conception of history, from eitherepistemological or political point of view. This text analyzes how, in the center ofFoucault’s practice of historiography, is the image of the game, the representationof society and the past as fields crossed by movements and confrontations of thesocial forces and by their acts of simulation, production of knowledge andsubjectivities. History as knowledge and life is a game, is agony, is luck, is masqued,is faint, is cut, is suffering and joy, is laughter and pain.Keywords: Michel Foucault. Historiography. Game. Power. Fiction.

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Notas

1 Cf. Tomás de Aquino, em Suma teológica, e Francisco de Sales, em Introdução à

vida devota (apud Duflo, 1999, p. 20-21).2 Cf. Friedrich Schiller, em Cartas sobre a educação estética do homem (apud Duflos,1999, p. 72 e segs.), e Nietzsche (2001).3 Aqui fazemos referência a obras da melhor qualidade, em nosso campo, comoGinzburg (1987), Silva (1997) e Chalhoub (1986).4 Sobre o desafio lançado por Levi-Strauss aos historiadores, ver Dosse (2003).5 Ver a mais recente simplificação da complexidade do pensamento de Foucaultacerca do poder e sua relação com a produção de sujeitos, em Shalins (2004).6 Para um diagnóstico dessa “apavorante” possibilidade de uma históriairracionalista, sem sujeito, sem objetividade e sem verdade, ver, por exemplo,Cardoso (1988) e Diehl (1998).7 Ver, por exemplo, a entrevista de Carlo Ginzburg em Pallares-Burke (2000, p.269-307).8 Essa é a opinião, por exemplo, de Ronaldo Vainfas (Cardoso; Vainfas, 1997,p.150).

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A narrativa da experiência

em Foucault e ThompsonFernando Nicolazzi*

Resumo. O texto tem por escopo analisar o conceito de experiência nos escritos deMichel Foucault e de Edward Thompson, especificamente a maneira como cadaum dos autores organiza, no espaço de uma narrativa histórica, um campo deação particular, caracterizado pela temporalidade da construção de um sujeito nahistória.Palavras-chave: Michel Foucault. Edward Thompson. Experiência.

O tempo torna-se tempo humano na medida em que estáarticulado de modo narrativo; em compensação, a narrativaé significativa na medida em que esboça os traços daexperiência temporal.

* Professor substituto do Departamento de História da UFRGS, Doutorandoem História na UFRGS e bolsista Capes.

Tempo e narrativa, termos que, se percebidos segundo umareflexão teórica particular, bem poderiam ser intercambiados poruma expressão tão significativa quanto complexa: experiência

histórica. Pois é seguindo tal reflexão, orientada pelos caminhos

Paul Ricoeuer

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abertos por Paul Ricoeur, bastante explícitos na epígrafe que abreeste texto, que traço algumas considerações sobre a maneira comoMichel Foucault e Edward Palmer Thompson, cada qual através desua respectiva postura intelectual, estabelecem os contornos distoque se poderia definir como uma experiência histórica, particular-mente, o interesse reside na forma como ambos os autores, em textospropriamente historiográficos, organizam uma experiência de tempoem uma narrativa de história. De fundo, o que essas consideraçõespermitem realizar é uma aproximação teórica entre as análiseshermenêuticas de Ricoeur e os conceitos teóricos sobre os diferentesestratos de tempo desenvolvidos por Reinhardt Koselleck.1

Michel Foucault e a experiência da sexualidade grega

Tanto no prefácio de seu primeiro grande livro, História da

loucura na idade clássica, publicado em 1961, quanto no últimotexto ao qual deu seu aval para publicação, antes de seu falecimento,em 1984, Michel Foucault utiliza o termo experiência de maneiranão-despropositada.2 No primeiro caso, justificava-se tal empregoem virtude da consideração da loucura como uma experiência cujoestudo significaria “interrogar uma cultura sobre suas experiências-limite, [ou seja] questioná-la, nos confins da história, sobre umdilaceramento que é como o nascimento mesmo de sua história”(Foucault, 1999b, p.142). Experiência aqui, e salientando aperspectiva estrutural da análise de Foucault, significa um planoanterior à história ao qual apenas um arqueólogo, em sua arqueologiada alienação, seria capaz de apreender. No segundo caso, o escopoera diferenciar duas formas de procedimento filosófico, a saber, a“linha divisória que separa uma filosofia da experiência, do sentido,do sujeito e uma filosofia do saber, da racionalidade e do conceito”(Foucault, 2000, p.353). Em outras palavras, o estudo da experiência,ou seja, da razão prática, implica algo distinto de um estudopropriamente epistemológico sobre a conceituação de tal razão, cujoexemplo marcante para Foucault foi Georges Canguilhem.3

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Nos vinte e três anos que separam os dois textos, é recorrenteo uso do termo nos escritos de Foucault, fato que chamou a atençãode alguns comentadores.4 Não caberia aqui o levantamentominucioso das diversas acepções assumidas pela palavra experiência

em tais escritos, tarefa que por si só se constituiria em uma pesquisaespecífica. Entretanto, não é custoso esboçar uma espécie desemântica histórica do conceito de experiência na obra do pensadorfrancês. Se, a princípio, tal conceito aparece em uma obra realizadacomo um “estudo estrutural” do conjunto histórico compreendidopela experiência da loucura, ele remete a um campo de ação definidopor estruturas que, na sua continuidade, antecedem a emergênciade formas históricas dispersas, possibilitando a existência de figurasvariadas da loucura. Tal concepção de experiência, ainda nos anossessenta, passará por algumas transformações que modificarão essaespécie de continuidade fundamental, culminando na perspectivadescontinuísta apresentada em As palavras e as coisas, de 1966, ondea “experiência nua da ordem dos saberes” consiste em espaços dísparessegundo o solo epistemológico do qual fazem parte (Foucault, 1995).Nesse sentido, ao invés de uma experiência fundamental em que sealojarão loucuras diferentes, o livro de 1966 apresenta, para aepisteme de cada época determinada, uma experiência de saberdiferente e singular, a qual origina formas de conhecimentodiversificadas.5

De qualquer modo, a postura arqueológica assumida porFoucault admite a experiência como fundadora e condição da his-tória. Ela se situa em uma posição dicotômica em relação à ciência,e, embora constituam referências mútuas – a experiência origina aciência, que, por sua vez, possibilita novas experiências –, entre asduas há um espaço no qual se localiza o saber: “entre a ciência e aexperiência há o saber: não absolutamente como mediação invisível,como intermediário secreto e cúmplice, entre duas distâncias tãodifíceis ao mesmo tempo de reconciliar e de distinguir; de fato, osaber determina o espaço onde podem separar-se e situar-se, umaem relação à outra, a ciência e a experiência” (Foucault, 1999b,p.117). Essa concepção tem por característica principal, fato que gerou

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grande parte das polêmicas em torno da obra de Foucault, a ausênciade um sujeito da experiência (Ternes, 2000, p.54-67). Há, anteriora ele, apenas um espaço no qual ele não passa de uma posição a serassumida, localizada essa no interior de formações discursivasanônimas, destacadas das experiências subjetivas dos indivíduos,ainda que o próprio discurso seja visto como prática: “que não maisse relacione o discurso ao solo inicial de uma experiência nem àinstância a priori de um conhecimento; mas que nele mesmo ointerroguemos sobre as regras de sua formação” (Foucault, 1997,p.89).

Essa perspectiva, aos poucos, cederá lugar a um conceito deexperiência histórica diferente, à medida que a análise arqueológicaserá complementada pela prática genealógica dos anos setenta.6 Nesseperíodo, e seguindo até o momento derradeiro de sua obra, em 1984,experiência e subjetividade serão conceitos cada vez maiscorrelacionados. Próxima à idéia de uma atitude histórico-crítica apartir da qual um indivíduo relaciona-se consigo mesmo e com osoutros, a experiência consistirá um espaço de ação no qual serãoconstituídos sujeitos históricos segundo processos definidoshistoricamente: “é a experiência que é a racionalização de umprocesso, ele próprio provisório, que termina num sujeito ou emvários sujeitos” (Foucault, 1984c, p.137). Muitos são os textos queremetem a essa questão e para esse uso do conceito de experiência; oestudo sobre o “uso dos prazeres” na Grécia clássica (Foucault, 1984a)é de particular importância para se tentar apreender o processo deconfiguração da ação mediante o uso do termo experiência comoconceito operatório e articulador da narrativa.7

“Elas não deveriam ser uma história dos comportamentos nemuma história das representações”. É dessa maneira que MichelFoucault (1984a, p.9) define, pela negativa, a série de pesquisas quepretendia tratar da sexualidade. Seu objetivo mais preciso é realizaruma história das problematizações ou uma história do pensamentoacerca disso que hoje denominamos sexualidade.8 Assim, o espaçode ação do qual pretende dar conta restringe-se, no caso do textoem questão, ao mundo grego clássico, entre os séculos V e IV a.C.

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Seu projeto é bem definido: “uma história da sexualidadeenquanto experiência – se entendermos por experiência a correlação,numa cultura, entre campos de saber, tipos de normatividade eformas de subjetividade” (Foucault, 1984a, p.10). Tratar-se-ia deum trabalho histórico-crítico sobre as relações que o indivíduoestabelece consigo mesmo através das quais ele se reconhece e seconstitui como sujeito, levando em consideração os jogos de verdadedos quais faz parte.9 Em outras palavras, é o caso de uma genealogiado processo de subjetivação do indivíduo grego, considerando-onos limites de uma moral dirigida para homens livres e que possuemcerto status na sociedade. Seria, de fato, a história de uma experiênciahistórica: “o ser se constitui historicamente como experiência, istoé, como podendo e devendo ser pensado” (Foucault, 1984a, p.12).

O que hoje chamamos sexualidade foi problematizado, pelosgregos, como um campo moral particular, no qual estavamimplicadas “técnicas de si” visando a uma “estética da existência”. Aquestão era relativa à forma ideal de se conduzir no mundo quandoos prazeres eram tematizados, assim como as regras de temperançaque deveriam ser seguidas e os modelos de parcimônia que deveriamser praticados, sendo as exigências de austeridade medidas segundocertos critérios de estilo em uma “arte da existência”, que era tantouma arte de governar os outros, no exercício de seu poder, comouma arte de governar a si mesmo, na prática da própria liberdade.O tema não se colocava da maneira como ocorreria pela experiênciacristã da carne e mesmo pela experiência moderna da sexualidade,segundo parâmetros de proibições e permissões nos quais estariamassentados uma espécie de medo (em relação à masturbação), umesquema de comportamento (nos limites do matrimônio), umaimagem (o perfil da homossexualidade) e um modelo de abstenção(a castidade). Nesse sentido, Foucault adverte que foi levado asubstituir “uma história dos sistemas de moral, feita a partir dasinterdições, por uma história das problematizações éticas, feita apartir das práticas de si” ” (Foucault, 1984a, p.16). Assim, “era precisopesquisar a partir de quais regiões da experiência, e sob que formas,o comportamento sexual foi problematizado, tornando-se objeto

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de cuidado, elemento para a reflexão, matéria para a estilização”(ibid., p.25).

Para a definição de tais “regiões da experiência”, Foucaultpermite-nos pensar que os indivíduos, no processo de constituiçãode si mesmos enquanto sujeitos de uma experiência singular,encontram maneiras diferentes de se conduzir, ou seja, de agir emrelação a um “código de ação” que define os contornos de umaexperiência possível. No caso em particular do mundo grego, essarelação que, em outros termos, trata da dialética sujeito-estruturaconstantemente tematizada pela reflexão teórica, é definida segundocertos critérios específicos. Em primeiro lugar, pela “determinaçãoda substância ética”, que procura circunscrever a parte do indivíduoque será objeto de sua conduta moral; em seguida, pelo “modo desujeição” ou postura assumida em relação a uma regra, na obrigaçãode colocá-la em prática; em terceiro lugar, pela “elaboração de umtrabalho ético”, no qual o indivíduo é levado a se transformar emsujeito moral de sua conduta; por fim, por uma “teleologia dosujeito”, pois “uma ação não é moral somente em si mesma e na suasingularidade; ela o é também por sua inserção e pelo lugar queocupa no conjunto de uma conduta; ela é um elemento e um aspectodessa conduta, e marca uma etapa em sua duração e um progressoeventual em sua continuidade” (Foucault, 1984a, p.28). Portanto,uma vez que “toda ação moral comporta uma relação ao real emque se efetua”, o processo de subjetivação não se limita meramentea uma tomada de consciência de si segundo a fórmula cartesiana docogito, mas também implica uma problematização do processo aoqual se é sujeitado: não é simplesmente a constatação do pensamentoque garante a existência, mas também a necessidade de seproblematizar aquilo sobre o que se pensa e mesmo sobre a formacomo se pensa.

É, então, em torno de quatro temas que se problematiza aconduta dos indivíduos: a aphrodisia, ou os prazeres propriamenteditos; a chrësis, ou o uso dos prazeres; a enkrateia, ou a relação consigoe o domínio que se estabelece sobre si mesmo; e a söphrosunë, ou oestado de liberdade ao qual chega o indivíduo como sujeito em sua

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relação com a verdade. Quatro também são os modelos de ação ou“eixos da experiência” problematizados na cultura grega antiga: adietética, que, tal como na alimentação, prevê regimes específicospara o controle dos excessos; a econômica, pautada pelo modeloprivado da oikos, ou seja, da gerência matrimonial da casa, estendidaao ambiente público da administração da cidade; a erótica, a qualcoloca como alvo do cuidado a relação com os rapazes, visto que,como foi dito, tratava-se de uma moral essencialmente masculina; euma discussão em torno do verdadeiro amor, das possibilidades deacesso à verdade e de relações entre liberdade e amor.

Até aqui, como ficou evidente com a terminologia utilizada(“regiões da experiência”, “eixos da experiência”), o que se sobressaié a composição de um campo onde uma ação torna-se possível.Trata-se de um campo moral, historicamente determinado, quedefine as possibilidades de condutas a serem praticadas pelosindivíduos no que diz respeito ao seu “uso dos prazeres”. Dessamaneira, restaria a delimitação da dinâmica temporal ou, dito emoutras palavras, do processo histórico que tornaria viável a tal campode ação ser narrado, ou seja, a atribuição, através da narrativa, deum sentido para a experiência que nele toma lugar. No caso deFoucault, a experiência da sexualidade concerne ao processo desubjetivação dos indivíduos, isto é, à constituição de si como sujeitosde uma prática moral: uma experiência histórica é a ação de tornar-se sujeito dessa experiência. Assim, antes de prosseguir nesta análise,é preciso apontar as características principais do sujeito histórico,segundo a perspectiva filosófica de Foucault.

A fim de se indicarem essas características do sujeito histórico,há que se considerá-lo nos seguintes termos. Antes de tudo, o sujeitoé uma categoria histórica: a fragmentação do tempo praticada porFoucault em histórias descontínuas, como, por exemplo, em As

palavras e as coisas, onde um corte definitivo entre espaços de saberé instaurado, teve por mérito mostrar a historicidade do pensamentosobre o homem e, conseqüentemente, do sujeito de conhecimento;afinal, em cada tempo distinto, se pensa o humano de uma maneiradiferente. Em se tratando de discursos, o homem não lhes é soberano,

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mas apenas uma posição ocupada diante deles, a qual tem umaduração bastante restrita, como os próprios discursos. Condiçõesque lhe são alheias dominam-no; ele é constituído por discursos epráticas sociais – “as condições políticas, econômicas de existêncianão são um véu ou um obstáculo para o sujeito de conhecimentomas aquilo através do que se formam os sujeitos de conhecimentoe, por conseguinte, as relações de verdade” (Foucault, 1999a, p.27).A genealogia de Foucault descartava, pois, a figura do sujeitoconstituinte, recusava a idéia de encará-lo fora do campo deacontecimentos como que “perseguindo sua identidade vazia aolongo da história” (Foucault, 1998, p.7). Para o autor, o sujeito nãoé mais que um acontecimento historicamente datado com seucomeço no já começado e seu sempre iminente momento derradeiro,o qual somente aparece no corpo social por meio de práticas de

subjetivação. Disso decorre que é sempre uma forma deassujeitamento o que se realiza. Contudo, ela se apresenta sob duasperspectivas distintas e opostas: de um lado, o sujeitar-se ao outrosob coerção, por uma disputa de forças desiguais que não sãoexclusivamente de caráter físico; de outro, a escolha pessoal, a qualassume as vezes de escolha estética ou política, como discernimentode uma forma de existência. Lá, situa-se o caráter jurídico-moral dedisciplinamento disciplinarização; aqui, as técnicas de si baseadasem uma estética ou estilística da existência.

A subjetivação, ou seja, o próprio sujeito, dá-se enquantoexperiência, o que implica, por sua vez, o estabelecimento de relações

de verdade. Isso equivale a dizer que não existe uma verdade essenciale interior inerente ao sujeito. Pelo contrário, entende uma verdadeconstituída por meio de regimes específicos, uma certa “‘política’geral de verdade” (Foucault, 1998, p.12), ou seja, imposição eacatamento (ou oferta e acolhimento) de valores que definem overdadeiro em relação ao falso, que legitimam discursos comoverdadeiros, que autorizam determinados indivíduos a proferirem-nos, que permitem certos procedimentos de obtenção da verdadeetc. Por conseguinte, as relações estabelecidas são definidas porFoucault como “jogos de verdade”, nos quais são evidenciadas “as

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formas e as modalidades da relação consigo através das quais oindivíduo se constitui e se reconhece como sujeito” (Foucault, 1984a,p.11).

Assim, percebe-se que se reconhecer como sujeito não significareencontrar-se em uma identidade interior e anterior, situada emum lugar originário. Em outras palavras, quer se dizer que asubjetividade não é, de maneira alguma, uma categoria a priori, masque o sujeito existe apenas na medida em que se constitui como tal.A experiência, por sua vez, traz em si mesma sua própria histori-cidade, os limites temporais que a delimitam. Ela não é colocadacomo que por sobre uma história que a perpassa anterior a ela e quedefiniria seu fim próximo; ela mesma é o começo e o fim de umadeterminada história. Em uma expressão, experiência é a duplaconstrução, a de histórias pelos sujeitos, a dos sujeitos nas histórias.

Alguns dos comentadores que levaram em consideração oconceito de experiência em Foucault invariavelmente o identificama esse processo de subjetivação. Entretanto, a perspectiva de seuscomentários assimila, da maneira como não será aqui realizada, aobra a seu autor, isso é, trata-a como experiência realizada pelopróprio filósofo no sentido de desvelar novas formas de subjetividadepara seu presente. A experiência que interessa neste estudo éparticularmente a experiência grega da sexualidade, a reconstituiçãodo espaço de ação onde os indivíduos gregos do sexo masculino e dedeterminada camada social podiam se constituir enquanto sujeitosmorais no uso de seus prazeres e, especialmente, a temporalidadeprópria dessa ação. Antes, porém, de estabelecer as relações temporaisda ação e o sentido da narrativa, convém analisar as característicasdo conceito de experiência segundo a perspectiva de Thompson,uma vez que ela permitirá desenvolver mais detalhadamente asconcepções aqui propostas.

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Edward Palmer Thompson e a experiência da classe operária inglesa

O livro A formação da classe operária inglesa (Thompson, 1987a)foi de início pensado, a pedido de um editor, como uma versão dahistória do movimento trabalhista britânico no período de 1832 a1945. Recuando seu olhar em quase meio século, fato que, como severá, é de capital importância para a sua concepção de experiênciahistórica, Thompson sequer conseguiu chegar ao ano de 1840, poisestabeleceu seu recorte entre as décadas de 1790 e 1830, escrevendo,apenas sobre esse período, quase um milhar de páginas poucoconvencionais se forem levados em consideração os parâmetrosacadêmicos. O próprio autor considerou seu trabalho um tantoinocente quanto às exigências de adequação para um públicoespecificamente universitário. Em relação à sua nítida e por vezesextravagante tomada de posição, dissonante em relação à proclamadaausteridade científica da academia, afirmou categoricamente: “ahistória é a memória de uma cultura e a memória jamais pode estarlivre de paixões e de comprometimentos. Não me sinto inibido deforma nenhuma pelo fato de que minhas próprias paixões ecomprometimentos sejam evidentes” (apud Palmer, 1996, p.123-124).10 Não obstante o distanciamento de seu autor em relação àuniversidade, é inegável a importância que teve o livro nos caminhose descaminhos da historiografia acadêmica do século XX, quer sejapor questões teórico-metodológicas gerais, quer seja por questõesespecificamente internas ao marxismo, ao materialismo histórico, àhistória socialista ou à história social.11

Saliente-se ainda o fato de que, muito festejada, a escritahistoriográfica de Thompson nem sempre é objeto de consideraçõesmais cuidadosas e detalhadas. Segundo Hobsbawm (2001, p.15),Thompson, presenteado pela “dádiva da escrita”, era escritor “damais fina e polêmica prosa do século XX”. Perry Anderson, em umadiscreta ironia, sugere que, antes de importantes escritos de história,A formação da classe operária inglesa (Thompson, 1987a) e Senhores

e caçadores (Thompson, 1987b) são, sobretudo, “grandes obras deliteratura” (Anderson, 1985, p.1). Edgar Salvadori de Decca, por

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sua vez, comenta que “o ponto central do pensamento radical, querdizer, do ser radical, dissidente e libertário (exemplificado porThompson) é, antes de tudo, ter a paixão pela palavra, a paixão pelodiscurso”. Ele vai ainda mais longe e enfatiza o papel preponderanteda narrativa thompsoniana: “a narrativa é tudo, a narrativa é queconstrói o objeto histórico, é o modo pelo qual o discursohistoriográfico se constitui enquanto lógica, enquanto coerência paraque determinadas bases factuais sejam legitimadas” (de Decca, 1995,p.15 e 17). A parte mais interessada nesta última colocação, isto é, opróprio Thompson, talvez tivesse algumas ressalvas a fazer quanto atal afirmação.

Assim, entre a prosa e a literatura, passando pelo caráterinstituidor de sua narrativa, a escrita da história tal como praticadapelo autor de A formação da classe operária inglesa é objeto decomentários que, em alguns casos, acabam por contradizernitidamente a postura teórica do próprio autor (o que não é por sisó uma falha), mas cujo teor nem sempre ultrapassa a simplesimpressão estética. Nesse sentido, um olhar mais detido sobre essaprática, centrado principalmente na superfície do texto tomado comoparadigma de análise,12 pode apresentar detalhes mais interessantesao leitor que o simples louvor, a fina ironia ou o inflamadopanegírico. Para tanto, propõe-se aqui um desvio em relação àspróprias intenções de Thompson, que considerava seu livrosobretudo como “um conjunto de estudos sobre temas correlatos” enão tanto “uma narrativa seqüenciada” (Thompson, 1987a, v.I,p.12). Ou seja, a proposta que se segue é tratá-lo justamente enquantouma narrativa de um fenômeno histórico singular, isto é, a formaçãode uma classe operária em determinado espaço de ação e num prazode tempo definido.

De início, destaca-se o caráter ativo do processo em questão, ofazer-se da classe operária inglesa. Thompson aponta para a noçãode making enquanto um fenômeno que remete “tanto à ação humanacomo aos condicionamentos”, salientando que a classe em questão“estava presente ao seu próprio fazer-se”. Trata-se de um fenômenohistórico no qual convergem acontecimentos díspares “tanto na

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matéria-prima da experiência como na consciência”, fenômeno talque aponta para uma característica fundamental: classe não é umobjeto dado de antemão, mas uma relação que se constrói na medidade sua construção (Thompson, 1987a, v.I, p.9).13 Para o autor, aexistência concreta de uma classe evidencia-se pela identidade deinteresses e valores, partilhados por indivíduos segundo umaexperiência em comum, que se contrapõem a interesses e valores deoutros indivíduos que partilham uma experiência diversa e que, demodo semelhante, constituem uma classe antagônica.14 Dois são ostermos-chave nessa noção: de um lado, tem-se a experiência de classe,em grande medida determinada pelas relações de produção nas quaisos indivíduos são involuntariamente inseridos; de outro, tem-se aconsciência de classe, que se refere ao trato cultural da experiência(“tradições, sistemas de valores, idéias e formas institucionais”). Se aprimeira é determinada, a segunda pode-se dizer determinante, poisorienta o sentido das ações realizadas. Nessa direção, “podemos veruma lógica nas reações de grupos profissionais semelhantes que vivemexperiências parecidas, mas não podemos predicar nenhuma lei”(Thompson, 1987a, v.I, p.10).

Percebe-se que aqui o conceito de experiência desponta comoum espaço, definido segundo relações produtivas específicas, no qualações conscientes tomam lugar e são praticadas. Nesse caso, é a açãode constituição de uma classe que aparece como experiência: “a classeé definida pelos homens enquanto vivem sua própria história e, aofinal, esta é sua única definição” (ibid., p.12).15 Em decorrência dessaconcepção, para Thompson é impossível vislumbrar-se uma classeem um recorte sincrônico, onde, segundo ele, há simplesmente “umamultidão de indivíduos com um a montoado de experiências”; poroutro lado, em um “período adequado de mudanças”, ou seja, nadiacronia, observam-se padrões e regularidades nas ações queimplicam, como foi visto, menos leis do que uma lógica históricaprópria: “não podemos entender a classe a menos que a vejamoscomo uma formação social e cultural, surgindo de processos que sópodem ser estudados quando eles mesmos operam durante umconsiderável período histórico” (idem).16

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Assim, semelhante à noção apresentada por Foucault, aexperiência histórica em A formação da classe operária inglesa trata,de maneira geral, do processo histórico segundo o qual se elaboraum espaço de ação onde se constitui um sujeito da experiência.17 Ohistoriador inglês, na narrativa de tal fenômeno, retorna à últimadécada do século XVIII, momento em que não havia ainda umaclasse definida pela consciência que lhe assegurasse uma identidadehistórica, para reconstituir, ao longo do texto, o conjunto de“tradições persistentes” que propiciaram o campo de possibilidadepara a formação da classe operária inglesa: a tradição da Dissidênciainfluenciada pelo metodismo; a tradição nacional em torno da noçãode liberdade (o “inglês livre de nascimento”); e a tradição popularde manifestação do século XVIII (a “turba”), que mais tarde seriadefinida detalhadamente pelo autor como “economia moral damultidão”.18

A persistência de uma espécie de “radicalismo adormecido”do século XVIII, eventualmente reavivado durante o XIX, aliou-seao “quietismo político” de seitas religiosas dissidentes que dirigiamsua expectativa e o consolo compensatório das injustiças terrenaspara uma vida no além. Entretanto, salienta Thompson, aDissidência, enquanto oposição à Igreja Anglicana oficial, fortementeinspirada no fervor do jacobinismo inglês do momento, apesar desua rigidez disciplinar e de um certo intelectualismo que diminuíasua capacidade de atração popular, encontrou solo propício nodescontentamento de camadas sociais desfavorecidas: “a históriaintelectual da Dissidência é composta de choques, cismas, mutações;muitas vezes sentem-se nela os germes adormecidos do radicalismopolítico, prontos para germinar logo que semeados num contextosocial promissor e favorável” (Thompson, 1987a, v.I, p.36).19 Dessamaneira, a ação dissidente foi pelo autor definida como “viveiropara as variantes da cultura operária do século XIX” (ibid., p.52).

No conjunto das tradições em que se insere a Dissidência,Thompson localiza ainda duas outras tradições definidas como“subpolíticas”: “os fenômenos do motim e da turba e as noçõespopulares de um ‘direito de nascimento’ do inglês” (ibid., p.62).

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No primeiro desses fenômenos, está implícita uma distinçãoentre código legal e código popular, a qual orienta a dinâmica doconflito social em torno da noção de propriedade: de um lado oaparato jurídico instituído, de outro a prática de um direitoconsuetudinário. Além disso, os motins originavam-se também deum descontentamento mensurável, por exemplo, pela alta no preçodo pão. Esses distúrbios sociais por causa de alimentos constituíam-se como ações populares legitimadas por uma “antiga economiamoral paternalista”: segundo o autor, “ações de tal envergaduraindicam um modelo de comportamento e crença com raízesextraordinariamente profundas” (Thompson, 1987a, v.I, p.69).Entre tais movimentos, a turba londrina de finais do século XVIIIdesponta, no olhar de Thompson, como uma turba em transição,quase como uma “multidão radical autoconsciente” em vias de sereconhecer como classe.21

Outra tradição que expandiu o universo da cultura popular,possibilitando a formação da classe operária na Inglaterra, foi a queremetia às noções de patriotismo e independência expressas pelafórmula do “direito de nascimento”, alimentando a idéia de liberdadeindividual no ideário político inglês. Segundo Thompson, essa “retó-rica da liberdade” transcendia os limites da segurança de propriedadee englobava muitas outras manifestações que, no conjunto, refletiamum certo consenso moral compartilhado até mesmo pelas autorida-des. O indivíduo, “livre por nascimento”, aparecia como valor quedesempenhava o papel de contraponto à centralização estatal; parao historiador inglês, “nessa hostilidade ao aumento dos poderes dequalquer autoridade centralizada, temos uma curiosa mescla deatitude paroquial defensiva, teoria liberal e resistência popular”(Thompson, 1987a, v.I, p.89). Além da liberdade e da segurança doindivíduo em relação a qualquer arbítrio ou ingerência do Estado,havia uma tradição marcada por idéias igualitárias; sua expressãomaior estava no escrito de Thomas Paine, Os direitos do homem, pa-ra Thompson “uma nova retórica do igualitarismo radical, que afetouas reações mais profundas do ‘inglês livre de nascimento’ e penetrounas atitudes subpolíticas do operariado urbano” (ibid., p.102).

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Na descrição de tais tradições, Thompson desenvolveu umpercurso que lhe permitiria, no decorrer da narrativa, reconstituir ofenômeno histórico marcado pela experiência de formação da classeoperária inglesa e a simultânea constituição da consciência de classe.Opção de método e postura teórica: segundo ele, tratava-se dederrubar as “muralhas da China” que separavam, no conjunto dahistoriografia tradicional, o século XVIII e XIX. Com essa derrubada,estabelece-se uma ligação marcada pela convergência entre “a históriada agitação operária e a história cultural e intelectual do resto danação” (ibid., p.111). Trata-se de uma relação também temporal,uma vez que insere determinada experiência – a constituição deuma classe – em um estrato de tempo que a determina mas tambéma ultrapassa, já por ela modificada: um espaço de ação (não apenasde possibilidades discursivas) no qual um sujeito, atuando econstituindo-se nesse atuar, expande as perspectivas do sentido daexperiência. Se as tradições definem tal espaço pela dinâmicatemporal que elas mesmas alimentam, ele é simultaneamentedelimitado de acordo com um modelo estrutural das relações deprodução.22

Thompson destaca mais de cem páginas para discorrer sobremodos de exploração no antagonismo das classes e a correlatadeterioração das condições de vida dos trabalhadores. Recusa umaversão tradicional do tema, segundo a qual a classe operária seriameramente um produto de uma equação economicista na qual asvariantes principais seriam a energia do vapor e a indústria algodoeira.Em suas palavras, “não podemos assumir qualquer correspondênciaautomática ou excessivamente direta entre a dinâmica do crescimentoeconômico e a dinâmica da vida social ou cultural” (Thompson,1987a, v.II, p.69).23 As transformações por que passou a indústriade algodão, por exemplo, das manufaturas artesanais para o tearmecânico, ainda que com importantes implicações no desenvolverdo processo, não podem ser consideradas como razão elementar dofenômeno, pois tal posicionamento tende a desconsiderar, ou arelegar ao âmbito redutor da dicotomia “base/superestrutura” (Wood,2003, p.51-72), a persistência de tradições políticas e culturais nas

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comunidades trabalhadoras; “os operários longe de serem ‘filhosprimogênitos da revolução industrial’, tiveram nascimento tardio”(Thompson, 1987a, v.II, p.16).24

Thompson coloca em jogo, dessa maneira, a relação entreexperiência e consciência, uma vez que, instituindo um termosingular (classe) ao invés do plural que mantém as diferenças epolissemias internas das “classes”, defende que, pelo crescimento daconsciência de classe e das formas correspondentes de organização eatuação políticas, é possível homogeneizar as diferentes categoriasenglobando-as sob um conceito singular: “classe”.25 Daí que, emtrês capítulos subseqüentes, analisa as condições de vida, vale dizer,as experiências de três categorias variadas: trabalhadores rurais,“artesãos e outros” e tecelões. Para o autor, tratava-se de umaperspectiva teórica precisa que procuraria retomar “o sentido globaldo processo”, sentido esse marcado não só pela nitidez da exploraçãoeconômica e opressão política, mas também pela contribuição à“coesão social e cultural do explorado”, favorecida ambiguamentepelo metodismo, que servia também como disciplina social, e pelanoção de comunitarismo, marcadamente as sociedades de auxíliomútuo.

O que se sucede na narrativa, então, é a atuação própria dostrabalhadores no processo em direção a uma consciência de classe“plenamente” constituída, através da descrição empírica de momen-tos significativos para os argumentos do autor: as vitórias eleitoraisem Westminster, ao sul da Inglaterra, na primeira década do séculoXIX, favoráveis aos trabalhadores e que funcionaram como “válvulade escape” democrática para o descontentamento popular; o retrai-mento por conta das medidas jurídicas tomadas pelas autoridadesno sentido de proibir as associações de cunho operário; o movimentoluddista em diversas localidades, cujas práticas eram encaradas comomanifestação da cultura operária, opondo o direito oriundo dos cos-tumes às prerrogativas da legislação estatal; e o impacto, traumáticopara ingleses “livres de nascimento”, do massacre de Peterloo, noqual uma manifestação pública foi duramente rechaçada pela políciamontada, ocasionando diversas mortes de manifestantes.

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Todos esses fatores, para Thompson, contribuíram para oprocesso de formação de uma classe operária consciente de suaidentidade histórica. No ambiente de diversos conflitos convergentes(a luta pela liberdade de imprensa, aumento da força sindical,revogação das Leis de Associação, crescimento do livre pensamento,expansão das cooperativas), formou-se o solo propício para germinaruma consciência proveniente da dupla experiência da RevoluçãoIndustrial e do radicalismo popular: partiu-se da prática radical auma cultura política conscientemente articulada e fez-se valer oautodidatismo dos trabalhadores que, “a partir de sua experiênciaprópria e com o recurso à sua instrução errante e arduamente obtida[...] formaram um quadro fundamentalmente político da organizaçãoda sociedade” (Thompson, 1987a, v.III, p.304) – a classe formando-se a si mesma.

Nesse período que segue da última década do século XVIIIaté as três primeiras do XIX, Thompson estabelece o espaço no qualuma ação tomou lugar: a experiência histórica da formação da classeoperária inglesa. Evidenciada nos discursos que, a partir de então,assumiam um “nós” coletivo e nos quais o autor percebe a maturidadedo movimento operário,26 a classe operária inglesa, plenamenteconsciente de seus próprios interesses e valores, em 1832, “não estámais no seu fazer-se, mas já foi feita”, e a “presença operária pode sersentida em todos os condados da Inglaterra e na maioria dos âmbitosda vida”, se não por outros fatores, mas pela própria luta de classes(Thompson, 1987a, v.III, p.411). Com esse ensejo, é encerradatambém a narrativa de tal experiência.

Ainda que se incorra na desproporção de espaço concedidoaos dois autores em pauta, é preciso deter-se um pouco mais emuma questão-chave na obra de Thompson, visto que ela foi objetode inúmeras e pertinentes discussões, fato que não ocorreu (ainda)com o mesmo vigor em relação aos escritos de Foucault. Dos lucrose das despesas oriundos desse seu primeiro grande livro, Thompsonguardou, no decorrer da sua carreira, um que certamente encontra-se entre os principais: o conceito de experiência. Se lucro ou despesa,não se sabe ao certo.

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Dois anos após a publicação de A formação da classe operária

inglesa, em uma das suas primeiras grandes polêmicas no interior dahistoriografia marxista, Thompson aponta algumas questõesconceituais a serem discutidas pelo materialismo histórico. Salien-tando a importância do uso de modelos analíticos no estudo deprocessos históricos, o autor defende a necessidade da concepção demodelos que permitam trabalhar com a autonomia da consciênciaem frente às determinações do ser social.27 Para Thompson, enfáticonessa questão, “sem cultura não há produção”; a cultura determinao processo histórico tanto quanto a economia e, a partir dessaconcepção, a luta de classes é, ao mesmo tempo, uma luta deinteresses e valores elaborados culturalmente:28

[...] o que muda, assim que o modo de produção e as

relações produtivas mudam, é a experiência de homens

e mulheres existentes [...] a transformação histórica

acontece não por uma dada “base” ter dado vida a

uma ‘superestrutura’ correspondente, mas pelo fato

de as alterações nas relações produtivas serem

vivenciadas na vida social e cultural, de repercutirem

nas idéias e valores humanos e de serem questionadas

nas ações e crenças humanas (Thompson, 2001,

p.260-262).

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Surge daí o papel central assumido pelo conceito de experiência

na obra do historiador inglês, qual seja, desempenhar um papelmediador entre a consciência social e o ser social.29 Em sua famosapolêmica contra Louis Althusser, publicada em 1978 com o títulode A miséria da teoria (Thompson, 1981), destacam-se pontoscapitais sobre epistemologia da história tais como entendidos epraticados por Thompson. Para este, sem meias palavras, “aexperiência não espera discretamente, fora de seus gabinetes, omomento em que o discurso da demonstração convocará a suapresença. A experiência entra sem bater à porta e anuncia mortes,crises de subsistência, guerra de trincheiras, desemprego, inflação,genocídio” (ibid., p.17). Ela se caracteriza pelas pressões do ser social

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sobre a consciência social e também aparece como resposta mentale emocional dos indivíduos ou grupos sociais em determinadosacontecimentos.30 Para o autor, a relação entre a história, enquantofluxo de tempo, e o indivíduo, em sua finitude temporal, dá-se pelaexperiência, que surge espontaneamente no ser social, mas isso apenasse dá quando esse ser é pensado: “assim como o ser é pensado,também o pensamento é vivido” (id.).

Thompson considera o âmbito da cultura como lugar primeiroda experiência, uma vez que esta “dá cor à cultura”. Assim, salientaque a experiência é um dos “silêncios de Marx”, bem como o “termoausente” no “planetário” de Althusser: naquele, a ênfase recai nasdeterminações de base econômica da infraestrutura; neste, a teoriasobrepõe-se ao mundo empírico. Contudo, Thompson permaneceno âmbito do materialismo histórico, reinventando-o e rejeitandoveementemente a alcunha de “culturalista”, pois acredita que aexperiência é sempre gerada na vida material, sob a pressãodeterminante do modo de produção sobre a consciência dosindivíduos. Seu interesse é ressaltar a agência humana no processohistórico, apontando para um retorno do sujeito da experiência,“não como sujeitos autônomos, ‘indivíduos livre’, mas como pessoasque experimentam suas situações e relações produtivas determinadascomo necessidades e interesses e como antagonismos, e em seguida‘tratam’ essa experiência em sua consciência e sua cultura das maiscomplexas maneiras e em seguida agem, por sua vez, sobre suasituação determinada” (Thompson, 1981, p.182). Portanto, ao invésde um processo previsível no qual os fenômenos se ligariam porcausalidades mecânicas, Thompson retoma a imprevisibilidade daação humana, na manipulação pelos indivíduos de sua própriaexperiência.

Essa imprevisibilidade não implica uma recusa da racionalidadedo processo, o que é por Thompson definido como “statusontológico do passado”. Como o autor já havia salientado em Aformação da classe operária inglesa, não se trata de leis regendo ahistória, mas de uma lógica construída mediante a significação doprocesso; para ele, seria possível medir-se, pela relação entre ser e

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consciência, a amplitude das ações possíveis em um definido contex-to, embora seu sentido permaneça para além das predeterminações.Uma crítica pertinente a tal concepção foi formulada por PerryAnderson, que considera problemática a ligação tão direta entre açãoe consciência. Para este, há setores na história em que a ação nãoincide socialmente de maneira voluntária ou consciente, como asanálises demográficas e os estudos sobre a língua podem comprovar;neste caso, a consciência do ato (de reproduzir-se ou de falar) estáinserida em um conjunto de determinações que transcendem ocontrole dos indivíduos. Em A formação..., por exemplo, “a formafundamental que tomou esta ação foi a conversão de uma experiênciacoletiva em uma consciência social que, assim, definiu e criou por simesma a classe” (Anderson, 1985, p.32). Com isso, conclui ele, opeso elevado da consciência na ação acaba por tornar esta uma refémna obra de Thompson, com um papel “ajustado ad hoc” paraencaixar-se em determinados propósitos. Constantemente procuradono livro, o papel da ação segue nele sendo esquivo.

Se, para Thompson, a experiência é o mediador entre ser sociale consciência, para Anderson, essa mediação não é de todo evidentee, em alguns casos, deixa de existir pela pressão absoluta do ser sobrea consciência. William Sewell Jr., por sua vez, acredita que experiênciaé o conceito-chave da “estratégia narrativa” de Thompson, o qualnão pode desempenhar um papel mediador justamente pelo fato dea formação da classe ser ela mesma uma experiência. O que poderiaaparecer como paradoxo impulsiona o olhar para outra direção dodebate. Ao invés de aprofundar a discussão das relações entre ser econsciência, Sewell Jr. sugere que o verdadeiro sentido do conceitode experiência como medium é menos a mediação entre doiselementos e mais o espaço em que as ações tomam lugar e realizam-se: “as relações de classe tacitamente colocadas como presentes nabase material, são realizadas no meio (medium) da experiênciahumana [...] uma estrutura sincrônica tacitamente colocada realiza-se a si mesma nas vidas reais, históricas e experienciadas dos atoreshumanos” (Sewell Jr., 1990, p.60). Aquilo que não poderia serexplicado por determinações infra-estruturais seria deslocado para

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o âmbito da experiência, esta “categoria residual” que concerne às“profundas complexidades da existência humana” e à “operaçãoimprevisível da agência humana” (ibid., p.62-63).

Talvez “categoria residual”, pelo seu papel central no debate,não seja um termo de todo adequado para definir o conceito deexperiência em Thompson, mas é possível seguir-se a linha deraciocínio de Sewell Jr. deixando-se de lado o debate tal comoconduzido por Anderson. Ao invés de se perceber a experiênciaapenas por meio da dicotomia ser/consciência, é possível considerá-la, no interior da narrativa como conceito que estabelece um espaçode ação determinado por relações estruturais de produção, no quala consciência encontra o meio (medium) para se constituirautonomamente e, por conseqüência, ser determinante no modocomo tais relações são vivenciadas. É a experiência como ação quese tematiza, não apenas como relação, e, enquanto tal, é a dinâmicada ação que interessa discutir tendo por pano de fundo asconvergências entre o tempo da narrativa da experiência bem comoo tempo da experiência narrada. Vejamos, portanto, em que medidaé possível trabalhar-se com o conceito da maneira como desenvolvidopor Foucault e Thompson.

A experiência histórica

Encontrar-se uma maneira de trabalhar o mesmo conceitoutilizando-se autores oriundos de tradições tão díspares e antagônicasnão é das coisas mais simples. Como aponta Durval Muniz deAlbuquerque Junior, em artigo que tem por tema justamente oconceito de experiência em Thompson e Foucault, esses dois autorespartem de pressupostos teóricos tais, cuja distinção tornainconciliável um ao outro (Albuquerque Jr., 2002, p.61-75). Ambosdefinem a história a partir de duas diferentes perspectivas,denominadas pelo autor como “realismo” e “nominalismo”. Naprimeira, notadamente a de Thompson, Albuquerque sugere que oque se defende são essências, totalidades, a verdade na razão e uma

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experiência unitária; a realidade existe anterior à linguagem, e aexperiência distingue-se da consciência como uma empiria anterior,caracterizando-se como o lugar por excelência do ser. A outra,propriamente de Foucault, é apresentada pelo autor como dispersãodas totalidades, como polissemia da verdade, pela crítica da razão epela fragmentação da experiência; realidade e linguagem condicio-nam-se mutuamente, não havendo um a priori do discurso: na expe-riência, o ser e a consciência são inseparáveis.

Parece-me, contudo, que, neste caso, se trata da experiênciamuito mais como uma idéia norteadora de determinada posturaepistemológica (para Thompson, história como estudo dassemelhanças; para Foucault, como estudo das diferenças) do queprecisamente, tal como se entende aqui, como conceito inseridoem uma narrativa, utilizado para garantir a dinâmica temporal deum definido processo. Essa é uma sutileza teórica que sugere certodesvio em relação a grandes generalizações. Tomando-se a experiênciacomo conceito que tem por escopo estabelecer uma referênciaempírica na ordem temporal de determinado fenômeno, pode serpossível realizar-se essa reflexão no ponto de cruzamento dos textosde tais autores. Como se buscou evidenciar, tanto na história dasexualidade grega quanto na da classe operária inglesa, a experiênciadiz respeito a um processo no qual, segundo condições tais, dá-seum fenômeno cuja construção é simultânea à constituição daqueleque age enquanto sujeito. No que é tido como óbvio, esse é o dadoprévio fundamental: a experiência histórica refere-se à experiênciade um sujeito da história. Alterando-se o foco, é possível inserirem-se alguns outros dados nesse problema, abstraindo-se sua evidenteobviedade: experiência e subjetividade tornam-se mais compreen-síveis quando relacionadas com duas outras categorias, quais sejam,ação e tempo. O resultado é o enlace entre um sujeito da ação e suaexperiência de tempo.

Tanto Thompson como Foucault estabelecem o conceito deexperiência como espaço onde uma ação desenvolve-se segundoarticulações de tempo distintas. A formação da classe operária inglesaé uma ação na qual se privilegia o “espaço de experiência” de seu

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sujeito, enquanto que a constituição do sujeito moral grego (naperspectiva do que consideramos como sexualidade) é uma açãoorientada preponderantemente em direção a um “horizonte deexpectativa”.31 Tais argumentos talvez se tornem evidenciados se oolhar incidir sobre o texto narrativo.

A primeira parte de A formação da classe operária inglesa édestinada à reconstituição do que Thompson definiu como “tradiçõespersistentes”, cujos germes adormecidos desabrochariam segundocondições favoráveis. Tais tradições criariam as circunstânciaspropícias para a formação de uma classe operária, não apenasenquanto fator do modo de produção, mas segundo um grau elevadode consciência que gerasse sua identidade histórica própria. Nesseprocesso, o conflito de interesses visto sob a perspectiva culturalsurge como conflito por temporalidades diferentes; a luta de classes,entendida como luta de valores, encontra expressão em doiselementos contraditórios entre os quais o tempo sofre a tensão dedireções opostas: o retorno ao anterior dos valores consuetudináriosdas camadas de trabalhadores e o agora em diante do modeloprogressivo de uma classe capitalista.

Referente a tais tradições, o autor salienta um princípio“subpolítico” que aparece em alguns momentos específicos: na defesairredutível das aspirações liberais do indivíduo representado pelanoção de “inglês livre de nascimento”, bem como a idéia depatriotismo, pela qual havia a crença em um “lugar original”; naeconomia moral legitimando formas de ação espontânea na segundometade do século XVIII, momento em que, segundo Thompson,tornou-se mais aguda a distinção entre um código popular não-escrito em processo de deterioração em prol de um código legaloficializado; nos motins resultantes da alta no preço dos alimentosou mesmo da perda de espaços de sociabilidade como as feiras livres,nas quais vigoravam certos costumes de preço-justo, em oposição àespeculação do livre mercado, e que, para o historiador, indicavamum comportamento com raízes bastante profundas da culturapopular. Aquilo que Thompson qualifica como “subpolítico” estáinserido em um plano de sucessão: o prefixo, no caso, remete a

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certa anterioridade de uma ação, que é muito mais uma escala detempo que uma hierarquia de valores; o subpolítico não está abaixodo político, ele é o que precede este.

A experiência de formação da classe é compreendida comoum “espaço de experiência” em que, na pressão exercida pelo passadosobre o presente, é criada a condição histórica da classe operária.Entre tais indivíduos, saliente-se a presença de “homens que nutremressentimentos pelos direitos perdidos e apresentam as resistênciasinerentes ao ‘inglês que nasceu livre’” (Thompson, 1987a, v.II, p.57).A destruição de padrões de vida impulsionava seu anseio pelo retornoa certos modelos ancestrais, explícitos nas palavras do líder cartistaFeargus O’Connor, que dão mostras do que Thompson chamou de“mito social da idade de ouro da vila comunitária anterior aoscercamentos e às Guerras”: “que possamos viver para assistir àrestauração dos velhos tempos na Inglaterra, das velhas tradiçõesinglesas, dos antigos dias santos, da antiga justiça, e que cada homemviva do suor do seu rosto [...]” (apud Thompson, op. cit., p.65).Entre os tecelões do norte, por exemplo, “as recordações do statusperdido fundamentava-se em experiências reais e de longa duração”,permeadas pela “lenda de um passado melhor” (ibid., p.120).

O que se evidencia é que a consciência que se constituía noprocesso era também uma consciência de tempo, de um rumo e deum ritmo temporais contra a qual seria possível imporem-seexperiências outras, pautadas por temporalidades diferentes, comseus valores agregados fundados segundo padrões diversos. Nesseponto, momento de transição entre duas formas de vida social, àstradições dissidentes apresentadas na primeira parte do livrojuntaram-se modelos de exploração que marcavam as condições devida dos trabalhadores, descritas na segunda parte. A consciência declasse em formação era também uma forma de resistência; “tratava-se de uma resistência consciente ao desaparecimento de um antigomodo de vida, freqüentemente associada ao radicalismo político”(ibid., p.300). O desaparecimento da “velha Inglaterra” acompa-nhava-se de uma classe nova que se fazia surgir.

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As atividades luddistas expostas na terceira parte do livroseguem, em grande medida, uma tal consciência. O radicalismo,nas suas condutas, apontava para um “conflito de transição”, pois,“de um lado, olhava para trás, para costumes antigos e uma legislaçãopaternalista que nunca poderiam ressuscitar; de outro lado, tentavareviver antigos direitos a fim de abrir novos precedentes” (Thompson,1987a, v.III, p.123). A isso se soma a função de amálgamadesempenhada pelo metodismo no sentido de um espaço comumpara o sentimento de pertencimento a determinado grupo, além dacapacidade de organização institucional desse grupo. Evidenciava-se ainda mais a consciência de classe pela formação de um instrumen-tal discursivo pertinente, destacando-se aqui a apropriação pelostrabalhadores das idéias owenistas. Dentro de tal movimento, varia-das tendências eram assumidas e, para uma parte do grupo de traba-lhadores, os “qualificados”, “o movimento que começara a tomarforma em 1830 finalmente parecia dar corpo a sua aspiração hátanto tempo alimentada – uma união nacional geral” (ibid., p.399).

Em 1832, portanto, segundo o espaço de experiência que atornou possível, a classe operária inglesa chegava finalmente ao seu“presente”, e sua presença, para Thompson, era já sentida por todaparte. Nesse caso específico, as pressões do passado orientam a ação;o passado-presente define a possibilidade de uma história e, da mesmamaneira, determina também suas condições de representação, istoé, sua forma narrativa.

A experiência da sexualidade grega estabelece uma dinâmicaatravés da qual é o “horizonte de expectativa” do sujeito que aexperiencia aquilo o que define o sentido temporal da açãoempreendida. A problematização dos prazeres, da forma comoFoucault a realiza, instaura o recorte de diversos “eixos daexperiência”, por meio dos quais, segundo condições específicas, oindivíduo reconhece-se como sujeito, isto é, ele se pensa através deum conjunto de valores definidos como uma estética da existência.“É verdade que toda ação moral comporta uma relação ao real emque se efetua, e uma relação ao código a que se refere; mas ela implicatambém uma certa relação a si; essa relação não é simplesmente

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‘consciência de si’, mas constituição de si enquanto ‘sujeito moral’”(Foucault, 1984a, p.28). Daí que a agência humana é tambémtematizada por Foucault, na medida em que ele estabelece a distinçãoentre elementos do código moral e elementos da ascese pessoal. Arelação entre ambos determina o grau de autonomia desenvolvidapelo sujeito da ação relativamente ao seu campo de atuação.

As regras de temperança que definem o “uso dos prazeres” têmpor escopo fundamental a longevidade que se apresenta sob doisaspectos: de um lado, o prolongamento da vida singular do indivíduoe, de outro, a perpetuação coletiva da espécie. No primeiro caso, afinitude de tempo, ou seja, a duração, encontra-se recortada peloslimites do corpo e, no segundo caso, ela é estabelecida pelo períododa vida. O uso adequado dos prazeres garante a energia do corpo ea reprodução da vida. A relação de si do sujeito é, em razão disso,tomada em dois níveis: uma relação consigo mesmo e uma relaçãosocial com o grupo. Em Platão, por exemplo, desenvolve-se ummodelo cívico de moderação, sendo que “nele a ética dos prazeres éda mesma ordem que a estrutura política” (ibid., p.67). O “horizontede expectativa” que se abre segundo os modelos dessa estética davida visa a um estado de liberdade em conformidade com a verdadeda razão (logos), não entendida como livre-arbítrio, mas como opostaà servidão; trata-se de uma liberdade ativa do sujeito, “indissociávelde uma relação estrutural, instrumental e ontológica com a verdade”(ibid. p.84). A ética dos aphrodisia sustenta o domínio de si mesmo,em contraposição à escravidão das próprias paixões, e sustentatambém uma idéia de sociedade não regida pelo desmedido poderdo tirano, mas pelo controlável exercício do chefe.

O que se sobressai disso tudo é um ideal de vida bastantesingular. “Pelo logos, pela razão e pela relação com o verdadeiro quea governa, uma tal vida inscreve-se na manutenção ou reproduçãode uma ordem ontológica; e, por outro lado, recebe o brilho deuma beleza manifesta aos olhos daqueles que podem contemplá-laou guardá-la na memória” (ibid., p.82). Mais adiante, Foucaultacrescenta: “o indivíduo se realiza como sujeito moral na plástica deuma conduta medida com exatidão, bem visível de todos e digna de

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uma longa memória” (ibid., p.84). A constituição do sujeito naexperiência histórica narrada por Foucault é uma ação dirigida aofuturo, ao devir, destinada a se perpetuar na memória; uma ação deespera e esperança de acordo com as possibilidades e probabilidadesde algo vir a ser real (realizado). Nos eixos da experiênciaconsiderados, a perspectiva é semelhante.

O regime dos prazeres na dietética tem por objeto o cuidadocom o corpo, não para empurrá-lo para além de suas capacidadesnaturais, mas para segui-lo na completude de seus limites, semantecipá-los por motivo de dispêndio de energia. O bom uso docorpo pelo indivíduo tem também como uma de suas funções ocuidado com a progenitura e com o futuro de sua família, bemcomo, em outra escala de valor, o futuro da espécie, esta ligada ao“princípio da reprodução, na medida em que coloca como finalidadeda procriação paliar o desaparecimento dos seres vivos e dar à espécie,tomada no seu conjunto, a eternidade que não pode ser concedidaa cada indivíduo” (ibid., p.121). Já a econômica, no movimento quesegue da condição matrimonial doméstica chegando em uma idéiamais abrangente de vida civil, ou cidadania, é o caso de projeçõesrelativas à boa gerência dos bens, conservando e ampliando estruturasmateriais da família, mas também relativas ao destino do grupo social,ao bom governo das pessoas e à boa administração da cidade. Aqualidade de chefe de família funciona como parâmetro para umbom governante e para um futuro desejado para a pólis. Na erótica,por sua vez, a escolha dos rapazes e a condição entre ativo e passivona relação envolvem critérios e valores que concernem à manutençãoda honra e do status do indivíduo. O perigo constante de seestabelecer um vínculo vergonhoso, marcado pelo excessivo poderexercido entre os parceiros, tornava-se, então, problemático. Afinal,era uma relação entre indivíduos do mesmo sexo, embora de idadesdiferentes, em que a atividade ou passividade do rapaz em relaçãoao homem dizia respeito à futura posição de tal jovem na cidade.

Enfim, nas palavras de Foucault, “a exigência de austeridadeimplicada pela constituição desse sujeito senhor de si mesmo não seapresenta sob a forma de uma lei universal, à qual cada um e todos

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deveriam se submeter; mas, antes de tudo, como um princípio deestilização da conduta para aqueles que querem dar à sua existênciaa forma mais bela e realizada possível” (ibid., p.218). A expectativaé projetada em direção a uma vida “bela”, marcando, de certamaneira, a permanência do indivíduo para além dos limites físicosde sua existência, através de uma experiência memorável.

*

Na análise das duas obras que se utilizam do conceito deexperiência, procurei o entendimento das funções desse conceito nointerior do texto em que está inserido, articulando temporalidadesvariadas e organizando-as no tempo de uma narrativa específica.Tanto em A formação da classe operária inglesa quanto em O uso dos

prazeres, o que se objetiva é uma ação particular, a constituição desujeitos históricos, porém, no primeiro caso, a experiência é orientadado passado para um presente, enquanto que, no segundo caso, elase orienta do presente para um futuro. Todavia, não é por si sósuficiente essa simples constatação, a de que Thompson e Foucaultutilizam o conceito de experiência de modo semelhante (enquantocampo de ação para determinado sujeito), embora com umadiferença fundamental de sentido (a experiência em relação aopassado, para um, e ao futuro, para outro). Certamente a tradiçãointelectual à qual ambos se filiam desempenha aí preponderanteinfluência, com conseqüências capitais para o entendimento quefazem da história, as quais são esboçadas em artigo já mencionado(Albuquerque Jr., 2002). Entretanto, elas explicam pouco sobre osentido temporal dado à experiência pelos autores, tema restrito dopresente estudo.

Seria possível argumentar-se que o apego de Thompson aoromantismo desviaria seu olhar para o passado, enquanto que, paraFoucault, pertinente mais à sua biografia, tratar-se-ia de umaconstante recusa em permanecer imóvel, no anseio de sempre sedeslocar e inventar novos “modos de vida”. Não obstante, emdecorrência mesmo da perspectiva aqui assumida, a pergunta que se

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coloca é menos sobre o porquê de uma tal escolha e mais sobre asimplicações dela na feitura do texto historiográfico. Essa opção nãodesconsidera o âmbito contextual do texto, mas apenas restringe oolhar para a superfície do escrito, isto é, os elementos textuais danarrativa.

O fato de eles partirem de determinações teóricas diferentesacarreta, por conseguinte, concepções díspares de sujeito e deprocesso de subjetivação. Coerente em sua postura, Thompsonenfatiza a lógica do processo ou o que define como “status ontológicodo passado”. Dessa maneira, uma história una constitui-se a partirde diversas outras histórias, “de modo que todas essas ‘histórias’distintas devem ser reunidas no mesmo tempo histórico real, o tempoem que o processo se realizada” (Thompson, 1981, p.111). No anseiode explicitar o papel determinante da agência humana nesse processoconstituído de inteligibilidade e intenções, segundo os pressupostosdo materialismo histórico ao qual se filia, o historiador inglês acabapor desenvolver uma concepção teleológica da subjetividade, pois,seguindo seu raciocínio, se a classe estava presente em seu própriofazer-se, as intenções de fazê-la também estavam presentes desde oinício de sua formação. Nesse processo linear das últimas décadasdo século XVIII até precisamente o ano de 1832, a classe aparece,então, como um sujeito unificado em um presente segundocondições estabelecidas pelo seu “espaço de experiência”, isto é, peloseu passado. Se a lógica da ação não implica uma lei, nela está inseridadesde logo uma “teleologia do sujeito”, de um sujeito comofundamento da história.

A expressão “teleologia do sujeito” é também utilizada porFoucault, embora com um sentido profundamente desigual. Nestecaso, trata-se de colocar o sujeito em um tempo que não se realiza,jamais se tornando presente, ou seja, um futuro sempre empurradopara mais adiante. Foucault não assume uma identidade do processohistórico que possibilitaria uma concepção unificada de sujeito, masatribui à história uma lógica dos acasos. A genealogia foucaultianaespreita os acontecimentos tidos como sem história no anseio dereencontrar o momento em que ainda não aconteceram. Isso não

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quer dizer, em absoluto, tratar-se de uma pesquisa de origem, este“desdobramento meta-histórico das significações ideais e dasindefinidas teleologias” (Foucault, 1998, p.16). A genealogia é apaciente procura dos começos históricos, lá onde não há umaidentidade originária, apenas o disparate dos acasos, daquilo que éjá começado; o genealogista, por sua vez, faz descobrir “que na raizdaquilo que nós conhecemos e daquilo que nós somos – não existema verdade e o ser, mas a exterioridade do acidente” (ibid., p.21).Nessa linha de raciocínio, não há uma origem fundadora para asubjetividade, e o sujeito plenamente constituído apenas aparececomo disperso em um futuro inatingível, estando sempre por serealizar na e pela história.

Thompson consegue vislumbrar, em um momento específico,uma classe plenamente formada através de um processo de luta,consciente de seus interesses antagônicos em relação a outra classe.Se a experiência narrada era a da formação dessa classe, a narrativapode ser interrompida nesse momento oportuno, o ano de 1832. Jáhá, configurada no texto, uma ação una e completa: o sujeitohistórico aparece inteiramente constituído, o que não implica oencerramento de uma história, mas o fechamento de uma narrativa– “mas os trabalhadores não devem ser vistos apenas com as miríadesde eternidades perdidas. Também nutriam, por cinqüenta anos ecom incomparável energia, a Árvore da Liberdade. Podemosagradecer-lhes por esses anos de cultura heróica” (Thompson, 1987a,v.III, p.440). Em Foucault, a ação não atinge seu termo, não emergeem determinado momento do texto um sujeito plenamenteconstituído; a narrativa não se conclui em um ponto derradeiro, elaapenas indica a direção ao futuro, ao próximo volume da longahistória da experiência ampla da sexualidade. O texto é encerrado, ea intriga fecha-se no limite do livro, com um espaço configurado deuma ação possível, mas a experiência da subjetividade permanece edesloca-se: a ética cristã será diferente, e, depois dela, nos próximosvolumes, outros deslocamentos. Não interessa a ele a duração daação, mas seu campo de possibilidade; a ação narrada é sempre umaação possível, uma ação a ser realizada.

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Na base de tais concepções, esboça-se um lugar particular, comsuas determinações específicas na construção de cada texto. ParaThompson, seu escopo é bastante claro: se a experiência é umprocesso com uma lógica própria e una, “em última análise, a lógicado processo só pode ser descrita em termos de análise histórica;nenhuma analogia derivada de qualquer outra área pode ter maisque um valor limitado, ilustrativo e metafórico” (Thompson, 1981,p.97). Em decorrência, a conseqüência óbvia para ele é que “omaterialismo histórico deve, neste sentido, ser a disciplina na qualtodas as outras disciplinas humanas se encontram [...] a Históriadeve ser reconduzida a seu trono como rainha das humanidades...”(ibid., p.83). É bem verdade que, para evitar o imperialismoepistemológico, Thompson adverte que a disciplina história étambém a mais imprecisa, devendo sempre estar atenta a seuspressupostos teórico-metodológicos. O que se salienta é que a lógicahistórica é o próprio discurso de comprovação da história, aquiloque a legitima como conhecimento. Foucault é enfático de outramaneira, e seu escopo é justamente o contrário da defesa de umterritório. No seu entendimento, trata-se de realizar a crítica daperspectiva metafísica da história que, segundo o modeloantropológico de um sujeito fundador e unificado, busca inserir, nacontinuidade de uma origem, um lugar para a identidade. Para ele,“saber, mesmo na ordem histórica, não significa ‘reencontrar’ esobretudo não significa ‘reencontrar-nos’. A história será ‘efetiva’ namedida em que ela reintroduzir o descontínuo em nosso próprioser” (Foucault, 1998, p.27).

Em suma, da parte de um, a história é construção de umaidentidade histórica para determinado sujeito, mostrando de ondeele se originou e o que ele é ou está para ser; da parte do outro, ela éa prática de rarefação da identidade, do desvanecer do sujeito,mostrando o que ele deixou de ser e o que não é mais nem é ainda. Oconceito de experiência, da maneira como aparece nos textos de cadaum desses autores, é devedor de suas respectivas posturas teóricas ede suas diferentes concepções de história, mas, no interior da intrigaarmada, tanto para um quanto para outro, tal conceito organiza o

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sentido da história e confere significado para a ação realizada e, valedizer, narrada.

The narrative of experience in Foucault and Thompson

Abstract. The text analyzes the concept of experience in Michel Foucault’s andEdward Thompson’s works, specifically the way both organize, in the historicalnarrative, a particular action, characterized by the temporality of the constructionof a historical subject.Keywords: Michel Foucault. Edward Thompson. Experience.

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Notas

1 Aviso desde já que não me deterei aqui nos escritos de Ricoeur e Koselleck, o quedemandaria outro artigo específico. Quando necessário, indicarei as obras nasquais baseei minhas considerações.2 Para o prefácio à primeira edição de História da loucura, ver Foucault (1999,p.140-148); para seu último texto, ver Foucault (2000, p.352-366).3 Este texto é uma versão modificada do prefácio à tradução americana do livro doepistemólogo francês, O normal e o patológico, publicado em 1985 no número daRevue de Métaphysique et de Morale que tematizava a obra de Canguilhem.4 Em seu primeiro escrito publicado, uma introdução de 1954 a O sonho e a

existência, do psicanalista suíço Ludwig Binswanger, já aparece a utilização dotermo, embora trate-se de um texto “rejeitado” por Foucault. Quanto aoscomentários, é possível citar alguns mais explícitos: Godinho (1993, p.27-34);Marcos (1993, p.131-136); Souza (2000).5 De acordo com essa noção, Foucault considera que há semelhanças entre osconhecimentos de cada experiência em particular, os quais são profundamentediferentes dos conhecimentos das experiências anterior ou posterior. Desse modo,segundo o autor, a biologia é muito mais parecida com a economia política, ambaspertencentes à experiência epistemológica moderna, do que com a história naturalda episteme clássica.6 Para um ensaio fundamental que define a genealogia foucaultiana, ver o capítuloNietzsche, a genealogia e a história, em Foucault (1998, p. 15-38). Ali se encontraum dos pressupostos fundamentais desta prática: “nada no homem – nem mesmoseu corpo – é bastante fixo para compreender outros homens e se reconhecerneles” (p. 27).7 Quanto à questão da configuração da ação, apenas remeto para os estudos sobrea tríplice mímese realizados por Ricoeur (1994).8 Em Discourse and truth: the problematization of parrhesia, Foucault (1983) defineesse procedimento como o estudo sobre “o modo como instituições, práticas,

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hábitos e comportamentos se tornam um problema para as pessoas que secomportam de maneira específica, que têm certos hábitos, que se engajam emcertos tipos de práticas e que constroem tipos singulares de instituições”. Um anomais tarde, em entrevista, complementa tal definição: “problematização não querdizer representação de um objeto preexistente, nem criação pelo discurso de umobjeto que não existe. É o conjunto das práticas discursivas ou não discursivas quefaz alguma coisa entrar no jogo do verdadeiro e do falso e a constitui como objetopara o pensamento (seja sob a forma de reflexão moral, do conhecimento científico,da análise política etc.)” (Foucault, 1984b, p. 76).9 Para a questão específica do sujeito nos escritos de Foucault a partir de 1976,segundo o recorte do tema da amizade e subjetividade, ver Ortega (1999). Parauma síntese mais generalizante e por vezes pouco convincente, ver Araújo (2000).10 Postura semelhante à de Foucault genealogista, que criticava o fato de que “oshistoriadores procuram, na medida do possível, apagar o que pode revelar, em seusaber, o lugar de onde eles olham, o momento em que eles estão, o partido queeles tomam – o incontrolável de sua paixão” (Foucault, 1998, p. 30).11 Para tais questões, limito-me apenas a algumas referências bibliográficas: Johnson(1983); Samuel (1984); Anderson (1985); Kaye (1990); o número especial Diálogos

com E. P. Thompson, da revista Projeto História. Revista do Programa de EstudosPós-Graduados em História e do Departamento de história da PUC/SP, n. 12,out. 1995; e Palmer (1996).12 Para a noção de texto como paradigma de análise de uma reflexão teórica sobrea prática dos historiadores, remeto a outro artigo no qual a desenvolvo com maisprecisão (Nicolazzi, 2003, p. 45-76).13 Sobre esse ponto, ver o capítulo Classe como processo e como relação, de Wood(2003, p. 73-98).14 No livro em questão, o autor não se detém sobre a classe contra a qual aconsciência operária construiu-se a si mesma, tomada desde o início como dadoobjetivo pronto. Nesse sentido, ele desconsidera, em sua análise, as possíveis erecíprocas influências que a instituição de interesses e valores por ambas as classes,em seus processos de formação diferentes mas profundamente imbricados um nooutro, tiveram em suas experiências.15 Em outra ocasião, no texto As peculiaridades dos ingleses, o autor sustenta que adefinição de classe “só pode ser feita através do tempo, isto é, ação e reação, mudançae conflito [...] classe, mesmo, não é uma coisa, é um acontecimento” (Thompson,2001, p. 169).16 William H. Sewell (1990, p.58-59) contrapõe a essa idéia o argumento de quea própria noção de relação (a classe como relação) é profundamente sincrônica,pois a ela convergem fatores díspares em um determinado recorte de tempo eaponta para o fato de que o próprio texto de Thompson, ao tratar diacronicamentedo surgimento da classe, é repleto de análises pontuais e sincrônicas.

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17 Segundo Keith McClelland (1990, p.3), tal é o mérito da obra de Thompson,a saber, de que “é possível para as pessoas fazer de si mesmas algo diferente do queaquilo que a história fez delas”. Sewell Jr. (1990, p.65) compartilha tal visão eaponta para a relação desse processo concreto com sua narrativa, sugerindo que“Thompson não desenvolve uma elaborada teoria do sujeito, mas passa boa partedo tempo construindo sujeitos em sua narrativa”.18 Ver o capítulo A economia moral da multidão inglesa no século XVIII (Thompson,1998, p. 150-202). O original desse texto data de 1971, embora a expressão“economia moral” apareça já em A formação da classe operária inglesa, de 1963.19 O autor aponta ainda o fato de que, apesar da influência “regressiva eestabilizadora”, o metodismo foi responsável, embora indiretamente, por umamelhora na auto-estima e na capacidade de organização do operariado (Thompson,1987a, p. 42 e ss).20 Esse conflito é analisado pelo autor também em outro trabalho historiográfico(Thompson, 1987b).21 Ao invés do disparate comum atribuído pelos estudiosos das massas do séculoXIX, Thompson aparece como expoente dos estudos que “devolveram”racionalidade política à ação social das multidões. Ver, a esse respeito: Julia (1998,p. 217-232); Desan (1995, p. 63-96); e Davis (1990), especialmente o capítuloRazões do desgoverno (p. 87-106).22 O próprio autor, em entrevista de 1976, vale-se do termo “versão estruturalista”,para se referir ao capítulo intitulado Exploração, da segunda parte do livro. Salientaainda de modo enfático que “nenhum marxista pode não ser estruturalista, emcerto sentido” (Thompson, 1984, p. 310). Apesar disso, no texto Folclore,

antropologia e história social, não deixa de traçar críticas à transposição de modelosestruturalistas da antropologia, isto é, de Levi-Strauss, para a análise historiográfica,além da famosa querela contra o estruturalismo althusseriano (Thompson, 2001,p. 248-249).23 A perspectiva cultural do autor ultrapassa a simples formulação teórica e incidedecisivamente na prática, isto é, no acesso empírico pelo documento. Thompsonvale-se sobremaneira de fontes tais como relatos, diários, cartas etc; todo um aparatoque lhe permitisse recuperar as “minorias com linguagem articulada”.24 Em passagem famosa do livro A formação da classe operária inglesa, Thompson(1987a, v.II, p.18) afirma que “a classe operária formou a si própria tanto quantofoi formada”.25 Esse posicionamento é motivo de uma das críticas ao livro feitas por PerryAnderson em seu debate no interior do marxismo inglês, na obra Teoría, política

e historia. Un debate con E. P. Thompson (1985), cujo título original é Arguments

within English marxism.26 Norberto Ferrera (1999, p.360-375), talvez de maneira apressada, percebe,além das controvérsias, uma aproximação de Thompson com a chamada “viradalingüística”, a partir das relações entre a experiência de classe e seu próprio discurso.

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27 Conforme o texto As peculiaridades dos ingleses (Thompson, 2001, p. 75-180).Uma década após, em Modos de dominação e revoluções na Inglaterra, Thompsonafirma ainda essa idéia, deixando, contudo, uma certa incoerência de pressuposto:“é preciso levar a sério a autonomia dos acontecimentos políticos e culturais quesão, todavia, em última análise, condicionados pelos acontecimentos ‘econômicos”(Thompson, 2001, p. 207).28 Nesse sentido, talvez, não seja demais argumentar que a influência weberianaem sua obra transcende alguns comentários feitos a respeito dos estudos sobreética protestante e espírito capitalista, no capítulo dedicado ao metodismo de Aformação..., influência essa aparente no papel preponderante da cultura naformulação teórica e no olhar prático de Thompson. Vale citar, por exemplo, umapassagem de um dos mais conhecidos ensaios teóricos de Max Weber, segundoquem o conceito de cultura é ele mesmo um julgamento de valor e para quem aciência tem por mérito fazer notar que “toda atividade e, bem entendido também,segundo as circunstâncias, a inação, significam por suas conseqüências uma tomadade posição em favor de certos valores e do mesmo modo, em regra geral – se bemque hoje em dia se esquece disso voluntariamente – contra outros valores” (Weber,1965, p. 124).29 São vários os comentadores que discutem de maneiras diferentes tal conceitoem Thompson. Como exemplos, ver: Anderson (1985); Sewell Jr. (1990); e Renk(1996, p. 78-104).30 Trata-se de um junction concept, cuja junção se desdobra em experiência I, vividano social, e experiência II, percebida e elabora pela consciência (Thompson, 1984,p.314).31 O “espaço de experiência” diz respeito a um passado tornado presente, marcadopela recordação elaborada racionalmente e também pela lembrança gravadainconscientemente. O “horizonte de expectativa” remete a um futuro feito presente,segundo a perspectiva aberta pela projeção e pela espera. Assim, passado e futuroassentam suas presenças de maneiras distintas, assim como o presente é situadona coordenação assimétrica entre o passado e o futuro. Para tais conceitos, remetoa Koselleck (1993, p. 333-357), onde consta a seguinte formulação: “‘experiência’e ‘expectativa’ são apenas categorias formais [...] A antecipação formal de explicara história com estas expressões polarmente tensas, unicamente pode ter a intençãode perfilar e estabelecer as condições das histórias possíveis, mas não as históriasmesmas. Trata-se de categorias do conhecimento que ajudam a fundamentar apossibilidade de uma história”.

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Bourdieu e Foucault:

derivas de um espaço epistêmico

Resumo. Neste artigo, o autor discute as bases epistemológicas bachelardianasdas obras de Bourdieu e Foucault tendo em vista avaliar-lhes a pertinência parauma sociologia da Modernidade na periferia. O que Bachelard fundou foi umamodalidade de reconstrução racional associada a uma historização que se contrapõeao positivismo na medida em que enfatiza o caráter criativo e inventivo dafenomenotécnica científica. Bourdieu assume de Bachelard a injunção à rupturaepistemológica entre o fenômeno que se reconstitui na ciência e aquele que seapresenta ao senso comum. Foucault usa o modo de demonstração bachelardianodas raízes fantásticas das ciências para desmantelar as pretensões das ciênciashumanas. Sugere-se, neste artigo, que a extensão da posição epistemológicafoucaultiana é heuristicamente mais fecunda e permanece promissora para oslugares de enunciação com pretensão de desvelamento do modo como aModernidade apresenta-se na periferia.Palavras-chave: Michel Foucault. Pierre Bourdieu. Gaston Bachelard.Modernidade.

* José Carlos dos Anjos é professor do Departamento de Sociologia e do PPG

em Sociologia da UFRGS.

José Carlos do Anjos*

Introdução

Quando parece ter soado a hora do balanço na produção detoda uma geração de intelectuais franceses que marcaram a segundametade do século XX, poucas das séries de avaliações que ofalecimento de Pierre Bourdieu desencadeou e que a comemoração

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do vigésimo ano de falecimento de Michel Foucault reabriuvoltaram-se para os fundamentos epistemológicos de todo essemovimento intelectual para avaliar-lhe as possibilidades decontinuidades e os perfis de superações no acúmulo. Na verdade,tais balancetes parciais vêm sendo feitos, desde a década de setenta,a cada falecimento, de Barthes a Deleuze, passando por Poulantzas,Lacan, Althusser, sem que se aponte, nos espólios desses que osdetratores rapidamente cunharam de “estruturalistas” ou “pós-estruturalistas”, como as superações desenham-se nas brechas dosacúmulos possíveis. Sobretudo pouco se avaliou sobre o transplantedesse tipo de estrutura teórica engendrada nas condições específicasdos países centrais quando utilizada em análises cujo foco empíricoé a modernidade periférica.

As ênfases dominantes na busca dos nódulos centrais dessepensamento, quando não homogeneízam essa geração de pensadoressob supostas premissas comuns estruturalistas, destacam traçosidiossincráticos que também impedem comparações mais sérias.Assim, se ressalta ora o veio Nietzscheano de Foucault, ora a grandesíntese dos clássicos da Sociologia em Bourdieu, não se percebendoo que os dois pensadores têm em comum e que os diferencia deAlthusser, Barthes e Poulantzas, por exemplo. Este artigo pretenderessaltar que o potencial universalizador das análises contidas nasobras de Foucault e Bourdieu deve-se a uma especial proposta dearticulação entre as dimensões teórica e empírica das pesquisas demodo a tornar a teoria sempre uma reinvenção a cada obra. O textobusca ainda destacar o quanto Bachelard e Canguilhem são osobreiros menos visíveis desse subsolo epistêmico onde comumentese encontra estampada a presença ou do estruturalismo, ou deNietzsche.

História das ciências deslocando o tribunal da razão

É fácil demonstrar que os “estranhos anos 60” do debatefilosófico e sociológico francês provêm de uma mesma matrizfilosófico-epistêmica – até porque Foucault, Bourdieu e seus

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comentadores repetem, à exaustão, serem contra o existencialismosartriano ao qual Bachelard e Canguilhem foram jogados de modoa abrir um novo espaço de problemas alheios “à filosofia do sentido,do sujeito e do vivido” que marcou a apropriação da fenomenologiana França dos anos 50.

Mas suprimam Canguilhem e vocês não com-

preenderão mais grande coisa de toda essa série de

discussões que ocorreram entre os marxistas franceses;

vocês não mais apreenderão o que há de especifico

em sociólogos como Bourdieu, Castel, Passeron, e que

os marca tão intensamente no campo da sociologia

[...] (Foucault, 2000, p. 353).

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E o que os marca tão intensamente?Sugere Foucault (2000) que é a historização radical do “saber,

da racionalidade e do conceito”. A meu ver, essa historicização –que pode ser tomada como o “a priori” do pensamento con-temporâneo – dá-se na França, com três marcas distintivas: l) a ênfasena descontinuidade dos processos de reorganização do saber, de modoa se desconstituírem, simultaneamente, as pretensões de uma históriade acumulação linear de conhecimentos e a busca de fundamentaçõesfilosóficas últimas para as ciências; 2) em segundo lugar, o radicalismoda aposta no caráter construído do objeto científico, que retiraquaisquer possibilidades de aproximação entre a construçãosociológica ou arquegenealógica e as teorias nativas, o senso comum,a doxa instituída ou as retóricas militantes; 3) por fim, a recusa areflexões intimistas, tanto na relação leitor e autor quanto naspossibilidades de exposição da comunhão intersubjetiva entre opesquisador e o pensamento e emoções dos pesquisados. Essa recusadá-se em favor de uma reflexividade que toma para análise não aintimidade dos sujeitos, mas a estrutura do mundo escolástico deonde emanam as possibilidades de enunciação em jogo. Tanto emBourdieu como em Foucault, está em jogo analisar e expor o saberescolástico enquanto o lugar de emanação de formas de racionaliza-ção do social que institucionalizam relações de poder.

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Passo a explicitar a presença de Bachelard em cada um dos trêspontos. Desde Bachelard, é incisiva, na França, a historização radicaldos “modos do dizer verdadeiro”, seus efeitos de poder, conjun-tamente com a rejeição à chantagem de que a recusa às filosofiasprimeiras do conhecimento, em favor da historicização do saber,significaria uma queda no irracionalismo. Se o saber científico nãoé tomado como simplesmente progressivo, a reconstrução daspossibilidades do jogo entre o verdadeiro e o falso precisa serrecolocada em novos termos. Retificar, corrigir, reconstituircontinuamente os modos do “dizer o verdadeiro” significa,simultaneamente, que o jogo do esclarecimento produz clareiras eque a acumulação nunca se deixa organizar na longa narrativa doencontro do “homem” com “a verdade”.

Concebendo que ela se relaciona com a história dos

“discursos verídicos”, ou seja, com os discursos que

se retificam, se corrigem, e que operam em si mesmos

todo um trabalho de elaboração finalizado pela tarefa

do dizer verdadeiro (Foucault, 2000, p. 339).

O segundo tópico, a noção de objeto construído, também temuma regularidade em larga medida fundada na epistemologia deBachelard. É de Bachelard a noção de que a pesquisa deve reivindicarum realismo próprio da ciência, uma busca da “realidade” que nãose compromete com os fenômenos na forma como se apresentamao senso comum.1 Em Bachelard, o “real” já sempre está em relaçãodialética com a “razão científica”, precisando ser reconstruído emlaboratório. Acima do sujeito e além do objeto imediato, a ciênciamoderna funda-se no projeto enquanto mediação de um fenômenoque só se apresenta através da teoria encarnada nas técnicas depesquisa. A experimentação funde o fenômeno, após depurado, nosmoldes dos instrumentos científicos, e desses instrumentos devemosdizer que são teorias materializadas em formas laboratoriais. Não háfenômeno científico sem a marca da teoria, e a teoria científicademarca-se como “trabalho” porque encarna-se em instrumentos

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de pesquisa. Nesse sentido, a observação científica é sempre umaobservação polêmica, é sempre construída numa insurgência contrao modo como o fenômeno apresenta-se ao senso comum e como seapresentou no estágio anterior ao labor científico. Nessa injunçãoepistêmica, não há separação entre a observação científica e ademonstração, entre a demonstração e a polêmica contra o erro. Aciência reconstrói o “real” reconstruindo teoricamente seus esquemase instrumentos de apreensão num refazer contra o que já foi feito evisto.

Percebe-se com nitidez esse conjunto de injunções epistêmicasnos poucos extratos mais “metodológicos” dos escritos de Foucault.Tratando da evidência com que a “obra” ou o “livro” impõe suasfronteiras ao senso comum, Foucault reduplica a insurgência deBachelard contra a nitidez dos objetos que se apresentam como“dados”:

Trata-se, de fato, de arrancá-las de sua quase-evidência,

de liberar os problemas que colocam; reconhecer que

não são o lugar tranqüilo a partir do qual outras

questões podem ser levantadas (sobre a sua estrutura,

sua coerência, sua sistematicidade, suas trans-

formações), mas que colocam por si mesmas todo um

feixe de questões (que são? Como defini-las ou limitá-

las? A que subconjuntos podem dar lugar? Que

fenômenos específicos fazem aparecer no campo do

discurso?). Trata-se de reconhecer que elas talvez não

sejam, afinal de contas, o que se acreditava que fossem

à primeira vista. Enfim, que exigem uma teoria

(Foucault, 1987, p. 29).

Reconstruir laboriosamente um objeto é destruir sua evidênciapara, no lugar do senso estabelecido, fazer emergir um feixe derelações de força de que a “aparência” – o objeto em sua formaprimeira – é apenas uma parte, um modo de funcionamento. Opapel da teoria na reconstrução do objeto é, fundamentalmente, ode impor rupturas: não só contra a aparência, polemizando contra a

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Para estarmos seguros de não relacioná-la com

operadores de síntese puramente psicológicos (a

intenção do autor, a forma de seu espírito, o rigor de

seu pensamento, os temas que o obcecam, o profeta

que atravessa sua existência e lhe dá significação) e

podermos apreender outras formas de regularidade,

outros tipos de relações (Foucault, 1987, p. 29).

A injunção à ruptura com o senso estabelecido (como comum,institucional ou científico) obseda de forma mais intensa ainda osescritos de Bourdieu, inserido como esteve na reconstrução dosfundamentos metodológicos dessa ciência – a Sociologia – que lheparecia particularmente historicizante. Reconstruir o objetocientífico é expor estruturas não-evidentes, historicamentecontingentes e que tornam possíveis as evidências da doxaestabelecida, comum ou escolástica. É numa luta contra a doxaestabelecida que a reorganização conceitual destrói o objeto pré-construído, para fazer emergir o inusitado:

Todavia, construir um objeto cientifico é, antes mais

e, sobretudo, romper com o senso comum, quer dizer,

com as representações partilhadas por todos, quer se

trate dos simples lugares-comuns da existência vulgar,

quer se trate das representações oficiais,

freqüentemente inscritas nas instituições, logo, ao

mesmo tempo, na objetividade das organizações

sociais e nos cérebros (Bourdieu, 1999, p. 34).

Dos três tópicos listados acima, restaria ainda destacar que, dahistória das ciências, tal como iniciada por Bachelard, resulta umtipo de exercício de reflexividade que tende a colocar sob suspeita aprópria instituição de onde emana a pretensão crítica da razão. É,

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evidência com que o “real” se nos apresenta, mas também contra abusca do sentido ou da verdade do fenômeno na intenção do ator(ou autor de uma obra):

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em primeiro lugar, a própria posição de crítico que se transformanum lugar incômodo, submetido a um implacável processo deobjetivação. Mas a recusa a esse lugar, cunhado de “posição dointelectual total”, emblematicamente atribuído à figura de Sartre,toma direções diferentes: Bourdieu e Foucault representam, noseguimento da história das ciências, de Bachelard, duas possibilidadesde saída para a questão da historicidade do saber filosófico queevitam, simultaneamente, cair numa filosofia da história com seusriscos de totalização no presente como realização e exegese absolutado passado e o perigo correlato do historicismo, que reduziria asestruturas internas dos processos de cognição às contingências dosfatores que externos a cognoscibilidade.

O primeiro risco foi enfrentado de forma mais obsessiva porBourdieu, a ponto de lhe impor um deslocamento para fora daFilosofia e uma aposta radical na sociologia do saber escolástico; osegundo risco, o do historicismo relativista, está mais equacionadopor Foucault, e é contra esse último risco que emerge a alternativade uma ontologia da vida e do poder. Mas ambos se colocam nabusca de alternativas entre Hegel e Heidegger. A questão é escaparde uma filosofia que “valida a si mesma através de sua própria sobera-nia” e evitar ter que cair numa relativização tal da razão que esta “não

pode ser dissociada, em sua história, das inércias, dos embotamentose das coerções que a submetem” (Bourdieu, 1998, p. 357).

Sob a injunção de uma reflexão radical sobre o lugar de ondeemana o discurso com pretensão de ponto-de-vista privilegiado sobreo real, Bourdieu deserta de vez de qualquer tentativa de buscar, nafilosofia das ciências, bases epistemológicas para a praxiologia a quese propõe. As críticas às pretensões fundamentadoras de sua disciplinade origem levam-no a uma Sociologia reconstruída teoricamentecomo espaço por excelência da destituição das arrogâncias do pensa-mento escolástico. O que está em jogo é historizar a “pretensão aodomínio exclusivo de uma verdade”, levando-se em conta que se es-tá enunciando num espaço de uma multiplicidade de visões emcombate. Todos os empreendimentos filosóficos mais relevantes pararesolver a contradição – de dizer historicamente a verdade das

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Para além das diferenças, têm em comum o fato de

aniquilarem a História enquanto tal, fazendo coincidir

o alfa e o ômega, a arche e o telos, o pensamento

passado com o pensamento presente que o pensa

melhor que ele se pensou – segundo a fórmula de

Kant que todo o historiador da filosofia reinventa

espontaneamente a partir do momento em que

entende dar sentido ao seu empreendimento

(Bourdieu, 1998, p. 37).

É na explicitação das bases sociológicas da ontologia deHeidegger que as pretensões imperialistas da Sociologia de Bourdieuficam mais explícitas. Heidegger estaria anexando a História àFilosofia ao propor uma ontologia cuja ambição denegada é dar umfundamento a si própria que “é inseparável da recusa de tomarconhecimento da gênese empírica dessa ambição” (Bourdieu, 1998,p. 40). Contra a hermenêutica ontológica, em sua pretensão deencontrar a força da lucidez numa reapropriação autêntica do sentidooriginário do passado que sobrepujaria os limites inerentes àspreconcepções do historiador, Bourdieu toma o partido dohistoriador e pretende uma história do campo escolástico como únicafonte possível de lucidez (científica).

Se as ciências humanas procedem necessariamente a uma histo-ricização de todo o espaço da representação, a Filosofia só podeerguer contra elas uma “historicidade da verdade que as ciênciasnão dominam” e que se dá ou pela hermenêutica filosófica, ou poruma filosofia da história que está além do labor historicizantefundado na empiria. Investindo contra essas duas possibilidades dedes-historicização, Bourdieu enquadra o movimento de Foucault,de Derrida e do conjunto da vanguarda da Filosofia francesa dos

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verdades historicamente construídas – oscilam entre a filosofia dahistória (Hegel) e uma ontologia fundante da historização(Heidegger) e encaminham-se para uma mesma lógica, que é a típicado campo filosófico: a des-historicização.

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anos 60 no mesmo quadro das lutas da ontologia hermenêutica deHeidegger contra a historicização radical. Os pensamentos filosóficosfrancês e alemão são vistos pelo sociólogo como “luta contra as ciên-cias sociais do seu tempo, nomeadamente a que consiste em virarcontra as ciências as suas próprias aquisições” (Bourdieu, 1998, p. 24).

A proposta sociológica é desfazer as pretensões de lucidezfilosófica, colocando, no lugar do golpe do “sentido originário” quefundaria filosoficamente a historicidade, a análise histórico-sociológica da lógica específica do campo escolástico e das disposiçõese crenças socialmente reconhecidas num momento dado do tempocomo “filosóficas” ou “científicas”. Essa seria a única possibilidadeque uma análise dos processos de produção do conhecimento teriade escapar parcialmente das contingências históricas que pesam sobreela mesma. “Referir a história dos conceitos ou dos sistemasfilosóficos à história social do campo filosófico parece negar na suaprópria essência um ato de pensamento tido por irredutível àscircunstâncias contingentes e anedóticas do seu aparecimento”(Bourdieu, 1998, p. 37).

Diferente da Filosofia, que se propõe a se purificar dascontingências da História, a Sociologia da Sociologia seria capaz devoltar as armas da História contra si mesma no movimento deobjetivação da relação do sociólogo com relação a seu objeto deestudo e na objetivação da tentação do sociólogo de objetivar seusconcorrentes, fazendo uso da ciência das estratégias para colocaressa estratégia especial – o poder da objetivação – a seu favor demodo privilegiado (Bourdieu, 1998, p. 54). Cada campo escolásticoinstitui um conjunto de pontos de vista com pretensões àuniversalidade e que são necessariamente concorrentes entre si.

A sublimação das pretensões imperialistas de cada campo rea-liza-se de forma mais acabada na Sociologia porque só ela explicitacomo “os agentes, na sua luta para imporem o veredicto imparcial,quer dizer, para fazerem reconhecer a sua visão como objetiva, dis-põem de forças que dependem da sua pertença a campos objetiva-mente hierarquizados e da sua posição nos campos respectivos”(Bourdieu, 1989, p. 55). O privilégio epistemológico da Sociologia

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residiria no fato de que só ela proporcionaria as condições de utili-zação das ferramentas analíticas de seu tempo contra as pretensõesde acesso privilegiado ao real que emanam de seu próprio espaço.Ao aplicar ao próprio sociólogo essa exegese sociológica, a Sociolo-gia crítica o destitui da posição do censor que traça as fronteirasdoreal. A conseqüência desse desdobramento epistemológico é odesengajamento da Sociologia de qualquer militância a favor dadefinição ou redefinição das fronteiras do mundo social ou de pre-visões proféticas que podem se transformar em prescrições mais oumenos autorizadas pelos usos emblemáticos dos recursos retóricosda cientificidade.

A arqueologia das ciências humanas como evacuação

O empreendimento de Foucault pode ser visto como o inversoestrutural daquele de Bourdieu numa mesma matriz epistêmica.Trata-se, ainda aqui, de desmantelar as pretensões da fundamentaçãoúltima que legitimaria ideologicamente a versão do enunciador atual.Tal desmantelamento faz-se articulando a história do saber à históriadas relações de poder, historicização essa que não deixa de ser umempreendimento filosófico. É contra as ciências humanas que essahistoricização processa-se e, portanto só pode se apresentar comoontologia histórica. Em lugar da posição assumida por Bourdieu,de usar as ciências humanas para anexar territórios analíticos àFilosofia, trata-se, em Foucault, de erigir a Filosofia contra as ciênciashumanas num modo de operar tão historicizante quanto o dessasmesmas ciências.

A injunção bachelardiana a que se transforme o fazer filosóficoem trabalho com dimensão empírica sob o modelo sombrio dospequenos acúmulos permanentes típico dos cientistas está tambémpresente em Foucault, mas de um modo diferente daquele operadona obra de Bourdieu. Bourdieu retira de Bachelard a possibilidadede demarcar a fenomenologia científica daquela do senso comum,enquanto Foucault usa o modo de demonstração bachelardiano dasraízes fantásticas das ciências para desmantelar as pretensões das

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ciências humanas. Nem teoria nem proposta de uma nova meto-dologia para se fazerem as ciências do mundo social; trata-se de, pa-ra o Foucault da arqueologia, situar, nas grandes conformações dis-cursivas, cujas unidades parecem-nos naturalizadas, as perturbaçõesde continuidade, as rupturas, as descontinuidades que tornariaminsustentável o brilho “original” das ciências atuais. Desordenar osenso estabelecido sobre a importância dos discursos constitui aprimeira investidura de Foucault para desestabilizar as ciênciashumanas e suas pretensões de autofundamentação numa longahistória do espírito humano.

A noção de descontinuidade toma um lugar importante deinstrumento e objeto de pesquisa impondo recortes inéditos cujofio condutor só pode ser dado pelas injunções das problemáticaspresentes. Não se trata, portanto, de um empreendimentohistoriográfico de busca das origens, da procura dos antecedentes ede reconstituição de tradições. A história reaparece nessa discussãofilosófica como jogo de correlações, quadro de relações, séries deséries, espaço de uma dispersão de forças sociais.

O efeito de superfície dessa crítica do documento é adesorganização de todo o nosso espaço categorial, de modo a fazersurgirem novas indagações, questões inusitadas, problemáticas atéentão não-formuláveis e que desestabilizam nossas certezas atuais.Esse efeito é o que conduz, na verdade, as apostas em termos derecorte de períodos e estabelecimento de corpus discursivos.

Essa chamada ao trabalho minucioso de organização, seriação,seleção e identificação das grandes questões filosóficas no interiorde uma documentação vasta, local e relegada como impertinenteimpõe uma nova modalidade de erudição: o conhecimento exaustivode um colecionador de textos menores de uma época anterior ecujos efeitos são mais contundentes na atualidade do que os grandestextos já demasiadamente discutidos e, portanto, de algum modoneutralizados em seus efeitos práticos.

Essa é uma das vertentes das mais conseqüentes da história dasciências, cujo modelo é encontrado em Bachelard e transplantadopara a analítica do social. Trata-se de desconstituir as formulações

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estabelecidas, por meio da exposição do começo abrupto de umnovo modo de enunciar – a ruptura – em que de forma vacilante eincerta ainda se explicitam as normatizações mais arbitrárias quedepois serão matizadas, naturalizados e revestidas de capashumanísticas.

A conseqüência mais explosiva desse tipo de empreendimentoteórico é a dissolução da longa fiação do progresso da consciênciaou ideologia da razão, isso que gerou a mais intensa controvérsiateórica da segunda metade do século XX francês sob o título demorte do sujeito. Contra a teleologia que busca dar sentido à inérciado passado numa totalidade cujo sentido deriva das injunçõespresentes, Foucault nos propõe uma problematização do presenteatravés da desorganização dos corpora textuais do passado. Esse tipode empreendimento histórico-filosófico desabriga a soberania daconsciência dissolvendo a função fundadora de sujeito e a ilusão darestituição do passado numa totalização que seria a tomada deconsciência do si do humano na história.

Essa descentralização do sujeito e da história, que pode servisto como caudatário de uma história marxista de teor descon-tinuísta, da genealogia de Nietzsche, da psicanálise, da etnologia eda lingüística estruturalista, propõe-se a desmantelar o uso ideológicoda história totalmente referida à atividade sintética do sujeito, adesfazer as últimas sujeições antropológicas presentes ainda nasciências do homem, para fazer ver o ser que se dá errante edescontínuo.

É a partir dessa operação sistemática de relativização dohumanismo ocidental que Foucault se coloca a questão das condiçõesde possibilidades das ciências humanas. As ciências humanasemergiram quando deslocamentos epistemológicos tornarampossível tomar como objeto o fato de sujeitos terem representações.Isso nada mais é do que um acontecimento discursivo. Não se tratada tomada de consciência de um objeto sempre já aí, nem de umrefinamento e mais precisão na abordagem de fatos sobre os quaissempre já se discursara. Trata-se da emergência de algo novo, datadoe com um prazo de validade. É quando a Biologia libera o conceito

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de estrutura, a Economia torna tratáveis, no plano da consciência,os conflitos dotados de leis próprias resultantes da complexificaçãoda produção e das trocas e quando a Lingüística indica a persistênciados sistemas significantes sob nossas representações, que umadescontinuidade discursiva instaura-se para fazer emergir o homemcomo o plano em que a estrutura, o conflito e o sistema duplicam-se na representação que se pode fazer dos fenômenos biológicos,econômicos e lingüísticos.

Lá onde se liberam representações, verdadeiras ou

falsas, claras ou obscuras, perfeitamente conscientes

ou embrenhadas na profundidade de alguma

sonolência, observáveis direta ou indiretamente,

oferecidas naquilo que o próprio homem enuncia ou

detectáveis somente do exterior (Foucault, 1995, p.

369).

As ciências humanas emergem como dobras da Biologia, daEconomia, da Filologia – uma das teses polêmicas de As palavras e

as coisas sobre a qual não se tiraram ainda conseqüências para osesforços atuais de interdisciplinaridade –, etnociências específicasdessa região epistêmica que é o humanismo ocidental. Nesse sentido,a Psicologia seria uma biologia etnizada pelo humanismo dessa fasecultural ocidental, assim como a Sociologia seria um desdobramentoregional da Economia, e a Antropologia com relação à Filologia.

A injunção de se historizarem radicalmente as possibilidadesdo conhecimento para se chagar ao a priori de onde emergem asciências do homem não deve aqui correr o risco da antropologizaçãodos demais espaços da episteme moderna. Não se trata, em Foucault,de se fazer uma Sociologia das ciências, mas de se fazer uma ontologiadas relações de forças entre formações discursivas. Nesse sentido, asciências humanas aparecem como duplicação com pretensõestranscendentais em relação às outras ciências, numa “espécie demobilidade transcendental”:

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Não cessam de exercer para consigo próprias uma

retomada crítica. Vão do que é dado à representação

ao que torna possível uma representação, mas que

ainda é uma representação. De maneira que elas

buscam menos, como as outras ciências generalizar-

se [...] do que desmistificar-se sem cessar: passar de

uma evidência imediata e não-controlada a formas

menos transparentes, porém mais fundamentais

(Foucault, 1995, p. 381).

É por se situar entre a analítica da finitude e a Biologia, aEconomia e a Lingüística que as ciências humanas têm um estatutoepistêmico problemático. Efetivamente tratam como objeto o queé sua condição de possibilidade, vão do que é dado à representaçãopara o que toma possível a representação, são ciências que se fazemnum movimento que vai de uma evidência não-controlada às formasmais fundamentais que garantem a emergência de representações.Trazem subjacente o projeto de reconduzir a consciência às suaspróprias condições reais de possibilidade. É contra esse jogo, que éainda o de Bourdieu, que a arqueologia se investe: uma ontologiano lugar de uma sociologia das representações que precisaria depoisfazer uma sociologia de si mesma.

Desse prisma, compreendem-se de um modo novo algunsfenômenos insólitos das ciências humanas contemporâneas. O lugarsimultaneamente marginal e central nas ciências humanas dasetnociências deve-se ao fato de que todas elas são basicamenteetnociências. Sendo as ciências humanas não mais do quereduplicação da Economia, da Biologia e da Lingüística, aEtnobiologia, por exemplo, seria objeto privilegiado de uma análiseque nunca deixaria de também ser ela mesma uma etnociência. Mas,diz-nos Foucault, a etnociência é efetivamente apenas isso, umahipoepistemologia, percurso marginal no empreendimentoepistêmico atual. Da mesma forma, a Antropologia Econômicanunca se firmou como ramo interessante da Economia e nem mesmose consolidou como disciplina interior à Etnologia.

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A recusa de Foucault em reconhecer estatuto de ciências paraas ciências humanas não se deve à falta de rigor científico, pelo menosno sentido de ausência do tipo de formalização de que amatematização poderia ser um índice, mas pelo efeito detransferência de modelos externos, precisamente pelo efeitoantropologizante dessa transferência do plano sistêmico para umplano de representação que tem o homem como centro.

A oposição entre estrutura e ação ou entre explicação ecompreensão (objetivismo versus subjetivismo) aparece deslocada,nessa análise foucaultiana, na exposição dos jogos de oposições ecombinações de modelos conceituais retirados da Biologia,Economia e Lingüística. Enquanto predominou, nas ciênciashumanas, o triedo conceitual função, conflito e significação, essasciências tenderam a uma arriscada e insustentável antropologizaçãodos saberes. Quando predominaram os conceitos mais sistêmicos(objetivistas) de sistema, regras e normas, as ciências humanaspassaram a enfrentar a representação no que ela carrega de dimensãoinconsciente, informulável: o impensado, o sistematismo que tornaa representação possível e que não se deixa pensar a si mesma, amenos que se abandone o ponto de vista do humano como lugar deemergência do sujeito da análise.

Sobretudo no momento de As palavras e as coisas, Foucaultparece querer se ver situado no interior desse grande movimentogeral de desantropologização dos saberes de que a Psicanálise e aEtnologia estruturalistas são expressões proeminentes. Porém, umaambição de fundo demarca Foucault do estruturalismo das ciênciashumanas: um outro projeto não apenas alternativo às ciênciashumanas, mas que pode tomá-las como objeto; um projeto que nãoaquele que faz a dimensão inconsciente recuar à medida em que aconsciência é interpelada em suas condições de possibilidade. Trata-se de enfrentar diretamente a dimensão impensada das própriasciências humanas.

Se nos lembrarmos que, na arqueologia, Foucault propõe outrasmodalidades de caráter não necessariamente epistêmicos deproblematização do presente, podemos tomar esse esforço

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arqueológico de As palavras e as coisas como uma posição discursivadeslocada em relação às ciências do homem e simultaneamente emrelação a quaisquer padrões de cientificidade. Trata-se aqui de umaproblematização radical da atualidade num discurso sem estatuto,destituído de autoridade epistêmica, definitivamente a-científico.

Sem entender essa possibilidade de uma critica não-epistêmica,Habermas (1990) terá a pretensão de desmantelar a arqueologia egenealogia, na medida em que Foucault ver-se-ia impossibilitadode alicerçar cientificamente sua demonstração da relaçãoproblemática entre ciências humanas e as formas locais de relaçõesde poder. Segundo Habermas, esse empreendimento correria sempreo risco de ver seu arsenal relativizador destituindo o próprio lugarde emergência do discurso foucaultiano. Essa é uma questão que sepode colocar a quem tem a pretensão de cientificidade. Para aqueleque se situa no operar de uma política do presente, a questão dafundamentação da própria possibilidade de enunciação não se coloca.A guerra contra as técnicas de identificação, que institucionalizamsujeitos a partir dos esquadrinhamentos investigativos típicos dasciências humanas, dá-se pela recusa a autolocalização.

Existe em muita gente, penso eu, um desejo

semelhante de não ter de começar, um desejo de se

encontrar, logo de entrada, do outro lado do discurso,

sem ter de considerar do exterior o que ele poderia

ter de singular, de terrível, talvez de maléfico. A essa

aspiração tão comum, a instituição responde de modo

irônico; pois que toma os começos solenes, cerca-os

de um círculo de atenção e de silêncio, e lhes impõe

formas ritualizadas, como para sinalizá-los à distância

(Foucault, 1970, p. 6).

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Essa recusa significaria um ponto cego e uma desvantagemcom relação à tradição hermenêutica ou à localização histórica deuma sociologia crítica tal como faz Bourdieu? De fato, Foucaultnão deixa de tomar como tema de reflexão, para se auto-situar – com

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quase a mesma intensidade empírica que aparece em Bourdieu –, omomento histórico de emergência da história das ciências de queele mesmo se faz caudatário. Mas trata-se aqui de uma política deproblematização do presente.

Na modificação do prefácio dedicado à obra de CanguilhemO normal e o patológico, Foucault retoma a história da História dasCiências, pelo momento em que Husserl é introduzido na França.Aprofunda-se na França, com a instalação dessa referência filosófica,a questão da historicidade do conhecimento, e o debate desdobra-se em duas possibilidades de se negar o empreendimento de buscade uma fundamentação primeira:

Pronunciadas em 1929, modificadas, traduzidas e

publicadas pouco depois, as Meditações cartesianas

foram precocemente o que esteve em jogo em duas

leituras possíveis: uma que, na direção de uma filosofia

do sujeito, procurava radicalizar Husserl e não devia

tardar a reencontrar as questões de Sein und Zeit; trata-

se do artigo sobre a “Transcendance de l’ego”, em

1935; a outra que vai remontar aos problemas fun-

dadores do pensamento de Husserl, os do formalismo

e do intuicionismo (Foucault, 2000, p. 354).

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De um lado, coloca-se a questão da inserção da existência nomundo da vida e a possibilidade da abertura de uma pesquisa sobrea historicidade fundamental do ser, programa de investigação queencontra na França expressões maiores em Sartre e Merleau-Ponty.De outro lado, situa-se a inserção das ciências numa história darazão cujas contingências, por serem prosaicas, demandam apenas ametodologia do historiador para uma matéria subtraída às formasinstituídas de filosofar.

Trata-se, nessa segunda linhagem, a de Bachelard eCanguilhem, de fazer funcionar a Filosofia e os temas do Aufklãrung

em “domínios bem precisos” da história das ciências. Mas a amplitudedesse novo modelo de filosofar não se restringe a essa delimitação

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no estudo histórico das ciências: é possível, mais ainda, perguntaraos processos de racionalização pelas suas ligações a formas dedominação e hegemonia política. É essa a extensão que Foucaultparticularmente dá à história das ciências praticadas por Canguilheme Bachelard.

Mas qual é a filosofia dessa história das ciências? Aqui a propostade Foucault faz-se diferente da de Bourdieu: não se trata de umahistória à maneira da história geral. No modo como Foucault lê oempreendimento de Canguilhem, faz-se ressaltar uma perspectivaontológica específica: a da história epistemológica específica daBiologia. Evitando o reducionismo sociológico, cada ciêncialevantaria seus problemas específicos para o historiador a partir deuma ontologia própria. Para o historiador das ciências tal como vistopor Foucault, o que está em jogo é a questão da relação entre oponto de vista do historiador e o ponto de vista do cientista. Aontologia perspectivista é o modo como o perspectivismo dohistoriador dissolve-se na ontologia da ciência historizada. E aontologia própria ao momento atual da Biologia emerge do modocomo o ser do homem enraíza-se na vida: “do logos do código e dadecodificação”, emerge a possibilidade do erro como especificidadeda vida, e a conceitualização do mundo, típica do humano, apareceapenas como uma duplicação das possibilidades do erro próprias davida:

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O fato de o homem viver em um meio concei-

tualmente arquitetado não prova que ele se desviou

da vida por qualquer esquecimento ou que um drama

histórico o separou dela; mas somente que ele vive de

uma certa maneira, que ele tem, com seu meio, uma

tal relação que ele não tem sobre ele um ponto de

vista fixo (Foucault, 2000, p. 363).

A fenomenologia hermenêutica, como uma das fontes doconstrutivismo mais intenso das ciências humanas na atualidade,instaurou o mundo vivido como “o sentido originário de qualquerato de conhecimento”. Em contraposição, a ontologia do biólogo

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encontra as condições de possibilidade do conhecimento do ladodo vivente. Trata-se do sistema vivo em lugar da consciência– reemerge aqui uma das polêmicas mais caras à trajetória do filósofoherdeiro do historiador das ciências: o anti-humanismo quecontrapõe sistema à consciência, ao vivido, ao sentido originário.No limite, a vida – daí seu caráter radical – é o que é capaz de erro,por isso, é preciso “interrogá-la sobre esse erro singular, mashereditário, que faz com que a vida desemboque com o homem, emum vivente que nunca se encontra completamente adaptado, emum vivente condenado a ‘errar’ e a se ‘enganar’.” (Foucault, 2000,p. 364).

Inserido o saber no errar daquele ser que nunca se adaptaplenamente, libera-se a questão do poder como modalidade artificialde adaptação sempre presente nas relações sociais. Filosofar torna-se o ato de perseguir o erro, de interrogá-lo quando esse erro ganhaa forma das relações de poder, interpelação essa que se dá numadefinitiva incapacidade de se fundamentar a si mesma, pura buscafadada ao fracasso do se adaptar do ser errante. A oposição doverdadeiro e do falso, os efeitos de poder e as instituições que seassociam a essa partilha inserem-se assim no âmago da vida como apossibilidade de perturbação no sistema informativo do vivente. Avida apresenta-se, então, como código sujeito a perturbações. Oque cabe aqui perguntar a partir dessa inserção da história das ciênciasnessa ontologia do vivente é, em primeiro lugar, sobre seus efeitosepistêmicos: se for sobre o erro ontológico de ser vivente que seinstala a partilha verdade/erro, essa ontologia instala-se sobre aspretensões de verdade para perguntar pelas dimensões de poderassociado a perturbações duplicadas nos códigos típicos dos viventes.Quais são as condições de possibilidades de retificação dos erros?Em segundo lugar se a ontologia que deriva da história das ciênciasbiológicas é uma das ontologias possíveis, outras ontologiasderivariam da história de outros campos epistêmicos. Uma ontologiaperspectivista e pluralista emanaria desse procedimento dehistoricização das ciências, caso Foucault tivesse tido tempo para aretomada das questões deixadas pendentes na arqueologia? Se for

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certo que, com a genealogia, Foucault vai preferir se dedicar àsformações discursivas menos epistemologizadas do que aquelas deciências como a Biologia – a que Canguilhem se dedicara – paraperceber nelas as modalidades de relação saber-poder, também sepoderia perguntar em que medida desdobramentos em termos deestudos sociais das ciências como os de Latour não retomam umprograma deixado em aberto na arqueologia.

Da ruptura epistemológica ao erro

Para resumir a discussão anterior, diria que, nessa história dasciências de matriz bachelardiana, Foucault opera um deslocamentoconceitual de tal modo que, no lugar da descontinuidade, enfatizadana arqueologia, aparece o erro em seu último texto publicado emvida. O peso desse deslocamento numa contraposição com Bourdieu(particularmente o das Meditações Pascalinas) é o último tópico aser explorado neste artigo.

A genealogia poderia, à luz desse último texto, ser lida como aanalítica das imensas possibilidades do erro. Essa analítica foi umaobra construída contra a teleologia da razão. Para se tomar umexemplo de vulto similar, como essa historicização da razão pelo seuinverso – o erro – demarca-se da historicização da racionalidade nopensamento da escola de Frankfurt?

Não se buscam, na obra de Foucault, os efeitos perversos dosgrandes processos de racionalização. Trata-se de decompor a noçãode racionalização em processos específicos e localizados, de analisarprocessos restritos de hierarquização, modalidades pouco articuladasde padronização, instâncias precárias de adaptação dos grandes impe-rativos de racionalização e que sofrem as resistências das forças locais,a lenta erosão das injunções dominantes. São esses processos errantesde adaptação dos múltiplos esforços de racionalização dominantesque podem ser submetidos a análises minuciosas sob conceitos comoos de dispositivos, governabilidade, biopoder, saber-poder.

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Ao retomar, de Canguilhem, a noção de erro, Foucault esboçaseu último gesto explícito de deslocamento em relação Heidegger.Do ser disciplinado pelo modelo do aprisionamento modernoressaltado em Vigiar e Punir ao caráter errante da confissão sexual,trata-se da ontologia do erro, de “um vivente que nunca se encontracompletamente adaptado, em um vivente condenado a errar e a seenganar” (Foucault, 2000, p. 364).

A noção de erro não permite aqui uma unificação totalizanteda experiência humana. O que essa noção permite abrir é a idéia damultiplicidade incorrigível das experimentações. Não se trata deencontrar, nessa espécie de nomadismo do ser errante, uma espéciede essência do homem. Até ao último texto, Foucault permaneceanti-humanista nesse sentido da recusa de qualquer essência trans-histórica para o homem. O erro é jogado contra qualquer possi-bilidade de se pensar um sujeito transcendental: “Será que toda ateoria do sujeito não deve ser reformulada, já que o conhecimento,mais do que se abrir à verdade do mundo, se enraíza nos erros davida?”.

Em seu derradeiro texto publicado em vida, contra a últimagrande filosofia do sujeito – a fenomenologia –, Foucault jogouCanguilhem. O vivente de Canguilhem contra o “vivido” dafenomenologia. Códigos e mensagens não são exclusivamente daordem do vivido, da consciência, portanto do tipicamente humano,são produtos sistemáticos da vida, assim como o erro.

Os problemas que se acreditava serem os mais

fundamentais do homem enquanto ser pensante

pertencem na verdade à especificidade do problema

da vida. O conceito é apenas um dos modos pelo qual

o vivente extrai de seu meio informações e pela qual

inversamente, ele estrutura seu meio (Foucault, 2000,

p. 364).

Em Bourdieu, o processo de objetivação do pesquisador estáao serviço da reconstrução das possibilidades dessa ciência que é a

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Sociologia. O inconsciente epistêmico inerente a um campo de sabernão se abre como em Foucault para uma ontologia específica porquehá, em Bourdieu, um realismo crítico não submetido à dúvidasociológica e que é a condição sociológica de possibilidade dasociologia.

Usar os instrumentos científicos de seu tempo para expor osvínculos entre a razão escolástica e os interesses específicos que seconstituem nesse campo propõe, como real, os pressupostosontológicos inerentes a tais instrumentos conceituais (ilusio, habitus,campos...). Todas as outras ontologias que poderiam derivar de outrasdisciplinas e articulações conceituais aparecem como “mundo lúdicoda conjectura teórica e da experimentação mental” cujo grau devínculo com o real só pode ser definitivamente estabelecido pelaSociologia. Sob essa posição epistêmica, tudo o que acontece nocampo escolástico fica suspenso como efeito de um jogo tipicamenteescolar, portanto desconectado do real pela neutralização dasurgências dos fins práticos típico do ser escolástico.

Poder-se-ia perguntar se essa crítica da razão escolástica, sendoproduto das concorrências próprias do campo acadêmico, não carregaos limites desse tipo de dinâmica social que é a concorrência. Aosubmeter a razão escolástica a uma crítica inevitavelmente escolástica,Bourdieu não se encontra aqui ameaçado por uma espécie deesquizofrenia na medida em que está condenado a dizer ahistoricidade e a relatividade das ciências e da Filosofia num discursoaspirando à universalidade e à objetividade, mas também preso àscontingências de sua própria situação histórica? É problemático exigirsimultaneamente que o sociólogo volte contra sua própria sociologiaas armas relativizantes da história e que suspenda a si próprio dequalquer adesão ingênua às posições em jogo fora do campocientífico, que abdique de tomar posições além dos limites impostospelo campo e perceber que esse conjunto de injunções emana deum estado historicamente particular do campo científico. Issosignifica uma injunção normativa a não retirar conseqüências dahistória relativa do campo científico, portanto tolher a multiplicidadepotencial de discussões que se abrem na esteira do questionamento

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do processo de autonomização dessas razões locais que são asdisciplinas acadêmicas. Por que obedecê-la? O arbitrário comovontade de potência clama para a possibilidade de ser restabelecido,sobretudo nos pontos sufocados pela regularidade dos discursos quese tornaram dominantes em nome da cientificidade. E é nessespontos de abertura para críticas não-epistêmicas que se pode localizaras possibilidades de se estender o pensamento de Foucault.

Conclusão

Desde que naufragou a pretensão ocidental de constituição deuma “filosofia primeira” que iluminaria os caminhos da ciência, restacomo base ainda de justificação da racionalidade do empreendimentocientífico a reconstrução racional daquilo que, após ocorrido, podeser considerado conteúdo racional de um campo específico depesquisa. O que Bachelard fundou foi uma modalidade de recons-trução racional associada a um historicismo que se contrapõe aopositivismo na medida em que enfatiza o caráter criativo e inventivoda fenomenotécnica científica. Desse modo, Bachelard cinde ofenômeno para as ciências e aquele que se dá enquanto senso comum,posição que seria apenas positivista se esse filósofo e historiador dasciências não tivesse de forma algo ambígua afirmado simultanea-mente (l) o caráter quase-arbritrário (portanto, inventivo, históricoe relativo) do fazer cientifico e (2) as imensas exigências de rigorque a batalha sistemática contra o erro impõe.

Essa segunda dimensão da história das ciências bachelardianasé a que mais influencia Bourdieu. Da análise sociológica das condi-ções de possibilidade do conhecimento científico que deriva dessahistoricização radical, podem-se extrair posições normativas comoaquelas que Bourdieu associa à exigência de autonomia do campo eà injunção permanente à ruptura com a doxa do próprio campo e,sobretudo, com as injunções externas ao campo. O que Bourdieuextrai de Bachelard, em última instância, é a possibilidade de nor-malizar o fazer científico, transformando o cientista num engajadoem causa própria: a autonomia de seu espaço de produção cultural.

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Já Foucault vincula-se ao primeiro tópico das conseqüências dahistoricização bachelardiana, aquela da demonstração do arbitrárioda racionalidade científica, seu caráter de prática social inventiva.Nesse terreno árido da relativização dos saberes, nenhuma intençãoprescritiva sustenta-se.

Se, como vimos, o que está em jogo em todo esse espaçoepistêmico é a possibilidade de se utilizar a história para seimpulsionar o pensamento a ir além de sua adequação preesta-belecida, de suas condições atuais de possibilidade, dois caminhosestabelecem-se. O sociológico desvenda as condições depossibilidades oferecidas pela estrutura do campo científico na atualconjuntura de pesquisa e reclama por mais autonomia como con-dição de auto-superação. O que aqui se prescreve é o que a própriaanálise histórica em constante processo de retificação pode ajudar atranspor.

O caminho do filósofo usa a história para nivelar os saberesconsagrados aos saberes menores, aos conhecimentos destituídos –trata-se aqui do resgate da dignidade das formas de discursos quenão se tornaram dominantes, que produziram outras cintilações eque foram ofuscadas pelo modo como o saber dominante articulou-se a modalidades locais de relações de poder, estendendo-se em redede formas sociais e convicções reificadas. O esclarecimento é aqui oefeito da ação localizada do filósofo-historiador, e isso não se assentaem condições especiais de possibilidade, mas numa postura políticano interior do pensamento, uma postura francamente contra-hegemônica de problematização do presente.

Para finalizar, devo argumentar que a posição epistemológicade Foucault parece ser mais adequada às condições que se tem naModernidade periférica de exercício da crítica do presente. Odesdobramento das posições epistemológicas de Bourdieu, nosentido de que a concorrência no interior do próprio campocientífico, em situação de autonomia relativa, é o motor de umaquase-transcendência, só pode ser aceitável se puder, de algumaforma, enriquecer-se de outras modalidades insuspeitadas – não-epistêmicas – de superação da “tradição que nos somos”. E é nesse

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sentido que aponta Foucault para outros saberes como fontes derenovação da crítica e para a pluralidade das ontologias científicas.

Numa situação de Modernidade periférica, essa discussãoepistemológica fica particularmente tensa se levarmos em conta ainexistência de condições de possibilidade da autonomia dos camposcientíficos. Não fica claro, na posição de Bourdieu, se países quenão constituem as condições de uma autonomia relativa do campode pesquisa científica oferecem ainda assim condições depossibilidade de um pensamento que pode fazer surgir o inusitadoe a exposição do impensado, pensamento em confronto crítico comas estruturas estabelecidas, em lugar de estar adequado a taisestruturas.

Esta conclusão deveria encaminhar para reflexões queapontassem para a readequação dessa discussão epistemológica paraum contexto histórico como o brasileiro, que se apresenta comolugar de importação de modelos de institucionalização de pesquisas,mas em que, simultaneamente, essas instituições não funcionamcomo espaços dotados de autonomia suficiente para engendrar aslógicas específicas de produção e consagração científicas. Sob ohibridismo das lógicas de engajamento e buscas de retribuição doscientistas sociais à brasileira, a crítica far-se-ia exercer apenas até olimite imposto pelas “causas” que regem os usos sociais dos emblemasdo fazer científico.

Bourdieu revela-se, para nossos objetivos, menos importanteque as reflexões que podem se estender na esteira de Foucault porqueeste último não toma Bachelard em sua dimensão normativa, mas,sobretudo, na positividade de seu modelo de reconstrução doinventivo (arbitrário) da razão científica. Se a posição de Foucault éaqui particularmente interessante, o é na medida em que parte deuma conjuntura histórica particular e toma a razão crítica comouma possibilidade e uma experimentação das possibilidades de pensarque a época em questão oferece.

Tais possibilidades não são associadas a condições sociaisespeciais, mas são aberturas ético-políticas que se criam como efeitosdas tecnologias de si, parte das técnicas mais gerais de poder de uma

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determinada época. A questão ética que a Modernidade instaurapara o pensador atual é a da possibilidade de contraciências,daelevação do saber local, marginal, alternativo aos saberesqualificados. Trata-se de tomar saberes incompetentes, insuficientese locais e elevá-los à dignidade de crítica às possibilidades fechadaspelas regularidades discursivas que se estabeleceram comohegemônicas e perceber neles outras ontologias num mundo emperspectivas.

Aqui a particular importância de Foucault reside no fato depossibilitar a recusa à chantagem de que o pensamento contra-hegemônico só se dá nas condições da ruptura epistemológicaassegurada pelo trabalho coletivo de concorrência no interior deum campo científico diferenciado em suas lógicas de consagraçãosocial. Em Foucault, o esclarecimento é sempre uma possibilidade– rara – no interior das condições específicas de um modo de operaro pensamento. Restariam a discutir as possibilidades de combinaçãodas duas posições epistemológicas para se vislumbrarem os potenciaisaprofundamentos do pensamento crítico na Modernidade periférica.

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Bourdieu and Foucault: derivation of an epistemic space

Abstract. In this article the author discusses the bachelardian episthemological

basis of Bourdieu’s and Foucault’s works, aiming at assessing their pertinence to a

sociology of modernity in the periphery. Bachelard founded a modality of rational

reconstruction associated to a historicization opposed to positivism, since it

emphasizes the creative and inventive character of the scientific

phenomenotechnology. Bourdieu takes from Bachelard the imposition of an

epistemological rupture between the phenomenon reconstructed in science and

the one presented to common sense. Foucault uses the bachelardian method of

demonstration of the fantastic roots of science to unmask the pretensions of human

sciences. It is suggested in this article that the extension of the foucaultian

epistemological position is heuristically more productive, being still promising to

places of enunciation that intend to unveil the way modernity presents itself in

the periphery.

Keywords: Michel Foucault. Pierre Bourdieu. Gaston Bachelard. Modernity.

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Nota

1 O paradoxal em Bachelard é que o autor elogia a ciência pelas suas imensas

exigências de rigor e desprezo visceral pelo senso comum, o que parece positivista,

ao mesmo tempo em que toma como irrealista o pensamento científico em seu

mais alto grau de abstração: “o pensamento científico é então levado para

‘construções’ mais metafóricas que reais” (Bachelard, 1996, p.7).

Referências

BACHELARD, Gaston. A formação do espírito científico. Rio de Janeiro:Contraponto, 1996.

BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas lingüísticas: o que falar quer dizer.São Paulo: Ed. da USP, 1996.

______. Meditações pascalinas. Oeiras: Celta, 1998.

______. Poder simbólico. Lisboa: Ediel, 1989.

FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: ForenseUniversitária, 1987.

______. Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Rio deJaneiro: Forense Universitária, 2000.

______. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

______. A ordem do discurso: aula inaugural no College de France, pronunciadaem 2 de dezembro de 1970. 5.ed. São Paulo: Loyola, 1999.

HABEMAS, Jürgen. O discurso filosófico da Modernidade. Lisboa: DomQuixote, 1990.

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Artigos

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A experiência como recuperação

do sentido da tradição

em Benjamin e Gadamer

Resumo. O pensamento de Walter Benjamin é orientado pela noção de história

na medida em que visa a uma implosão do conceito corrente de história como

uma sucessão de fatos lineares eleitos como sendo uma “história oficial”. Essa

relação crítica com a história oficial envolve uma retomada produtiva do passado,

da tradição, como elemento essencial da experiência histórica. Nesse sentido, a

hermenêutica de Hans-Georg Gadamer também busca uma forma renovada de

contato com o passado, não mais qualificada como uma reconstrução do passado,

mas como uma fusão de horizontes entre presente e passado, intérprete e tradição,

entre o Eu e um Tu. O artigo procura mostrar a proximidade de ambos os autores

em relação ao conceito de experiência, já que, para eles, a experiência só se mostra

em sua fecundidade na abertura para e na renovação da tradição.Palavras-chave:

Benjamin. Gadamer. Tradição. História. Experiência.

*Roberto Wu é Mestre em Filosofia pela UFPR, Doutorando em Filosofia pela

PUC-Rio e professor na UFPR e UNICENP.

Roberto Wu*

Walter Benjamin e Hans-Georg Gadamer tiveram como umadas preocupações centrais em suas obras recuperar o sentido datradição. Esses autores estão normalmente associados a correntesfilosóficas distintas – o primeiro à tendência histórico-crítica da

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da Escola de Frankfurt, e o segundo à hermenêutica filosófica. Noentanto, propomos, neste texto, uma possível aproximação entre osdois pensadores através da noção de experiência, conceito-chave parao acesso à tradição. No caso de Benjamin, a genuína experiência éaquela que ocorre por meio de uma comunhão do indivíduo com acoletividade, do homem moderno com o passado. Em Gadamer, aexperiência ocorre de uma maneira semelhante, embora não idêntica,à noção de fusão de horizontes. Acompanharemos inicialmente opensamento de Benjamin, a fim de melhor caracterizarmos oconceito de experiência.

Experiência e passado em Benjamin

A experiência em Benjamin tem duas significações: a)individual, cotidiana e mais relacionada aos sentidos (Erlebnis); e b)coletiva e, nesse sentido, histórica (Erfahrung). A crítica de Benjaminé a de que, para o homem moderno, a experiência reduz-se apenasao primeiro caso. A perda da Erfahrung, nos modernos, dá-se, entreoutros fatores, pelo fetichismo da técnica, por uma nova concepçãode mundo e pela caracterização do discurso como informação.1 Apobreza de experiência é caracterizada por Benjamin ao referir-se aocontexto pós-Primeira Guerra:

Não, está claro que as ações da experiência estão embaixa, e isso numa geração que entre 1914 e 1918viveu uma das mais terríveis experiências da história.Talvez isso não seja tão estranho como parece. Naépoca, já se podia notar que os combatentes tinhamvoltado silenciosos do campo de batalha. Mais pobresem experiências comunicáveis, e não mais ricos. Oslivros de guerra que inundaram o mercado literárionos dez anos seguintes não continham experiênciastransmissíveis de boca em boca. Não, o fenômenonão é estranho. Porque nunca houve experiências maisradicalmente desmoralizadas que a experiênciaestratégica pela guerra de trincheiras, a experiência

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econômica pela inflação, a experiência do corpo pelafome, a experiência moral pelos governantes. Umageração que ainda fora à escola num bonde puxadopor cavalos viu-se abandonada, sem teto, numapaisagem diferente em tudo, exceto nas nuvens, e emcujo centro, num campo de forças de correntes eexplosões destruidoras, estava o frágil e minúsculocorpo humano (Benjamin, 1994a, p.114-115).

A experiência da guerra assumiu características tão monstruosas,que o repasse desse conhecimento tornava-se, de certa forma, penosopara quem o vivenciara. O nonsense pelo qual o exemplo da guerraperpassava impunha aos sobreviventes o silêncio, pois não havia nadaque pudesse explicar tamanha selvageria – o uso da técnica nadestruição do ser humano. A facilidade de matar que a técnicaproporcionava calava os homens. Os soldados aperceberam-se, deforma muito clara, do desprezo pela vida humana, pois, ao mesmotempo em que os mandavam para o campo de batalha, investia-sepesado no desenvolvimento e aprimoramento da indústriaarmamentista.

A vida humana transforma-se em mercadoria. O homemmoderno é o homem do consumo, vendo assim o seu semelhantecomo mais uma mercadoria disponível. Na correnteza em que seencontra, o homem moderno tem muito pouco tempo para refletirsobre seus próprios semelhantes, assim como para pensar sobre si. AErfahrung é, nesse sentido, um fenômeno muito raro – pois envolvea noção de coletividade. A falta de identidade do homem modernopode ser comparada ao vidro, pois, segundo Benjamin (1994a, p.118),“não é por acaso que o vidro é um material tão duro e tão liso, noqual nada se fixa. É também um material frio e sóbrio. As coisas devidro não têm nenhuma aura. O vidro é em geral o inimigo domistério”. Onde não existe mistério, não há curiosidade, o queimplica que não há a disposição para experimentar o mundo dooutro. Tal tema já havia sido apresentado por Baudelaire (1995a,p.34) em O Mau Vidraceiro: “[...] examinei curiosamente

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todos os vidros e lhe disse: ‘mas como? Não tem vidros de cor?Vidros cor de rosa, vermelhos, azuis, vidros mágicos, vidros doparaíso? Como é descarado! Ousa passear pelos bairros pobres semao menos trazer vidros que tornem a vida bela!’.”. O homemmoderno é caracterizado como aquele no qual não há marcas deidentificação, e o vidro representa esse homem moderno, na medidaem que nada se fixa nele. Em outras palavras, o homem moderno,por não possuir experiência, não pode transmiti-la, pois a Erfahrung

não é experienciada pelo moderno; este só vivencia as informações,como veremos adiante.

Uma forma de retomar à Erfahrung é através do narrador, figuraque vem desaparecendo:

É a experiência de que a arte de narrar está em vias deextinção. São cada vez mais raras as pessoas que sabemnarrar devidamente. Quando se pede num grupo quealguém narre alguma coisa, o embaraço se generaliza.É como se estivéssemos privados de uma faculdadeque nos parecia segura e inalienável: a faculdade deintercambiar experiências (Benjamin, 1994b, p.197).

O modo como o mundo contemporâneo exige as informaçõesexplica, em parte, o sumiço do narrador. As informações são as maissucintas possíveis, o que torna rápida a absorção dos conteúdos pelocidadão, assim como as impede de serem retidas por muito tempo.A informação é sempre algo superficial, pois trata apenas do assuntoem estado bruto, numa pobreza de significações e de interpretações,enquanto que a Erfahrung requer o aprofundamento daquilo queseja dito, assim como a reflexão sobre ele e sua interpretação.

O primeiro narrador grego, segundo Benjamin, foi Heródoto.O relato que encontramos no seu Histórias foi interpretado ereinterpretado de modos diferentes ao longo do tempo. Nessanarrativa, Psammenit, o rei egípcio, havia sido derrotado pelo reipersa Cambises, que aproveitava a condição desfavorável do reiegípcio para humilhá-lo. Psammenit havia sido posto num lugar

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público, de modo que pudesse presenciar o desfile vitorioso dospersas. Nesse desfile, Cambises providenciou para que Psammenitpudesse ver a própria filha forçada a agir como uma criada.Psammenit permaneceu impassível durante tal acontecimento, comos olhos fixos no chão. Da mesma forma, procedeu quando viu ofilho ser levado para ser executado. “Mas, quando viu um dos seusservidores, um velho miserável, na fila dos cativos, golpeou a cabeçacom os punhos e mostrou os sinais do mais profundo desespero”(ibid., p.204).

Tal relato é essencialmente narrativo, na medida em que sugereuma série de interpretações. O relato compreende uma riquezadescritiva, sendo o ouvinte (no caso da tradição oral) ou o leitorobrigados a levantar uma série de questionamentos. A narrativa édeixada, de propósito, sem um fechamento, ou num modo deapresentação em que o que é dito é imediatamente assimilado. Defato, para a compreensão da narração, é necessário que o leitor ou oouvinte passe por um processo de questionamento, pelo qual elebuscará atribuir significações para o texto. Segundo Benjamin (id.):

Essa história nos ensina o que é a verdadeira narrativa.A informação só tem valor no momento em que énova. Ela só vive nesse momento, precisa entregar-seinteiramente a ele e sem perda de tempo tem que seexplicar nele. Muito diferente é a narrativa. Ela nãose entrega. Ela conserva suas forças e depois de muitotempo ainda é capaz de se desenvolver. Assim,Montaigne alude à história do rei egípcio e pergunta:por que ele só se lamenta quando reconhece o seuservidor? Sua resposta é que ele “já estava tão cheio detristeza, que uma gota a mais bastaria para derrubaras comportas”. É a explicação de Montaigne. Maspoderíamos também dizer: “O destino da família realnão afeta o rei, porque é o seu próprio destino”. Ou:“muitas coisas que não nos afetam na vida nos afetamno palco, e para o rei o criado era apenas um ator”.

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Ou: “as grandes dores são contidas, e só irrompemquando ocorre uma distensão. O espetáculo doservidor foi essa distensão”. Heródoto não explicanada. Seu relato é dos mais secos. Por isso, essa históriado antigo Egito ainda é capaz, depois de milênios, desuscitar espanto e reflexão.

Parece que Heródoto não impunha explicação alguma para oseu leitor porque ele percebia quão importante era não fazê-lo. Defato, o evento narrado assume diferentes roupagens na medida emque é revestido de significações diversas nas várias vezes em que érelatado. Enquanto a informação visa doutrinar as pessoas, ou seja, oconteúdo transmitido é tão banal que não suscita qualquer reaçãode quem esteja se informando, e, por isso, o assentimento é imediato,a narração tende a apresentar algo que não é completo e que requera ação intelectual do intérprete. De certa forma, é por isso que anarração sobrevive através dos tempos – devido à sua incompletude,à possibilidade de sempre ser renovada e encaixada em diversoscontextos.

Segundo Benjamin (1994b, p.201), “o narrador retira daexperiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatadapor outros. E incorpora as coisas narradas à experiência dos seusouvintes”. O repasse das experiências é, nesse sentido, uma ligaçãoentre o antigo e o novo. Como vimos, a informação já é, desdelogo, limitada ao seu momento. A narração, entretanto, transcendeo momento e ressurge de vários modos nas gerações posteriores. Ovínculo é imediatamente estabelecido entre o narrador e os seusouvintes ou leitores. Porém, esse vínculo remete a todos que járefletiram sobre o relato. Nesse sentido, a narração é, por excelência,uma experiência coletiva.

O inverso da experiência coletiva é apresentado por Benjaminao referir-se ao romance. Segundo o autor (ibid., p.201),

a origem do romance é o indivíduo isolado, que nãopode mais falar exemplarmente sobre suas

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preocupações mais importantes e que não recebeconselhos nem sabe dá-los. Escrever um romancesignifica, na descrição de uma vida humana, levar oincomensurável a seus últimos limites..

A incomensurabilidade a que Benjamin refere-se nada mais édo que o papel que o individualismo exerce sobre o romance, ouseja, o fato de que o romance sempre se apresenta na forma de umlivro e expressa um ponto de vista particular, cujo assentimento ounão depende de cada um dos leitores. É sempre algo que remete aoindividualismo, seja no momento em que é escrito, seja no momentoem que é lido. “Quem escuta uma história está em companhia donarrador; mesmo quem a lê partilha dessa companhia. Mas o leitorde um romance é solitário” (ibid., p.213).

A questão sobre o caráter isolado e comunitário das experiênciasé retratada novamente no texto A Caminho do Planetário. Nele,Benjamin escreve que “nada distingue tanto o homem antigo domoderno quanto a sua entrega a uma experiência cósmica que esteúltimo mal conhece” (Benjamin, 1987a, p.68). O homem modernosó conhece a Erlebnis, a experiência instantânea ligada às sensaçõese, por isso, individual e particular. Por outro lado, o homem antigosabia que o seu saber não era um verdadeiro saber enquanto nãohouvesse se disseminado na coletividade. Assim, experiência dohomem antigo possuía como característica o fato de pertencer auma tradição, envolvendo, enquanto tal, a coletividade de todosque partilharam dessa experiência, o que a caracteriza comoErfahrung.

O homem moderno, criticado por Benjamin, nada mais é doque aquele que não realiza a Erfahrung, concentrando seus momentosde êxtase na relação puramente subjetiva e superficial das sensações.Nessa perspectiva, a experiência do moderno parece se assemelhar àsuperficialidade do consumismo, uma vez que não há reflexão sobreela. Assim sendo, é possível falar-se na pobreza de experiência, nafalta de qualidade do que é transmitido, como as experiências dopós-Primeira Guerra.

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É preciso acentuar que, em Benjamin, experiência é sempre aexperiência do passado, da tradição. Na medida em que a experiência(Erfahrung) foi substituída pela vivência (Erlebnis), o passado tambémse perdeu. O homem moderno vive apenas o tempo mecânico.2

Esse tempo mecânico caracteriza-se pela rotina instaurada pelocapitalismo, em que o homem não possui mais uma relação com opassado, pois vive alienado no agora do mundo técnico. Por isso, énecessário haver um corte na história que revitalize o passado.

O passado, entretanto, só nos chega por meio de umarecuperação positiva e apropriadora. De acordo com Leandro Konder(1999, p.105), “o passado não se entrega a nós; ele só nos enviasinais cifrados que dão conta, misteriosamente, de seus anseios deredenção. Cada geração recebe uma escassa força messiânica paraperceber esses anseios do passado”. Esse trabalho de recuperação dopassado é comparado por Benjamin com o trabalho do colecionador,pois não se trata mais de restituir o sentido do que “realmente”ocorreu, como a corrente filosófica do historicismo pretendeu(Ranke, Dilthey), mas de tornar vivo no presente algo que o cursoda história encarregou-se de soterrar. De acordo com Jeanne MarieGagnebin (1999, p.14),

[...] a origem benjaminiana visa, portanto, mais queum projeto restaurativo ingênuo, ela é, sim, umaretomada do passado, mas ao mesmo tempo – eporque o passado enquanto passado só pode voltarnuma não-identidade consigo mesmo – abertura sobreo futuro, inacabamento constitutivo.

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Nesse sentido, é interessante a análise benjaminiana de umquadro de Paul Klee chamado Angelus Novus. Há um anjo de bocaaberta e olhos totalmente arregalados que parece, pela posição dasasas, estar se afastando do que vê. Benjamin vê esse anjo como oanjo da história, que olha assustado para o passado, ao contrário dohomem que vê, nessa mesma história, um progresso. Embora esseanjo esteja virado para o passado, ele se encontra de costas para o

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curso do futuro. Essa é a metáfora benjaminiana da “história dosvencidos”, que não pode nunca ser apreendida na descrição da“história oficial”.

Benjamin dedica-se a uma concepção de história que não émais a de um continuum, mas de uma história como ruptura. Ahistória oficial que trabalha com o tempo linear e cronológico é otempo da ideologia capitalista do mundo técnico, que clama, a si,um progresso. Segundo Pierre Missac (1998, p.26),

[...] contra o fluxo da história e o eterno retorno, queconstituem a catástrofe, Benjamin invoca o tempomessiânico, tempo da ruptura e do Juízo Final. Para adurée, este último não impõe um fim, mas ofereceuma possibilidade de interromper e de renovar o seucurso.

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A figura do narrador, desse ponto de vista, evoca a imagemdaquele que não se resume a transmitir a história oficial ou os fatoshistóricos tais como ocorreram. Com efeito, a história constitui-sea partir de uma retomada criativa em que presente e passadoencontram-se. Na história narrada, tanto aquele que narra tem porfunção uma arte essencialmente criativa, pois há algo da suaexperiência que o permite aconselhar o seu interlocutor, quantoaquele que ouve a narrativa tem que procurar por si mesmointerpretar e trazer para o seu mundo o significado da narração. Épreciso notar que o significado da narração não é uma resposta nosentido usual, como um fechamento do texto; é antes uma procura,assim como o conselho do narrador não se consiste numa resposta,mas em um apontar para possibilidades. De acordo com Benjamin(1994b, p.200), “aconselhar é menos responder a uma perguntaque fazer uma sugestão sobre a continuação de uma história queestá sendo narrada”. A participação na narrativa é a reinserção doouvinte ou do leitor no fluxo da tradição, pois ele mesmo procurasentidos na narrativa, como a tradição já procurou. Nessa direção, otrabalho do intérprete, que é sempre uma tarefa histórica, consiste

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na percepção do tema que motiva a narração, esta revitalizada pelointérprete enquanto aquele que caminha rumo à tradição e ao não-dito da tradição.

Veremos, a seguir, que esse processo de revitalização do passado,sabendo que o passado não é só aquele consagrado pela históriaoficial, é também o trabalho da experiência hermenêutica deGadamer. Igualmente Gadamer pensa a compreensão e a interpre-tação como tarefas históricas, como uma apreensão “prática” dapergunta à qual a tradição procurou responder. A primazia da pergun-ta em relação à resposta subjaz tanto ao pensamento de Benjaminquanto ao de Gadamer, na medida em o legado da tradição só podeser assumido como tal se o intérprete, no seu presente, colocar-se acaminho da questão fundamental da tradição.

Experiência e tradição em Gadamer

Na hermenêutica gadameriana, a autoridade da tradição nãose resume apenas à sua face visível, ou seja, a essa ou àquela figurahistórica, mas remete a um todo histórico que não é passível de seresgotado pontualmente.3 Assim, Gadamer (1991, p.348) afirma que

[...] o que é consagrado pela tradição e pela herançahistórica possui uma autoridade que se tornouanônima, e nosso ser histórico e finito está deter-minado pelo fato de que a autoridade do que foitransmitido, e não só o que se aceita razoavelmente,tem poder sobre nossa ação e sobre nosso compor-tamento.

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Essa afirmação mostra como a autoridade da tradição não éapenas algo que depende de um consentimento racional sobre ela,pois a sua validade não se restringe apenas ao plano da razão ou dosargumentos. Não é apenas pela análise e verificação dos seusfundamentos que se decide ou não pela validade da tradição.Gadamer (1990, p.285) justamente define a tradição como “o que

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tem validade sem fundamentação”, ou seja, independentemente dasdeliberações da razão, a tradição continua atuando.

Essa atuação não envolve apenas a manutenção do quecorrentemente seja consagrado como a tradição, mas, também,qualquer alternativa que tenha como objetivo renegar a própriatradição. O confronto com a tradição não é, de modo algum, umdesvencilhar-se da tradição. Pelo contrário, tanto no confrontoquanto no consentimento àquilo consagrado pela tradição, ocorreo que Gadamer chama de “adesão à tradição”. Essa questão surge,por exemplo, no debate com Habermas e Giegel, no seu texto Réplica

a Hermenêutica e crítica da ideologia:

É evidente que a expressão que utilizo às vezes,dizendo que convém aderir-se à tradição, se presta amal-entendidos. Não se trata de modo algum deprivilegiar o tradicional, submetendo-se cegamenteao seu poder. A expressão “adesão à tradição” significaque esta não se esgota no que se sabe da própria origeme por isso não se pode eliminar mediante umaconsciência histórica adequada. A mudança doexistente é uma forma de adesão à tradição tantoquanto a defesa do estabelecido (Gadamer, 1992a,p.259).

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A expressão “adesão à tradição” não é, portanto, uma submissãoao que tradicionalmente foi consagrado, mas uma partilha (que nãoé apenas do âmbito da razão) dos preconceitos da própria tradição.Nesse sentido, não se trata de uma renúncia à própria razão, mas dacompreensão da situação hermenêutica.

Ao mesmo tempo em que a tradição faz-se visível, explicitando-se por meio de teorias e autores, a tradição também recolhe-se, namedida em que o intérprete não percebe todas as nuanças de seuenvolvimento com ela. Pensar a tradição como algo de que sejapossível desvencilhar-se numa decisão racional, como pensou oIluminismo, é deter-se apenas sobre o seu aspecto visível. Tal

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entendimento da tradição ignora a sutileza pela qual ela se mantém.Embora, sob certo ponto de vista, o intérprete detenha-se em aspectosvisíveis da tradição e, nesse sentido, possa dialogar e confrontar-secom ela, sob outra perspectiva, percebe-se que existe um aspecto datradição que é anônimo. Richard Palmer (1969, p.180) comentaesse aspecto menos visível da tradição da seguinte forma: “a tradiçãonão se coloca, pois, contra nós; ela é algo em que nos situamos epelo qual existimos; em grande parte é um meio tão transparenteque nos é invisível – tão invisível como a água o é para o peixe”.Dois aspectos são reforçados nesse comentário: o primeiro é o fatode que nós sempre já nos relacionamos com a tradição; denomi-naremos, pois, essa relação de pertença. O segundo aspecto é o deque, por estarmos numa relação de pertença com a tradição, o quesignifica estarmos situados sempre no interior dela, não há umapercepção clara sobre o papel que a tradição desempenha, tamanhaé sua proximidade conosco. É nesse sentido que se disse que aautoridade da tradição tem um caráter anônimo, pois a sua atuaçãonão se esgota numa ou noutra pessoa em específico, mas num todohistórico que não tem um rosto ou um nome. Por ser um “meiotransparente e invisível”, a tradição não é facilmente detectada emseu ser.

Uma maneira de se compreender como se opera essainvisibilidade inerente ao modo como a tradição exerce a suaautoridade é verificar-se a sua situação em frente ao novo. De acordocom Gadamer (1991, p.349), o que caracteriza a tradição enquantotal é o caráter de se conservar em face das mudanças históricas: “atradição é essencialmente conservação, e como tal nunca deixa deestar presente nas mudanças históricas”. Gadamer enfatiza que aprópria “ruptura” assinala, ela mesma, uma continuidade da tradição.O autor desenvolve esse argumento partindo daquilo que foi referidocomo a invisibilidade da tradição – ou seja, do seu modo dedeterminação, que é anônimo e que, portanto, não atrai atençãosobre si – a fim de mostrar como esse modo de ser acaba se integrandocom o próprio processo de transformação da tradição, conservando-se:

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[...] a conservação é um ato da razão, ainda quecaracterizado pelo fato de não atrair a atenção sobresi. Essa é a razão pela qual as inovações, os novosplanos, sejam o que aparece como única ação eresultado da razão. Mas isto é assim apenasaparentemente. Inclusive quando a vida sofre suastransformações mais tumultuosas, como ocorre emtempos revolucionários, em meio à aparente mudançade todas as coisas conserva-se muito mais daquilo queera antigo do que se poderia crer, integrando-se como novo numa nova forma de validez. Em todo caso, aconservação representa uma conduta tão livre comoa transformação e a inovação. A crítica iluminista àtradição, assim como sua reabilitação romântica, ficammuito aquém do seu verdadeiro ser histórico(Gadamer, 1991, p.349-350).

A tradição conserva-se em meio às “transformações maistumultuosas”, de maneira que o novo, ou aquilo que se pretendarevolucionário, ainda é um passo da própria tradição que se organizae se perpetua mesmo no que aparece como o mais inovador. Oconceito de pertença a que nos referimos anteriormente encontraaqui a sua expressão máxima, ou seja, no próprio confrontar-se contraa tradição, já há a partilha de preconceitos comuns que ligam a elaos que pretendam negá-la. Segundo Palmer (1969, p.186),

[...] dentro ou fora das ciências não pode havercompreensão sem pressupostos. De onde nos vêm ospressupostos? Da tradição em que nos inserimos. Essatradição não se coloca contra o nosso pensamentocomo um objeto de pensamento; antes é produto derelações, é o horizonte no interior do qual pensamos.

Nesse sentido, a afirmação de Gadamer (1992a, p.259), deque “a tradição só é ela mesma no constante tornar-se outra”, mostra-se fecunda para caracterizar como as transformações, revoluções ou

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rupturas são, ainda, um desenvolvimento da própria tradição, poisa tradição não é algo estático sobre o qual seja possível se referirobjetivamente. Encontramo-nos, por um lado, como que“banhados” por ela (na metáfora de Palmer) ou, como afirma opróprio Gadamer (1991, p.343), “estamos constantemente natradição”, o que significa que sempre já se transita por meio dela.Por outro lado, Gadamer também diz que o intérprete é “interpelado

pela tradição mesma” (ibid., p.350). Isso visa mostrar que a tradiçãovem ao encontro do intérprete como um todo remissivo, sobre oqual o que se investiga mostra-se em suas significações. Nesse sentido,Gadamer indaga: “pois não é certo que só assim resultamcompreensíveis em seu significado os objetos de sua investigação,assim como os conteúdos da tradição?” (id.). O próprio esclarecer-se sobre o objeto de investigação traz consigo a tradição, pois é pormeio dela que o objeto investigado é compreendido em seusignificado, na medida em que o termo “interpelado” parece sugerirque há a necessidade de uma resposta. Logo, há uma espécie deexigência de uma tomada de decisão sobre essa interpelação, o queindica um posicionamento com relação a quem interpela, isto é, atradição.

O passado, nesse sentido, não é algo a ser retomado “de fora”,como se o intérprete já não participasse dele, pois, de acordo comPalmer (1969, p.180), “a hermenêutica de Gadamer e a sua crítica àconsciência histórica sustentam que o passado não é como umamontoado de fatos que se possam tornar objeto de consciência; éantes um fluxo em que nos movemos e participamos, em todo atode compreensão”. O passado não é algo distante, mas “presente” emcada interpretação e compreensão. Essa relação com o passado é aponte que permite compreender-se a atuação da tradição, não maiscomo um momento velho e estéril, o qual pode ser deixado de lado,mas como aquilo que está presente em toda compreensão.4

A pertença a tradições esclarece-se por meio dessa análisepreliminar da história. Se a tradição caracteriza-se, por um lado,pelo fato de não chamar atenção sobre si, pode-se dizer que essapeculiaridade deve-se ao seu ser histórico. Embora o intérprete seja

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interpelado pela tradição, a sua pertença a ela não se restringe a essemomento de interpelação. Nesse sentido, alguns aspectos da tradiçãonão são percebidos como tradicionais porque cada um é, de algumaforma, tradição. Assim, não há um distanciamento imediato entre atradição e o intérprete que lhe permita distinguir a tradiçãoobjetivamente e, portanto, visualizá-la como totalmente separadade si mesmo. O intérprete move-se sempre junto à tradição e, dessemodo, a história encontra-se no intérprete.

No nosso comportamento com relação ao passado,que constantemente estamos confirmando, o que estáem questão não é o distanciamento nem a liberdadecom relação ao transmitido. Pelo contrário, encon-tramo-nos sempre na tradição, e este nosso estardentro dela não é um comportamento objetivador,como se o que diz a tradição fosse pensado comoestranho ou alheio; o que a tradição diz já é semprealgo próprio, exemplar e dissuasor, é um reconhecer-se no qual, para nosso juízo histórico posterior, nãose aprecia apenas conhecimento, mas um imper-ceptível ir transformando-se da tradição (Gadamer,1991, p.350).

O fato de que “nos encontramos sempre na tradição” traduz-se em nos encontrarmos e nos mantermos sempre na relação com ahistória. O que está em jogo na relação com a tradição é o nossopróprio ser histórico, na medida em que a tradição é fonte depreconceitos, e é, portanto, para ela, que se dirigem as remissões nainterpretação. A tradição faz-se presente como um passado que atua,e, por isso, o intérprete está numa relação de pertença com a tradiçãoe com a história.

Se intérprete e tradição estão implicados numa relação depertença, as transformações que a tradição sofre determinam, emconjunto, transformações na própria compreensão enquanto poder-ser do intérprete. A compreensão opera sempre a partir do estar-lançado, ou seja, da facticidade, e, conjuntamente, projeta o

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ser daquele que compreende para possibilidades. A facticidade faz-se atuante na lida cotidiana, em que já se assumiram certospreconceitos. A tradição é, por definição, uma forma de autoridadee, portanto, de preconceitos. Assim sendo, as transformações datradição são transformações nos preconceitos que estão envolvidosna pertença do intérprete à tradição, o que ocasiona mudanças nointérprete em relação ao seu poder-ser, às suas possibilidades, noque ele é enquanto projeção.

Essa mútua relação de efeitos é descrita por Gadamer (1991,p.351) da seguinte forma: “[...] o efeito da tradição que sobrevive eo efeito da investigação histórica formam uma unidade de efeito,cuja análise só poderia encontrar uma trama de efeitos recíprocos”.O intérprete, ao tratar da tradição, está tratando de si mesmo e,inversamente, ao tratar de si, está se remetendo imediatamente àtradição. É nessa trama de efeitos recíprocos que se constitui o sentidodo objeto histórico – não um objeto que renega sua própriahistoricidade, ou seja, um “objeto em si” remontado pelo historiador,visando a seu próprio momento histórico, mas um objeto quedepende tanto da tradição na qual o objeto mostra-se significativo,quanto do intérprete e seu presente. O objeto histórico constitui-sea partir da interpelação da tradição e da resposta do intérprete àinterpelação. Segundo Gadamer, o interpelar da tradição ocorre pormeio de uma pluralidade de vozes, a multiplicidade de aspectos soba qual a coisa se mostra:

Admitimos que em tempos diversos ou a partir depontos de vista diferentes a coisa se representahistoricamente sob aspectos também diversos.Aceitamos também que esses aspectos não sãosuspensos simplesmente na continuidade da inves-tigação progressiva, mas que são como que condiçõesque se excluem entre si e que existem cada qual por sipróprias e que se unem somente em nós. O que satisfaznossa consciência histórica é sempre uma pluralidadede vozes nas quais ressoa o passado. Isso somenteaparece na diversidade das ditas vozes: tal

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é a essência da tradição da qual participamos e quere-mos participar. A própria investigação histórica mo-derna não é somente investigação, mas tambémmediação da tradição (Gadamer, 1991, p.352-353).

Toda investigação de um objeto histórico é também ummomento da tradição. O intérprete participa da tradição ao serinterpelado pela multiplicidade de vozes que a constituem, mastambém ele, o intérprete, é um momento dessa própria tradição aoprocurar responder a essa diversidade de vozes. Isso é o que Gadamer(ibid., p.353) chama de “uma voz nova em que ressoa o passado”.

Esse fazer-se ouvir da tradição pressupõe uma abordagem daobra, por parte do intérprete, a partir dos preconceitos não-arbitráriosou ilegítimos. Pôr os próprios preconceitos à prova é sempre umaexperiência dialética e dialógica, ou seja, para que a tradição apareçaem “seu sentido próprio e diferente”, é necessário que o intérpreteconfronte seus próprios preconceitos com a tradição por meio deum questionamento. Esse questionamento não é a interrogação, porparte do intérprete, de uma totalidade fixa pertencente a ummomento passado, denominada tradição, assim como, por outrolado, o intérprete também não está de posse de um outro conjuntode crenças que formariam uma realidade do presente desvinculadade um momento anterior. Nesse sentido, Gadamer comenta que“importa que nos mantenhamos longe do erro de que o quedetermina e limita o horizonte do presente é um acervo fixo deopiniões e valorações, e que face a isso a alteridade do passado sedestaca como um fundamento sólido” (ibid., p.376).

Intérprete e tradição e presente e passado não são blocosdistintos e incomunicáveis, limitados e determinados um em frenteao outro. Com a noção de história-efeitual, Gadamer mostrou queo passado e a tradição não são momentos alheios ao presente dointérprete, dado que ambos são pressupostos em cada movimentode interpretação. A história-efeitual, como pretende Gadamer, põeem questão justamente a compreensão de que tais horizontes sejamfechados em si mesmos, nas suas relações históricas contextuais. Um

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horizonte nunca é algo fechado em si mesmo na medida em que asituação do indivíduo também é algo constantemente móvel.Segundo Gadamer (ibid., p.375), “o horizonte é, antes, algo no qualtrilhamos nosso caminho e que faz conosco o caminho. O horizontese desloca ao passo de quem se move”. O horizonte transforma-se àmedida que se transforma a compreensão. A compreensão éessencialmente dinâmica, pois há contínuas reformulações deconceitos; novos significados são percebidos enquanto outros setransformam. A situação do intérprete, assim como seu horizontede interpretação, nunca é encerradas em si mesma, pois o aparatoconceitual da interpretação é resultado de efeitos históricos sobre oindivíduo que interpreta. Nesse sentido, Gadamer (ibid., p.377)afirma que

o horizonte do presente não se forma, pois, à margemdo passado. Nem mesmo existe um horizonte dopresente por si mesmo, assim como não existemhorizontes históricos a serem ganhos. Antes,compreender é sempre o processo de fusão desses horizontes

presumivelmente dados por si mesmos.

A relação do intérprete com a tradição é sempre uma relaçãode encontro, no qual os horizontes de ambos se fundem. Comovimos anteriormente, o horizonte que resulta dessa fusão superatanto a particularidade do intérprete quanto a da tradição, ao passarpara uma “generalidade” superior. Esse horizonte é ele mesmomutável, assim como os horizontes de onde ele procede. O queGadamer está mostrando é o caráter dinâmico desses horizontes, namedida em que não são fechados em si mesmos e vão se formandono trabalho da interpretação. Para o Historicismo, a situação dointérprete era justamente o que impedia um olhar objetivo sobre aobra interpretada. Era necessário, portanto, reconstruir-se omomento histórico da criação da obra de um ponto de vista daprópria época e, conseqüentemente, reduzirem-se, ao máximo, asinterferências causadas pela situação de compreensão daquele que

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interpreta. Em conjunto com a idéia de se transportar à época decriação da obra e ao autor, há a pretensão de se pôr de lado tudoaquilo que não pertença ao momento de gênese da obra, incluso aínão só o que seja historicamente posterior ao seu surgimento, mastambém o que seja de natureza particular, aquilo que diga respeitoao próprio intérprete. O sentido de deslocamento que Gadamerpropõe não é, portanto, um colocar-se no lugar do outro, tal comoDilthey e Schleiermacher pensaram, mas um processo de diálogocom o outro, o que pressupõe tanto o horizonte do intérprete quantoo da tradição, fundidos num novo horizonte.

Para Gadamer, a interpretação de uma obra não se confundecom a mera exegese das intenções ou do contexto histórico de suaelaboração, mas o próprio ato de interpretar consiste no encontroda obra com a situação de quem compreende. É por meio da situaçãodo intérprete que a obra mostra-se significativa, o que não implicamudar o foco da interpretação do autor da obra para o intérprete.Analisar a relação da obra com a situação do intérprete não consisteno privilégio de um sobre outro, mas numa dialética em que há umesclarecimento mútuo de um por meio do outro. É nesse sentidoque é preciso interrogar o intérprete em sua situação.

A análise gadameriana prossegue afirmando que

[...] ter horizontes significa não estar limitado ao quehá de mais próximo, mas poder ver para além disso.Aquele que tem horizontes sabe valorizar corretamenteo significado de todas as coisas que caem dentro deles,segundo os padrões de próximo e distante, de grandee pequeno (Gadamer, 1991, p.373).

Ter horizontes implica um poder ver que é necessário para ojulgamento mais correto das coisas pertencentes ao horizonte decompreensão. Isso significa, por outro lado, que uma interpretaçãoequivocada é um problema de horizontes. Toda interpretação emque prevaleça a arbitrariedade dos preconceitos de quem interpreta

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é resultante de um horizonte demasiado estreito, o qual não abrangede forma adequada a obra interpretada.

Interessam a Gadamer, em específico, as conseqüências que osconceitos de situação e horizonte ocasionam na relação entreintérprete e tradição. Ao mostrar como a iluminação da situação éuma tarefa que não se pode cumprir por completo, na medida emque se está nela, Gadamer afirma que “isso vale também para asituação hermenêutica, isto é, para a situação em que nosencontramos face à tradição que queremos compreender” (ibid.,p.372). Empregando o conceito genérico de situação, Gadameraponta para a especificidade que o caracteriza no âmbito dahermenêutica, vinculando a situação hermenêutica com a tradição.Se toda compreensão deriva de uma pertença à tradição, aimpossibilidade de uma iluminação ou uma clarificação definitivada situação hermenêutica em que o intérprete se encontra éconseqüência dessa própria pertença.

Assim como a relação entre situação e tradição é indicada porGadamer, também o conceito de horizonte é analisado no que serefere à tradição. Ao estabelecer a distinção entre aquele que possuihorizontes e o que não os possui, Gadamer diz que “a elaboração dasituação hermenêutica significa então a obtenção do horizontecorreto para as questões que se nos colocam frente à tradição” (ibid.,p.373). Se toda compreensão tem como interlocutor privilegiado atradição, a tarefa do intérprete é encontrar o horizonte mais corretopara que a tradição possa se mostrar adequadamente, o que nãosignifica uma atitude passiva do intérprete em frente a ela.

Como vimos, os horizontes estão em constante movimento e,por isso, não podem ser limitados ou fechados em si mesmos.Segundo Gadamer, “também o horizonte do passado, do qual vivetoda vida humana e que está aí sob a forma da tradição, se encontranum perpétuo movimento” (ibid., p.375). Isso significa que opassado não é um momento fixo, o qual poderia ser reconstruídometodicamente por meio de uma análise histórica. A pressuposiçãodo que Gadamer chamou de objetivismo histórico é a de que opassado é uma realidade dada por si mesma. Isso não

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ocorre, pois o passado modifica-se no mesmo passo da tradição.Nesse sentido, Gadamer escreve que

[..] quando nossa consciência histórica se deslocarumo a horizontes históricos, isto não quer dizer quese translade a mundos estranhos, nos quais nada sevincula com o nosso; pelo contrário, todos eles juntosformam esse grande horizonte que se move a partirde dentro e que rodeia a profundidade histórica denossa autoconsciência para além das fronteiras dopresente (id.).

Isso significa que, contrariamente à pretensão do objetivismohistórico, o que ocorre nunca é um transladar de um horizontepresente para uma outra realidade (a de um horizonte do passado).O passado não é uma realidade totalmente alheia ao horizonte dopresente de quem interpreta; pelo contrário, o intérprete já semprese relacionou com esse passado na medida em que sofrecontinuamente os efeitos dele. A relação entre o intérprete e o seutransladar ou deslocamento é posta por Gadamer nos seguintestermos:

O que significa na realidade este deslocar-se?Evidentemente não será algo tão simples como“apartar o olhar de si mesmo”. Evidentemente quetambém isso é necessário na medida em que se procuradirigir a vista realmente a uma situação diferente. Mastemos que levar a nós mesmos até essa outra situação(id.).

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Assim, o intérprete nunca está fora de sua situação e de seuhorizonte, de modo a vivenciar apenas o horizonte do autor. Nacompreensão, os preconceitos do intérprete determinam em parteo que vem a ser a coisa interpretada e, por isso, nunca podem serdesprezados, muito embora esses próprios preconceitos devam serconstantemente avaliados no confronto com a coisa interpretada.

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Logo, deslocar-se a outras situações não implica um abandono daparticularidade do intérprete em frente à obra e ao autor, mas umarelação dessa particularidade com a obra, que não se dá de modo ajuntar dois pólos totalmente distintos.

Para Gadamer (id.), “[...] trata-se de um único horizonte, querodeia tudo quanto contém em si mesma a consciência histórica”,de um único horizonte formado tanto pelo intérprete quanto pelaobra. Nesse único horizonte, não há a primazia do autor sobre aobra e, por isso, não há a necessidade de se reconstruir a intençãooriginal de criação. Segundo Gadamer (id.),

De certa forma, tanto no Romantismo quanto noHistoricismo, há o pressuposto de que compreender é abandonaruma individualidade em favor de outra, no caso, a do intérprete emfavor da do autor. Por outro lado, foi demonstrado anteriormenteque o Romantismo tinha em comum com o Iluminismo a idéia deque os preconceitos eram o oposto da razão e que, portanto, eranecessário optar-se por um deles. Gadamer mostra que não se tratade optar por um dos pólos (ou os preconceitos do intérprete, ou aintenção do autor) na compreensão, pois o horizonte compreensivoé formado por ambos. O sentido da obra não é dado apenas peloautor, mas forma-se no encontro da obra com o intérprete. Mesmonuma interpretação dita “objetivista”, a obra adquire significadograças aos preconceitos de quem interpreta, o que, como vimos,não significa o abandono da razão. Na análise da obra, há, por partedo intérprete, tanto o uso da razão que formula juízos a seu respeito,quanto um posicionamento sobre essa obra direcionada porpreconceitos originados, entre outras fontes, também pela tradição.

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[...] este deslocar-se não é nem empatia de umaindividualidade na outra, nem submissão do outrosob os próprios padrões, mas significa sempre umaascensão a uma generalidade superior, que superatanto a particularidade própria como a do outro.

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Se a tradição é fonte de preconceitos, por outro lado, é pormeio dela que Gadamer aponta uma possível solução para a questãoda legitimidade dos preconceitos. Afinal, a compreensão trata sempredo encontro entre os preconceitos do intérprete e o que é compreen-dido. Gadamer (1991, p.376) descreve esse momento do seguintemodo:

[...] nós já sempre estamos tomados pelas esperançase temores do que nos é mais próximo e saímos aoencontro dos testemunhos do passado a partir dessapré-determinação. Por isso, deve ser uma tarefaconstante impedir uma assimilação precipitada dopassado com as próprias expectativas de sentido.

O encontro com a tradição tem justamente a finalidade depôr à prova os preconceitos que movem o intérprete na compreensãode algo. O que ocorre no encontro entre tradição e intérprete édenominado por Gadamer como “destaque” (Abhebung), ou seja, acolocação de algo em evidência. O que é posto em evidência sãotanto os próprios preconceitos do intérprete quanto a tradição quevem ao encontro: “destacar é sempre uma relação recíproca” (id.). Éno destacar que o intérprete tem que distinguir os juízos que sãooriginários, que se confirmam no texto interpretado, daqueles juízosque são precipitados ou determinados por expectativas de sentidoque são arbitrárias. A compreensão pressupõe sempre uma avaliaçãocontínua sobre os preconceitos. Na medida em que interroga seuspreconceitos, o intérprete destaca-os daquilo que a tradição diz sobrea coisa que é interpretada, ou seja, o intérprete vê a tradição em suadiferença. Gadamer escreve que “só então se chega a ouvir a tradiçãotal como ela pode fazer-se ouvir em seu sentido próprio e diferente”(id.).

Essa fusão de horizontes, que sempre ocorre no encontro entreintérprete e tradição, entre presente e passado, entre a obra e ohermeneuta, remonta ao conceito de experiência hegeliano. Deacordo com o que foi visto anteriormente sobre a distância temporal,

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a interpretação envolve um aspecto dialético na experiência de queminterpreta. Tanto o “sujeito” quanto o “objeto” são modificados pelaexperiência, ou seja, tanto o intérprete quanto a obra aparecem emum novo estágio. A fusão de horizontes é uma redescrição dessamesma dialética do Eu e do Outro, uma vez que é justamente doencontro entre o horizonte de ambos que resulta a interpretação, aqual transforma tanto o intérprete quanto o outro, por participaremde um horizonte diferente. Portanto, a noção de fusão de horizontes,além de indicar o aspecto dialógico, segundo o qual todo aqueleque compreende o faz a partir do diálogo com outros, mostratambém o caráter de transformação que essa experiência dialógicaocasiona, pois tanto o intérprete quanto o outro saem modificadospor essa experiência. Nesse mesmo sentido, Maria Luísa P. F. daSilva (1995, p.367) comenta que

[...] aproximar o outro, que nos fala como tu e nãocomo isso, implica então encontrá-lo como envio,história, tradição e, por isso mesmo, distância emistério. Importa não só considerá-lo como pessoa,ouvindo-o e não observando-o, mas tambémreconhecer na pessoalidade do outro o limite do eu,uma diferença, que não é, no entanto, absoluta oupuramente dada, pois é verbo, que responde erespondendo me questiona. É realmente a experiênciade um aspecto da própria coisa - uma abertura quesuspende o meu juízo para o referir como questão aohorizonte do possível ou comum ainda não decidido.

Logo, o outro que o intérprete encontra na tradição não éuma voz sem vida, cuja importância está soterrada em algummomento no passado, pelo contrário, é na escuta atenta da tradiçãoque surgem as possibilidades que apenas um “eu” não conseguiriavislumbrar. O horizonte comum em que se encontram intérprete etradição é o solo que permite a manifestação do ser da obra. Nessesentido, a noção de fusão de horizontes, que pressupõe sempre umaabertura ao outro, parece se aproximar do conceito heideggeriano

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de repetição da tradição, numa apropriação do legado por meio deum diálogo com a tradição. De acordo com Joel C. Weinsheimer(1985, p.133), “que nós tenhamos algo a aprender dos clássicos emespecífico significa que avançar para o futuro para remediar asdeficiências do presente, necessitará de uma retomada do passado”.Assim, mesmo o clássico, que é aquilo que mantém o seu vigor emface das transformações, exige uma apropriação do seu legado paraque seu sentido se mostre enquanto tal, abrindo novas possibilidadespara o mundo do intérprete.

A possibilidade da experiência da tradição

O pensamento histórico-crítico de Benjamin e a hermenêuticagadameriana estão muito próximos no sentido de uma recuperaçãodo passado. Em Benjamin, o passado não se apresenta de imediato,e o que se tem é uma aparência da história como progresso. Muitopelo contrário, é necessário todo um esforço reconstituinte dopassado, para apreendê-lo não como ele “realmente” foi, mas no seusentido histórico. Essa revitalização do passado, no entanto, é o maisdistante do homem moderno. Para o homem do mundo técnico,falta o elo com o passado, o que se evidencia de dois modos: pelapobreza de experiência característica desse momento histórico e pelaconseqüente perda da capacidade de narrar essas experiências.

Em Gadamer, o elo com o passado ou com a tradição nuncadesaparece devido à facticidade. Compreender o ser é já compreendero meu próprio ser e estar inserido numa tradição. Isso poderia servisto como uma desavença com o pensamento benjaminiano, massó aparentemente. Gadamer mostra que a relação do intérprete como passado nunca é a de dois mundos totalmente distintos, mas a dehorizontes que se entrecruzam. A pertença à tradição estabelecejustamente o fio de continuidade entre os horizontes aparentementedistantes. A partir da tradição, o intérprete encontra-se sempre numarelação de familiaridade com a coisa interpretada. Essa familiaridadefaz com que o horizonte do intérprete não seja restrito a preconceitosque nada dizem da coisa interpretada, mas essa mesma familiaridade

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implica que os preconceitos tenham sido dados, de certa maneira,pela própria tradição, a partir da qual a coisa se mostra. Há umacircularidade entre o intérprete e a obra, sendo os elos de ligação ospróprios efeitos dessa obra a partir da tradição. No entanto, a pertençaà tradição e a apropriação da tradição são momentos distintos nopensamento gadameriano. A tradição precisa sempre ser renovada apartir de uma escuta atenta que retome o legado fundamental dopassado.

Nesse sentido, a relação com o passado pretendida porGadamer aproxima-se bastante do pensamento benjaminiano, pois,para ambos, essa relação nunca ocorre simplesmente, mas exige umanova forma de experiência. A experiência como vivência (Erlebnis)é rejeitada por ambos os filósofos como sendo o processo privilegiadodo conhecimento histórico. Gadamer aponta os limites da filosofiade Dilthey justamente na noção de vivência, na medida em que nãopermite a manifestação de um sentido mais originário da história.Dilthey teria se aproximado demasiadamente das correntes quepretendiam um conhecimento histórico objetivo, não se apercebendodos efeitos mútuos entre o passado e o presente. Para Benjamin,também a história não pode ser reduzida a um objeto. A narrativa,justamente, transcende o seu contexto histórico originário, sendopassível de inúmeras interpretações ao longo do tempo. Isso quepareceria aos olhos do historicismo uma deficiência, é, no entanto,a sua maior virtude: o fato de a história não estar morta numsignificado dado, devendo este sempre ser recuperado pelosindivíduos históricos.

A tradição, nesse sentido, não é um peso ou um fardo queimpossibilita o acesso correto às coisas. É certo que Benjamin analisao homem moderno num processo cada vez maior de alienação, masesse processo de alienação deve-se tanto ao seu domínio conquistadono curso da história, quanto aos mecanismos alienantes instaladosno presente. A ruptura dessa rotina alienante não se dá apenas porum pensamento crítico do seu momento histórico, mas exige, comocondição necessária para se pôr a caminho de sua efetuação, umretorno positivo ao passado.

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Esse acesso positivo ao passado encontra-se comprometido, na

análise benjaminiana, pela pobreza de experiência, característica dos

tempos atuais. O ser humano do mundo técnico capitalista está

enredado numa rotina alienante, que o mantém distante de qualquer

ruptura com esse processo. Mesmo que se queira, por uma atitude

deliberada, realizar uma experiência originária do passado, isso lhe

seria muito dificultoso, pois teria que romper com o mundo da vivência

com o qual está acostumado. Certamente, esse diagnóstico não implica

a impossibilidade de uma relação apropriadora da tradição. O exemplo

da narrativa, mesmo quando analisado do ponto de vista do seu

desaparecimento acentuado na Modernidade, apresenta uma possi-

bilidade de experiência originária. Não se trata tanto de uma volta ao

passado, procurando se repetirem velhos hábitos de outras eras, mas

de se conseguir enxergar, nesse exemplo, uma outra experiência que

não a que se encerra no indivíduo, pois a narrativa não acarreta apenas

uma certa experiência no sentido de vivência, limitada ao indivíduo,

mas é sempre uma experiência coletiva com a tradição.

A experiência em Gadamer também é a experiência de um Tu.

O Tu é, no mais das vezes, a tradição. Uma abertura mais originária a

esse mundo do outro é apresentada por Gadamer por diferentes

maneiras: diálogo, fusão de horizontes, apropriação. Esses são conceitos

que se confundem e expressam sempre a concepção de que o mundo a

que pertenço nunca é fechado em si mesmo, havendo sempre uma

ponte com a realidade do outro. No entanto, essa relação tem que ser

apropriadora, pois, no mais das vezes, o outro não me aparece como

um Tu, mas como o mesmo de um Eu.

Gadamer destaca especialmente que, ao procurar alcançar o

mundo do outro, a minha própria existência modifica-se. Ao retomar

positivamente o passado ou a tradição, ocorre uma modificação do

meu poder-ser e do projeto do meu futuro. Isso igualmente se modifica

no pensamento benjaminiano, já que a narrativa que também é sempre

a experiência do outro na coletividade não é o simples relato de uma

individualidade, mas recupera o sentido da tradição a que a narrativa

se refere. Na narração, novos caminhos abrem-se para aqueles que

participam daquele acontecimento.

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Nossa análise procurou apenas revelar a proximidade dos pensa-mentos de Benjamin e Gadamer em relação à questão da tradição eda experiência. Certamente, essa proximidade não implica umaequivalência teórica. Além da crítica à indústria cultural de massas,à alienação cada vez mais predominante no mundo da técnica e aodesprestígio do lúdico em frente a esse mundo, Benjamin analisa ahistória muito mais do ponto de vista da ruptura do que da continui-dade. As suas famosas Teses sobre a filosofia da história visam explodira continuidade do tempo mecânico, o tempo cronológico do mundotécnico, o tempo da alienação que se mantém na rotina do capitalismo.

Gadamer, por outro lado, não tem como tema principal aalienação, o que lhe rendeu um debate com outro representante deFrankfurt, Jürgen Habermas, visto que se preocupou mais em analisaras condições de todo o compreender. Junto com a questão daalienação, há também a crítica recorrente que interpreta o legadogadameriano como um conservadorismo histórico, na medida emque se trata sempre da continuidade da tradição. A resposta deGadamer é a de que toda contraposição ou possível ruptura com oestabelecido surge a partir da tradição. A tradição mantém-se emmeio às mudanças sempre sendo o outro. Por outro lado, Gadamernão se preocupa em estabelecer procedimentos específicos deinterpretação, numa acepção crítica, denunciadora ou reveladorade ideologias, porque esse não é o sentido da hermenêutica, o quenão implica necessariamente uma concordância com o estabelecidoou com as ideologias vigentes.

Toda compreensão autêntica, ou seja, aquela que se caracterizapor uma apropriação do interpretado, tem de desvelar o ser do enteinterpretado, o que remete, sempre, a um diagnóstico dos termosque compõem o horizonte do outro na sua exata medida. A phronesis

aristotélica é várias vezes citada por Gadamer como o referencial dacompreensão, e esse saber que vê cada coisa na sua medida corretadetecta não só o aspecto positivo do interpretado, mas também osseus aspectos negativos, mediante um senso crítico. A questão quesurge, no entanto, é se é possível fazer-se jus ao fenômeno do novonuma hermenêutica da facticidade, tal como Gadamer a elabora.

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Parece-nos muito mais provável encontrar o caminho para talobjetivo num pensamento que tenha assumido a tarefa de explodira continuidade da história, do que no filósofo que remete sempre aruptura à continuidade.

Experience as Recovery of tradition sense in Benjamin and Gadamer

Abstract. Walter Benjamin’s thought is guided by the notion of history as it aimsto implode history’s usual concept as a succession of linear facts elected as the“official history”. This critical relation with the official history involves a productiveretrieval of past, of tradition, as the essential element of historical experience. Inthis sense, Hans-Georg Gadamer’s hermeneutics also search a renewed contactwith the past, not anymore in terms of reconstruction of the past, but as a fusionof horizons between past and present, tradition and interpreter, the Self and theOther. This article intends to show how close these philosophers concerning theconcept of experience, as for them experience only shows itself useful when openedto and when it renews tradition.Keywords: Benjamin. Gadamer. Tradition. History. Experience.

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1 De acordo com Konder (1999, p.83), “o nosso crítico distinguia entre duasmodalidades de conhecimento, indicadas por duas palavras diversas em alemão:Erfahrung e Erlebnis. ‘Erfahrung’ é o conhecimento obtido através de umaexperiência que se acumula, que se prolonga, que se desdobra, como numa viagem(e viajar, em alemão, é fahren); o sujeito integrado numa comunidade dispõe decritérios que lhe permitem ir sedimentando as coisas, com o tempo. ‘Erlebnis’ é avivência do indivíduo privado, isolado; é a impressão forte, que precisa serassimilada às pressas, que produz efeitos imediatos”.2 Sobre esse aspecto, ver a análise de Walter Benjamin sobre a embriaguezbaudelairiana em Sobre alguns temas em Baudelaire (Benjamin, 1975). Benjaminidentifica, em Baudelaire, a tentativa de romper com o tempo linear, gerando apossibilidade de a Erlebnis transformar-se na Erfahrung, na ruptura que umasensação (um perfume, por exemplo) pode realizar, levando o indivíduo à integraçãocom um momento coletivo do passado.3 O termo autoridade tem um sentido específico em Gadamer. Não tem a ver comdominação ou um cargo superior, mas com conhecimento e reconhecimento.Trata-se de reconhecer que o outro possui uma certa primazia no saber e outorgar-lhe uma autoridade num determinado assunto. A tradição, nesse sentido, é umaautoridade, mas uma autoridade que exerce sua força de uma maneira quase semprevelada.

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Notas

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BAUDELAIRE, C. O mau vidraceiro. In:______. O Spleen de Paris. Rio de Janeiro:Imago, 1995a.

______. O Spleen de Paris. Rio de Janeiro: Imago, 1995b.

BENJAMIN, W. A caminho do planetário. In. Obras escolhidas: rua de mão única.São Paulo: Brasiliense, 1987a.

______. Experiência e pobreza. In: ______. Obras escolhidas: magia e técnica,arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994a.

______. O narrador. In:______. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política.São Paulo: Brasiliense, 1994b.

______. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense,1994c.

______. Obras escolhidas: rua de mão única. São Paulo: Brasiliense, 1987b.

______. Sobre alguns temas em Baudelaire. In: ______. Textos escolhidos. SãoPaulo: Abril Cultural, 1975. (Os pensadores).

GADAMER, H. G. Gesammelte Werke 1. Tübingen: JCB Mohr, 1990.

GADAMER, H. G. Réplica a Hermenêutica e crítica da Ideologia. In:______.Verdad y método II. Salamanca: Sígueme, 1992a.

______. Verdad y método. Salamanca: Sígueme, 1991.

______. Verdad y método II. Salamanca: Sígueme, 1992b.

GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e narração em Walter Benjamin. São Paulo:Perspectiva, 1999.

KONDER, Leandro. O marxismo da melancolia. Rio de Janeiro: CivilizaçãoBrasileira, 1999.

MISSAC, Pierre. Passagem de Walter Benjamin. São Paulo: Iluminuras, 1998.

PALMER, R. Hermenêutica. Lisboa: Edições 70, 1969.

SILVA, Maria Luísa Portocarrero Ferreira da. O preconceito em H.-G. Gadamer :sentido de uma reabilitação. Coimbra: Calouste Gulbenkian, 1995.

WEINSHEIMER, Joel. C. Gadamer’s hermeneutics: a reading of Truth and Method.New Haven: Yale Univ. Press, 1985.

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Referências

4 Na realidade, ao tratar sobre a fusão de horizontes, Gadamer (1991, p.376-377)dirá que “não existe um horizonte do presente em si mesmo”, pois este está em“um constante processo de formação”.

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Os desafios na produção

do conhecimento histórico

sob a perspectiva

do Tempo Presente

Resumo. O artigo examina algumas questões referentes à produção doconhecimento histórico, relacionando-as com a abordagem da História do TempoPresente. As reflexões sobre o Tempo Presente como campo de análise da Históriatêm se multiplicado nos últimos anos. Elas expressam: a tentativa de delimitaresse campo de análise e de intervenção do historiador; a adequação do seu arsenalteórico-metodológico; e a elaboração de novos instrumentos que lhe permitamenfrentar eficientemente o desafio da aceleração histórica das últimas décadas.Palalvras-chave: Tempo Presente. História do Tempo Presente. Produção deconhecimento histórico.

*Enrique Serra Padrós é Mestre em Ciência Política pela UFRGS, Doutorandono PPG-História/UFRGS e professor de História Contemporânea no Departa-mento de História da UFRGS.

Enrique Serra Padrós*

Os historiadores sempre mostraram interesse pelosacontecimentos do seu tempo. Provavemente, as reflexões sobre otempo presente não sejam tão novas como parecem, mas o fato éque, a partir dos anos 1980, tem-se intensificado sua problematização

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como campo de análise da história. Nas reflexões historiográficas aesse respeito, percebe-se haver uma certa confusão referente àslimitações do seu campo e um questionamento relativo à suaexistência e à sua validade.

Sem haver maior precisão de consenso, termos como HistóriaContemporânea, História do Tempo Presente e História Imediatamuitas vezes são utilizados de forma indiscriminada, como se fossemsinônimos, o que, evidentemente, confunde o receptor. No que tangeà História Contemporânea, parece ser consensual entendê-la comoa história do sistema capitalista (ou seja, da maturação e hegemoniadas relações de produção e das contradições desse sistema).Entretanto, se a História Contemporânea apresenta tal traço decontinuidade, também aponta elementos de ruptura. Tais elementossão suficientes para marcar a existência de subperíodos que, por suavez, apresentariam lógicas diferenciadas. Ao subperíodo atual, bemcomo à sua forma de abordagem, denominamos História do TempoPresente (HTP).

De acordo com Hobsbawm, a HTP é a história do nossopróprio tempo, do próprio tempo de vida do historiador, indepen-dente dos marcos significativos de ruptura – por exemplo, o adventoda Guerra Fria e do pós-Guerra Fria (Hobsbawm, 1998, p. 244).Bernstein & Milza, entretanto, discordam de que o tempo presenteseria o presente vivido pelo próprio historiador e, mais, consideramque a delimitação de uma fronteira cronológica entre uma históriado passado e uma história do presente é mutável, variável e imprecisa.No fundo, mostram receio a respeito da existência concreta de umaHTP: “não existem clivagens permitindo separar uma história dopassado de uma história do presente porque não há entre elasnenhuma solução de continuidade” (Bernstein; Milza, 1999). Jápara Barraclough, “[...] a História Contemporânea começa quandoos problemas que são reais no mundo atual tomaram, pela primeiravez, uma forma visível [...]” (Barraclough, s.d., p. 19). Pode-se inferirque o período denominado pelo autor como HistóriaContemporânea corresponde ao tempo presente. Quanto aos limitesda HTP, Barraclough, ao afirmar que a época atual constitui-se

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a partir dos processos inconclusos, qualitativamente diferentes dosanteriores, discorda de Hobsbawm.

Dentro da HTP, estaria inserida a História Imediata (HI), quecorresponde ao instante, ao agora já. René Rémond (1996, p. 207)diferencia a história de um instante (da instantaneidade), da históriada proximidade (do tempo presente); nesta, segundo ele, há duração,há tempo cronológico. O desenvolvimento da HI está vinculado aointenso crescimento tecnológico, nos últimos anos, dos meios decomunicação e apresenta novos desafios aos historiadores diante dadinâmica colocada ao grande público, quais sejam: o imediatismoda veiculação das informações – simultaneamente à realização doevento –; a amplitude do seu alcance – direcionado à opinião públicamundial –; e uma relação, aparentemente paradoxal, entresubinformação e superinformação (quantidade de informação emdetrimento da sua qualidade), o que, geralmente, resulta naconstrução de um conhecimento fragmentado, assistemático e quebanaliza os elementos significativos para a sua compreensão.

A HTP e a HI agem, portanto, sobre cronologias diferentesda História Contemporânea, correspondendo as duas ao tempo“muito contemporâneo”. Sua natureza é muito parecida, assim comoas questões que colocam (contração cronológica, tipo de fontes,especificidade dos seus objetos, etc.), e, de certa forma, os desafiosque estabelecem também são, em parte, comum às duas.

Problematizando o Tempo Presente

Ao referir-se ao caso francês, Chauveau e Tétard (1999, p. 46)lembram que a HTP surgiu muito mais de uma pressão e demandasociais do que de uma necessidade historiográfica. Sem dúvida, aconformação da “aldeia global” mediática e a banalização de “quasetudo”, através do efêmero, do descartável e do mercadológico, têmatropelado, muitas vezes, os ritmos da produção e da divulgação doconhecimento, chegando, em determinadas ocasiões, a pautá-loatravés da demanda de modismos, ancorados na mídia e no sucessoeditorial.

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Diante desse quadro, o grande desafio do conhecimento cien-tífico (portanto, também da história) consiste em não se deixar pautarpelo consumismo da lógica do mercado e intervir no sentido de darinteligibilidade à dinâmica de uma sociedade voraz, marcada poruma aceleração histórica inédita, sem que isso seja motivado pormodismos ou afins. Nesses termos, a HTP e a HI expressam umapossibilidade de se constituir um delimitador de novos campos deanálise e intervenção, adequando-se o arsenal teórico-metodológicoda ciência histórica e elaborando-se, com a contribuição de outrasáreas do conhecimento, novos instrumentos que permitam enfrentar-se eficientemente tamanho desafio.

Visando facilitar a exposição e torná-la mais pontual, sãoapresentadas, a seguir, algumas questões centrais na atual discussãosobre as possibilidades de a HTP configurar-se como uma áreaespecífica de intervenção dos historiadores contemplando os rigorescientíficos e acadêmicos pertinentes.

A ciência histórica e o Tempo Presente

A partir do texto de Braunstein (1979, 1º cap.), podem-searrolar algumas das características da prática científica. Por um lado,há o fato de a ciência não se basear na aparência dos fenômenos,mas na sua essência – o que precisa ser descortinado através deinstrumental metodológico adequado. Por outro, ela se constitui apartir de um trabalho de produção de conceitos e do enfrentamentodas afirmações baseadas em experiências sensoriais, em percepçõesexternas e aparentes dos fenômenos e em convicções espontâneas,ou seja, no senso comum. Em relação a essa aparência, a ciênciapode partir dela, mas o seu objetivo principal é desvelar-lhe omovimento real, quer dizer, o conhecimento do senso comum ouda ideologia (conhecimentos pré-científicos de natureza sensorial,da percepção, da emoção). O objetivo do conhecimento científicoé conferir a racionalidade e a veracidade, até os limites do possível(considerando a impossibilidade de uma verdade absoluta), de todoe qualquer fenômeno. Detectando suas regularidades, analisando

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sua dinâmica e definindo, a partir de mecanismos de verificação, aconcretude da sua especificidade, é possível estabelecer conceitosque expressem seu real sentido.

Particularmente, em relação ao conhecimento histórico, hádois elementos constitutivos centrais. Primeiro, a perspectiva deprocesso histórico, de uma história total, em que as diversas instânciasarticulam-se, interconectam-se, formando uma rede de relações cujalógica deve estar presente para o historiador. Segundo, umcompromisso radical com a verdade – sobretudo em tempos denegacionismo –, com o real (a verdade e o real mais próximos possíveldo fato concretamente acontecido), assim como com a produçãodo conhecimento científico acumulado, pois o trabalho dohistoriador não pode abrir mão da dimensão científica (o métodocrítico com seus processos testados e seus instrumentos). A operaçãohistórica ocorre mediante a reunião, a identificação e a análise dasfontes disponíveis, estabelecendo conexões e construindo umdiscurso, atribuindo-lhes coerência e significado. O importante édecifrar os componentes do passado, seu encadeamento, suahierarquização e sua participação no conjunto do esquemainterpretativo. Trata-se, portanto, de uma história que problematiza,que reconhece as interconexões existentes e que utiliza osinstrumentos teórico-metodológicos como ferramentas paracompreender o passado iluminado desde as indagações do presente.Diante disso, é necessário lembrar sempre que, em primeiro lugar, ahistória do presente é, antes de tudo, história. Independente dassuas especificidades, objetivos, métodos e fontes, os desafios dahistória do presente não são essencialmente diferentes dos da históriado período anterior (Bernstein; Milza, 1999, p. 127).

As dificuldades encontradas na construção da HTP devem serencaradas desde a perspectiva de que o fundamental é fornecer umabase explicativa que, mesmo sendo provisória, seja plausível. Dessemodo, responde-se, legitimamente, a uma primeira demanda sobreo assunto em questão. Para tanto, deve-se ressaltar o papel quecumpre a utilização de uma perspectiva global e lógica da história(processo histórico). Isso é fundamental, pois é a partir de uma base

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analítica que se pode apreender a história como processo e não comofragmentação desarticulada. De forma muito clara, Chesneaux(1984, p. 202) expõe a grande contribuição da História Imediata(aqui ampliada para o tempo presente): “a função da HistóriaImediata deve ter como objetivo, ligar o presente aberto, com todasas suas possibilidades, com o passado mais recente”. A natureza e adiversidade das suas fontes, assim como a amplitude da suadocumentação, permitem, ao historiador, realizar os cruzamentos eas verificações correspondentes para estabelecer suas conclusões.Ainda que provisórias, tais explicações plausíveis são uma grandecontribuição ao cenário desordenado de acontecimentos do tempopresente. Mesmo com todas as carências evidentes, uma primeirasistematização desse emaranhado de acontecimentos e deinformações pode constituir um ponto de partida mais qualificadopara futuras análises, não só de cunho histórico, o que configuraoutra função da HTP.

Em síntese, a originalidade da abordagem do presente estásituada no fato de poder captar a atualidade, a novidade, a irrupçãoe a emergência de tendências, assim como as possibilidades deestabelecer as conexões – as “pontes” – que a interligam com opassado (evidenciando a vigência da perspectiva processual dahistória). Por outro lado, não há diferença concreta alguma quantoàs operações básicas que realiza o historiador que trabalha comperíodos mais distantes. Nesse sentido, o tempo presente exige,mediante pressupostos teóricos, o dimensionamento, ahierarquização e a contextualização dos eventos, assim como suainserção no processo histórico e sua relação com ele. Apesar delegitimar a especificidade do tempo presente, Jacques Le Goff (1999,p. 102) aponta que a natureza científica da apreensão desse tempoestará garantida se os historiadores do imediato (aparentemente eleutiliza HI e HTP como sinônimos) trabalharem metodologicamenteconsiderando as seguintes operações: analisar o acontecimento comprofundidade histórica pertinente; trabalhar as fontes com o rigorcrítico e os métodos adequados; e explicar os fatos, hierarquizá-los eintegrá-los numa longa duração.

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Decorre dessas colocações a necessidade de uma abordagemteórica que seja macroexplicativa (abrangendo e inter-relacionandoas variadas esferas), processual (fundamentada no passado histórico),estrutural (construindo explicações mais consistentes assentadas nasregularidades para, assim, identificar as rupturas), global (dimensãoessencial do tempo presente em função da intrínseca associação entreas diferentes realidades) e dialética. Se os trabalhos sobre o tempopresente não tiverem esse cuidado teórico-metodológico, osresultados obtidos dificilmente deixarão de ser meramentedescritivos, fragmentados e fechados numa lógica interna que podevir a ser perigosa. Se assim for, é melhor deixar esse trabalho para osjornalistas.

As fontes do Tempo Presente à luz do rigor científico

Uma das grandes dificuldades colocadas para o estudo da HTPé a abundância e a variedade de fontes primárias existentes, a pontode o historiador não ter condições físicas e tempo disponível paratrabalhá-las. Mesmo assim, esse estudo é visto como sendo um grandeprivilégio, já que viabiliza a possibilidade de se recorrer a múltiplasformas de documentos escritos, à investigação das fontes orais, aotestemunho direto, às pesquisas de opinião, aos recursosiconográficos, etc. O trabalho com esses novos materiais implica,muitas vezes, a necessidade de cooperação com as demais ciências,em função do grau de especialização exigido e pela singularidade dealguns instrumentos de análise.

A familiaridade do historiador com uma opção temáticadecorrente da sua própria experiência de vida facilita-lhe, em tese, odiálogo com as fontes identificadas. Entretanto, sob uma perspectivaainda muito calcada no velho positivismo, críticos apontam comoum problema a existência de limitações importantes quanto ao acessopúblico à documentação escrita fundamental, seja em função dafalta de sistematização, seja pelas restrições impostas pelasadministrações governamentais (o problema concreto da de-sclassificação de documentos oficiais). Isso conformaria, segundo

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tais críticos, uma situação de história sem arquivo, o que inviabilizariaa formulação de uma análise histórica do tempo presente diante daimpossibilidade de se efetuar um levantamento exaustivo das fontestradicionais. Evidentemente que esse tipo de crítica não se sustentamais diante do quadro significativo de materiais que podem serpotencialmente transformados em fontes de pesquisa.

Metodologicamente, um historiador está instrumentalizadopara enfrentar as fontes do tempo presente, mesmo considerando ajá citada dificuldade de acúmulo dessas fontes e sua natureza diversa.É exeqüível, inclusive, que um historiador embrenhe-se com sucessono campo de análise de outras ciências humanas, pois, com o manejoda cronologia e da análise crítica dos documentos, ele pode,trabalhando numa perspectiva de história total, estabelecer conexõesde longo alcance. O reconhecimento de novos materiais com oestatuto de fontes de pesquisa evidentemente tem despertado ointeresse, pelos avanços metodológicos relacionados às suas formasespecíficas de análise. O estudo do presente exige o permanenteaperfeiçoamento de procedimentos de coleta de dados originais, daapreensão de novas técnicas de classificação e de métodos de análiseadequados a esses novos materiais.

A existência (sobrevivência) de testemunhas, verdadeirosarquivos vivos, é uma das particularidades mais valiosas do tempopresente. Não se trata de usá-las como fonte exclusiva, mas de dar apalavra aos que foram protagonistas da história, ou seja, temos uma“História com Testemunhas”, o que é diferente da “História Oral”,na medida em que aquela propõe um “vaivém” (diálogo/interação)entre a produção do historiador e o protagonista do acontecimento(a testemunha). Efetivamente, neste campo de trabalho, a teste-munha passa a ser um interlocutor do pesquisador, podendo interferirem momentos diferentes do trabalho, trocando informações eaferindo o conhecimento na fase da coleta de dados, da elaboração,da sistematização e até da publicitação dos resultados parciais oufinais. Portanto, constitui-se em uma fonte interativa que afere einterage, enquanto protagonista, com a leitura interpretativaresultante da análise do factual.

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Entretanto, se o tempo presente apresenta uma diversidade defontes inéditas, isso não significa que, em relação a estas, existamcritérios diferenciados daqueles correspondentes a outros camposde análise da história. Nesse sentido, a HTP não inventou nada denovo, não se eximindo do rigor metodológico com que deve trabalharo historiador. Apesar de uma certa “pirotecnia” quanto às novasfontes, o fundamental ainda é a reflexão sobre elas. Logo, continuamsendo primordiais as análises interna e externa do documento, dodepoimento, assim como a obrigatoriedade de o historiador cruzaras diversas fontes de que dispõe (nas perspectivas da comple-mentação, da comparação e da verificação).

Por fim, deve-se realçar que, se as fontes constituem,concretamente, os registros através dos quais se organizam e analisamos acontecimentos (matéria-prima do conhecimento histórico), osrecursos da mídia eletrônica, da informática, da Internet, dos registroscinematográficos e de tantas outras novas “fontes” contribuem,também, para construir a inteligibilidade do tempo presente, tantoquanto para outros períodos o fazem as fontes pertinentes. Emresumo, é importante terem-se registros abundantes, novos, atrativose instigantes. O campo do tempo presente os tem; entretanto, ofundamental são as perguntas, as hipóteses, as relações, os métodos.Até porque, com esses instrumentos de análise, as fontes que resistemà verificação do seu potencial tornam-se muito mais ricas do queparecem à primeira vista.

O inconcluso e o provisório no Tempo Presente

Um dos maiores desafios colocados à HTP é o deproblematizar, analisar, caracterizar e avaliar uma história cujo termonão se conhece, ou seja, uma história inconclusa. QuandoHobsbawm define o tempo presente como o “nosso próprio tempo”(1998, p. 244), aponta para essa “história em aberto”, que dificultauma percepção de mudança ou permanência. Contudo, o “fato”,quando trabalhado numa abordagem crítico-científica de história-processo, não aparece desconexo ou deslocado da realidade do

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processo histórico que lhe dá sentido. Para que as análises do presente,mesmo parciais e provisórias, não se restrinjam às interpretaçõesdesconexas, fragmentadas, desarticuladas e superficiais da “cenacontemporânea”, deve-se “[...] esclarecer as mudanças básicas deestrutura que deram forma ao mundo moderno. Essas mudançassão fundamentais porque fixam o esqueleto ou armação em tornoda qual a ação política se enquadra e desenvolve” (Barraclough, s.d.,p. 16). Dessa forma, o historiador deve preocupar-se em “[...]descrever as estruturas cujas transformações dão conta da emergênciafactual de fenômenos cuja gênese se situa sempre a médio e longoprazo” (Bernstein; Milza, 1999, p. 127).

A inconclusividade dos processos analisados constitui um outroproblema característico do tempo presente. Em função da insciênciado desfecho dos acontecimentos e considerando que os fatos dopresente não sofreram a necessária “decantação”, o historiador podeincorrer no erro de considerar como definitivo algo provisório ousobrevalorizar eventos que posteriormente poderão ser consideradosirrelevantes. Contudo, é importante apontar que o desconhecimentodo devir também concede maior liberdade para as mais diversaselucubrações, transformando a história num verdadeiro campo depossibilidades. A inconclusividade permite, também, considerar-seum maior número de hipóteses, as quais, por sua vez, apontam parauma diversidade de cenários possíveis, sujeitos a rápido descarte emuma análise já dirigida a posteriori. O que pode ser visto, em umprimeiro momento, como uma dificuldade a mais (desconhecimentodo desfecho dos processos) permite, ao contrário, trabalhar-se comlinhas de abordagem e cenários futuros em aberto. De fato, talpossibilidade pode evitar que ocorra o que às vezes acontece quandose conhece o desfecho de uma disputa (como, por exemplo,subestimar o vigor do vencido, deixar de levantar nexos, direcionarleituras e análises segundo o resultado dos acontecimentos). Talvezseja melhor considerar que as transformações em curso permitem,ao analista, adotar uma perspectiva de maior independência emrelação ao desenlace delas.

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Nesse sentido, é fundamental saber identificar e separar oselementos considerados essenciais dos superficiais. As análises parciaisdevem contemplar a possibilidade de que, por ser uma históriainconclusa, em movimento, novas ponderações possam dar correçãode rumo. Aliás, por mais óbvio que possa parecer, é importantelembrar que a possibilidade de novos questionamentos perpassamtodo o espectro da história (seja passada ou presente). Logo, o caráterde inconclusividade não é um critério que inviabilize o trabalho dohistoriador, até porque, numa perspectiva de história processual,sempre há uma história inconclusa que exige realçar linhastendenciais, de continuidade e de ruptura. Isso não significa negarque trabalhar com uma história em aberto dificulta uma percepçãomais concreta da profundidade real das mudanças e daspermanências. Mesmo assim, diante de tal desafio e assumindo todacautela necessária, as reflexões acerca do imediato, ainda que sejamprovisórias, sendo cientificamente plausíveis, podem constituir umacontribuição qualificada na atual torrente de (des)informação. Assim,o historiador do tempo presente, preocupado com a cientificidadeda elaboração das suas explicações, realiza processos de identificação,classificação, montagem e racionalização, bem como os cruzamentose verificações que lhe permitem a diversidade de suas fontes e aamplitude da sua documentação.

História e objetividade

A procura de objetividade na história implica a permanênciade um componente subjetivo que é imanente a toda produção doconhecimento científico e impõe a vigilância do componente subje-tivo, o que pode ser feito através dos seguintes instrumentos: a utili-zação de recursos metodológicos e conceituais adequados; o respeitoàs evidências concretas; a elaboração de hipóteses pertinentes; o usode um referencial teórico que capte os movimentos internos do fenô-meno; e o estabelecimento de relações com outros nexos do real.Tudo isso emoldurado numa rigorosa postura ética do historiador,submetendo seus interesses aos cânones da ciência e da verdade.

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Uma história objetiva não anula o sujeito, mas estabelece comele uma relação de equilíbrio através dos mecanismos de controle eaferição mencionados, que garantem a legitimidade do que sejaproduzido como conhecimento (científico). A forma legítima deum historiador garantir credibilidade ao emitir opiniões sobre umabase de dados objetivos é fazê-lo através de um trabalho permanentede revisão, verificação e acumulação de conhecimentos parciais. Édessa forma que ele pode contribuir para a consolidação daobjetividade histórica.

Nesse sentido, Carlos Pereyra (1984, p. 11), em um texto cujotítulo já traz uma questão central da discussão epistemológica dahistória, História ¿para qué?, propõe a problematização da funçãoou utilidade do conhecimento histórico. A questão por ele colocadaé a da legitimidade da história: por um lado, se o saber históricocomprova sua legitimidade teórica; por outro, se tal conhecimentoresulta útil para além do plano científico.

O conhecimento histórico percebido como “guia para a ação”tem largo registro na história. Na prática, todo discurso históricopode ser objeto de instrumentalizações política, social, cultural, etc.Porém, isso não valida equivalentemente as qualidades teóricas dodiscurso histórico (sua legitimidade) e sua utilidade ideológico-política (função social), pois esta última não possui uma magnitudediretamente proporcional à validade teórica.

Não se pode confundir o objetivo científico da pesquisa coma instrumentalização dos seus resultados motivada por critériospolítico-ideológicos, até porque o produto do trabalho dohistoriador, ao ser socializado, escapa do seu controle. “Quer gostemdisso ou não, os historiadores profissionais produzem a matéria-prima para o uso ou abuso dos não-profissionais” (Hobsbawm, 1998,p. 285). Evidentemente, também não se pode condicionar a pesquisaem função do tipo de utilização que após se poderá fazer dos seusresultados; se assim for, não haverá mais pesquisa. Le Goff (1998, p.32) coincide com a tese de Pereyra ao explicitar que não se deveconfundir história humana (função social) com história científica.A norma da veracidade é uma norma do conhecimento histórico

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que se posiciona contra a função social das recordações históricas edo senso comum, enfatizando os procedimentos científicos em quecada declaração é confirmada pela veracidade das fontes.

Por último, vale a pena lembrar uma outra questão colocadapor Pereyra (1984, p. 11) e que consiste no fato de algunshistoriadores assumirem uma atitude de querer julgar o passado emvez de tentar explicá-lo. Provavelmente, tal fato é suscitado, também,por motivações de cunho político-ideológico; aliás, dependendo doobjeto, tais motivações podem ser terrivelmente sedutoras.Entretanto, essa inversão entre o porquê e o quem é o culpado

confunde o objeto e o objetivo da ciência história. Levantar dados,relacionar fatos, explicar processos e avaliar os resultados dessasoperações mentais fundamentam uma consistente contribuição dahistória à produção de conhecimento científico e, conseqüen-temente, à sociedade; fora disso, corresponde a outras instânciasdessa última, desempenhar certas tarefas e assumir determinadasresponsabilidades. De qualquer forma, não é demais lembrar que,assim como ocorre no interior da sociedade, a história também éperpassada por disputas diversas, tanto em função da complexidadedos interesses em jogo, quanto pela importância que possui nadefinição de uma eficiente função social de controle e de legitimaçãodo sistema vigente.

A relação objeto-sujeito na proximidade temporal

A questão das proximidades temporal e material do autor emrelação ao objeto estudado tem sido um tema recorrente nas críticasrealizadas à possibilidade de atuação do historiador no tempopresente. Neste sentido, argumenta-se que a inserção do historiadore do seu objeto de pesquisa no mesmo plano histórico determinamo envolvimento do sujeito com o seu entorno. Deve-se reconhecer,a bem da verdade, ser esse um questionamento extremamentepertinente. A imersão do historiador e do seu objeto de pesquisa nomesmo processo histórico pode inviabilizar maior clareza no quediz respeito à distinção de tendências dentro do período

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(continuidade, ruptura, início, etc.), assim como induzir a conclusõesque podem ser falsas ou imprecisas. A falta de um maiordistanciamento temporal entre o sujeito que analisa e o objeto deestudo pode levar a considerações inadequadas, confundindo o queseja transitório com o que seja permanente e vice-versa.

O historiador não pode evitar fazer parte do seu entornohistórico. Ele está inserido, isso é inegável. Nesse caso, a alternativaé a de que o historiador objetive alcançar o máximo de isenção, nãose deixando levar pelos seus desejos nem pela aparência superficialdas coisas. Além disso, a ausência de distanciamento cronológicopode ser considerada como uma potencialidade do tempo presente;sem a pretensa objetividade positivista, o historiador, ao ter queanalisar os acontecimentos na simultaneidade da sua manifestação,fica muito mais exposto e é “obrigado” a esclarecer sua orientaçãoteórico-metodológica e até mesmo política.

Logo, a ausência de distanciamento entre o sujeito e o objetoconsiste-se em uma peculiaridade da HTP. Considerando que oobservador do tempo presente é um contemporâneo doacontecimento, não há como negar a possibilidade da subjetividade.Isso exige que a pesquisa resultante de um estudo com essa abordagemdeva estar predeterminada por uma permanente ação de objetivação(Paillard, 1993). Assim, para fugir da armadilha da subjetividade, éfundamental que o historiador esteja munido de uma sólida erigorosa base teórico-metodológica que lhe possibilite a maior isençãopossível, deixando de lado as aparências superficiais dos fatos e seusinteresses.

O aumento da carga subjetiva não inviabiliza a avaliação críticado fato recente, já que existem instrumentos que permitempromoverem-se procedimentos que submetam a subjetividade dopesquisador na busca de um conhecimento histórico científico,objetivo e, portanto, legítimo. A história, enquanto ciência, visaalcançar a verdade, opondo-se, entre outros, ao senso comum criadopela mídia. Além disso, há diferença entre o distanciamento críticoe aquele temporal, entre a isenção e a pretensa neutralidade.1

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Nesse sentido, Lacouture (1998, p. 230) afirma que “[...] ohistoriador do presente permanece honesto ao manifestar suasopções. [...] o imediatista encontra a salvação no aclaramento desuas orientações. É se manifestando que ele se neutraliza, ou abrepara si as portas da eqüidade.” Portanto, explicitar posiçõeshonestamente confere, ao historiador, a isenção necessária para arealização de uma análise objetiva e científica. Além disso, asubjetividade não é um desafio exclusivo do historiador do presentenem um fato singular da contemporaneidade.

Finalmente, cabe ressaltar ser insustentável a afirmação de quea existência de um maior distanciamento cronológico entre sujeitoe objeto garante isenção no produto final do trabalho da pesquisa.Se assim fosse, a HTP e a HI acabariam completamente conta-minadas por julgamentos morais, político-partidários e por outrosprejuízos resultantes da falta de neutralidade do analista. Emcontrapartida, dentro dessa mesma lógica, nos estudos sobre os povosda antiga Mesopotâmia, tal perigo nunca ocorreria. Isso quer dizerque o discurso da defesa do distanciamento temporal não passa deum exercício de retórica; ele, per si, não diminui a subjetividade, damesma forma como a objetividade pura e a neutralidade (condiçãoimpossível de ser alcançada por qualquer cientista). Portanto, ahipótese da falta de recuo temporal como comprometedor daobjetividade da pesquisa não se sustenta: “é o próprio historiador,desempacotando sua caixa de instrumentos e experimentando suashipóteses de trabalho, que cria sempre, em todos os lugares e portodo o tempo, o famoso recuo” (Rioux, 1999, p. 146).

O problema do engajamento

O engajamento constitui uma questão que é, sem dúvida, umadas mais delicadas sob a perspectiva da história do tempo presente.O conhecimento científico sobre as estruturas de dominação sociale sobre como elas envolvem cada indivíduo não pode ser ocultadonem pode ser considerado neutro, uma vez que contribui para odesmascaramento da opressão social. Esse conhecimento, se por si

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só não transforma a realidade, orienta, porém, as práticas de transfor-mações das estruturas, ou seja, sem tal conhecimento, é impossívelpensar-se nas transformações de fundo. Diante disso, os setoresdominantes de uma dada sociedade não ficam imóveis quandoameaçados. Logo, não surpreende que seus intelectuais orgânicosneguem, por exemplo, o conteúdo científico do materialismohistórico e da psicanálise. Por que não deveriam ocultar as críticas econteúdos? Por que não deveriam sustentar a idéia de que a ciênciase constitui por acumulação gradual e de modo contínuo a partir daexperiência sensorial?

Eric Hobsbawm (1998, p. 139), ao abordar a questão doengajamento, aponta para duas possibilidades. De um lado, oengajamento nos fatos, que ele denomina de “engajamento objetivo”;por outro lado, o engajamento das pessoas, o “engajamentosubjetivo”. Tanto em um caso quanto no outro, o autor indica aexistência de nuanças nos espectros respectivos. No extremo doprimeiro caso, reconhece-se, corretamente, a impossibilidade de umaciência ser totalmente objetiva e isenta de juízos de valor, o que nãosignifica dizer, entretanto, que a ciência seja engajada por si só.Hobsbawm discorda desse entendimento, lembrando que oengajamento na ciência ocorre na escolha e na combinação dos fatosverificados e não no seu questionamento, pois, ao serem parte doconhecimento científico, esses fatos são inquestionáveis. No extremooposto, defende-se que tudo na ciência deva estar subordinado aosditames da função político-ideológica; contudo a lembrança daGrande Enciclopédia Soviética mostra os absurdos cometidos naprodução do conhecimento histórico em nome de uma perspectivaoficial. Por último, Hobsbawm, ao defender abertamente oengajamento legítimo do historiador na ciência, reafirma que issonão significa descomprometimento social dos intelectuais.Exemplificando com os estudos sobre o movimento operáriobritânico (que, até o pós-Segunda Guerra, só eram produzidos porintelectuais engajados), Hobsbawm (1998, p. 148) conclui que “Osintelectuais engajados podem ser os únicos dispostos a investigarproblemas ou assuntos que (por razões ideológicas ou outras) o resto

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da comunidade intelectual não consegue considerar.”. De qualquerforma, a realidade não é transparente. Ela exige ser decodificada, oque, por sua vez, produz reações quando fatores de controle eexploração vêm à tona. Grupos sociais interessados em manter ostatu quo defendem um conhecimento instrumentalizado quereproduza as aparências enquanto reagem contra a difusão dequalquer novo conhecimento (Braunstein, 1979, cap. 1).

Na perspectiva dos limites entre engajamento e objetividade,arrolamos duas situações limites do tempo presente. A primeirarelaciona-se com o atual debate sobre o negacionismo neonazista, noqual Vidal-Naquet (1994) assume uma forte posição contra essaforma de falsificação do Holocausto e da história do III Reich.Primeiramente, o autor caracteriza os grupos revisionistas como“assassinos da memória”. Depois, denuncia-os como “caso limite”na medida em que visam “apagar” a história. De forma enfática,mostra com que armas concretas deve colocar-se o historiador diantedos “assassinos da memória” e dos defensores da mentira:

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[...] não me proponho responder a essa acusação globalsituando-me no terreno da afetividade. Aqui não setrata de sentimentos senão da verdade. Esta palavra,que antes pesava, hoje tem uma tendência a dissolver-se. Esta é uma das imposturas do nosso século,sumamente rico neste terreno (Vidal-Naquet, 1994,p. 14).

Esgrime, então, o argumento mais sólido e mais radical paraenfrentar os detratores negacionistas:

Que fique entendido, de uma vez por todas, que nãorespondo aos acusadores, que não dialogo com elessob nenhum aspecto. Um diálogo entre dois homens,embora sejam adversários, supõe um terreno comum,um comum respeito – no encontro – pela verdade.Mas esse terreno não existe com os revisionistas(Idem).

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Se a verdade absoluta é inalcançável, poucos fatos, entretanto,são tão inquestionáveis quanto tudo aquilo que se insere noholocausto, fartamente documentado, testemunhado e lembrado.A veemência do posicionamento de Vidal-Naquet, fortementeengajado contra o esquecimento, não se distancia em nenhummomento de justificativas pautadas pelo conhecimento científico(histórico). Essas últimas permitem-lhe desconsiderar os negacionistas

como interlocutores a respeito da revisão histórica da Segunda GuerraMundial, ou seja, Vidal-Naquet não aceita debater com quem baseiaseus argumentos em pressupostos históricos reconhecidamente falsos(o que é constatado através da volumosa produção históricaexistente), fora da lógica científica e mediante uma memóriareconstruída a partir de premissas irreais.

Em última instância, a sonegação da informação e daexperiência assim como a imposição do esquecimento sãomecanismos necessários para se consolidar o anestesiamento geral ea desresponsabilização histórica. Tais mecanismos contribuem para aimplantação de uma memória “reciclada” que interessa ao poderdominante e que, evidentemente, se afasta ainda mais do (passadohistórico) real. Diante disso, o engajamento de Vidal-Naquet nãoimplica absolutizar a função social da história em detrimento da suafunção científica; pelo contrário, sua fala “raivosa” e sua convicçãono paradigma científico reafirmam os pressupostos da racionalidade.Ademais, se no âmbito do discurso, o autor pode parecer“panfletário”, um pouco na linha da indignação de Paulo Freire(1996), entretanto, assim como este, não se deixa cegar pela raiva –justificada –, propondo o debate no plano do conhecimentocientífico. Aliás, é através da valorização dessa condição que Vidal-Naquet denuncia e desqualifica a ausência completa de cientificidadenas posições negacionistas.

Um outro exemplo de engajamento, também em situaçãolimite, relaciona-se ao complexo e traumático processo derecuperação da memória e da história dos desaparecidos naArgentina. Trata-se do caso de três professoras (Dussel; Finocchio;Gojman, 1997, p. IX), que, munindo-se de toda cautela e conscientes

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das limitações concretas que seriam enfrentadas,2 se propuseram tra-balhar com tal temática e escreveram um livro destinado à rede escolardaquele país:

[...] tivemos [...] uma vontade imensa de juntar nossasidéias e saberes para aportar ao que consideramos quecontinua sendo uma conta pendente na educação ena sociedade argentina: a construção de uma memóriasobre a história recente que tenha como interlocutoresàs novas gerações. [...] Mas com medo de produzirversões fragmentadas, de assumir-mos a verdadeabsoluta num debate que continua aberto, em suma,de esquecer uma parte importante da história.

Portanto, sem ter muito claro o perfil do que poderia ser umlivro que resgatasse o tempo presente argentino, as autoras, desde aproblemática do terror de Estado e da luta pelos direitos humanos epela memória histórica, precisaram abordar a questão após umrigoroso exame do método científico:

[...] uma maneira de abordar este problema consistiuassumirmos marcos de referência explicativos e deinformação que ajudaram a dar conta das múltiplasdimensões que se condensam nessa questão. Para nós,ler o Nunca Mais [relatório produzido pela ComisiónNacional de los Desaparecidos – CONADEP] semreferirmo-nos à história política e social de nosso país,sem discutir política e filosoficamente a questão daviolência e a construção de uma memória, poderesultar numa experiência semelhante à de olhar umfilme de terror, onde a única coisa que queremos éque termine logo para abandoná-lo no canto maisafastado das lembranças. É inquestionável que não sepode evitar que os leitores [...] se enfrentem com ador e com a impotência diante da magnitude ecaracterísticas da repressão que os testemunhosrevelam e [...] também é desejável que possam

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trabalhar-se como argumentos racionais a favor datolerância e da construção de outra cultura política(1997, p. IX).

Diante de tudo o que foi colocado até aqui em relação aoengajamento, é importante ressaltar alguns aspectos. Primeiro, anecessidade de se refletir sobre questões complexas, assumindo-seatitude de engajamento e de compromisso contra os processos deesquecimento em marcha. O segundo, partindo-se de umaperspectiva de análise abrangente, explicativa e total, a exigência depropor-se uma leitura contextualizada de obras como o Nunca Mais

e de eventos como o Holocausto, articulando-se todas as instânciaspossíveis no conjunto da sociedade. Finalmente, a pertinência de seesperar uma certa postura pedagógica, no sentido de se aprendercom os acontecimentos, assim como pretender fornecer subsídiospara mudar o que exista (possibilidade de função social). Neste caso,como naquele apontado por Vidal-Naquet, parece claro haver umadupla validade e justaposição das funções teórica e social da história.Nessas situações concretas, cabe bem a posição de Josep Fontana(1998, p. 37), quando destaca que

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Conclusão: o Tempo Presente e a ética do historiador

Pesquisar o tempo presente é função do especialista eresponsabilidade social do historiador, que deve estar atento a tudo,que precisa posicionar-se diante dos mitos, dos preconceitos, dasdeformações da consciência coletiva e da memória. Ele também está

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[...] nem os métodos nem a teoria são objetivo finaldo nosso trabalho, são apenas ferramentas para tratarde entender melhor o mundo em que vivemos e ajudaros outros a entendê-lo, a fim de contribuir paramelhorá-lo, o que faz falta.

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intimidado a esclarecer o caso, a fornecer um fio condutor por ondepasse o crivo da função crítica, da função cívica e da função ética.Ele mesmo contribui para a construção dessa consciência e memória.

Analisando as situações limite colocadas pelas discussões donazismo, Bédárida (1998) instiga o historiador a assumir uma posiçãoque vá além da sua atuação no campo científico, intervindo na esferapública e pronunciando-se sobre os riscos implícitos para a sociedadeno amplo processo negacionista conduzido pelos falsificadores dahistória. É do ônus do expert – o historiador especialista –, fortementelegitimado pela opinião pública, oferecer opiniões elucidativas. “Apalavra de expert do historiador, observadas as regras do ofício erespondendo aos questionamentos do Tempo Presente, éperfeitamente legítima, restituindo à história sua densidadesignificante” (ibid., p. 46).

Algumas idéias de Paulo Freire (1996) podem contribuir aodebate, mesmo não sendo ele um historiador. Em relação à questãoética, dizia o autor, os educadores deviam assumir uma “éticauniversal do ser humano” inseparável da sua prática educativa.Dentro dela, há lugar para condenar o discurso neoliberal, aexploração do trabalho humano, o falseamento da verdade e todotipo de discriminação. Entretanto, não se conclua daí que Freireprioriza a função social do conhecimento em detrimento da funçãoteórica. Ao definir o que considera ético no trabalho do educador,lembra que o problema não consiste no fato de o professorposicionar-se ou assumir seu ponto de vista. O problema está emabsolutizar o seu ponto de vista, ou seja, em desconhecer que arazão ética pode não estar com ele. Por isso, considera prejudicialqualquer declaração de (pretensa) neutralidade, o que não significa,porém, abandonar uma preocupação rigorosamente ética. Para PauloFreire, a ética do educador não pode omitir nem mentir a respeitode outros pressupostos que discordem dos próprios. Ora, aqui estáo reconhecimento do comportamento de quem avoca o primadoda ciência e da verdade. Sem negar a possibilidade de assumir umpapel militante, estabelece os limites para tanto através de um fortemecanismo de vigilância emoldurado no marco da honestidade

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que, se os juízos de valor são inerentes à função social da história,eles são estranhos à sua função teórica. Fiscalizar para evitar que outilitarismo da história coloque em xeque a validação do seuconhecimento específico e da sua legitimidade teórica é, portanto,uma tarefa fundamental do historiador.

A ética na ciência histórica passa pelo ater-se à ciência, à verdadee ao conhecimento científico. Logo, a honestidade intelectual dohistoriador passa pelo não ocultamento de outras matrizesexplicativas que não sejam as suas e pela explicitação dos limites edificuldades do seu trabalho assim como das suas perspectivas teórico-metodológicas.

Em relação à questão da ética, as premissas do historiador doTP e da HI não são diferentes daquelas do coletivo dos historiadores.Em todo caso, pensando nas particularidades da sua abordagem,pode-se esperar do especialista do tempo presente uma maiorexplicitação dos limites da sua análise, da colocação da sua perspectivae do reconhecimento dos resultados parciais e inconclusos queproduz, não temendo assumir posições desde que elas não afetem anatureza científica do seu trabalho.

Por último, deve fazer parte da ética dos historiadores ocompromisso de tornar compreensível a dinâmica das sociedadesdesvelando o que está velado, expondo as relações concretas dedominação e de poder sobre as quais se rege a sociedadecontemporânea. E, se nos casos limites, o expert deve assumir posiçõesmais visíveis diante das iniciativas de falsificação da história, que secomporte assim em todas as situações concretas, tomando toda acautela que lhe impõe a ética. Isso quer dizer que ele deve agir comoser social instrumentalizado para analisar seu tempo sem deixar desocializar suas informações e sem sonegar explicações. Como muitobem conclui Fontana (1998, p. 37), “Um dos grandes desafios quetemos como historiadores é o de voltar a metermo-nos nos problemasdo nosso tempo [...].”

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Abstract. The article examines some issues concerning the production of historicalknowledge establishing relationships with the History of the Present Timeapproach. The reflections about Present Time as a field of analysis of History hasdeveloped in the last years. They express: the attempt to delimit these fields ofanalysis and intervention of historians; the adequacy of their theoretical-methodological apparatus and the making of new instruments which may enablethem to face properly the challenge of the historical speeding up in the last decades.Keywords: Present Time. History of the Present Time. Production of HistoricalKnowledge.

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The challenges of production of historical knowledge in perspective of present

time

Notas

1 Sobre este ponto, entende-se aqui que é só no discurso que o historiador podeassumir uma (pretensa) postura de neutralidade, pois essa postura, no planoconcreto, escamoteia a existência de tomada de posição em função de interessesdefinidos. O que o historiador deve almejar, sim, é a postura da isenção, ou seja,sem esconder a sua perspectiva de análise nem os elementos que a demarcam, elepode explicitar, de forma objetiva, a sua leitura dos fatos, sempre e quando nãoignore (conscientemente) ou manipule informações que possam ser desfavoráveisàs premissas que pautam o seu ponto de vista.2 Avaliar o nosso próprio tempo é sempre um desafio marcado por dúvidas ereceios. Dussel, Finocchio & Gojman (1997, p. IX) temem “[...] produzir versõesfragmentadas, de arrogar-nos a verdade absoluta num debate que continua aberto,em resumo, de esquecer uma parte importante da história. [...] Entretanto,queremos ressaltar que esta aproximação ao ensino da história argentina recente,certamente incompleta e suscetível de melhora, tem como propósito central ajudara fazer memória na e desde a escola. A construção de outra relação com o passadorecente, tanto dos adultos como dos jovens, é uma tarefa inadiável se queremosque o Nunca Mais tenha raízes sólidas e perduráveis na sociedade argentina”.

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Enrique Serra Padrós

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“A su usanza y según el aderezo

de la tiera” –

devoção e piedade barroca

nas reduções jesuítico-guaranis

Resumo. O artigo analisa o discurso jesuítico, através de suas falhas, apresentandoas reduções jesuítico-guaranis (século XVII) como um espaço de reinvenção designificados, no qual se construiu uma sensibilidade própria, em conseqüência daapropriação seletiva e criativa e da ressignificação de expressões da cultura indígenaguarani e da cultura cristã ocidental. Constata que as demonstrações próprias dasensibilidade guarani foram apropriadas pelo discurso jesuítico, na condição deresultantes do processo exitoso de conversão ao cristianismo.Palavras-chave: Discurso jesuítico. Reduções jesuítico-guaranis. Cultura indígenaguarani.

*Eliane Cristina Deckmann Fleck é Doutora em História da América (PUCRS)e professora da Graduação em História e do PPG em História Latino-Americanada UNISINOS.

Eliane Cristina Deckmann Fleck*

A historiografia produzida sobre as reduções jesuítico-guaranisé abundante e muito heterogênea, indicando tanto a importânciadesse fenômeno histórico, quanto a multiplicidade e o caráterpolêmico das interpretações possíveis.1 Uma parte considerável dessa

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produção historiográfica considera que o acervo documental sobreas reduções jesuítico-guaranis, organizado pela Companhia de Jesus,“enuncia, por princípio, uma versão a partir da visão jesuítica”,impedindo qualquer “possibilidade de se fazer uma leitura […]extraindo da fala jesuítica uma leitura própria dos nativos do processoda conquista” (Resende, 1999, p.244-245). Além de nos oferecervisões estereotipadas dos indígenas guaranis, os historiadores têm selimitado, geralmente, “a repetir y comentar las descripciones de loscronistas de la época” sem aprofundar “las cuestiones teológicas,litúrgicas y pastorales que subyacen en tal modo de vida – la vidaespecificamente religiosa de las Reducciones” (Melià; Nagel, 1995,p.107).2

Assim, as condutas e manifestações da sensibilidade religiosaindígena registradas nessa documentação são consideradas comoindícios da adesão aos valores cristãos ocidentais ou, ainda, comoresultantes do processo exitoso de aculturação promovido pelaCompanhia de Jesus. Nossa proposta, no entanto, considerou que adocumentação permite outros enfoques, na medida em que revelaque aquilo que o jesuíta apresentava como indicativo da absolutaconversão pode ser tomado como uma ressignificação da tradiçãocultural guarani.

Para desvendar a peculiar sensibilidade religiosa reducional,propusemo-nos a analisar o discurso jesuítico3 referente ao séculoXVII, cobrindo o período de 1609 a 1675, através daquilo queMichel de Certeau chamou de “falhas” ou “lapsos na sintaxeconstruída”, que, ao retornar nas “franjas”, revela “resistências”,“sobrevivências”, enfim, aquilo “que pode perturbar o consagradosistema de interpretação” (De Certeau, 1982, p.16).

A possibilidade de analisarmos as reduções jesuítico-guaranisnessa perspectiva apresenta-se na medida em que os registrosjesuíticos enfatizam que as manifestações de devoção e de piedadereligiosa foram pautadas, em sua maioria, por excessos de fervoremocional e disposição para perseverar nos novos padrões desensibilidade e de conduta moral introduzidos pelos missionários.Gestos, tons de voz, expressões faciais, movimentos e posturas

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corporais e outras mensagens sobre estados emocionais dos indígenassão tomados e apresentados como indicativas de sua sujeição epassividade.

Em razão disso, as recorrentes informações sobre igrejasadornadas, altares erguidos e decorados, caminhos limpos,demonstrações de alegria e bailes “a su usanza” não parecemcomprometer, no entendimento dos missionários, a devoção e apiedade expressas nas missas, procissões, festas religiosas e penitências.Afinal, “allí, donde antes no había sino madrigueras de fieras, ya nose ve sino un cielo lleno de ángeles en forma humana” (Leonhardt,1927a, p.107), e “se ve en ellos grande fe; esta les asienta tan biencomo si fueran ya cristianos viejos, y de muchos años de religión,[…] los tienen hoy nuestros padres tan domesticados y reducidos ala policía humana y divina que quien los ve no puede dejar deadmirarse y dar mil gracias a Dios” (Documentos..., 1996, p.79).

As percepções que apontam para uma demonstração pública“da civilização dos afetos e da conduta” não parecem, igualmente,ser relativizadas, como fica demonstrado em outra passagem queconsta da Carta Ânua de 1672 a 1675, segundo a qual “Bajaron deallí los pobres indios en masa, con manifestaciones de grande alegría,celebrando la llegada de los misioneros con bailes y música a suusanza” (Leonhardt, 1927c, p.25-26).

Autores como Guillermo Furlong, Antonio Astrain e PabloPastells valem-se dos registros dos Pes. Sepp, Cardiel, Peramás eLozano para apresentar o êxito do processo reducional como únicae exclusivamente decorrente do esforço dos missionários em adaptara liturgia cristã “à índole própria dos Guaranis”, devido “à notóriamentalidade infantil dos índios Guaranis” (Jaeger, 1970, p.203-204).Na verdade, os missionários jesuítas estariam, segundo esses autores,desenvolvendo “as predisposições naturais dos indígenas, medianteformação e exercício”, uma vez que “a primitiva civilização dosguaranis não possuía herança cultural” que pudesse ser agregada àliturgia cristã, além do que os índios, na opinião dos missionários,“tão pouco eram talentos criativos” (ibid., p.205).

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Encontramos essa idéia na obra de Guillermo Furlong, queafirma que os jesuítas “[…] começaram por penetrar na psicologiado índio e, longe de adaptar os indígenas aos métodos europeus,adaptaram os métodos, que haviam aprendido no velho mundo, àidiossincrasia dos índios” (Furlong, 1962, p.308). O autor enfatiza,em razão disso, que os missionários teriam concluído acertadamenteem valorizar a solenidade e a festividade que envolviam algumascelebrações litúrgicas, com a finalidade de servirem de “honestoentretimento” e para que “não lhes venha a tentação de fugir” e“lhes entrem as coisas de Deus” (ibid., p.490), uma vez que entre“estes índios saídos dos bosques, esse culto externo era ainda maisnecessário, por seu crasso materialismo e apego às coisas visíveis etangíveis” (ibid., p.273).

Neste estudo, tomamos as reduções jesuítico-guaranis comoespaço de “mediação cultural”, enfatizando sua expressão como “jogode relações e de processos de construção de sentido”, assumindouma postura distinta daquela defendida por aqueles autores. Ainvestigação que realizamos permitiu que constatássemos que osGuarani não reagiam apenas de forma passiva às novas condutasmorais e aos princípios da fé cristã introduzidos pelos missionários.Os próprios registros que analisamos revelam as respostas criativas,ou seja, “a transformação criativa do que foi apropriado” (Burke,1989, p.87), resultante do “empenho constante da integração danovidade no tradicional” (Cunha, 1987, p.101).

“Para poner terror a otros”

Em 1601, o Superior Geral da Companhia de Jesus decidiureunir as regiões do Rio da Prata, Tucumã e Chile numa provínciaindependente, com o nome de “Paraguay”. O 1º Concílio do Rioda Prata, realizado em Assunção, em 1603, teve, nesse contexto,uma importância fundamental, por estabelecer as metas quedeveriam ser alcançadas pelos missionários e as orientações e os meiosque seriam empregados para “la enseñanza de la doctrina a los indiosy la reforma de costumbres de los españoles” (Mateos, 1969).

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As determinações resultantes desse Concílio tornaram-se umreferencial para o trabalho missionário, refletindo-se nas duasInstruções do Pe. Diego de Torres Bollo (1609 e 1610)4 aosmissionários que atuavam junto aos Guarani no Paraguai. EssasInstruções renovavam as metas estabelecidas em 1603 e reforçavamorientações quanto à metodologia que seria empregada pelosmissionários, enfatizando a necessidade de “tirar-lhes os pecadospúblicos e pô-los sob policiamento”, bem como de afastar osfeiticeiros, por serem muito perniciosos e incitarem os índios apermanecerem em suas superstições (apud Rabuske, 1978, p.25).

Os feiticeiros eram o alvo preferencial da ação catequética dosJesuítas, como fica evidenciado na recomendação de que“repreendam nisso os culpados nos demais vícios públicos corrijam-nos e os castiguem a seu tempo com amor e inteireza, especialmenteos feiticeiros […]” (apud Rabuske, 1978, p.27). Com efeito, osmissionários já registravam, na Ânua referente ao ano de 1616, queos feiticeiros haviam influenciado “estas miserables almas a quienesha hecho el demonio por medio de hechizeros creer que el Baptismoles mata y así rehusan el recivirlo” (Documentos..., 1924, p.76).Sob a ótica dos missionários, o demônio encontrava “fraudes comque entronizar a seus ministros, os magos e feiticeiros, a fim de quesejam a peste e ruína das almas”, prejudicando o trabalho deconversão através dos incidentes por eles promovidos com a intençãode “[…] remedar em todas as partes o culto divino com ficções eembustes […]” (Montoya, 1985, p.104).

O prestígio desfrutado pelos feiticeiros pode ser tambémavaliado por este registro, extraído da Carta Ânua de 1635-37, querevela, igualmente, a consciência que tinham os missionários dopoder espiritual (de caráter sobrenatural) que exerciam essesfeiticeiros sobre os indígenas, bem como da tradição ritualística quepreservavam:

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Acudieron, sin embargo, los infieles de todas partes,

trayéndole presentes, para que les adivinase, los curase,

y les procurase buena cosecha. Parecía a nuestros

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Padres, que ésto era una grave rémora para la

propagación de la fe, mucho más cuando corría el

rumor de que los infieles pensaban en construir un

templo, para este monstruo (Documentos..., 1924,

p.735).5

Nesse sentido, vale observar que as imagens dos feiticeiros maisfreqüentes nos registros são as que os identificam com demônios erealçam sua aparência monstruosa,6 como nesta referência aofeiticeiro Zaguacari:

Naquela redução […] havia um índio vivo, que em

sua existência e na disformidade de seu corpo, muito

se parecia ao diabo. Chamava-se ele Zaguacari, que

pretende significar o mesmo que “formosinho”.

Pouco, no entanto, lhe convinha este apelido, porque

ele era de estatura muito baixa e tinha a cabeça apegada

aos ombros e, para virar o rosto para trás, impunha-

se-lhe girar todo o corpo. Os dedos de suas mãos e

pés imitavam não pouco os dos pássaros, pois eram

torcidos para baixo. Só se viam as canelas em suas

pernas, sendo que tanto nos pés como nas mãos ele

possuía pouca ou nenhuma força (Montoya, 1985,

p.146).

À presença ameaçadora dos demônios foi, no entanto, atribuídauma justificativa e, principalmente, uma função moral, como seobserva nos registros feitos sobre os castigos que sobrevinham aosque roubavam, cometiam adultério ou deixavam de freqüentar amissa. O registro que transcrevemos informa ainda sobre a práticado exorcismo.

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Num domingo, estando todos a ouvir o sermão e a

missa, somente esse índio ficou em sua granja.

Começaram então ali os demônios a dar vozes como

de vaca, bramidos como de touro e mugidos como

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de bois, bem como imitar as cabras. Espantado, o

pobre índio se recolheu a sua choça, sem se atrever a

sair de lá, por tomado de medo. […] O pior, contudo

foi que [os demônios] deixaram toda aquela plantação

amarelecida e como se um fogo a tivesse chamuscado

no domingo seguinte aconteceu o mesmo. Revesti-

me de sobrepeliz e tomei na mão a água benta e, em

nome de Jesus Cristo […] mandei-lhe [ao demônio]

que fosse embora daqueles lugares e que em povo

algum fizesse dano. Pus num copo fechado um pedaço

da sotaina de Santo Inácio e nunca mais voltou o

demônio (Montoya, 1985, p.102-103).

Em outra ocasião, Montoya (ibid., p.80) relata que presencioua admoestação de cinco demônios a um jovem adoentado, sendoque “[…] A cabeça de um deles era de porco, a do outro de vaca edo mesmo estilo as dos demais. Tinham os pés de vacas, de cabras epássaros enormes. Estavam com as unhas compridas, as pernasfiníssimas e, despedindo de seus olhos raios como de fogo”. O assédiodo demônio era associado à reincidência nas antigas práticas rituais,como neste registro em que se informa também sobre o castigodivino que se abateu sobre os transgressores:

Unos cincuenta cristianos se habían ido a muy

apartadas montañas para recolectar yerba. En el

camino encontraron una enorme peña, un poco

semejante a la figura de un hombre, llamado por los

bárbaros aña ciba, es decir frente del demonio. A este

monstruo de piedra ofrecen los infieles dones, para

conseguir un feliz viaje […] Pagaron muy caro su

impiedad. Se enfermaron todos estos supersticiosos,

y solos ellos muriéndose algunos y quedando los

demás tan estropeados, que para un viaje de

veinticuatro dias echaron meses enteros

(Documentos..., 1924, p.693).

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Para os missionários, eram os demônios que levavam osindígenas a cometerem pecado, reforçando a necessidade de –mediante os sermões – torná-los “unos buenos luchadores en loscombates contra los enemigos invisibles” para que pudessem“defenderse contra las tentaciones de parte de las malas pasiones,por medio del escudo de la fe y del santo temor de Dios” (Maeder,1984, p.128-129). Cabe observar que “el indígena conformará supropia imagen del demonio cristiano”, difundida pelos missionáriosjesuítas em seus sermões, aparecendo “con ocasionales figurasantropomórficas o zoomórficas” (Martini, 1990, p.336).

“Para ganar más gracias sacramentales”

Os sermões empregavam largamente os relatos edificantes eintroduziam os indígenas nos mistérios da fé, atendendo à recomen-dação feita pelo Pe. Diego de Torres Bollo de que “[…] Sejam ossermões tais que se lhes declare algum mistério, artigo ou man-damento, repetindo-o muitas vezes e usando de comparações eexemplos” (apud Rabuske, 1978, p.26). Em razão disso, eramconsiderados meios privilegiados e eficazes para a conversão religiosae para o comportamento virtuoso. A “boca do pregador” era iden-tificada à “boca de Deus”, sendo instrumento com que a graça mani-festava-se e transformava os homens.

Em uma sociedade ágrafa como a Guarani, foram largamenteempregadas imagens cristãs, como a do céu e do inferno, facilitandoa percepção dos elementos básicos do cristianismo, bem como houvea implementação de uma estrutura perceptiva marcada por umapredisposição à materialização da sensibilidade religiosa.7 As visõese os sonhos dos indígenas registrados pelos missionários jesuítas estãoevidentemente associados aos sermões, aos conselhos e às advertênciasfeitas aos transgressores ou vacilantes, bem como às encenaçõesteatrais que, constituindo-se em verdadeiros espetáculos de exaltaçãoreligiosa, predispunham os indígenas a externar publicamente suasculpas e seu arrependimento e louvor a Deus “para poner terror aotros” ou para demonstrar o “cambio de sus sentimientos”. Os

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missionários valeram-se amplamente da imaginação para atingirestados almejados de emoção religiosa, inculcando medo e horroratravés das alegorias celestiais.

[…] muito conveniente era fazer-se alguma boa

demonstração pública, para confusão dos sacerdotes

desses ídolos e desengano dos povos […]. Reunida

toda gente na igreja, fez-se-lhe um sermão, em que se

tratou do verdadeiro Deus, da adoração que lhe é

devida da parte das criaturas, e dos enganos do

demônio […] das mentiras e ardis dos magos […].

Tirado esse estorvo, aquela gente começou a freqüen-

tar com assiduidade a igreja, e os cristãos a confissão”

(Montoya, 1985, p.108-109).

A permanente luta entre o bem e o mal manifesta-se no discursomissionário jesuítico, opondo o céu ao inferno e os anjos ao demônio,como se pode observar nesta passagem extraída da Ânua de 1637-39, na qual o padre narrava que “permitió que los demoniosmolestasen al enfermo, llevándolo en aparencia a los fuegos eternos.Al instante aparecieron dos ángeles para sacarlo de las garras deldemonio” (Maeder, 1984, p.122).

Os sonhos registrados pelos missionários apresentam, de formarecorrente, indígenas realizando exames de consciência e purificaçãoespiritual através do sacramento da confissão dos pecados.

Una india de muy mala vida, estaba tan obstinada

que huía de la confesión. Dios tuvo misericordia de

ella, sin que ella diera ocasión para ello. Vio ella, como

después contó, a un hermoso niño, que la conducía

por medio de unos precipicios hasta un pozo muy

profundo y terrible, de donde salían tristes gemidos y

horribles aullidos. Vio allí unos monstruos negros,

que revoloteaban por unas espesas nieblas y el fuego

que estaba chisporroteando en los abismos. Entonces

dijo el niño a la india: Allí te echarán abajo, si no te

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arrepentes de tus pecados tan sucios, y no te confiesas.

Desapareció el niño y la india se despertó. Al amanecer

se apresuró a ir a la iglesia, contó lo que había visto, y

con gran dolor de su alma se confesó de sus pecados

(Maeder, 1984, p.96).

A visão do Inferno presente no sonho dessa indígena é descritacom colorações tão vivas que o temor que possa ter produzido neladeve ter ocasionado não só sua confissão, mas a internalização dapermanente ameaça de experimentá-lo concretamente. As CartasÂnuas permitem-nos ainda avaliar o impacto dos sonhos e das visõessobre as condutas dos índios reduzidos:

Obstinadamente siguió aquel joven en su mala vida,

haciendo con sangre fría las más grandes barbaridades.

La misericordia de Dios, empero, había resuelto

sacudir aquel corazón endurecido. Estaba una vez

durmiendo, cuando se vio puesto, por medio de unos

demonios, delante del tribunal del Eterno Juez. Siguió

el sumario y se pronunció la sentencia. Sintióse el

joven azotado barbaramente por los demonios, y

cuando despertó, le atormentó el dolor en todo su

cuerpo que no pudo levantarse. El gran sufrimiento

le hizo volver a buen juicio y arrepentirse de veras.

Llamó el Padre e hizo una larga y buena confesión.

Sanó en alma y cuerpo, y persevera en el buen camino

(Maeder, 1984, p.34).

Há, também, o registro de uma indígena que, debilitada porcomplicações decorrentes de um parto, desfalece e sonha. Omissionário não descuidou de valorizar a “morte aparente” e a fanáticaconversão que se seguiu:

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En su mocedad esta india despues de averle muerto

dos hijuelos ahogo al ultimo trance de la vida de un

reveçado parto, dispuso sus cosas como quien en fin

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conocía era llegada su hora y delante de muchos que

la asistían perdió los sentidos y quedó como muerta

por tal la juzgaron los circunstantes por grande espacio

de tiempo aunque ella no sabe o que verdaderamente

en esto pasó, mas de que en este tiempo y sin parecerle

se avia apartado de donde estaba, se halló en un lugar

eminente de donde la subieron por unas gradas y en

lo alto de ellas estava una casa toda fabricada de oro y

queriendo entrar por la puerta descubrió desde ella

gran muchedumbre de gente y un altar y unos Padres

con el traje de la Compañía y a sus dos ijuelos difuntos

que asistían sirviendo a los dos lados los cuales

acusaron la madre que no sabía las oraciones y que

assi no devia franquearsele la entrada […] en la qual

se volvió a Nuestro Señor invocando su favor y

repitiendo muchas vezes: Madre de Dios, Madre de

Dios en su aiuda con lo qual se cobró del arrobamiento

y paracismo y en breve sanó de su achaque, quedando

tan aficionada a las cosas divinas que agora vieja como

es va de un pueblo a outro por asistir a los misterios

de la misa donde saben que se celebran (Maeder, 1984,

p.34-35).

A crença nas aparições das almas do Purgatório que vinhampedir aos vivos missas e orações para a reparação de erros por elascometidos fica assim documentada:

Aviendose una mujer ya defunta aparecido a su marido

le mando fuese al Pe a pedirle de su parte una misa

hiçolo el hombre: prometiose la el Pe mas olvidado

quando estaba en el altar ofreciola por otra intención,

reparando a la noche en su descuydo le salteo algun

recelo no fuese el alma de la difunta a darle el recuerdo

al ponto le tocaron a la puerta y entendio claramente

que aquella alma le pedia su socorro dixole la misa y

no volvio más. Otra vez estando solicito por la

salvacion de un penitente suyo defunto se le mostro,

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durmiendo el Pe, con rostro risueño y preguntando

de su estado en la vida le dixo si no fuera bueno no

me vieras con esta alegria (Documentos..., 1924,

p.259).

Em vários relatos que referem visões e sonhos de moribundos,encontramos a associação entre os sacramentos e a “boa morte”,que revela a presença do universo simbólico jesuítico e o processode produção e difusão de representações nas reduções. Deve-seconsiderar, no entanto, que não se trata de uma simples transposiçãode representações, mas que esses relatos indicam a “construção” derepresentações sociais num novo contexto, o reducional, por novosagentes sociais, os índios Guarani. Esse processo, no qual osmissionários manejaram símbolos e valores, definindo sua direção eassimilação, foi condicionado às motivações e às aspirações dosindígenas.

“Para el cambio de sus sentimientos”

Significativas para a análise da construção dessa peculiarsensibilidade religiosa são estas passagens extraídas das Cartas Ânuasreferentes ao período de 1610-1613, fase inicial da implantação domodelo reducional, e que registram o medo dos indígenas demorrerem infiéis e de irem para o Inferno em razão disso.

Han tenido ordinariamente sermones de doctrinaxpana. […] El medio que tomo Dios nro. Sr. para

que estos entrasen en fervor en pedir el baptismo fue,que acabandoles de predicar un día en que se les trató

de los bienes grandes del baptismo, se levanto un niñode doçe a treçe años y hincado de rodillas y puestas

las manos pidio por amor de Dios le baptizasen,diciendo temia mucho morirse infiel e irse al infierno,

y asi queria ser hijo de Dios por el bautismo e irse alcielo, y haviendole dado el si, daba saltos de placer y

gozo, diçiendo a todos que el pe. le queria haçer hijo

de Dios (apud Pastells, 1912, p.164).

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É conveniente ressaltar que, na avaliação dos missionários, otemor da morte sem a confissão e sem a absolvição dos pecados e aperene ameaça do Inferno levavam os indígenas a procederem deacordo com suas recomendações. O relato constante na Ânua de1637-1639 informa:

Hubo uno que se adelantó tanto en su temeridad que

ni siquiera respetaba el Sacramento de la Confesión.

Pero no impunemente había provocado a Dios. Se

enfermó gravemente. […] Sus parientes temían que

se les iba a morir y al mismo tiempo que se condenase

eternamente, ya que se hizo el desentendido a todos

sus caritativos consejos. […] Así murió impenitente

y fue sepultado en el infierno, para servir de horrible

escarmiento a los indios de la reducción. […] por

justo juicio de Dios fue privado en la hora de la muerte

de los consuelos de la religión (Maeder, 1990, p.91).

Nos relatos que referem a administração do sacramento dobatismo a moribundos, encontramos uma vinculação com a garantiada salvação:

[…] estando dando gracias vino su hijo a llamarme a

gran priesa, que su madre se queria baptizar. Fui y vi

en ella eficasia de los medios divinos hallandola tan

trocada que me espante. Pidiome la baptizasse e

instruyda en los misterios de nra santa fe y

arepentiendose de sus peccados recebido el baptismo

murio (Documentos..., 1924, p.77).

O apego à confissão também remete-nos à absorção de suaeficácia mecânica pelos indígenas, como revela este trecho da CartaÂnua de 1637-39:

237

Es una excepción entre tanta gente, que alguien no

quiera saber nada de confesión pues, los más son muy

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aficcionados a ella, y no soportan la dilación cuando,

por ejemplo, el confesor no acude pronto, retenido

por un asunto importante que en aquel instante le

ocupa. Temen la muerte imprevista y urgen para que

sean oídos en confesión luego, aunque a veces no

tienen nada de importancia que confesar, o lo hayan

confesado ya tantas veces, haciendo esto, para ganar

más gracias sacramentales (Maeder, 1984, p.96).

A observação do Pe. Zurbano, de que os indígenas se confes-savam “para ganar más gracias sacramentales” e que “son muyaficcionados” à confissão, não o impediu de afirmar que “muy incli-nados son los indios a hacer malas confesiones, lo que se comprendetomando en cuenta su rudeza e incapacidad para profundizar susconocimientos religiosos” (Maeder, 1984, p.34). Em relação aindaàs “buenas confesiones” e às “malas confesiones”, cabe observar quese constituíram em preocupação recorrente dos missionários, comopode ser observado na Ânua de 1668:

Fue preguntado en el tribunal de la penitencia cierta

mujer, si no tenía otros pecados más. Había sucedido

esto ya tres veces, negándo ella los pecados, y

recibiendo tres veces la absolvición invalidamente,

aunque estaba gravemente enferma, y próxima a morir.

Felizmente recobró ella el ánimo para confesarse bien,

y declaró que la causa de su malestar eran sus malas

confesiones, viéndose ella perseguida de noche por

un perro de terrible aspecto, lo cual le había

perturbado más todavía. Después de haberse

confesado, como convenía, murió (Leonhardt, 1927c,

p.20).

Deve-se observar que, na mesma Carta, são mencionadasrepetidas confissões e as razões apontadas pelos indígenas para talprática. Sentimentos de “vergüenza” e “humillación” são expressões

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constantes dos registros, indicando a interiorização de respon-sabilidade moral não-identificada com a cultura e a ética guaranis.É provável que a humilhação sentida, ao se confessarem com váriosconfessores, levasse-nos a realmente abandonar as condutasindesejáveis, evitando, com isso, repetir a situação de cons-trangimento. Deve-se ter em conta, no entanto, que o que os moviaà confissão era a promessa da absolvição dos pecados que garantiriaas bênçãos divinas e os livraria dos infortúnios.

Decorridos alguns anos, o Pe. Juan Ferrufino deixava entrever,em suas observações na Ânua de 1647-49, que a tarefa da conversãonão estava concluída e que as adversidades continuavam tendo umafunção “educativa”, devendo-se, por isso, manter as mesmasestratégias de conversão:

[...] sí como se ve en la naturaleza que la siembra se

arraiga más por el cierzo, y el arbol por el huracán.

Así las cosas grandes se solidifican más por la

adversidad. […] Esperamos, empero, que se

convertirán por medio de nuestra solicitud y en

consecuencia del remordimiento de su conciencia.

Procuramos ganar su voluntad con favores, aunque

nos hayan hecho tanto mal […] (Leonhardt, 1927c,

p.155)

A necessidade de constantemente fazê-los sentir “elremordimiento de su conciencia”, além de indicar a freqüência comque ocorriam desvios de conduta ou transgressões, atesta o senso deoportunidade (ou, como preferem os missionários, por “inspiracionsensible”) dos jesuítas, que utilizavam os sermões para instar osindígenas ao “bom comportamento”:8

239

Otro hombre perverso por largo tiempo supo ocultar

el veneno de sus pecados que le consumía, y parecía

irremediablemente perdido, ya que sacrilegamente

recibía los sacramentos. Un día vía como predicaba

uno de los Padres Misioneros contra el crimen de la

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hipocresía y de ocultar pecados en la confesión (pues,

como por inspiración se le había ocurrido predicar

sobre esta materia). Causóle a aquel infeliz tanto dolor

que le costó contenerse para no con alaridos

manifestarse como el hombre mas perdido del mun-

do. Luego despues del sermón se puso a llenar tres

hoyas de papel con las listas de sus pecados, entre

torrentes de lágrimas. Echóse a los pies del confesor y

le entregó el papel entre muchos sollozos y bañado de

lágrimas, desmayándose casi de dolor y

arrependimiento. Libróle el confesor de la carga de

su conciencia y desde aquel tiempo vivió con mucha

edificación (Leonhardt, 1927c, p.77).

Os registros feitos pelos missionários parecem indicar,realmente, uma alteração significativa nas atitudes dos indígenas:

Ay tan grande frecuencia de sacramentos, en especial

de la penitencia que comúnmente no pueden los

padres dar oídos a tantos. Con el de el altar tienen

tan grande fe y devoción, que se previenen mucho

antes para recivirle. Y a este temor es el provecho que

sacan de la divina mesa, que campea en sus costumbres

y se han visto en materia de honestidad muchos y

muy illustres exemplos […] Y si alguna vez por la

malícia del demonio han caido se han impuesto de su

voluntad muchas penitencias muy graves y dados

extraordinarias muestras de dolor que todos son

buenos indicios de las veras con que se han dedicado

al Señor estos nuevos cristianos. […] Cada día se

juntan todos a rezar de comunidad el rosario, oir misa,

dezir la letania de la Virgen y resplandecen entre todos

con la inocencia devida, por lo qual hazen grande

instancia para ser admitidos (Maeder, 1990, p.125).

240

A moderação das emoções, a normatização de ações e aeliminação de comportamentos inconvenientes ficam evidenciadas

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nas referências à observância dos códigos de postura corporal, taiscomo os de curvar-se diante do santo em sinal de respeito, baixar acabeça como forma de aceitar uma ordem, caminhar de umadeterminada forma em procissão e ocupar um lugar específico dentroda igreja, durante a missa.

“Para el remordimiento de su conciencia”

A preparação para as festividades e procissões e os rituais depurificação mereceram também atenção nos relatos dos missionáriosao Provincial. Nas Cartas, dá-se notícia da firme conversão dosindígenas, registrando também a eliminação dos “restos depaganismo” e informando sobre a integração dos convertidos àspráticas religiosas, por efeito das ações normatizadoras. A “ConquistaEspiritual” traz duas situações bastante significativas para o estudodessas práticas e das representações que as legitimavam. A primeirafaz referência ao aspecto das igrejas e festas organizadas “com devoçãoe asseio”, uma associação que sugere não só o “enquadramentoreligioso”, mas também a assimilação de padrões de higiene e condutacivilizada.

Fizeram-se igrejas de fácil construção, de grande

capacidade ou espaço e vistosas, e renovaram-se os

instrumentos musicais […] Nelas colocamos o

Santíssimo Sacramento, cuja festa – o “Corpus

Christi” – se comemora com pobreza, mas também

com devoção e asseio. Preparam os índios os altares

(especiais para dita festa), e fazem os seus arcos!, [sic]

nos quais penduram os pássaros do ar, os animais do

mato e os peixes da água […] (Montoya, 1985, p.144).

241

Na segunda, destacam-se as descrições que Montoya faz dapreparação espiritual que antecedia as festas religiosas, marcada pelojejum, pela penitência e, sobretudo, pela tensão interior – a angústia– que levava à demonstração pública de arrependimento e à confissão.

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Ao raiar do dia assistem missa o ano todo e, depois de

haverem estado na igreja, dirigem-se ao trabalho, que

obtém bons resultados a partir da preparação tão

religiosa. […] Comungam os que têm capacidade

quatro vezes no ano em que há jubileu, sendo

preparados para tanto com sermões e exemplos, jejuns,

disciplinas e outras penitências! (Montoya, 1985,

p.169).

Sobre as freqüentes referências às “demostraciones desentimientos”, há uma passagem que trata da morte de ummissionário, ocasião em que se observou “un lastimoso alarido” e“un funestisimo llanto” (Maeder, 1990, p.48).9

Los indios que con la pena de ver puesto a su Padre

en aquel trance no sosegavan, se avian juntado muchos

y tenían en aquella sazón cercada nuestra casa, dioles

aviso de la muerte el doble de las campanas, y alçaron

todos un lastimoso alarido, siguiendole luego todos

los demás que estavan esparcidos por las rancherías

del pueblo en los quales se oían tales extremos de

sentimiento y de funestisimo llanto, que representavan

quanto a esto uno de aquellos días confusos y

temerosos que han de anteceder al del juicio […]

(Maeder, 1990, p.48).

Pode-se sugerir que o “chorar copioso” esteja vinculado tantoà encenação ritual, quanto à consciência da culpabilidade e ànecessidade de demonstração pública de arrependimento, como ficaatestado nestes trechos da Ânua de 1632-1634:

242

Mas el Padre penetrando blandamente sua corazones

sus amorosas palabras, les hizo volver en sí, y que se

dispusiesen en aquel riguroso trance con mucha

penitencia y lágrimas, acavaron todos confesando sus

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delictos, y deseando muy seguras prendas de la

misericordia, qu el señor avia usado con sus almas

(Maeder, 1990, p.48).

Neste registro que selecionamos, é feita referência ao costumeda “saudação lacrimosa” guarani, apresentada aqui comomanifestação de caridade e comoção: 2

43

En el momento de encontrarse, quedaron tan

conmovidas ambas partidas, que largo rato no podían

hablar, sino sólo llorar, hasta que al fin se saludaron

mutuamente según su costumbre propia, abrazándose

con efusión, y sacando en seguida los refrescos y las

provisiones. Era un espectáculo ternísimo (Maeder,

1984, p.93).

A “civilização das condutas”10 destacada pelos missionários éacompanhada de manifestações de fervor e de devoção, demonstradasno “chorar copioso” durante a assistência às missas e na prática depenitências e de autoflagelação.11 Vale lembrar a insistente recomen-dação de que os indígenas assistissem às missas, já que, para osmissionários, a “adesão corporal” a essas cerimônias evidenciava uma“adesão espiritual”.12 Em razão disso, os indígenas ausentes à missae omissos na observância dos rituais de exteriorização da fé erampunidos com castigos físicos ou divinos.13

Cabe lembrar aqui que uma das características essenciais docristianismo colonial era a exteriorização, do que resultava umapercepção religiosa altamente simbolizada, ligada mais à imagemdo que àquilo que estava sendo representado. Trata-se, pois, deconsiderar que os corpos e sua gestualidade tanto são expressão elugar de inscrição da cultura, quanto objetos de análise e de exercíciodo poder, afinal “não há direito que não se escreva sobre os corpos[…] [o direito] domina o corpo” (De Certeau, 1994, p.231).

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As técnicas de inculcação de condutas e normas corporais e decontrole dos gestos encontram-se registradas na documentaçãojesuítica que analisamos, a qual descreve as condutas prescritas e astransgressões exteriorizadas. Como bem observa Revel, no exercícioda civilidade cristã, “o que mais importa é o que se vê”, logo, aconduta deve “evidenciar em seus gestos, a dupla exigência de umdecoro que é indissoluvelmente civil e cristão” (Revel, 1991, p.186-187). Essa percepção transparece claramente neste registro queintegra a Ânua de 1637-1639, a qual, além de qualificar como justosos castigos divinos, define o que era considerado transgressão: “Elcastigo era muy justo, porque ya eran cristianos, y no obstantequerían vivir a manera de los gentiles, vagando por los campos,olvidando o despreciando las prácticas religiosas” (Maeder, 1984,p.90).

A Ânua referente aos anos de 1641 a 1643 informa sobre comoeram identificados os transgressores e como se procedia paradeterminar as penitências.

244

Em relação aos novos padrões de conduta, deve-se salientar osrelacionados com a sexualidade e a adoção da monogamia. O Pe.Francisco Lupercio de Zurbano registra a rigorosa disciplina e osexcessos cometidos por um índio que se impôs a autoflagelação:

Los domingos y fiestas se celebran con toda

solemnidad, misa cantada y sermón, y antes doctrina

a todo el pueblo, y por la tarde volviéndose a juntar

dan los fiscales cuenta de los que han faltado en la

semana a misa y a doctrina y se les da una suave

penitencia que ellos reciben con extraña sujeción y

rendimiento […] A uno se le dio una penitencia a su

parecer pequeña, y así reclamó con sollozos, Padre

más, esto es poco […] (Documentos..., 1996, p.77-

79).

Sucedió que cierto joven, molestado por la tentación,

se echó en un hormiguero. Ya bastante maltratado

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por esto, se revolvó entre punzantes ortigas. Enfermose

por esto, y fué refrenado en sus penitencias por

nuestros Padres. Contestó él: No importa. Prefiero

morir antes que pecar. […] Señales son estas que ya

está profundamente arraigado en su corazón el santo

temor y amor de Dios (Maeder, 1984, p.129).

A Carta Ânua de 1637-1639 refere o arrependimento de umjovem após não ter conseguido controlar sua libido e a forma comoprocurou penitenciar-se:

Cierto joven havía caído imprevistamente en un

pecado carnal. Le dolió tanto, que comenzó a tratar

cruelmente su cuerpo con diferentes clases de

asperidades, no dejando ni la cara sin su especial

suplício. Así preparado, se acercó al tribunal de la

penitencia, profundamente conmovido por el dolor

y arrepentimiento (Maeder, 1984, p.102-103).

Decorridos mais de quarenta anos, a Ânua de 1668 ainda referea prática da autoflagelação, destacando o rigor e o entusiasmo comque os indígenas a executavam:

En su gran compasión con la Sagrada Pasión de Cristo

nuestro Señor, toman ellos con entusiasmo sangrientas

disciplinas; y en la Semana Santa sucedió que,

acompañando alguno en la procesión la grande Cruz,

amarrado a ella con una larga soga, enlazada en sus

manos, se hizo disciplinar con azotes de puas, hasta

que, ya al entrar otra vez en el templo, lo descubrió

uno de los Padres, y lo prohibió, haciendo curar las

heridas del penitente (Leonhardt, 1927c, p.16).

A internalização da noção de pecado e de culpabilidade chegavaa extremos, como neste registro extraído da Conquista Espiritual,que refere tanto a prática de flagelação, quanto a de exorcismo:

245

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Havia meses que estava doente um moço de vida

muito correta […]. Viu o moço diante de si um etíope

desnudo, o qual levava numa sacola alguns ossos de

defunto […] assim o demônio foi-se aproximando

dele […]. Pediu o enfermo que me chamassem.

Entretanto, vendo-se ele atormentado de tal forma

pelo hóspede, solicitou a seu pai que com força o

açoitasse, pois com isto sairia dele aquela besta. O

amor paterno fê-lo rejeitar semelhante ação, mas a

mãe, julgando bom o remédio, agarrou umas cordas

e começou a flagelar o filho. Ao mesmo tempo pedia-

lhe este que ela batesse com energia, e ao demônio

ordenava que saísse. Por fim, depois de várias

demandas e respostas, saiu, deixando moído o pobre

rapaz (Montoya, 1985, p.161).

246

Apesar de registrarem como exageradas as manifestações depenitência a que os índios submetiam-se, os missionários nãoescondiam sua satisfação em relação a elas, interpretando-as comointernalização da noção de pecado e de responsabilidade moral. AÂnua de 1663-66 reforçaria os efeitos benéficos da prática dapenitência, associando-a à abundância e à fertilidade da terra e àgarantia de bênçãos:

La saludable penitencia, que se hace de antemano,

previene la satisfacción que nos queda por hacer. Pues,

ya estaba la peste asolando los pueblos circunvecinos,

y no se atrevió a atacar precisamente este pueblo,

defendido por la penitencia, y se detuvo como

espantada de su vista. La tierra, empero, humedecida

por la sangre derramada por los azotes, que a su vez

surcaban los cuerpos, comenzó a producir una

riquísima cosecha, mucho más grande que la de las

otras reducciones, castigadas por la sequía, así que

este pueblo pudo generosamente socorrer a los

hambrientos de otra parte (Leonhardt, 1927c).

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O medo da doença e, sobretudo, o medo da morte introduzidospelos missionários através dos sermões e da doutrina traduziram-seem padrões de comportamento e de sensibilidade pautados pormanifestações de devoção e de piedade, exaustiva e entusiasticamentedescritas pelos missionários. O temor da morte sem a confissão esem a absolvição dos pecados e a perene ameaça do Inferno levavamos indígenas a proceder de acordo com as recomendações dosmissionários, tanto em razão de medos reais (pestes, fome, ataquesde bandeirantes), quanto em decorrência dos medos potenciais,construídos a partir da pregação jesuítica. As Cartas Ânuas de 1637-1639, por exemplo, referem que, em face da ameaça dosbandeirantes, os indígenas apressavam-se em solicitar o batismo e aconfissão “para poder pelear com más tranquilidad” (Maeder, 1984,p.72) e que “cada vez, antes de tirar el proyectil, se hincan de rodillasy se persignan” (ibid., p.79) e, ainda, que dirigiam “frecuentesplegarias a la Santísima Virgen, para que conseguieran una completavictória, como la conseguieron” pela “devoción de las mentes piedosashacia de la Virgen” (ibid., p.94).

O registro selecionado pelo redator da Carta Ânua, o ProvincialPe. Francisco Lupercio de Zurbano, prossegue referindo que osindígenas realizaram uma procissão que levava “en triunfo la imagende la Virgen por calles y plaza, por debajo de los arcos artisticamenteadornados com flores y ramas del campo, entre súplicas y cánticossagrados” (ibid., p.93-94). Apesar de observar que, após se teremconfessado e feito batizar, os Guarani “ardian en deseos de comenzarla batalla” (ibid., p.73), o Pe. Zurbano ressalta que, considerando“el natural bárbaro y feroz de esta gente y su antiguo carácter rastrero”(ibid., p.80), “estas sus prácticas religiosas parecerán, no pequeñeces,sino cosas grandes, no vilezas, sino cosas sublimes, a lo menos delantede Dios, el cual sabe apreciarlas en su justo valor” (id.). Essasmanifestações, próprias da sensibilidade guarani, são descritas emCartas Ânuas anteriores, como as de 1641 a 1643, que apontampara um comportamento arraigado e consentido pelos missionários:

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Los domingos y fiestas se celebran con toda

solemnidad, misa cantada y sermón […] en las iglesias

que están muy bien adornadas con el adorno posible

según el aderezo de la tierra […] Cuando hacen señal

para llevar el Santísimo al doliente aderezan la casa

deste con flores, barren y componen las callles con

ramos, y todos comúnmente traen sus velitas de cera

silvestre y acompañan al señor con gran devoción y

música de chirimía (Documentos..., 1996, p.77).

Aspectos como os revelados por essas passagens das Ânuasressaltam, de forma significativa, os lapsos no discurso jesuítico, namedida em que registram, aparentemente sem comprometimentoda avaliação positiva sobre “aquella inculta gentilidad”, índiosdomesticados (convertidos) mantendo “danzas y saraos a su modo”:

248

Unos vinieron bogando el Paraná abajo en casi 200

canoas muy de fiesta y a su usanza; otros por tierra

salieron a recibirnos con danzas y sarao a su modo;

levantaron muchos altares, haciendo cada reducción

el suyo ricos con la pobreza de la tierra. A trechos

estaban fabricados arcos triunfales cuyo adorno era

extraño: tenían dellos pendientes pescados asados y

crudos, y carne cruda y asada, pollos en jaulas, gallina

colgadas, huevos y perdices, micos y zorros, perros y

gatos, pellejos de animales llenos de paja, zurrones de

cuero llenos de comida, cestos de algodón, usos con

mazorca de lo mismo, rosarios y calabazos, arcos y

flechas, y cosas semejantes que son las que suelen

colgar en sus mayores fiestas, y viendo cuan grande

nos la hacían a su usanza en muestras de

agradecimiento les repartí donecillos que ellos estiman

mucho, como anzuelos, alfileres, agujas, cuentas

azules, cuchillos y camisetas, y las iglesias algunas

casuelas y frontales, quedando tan admirado como

consolado de ver en medio de aquella inculta

gentilidad el culto divino tan en su punto, los altares

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tan aseados, la musica tan excelente, los indios tan

domesticados, las indias y los niños tan bien enseñados

con los afanes y sudores de los Padres, todos los cuales

me hicieron después en particular en cada una de sus

reducciones gran fiesta, y recibieron con singular

caridad, consolándome no poco de verlos […]

(Documentos..., 1996, p.76).

Na verdade, as concessões perceptíveis nas “falhas do discursojesuítico” indicam que os missionários tiveram não somente aconsciência de sua necessidade “para atraerlos mejor con estasnovedades y prodigios al suave jugo de su ley evangelica y reformaciónde suas bárbaras costumbres” (Documentos..., 1996, p.122), mastambém reconheceram “la particularidad que tiene esta nueva iglesia”(Maeder, 1984, p.74). Demonstram, igualmente, que os indígenasGuarani encontraram, nas reduções, um espaço privilegiado paracontinuarem sendo Guarani, o que é admitido pelos própriosmissionários jesuítas ao registrarem que “[…] se les reciben con cariño[…] y se les libran de otro cautiverio peor, dándoles por la fe lalibertad de los hijos de Dios” (Leonhardt, 1927c, p.33).

“A su modo y usanza”

A ação missionária jesuítica constitui-se em objeto privilegiadopara a compreensão histórico-antropológica dos mecanismossimbólicos empregados nos processos de mediação cultural. Se, porum lado, o discurso missionário revela-nos o universo simbólicojesuítico e sua difusão nas reduções jesuítico-guaranis, por outrolado, os sonhos, visões, batismos, confissões, curas milagrosas eressurreições apontam para uma “convergência de horizontessimbólicos”. Os relatos acentuam a tensão emocional, a atmosferatrágica e o ardor carismático que envolviam as missas, procissões,penitências e demais disciplinas que antecediam feriados religiososou calamidades anunciadas como as pestes “que Dios les envía porcastigo de sus culpas”. Os sacramentos administrados aos fiéis e aos

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recém-convertidos eram sempre associados a intercessões divinasbenéficas que produziam o consolo e o apaziguamento dasconsciências dos indígenas. Apesar de resultarem de um “processode construção de sentido”, a assistência às missas, a participação nasprocissões e festas religiosas e as penitências e autoflagelações eramapresentadas, no discurso jesuítico, como indícios da adesão aosvalores cristãos e como demonstração pública da interiorização eassimilação da “civilização dos afetos e da conduta” pretendida pelosmissionários.

A análise que fizemos dos registros que integram as CartasÂnuas aponta para a possibilidade de compreendermos as reduçõesjesuítico-guaranis como espaço de acomodação de sensibilidades,desfazendo a percepção da sujeição absoluta dos indígenas aos valorescristãos e às condutas ocidentais. Acreditamos que, no processo decivilização/conversão dos Guarani – o qual implicou o “viver emredução” –, os missionários definiram estratégias e manejaramsímbolos e valores; os resultados, no entanto, estiveram condiciona-dos às motivações e às aspirações dos indígenas.

As manifestações de piedade e de devoção não devem ser, emrazão disso, percebidas como, exclusivamente, estratégias desobrevivência. É inegável que os Guarani, movidos pelo senso deoportunidade e conscientes de que as reduções garantiam apreservação da vida física, tornaram-se receptivos à mensagem cristãque lhes prometia a vida eterna. Os registros dos missionários, alémdisso, apresentam elementos que nos permitem concluir que osGuarani buscaram o atendimento de sua espiritualidade e a expressãode sua sensibilidade valendo-se de práticas e representaçõestradicionais, que foram ressignificadas, como fica demonstrado no“chorar copioso”, nos lamentos fúnebres, nos sonhos e nas visões,bem como nas manifestações de alegria e júbilo por ocasião dasmissas e das festas religiosas com adornos e bailes, “a su usanza”.

Como bem observou Chartier, as práticas e as palavras quepretendem moldar os pensamentos, as condutas e gestos não sãototalmente eficazes, uma vez que seus sentidos e significados sãoativamente apreendidos por aqueles que delas participam. A aceitação

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e a recusa “das mensagens e dos modelos opera-se sempre através deordenamentos, de desvios, de reempregos singulares” (Chartier,1990, p.137), que ultrapassam as próprias prescrições erecomendações.

Em sua obra A invenção do cotidiano, De Certeau fala-nos dacapacidade que existe na ação do homem ordinário, que recria, nocotidiano, práticas de vida. A isso o autor chamou de reinvenção docotidiano, que “é astuciosa, é dispersa, mas ao mesmo tempo […]se insinua ubiquamente, silenciosa e quase invisível, pois não se faznotar com produtos próprios, mas na maneira de empregar osprodutos impostos por uma ordem dominante” (De Certeau, 1994,p.39). Ao analisar aspectos da história construída no cotidiano porindivíduos desprezados como protagonistas desses relatos históricos,De Certeau resgata-os como personagens que, através de táticas,organizam as “maneiras de jogar em campo alheio”, das quais deixamvestígios que apontam para marcas de subjetividade nas ações quedesenvolvem. Referindo-se aos usos e consumos de “bens culturais”,o jesuíta francês observa que “os conhecimentos e as simbólicasimpostas são objeto de manipulação pelos praticantes que não sãoseus fabricantes”, das quais resultam “procedimentos de consumocombinatórios e utilitários”, caracterizados por uma criatividadetática e bricoladora (De Certeau, 1994, p.95).

Ao considerarmos a experiência reducional numa perspectivainter-relacional, a compreendemos como um processo de articulaçãoe de negociação, no qual os sujeitos atuaram com suas experiênciase, de modo fundamentalmente criativo, reinterpretaram um discursorecebido, produzindo um novo discurso e reapropriando-se do espaçoorganizado. Não desconhecemos, no entanto, que os saberesetnológicos, geográficos e científicos de que os missionários eramdetentores foram poderosos instrumentos de ordenação do mundoindígena para incorporá-lo progressivamente à civilização cristãocidental. Reconhecemos, igualmente, que os missionáriosdesenvolveram constantemente mecanismos de controle dasinterpretações possíveis e aceitáveis. Por outro lado, para que se torneconvincente e verossímil, todo sentido depende de um acordo sobre

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os signos utilizados e, portanto, ele é necessariamente intersubjetivo,expressando-se na experiência comum compartilhada e no exercíciocomum da linguagem.

Pierre Bourdieu já demonstrou que a prática não pode serdeduzida exclusivamente das regras; ela deve ser tomada, ao contrário,como uma improvisação, como um aprendizado do uso de deter-minadas regras, no qual as “maneiras de ver e o contexto estãoassociados e se implicam mutuamente” (Bourdieu, 1990, p.21).Nessa perspectiva, acreditamos que as manifestações de devoçãoregistradas nas Cartas Ânuas, além de apontarem para a ressigni-ficação de práticas e representações tradicionais guaranis, devem sertomadas como resultantes de jogos de relações sociais e decomunicação, nos quais os indivíduos em interação, emborapertencentes a universos culturais distintos, necessariamentecompartilharam símbolos, códigos e experiências. Somos, em razãodisso, levados a concordar com Melià, para quem o êxito das reduçõesjesuítico-guaranis não se deu “a pesar de lo que eran los Guaraníes,sino precisamente por lo que eran estos Guaraníes” (1986, p.209).

“A su usanza y según el aderezo de la tierra” – baroque devotion and pity in

Jesuit-Guaranis missions

Abstract. The paper analyzes the Jesuit discourse trough its gaps, introducing theJesuit-Guarani settlements (17th century) as a space of reinvention of meanings,where a specific sensitiveness was built as consequence of a selective and creativeappropriation and of a ressignification of expressions of the native Guarani cultureand the Christian-occidental culture .The research found that the specificdemonstrations of Guarani’s sensitivity were assumed by Jesuit discourse, as aresult of a successful converting process to Christianity.Keywords: Jesuit discourse. Jesuit-Guarani settlements. Native Guarani culture.

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Notas

1 Sobre as fontes utilizadas na realização deste trabalho, salientamos que os estudosencontrados na historiografia brasileira e ibero-americana sobre as reduçõesjesuítico-guaranis na Província do Paraguai, especialmente sobre seu período de

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implantação e consolidação, constituem-se em produção abundante. Em sua grandemaioria, caracterizam-se pela preponderância factual e política, determinando umaabordagem descritiva dos aspectos das organizações econômica e social própriasdesse processo histórico, como se pode observar nas obras de Pablo Pastells (1912),Pablo Hernández (1913) e Guillermo Furlong (1962). Entre os poucos estudos que abordam as temáticas deste trabalho numa perspectiva social e cultural, maisespecialmente em relação aos Guarani, podemos destacar os de León Cadogan,Egon Schaden, Branislava Susnik e Bartomeu Melià, que consideramosfundamentais para a compreensão da realidade reducional.2De acordo com Melià , um dos temas que mereceria estudos mais aprofundados“es la indagación sobre el grado de creatividad y de interiorización que las formasde la vida católica han podido alcanzar entre los Guaraníes de las Reducciones”(Melià; Nagel, 1995, p. 197). Esse autor considera fundamental o aporte daAntropologia na realização desses estudos, na medida em que são pautados porquestões como: “¿En qué y a qué quedó ‘reducido’ el Guarani cuando entró en laReducción? ¿No habían sido más bien algunas de las estructuras y modo de serguarani las que aseguraron el éxito de la experiencia reduccional?” (ibid., p. 78).3 Entre as fontes primárias impressas, utilizamos crônicas de viagens, em especial,as de Ulrich Schmidl e Alvar Cabeza de Vaca, as Cartas Ânuas da Província Jesuíticado Paraguai (referentes ao período de 1609 a 1675), crônicas jesuíticas, como aobra Conquista Espiritual, do Pe. Antônio Ruiz de Montoya, e a obra Viagens àsMissões Jesuíticas e Trabalhos Apostólicos, do Pe. Antonio Sepp. Ressaltamos que asCrônicas Jesuíticas, especialmente as que se referem à segunda metade do séculoXVII, serão utilizadas para cotejar os dados trazidos pelas Ânuas, bem como paraampliar as possibilidades de investigação sobre as reduções jesuítico-guaranis noséculo XVII.4 As considerações feitas sobre as Instruções do Pe. Diego de Torres Bollo, queorientaram a implantação do modelo reducional na região abrangida pela ProvínciaJesuítica do Paraguai, não pretenderam esgotar a análise dos registros acerca daprática missionária jesuítica junto aos Guarani. As expressões de sensibilidadereligiosa serão retomadas no contexto das reduções jesuítico-guaranis, a partir dasmanifestações de piedade e de devoção, bem como das representações perceptíveisno discurso jesuítico. As Cartas Ânuas da Província Jesuítica do Paraguai serão,em razão disso, o corpus privilegiado para a análise que nos propusemos a fazer epara revelar a “construção” de uma sensibilidade religiosa próprias das reduçõesjesuítico-guaranis.5 Ressaltamo que, incapazes de compreender a lógica e a função dessas crenças edesses rituais, os missionários “diabolizaram-nos”, não reconhecendo suaimportância para os Guarani horticultores, sujeitos às forças da natureza epreocupados em assegurar a fecundidade e a fertilidade da terra, bem como emcontrolar o tempo futuro que os presságios pudessem antecipar.

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6 Essas descrições remetem-nos aos pregadores medievais que temperavam seussermões com histórias aterrorizantes das repetidas aparições do Diabo para tentaros fracos e levar os pecadores renitentes, como também aos palcos medievais,onde criaturas grotescas com chifres e cauda encenavam num ambiente recendendoa enxofre. Cabe observar que “el indígena conformará su propia imagen deldemonio cristiano”, difundida pelos missionários jesuítas em seus sermões. Essadescrição revela que “tiene el demonio la facultad de mostrarse visiblemente”,“fuera de la típica del ser diabólico”, aparecendo “con ocasionales figurasantropomórficas o zoomórficas” (Martini, 1990, p. 175-227).7 As estratégias retóricas empregadas pelos missionários apontam para a intençãode fazer circular mensagens de forma que atingissem o maior número de receptores,cuja eficácia ficava na dependência de prévio conhecimento dos interesses e históriasde vida do seu “público-alvo”. Daí, podermos considerar os “espaços de interação”como lugar de atualização da intersecção entre o campo da produção e o campoda recepção.8 O simbolismo mais significativo da culpabilidade está associado ao tribunal“transposto metaforicamente para o foro interior”, tornando-se “aquilo a quechamamos a consciência moral”, “ela própria uma consciência graduada deculpabilidade” (Delumeau, 1989, p. 64). Havia, ainda, a profunda “conexão entreacusação e consolação”, na medida em que “Deus ameaça e protege”; “o deus quedá proteção é o deus moral: ele corrige a desordem aparente da distribuição dosdestinos, ligando o sofrimento à maldade e a felicidade à justiça. Graças a esta leida retribuição, o deus que ameaça e o deus que protege são um só e mesmo deus,e esse deus é o deus moral” (ibid., p. 444).9 Huizinga (1924, p.198) ressalta que as lágrimas, segundo São Bernardo, eram“as asas da oração […], o vinho dos anjos”, mas que, “em presença dos outros”,deveriam ser evitados “estes sinais de devoção extraordinária” que perturbavam ossermões e impediam, muitas vezes, o prosseguimento da liturgia.10 Os sentidos são tomados como elementos a dificultar a salvação da alma, logo,seu controle possui a função explícita de robustecer o espírito. O intelecto, em umato de vontade, deveria subjugá-los, ordenando os afetos e restringindo os prazeresconsiderados inferiores. Para Loyola, a noção da pureza da alma ligava-se,necessariamente, à manutenção da “pureza corpórea”, através do “disciplinamentodos sentidos”.11 Loyola (1977, p.26) definia a autoflagelação como “castigar la carne, es saber,dándole dolor sensible, el cual se da trayendo cilicios o sogas o barras de hierrosobre las carnes, flagelándose o llagándose”. Os motivos elencados por Loyolapara que fossem feitas penitências eram três: para satisfazer os pecados passados;para que os sentidos obedecessem à razão; e para buscar uma graça ou dom que apessoa desejava. Ao desviante, era apresentada a penitência, sacramento porexcelência de purificação, uma vez que visava reparar os danos que o pecado causariaà alma.

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12 É válido lembrar “a crença no poder expiatório da missa, considerada a maissublime oração nos diversos níveis culturais da época moderna. […] Antes mesmoda Reforma, a missa constitui o rito central do Cristianismo na Europa. Muitodivulgada é a crença em seu poder expiador, reparador e na sua eficácia paraaplacar a ira divina e alcançar a pacificação no plano social, a elevação espiritual e,notadamente, a salvação da alma” (Campos, 1996, p. 66).13 Cabe aqui retomar o décimo artigo da 1ª Instrução do Pe. Diego de TorresBollo, de 1609, que recomendava que somente os fiéis assistissem à missa. Nestecaso, a punição dos fiéis omissos ou ausentes devia-se ao fato de potencialmenteestarem retornando ao seu “antigo costume”, o que poderia comprometer não só“a fortaleza da fé” de muitos, mas também a conversão futura de outros.

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Revoltas regenciais na Corte:

o movimento

de 17 de abril de 1832

Resumo. Uma das fases mais ricas e singulares em termos de organização, discussãoe participação políticas, o Período Regencial (1831-1840), é também o mais agitadoe conturbado da história do Brasil. Este artigo analisa uma das principais revoltasentão ocorridas no Rio de Janeiro: a que, em 17 de abril de 1832, sacudiu acapital do Império, capitaneada pelos caramurus. Estes constituíam uma facçãopolítica surgida logo após a abdicação de Pedro I, essencialmente formada porpolíticos e cortesãos ligados ao ex-imperador, por antigos funcionários públicoscivis e militares e por comerciantes e caixeiros portugueses. Opunham-se eles aqualquer reforma na Constituição de 1824 e defendiam uma monarquiaconstitucional fortemente centralizada, nos moldes do Primeiro Reinado,chegando, em casos excepcionais, a nutrir anseios restauradores. O movimento,no qual estava envolvido José Bonifacio, pretendia derrubar o ministério ou aRegência e, quiçá, reivindicar a volta de Pedro I. Jornais, panfletos, manifestos eprocessos judiciais constituem as principais fontes de pesquisa.Palavras-chave: Período Regencial. Rio de Janeiro. Revolta de 17 de abril de 1832.

*Marcello Basile é Doutor em História Social pela UFRJ e professor-palestrantedo curso de pós-graduação lato sensu História do Brasil: economia, sociedade, polí-tica e cultura, da Universidade Candido Mendes.

Marcello Basile*

Fase mais agitada e conturbada da história do Brasil e tambémuma das mais ricas e singulares em termos de organização, discussãoe participação políticas, o Período Regencial (1831-1840) é, contudo,ainda muito pouco explorado pela historiografia. Tanto assim, que

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a maior referência sobre o assunto continua sendo o conjunto debiografias dos fundadores do Império, produzidas por OctavioTarquinio de Sousa (1957) entre as décadas de 1930 e 1950. Muitose deve ainda às obras pioneiras de Moreira de Azevedo, datadas doséculo XIX (Moreira Azevedo, 1871, 1873, 1874a, 1874b, 1875,1876, 1884, 1885). O único tema a merecer maior número deestudos – assim mesmo, em sua maioria, factuais e apologéticos – éo das grandes revoltas provinciais, Farroupilha, Cabanagem, Balaiada,Sabinada e Guerra dos Cabanos,1 Mas permanecem poucoconhecidos diversos outros movimentos semelhantes que, nãoobstante suas menores dimensões, foram bem mais numerosos edisseminados pelo Império, causando, no conjunto, impacto quasetão profundo quanto o das grandes revoltas.2

Este artigo analisa uma das principais revoltas então ocorridasno Rio de Janeiro: a que, capitaneada pelos caramurus, sacudiu acapital do Império em 17 de abril de 1832. A aguda crise políticaproduzida inicialmente pela oposição a Pedro I e, em seguida, nadisputa pelo governo regencial, em consonância com a vagatura doTrono e a falta de unidade, até então, da elite política imperial,ensejaram a formação de três facções distintas – as dos chamadosliberais moderados, liberais exaltados e caramurus –, portadores dediferentes projetos políticos.

Situados ao centro do campo político imperial, os moderados

apresentavam-se como seguidores dos postulados clássicos liberais,tendo em Locke, Montesquieu, Guizot e Benjamin Constant suasprincipais referências doutrinárias. Pretendiam – e nisso foram bemsucedidos – realizar reformas político-institucionais que reduzissemos poderes do imperador, conferissem mais prerrogativas à Câmarados Deputados e autonomia ao Judiciário e garantissem a observânciados direitos (civis, sobretudo) de cidadania previstos na Constituição,instaurando uma liberdade moderna que não ameaçasse a ordemimperial. Já à esquerda do campo, adeptos de um liberalismo radicalde feições jacobinistas, estavam os exaltados, que, inspiradosprincipalmente em Rousseau, buscavam conjugar princípios liberaisclássicos com ideais democráticos. Pleiteavam profundas reformas

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políticas e sociais, como a instauração de uma república federativa,a extensão da cidadania política e civil a todos os segmentos livresda sociedade, o fim gradual da escravidão, uma relativa igualdadesocial e até uma espécie de reforma agrária. Os caramurus, por suavez, ficavam à direita do campo, alinhando-se à vertente conservadorado liberalismo, tributária de Burke. Críticos ferrenhos da Abdicaçãoe avessos a qualquer reforma na Constituição de 1824 – ações tidascomo uma quebra arbitrária do pacto social –, defendiam umamonarquia constitucional fortemente centralizada, nos moldes doPrimeiro Reinado, chegando, em casos excepcionais, a nutrir anseiosrestauradores. Tais projetos revelam concepções e propostas distintasacerca da nação que, cada qual à sua maneira, pretendiam construire inserem-se em uma cultura política multifacetada ou híbrida, quecombinava as idéias liberais mais avançadas com resíduos absolutistasdo Antigo Regime.3

Com a pronta ocupação do governo regencial pelos moderados

– que se achavam mais bem organizados politicamente – e oconseqüente alijamento dos exaltados (que, com eles, protagonizaramo 7 de Abril) e dos caramurus (identificados aos antigos adeptos dePedro I) –, a disputa política extrapolou o embate de idéias etransbordou para as ruas, transformando-se em luta aberta e violentapelo poder. Tal como as províncias, a Corte foi palco então de umasérie de movimentos de protesto e revolta. Primeiro foram osexaltados, com quatro malogradas ações desse tipo entre julho de1831 e abril de 1832, e, em seguida, foi a vez dos caramurus.

Viva Dom Pedro I: a aventura do barão de Bulow

Tão logo debelada a última sedição exaltada de 3 e 4 de abril,surgiram novos rumores dando conta de que outra revolta estariaprestes a eclodir, desta vez sob os auspícios dos caramurus. Suspeitava-se do envolvimento do próprio tutor de Pedro II na tramarestauradora, o que parecia confirmado pela insistência de JoséBonifacio em manter seu pupilo isolado na Quinta da Boa Vista.4

O clima tenso favorecia ainda mais a proliferação dos rumores.

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No dia 8, correu o boato de que “dois mil e tantos rusguentos”achavam-se reunidos nas localidades de Campinho e Irajá, a caminhoda cidade. As guardas Nacional e Municipal Permanente foramacionadas, mas verificaram que tudo “não passou de um fantasma”e que a população local estava também sobressaltada com o boatocontrário de que “um exército de 6.000 homens vindos da cidade,pretendia talar-lhes os campos, e incendiar suas míseras choupanas”.5

Os rumores, porém, não eram de todo sem razão. Segundo aversão oficial, narrada em comum pelo governo e por seus porta-vozes informais, os jornais moderados,6 na tarde do dia 16, doiscaramurus – de acordo com a Aurora Fluminense, “dois Negociantes,abalados em seu crédito comercial, e conhecidos como instrumentosda facção restauradora”7 – foram ao Arsenal de Marinha e tentaramseduzir a guarda, dizendo que entregasse o Arsenal a um grupo dehomens de bem que desembarcaria ali após a meia noite. A guarda,todavia, imediatamente comunicou o ocorrido ao comandantesuperior da Guarda Nacional, que logo preveniu os comandantesdos corpos e tomou as providências necessárias para prender os doishomens (um foi pego ainda naquela noite, e o outro, no dia seguinte)e assim surpreender o grupo de assalto.

Já passava da meia noite quando o capitão-tenente da MarinhaJoaquim Leão da Silva Machado, o capitão do Exército LuizHenriques Tota e os tenentes-coronéis Conrado Jacob de Niemeyere Marcos Antonio Bricio8 embarcaram em uma falua, no cais daGlória, em direção à fragata Imperatriz. Abordando essa embarcação,Machado apresentou ao comandante da Imperatriz uma requisição,em que constava a assinatura do chefe-de-divisão João Taylor, paraque lhe fossem entregues cinqüenta marinheiros armados. Estesembarcaram assim, com mais dois oficiais da fragata, em uma lancha,rumando, junto à falua, para a praia da Glória, de onde marchariamaté o Arsenal de Guerra para tomá-lo de surpresa. Contudo,suspeitando de que algo estivesse errado, o comandante dafragataprontamente comunicou o fato ao governo.

Às duas horas da manhã, o rebate das matracas ecoou pelasruas da Corte, mobilizando prontamente as guardas Nacional e

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Municipal Permanente e o batalhão voluntário de Oficiais-Soldados,que foram distribuídos por diversos pontos da cidade. Assim, aotentar desembarcar na Glória, o grupo foi repelido à bala pela GuardaNacional da freguesia de São José. Os marinheiros e oficiais dafragata, percebendo que não estavam sob as ordens do governo (ou,talvez, se dando conta de que o plano não dera certo), bateram emretirada pelo mar, mas foram logo alcançados por uma barca,proveniente do Arsenal de Marinha. Esta, em seguida, interceptoutambém os tripulantes da falua, quando tentavam fugir em direçãoà Villa Real da Praia Grande (Niterói); os quatro homens forampresos e enviados à fortaleza da Lage.

Enquanto isso ocorria, porém, outro grupo muito maior derevoltosos reunia-se no outro lado da cidade, próximo à Quinta daBoa Vista. Os relatos apontam uma força de cerca de duzentos ecinqüenta a quatrocentos homens,9 em sua maioria composta porcriados do Paço imperial, guardas nacionais das freguesias do EngenhoVelho, São Cristóvão e Benfica, oficiais brasileiros e algunsestrangeiros, além de uma chusma de vadios e africanos. No comando,estaria o barão de Bulow,10 coadjuvado pelo coronel Antonio Joaquimda Costa Gavião. Segundo Moreira de Azevedo (1875, p.134), osrevoltosos usavam como distintivo “um laço vermelho no peito,como os companheiros de Camillo Desmoulins na revoluçãofrancesa”. O redator d’O Carijó fez então um breve discurso a seuscompanheiros, que terminou com vivas a Dom Pedro I. Em seguida,o grupo partiu em direção ao Campo da Honra (atual Campo deSantana), tradicional ponto de manifestações públicas populares dacidade, levando consigo duas peças de artilharia.11 Chegou então aoLargo do Rossio Pequeno (Praça Onze de Junho), repetindo os vivasa Pedro I, agora estendidos aos irmãos Andrada. Ali os manifestantesforam informados por um destacamento, enviado à frente paraverificar a situação no centro da cidade, que a Guarda Nacional já seachava no Campo da Honra, pronta a atacá-los. Resolveram assimbater em retirada, mas, na altura do Barro Vermelho, foram cercadospelos batalhões de Cavalaria e da freguesia do Sacramento da GuardaNacional (comandados, respectivamente, pelo tenente-coronel José

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Dias da Cruz Lima e pelo então major Luís Alves de Lima e Silva12),pela Guarda Municipal Permanente (a cargo do tenente-coronelFrancisco Theobaldo Sanches Brandão) e pelo esquadrão de Minas(sob as ordens do capitão Antonio Joaquim Mascarenhas Peçanha),que abriram fogo sobre os revoltosos. Estes não resistiram a mais doque cerca de quinze minutos de tiroteio, sendo fragorosamentederrotados. A maior parte fugiu, escondendo-se nas chácaras e casasda vizinhança, alguns foram presos e vários ficaram feridos. Osnúmeros do combate, sempre imprecisos, apontam de dez a vintemanifestantes mortos.13 Da parte das forças do governo, apenas umguarda municipal permanente e o capitão Peçanha morreram,14 edois outros sofreram ferimentos: o tenente-coronel Theobaldo e oanspeçada (depois promovido a furriel, pelo auxílio prestado aPeçanha durante a luta) Luiz Antonio de Azevedo.

Clamando desde o Levante da Ilha das Cobras pela adoção demedidas enérgicas de exceção para combater a anarquia, não estavao governo disposto a dar trégua aos participantes da intentonacaramuru. Assim, iniciou uma caçada aos indivíduos identificadosque escaparam de ser presos durante o combate, a começar pelosmilitares. É esse o sentido da ordem expedida pelo comandante dasArmas da Corte:

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Tendo desaparecido os Srs. Coronel Antonio Joaquim

da Costa Gavião, Capitão Antonio Pinto Homem,

João Maria de Sampaio, André Pinto Duarte da Costa

Pereira, Tenentes Antonio de Saldanha da Gama, José

Pinto Duarte da Costa Pereira, e Segundo Tenente

João Manoel Martins Filgueiras, desde o dia 17 do

corrente, determino não só aos Srs. Comandantes das

Classes que os façam prender, como também aos Srs.

Oficiais que os encontrarem.15

Mesmo os militares e milicianos que não atenderam então aotoque das matracas ficaram sob suspeita de, no mínimo,cumplicidade ou conivência com os revoltosos e foram também alvosde investigação. Já a ordem do dia 17 intimava rispidamente todos

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os comandantes de classes do Exército que compareceram e quenão se apresentaram à convocação daquela madrugada que dessem

[...] imediatamente conta aqueles dos que faltaram, e

estes dos motivos para não comparecerem em uma

ocasião em que não se deviam negar ao serviço da

Nação que lhes paga, visto que o seu patriotismo os

não moveu a cumprirem seus deveres.16 265

Da mesma forma, em ordem do dia 18, o comandante dobatalhão da Guarda Nacional de São José determinou a todos oscomandantes de companhia que “me remeterão sem demora asRelações das faltas com notas dos indivíduos que tiverem reincididonelas nesta ocasião de defenderem a Pátria ameaçada pelosperturbadores da prosperidade dela”.17 As mesmas suspeitas foramlançadas pelos jornais moderados, por vezes gerando reações.18

A busca rendeu frutos, pois vários militares foram presos porparticipação na revolta. Embora não se tenha conhecimento de todos,foram identificados os tenentes-coronéis Conrado Jacob de Niemeyere Marcos Antonio Bricio, os capitães Luiz Henriques Tota, AntonioPinto Homem e João Maria da Silveira Sampaio, o segundo-tenenteJoão Manoel Martins Filgueiras, o chefe-de-divisão João Taylor e ocapitão-tenente da Marinha Joaquim Leão da Silva Machado, todosenviados à Fortaleza da Lage e daí para a de Santa Cruz. Destes,sabe-se que ao menos Bricio, Tota, Niemeyer, Machado e Taylorforam levados ao Conselho de Guerra, que absolveu os dois primeirose condenou os três últimos em primeira instância; mas, depois, foramtodos absolvidos pelo Conselho Supremo Militar de Justiça.19 Osdemais devem ter sido inocentados; se não, foram contempladoscom a lei de Anistia aos presos políticos, de 8 de outubro de 1833.

O mesmo não aconteceu, porém, com o barão de Bulow,indigitado como chefe da revolta. Durante o combate, Bulowconseguiu escapar, refugiando-se na Quinta do Macaco (no atualbairro de Vila Isabel), de propriedade do americano Maxwell.Informada de que o fugitivo achava-se ali, a polícia realizou, em 24

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de abril, uma batida no local, encontrando-o escondido em umcaixão dentro de um alçapão subterrâneo cheio de café situado sobo quarto do feitor da chácara.20 Preso, foi condenado a 9 de novembrode 1833 pelo júri a dez anos de prisão com trabalhos,21 sentençaconfirmada depois pelo Tribunal da Relação. Contudo, o decretoregencial de 7 de maio seguinte comutou a pena para banimento doImpério. No mesmo dia em que Bulow foi preso, a polícia tambémefetuou busca na Quinta da Boa Vista e lá apreendeu considerávelquantidade de objetos de armamento e munição, localizados emvários quartos.22 O achado aumentou ainda mais as suspeitas deenvolvimento do tutor na conspiração, dando força ao movimentoque pretendia derrubar o Andrada enquanto cabeça da facçãocaramuru.23

Se os periódicos moderados deram ampla cobertura aomovimento, conferindo-lhe um caráter restaurador, as folhascaramurus mostraram-se hesitantes ou mesmo controversas emcomentá-lo. Dos jornais pesquisados, o primeiro a noticiá-lo, maisde um mês depois, foi o Caramuru, que, tal como acerca do levantede 3 e 4 de abril, condenou a ação, vista como uma “impolíticatentativa com que, por um meio arriscado, se buscava conseguir arestauração. Embora responsabilizando a tirania do governo pelaatitude extremada, o jornal reprovava esses meios, relatando que“meia dúzia de loucos desesperados pelo jugo de ferro de umaAdministração Sanguissedenta buscou desoprimir-se dela por ummeio revolucionário, e criminoso em prol da restauração”.24 Oredator procurava, assim, defender-se mais uma vez da imputaçãode participante do movimento, o que vinha lhe valendo uma sériede perseguições.

Já O Carijó e A Trombeta limitaram-se a publicar, em junho,respectivamente um artigo e um manifesto, assinados por Bulow.Neste último, escrito da Fortaleza da Lage a 26 de maio, o barão

justificou a revolta com base no liberal princípio do direito deresistência à tirania e opressão: “Se eu quisesse fundar a legalidadedos acontecimentos de 17 de Abril sobre estas bases, não me serianecessário para a justificar mais que citar as arbitrariedades e

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violências cometidas pelo Governo”. Pretendia também “mostrar, eprovar que o Governo foi sabedor com muita antecedência dossucessos de 3 d’Abril, e promotor dos de 17, e por conseqüênciaculpado das mortes”. Para isso, recordava sua antiga amizade comFeijó, com quem rompera ao perceber “o manejo obscuro, e tristedo dito Ministro, e o descaramento com que o Governo semeava oódio entre os pacíficos habitantes”, pondo-se então a escrever OCarijó “para fazer ver ao povo a má fé dos que o governavam”.Perseguido, refugiou-se na casa do coronel Gavião, onde conheceucerto C. de M., doutor em Medicina pela Universidade de Bolonha,que apresentava planos de revolta, mas que seria, na verdade, agenteinfiltrado do governo.

Os avisos passados à Guarda Nacional e a movimentação préviadas tropas de linha e dos permanentes seriam provas de que o governosabia da ação e a promovera para justificar a repressão aos oponentes.Longe de negar sua participação no movimento, Bulow dizia que“me achava no dia 17 reunido aos defensores da liberdade” e que,ancorado no direito de resistência, “julguei a nossa reunião em S.Cristóvão uma operação Nacional”. Esta nada teria de criminosa:

Diz a Constituição que todo o Cidadão pode fazer o

que a lei não proíbe; ora qual é a Lei que proíbe dar

vivas ao Sr. D. Pedro 1º, a um Príncipe que foi

fundador do Império, e que deu ao Brasil

Independência, e Liberdade? Estou persuadido que

nenhuma lei há, pela qual possamos ser qualificados

de criminosos por este fato, nem ainda mesmo que

tivéssemos proclamado a restauração desse desditoso

Príncipe, por isso que sem um prévio julgamento

Nacional foi forçado a abdicar uma Coroa, que o

Pacto Social do Império lhe garantia para sempre e

que sendo inviolável, e sem responsabilidade não

podia cometer crimes.25

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Seguindo a mesma linha de raciocínio baseada nos princípiosliberais do direito de resistência, do pacto social e do

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constitucionalismo, o artigo publicado n’O Carijó rebatia as críticasfeitas pelo Caramuru ao movimento, sustentando que “todo ohomem que toma as armas, em defesa das Leis, e da Liberdade,nunca pode ser classificado criminoso” e que seu intento era apenas“defender a Constituição Jurada, não querendo outra coisa que adeposição do Ministério, usando dos mesmos meios e passos comoos do dia 7 de Abril”. Neste sentido, somente cumprira seu dever,sendo então a ação “legal, e Nacional”.26

Ao se ouvirem outras vozes, portanto, novos significados vãorevestindo o movimento de feições distintas daquela de um atomeramente sedicioso e restaurador. As investigações feitas para apuraros fatos apontam melhores indícios sobre esses outros matizes. Poucashoras após os “tristes e criminosos acontecimentos”, na tarde domesmo 17 de abril, o superintendente da Quinta da Boa Vista,Faustino Maria de Lima e Fonseca Gutierres, procedeu a umasindicância no local, interrogando as “pessoas que ali achei”. Setetestemunhas foram ouvidas, mas quase nada informaram. A primeiradelas, o frei João Nepomuceno, disse simplesmente que “nada sabe”.A segunda, o bibliotecário G. Lasserra, relatou apenas que “ouviramuita bulha e chando [sic] à janela, e vendo muita gente nãoconheceu senão algumas pessoas da casa”. A terceira, o escriturárioAntonio Egidio de Miranda, declarou “não saber do AdministradorMiguel Gonçalves e que desde ontem à noite não comparece emCasa”. A quarta, o fiel da Administração Joaquim dos Reis, limitou-se a dizer que “estivera no largo do Paço onde via muita gente e queretirando-se para sua Casa não acsistira [sic] ao menor barulho”. Aquinta, o feitor de capim Joaquim Leite de Azevedo, respondeu que“às horas do costume passara revista a toda a Escravatura e que nãolhe faltando ninguém recolheu-se ao seu quarto sem que de nadasoubesse”. A sexta, o caixeiro imperial Joze Rodrigues, analfabeto,declarou que “viera ao Largo do Paço, diz que vira gente da ImperialCasa e de fora e que tendo marchado aquela gente com as duasPeças ele se recolhera para sua Casa e que desde então lhe faltamSupriano Villa Nova Caixeiro dos Senhores e Roque Luiz Fiel daCocheira”. A sétima testemunha, por fim, o fiel das Imperiais

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Cavalariças Manoel Joaquim, relatou que “quando vieram os moçosdas Cavalariças para o Largo veio também com eles e vendo muitagente pronta para marchar com as duas Peças acompanhou-os até oPortão e depois voltara para Casa e que desde então lhe faltam o Fieldas Cavalariças Joze Joaquim Pinto e os Moços das mesmasCavalariças João de Almeida e Joze Vaz, e que igualmente falta oCorrieiro, e save [sic] por ouvir dizer que o Sacrista [sic] Jozé Mariamorrera no Hospital”.27

É evidente a intenção das testemunhas – pessoas quetrabalhavam e moravam no local e que decerto sabiam mais do quefalaram – de não se comprometerem. Mas já o terceiro, sexto e sétimodepoimentos apontam o envolvimento de empregados do Paço nomovimento, indivíduos que foram mortos ou feridos no combateou que, como é mais provável, resolveram desaparecer por algumtempo para evitar a prisão. É possível que não tenha passado disso asindicância interna, mas outra investigação, esta judicial, iria apurarmelhor os acontecimentos.

Ainda no dia 17, o juiz de paz da freguesia de São José, JoãoSilveira do Pillar (sócio da moderada Sociedade Defensora), instaurouum sumário (formação de culpa) para investigar a “conspiração comforça armada para derrubar o Governo existente”, ocorrida namadrugada daquele dia.28 Foram convocadas para depor deztestemunhas, que estavam presas no quartel da Guarda MunicipalPermanente “por serem apanhadas com armas na mão na sedição”.29

As três primeiras e a nona testemunhas na fila do escrivãoestavam envolvidas com o grupo da Glória que tentaria tomar deassalto o Arsenal de Guerra. Percebe-se então que aquele bando erabem maior e mais diversificado socialmente do que apontam osrelatos oficiais. A primeira testemunha, Manoel José da Costa, vintee um anos de idade, português natural da Vila do Conde, caixeiroda loja de José Bento Ferreira (na Rua Direita, hoje Primeiro deMarço), declarou que Dom Antonio de Saldanha pedira-lhe quelevasse para ele duas pistolas carregadas até o Arsenal do Exército,devendo antes encontrar Antonio Lopes Crises e juntos embarcaremna praia da Glória rumo ao Arsenal. No caminho, porém, ambos

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foram presos por uma patrulha da Guarda Nacional ao pé do Pocinhoda Glória.30 A segunda testemunha foi Antonio Lopes Crises, trintae quatro anos, português, caixeiro de Saldanha – o mesmo queagenciou Manoel da Costa e que, segundo Crises, também lhe pediuque, armado, encontrasse com Costa e com Antonio Ribeiro dePaiva no portão de sua chácara para que daí se dirigissem para oLargo de Nossa Senhora da Glória, onde iriam embarcar rumo aoArsenal.31 O último do trio, Antonio Ribeiro de Paiva, de apenasdezesseis anos de idade, também caixeiro, foi a testemunha seguinte,a qual confirmou toda a história, declarando ter sido mandado porseu patrão, José Bento Ferreira (o mesmo de Manoel da Costa),para encontrar-se com Crises e Costa, de quem recebeu no caminhopara o embarque uma das duas pistolas que levava; os três acabarampresos no local indicado.32 A outra testemunha envolvida no caso,Thomé Luiz dos Santos, provavelmente escravo, de idade desco-nhecida, contou que, por volta das dez horas da noite, tendo ido desege com seu senhor, Joaquim Ferreira Batalha, à casa do já conhecidoSaldanha, na rua da Pedreira da Glória (atual Pedro Américo), apósos dois conversarem, seu senhor saiu e mandou que aguardasse aliaté que Saldanha o solicitasse; às onze horas, este lhe deu um bilhetepara levar até Batalha, que foi entregue. Mas a história termina aí,pois o restante do depoimento acha-se ilegível.33

De todo modo, fica clara a intenção das testemunhas de nãose comprometerem, dando impressão de que nada sabiam domovimento e de que estavam no local apenas cumprindo ordens.Difícil é crer, no caso dos três caixeiros, que fossem armados, emgrupo e de madrugada ao Arsenal de Guerra, vindo de um lugarermo como a praia da Glória, sem que ao menos soubessem o quese passava. Mais provável é que estivessem de acordo com seus patrõese fossem os três (e quem sabe outros) juntar-se ao grupo oriundo dafragata Imperatriz, que iria ali desembarcar, para depois seguirematé o Arsenal. Vale realçar a participação de negociantes –possivelmente também portugueses – no papel de agenciadores,como Dom Antonio de Saldanha. Quanto ao escravo, o ponto até

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onde se pôde acompanhar sua história não permite fazerem-semaiores ilações.

As demais testemunhas estavam envolvidas na ofensiva doEngenho Velho. A primeira – quarta da lista – era Manoel José deAraújo (dados pessoais ilegíveis), que declarou ter visto o capitãofuão Carvalho, o tenente fuão Rocha e o alferes fuão Salles, todos da6ª Companhia de Infantaria, convocando os guardas nacionais emsuas casas para se reunirem, e, entre duas e três horas da manhã, viuquando o capitão da 2ª Companhia de Cavalaria, José Coelho daSilva, e alguns soldados encontraram-se na cancela de São Cristóvãocom quatro oficiais (um destes era o capitão reformado fuão

Sampaio), os quais disseram ao capitão que aprontasse logo o pessoalpara marchar até a cidade. Reunida a tropa, viu um “Oficial quefalava Espanhol” (decerto Bulow) puxar vivas a Dom Pedro I ecolocar o grupo em marcha até o Rossio da Cidade Nova, de ondetivera que retroceder para evitar o confronto com as forças dogoverno. Porém, ao se deparar no Curtume com a Guarda MunicipalPermanente, o tiroteio tornou-se inevitável.34 A quinta testemunha,Manoel da Silva, trinta e três anos, natural do Porto, criado de servirde Antonio José Duarte e morador da Cancela de São Cristóvão,afirmou que saíra pela manhã para comprar milho e aproveitarapara observar os mortos no combate, quando foi preso, “talvez portrazer ele respondente um colete com botões de Pedro primeiro”.35

Já o sexto depoente, Joaquim Antonio (dados pessoais ilegíveis),disse que ele e seus companheiros reuniram-se à Guarda Nacionalde Infantaria do Engenho Velho e, notando chegar após a meianoite vários oficiais, “entre os quais havia dois que falavamEstrangeiro dos quais um que falava Espanhol que se lhe disse ser obarão de Bulow tomou conta do Comando da força, e deu vivas aPedro Primeiro que foi respondido com grande entusiasmo”. Emseguida, Bulow teria concitado a tropa a marchar para o Campo daHonra, afirmando que as guardas Nacional e Permanente e o batalhãode Oficiais-Soldados já teriam aclamado o ex-Imperador. O depoentedisse ainda que fora preso pelos permanentes no combate com asforças do governo quando fugia em direção à Quinta.36 A Sétima

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testemunha, João Manoel de Azevedo, quarenta e dois anos, naturalde Barcellos, administrador do curtume onde estacionou a forçarebelde, também notara, no ajuntamento, oficiais de diferentescorpos, um dos quais dava ordens em espanhol e disseram-lhe ser obarão de Bulow, bem como o capitão reformado João Maria deSampaio. Afirmou ter então desconfiado que “houvesse traiçãonaquela força, e cuidou logo em retirar-se, porém nessa ocasião, foirepelido” e preso pelos permanentes, que acharam em seu quarto afarda e o boné molhados, daí inferindo sua participação no levante.Perguntando o juiz se reconhecera mais alguém, respondeu que viraalguns oficiais da Artilharia Montada, entre os quais o cadete, filhode um boticário, Antonio Soares Fonseca.37 A oitava testemunha,Antonio da Cruz de Almeida (dados pessoais ilegíveis), afirmou queentrara no ajuntamento porque seu patrão, o capitão João HenriqueJunho Laquemar, ordenara que se reunisse, com espingarda e patrona,aos criados da Quinta, onde também notou muitos oficiais, inclusiveum que falava espanhol e disseram-lhe ser Bulow. Este é quem teriadado a ordem de marchar para a cidade e de fazer fogo sobre ospermanentes, nas proximidades do Curtume, “sendo os mesmosOficiais os primeiros que sobre ela dispararam”. Durante o combate,o depoente fugira, escondendo-se em uma chácara, onde fora preso.38

Por fim, a décima testemunha, José Marques da Silva, quarenta eseis anos, português, dono de uma serralheria no Pedregulho(Benfica), disse que, sendo guarda nacional da 6ª Companhia deInfantaria do Engenho Velho, atendeu a chamado de seus colegas,juntando-se a eles na cancela de São Cristóvão, sob o comando docapitão dessa companhia Antonio de Carvalho e do tenente fuão

Rocha. Estes os conduziram até o largo do Paço da Boa Vista, cujoscriados já estavam lá reunidos, fardados e armados, juntamente como delegado da Quinta, Miguel de tal. Entre uma e duas horas damanhã, na altura da ponte de Manoel Caetano Pinto (em SãoCristóvão), parte da Cavalaria de Benfica, liderada pelo capitão Joséde tal Coelho, reuniu-se àquela força. Logo depois, chegaramindivíduos a cavalo, informando que Pedro I fora aclamado no campode Santana, em decorrência do que repetidos vivas foram dados ao

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ex-imperador. Em seguida, narrou a seqüência da marcha até aCidade Nova e do combate no Curtume, repetindo que a ordempara atirar partira dos oficiais rebeldes. Disse, enfim, que fugira comoutros logo no início do tiroteio, sendo preso na estrada.39

No dia 25, mais duas testemunhas foram convocadas para corpo

de delito (inquérito policial): José Maria Hespanha, vinte anos,solteiro, natural do Rio Grande do Sul, e Francisco Antonio deMacedo, dezoito anos, natural de São Paulo, ambos guardasmunicipais permanentes. Os dois nada acrescentaram aosdepoimentos anteriores, declarando igualmente terem visto o“ajuntamento ilícito”, composto por guardas nacionais de Infantariae Cavalaria e por criados do Paço armados e com duas peças deartilharia, os quais, na altura da chácara do Curtume, entraram emcombate com o batalhão de que eles, testemunhas, faziam parte.40

Ainda no dia 25, o juiz de paz de São José pronunciou a prisão

e livramento de Manoel José de Araújo, Antonio da Cruz de Almeidae dois fuãos (as testemunhas Manoel José da Costa e JoaquimAntonio).41 Surpreende, contudo, o pequeno número de pronun-ciados, já que vários outros aparecem implicados nos autos, entreeles o barão de Bulow, apontado por várias testemunhas comoprincipal liderança do movimento e nem assim pronunciado. Dessaforma, no mesmo 25 de abril, outro sumário foi aberto para apurara “conspiração”, agora por Agostinho Moreira Guerra, juiz do crimedo bairro da Candelária. O sumário tinha justamente Bulow comoréu, bem como o coronel Gavião e Miguel Gonçalves dos Santos,delegado do juiz de paz do Engenho Velho e administrador daQuinta.42 Como estes dois últimos estavam foragidos, apenas o barão(preso na Casa da Suplicação) foi então submetido a interrogatório.

Indagado sobre onde estivera na madrugada do dia 17, Bulowrespondeu que, na noite anterior, fora à casa de Gavião, a convitedeste, de Miguel dos Santos, de certo Saldanha,43 de outro coronele de quatro oficiais subalternos cujos nomes ignorava, que oconvidaram para reunir-se em São Cristóvão, alegando que “toda aCidade estava de acordo para pedir a demissão do Ministério”. Bulowrevelou então suas motivações pessoais para participar da empreitada:

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“e como ele Respondente fora ofendido gravemente com injustiça,pelo Excelentíssimo Ministro da Justiça por quem havia exposto asua vida até o ponto de lhe dar Ordens para conduzir a Tropa de SãoCristóvão para a Cidade na ocasião da revolta da Ilha das Cobras,não duvidou anuir ao convite pois que via aí pessoas derepresentação”. Revelou também a existência de um suposto planopara assassinar o Presidente da Regência, relatando a chegada à casade três homens vestidos como guardas municipais, os quais disseramque Lima e Silva acabara de ir para sua chácara e que esta seria amelhor oportunidade para matá-lo, ao que “ele Respondente obstoua semelhante pretensão pois já havia vinte homens de emboscadano Pedregulho para serem executores do Assassínio”. Pouco depois,por volta de duas horas, chegaram dois oficiais e vários municipais

dizendo que deviam partir, e então todos seguiram para a Boa Vista,onde já se encontravam as duas peças de artilharia e cerca de oitentapessoas de Infantaria e Cavalaria, armadas. Mas, vendo a multidãoem desordem – uns queriam marchar, outros não, “alguns diziamem gritos viva Dom Pedro Primeiro, e outros viva Dom PedroSegundo” –, reclamou com Gavião que este “o havia comprometidopois que contava que todo o Povo estivesse pronto e que assim se viaenganado”. O coronel retrucou que, no campo da Honra, haviamais gente para se reunir a eles. Decidiu então conduzir a multidãoaté lá, mas, nada encontrando no Rossio Pequeno e ouvindo dopróprio Gavião que também naquele campo não havia ninguém,resolveu regressar. Contrariando as testemunhas, Bulow assegurouque, achando que estivesse comprometido e sua retaguarda fechada,abandonou a tropa no caminho de volta e fugiu a cavalo, ocultando-se na chácara onde depois foi preso, sem que o dono desta soubesse.Instado pelo juiz a dizer a verdade, pois constava que partira do réua ordem para atacar os permanentes, reiterou Bulow que havia seretirado antes do início do combate e que, portanto, era falsa aquelainformação. Em seguida, foi-lhe perguntado se fizera algum discursoà multidão, ao que respondeu, mais uma vez contrariando astestemunhas, que “só disse que se aquela era a vontade do PovoBrasileiro como se lhe assegurava, que estava pronto a

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acompanhá-los pois conhecia a vontade do Povo por Soberana”.Negou aindaque soubesse previamente de alguma combinaçãosediciosa e que estivesse escondido na Quinta antes do dia 16, masreconheceu quefora algumas vezes ali jantar com os Andrada, até que estes, sabendoque era perseguido pela Justiça,44 pediram que não mais voltassepara não comprometer a Casa. Por fim, de novo expondo suasligações pretéritas com os revoltosos, disse que, durante aqueletempo, refugiou-se em algumas casas e até a bordo de um barcoestrangeiro, com o apoio da “gente do Taylor”.45

No dia seguinte (26), entre os objetos apreendidos na residênciado barão, estavam um jogo de pistolas carregadas e várias fardas doExército brasileiro. A pedido de Bulow, dois peritos foram chamadospara verificar o estado do fardamento, sob alegação de que o trajenunca fora usado, “exceto quando os permanentes depois que oprenderam o obrigaram a isso”. De fato, o exame constatou que asfardas ainda não tinham sido usadas.46

No dia 27, duas testemunhas foram convocadas para o corpode delito indireto. Uma era Joaquim dos Reis Pernis, português doAlentejo, cinqüenta anos, casado, morador e fiel dos armazéns daQuinta da Boa Vista, que contou ter sido chamado pelo admi-nistrador para ir armado até o pátio do Palácio e, lá chegando, achoumuitos guardas nacionais e criados do Paço reunidos. Ouviu, então,falar no barão de Bulow, e de lá partiram para a cidade, “querendoele testemunha escapar-se e o não pôde conseguir senão adiante daponte de Manoel Caetano Pinto, e Retirou-se para sua Casa”, apenasescutando depois os tiros.47 A segunda testemunha, José de Lemos,também português (de Lisboa), trinta e um anos, solteiro, moradorda Quinta, empregado como correio da Regência, declarou que doishomens o chamaram em sua casa para comparecer armado ao pátiodo Palácio e, aí chegando, foi logo preso, juntamente com o colegaAntonio José, “por serem Correios e não virem para a Cidade darparte”. Notou, todavia, muita gente de Cavalaria e Infantaria reunida,esta comandada por Bulow e aquela pelo coronel Gavião. Quandomarchavam para a cidade, conseguiu escapar, retornando à Quinta.48

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No mesmo dia, além dessas duas testemunhas (agora a terceirae a quarta ouvidas, que reproduziram integralmente seus depoi-mentos),49 outras quatro foram inquiridas no sumário. A primeira,João Vicente, português, com mais de trinta anos, solteiro, moradorda Boa Vista, onde era moço das ordens do imperador e das princesas,também disse que, às onze horas da noite do dia 16, fora chamadoem casa para pegar em armas, pelo cocheiro Antonio Joaquim, amando do delegado Gonçalves. Dirigiu-se então à casa deste, ondese armou e viu muita gente armada, seguindo todos para o pátio doPalácio. Logo chegaram vários oficiais, dos quais só conhecia Bulowe Gavião. Durante a marcha até a cidade, conseguiu voltar paracasa, sabendo depois que “o Delegado andou seduzindo as Pessoasempregadas na Quinta”.50 A segunda testemunha, Alexandre Fortuna,trinta e seis anos, casado, igualmente português e morador da Quinta,criado particular do imperador e tenente da 2ª Companhia deCavalaria da Guarda Nacional do Engenho Velho, disse que estavadoente em casa e que só ouviu os tiros do combate, sendo depoisinformado de que fora a “gente de São Cristóvão” que marcharapara a cidade e fora batida no caminho, e que, à testa dos revoltosos,estavam Bulow e vários oficiais.51 O quinto depoente era outroportuguês, José Maria Brioto, quarenta e um anos, casado, moradordo Engenho Velho, criado de Samuel Felype, que afirmou ter saídoa cavalo de casa, às três horas da madrugada, armado de espada, porter ouvido o rebate das cornetas. Não achando pessoa alguma noponto de reunião de sua companhia, avistou adiante uma “porçãode gente Armada” seguindo para a cidade, às ordens de um “Oficialque parecia ser Espanhol”, fardado e em um cavalo branco, o qualficou sabendo depois ser Bulow. Ao ouvir a multidão dar vivas aPedro I, desconfiou que “aquele ajuntamento não era lícito e porisso se escondera”, partindo em seguida para a casa do capitãoAlexandre, na pedreira de São Diogo (no Mangue), a fim de darparte do acontecido, “por conhecer nele a boa Ordem”, e, comoeste saíra a serviço, retirou-se para casa.52 Por fim, a últimatestemunha, Jorge Mangold, médico, casado, trinta e sete anos,natural da Baviera, morador da Ponte de Manuel Caetano Pinto,

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avisou-o que ouvira barulho de muita gente na rua. Abrindo a janela,deparou-se com uma multidão armada, carregando duas peças deartilharia. Perguntou então a um dos paisanos que supunha puxaras peças o que era aquilo, o qual respondeu, admirado, que “toda aCidade está tomada a favor de Dom Pedro Primeiro, e nós vamospara lá”. Entre os presentes, notou Bulow, o capitão Lac Hemann,do extinto corpo de Estrangeiros, o tenente José Pinto Duarte daCosta Pereira, o capitão de Veteranos fulano de tal (José Maria de)Sampaio, um criado particular de Antonio de Carvalho, (o capitãoAntonio) Pinto Homem, o tenente-coronel Mathias (seu vizinho) eo cadete de Artilharia Montada José Soares (morto no combate).Os manifestantes pararam no alto da ponte e, em altos brados, deramvivas a Pedro I, e, “dizendo que haviam [de] dar a última gota desangue por ele”, seguiram para a cidade, repetindo os mesmos vivas.Afirmou o depoente que, após a partida, recolheu-se em casa e que,ao ouvir o tiroteio, abriu a porta e viu em seguida passar várias pessoascorrendo, uma das quais lhe disse, na fuga, que “estavam perdidos”.Mais tarde, soube que os conspiradores pretendiam “pôr o Governoabaixo e aclamarem dom Pedro Primeiro”.53

Ouvidas as testemunhas, a 2 de maio o juiz do crime daCandelária pronunciou a prisão e livramento os três réus: o barão deBulow, o coronel Gavião e o administrador da Quinta MiguelGonçalves dos Santos, sendo a pronúncia sustentada em 22 dejunho.54 Somente mais de um ano depois, todavia, em 27 de agostode 1833, o 1º Conselho do Júri reuniu-se para julgar a procedênciada pronúncia, terminando por achar matéria para a acusação.55

Os autos nada mais mencionam acerca dos outros dois réus econtêm apenas a segunda parte da extensa e corajosa defesa feita porBulow perante o júri em seu julgamento, a 9 de novembro. A defesaé cheia de críticas pessoais e à conduta do promotor Saturnino deSouza e Oliveira e aos jurados, acusados de venais. Como prova datramóia, diversas falhas processuais foram apontadas pelo réu. Umadelas referia-se à obrigatoriedade estabelecida pelos artigos 262, 263e 264 do Código do Processo Criminal de se reconvocarem todas astestemunhas ouvidas na formação de culpa para serem novamente

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interrogadas durante o julgamento, o que não teria ocorrido. Naalegação de Bulow, a dispensa das testemunhas pelos jurados visavaprejudicá-lo, pois os depoimentos prestados nessa etapa do processo,embora lhe fossem desfavoráveis, eram bastante contraditórios, evi-denciando sua inocência.56 Logo, qualquer sentença proferida contraele seria uma “tirania, filha do espírito de partido, e não da cons-ciência de retos juízes”. Bulow lembrava que “a defesa é um direitonatural, de que a Lei a ninguém pode privar; é um direito sagradoreconhecido como tal em todos os países civilizados”. Depois, passoua atacar mais abertamente os jurados, pois “julgando-os pelas suasopiniões políticas, que devem ser as mesmas, ou iguais às do Sr.Saturnino, visto que ele os nomeou, para ficar certo da minhacondenação, vejo-me na dura necessidade de declarar que não achoneste Tribunal Juízes, mas sim acusadores”. Nem o juiz de direitoque presidia o julgamento escapou dos ataques do réu, que indagavapor que ele permitia, ao “Promotor d’encomenda”, fazer tudo o quequeria: “Será isso por ser ele irmão do Sr. Ministro da Justiça[57]?Receia acaso Vª Sª a sua suspensão, ou deportação? [...] Destamaneira, Sr. Juiz de Direito, atropelando assim todas as garantiasque o Código do Processo faculta aos acusados, eu serei de certocondenado”.58

Voltando a discutir os pontos da acusação, Bulow questionoua evidência levantada por Saturnino de que ficara provado o crime,ao confessar, em carta por ele assinada,59 que redigia O Carijó eestivera na ação de São Cristóvão. Alegava que “só disse, que escreviapara o Carijó, demais, seria necessário provar que fui eu que assineiessa correspondência, quando qualquer podia, como com efeitoaconteceu, servir-se do meu nome para me comprometer”. Alémdisso, acusou o promotor de exceder suas funções, ao levantar umfato (a tal carta) “não sujeito a julgação, por isso que não está nosautos, nem as testemunhas dele fazem menção”.60

Para refutar a afirmação do promotor, de que um estrangeironão deveria intrometer-se nos assuntos brasileiros, Bulow recorreude novo a um argumento jurídico fundado no direito naturaljusracionalista, tão em voga na época,61 defendendo que o

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[...] direito das gentes em todos os países, onde se

conhecem e respeitam os seus princípios, assegura aos

estrangeiros o gozo inteiro das faculdades naturais, e

os direitos universais e imprescritíveis do homem,

quais são, a segurança individual, a liberdade, e a

participação do benefício e proteção das Leis.62

Bulow contestou também a acusação de ter mandado atirarem brasileiros, alegando que sequer ficara provada sua presença naação, pois, se assim fosse, forçoso seria que Saturnino, enquantocomandante da Guarda Nacional do Sacramento, o tivesse visto nocombate; “a não ser que Vª Sª se escondesse atrás do seu Rocinante,como Sancho Pança”. E aproveitou para recordar, como sempre faziatoda a oposição, o distúrbio exaltado do teatro, quando o então juizde paz Saturnino “mandou fazer fogo sobre cidadãos desarmados,constituindo-se assim assassino dos seus patrícios”. Chamado àordem pelo juiz, insistiu que não havia desculpa para tal atentado eque o culpado deveria ser acusado de homicídio, terminando pordizer que o “Leão popular” despertará, “e talvez não tarde muitoque o Brasil se não vingue de uma Ditadura”.63

Seguindo a estratégia de mais atacar do que defender, o réualegava que não poderia ser julgado, como pretendia o promotor,pelo artigo 87 do Código Criminal,64 questionando, como oscaramurus, a legalidade do 7 de Abril. Citando o artigo 116 daConstituição, pelo qual Pedro I reinaria sempre no Brasil, e o próprioartigo 87 do Código Criminal, Bulow inquiria o promotor se aindachamaria os “motores daquela ignominiosa revolta patriotas, e a mimréu, querendo que se me aplique a pena do mesmo Artigo, do qualabsolve os outros? [...] Para se legitimar aquele dia nefasto, Sr.Promotor, necessário foi dizer: – Calem-se as Leis”. Depois, passoua criticar a Ditadura estabelecida após aquele acontecimento,obrigando o povo a “viver privado de todos os seus direitos, comuma resignação, que não tem exemplo na História”.65 Daí é que,para ele, teriam surgido os caramurus: “grande parte dos mesmosCidadãos, [...] vendo o mau rumo que as coisas levavam, puseram-

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de parte com homens que queriam permanecer conseqüentes comos seus princípios, e destes homens se formou o partido hoje chamado– Caramuru”. Bulow assumia então toda sua identificação com oscaramurus, que “querem a Constituição Jurada sem reformasessenciais, e os Moderados querem reformá-la a seu jeito. A opiniãodos primeiros é, a meu ver, mais sensata”. Isso porque, para ele,“reformar a Constituição, quer dizer: – constituir de novo aSociedade, ou – dar-lhe uma nova existência. – Daqui segue-se queo Império está dissolvido, e que o Brasil Constitucional já não existe”.

Ao preconizar, como os caramurus, a ilegalidade do 7 de Abrile a preservação incondicional da Constituição de 1824, Bulowexpressava um conceito de contrato social e de soberania, tão caroàquele grupo, que via justamente no pacto (e não diretamente noimperador ou no povo) o lugar da soberania, a fonte de todo opoder e da sociedade política e civil. Se a Constituição – outorgadapelo Imperador, mas aprovada pelas câmaras municipais – e ogoverno de Pedro I – aclamado pelo povo e sancionado pela mesmaCarta – eram a expressão desse contrato e, portanto, da soberania,logo a abdicação forçada e a reforma constitucional promovidas,como acreditavam os caramurus, por uma facção que nãorepresentava a vontade geral, só poderiam significar um rompimentoilegal desse pacto e um atentado à soberania. Isso representaria umaredefinição arbitrária da organização política e social e, assim, adissolução do Império, fundado sob tais bases originais. Residem aías bases do conservadorismo caramuru.66

Bulow lembrou também em sua defesa que todos os patriotas

implicados na revolta de 3 de abril foram absolvidos pelo júri deacusação (que julgava a procedência da pronúncia), enquanto “euque não tenho contra mim uma só testemunha, que em Direito mefaça culpa, e sendo todo o meu processo nulo, fui julgado comcriminalidade”. O principal responsável pela sentença, segundo oréu, seria o cônego Januario da Cunha Barboza, “Redator dos Diáriosde todos os Governos, que tanto influiu para a minha condenaçãono supracitado Júri”, e que, para isso, teria recebido uma comissão

de Evaristo da Veiga. Já os jurados de acusação seriam todos amigos

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de Saturnino, de modo que “pouco há a esperar de Vossaintegridade”.67

A seguir, Bulow voltou a negar a autenticidade do manifestopublicado n’A Trombeta com sua assinatura, e até o que ali era dito(e reiterado em seu interrogatório) sobre o coronel Gavião, “a quemnunca falei em minha vida”, e o doutor José Cardozo de Meneses (oreferido médico C. de M.), cuja “honra e crédito” teriam sidotambém comprometidos. Na nova versão, bem na linha conspiratóriatípica da época, o movimento de 17 de abril teria sido “tramadopelos Jacobinos Florestinos, para lhes servir de base para a perdiçãoque intentavam e intentam da Ilustre família dos Andradas, esobretudo para tirarem da Tutoria o Exmo. Sr. José Bonifacio”. Oprincipal agente da trama seria o delegado e administrador da QuintaMiguel Gonçalves, que teria tido o salário suspenso pelo tutor ereunira a força no pátio do Palácio, mas nunca fora preso, recebendoaté dinheiro e passaporte para o Sul como paga. Bulow fazia entãovários elogios ao “Patriarca da Independência”, em apoio ao “primeirohomem do Brasil”.68

Por fim, Bulow dizia-se pronto a receber uma “bárbarasentença”, por haver “defendido a Liberdade de vossa Pátria”, mascerto de ser “absolvido pelo Povo” e ter o apoio de filósofos ilustres(Needham, Harrington, Milton, Fenelon, Locke, Montesquieu,Rousseau, Mably, Condillac, Boulanger, Raynal, Voltaire,Helvecio).69 O júri o condenou, em novembro de 1833, a dez anosde prisão com trabalhos, sentença confirmada pelo Tribunal daRelação. Bulow não pegou então a anistia concedida pelo governoem outubro, mas foi agraciado pelo decreto regencial de 7 de maioseguinte, que comutou a pena em “banimento para fora doImpério”.70

Quanto aos indiciados como cabeças da frente rebelde daGlória, o tenente-coronel Conrado Jacob de Niemeyer (sócio daSociedade Conservadora) publicou manifesto com sua versão poucoverossímil. Dizia que, estando no Catete com o tenente-coronelMarcos Antonio Bricio às duas horas da manhã de 17 de abril eouvindo soar as matracas, foram ambos atender ao chamado. No

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caminho, encontraram o capitão Luiz Henriques Tota e o capitão-tenente João Leão da Silva Machado, o qual, embora não o conhe-cesse, perguntou aflito a ele, Niemeyer, sobre João Taylor e contouque uma lancha armada estava estacionada junto à praia da Glória,vinda da fragata Imperatriz, às ordens de Taylor. Percebendo entãoque fora aquela embarcação o motivo do alarme,

[...] imediatamente resolvemos fazê-la retirar, o que

efetuamos, e para nos não comprometermos, para não

corrermos risco de vida, resolvermos igualmente

seguirmos sós em uma Falua para a Praia Grande,

[...] visto que os moderados nos indigitavam como

perigosos.

Foi aí que, estando ainda parados próximos à praia da Glória,e sem oferecer resistência, sofreram um ataque de tiros de mosquete,disparados da terra, do qual conseguiram escapar. Mas pouco depoisforam os quatro interceptados e presos por duas lanchas do Arsenalde Marinha guarnecidas com permanentes, sendo mais tarde levadospara a “espelunca” da Fortaleza da Lage (de onde Niemeyer escreveuo manifesto, a 22 de maio). Este afirmava ainda que era Taylor “overdadeiro autor de todos os acontecimentos da Glória”. Comoprova, anexou um bilhete no qual este pedia ao tenente do EstadoMaior do Exército Antonio de Saldanha da Gama que procurasseMachado e lhe ordenasse, de sua parte, que, havendo notícia de“movimento popular contra o Governo”, embarcasse na falua que oaguardava na Glória e rumasse para a fragata Imperatriz, requisitandoentão sessenta ou setenta praças armados, que deveriam em seguidadesembarcar naquela praia; “porém isto com a maior cautela, esegredo, e eu me acharei à meia noite na praia para o receber com osinal de uma lanterna”.71

Mais tarde, a 28 de outubro, Niemeyer, Bricio, Machado eTota fizeram uma exposição ao público, contendo suas defesas noConselho de Guerra em 13 de setembro e as sentenças de primeirae segunda instâncias. Diziam que, naquele início de madrugada do

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dia 17, Machado encontrou, no Pocinho da Glória, Tota e Saldanhada Gama, o qual relatou a ordem recebida de Taylor. Machado logose dispôs a cumpri-la e, em companhia de Tota – que, querendoprestar “Serviço à sua Pátria”, ofereceu-se para acompanhá-lo –,dirigiu-se à fragata Imperatriz, onde o comandante Frederico Mariatt(que seria depois sócio-fundador e conselheiro da Sociedade Militar)forneceu os sessenta praças requisitados. Ao retornarem à praia enão vendo a lanterna de Taylor, Machado e Tota decidiramdesembarcar à sua procura. Estavam nessa diligência quando, às duashoras, ouviram as matracas e só então encontraram, casualmente,Niemeyer e Bricio, que de nada sabiam, mas que se prontificaram aajudar, fazendo a lancha retirar-se.72

Era essa busca de força armada que se imputava criminosa.Com base no artigo 36 do Código Criminal,73 os réus argumentaramque “nenhuma palavra se diz no Processo, que inculque fins sinistrosda parte dos Acc. nem força, nem ataque por eles desenvolvido”, eque, portanto, o “fato em si não é criminoso”. Logo, se havia algumcrime, era a traição de Taylor, que dera a ordem para a entrega dospraças, até porque, “segundo o Regulamento Militar nenhumSubalterno deve raciocinar acerca das ordens que recebe”. Ademais,as testemunhas – embora “contraditórias, inconcludentes, e suspeitasde parcialidade” – nada haviam dito que incriminasse os acusados;logo, “aonde [se] declara que a força vinha opor-se às ordens doGoverno? em nenhum lugar; [...] aonde se indica a menor conivênciacom os movimentos de S. Cristóvão, ou com qualquer outro lugar?não há tal indicação”. A 25 de setembro, o Conselho de Guerracondenou Machado a quatro anos de desterro para fora do Impérioe inocentou Tota, Bricio e Niemeyer.74 Mas, oito dias depois, oConselho Supremo Militar de Justiça manteve as sentenças deabsolvição e reformou as de condenação, isentando de culpa os quatroréus.75 Com isso, Bulow acabou sendo o único participante da revoltaefetivamente condenado.

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Balanço final

Apurados os fatos, convém fazer um balanço do movimento,tendo como referência as sugestões metodológicas de George Rudé(1991, p.9-10) para o estudo da multidão pré-industrial. Trata-se deanalisar as proporções da revolta, as formas de ação, os promotorese líderes, a composição social dos participantes, os alvos ou vítimas,os objetivos e as motivações, as idéias ou crenças que fundamentavama ação, a eficácia das forças de repressão e as implicações históricas.

A forma de ação consistiu, primeiro, na preparação de duasfrentes articuladas de luta: uma na zona sul do Rio de Janeiro, quepartiria da Glória para daí tomar o Arsenal de Guerra e possivelmentetambém o de Marinha, dois pontos militares estratégicos, e outrana zona norte, que partiria de uma mobilização inicial em SãoCristóvão para então chegar ao centro da cidade e, a exemplo do 7de Abril, fazer um pronunciamento decisivo no Campo da Honra,local também estratégico do ponto de vista simbólico. Como ambasas tentativas não deram certo, sendo a primeira abortada ainda nospreparativos pela intervenção militar, só restou, no segundo caso,quando os revoltosos já batiam em retirada, o confronto direto eviolento com as forças do governo. Tudo indica que o movimentofora mal organizado, pegando de surpresa muitos dos própriosparticipantes.

Não obstante o movimento, atingiu proporções bastanteconsideráveis para a época. Atendo-se apenas ao contingenteestimado para o grupo de São Cristóvão (já que faltam dados paraavaliar o da Glória), verifica-se que estiveram ali presentes de duzentase cinqüenta a quatrocentas pessoas. Considerando-se que a cidadedo Rio de Janeiro tinha uma população total de cerca de 137.000habitantes em 1838 (97.000, se descontadas as paróquias rurais) eque a freguesia urbana do Engenho Velho (onde ocorrera oajuntamento e de onde provinha a grande maioria dos participantes)contava então com somente 8.000 moradores,76 constata-se que onúmero de manifestantes corresponderia a algo em torno de 14.000pessoas nos dias de hoje.77 E isso sem se considerarem aspectos

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fundamentais daquele tempo que dificultavam mobilizações, comoo precário sistema de transporte e as contingências da difusão deidéias em uma cultura marcada pela oralidade.

Integravam a mobilização sobretudo empregados de diferentescategorias da Quinta da Boa Vista, militares de várias patentes(especialmente oficiais) do Exército e da Marinha e guardas nacionaisdo Engenho Velho. Pelos depoimentos das testemunhas inquiridas,verifica-se também o envolvimento de outros grupos sociais, comocomerciantes, caixeiros, criados particulares e médicos. Mas tantoas ações judiciais como o noticiário dos jornais limitaram-se a fazerdescrições genéricas e vagas dos participantes e a apontar apenasindivíduos conhecidos ou que tiveram papel proeminente na ação.Os demais permaneceram no anonimato, e eram esses queconstituíam o grosso da multidão. Mesmo considerando que esseshomens, em sua maioria, deviam ser oriundos daquelas categoriassociais, difícil crer que, em meio a tamanha multidão, membros deoutras não estivessem presentes, ainda mais que as fontes indicamque a notícia da mobilização em São Cristóvão espalhou-serapidamente pela região e adjacências, correndo de boca em boca,bem ao estilo das manifestações desse tipo, em uma sociedademarcada pela cultura oral.

Há indícios até do envolvimento de escravos, como ThoméLuiz dos Santos, implicado no processo, sem se falar no relato deum jornal, dizendo que os rebeldes “lançaram mão do triste recursodos Africanos”, para “cansar-nos em um combate, e depoisatacarem”.78 A afirmação é plausível. Afinal, há vários sinais departicipação de escravos nos distúrbios de 1831 na Corte, inclusiveem uma rebelião planejada pelos próprios criados do Paço de SãoCristóvão, abafada às vésperas da Abdicação.79 É muito provávelque, ao saberem da mobilização na Quinta, escravos e libertostenham ido até lá, movidos por aspirações de liberdade ou mesmopor mera curiosidade, quando não incitados ou a mando de outraspessoas. As maiores possibilidades de autonomia (sobretudocirculação e comunicação), típicas da escravidão urbana, favoreciamtais ações, ainda mais em uma “cidade-esconderijo” como a Corte,

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onde cativos, libertos e livres confundiam-se facilmente (Chalhoub,1990, p.212-232). Além disso, em várias regiões escravistas dasAméricas, no Brasil inclusive, escravos aproveitavam momentos decisão violenta entre as elites para engajar-se junto àqueles que lhesparecessem possibilitar mais chances de autonomia e liberdade, aindaque tal ação estivesse quase sempre na dependência da iniciativabeligerante de outros grupos, como as facções políticas dissidentes eos militares a elas associados (cf. Berlin et al., s/d, cap.1; Soares,2001, cap. 5; Carvalho, 1998, cap. 9; Ribeiro, 2002, introd. e cap.1 e 3; Sousa, 1996, p.68-72).

Quanto aos líderes ou promotores da revolta, a figura central,ao menos na mobilização de São Cristóvão, era a do barão de Bulow.Sobressaíram-se ainda o coronel Antonio Joaquim da Costa Gavião,o administrador da Quinta Miguel Gonçalves dos Santos e, naGlória, o capitão-tenente da Marinha Joaquim Leão da SilvaMachado, o capitão do Exército Luis Henriques Tota e os tenentes-coronéis Conrado Jacob de Niemeyer e Marcos Antonio Bricio.Talvez se possa incluir o chefe-de-civisão da Marinha João Taylor eo comerciante Antonio de Saldanha, que tiveram atuação importantenos bastidores. É claro, ademais, que o tutor José Bonifacio estavaenvolvido no caso e, se não participou diretamente da trama oumesmo a articulou, ao menos deve ter tido conhecimento, logo,sendo conivente. Afinal, a Quinta da Boa Vista foi o principal centrode mobilização, e vários dos subordinados diretos de José Bonifácioe pessoas a ele ligadas (como Bulow) participaram da ação, semcontar suas atitudes suspeitas às vésperas da revolta (negar-se aentregar as peças de artilharia e a transferir o Imperador para o Paçoda cidade).

O movimento de 17 de abril, tal como outros da época, tevecaráter predominantemente político, o que significa dizer que suasprincipais motivações e objetivos eram dessa ordem de fatores. Éevidente sua tendência caramuru, expressa não só na intenção dosmanifestantes de derrubar a Regência ou o ministério, como tambémnos incessantes vivas dados a Pedro I e aos Andrada, assim como naprópria filiação de seus líderes àquela facção. Todavia, é preciso ter

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cautela em taxar o levante de restaurador, aspecto controverso dentrodo próprio projeto caramuru, pois, como observou O Independente

a propósito das finalidades do movimento, “a própria ambição éque procurava ser satisfeita independentemente de uma restauração,embora se dessem vivas a Pedro 1º, o nome deste Príncipe só serviade atrair todos aqueles, que sempre deram mostras de lhe ter afeição”,ou, em outra passagem, “O nome detestado de Pedro 1º, que serviade reunir os conspiradores mascarava todavia planos desconhecidosa todos os instrumentos do partido”.80 O próprio Bulow admitiu,em seu depoimento, que os vivas a Pedro I concorriam com saudaçõesa Pedro II. Mas nem por isso se devem subestimar os anseios demuitos manifestantes pela volta do ex-imperador; se não fosse assim,seu nome não serviria de apelo para atrair e reunir tanta gente queaderiu ao intento acreditando na Restauração.

Vários fatores contribuíram para a revolta, como o controledo poder pelos moderados e o alijamento, aliado às perseguições,dos grupos de oposição, em particular dos caramurus, afastados deinúmeros cargos públicos e funções honoríficas após a Abdicação,ou impedidos de alcançá-los. Também a insatisfação crescente dosmilitares, devido aos problemas de perda de prestígio, cortes noefetivo, transferência de unidades, suspensão (ou realização conformecritérios políticos) das promoções, baixas forçadas, prisões de oficiaisenvolvidos em revoltas, ou mesmo – para os praças – recrutamentoforçado, castigos corporais, baixo soldo e rígida disciplina. Havia,ainda, os efeitos da crise econômica, com a alta do custo de vida, acarestia, a alta carga tributária que incidia sobre o comércio urbano,a limitação do crédito e a escassez, falsificação e desvalorização damoeda, problemas que atingiam sobretudo os comerciantes.

À vista desses fatores, não é à-toa que se vêem, entre osmanifestantes identificados, militantes caramurus notórios,funcionários do Paço, militares, comerciantes e caixeiros. Nota-setambém uma grande presença de portugueses, apontados comohabituais simpatizantes de Pedro I e adeptos da Restauração, o quepode bem conotar uma reação ao antilusitanismo, que atingiu seuclímax com a onda de revanchismo e de patriotismo exacerbado

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fomentada após as Noites das Garrafadas e a queda do ex-imperador.Além disso, não deve ser esquecido o papel exercido pela imprensa– não só caramuru, mas também exaltada – na criação de um clima

de revolta, que certamente influiu na predisposição para omovimento, quer por meio das críticas contundentes e incessantesfeitas ao governo, quer mediante a pregação revolucionária abertaou velada, quer pela exploração crítica dos problemas acima citados.Há que se considerarem ainda as aspirações de autonomia nutridaspor indivíduos de baixa condição social (livres e escravos). Dessaconjunção de fatores é que resultaria o movimento caramuru de 17de abril.

Se nem todos os rebeldes aderiram à revolta atendendo a clarasmotivações políticas, muitos outros – provavelmente a maioria –assim procederam, até porque a insatisfação militar, a criseeconômica, o antilusitanismo e a busca de autonomia tornavam-seevidentemente politizadas. De todo modo, indivíduos com maiseducação política e voz nos relatos, como Bulow, fundamentavam omovimento em termos de postulados liberais, como o direito deresistência à tirania e opressão (vendo a Regência como umaditadura), o rompimento do pacto social e a quebra da soberania(em função da pretensa ilegalidade da Abdicação e das reformasconstitucionais). Ainda assim, interesses pessoais de ganho, como aobtenção ou recuperação de cargos e privilégios ou o simples desejode vingança, devem ter movido vários par ticipantes.

Entre os alvos, visados mas não atingidos, dos rebeldes estavama tomada dos arsenais de Guerra e Marinha e a queda da Regência.Talvez imaginassem conseguir isso sem grande conflito, como no 7de Abril (a idéia de ir para o Campo da Honra e ali fazer as exigênciasjá sugere o paralelo). Apesar de Bulow declarar que se planejavamatar o regente Lima e Silva, a história não parece crível. Mas oconfronto foi inevitável durante a ação, e o alvo dos rebeldes tornou-se as forças legalistas das guardas Nacional e Municipal. Entre estas,houve apenas dois mortos e outros dois feridos no combate. Comonas revoltas exaltadas anteriores, o governo foi mais uma vez vitorioso,garantindo, ao menos por enquanto, a supremacia moderada.

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Regency revolts in Court: the movement of April 17, 1832

Abstract. The regency period (1831-1840) was one of the richest one in terms ofpolitical organization, mobilization and debate, as well as the most turbulent inall of Brazil’s history. This article analyses one of the main rebellions that happenedat that time in Rio de Janeiro’s Court in April 17, 1832, headed by the caramurus.This political group arose right after D. Pedro I’s resignation and it was composedby politicians and courtiers associated with the former emperor, by old publicofficers and militaries, and by tradesmen and sales clerks. They opposed to anyreform in the Constitution of 1824, claiming a constitutional monarchy powerfullycentralized, such as the First Reign, and even in exceptional cases, stimulatingrestoration. The movement, in which José Bonifacio was involved, intended tooverthrow the ministry or the Regency, and perhaps to claim Pedro I’s back. Theresearch sources are newspapers, pamphlets, manifestos and judicial papers.Keywords: Regency Period. Rio de Janeiro. Rebellion of April 17, 1832.

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Notas

1 Bons trabalhos a respeito (para só citar uma obra sobre cada revolta) são os deLeitman (1979), Di Paolo (1985), Dias (1995), Souza (1987), e Freitas (1978).2 Entre esses movimentos, apenas os de Pernambuco (Setembrada e Novembrada,em 1831; Abrilada, em 1832; e Carneiradas, em 1834-1835) reúnem maiornúmero de estudos: Andrade (1974), especialmente capítulos IV e VI; Barbosa(1996), capítulo IV; e Carvalho (1989), sobretudo capítulos 5 e 6. Para as demaisprovíncias, há somente alguns poucos trabalhos: sobre a revolta de Pinto Madeirae Benze-Cacetes, em 1831-1832, no Ceará, Montenegro (1976); sobre a revoltado Ano da Fumaça, em 1833, em Ouro Preto, Silva (2002), capítulo 7; sobre achamada Rebelião Cuiabana, em 1834, no Mato Grosso, Corrêa (2000), parteII; e sobre os oito movimentos da Corte, entre 1831 e 1833, Basile (2004), capítulosIX, X, XIII e XIV.3 Sobre os projetos moderados, exaltados e caramurus na Corte, cf. Basile (2004),capítulos II, VI, VII e XI, e Morel (1995), capítulo 3. Sobre os exaltados e oscaramurus, ver também Basile (2000, 2001).4 Segundo a Aurora Fluminense (n. 619, 21.4.1832), principal jornal moderadoda Corte, redigido pelo deputado Evaristo da Veiga, “Desde muitos dias se esperavao rompimento dos restauradores: sabia-se que os membros influentes da Sociedade

Conservadora não cessavam de trabalhar nesse sentido [...] Era o Governoinformado de que na quinta da Boa Vista, onde morava o Tutor do jovem Monarca,havia continuados exercícios militares, em que se adestravam os criados do palácio;que para aquele ponto se chamavam as G. Nacionais da circunvizinhança e queem discursos capciosos se tratava de tornar-lhes odioso o governo existente, esuspirada a época que precedeu a revolução de 7 de Abril”. Ver também O

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Independente, n. 73, de 14.4.1832, e Jornal do Commercio, n. 173, de 6.4.1832.Bonifacio acabou se mudando com o Imperador, no dia 14, para o Paço da Cidade.5 Jornal do Commercio, n. 175, de 10.4.1832. Os boatos parecem ter sido maioresdo que noticiou o Jornal do Commercio, pois, conforme relatou Aureliano de Souzae Oliveira Coutinho ao ministro da Justiça, Diogo Feijó, teriam os rumoresespalhado-se pela cidade nos dias 4, 5 e 6, dando conta de que “vários ajuntamentosde perturbadores do sossego público” estariam se formando não só naquelaslocalidades indicadas pelo jornal, mas também em Porto do Velho, Magé e outraspartes. Segundo o mesmo relato, tais ajuntamentos, contudo, seriam “dos Cidadãoshonestos, e sustentadores da ordem, e do Governo legítimo, que com as notíciasdo dia 3 se puseram em guarda para repelir os inimigos do sossego público” (ibidem,n. 177, 21.4.1832).6 Cf. Aurora Fluminense, n. 619, de 21.4.1832; O Independente, n. 75, de21.4.1832; O Homem e a America, n. 28, de 12.5.1832; O Grito da Patria contra

os Anarquistas, n. 49, de 25.4.1832; Jornal do Commercio, n. 182, de 18.4.1832;e a circular de 19 de abril do Ministério da Justiça aos presidentes de província,reproduzida no Jornal do Commercio, n. 187, de 26.4.1832.7 Salvo outra indicação, as citações nessa descrição advêm das edições de jornalreferidas na última nota.8 Não por acaso, todos viriam a ser membros da Sociedade Militar, e pelo menoso terceiro era integrante da Sociedade Conservadora da Constituição, associaçõesque congregavam os caramurus na Corte. Sobre essas entidades, cf. Basile (2004),capítulo XII.9A Aurora Fluminense indica duzentos e cinqüenta homens (dos quais, “mais de60 criados”); O Grito da Patria contra os Anarquistas, quatrocentos; o Jornal do

Commercio, de trezentos a quatrocentos; o Caramuru (n. 14, de 21.5.1832) admiteque o “n. exato não se sabe, que uns dizem ser de 250 indivíduos, outros de 300,e outros de 400”. Moreira de Azevedo (1875, p. 133) fica com o menor número.10 O chamado barão de Bulow, figura obscura, que, segundo o cônsul geral daPrússia no Brasil, sequer possuía tal título (Aurora Fluminense, n. 611, 30.3.1832),era redator do jornal caramuru O Carijó. Chamava-se Augusto Hugo Auf Hoiser,nasceu em Hanover, Alemanha, em 1797 ou 1798, e naturalizou-se espanhol aoservir como oficial na guarda de corpo de Fernando VII, tendo, ao que parece,participado das lutas liberais de 1820 na Espanha. Pouco antes, teria estado emNápoles (também palco, naquele ano, de uma revolução liberal), onde se juntouao séquito do príncipe Saxonia Teschen, pai da rainha daquele reino e da esposado rei espanhol. Mas, segundo Carl Seidler, seu patrício, o “D. Quixote alemão”,acabou expulso da Espanha por dar sumiço em uma sentença de morte contra umconterrâneo. Partiu então para Buenos Aires, onde se meteu nos negócios políticoslocais, sendo por isso preso e condenado à forca, mas foi beneficiado com aconversão da pena em deportação perpétua. Daí veio, em data ignorada, para o

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Brasil, passando talvez a integrar (juntamente com Seidler) as tropas alemãscontratadas por Pedro I. O fato é que, logo após a Abdicação, aparecia já comoredator d’O Americano, jornal associado aos moderados, e se tornou comandanteda Guarda Municipal do Engenho Velho, que participou, a 7 de outubro de 1831,do ataque aos rebeldes exaltados da Ilha das Cobras. Não são conhecidas as causasde seu rompimento com os moderados e o governo, mas é provável que tenha sidouma suposta promessa não cumprida, feita por um dos regentes, de o nomearembaixador do Brasil nos Estados Unidos. Seja o que for, ao se iniciar 1832, jáviúvo e dizendo viver de seus bens, aliou-se aos emergentes caramurus, passando aredigir O Carijó. Após ser preso e deportado do Brasil por sua atuação à frente darevolta de 17 de abril, há notícia apenas de que, em 1856, teria comandando comsucesso, partindo da Costa Rica, a reconquista da Nicarágua, invadida um anoantes pelas forças do americano William Walker. Sobre Bulow, ver Autos de sumário

contra o barão de Bulow, acusado de participar da conspiração do dia 17 de abril, no

Largo do Paço da Quinta da Boa Vista. Rio de Janeiro, 17 de abril de 1832 – 7 demaio de 1834. B. N. - D. Mss. 15, 2, 4, sobretudo p. 3v. de seu interrogatóriofeito pelo juiz do Crime, e 22 de sua defesa perante o júri. Seidler (1980, p. 327e 328); Aurora Fluminense, n. 697, de 7.11.1832; Moreira de Azevedo (1884, p.76-77); Barreto Filho & Lima (1942, p. 55-56).11 As peças estavam na Quinta, e Bonifacio, poucos dias antes, recusara-se a entregá-las ao juiz de paz do Engenho Velho (que fora ali averiguar, a mando do governo),alegando que eram antigas e não funcionavam mais.12 O comandante do batalhão do Sacramento era, na verdade, o tenente-coronelSaturnino de Souza e Oliveira, mas, nessa operação, o cargo estava sob aresponsabilidade do futuro Duque de Caxias.13 O Homem e a America registra dez mortos; o Jornal do Commercio, de doze aquinze; e a Aurora Fluminense, “mais de 20”. Moreira de Azevedo, em sua obra arespeito ( p. 135), fala em dez ou vinte.14 Cf. Jornal do Commercio, n. 3, de 3.5.1832, e Astréa, n. 827, de 3.5.1832.15 Cf. Jornal do Commercio, n. 185, de 24.4.1832. A maioria, se não todos, dosoficiais citados foi pouco depois presa, mas houve quem resolvesse justificar-seperante a opinião pública, como o tenente João Manoel Martins Filgueiras, “presopor lhe imputarem ter se achado na rusga que fizeram os Caramurus, roga aorespeitável Público, queira suspender o seu Juízo a respeito da conduta do ditotenente, até que ele apresente com a possível brevidade documentos incontestáveis,e que destroem plenamente a calúnia, pela qual se acha padecendo injustamente”(Diario do Rio de Janeiro, n. 19, de 26.4.1832).16 Cf. Diario do Rio de Janeiro, n. 13, de 18.4.1832.17 Cf. Diario do Rio de Janeiro, n. 14, de 19.4.1832.18 É o caso do missivista do Diario do Rio de Janeiro, O Inimigo de zizanias

(possivelmente um dos que se sentiu atingido), que, protestando contra matériada Aurora Fluminense (n. 619, de 21.4.1832), na qual elogia a ação da Guarda

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Nacional mas lança suspeitas sobre parte da 5ª companhia de São José (comandadapelo irmão do capitão Luis Henriques Tota, um dos revoltosos da falua da Glória),indagava “se tal asserção é filha da sua moderada lógica, se de uma maldade figadal,ou se, porque um indivíduo de uma companhia é mau, é de jús que todos os seusmembros o sejam”, ao que conclui, referindo-se ao redator Evaristo da Veiga:“porque então terei a deplorar a sorte da Sociedade Defensora, e dos habitantes darua dos Pescadores” (Diario do Rio de Janeiro , n. 21, 18 abr. 1832).19 A imprensa caramuru celebrou a absolvição dos cinco. Cf. Caramuru, n. 28,6.10.1832; A Trombeta, n. 50, 27.4.1833; e o panfleto anônimo Os Chimangos

em desesperação ou Analise a justa Sentença do Conselho Supremo Militar sobre a

justificação do Sr. Taylor (N. L. Vianna, Rio de Janeiro, Typ. do Diario, 1833,p. 1).20 Jornal do Commercio, n. 191. 1º.5.1832 (extrato do Supplemento da Verdade

n. 28).21 A Trombeta lastimou a condenação, declarando que o júri “se torna prejudicialàs públicas liberdades, e favoneia o Despotismo quando, aberrando-se dosprincípios de justiça presidem as deliberações deste Tribunal do Povo o espírito departido, um baixo, e vil servilismo, ou o ignóbil temor de desagradar aos tiranos”(A Trombeta, n. 64, 16.11.1833). O mesmo fizeram o D Pedro I, n. 5, de20.11.1833, e O Lafuente, n. 1, de 16.11.1833.22 Entre outros objetos, foram apreendidos 26 patronas, 10 cinturões com bainha,30 clavinas, 35 baionetas, 11 talabartes, 38 guarda-fechos, 80 cartuchos embalados,um barril de pólvora, 34 bandeirolas, 296 balas de espingarda e 34 pederneiras.Cf. A Trombeta, n. 191, 1º.5.1832 (extrato do Supplemento da Verdade n. 28).23 Em vista da participação de servidores da Quinta na revolta e das armas aliapreendidas, O Supplemento da Verdade, n. 28, intimava José Bonifacio a esclarecerseu suposto envolvimento, deixando-o, de todo jeito, sem saída: “é muito necessárioque o Público saiba se S. Ex. era, ou não sabedor da existência de semelhantebarril de pólvora na morada de seu Pupilo: se sabia, é altamente criminoso emconsentir: se não sabia, é incapaz de ter a seu cargo objeto tão precioso para oBrasil” (A Trombeta, n. 191, 1º.5.1832). Igualmente, O Grito da Patria contra os

Anarquistas (n. 49, 25.4.1832) lembrava a recusa do tutor em transferir o imperadorpara o Paço da Cidade e a entregar as peças de artilharia achadas na Boa Vista,denunciando que o Andrada tivera longas conversas com os empregados do Paço,ordenara a todos aqueles a serviço da Guarda Nacional a se recolherem ali nanoite de 16, dispensara o reforço para lá mandado na mesma noite e não consentiaque se chamasse Pedro I de ex-imperador, dizendo que este seria o verdadeiroimperador, por ser sagrado e coroado. Sendo verdadeiras tais afirmações, dizia ojornal, “o pobre velho está demente” e “não será difícil de crer-se a sua conivência”com os rebeldes, devendo-se então abrir devassa contra o tutor. O Independente

(n. 75, 21.4.1832) fazia a mesma suposição conspiratória contra os Andrada(chamados de Gigantes), sugerindo que agiriam assim por terem sido preteridos

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na escolha dos regentes e que, logo, “devem ser encarados como perigosos inimigosdo Governo, que trabalham por derrubar”.24 Caramuru, n. 14, 21.5.1832, e n.18, 6.6.1832.25 A Trombeta Extraordinaria, 4.6.1832. O 7 de Abril não seria, assim, expressãoda vontade geral, pois “eu, e todos os homens de senso, não reconhecemos porNação só o povo do Rio de Janeiro”.26 O Carijó, n. 26, 30.6.1832.27 Ofício de Faustino Maria de Lima e Fonseca Gutierres, superintendente do Palácio

da Quinta da Boa Vista, a João Valentim de Faria Souza Lobato, enviando o resultado

da sindicância sobre o tumulto havido naquela quinta, no dia anterior. Rio de Janeiro,18 de abril de 1832. B. N. – D. Mss. II-34, 16, 43.28 Autos de sumário contra o barão de Bulow, acusado de participar da conspiração do

dia 17 de abril, no Largo do Paço da Quinta da Boa Vista. Rio de Janeiro, 17 deabril de 1832 – 7 de maio de 1834. B. N. – D. Mss. 15, 2, 4, pp. 1 e 1v. Omaterial reunido no códice está desorganizado, havendo cinco partes. A primeiraconstitui o referido sumário para apurar o movimento de 17 de abril. A segundacontém apenas a segunda parte da defesa do barão de Bulow feita em 1833 peranteo júri. A terceira compõe-se de folhas soltas diversas relativas ao mesmo processo.A quarta consiste no sumário aberto a 25 de abril de 1832 pelo juiz do crime dobairro da Candelária, Agostinho Moreira Guerra, também para apurar omovimento. E a quinta refere-se a mais um sumário instaurado a 12 de março de1832 pelo mesmo juiz do crime contra Bulow, agora por outro problema: resistênciaà prisão.29 Infelizmente, as páginas de verso deste sumário encontram-se praticamenteilegíveis, de modo que apenas partes fragmentadas do interrogatório (e de outrasetapas processuais) puderam ser transcritas e analisadas.30 Autos de sumário contra o barão de Bulow, doc. cit., p. 2v. e 3 do sumário de 17de abril.31 Ibidem, p. 3v., 4 e 4v.32 Ibidem, p. 5, 5v., 6 e 6v.33 Ibidem, p. 15v, 16 e 16v.34 Ibidem, p. 7, 7v., 8 e 8v.35 Ibidem, p. 9 e 9 v.36 Ibidem, p. 10, 10v. e 11.37 Ibidem, p. 11, 11v., 12, 12v. e 13.38 Ibidem, p. 14, 14v. e 15.39 Ibidem, p. 17, 17v., 18 e 18v.40 Ibidem, p.19, 19v., 20 e 20v.41 Ibidem, p. 21, 23 e 24.42 O primeiro era acusado de comandar a Infantaria rebelde, o segundo, a Cavalariae o terceiro, os empregados da Quinta.

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43 Provavelmente, Dom Antonio de Saldanha, o mesmo que agenciou os caixeirospresos que iriam participar do ataque ao Arsenal de Guerra.44 Trata-se do processo instaurado em 12 de março de 1832, referido ao final danota 32.45 Autos de sumário contra o barão de Bulow, doc. cit., p. 3v. a 6 do sumário de 25de abril.46 Ibidem, p. 9-14 (citação, p. 11).47 Ibidem, p. 15, 15v. e 16.48 Ibidem, p. 16, 16v. e 17.49 Cf. ibidem, p. 20, 20v. e 21.50 Ibidem, p. 18, 18v. e 19.51 Ibidem, p. 19 e 19v.52 Ibidem, p. 22 a 23v.53 Ibidem, p. 23v. a 25v.54 Ibidem, p. 26 e 26v.55 O júri era formado por José Antonio Lisboa (presidente), Joaquim VicenteTorres Homem (secretário), Antonio Corrêa Dias de Moura, Alexandre Maria deCarvalho e Oliveira, Antonio José de Araújo, Pedro Bandeira de Gouvêa, EstevãoAlves de Magalhães, Simão Bernardino da Costa Passo, José Antonio da SilvaChaves, Manoel Luiz de Castro Filho, Firmino do Nascimento Silva, Joaquim doValle e Silva, Januario da Cunha Barboza, José Antonio da Camara, Antonio JoséFelippe, Domingos de Sequeira, Guilherme Jacques Godfroy, Pedro AugustoNolasco Pereira da Cunha, Lourenço Lopes Pecegueiro, João Thomas de Melo,Manoel Campello e duas pessoas cujos nomes estão ilegíveis. (Autos de sumário

contra o barão de Bulow, doc. cit., p. 28 e 28v). Dos vinte e um jurados identificados,ao menos seis eram sócios da Sociedade Defensora (primeiro, segundo, quinto,sétimo, décimo-terceiro e décimo-quinto).56 Autos de sumário contra o barão de Bulow, doc. cit., p. 17 da defesa de Bulowperante o júri, cuja segunda parte vai da p. 16 até a 37v.57 O ministro da Justiça, irmão do promotor, era então Aureliano de Souza eOliveira Coutinho.58 Autos de sumário contra o barão de Bulow, doc. cit., pp. 17v. e 18 da defesaperante o júri.59 É o manifesto, atrás mencionado, publicado em A Trombeta Extraordinaria de4.6.1832.60 Autos de sumário contra o barão de Bulow, doc. cit., p. 19v. da defesa.61 Sobre as escolas jurídicas jusnaturalistas, ver Hespanha (1998, capítulo 7).62 Autos de sumário contra o barão de Bulow, doc. cit., p. 21v. da defesa.63 Ibidem, p. 22v., 23 e 23v. Sobre esta revolta, ver Basile (2004, cap. IX, seção 2).64 “Tentar diretamente e por fatos destronizar o Imperador, privá-lo em todo ouem parte da sua autoridade constitucional, ou alterar a ordem legítima da sucessão”(Tinôco, 2003, p. 160).

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65 Autos de sumário contra o barão de Bulow, doc. cit., p. 24v. a 26 da defesa.66 As diferentes concepções de soberania (do rei, da nação, do povo, em suascorrelações com a idéia de pacto social) constituem um aspecto essencial para acompreensão do pensamento e das práticas políticas do período. Exemplo deiniciativa deste tipo é a de Souza (1999, cap. 1).67 Autos de sumário contra o barão de Bulow, doc. cit., p. 29v. e 30.68 Ibidem, p. 32 a 33v.69 Ibidem, p. 37 e 37v.70 Ibidem, p. 121 das “folhas diversas”. Assinou o decreto o irmão do promotorSaturnino.71 NIEMEYER, Conrado Jacob de. Manifesto ao publico. Rio de Janeiro: Typ. doDiario, 1832. p. 3 e 4 (duas últimas citações). Saldanha da Gama cedeu o72 NIEMEYER, Conrado Jacob de; BRICIO, Marcos Antonio; MACHADO,Joaquim Leão da Silva; TOTA, Luiz Henriques. Expozição ao publico accompanhada

com a defeza, e sentenças do Concelho de Guerra a que responderão os Tenentes Coroneis

Conrado Jacob de Niemeyer, Marcos Antonio Bricio; Cappitão Tenente Joaquim Leão

da Silva Machado; Cappitão Luiz Henriques Tota. Pelos accontecimentos, que tiverão

documento a Machado, antes de fugir para Buenos Aires. lugar nesta Capital a

dezassete de Abil [sic] findo, augmentada Com as Defezas, e Sentenças do primeiro

sobre as arguições de ter elevado, em 1825, sem Ordem Joaquim Pinto Madeira de

Tenente Coronel, e de ter dezobedecido pertinazmente ás Ordens do Governo; contendo

igualmente Os Documentos authenticos, que comprovão as atrocidades com que o

Governo se houve para com os individuos mencionados. Rio de Janeiro: Typographiado Diario, 1832. p. 11-14.73 “Nenhuma presunção, por mais veemente que seja, dará motivo para imposiçãode pena” (Tinôco, 2003, p. 67).74 Este último, todavia, foi condenado a dois meses de prisão em uma fortaleza,não por envolvimento na revolta caramuru, mas pelo crime de desobediência aogoverno, por conta de sua insistência em não cumprir a ordem (a pretexto de estardoente) de partir em comissão militar para Santos e nem a de se recolher preso àsua casa para ser submetido à Inspeção de Saúde do Exército (ordem esta dadadois dias antes daquele movimento).75 NIEMEYER, Conrado Jacob de; BRICIO, Marcos Antonio; MACHADO,Joaquim Leão da Silva; TOTA, Luiz Henriques, Expozição ao publico..., op. cit.,citações p. 15 (três primeiras), 17 (quinta) e 21 (quarta); para as sentenças, ver p.29-34.76 Os números exatos do censo são, respectivamente, 137.078, 97.162 e 8.166.Cf. BRASIL. Directoria Geral de Estatistica. Recenseamento do Brazil realizado em

1 de setembro de 1920. V. I. Rio de Janeiro: Typographia de Estatistica, 1922, p.426, obra que apresenta um resumo dos censos produzidos até esta data.77 O cálculo baseia-se na população da cidade em 2000. de 5.850.544 pessoas, eno percentual de 0,24% relativo à média de trezentos e vinte e cinco manifestantes,

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projetando o mesmo percentual para hoje.78 O Grito da Patria contra os Anarquistas, n. 49, de 25.4.1832.79 Cf. REBELIÃO DO PAÇO. Processo de encomenda para abafar a Rebelião do

Paço que os Creados fizerãm em 1831. Manoel da Paixão criado pretendeu levaralguns escravos p. a rebelião. Quinta da Boa Vista, 29 de março de 1831. B. N. –D. Mss. I-28, 21, 19.80 O Independente, n. 75, 21.4.1832.

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Revoltas regenciais na Corte: o movimento de abril de 1832

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A Carta Niemeyer de 1846

e as condições de leitura

dos produtos cartográficos

Resumo. A Carta Niemeyer de 1846 foi a primeira Carta Geral do Brasil e, pormeio desta, pretendemos discorrer sobre o emprego e as condições de leitura dosprodutos cartográficos pelos historiadores, procurando, ao mesmo tempo, demarcartanto seus limites quanto suas possibilidades.Palavras-chave: Carta Niemeyer (1846). Produtos cartográficos.

*Renato Amado Peixoto é Doutor em História Social pela UFRJ.

Este artigo é um pequeno estudo acerca da Carta Niemeyer de1846, a primeira Carta Geral brasileira produzida no século XIX, aqual se insere no esforço de construção historiográfica do espaçonacional, incorporada que foi a um projeto de nação construído em

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torno do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – IHGB.1

Utilizando tal enfoque, pretendemos discorrer sobre o emprego e ascondições de leitura dos produtos cartográficos pelos historiadores,procurando, ao mesmo tempo, demarcar tanto seus limites quantosuas possibilidades.

J. B. Harley foi o único autor a propor uma leitura dos produtoscartográficos capaz de ultrapassar os métodos e a interpretaçãocostumeira dos historiadores da cartografia, que visavam, segundoesse autor, apenas investigar e catalogar os mapas segundo suascaracterísticas técnicas e de produção. Tal atitude, segundo Harley,refletiria a adesão de seus cultores a um “positivismo cartográfico”que deveria ser confrontado e substituído por uma interpretaçãobaseada, por sua vez, numa teoria iconológica e semiológica danatureza dos mapas (Harley, 2001a, 2001b). Para esse fim, Harleyproporia a utilização dos conceitos anteriormente desenvolvidos porErwin Panofsky (1976) para o estudo dos níveis dos temas ousignificados na arte, visando, com estes, identificar através doselementos simbólicos e estruturais dos mapas certas disposiçõesqualificadas como “eminentemente retóricas”, as quais seriam capazesde explicitar relações de “Poder e Saber”, conforme a definiçãofoucaultiana, bem como certos condicionamentos sociais.2

Ainda que reconheçamos a pertinência da teorização de Harley,acreditamos que, por conta da grande abertura e universalidade deseus conceitos, esta deva ter seu uso condicionado a análises eenfoques que, por sua vez, devam estar orientados e direcionadospor um método que permita perscrutar o símbolo a partir de umapesquisa do contexto que envolve a composição cartográfica,entendida aqui como um ato da representação que objetiva a Vontadede certos indivíduos ou grupos. Em nosso entender, esse ato derepresentação está conectado a propósitos, conveniências ecircunstâncias que, para serem alcançados, demandariam tanto aconstituição de certas mecânicas de produção, quanto a consecuçãode certos processos de escolha, cuja compreensão permitiria a leiturados significados dos elementos e das estruturas técnicas do mapacomo participantes de um processo criativo, a composição

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cartográfica, uma vez que sua efetivação está conectada diretamenteà objetivação do ato de representação. Portanto, o estudo dacomposição do mapa pode ser tão ou mais significante quanto ainterpretação do mapa em si.3 Esse método permite tambémtrabalharem-se os textos referentes ao esforço da composiçãocartográfica relacionando-os com seus próprios produtos, o quepossibilita leituras que não estão diretamente relacionadas com autilização do mapa ou com os efeitos de sua divulgação, mas comum contexto partilhado pelas dinâmicas da mecânica de produçãoou pelos processos de escolha, o que possibilita ao historiador, porexemplo, inferir a episteme relativa a um determinado período, grupoou lugar, objetivo também perseguido por Harley (2001d, p.87-88), ainda que mais pontualmente.

Finalmente, em relação às intenções restritas deste estudo, falta-nos definir, utilizando os argumentos anteriores, que, se o mesmoato de representação está relacionado a determinados propósitos,conveniências e circunstâncias, insertos em determinada condição,esse ato objetiva-se através da competição ou pelo ajustamento aoutros atos também objetivados pela motivação, o que, por sua vez,leva a estabelecer, para o historiador, novos lugares para a leitura decontextos e referências (v. Schopenhauer, 2001, § 56-57, 2003, cap.2).

A partir de Schopenhauer, podemos compreender essaobjetivação da Vontade como uma disputa entre os indivíduos quevisam expressar suas Idéias por meio de sua materialização. Contudo,como essa matéria será disputada com o mesmo fim por outrosindivíduos, todos tenderão continuamente a usurpá-la, possuindo-a, cada um deles, apenas na medida do que puderam tomar dosoutros: constituir-se-á assim, em torno do ato de representação, umaguerra eterna de vida ou de morte, quando o surgimento deobstáculos e impedimentos à objetivação da Vontade seconsubstanciará no indivíduo através do sofrimento e da insatisfação.Portanto, o ato de representação dá-se em meio a um competiçãocontínua pela expressão da Idéia, interessando e emocionando aVontade, daí relacionar-se pela sua satisfação com determinados

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propósitos, conveniências, eventos e circunstâncias. Por conseguinte,esse mesmo ato da vontade será objetivado ainda que ao custo desua transformação e do seu ajustamento a outros atos da vontadeinclusive alheios e vinculados a outras motivações, não sem lançar oindivíduo novamente no sofrimento e na insatisfação que, por suavez, o conduzirão a novos atos de vontade, no estado quedenominamos de luta de representações (v. Schopenhauer, 2001, §56-57, 2003, cap. 2).

A cartografia do século XIX e sua leitura

O estudo da Carta Niemeyer de 1846 será constituído sobre ométodo anterior, mas utilizando a premissa, a qual a exiguidadedeste trabalho não nos permite desenvolver, de que o esforço daconstrução do Estado nacional e da produção de sua representaçãocartográfica valeu-se do material e da estrutura dos produtoscartográficos anteriores, adaptando-os à narração de seu própriopassado e em prol de seus objetivos, visando assim estabelecer umalegitimidade narrativa, por meio da qual o espaço foi sucessivamenteapagado e reescrito em torno de um novo eixo de sintaxe: a Ordeme a Civilização (v. Peixoto, 2003, 2005). Ainda é necessário explicarque, durante os séculos XVII e XVIII, a cartografia constituiu-senuma escrita coletiva por excelência, dotada de práticas diversas ecomplexas, tornando necessário que a leitura do processo decomposição dos mapas seja feito através da apreensão de estratégiase táticas que incluem tanto o agenciamento das técnicas e dascondições da escrita, quanto a distribuição e atribuição de tarefas.Por conta dessas características, a cartografia tornou-se o lugar porexcelência de inscrição da narração territorial, o que nos leva a terque analisar também os processos de escolha, produção, reproduçãoe divulgação da cartografia, ou seja, investigar a socialidade dessaescrita tendo em vista que seu sujeito é também um sistema de relaçõesentre seus diversos estratos, compostos pela recepção, compreensão,interação e transformação, o que denominaremos de teatro da

narrativa.4 Nesse sentido, entendemos ser necessário distinguir, na

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leitura dos mapas, a existência simultânea de dois processos, umexterno, relativo às relações com as Instituições e o Estado, e outrointerno, que diz respeito à natureza das práticas e procedimentoscartográficos, ou seja, das classificações, generalizações,hierarquizações, divisões de trabalho e formalização das decisões.

Esses dois processos simultâneos distinguir-se-iam do queHarley definiu como poder interno e poder externo, entendidos poresse autor como a contraposição de uma instância de poder local edescentralizado a uma outra, centralizada e concentrada. Para Harley,a convivência entre essas duas instâncias faria parte das relações depoder que penetrariam os interstícios da prática e da representaçãocartográfica, permitindo assim com que os mapas pudessem ser lidoscomo textos que legitimariam a teorização Poder-Saber de Foucault(Harley, 2001c, p.111-113). Contudo, entendemos em nossa idéiade processo interno e processo externo, anteriormente expressada, que,além das relações apontadas por Harley, a construção darepresentação esteja sujeita ainda a ser modificada, alterada oulimitada por circunstâncias inerentes às propriedades e característicasdas técnicas e procedimentos, devendo-se estender ainda essaimpressão às leituras daí resultantes. Nesse sentido, deve-se salientarque o agenciamento das técnicas faz parte de um processo de escolhasque não é apenas subjetivo, mas que também constitui-se numprocedimento da representação da forma, ligado às estratégias etáticas dos operadores das representações. Estas, por sua vez, estãosujeitas ainda às capacidades técnicas ou operacionais dos últimos emesmo às finalidades da representação.

No caso da apropriação da cartografia por parte da histo-riografia dos séculos XIX e XX, adiantaremos que as finalidadesoperacionais da narrativa ultrapassaram os procedimentos técnicosdos mapas, fazendo com que o agenciamento das técnicas tornasse-se um medium para a entrada em cena do objeto no mundo darepresentação. Assim, esse medium agenciado no esforço da repre-sentação do espaço nacional constituiu, ele mesmo, parte dessaoperação, transformando a objetivação da representação do espaçoesboçada através do debate realizado no teatro da narrativa, ou,

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utilizando a comparação da Retórica com a representação feita porSchopenhauer, o medium pode constituir o objeto através de uma“dissimulação” de sua forma, uma vez que o objeto é a representaçãodo sujeito mesmo (v. Schopenhauer, 2001, § 47, 2003, p.48-49).

Em nossa idéia de processo externo e processo interno, contudo,o medium, seja este uma técnica, seja a Retórica, primeiramente éentendido como condicionado, na medida em que, através do processo

externo, a expressão da Idéia compreendeu objeto e sujeito de maneiraigual. Em segundo lugar, o medium também é entendido comocondicionante, ao certas características do processo interno, seja suaconstituição autônoma, sejam suas limitações técnicas, imporem, àexpressão da Idéia do processo externo, restrições à sua representaçãopura, constituindo-a como uma objetividade imperfeita da Vontade,e que, em tese, devesse ser complementada ou substituída por outrasrepresentações.

Finalmente em relação ao medium, e novamente remetendoao caso da apropriação historiográfica da cartografia, se as táticas ouestratégias dos operadores exigirem um sacrifício intencional daforma, ou seja, se as finalidades operacionais ultrapassarem ascondições técnicas, pode produzir-se, através do medium, umaalteração do objeto não prevista pelos operadores, constituindo-se essaalteração do objeto, ela mesma, como uma representação mais oumenos independente da objetivação da Vontade, ou no caso, doespaço em produção. Assim, o medium é entendido, em nossométodo, como um facilitador da apreensão da Idéia pelos outros, eessa apreensão da Idéia será condicionada pela natureza oucaracterística do medium e pelo gênio do operador.5

Em respeito à importância do medium para a representação,podemos citar o adendo de Schopenhauer à célebre discussão sobrea razão de não se representar o grito do personagem ferido no grupoescultural de Laocoonte. Enquanto Winckelmann e Lessingatribuíram tal característica, respectivamente, ao estoicismo dopersonagem ou à incompatibilidade da beleza com a dor, paraSchopenhauer a ação de gritar não fora representada “pela simplesrazão de que o grito é inteiramente rebelde aos meios de imitação

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da escultura”. Portanto, para Schopenhauer, era impossível tirar domármore um Laocoonte a gritar, entendendo, assim, existirem limitespara a representação, os quais estariam impressos nas possibilidadesmesmas do medium (Schopenhauer, 2001, § 46). Portanto, aindaque a apropriação da cartografia pela narrativa historiográfica fossedeterminada pela disponibilidade dos objetos cartográficos ederivasse, sobretudo, do esforço do Estado, a inscrição darepresentação do espaço nacional fez-se no cruzamento de diferentesprocessos externos e processos internos, com suas dissimulações e alterações,proporcionando distintas leituras do espaço nacional. Estas, por suavez, ocasionaram a subseqüente necessidade de os operadores da

narrativa fazê-las convergir para uma norma da representaçãocartográfica, a qual se consubstanciaria nas iniciativas visando àcomposição de uma Carta Geral brasileira.

O medium cartográfico nos séculos XVII e XVIII

Até o século XIX, o método usual para a reprodução de mapase de atlas era o da gravação em cobre: os mapas manuscritos tinhamseus detalhes copiados para uma placa desse material, na qual eramgravados em alto-relevo, gerando-se assim uma matriz de impressãopassível de receber alterações e capaz de permitir seguidasreimpressões. Nesse sentido, estima-se que uma matriz de cobre bemcuidada e que recebesse uma manutenção regular do traçado de seurelevo podia ser utilizada até três mil vezes, possuindo comumenteuma durabilidade capaz de ultrapassar a centena de anos (Verner,1975, p.72). Entretanto, a gravação em cobre era um processo caro,trabalhoso e altamente especializado e, por conta dessas caracte-rísticas, o processo cartográfico consolidou-se, nos séculos XVII eXVIII, apenas onde o Estado fosse capaz de arcar com seus custosou onde existisse um mercado capaz de atrair empreen-dimentosparticulares que possibilitassem, sobretudo, a manutenção dos me-lhores profissionais.

Nesse período, foi estabelecida uma nova tradição no processocartográfico, com uma separação e uma estandardização rigorosa

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das tarefas entre astrônomos, desenhistas, gravadores e impressores,o que consolidou o controle do processo interno nas mãos dos editores(o que pode ser exemplificado, inclusive, através da prevalência doanonimato no processo cartográfico) (Harley, 2001c, p.113-115).Contudo, alguns cartógrafos, como Gerhard Mercator, JohnThornton e John Arrowsmith foram capazes de dominar todos asinstâncias do processo cartográfico, estabelecendo-se privativamentee disputando o mercado de mapas e atlas com trabalhos de sua autoria(Verner, 1975, p.70). Portanto, uma das principais característicasda cartografia anterior ao século XIX é a existência de diferentescentros fora do controle direto do processo externo, capazes de produzirem escala e em disputa pelo controle de um mercado, em busca deuma lucratividade que se devia ao fato de os produtos cartográficosnão serem apenas utilizados como fonte de informação para o Estadoou para o investidor, mas também como estímulos de sociabilidadee artigos de uma cultura de consumo que se estabeleceram noperíodo. Tais eventos foram impulsionados pelas transformaçõesculturais decorrentes da difusão da tipografia e das notícias dasviagens transatlânticas, popularizadas pelas corografias e narraçõesdos viajantes (v. Mukerji, 1983a, 1983b, p.30-130).

O desenvolvimento da gravação em cobre foi decisivo para oestabelecimento das condições desse novo mercado, propiciandoque a cartografia se tornasse, durante o século XIX, parte mesmo dacultura material, com seus produtos circulando sob as mais variadasformas, tanto como atlas e mapas de diversos tamanhos, quantocomo elemento decorativo em utensílios e vestimentas. Contudo,essa popularização dos produtos cartográficos e corográficos, quecompunham uma cultura de elites até o século XVIII, somente setornou possível pela apropriação, nas estratégias dos processos internos,de uma nova técnica desenvolvida e divulgada nas primeiras décadasdo século XIX: a litografia.

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A litografia e a cartografia no Brasil

A técnica litográfica consistia na escrita direta sobre uma matrizde pedra calcária ou zinco ou no transporte dessa escrita para a pedraatravés de uma folha especial, quando então se utilizava um processoquímico que tornava a superfície capaz de permitir sucessivasimpressões. Além de tornar a composição dos mapas mais rápida,pois exigia uma menor especialização de tarefas, ao eliminar, porexemplo, a obrigação de que esses fossem desenhados em reversocomo na gravação em cobre, a litografia também possibilitou umadiminuição acentuada dos custos materiais na cartografia. Essascaracterísticas tornaram possível, no século XIX, disponibilizarem-se os produtos cartográficos a um público imensamente maior emais diversificado que nos séculos anteriores, ao mesmo tempo emque permitiriam que países sem tradição de produção cartográficaem escala, como era o caso de Portugal e depois do Brasil, pudessemdesenvolver uma incipiente produção cartográfica em escala.

A criação do Arquivo Militar, já no mesmo ano da chegada daCorte ao Brasil, serve para aferir a existência de uma percepção, nobojo da transferência do Estado português, de que a produçãocartográfica em escala poderia coadjuvar a ação do Estado, trazendovantagens administrativas e servindo como um instrumento práticopara a centralização da autoridade. Nesse sentido, essa instituiçãoteria a função de centralizar a guarda, a organização e a classificaçãodos produtos cartográficos, para que fosse possível então, utilizando-se os critérios da utilidade e da necessidade administrativa, escolher-se o material a ser vulgarizado.

O principal objetivo dessa iniciativa foi o de recolher todos ascartas, os mapas topográficos e os planos iconográficos trazidos dePortugal para que fossem juntados aos que se encontravam dispersosno Brasil entre várias repartições, acabando-se assim com adescentralização documental que imperava até então nas secretariasde Estado portuguesas. Entretanto, essa primeira iniciativa decentralização cartográfica no Brasil estaria dada ao fracasso por doismotivos. Primeiro, porque a antiga tradição de descentralização seria

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paulatinamente retomada, sendo que, durante o Segundo Reinado,se constituiriam outros dois grandes arquivos cartográficos ao ladodo Arquivo Militar, um na Secretaria de Estrangeiros e outro na deObras Públicas. Em segundo lugar, grande parte da documentaçãoque fora reunida no Arquivo Militar retornou a Portugal junto comD. João VI em 1821, sem que se distinguisse critério algum nesserepatriamento, o que tanto acarretou a permanência no Brasil demuitos produtos cartográficos relativos a Portugal e seus domínios,quanto a ida para Portugal de muito do que fora produzido sobre oBrasil. Esse problema somente seria sanado em 1867 com umapermuta documental efetuada pela Comissão Investigadora de Mapase Memórias Concernentes ao Brasil, negociada e acompanhada emPortugal diretamente por Duarte da Ponte Ribeiro, que também foio responsável pela seleção desses documentos nos arquivos dos doispaíses.

Embora se pensasse, quando da criação do Arquivo Militar,em utilizar a gravação em cobre na produção cartográfica em escala,as vantagens da litografia tornar-se-iam óbvias, tanto para o Estadoportuguês quanto para seu sucessor, a partir da divulgação dessatécnica no final da segunda década do século XIX. Essa opçãoconsolidou-se na prática com a criação, em 1825, da OficinaLitográfica do Exército, quando se importaria todo o materialnecessário à sua operação junto com dois técnicos estrangeirosresponsáveis por sua utilização, os quais deveriam atuar tambémcomo professores junto a um corpo de aprendizes composto porsoldados do Exército.

Ainda que, com essas iniciativas, o Estado buscasse resguardarpara si o controle da vulgarização dos mapas, não foi possívelconsolidar, junto ao processo externo, a centralização da produçãocartográfica, uma vez que, em Portugal, esse processo não havia setransformado em consonância com as mudanças no processo interno

que acompanharam o desenvolvimento da reprodução em escala naEuropa nos séculos anteriores, ou seja, através de uma especializaçãoe uma estandardização das tarefas cartográficas. Nesse sentido,preservaram-se, no Brasil, as condições tecnológicas e culturais

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herdadas de Portugal, as quais impuseram, ao processo de produção,a composição cartográfica manuscrita, com suas características deindividualização, concentração em setores determinados, sigilo erepetição de padrões, em que cada cartógrafo era, acima de tudo, omembro de uma escola e um transmissor de padrões estabelecidos.5

Em conseqüência, a parte mais representativa da produçãocartográfica em escala no Brasil durante o século XIX ou foi umareprodução direta do manuscrito, ou foi uma composição sob astécnicas da reprodução manuscrita, ou seja, submeteu-se o medium

litográfico às regras, às limitações e aos condicionamentos culturaisdo medium manuscrito.

Por outro lado, o controle do processo interno da produçãocartográfica pelo processo externo seria dificultado pela constantedefecção dos quadros da Oficina para a atividade privada, uma vezque o custo e a adaptabilidade da técnica litográfica a outras tarefastornavam esse ofício muito lucrativo. Mesmo assim, alguns poucosprofissionais bastante qualificados fizeram parte dos quadros daOficina, como Pedro Torquato Xavier de Brito, autor da redução daCarta do Império de 1856 e Carlos Abeleé, que produziu a Coleção

dos figurinos dos uniformes dos corpos do Exército, significativa comodemonstração do controle, pela Oficina, da técnica de impressãolitográfica em cores, a chamada cromolitografia (Brito, s./d., 1870).Embora criticados, esses profissionais seriam responsáveis pelasreproduções litográficas de bom nível técnico, como, por exemplo,as cartas dos rios Uruguai, Içá e Javari e os mapas provinciais do RioGrande do Sul, Santa Catarina, Rio de Janeiro, Mato Grosso, Sergipe,Piauí, Ceará, Espírito Santo, Minas Gerais, Maranhão e Paraná.

Cabe salientar, entretanto, algumas cifras em relação à Oficina:em primeiro lugar, os mapas e cartas compuseram apenas uma partemuito restrita de sua produção, uma vez que somente cerca de 3%do acervo do Arquivo Militar, no século XIX, era composto poraqueles itens, sendo o restante integrado em pouco mais de 90%por plantas e projetos. Em segundo lugar, pode-se observar, nesserol, que a participação de documentos anteriores ao século XIX éminoritária, compondo apenas cerca de 10% do total do mesmo

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acervo. Assim, conclui-se que, no século XIX, embora a produçãocartográfica do Exército tenha sido importante, compreendidaenquanto tal o somatório dos esforços de seus oficiais engenheiros,do Arquivo Militar e da Oficina Litográfica, ela se concentrou maisna elaboração de plantas e projetos.

Em terceiro lugar, a produção do Exército apresentou maisatividade entre 1850 e 1889, com seu apogeu entre 1860 e 1889,data a partir da qual ela foi dividida por províncias, decrescendoentre cinco e até sete vezes. Portanto, dada a natureza dessa produçãoe se entendermos que sua origem, a criação do Arquivo Militar, foia necessidade de o Estado utilizar diretamente a produção cartográficano esforço de governo, podemos deduzir que os seus objetosconcentrassem os interesses da administração e os esforços para acentralização da autoridade. Em defesa dessa tese, observe-se que asprovíncias do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul foram o focoda produção cartográfica do Exército, correspondendo, respecti-vamente, por 26% e 16% de todos os projetos e plantas, seguidasde longe pelas províncias da Bahia e do Pará, com 9%.7

Em quarto lugar, constata-se que o esforço de composição eda produção em escala de vários dos mapas provinciais escapou docontrole direto do processo externo e passou às mãos de particulares,como, por exemplo, no caso do Mapa da Província do Rio de Janeiro,que foi elaborado por Pedro de Alcântara Bellegarde e ConradoJacob de Niemeyer em 1863, e dos mapas das províncias do Paraná,Espírito Santo e Santa Catarina, os quais foram impressos peloImperial Instituto Artístico, ou, ainda, de diversos outros mapasque comprovam a idéia de que a lucratividade do mercado litográficopermitiu que a iniciativa particular se dedicasse também à impressãoe ao comércio de vários tipos de mapas, como, por exemplo, a Plantada Cidade do Rio de Janeiro, produzida por Steinmann em 1831, eo Mapa Geral do Império do Brasil, elaborado por J. H. Leonhartem 1851.

Portanto, se relacionarmos esses exemplos com as cifrasanteriormente citadas e os problemas acerca da manutenção dosquadros do Arquivo Militar, confirma-se no Brasil tanto a tradição

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européia de descentralização da produção cartográfica de escala,como a constituição de um mercado capaz de suportar uma produçãolitográfica independente e em contato com o exterior, com asubseqüente necessidade de o processo externo adaptar-se àscaracterísticas do processo interno, o que resultou no esvaziamentodas atribuições e funções do Arquivo Militar.

A Carta de Niemeyer de 1846

Na década de 1840, a consolidação da discussão do espaçonacional em teatros da narrativa bem definidos em torno do IHGBe da Secretaria dos Negócios Estrangeiros, a descentralização doprocesso externo e da produção cartográfica em escala e o esvaziamentodas funções do Arquivo Militar fizeram com que a primeira CartaGeral do Brasil não nascesse a partir de uma iniciativa do Estado,mas de uma contribuição para o debate da narrativa territorial noIHGB. Construída por Conrado Jacob de Niemeyer durante os anosde 1842 a 1846, a Carta Corográfica do Império do Brasil estabeleceupadrões técnicos e estéticos que seriam endossados pelas Cartas Geraisposteriores e mapas parciais do território, condicionando assim oprocesso externo às interpretações e limitações do processo interno.Nesse sentido, a composição da Carta de 1846 envolveu umprocedimento de escolha do padrão técnico que pode ser caracte-rizado em três níveis de apreensões do processo interno: o primeiro,do geral, relacionado à inserção no universo conhecido dasrepresentações cartográficas; o segundo, do particular, relacionadoà escolha do repertório das tradições das experimentações doterritório; o terceiro, do conceitual, relacionado à divulgação e àconsolidação das formas percebidas e extraídas da intuição.8

Assim, Niemeyer procurou inicialmente basear sua repre-sentação do território brasileiro sobre o que chamou de Mapa Geral,ou seja, o produto resultante da reunião dos traçados de duas cartasestrangeiras, a Carta da América Meridional, da casa editorialArrowsmith, e a Carta da Costa Brasileira, do Almirante Roussin.Em seguida, esse Mapa Geral foi modificado e complementado

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através da consulta a diversos mapas, roteiros, memórias e descrições,sendo que, entre este último tipo de corografias textuais, Niemeyerutilizou especialmente os trabalhos de Cerqueira e Silva (1883),Cunha Mattos (1874) e Aires de Casal (1943), no caso, segundo ostrabalhos cartográficos acreditados no debate do IHGB e pelaremissão ao cânone ali consagrado. Finalmente, os limites nacionaisforam inscritos sobre o produto resultante segundo o ProgramaGeográfico, de Pinheiro, e a divisão das províncias, de acordo coma Corografia Brasílica, de Aires de Casal.

Já o processo de escolha do padrão estético derivou da decisãode se compor o Mapa Geral a partir da redução e transformação dasua base de dados a uma escala (1:3.000.000) que viabilizasse acomposição da Carta Geral em quatro folhas iguais, de acordo coma maior capacidade de impressão da litografia mais bem aparelhadano Brasil naquele momento, a Litografia Rensburg, possibilitandoassim que a Carta atingisse o tamanho de 1,50m de altura por 1,50mde largura. A decisão de orientar todo o projeto cartográfico da Cartade 1846 pelo tamanho da maior folha que fosse possível imprimirfoi tomada por Niemeyer em função de três objetivos: primeiro,tornar certos detalhes distinguíveis em relação a outros e “dignos deatenção”, especialmente aqueles relativos aos limites com o Paraguai;segundo, diminuir o problema dos erros, através do maiordimensionamento dos elementos geográficos, especialmente dahidrografia; terceiro, equiparar a representação cartográfica do espaçonacional às cartas de grande dimensão impressas na Europa(Instituto..., 1844, 1846; Carta..., 1924).

Quanto ao último objetivo, o modelo para Niemeyer eramjustamente as grandes cartas gravadas pela casa editorial Arrowsmith,as quais chegavam a medir até dois metros de altura por um metroe quarenta de largura.9 Essas cartas eram também impressas em váriasfolhas e juntadas para formar o produto final, o qual se destinava aser exposto emoldurado em grandes paredes, geralmente em órgãospúblicos e escolas, diferente dos demais mapas, que simplesmenteeram enrolados após a consulta. Portanto, o padrão estéticoinaugurado por Niemeyer buscava não apenas formatar e inserir o

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Estado brasileiro no espaço, mas ainda construir sua presença,centralidade e monumentalidade através da imposição de suarepresentação, produzindo um mediador que visava interagir nasrelações do indivíduo com o meio social e que lhe seria imposto porum ordenamento das próprias relações entre ele e o Estado.10 Asfunções específicas desse mediador derivam das transformaçõesculturais e tecnológicas do século XIX, que aumentaram a distinçãoentre criação e produção11 ao dinamizar os processos de construção eoperação da representação, possibilitando a sua constituiçãoenquanto um produto do artifício, ou seja, como uma representaçãotornada ilimitadamente disponível e que adquiriu novas funções,justamente por essa característica adequar-se às estratégias do processoexterno.

Finalmente, esse mediador é elaborado sobre as estratégias etáticas desenvolvidas na relação entre o processo externo e o processo

interno, quando recebe a expressão de suas tensões através da inscriçãoou da negação da inscrição12 de “alegorias” ou “representaçõessimbólicas” como elementos estruturais dos mapas, aos quais tambémcorresponde o condicionamento de sua criação e construçãohistórica.13 Assim, acreditamos que a interpretação semiológica eiconológica não deva ser utilizada isoladamente, mas entronizadaem um método que ultrapasse os aspectos imediatos do mapa e dêconta dos processos de objetivação do ato de representação, sendoainda capaz de permitir a utilização dos recursos levantados pelaHistória da Cartografia tradicional. Em razão disso, sugerimos quea interpretação semiológica e iconológica dos produtos cartográficospode se basear nos significados percebidos através do estudo dasrelações desenvolvidas entre o processo interno e o processo externo,bem como da compreensão de sua inserção no problema geral daforma cartográfica.

Como exemplos desse método, apontaremos três aspectosretirados da mesma Carta Niemeyer. Em primeiro lugar, nesse mapa,o meridiano que passa pela cidade do Rio de Janeiro é utilizadocomo origem de todo o sistema de coordenadas, distinguindo-sedos que eram utilizados usualmente, a saber, os meridianos de Paris

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ou de Londres. Essa opção pode ser compreendida a partir da inserçãoda Carta Niemeyer no debate então travado no IHGB sobre aconstrução da Nação e da Nacionalidade, responsável também porselecionar, disponibilizar e legitimar os textos corográficos a partirdos quais se completou a composição do espaço inscrito na CartaNiemeyer.

Em segundo lugar, o destaque dado à divisão provincial pelautilização do colorido quase que a equipara à divisão internacional.Esse destaque pode ser entendido tanto pela ênfase com que o autorque serviu de base à divisão provincial, Manoel Ayres de Casal, tratada questão, quanto pela sobrevivência da questão regional ainda nadécada de 1840. Em outras cartas da mesma época, era comum quemapas menores ou mesmo desenhos fossem dispostos dentro domapa principal ou ao redor dele, mas, na Carta Niemeyer, as plantasdas capitais das províncias do Rio Grande do Sul, São Paulo, Rio deJaneiro, Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Maranhão e Pará e aplanta da Corte verdadeiramente emolduram o Mapa do Brasil,evidenciando, portanto, a sobrevivência da questão regional em meioà construção do nacional.

Finalmente, utilizando o mesmo método, podemos com-preender as distintas implicações sociais e políticas da inscrição doespaço através do estudo dos elementos utilizados para descrever oespaço e de sua comparação às representações que se fizeram emtorno da construção da Nação, especialmente se considerarmos obinômio civilização x barbárie, conforme idealizado por Ilmar R.de Mattos (1999). Nesse caso, a Carta Niemeyer é prolífica emexemplos dessa representação, como: “Gentio Jacundá tratável e quefala a língua geral”; “Sertão ainda desconhecido e sem cultura”;“Terrenos inteiramente desconhecidos e ocupados por diversas tribosde índios selvagens que embaraçam a navegação fluvial” e “Paritins,Andiras, Araras, Mundrucus e outras nações – Em grande partedomesticados”.

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Conclusão

Acreditamos que a compreensão dos limites e das possibilidadesdos produtos cartográficos pode resultar na constituição destesenquanto recursos de grande valia para o ofício do historiador.Portanto, é necessário primeiramente compreender que atransformação dos processos e das práticas cartográficas constitui-senum problema em si mesmo, o qual, muitas vezes, não correspondeàs intenções do pesquisador. Em segundo lugar, entendemos que aleitura dos mapas deve ser feita através da investigação das estratégiase táticas inerentes à sua composição, as quais incluem tanto oagenciamento das técnicas e das condições da escrita quanto adistribuição e atribuição de tarefas. Por último, entendemos que énecessário investigar a socialidade dessa composição tendo-se emvista que seu sujeito é também um sistema de relações entre os diversosestratos de sua escritura, e que sua escrita deve ser entendida nomesmo sentido.

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Notas

1 Ver Guimarães (1988).2 No caso, Saber e Poder implicam-se mutuamente: não existiria relação de podersem a constituição de um campo correlato de saber, assim como não existiriasaber que não pressupusesse e constituísse relações de poder. Ver Harley (2001d,p.87, 2001e, p.37).3 Em relação à teoria da representação e correlata objetivação da Vontade, verSchopenhauer (2003, cap. 2).4 A partir dos conceitos sugeridos por Derrida (2002, p.221-223) em sua leiturada obra de Freud.

Niemeyer Chart of 1846 and the reading conditions of cartographic materials

Abstract. Niemeyer Chart, printed in 1846, was the first Brazilian General Chartand, through this, we intend to discuss the usage and reading conditions ofcartographic products by historians, aiming at the same time, to define its limitsand possibilities.Keywords: Niemeyer Chart (1846). Cartographic products.

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5 O gênio é entendido, por Schopenhauer, como uma capacidade de conhecimentoinata e que se encontra em diversos graus em todos os homens, o que pressupõeserem-lhe inerentes as habilidades da criatividade e do entendimento. VerSchopenhauer (2003, p. 83-87).6 A respeito da influência dos estilos e da transmissão de padrões na cartografiamanuscrita, ver Marques (1989, p. 87-97).7 Esses dados foram tabulados sobre a descrição pormenorizada do acervo que foirealizada por Cláudio Moreira Bento, pouco antes deste ser confiado ao Arquivodo Exército no Rio de Janeiro. Ver Bento (1985).8 Essa idéia origina-se da relação estabelecida por Schopenhauer entre a música, arealidade e os conceitos abstratos. Ver Schopenhauer (2001, §52).9 Por exemplo, a carta de 1814 da América do Sul. Ver Arrowsmith (1814).10 Procuramos aqui adaptar a idéia de mediador de Abraham Moles (1986, p.12-19), desenvolvida por esse autor para explicar as transformações da representaçãoe de sua operação nas sociedades de consumo.11 Essa distinção pode ser pensada também a partir da teorização de AbrahamMoles (1986, p.15-22), no sentido de que o processo de criação seria correlato àidéia de introdução, invenção e produção do ato de copiar, reproduzir, e que astransformações do século XIX teriam dinamizado a produção, substituindo a criação

por uma cadeia operatória, mas entendendo-se esta como um desdobramento daoperação da representação em vários níveis visando à reprodução em escala e nãonecessariamente como parte de um processo de alienação.12 Essa idéia corresponde aproximadamente ao que Harley denomina de “Silêncios”(Silences): para esse autor, o espaço vazio nos mapas estaria ligado a um discursopolítico e à legitimidade de seu status, enquanto que, em nossa idéia da negação da

inscrição, o “Silêncio” não corresponderia a um vazio, mas a um espaço preenchidopor uma continuação ou um desdobramento daquele discurso. Ver (2001d, p.99-100).13 Arthur Schopenhauer (2001, § 50) identifica a historicidade das “alegorias” e“representações simbólicas” como parte mesmo do problema da compreensão daRepresentação.

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Tradição, identidade nacional

e modernidade

em Joaquim Nabuco

Resumo. A obra de Joaquim Nabuco articula análise política e social, tomando,em uma primeira etapa, o abolicionismo como eixo. Em uma segunda etapa, quetoma como divisor de águas a Abolição e a República, ganha vulto o historiador ememorialista, preocupado com o resgate e preservação de tradições ligadas aoperíodo monárquico. O objetivo do texto é analisar a evolução do pensamento doautor, tomando ambas as fases como parâmetro, bem como sua discussão sobreidentidade nacional, tradição e modernidade.Palavras-chave: Monarquia. Tradição. Modernidade. Política.

*Ricardo Luiz de Souza é Doutorando em História pela UFMG.

Cultura e identidade nacional

Parto de um episódio específico que ajuda a entender opensamento de Joaquim Nabuco: ele saúda o povo por dar vivas àAbolição, em 1886, mas define-o como “camadas espontâneas equase infantis” nas quais bate o “coração brasileiro”, em contraste

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com as correntes plutocráticas que, segundo ele, dominam o Rio deJaneiro (Nabuco, 1949a, p.236). Afloram, nesse trecho, ascontradições do autor: a identidade nacional encarna-se no povo,mas este é definido como quase infantil e, portanto, incapaz de agirautonomamente. A perspectiva de uma sociedade débil e amorfaperante as imposições das elites fundamenta as análises de Nabuco.

A estrutura partidária brasileira comprometia-se irreme-diavelmente devido à virtual inexistência de uma população formadapor cidadãos ativos politicamente que serviriam de fundamentoindispensável à representação partidária: pela ausência de povo. Comisso, o abolicionismo deveria ser um movimento apartidário poruma questão de necessidade. Comprometidos com o status quo, ospartidos seriam para a causa de pouca ou nenhuma valia. Daí anecessidade de passar ao largo das instâncias partidárias.

Tal necessidade deriva do fato de o artificialismo do sistemapartidário decorrer da inexistência de uma opinião pública que osustente; daí a necessidade que os partidos sentem de apoiarem-seno Imperador, para ele fazendo política e dele servindo deinstrumentos (Nabuco, 1949a, p.215). A conclusão decorrente detal constatação é a de que qualquer tentativa de criação de um sistemapartidário autenticamente representativo estará fadada ao fracassoenquanto não existir uma opinião pública por trás desse sistema.Tal conclusão leva a própria ação política do autor, contudo, a umimpasse, uma vez que suas próprias tentativas de reforma carecemde fundamento. Dada a inexistência dessa opinião pública, finda amonarquia, o Exército surge, para Nabuco, como a única instituiçãogenuinamente nacional, neutra e desinteressada politicamente, ouseja, a única instituição capaz de exercer o poder no lugar damonarquia (Nabuco, 1949a, p.70).

Nabuco foi abolicionista, mas foi monarquista também:monarquista e federalista. Em suas palavras: “Acredito ser devantagem para o país que o ensaio da federação, julgo uma fortunapara o país, seja feito sob a forma monárquica” (Nabuco, 1983,p.366), e seu federalismo deve ser pensado no contexto de seu

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abolicionismo, assim como seu monarquismo deve ser pensado nocontexto de seu arraigado tradicionalismo.

Referindo-se à luta norte-americana pela emancipação dosescravos, Rosa Luxemburgo associa o regionalismo à defesa daescravidão, enquanto atribui ao centralismo capitalista a luta pelaabolição (Luxemburgo, 1988, p.90). No Brasil, o processo deu-sede forma invertida e foi, certamente, um dos fatores quecondicionaram a defesa do federalismo feita por Nabuco. Mas essenão foi o único determinante: a distância entre as províncias, suadiversidade de interesses e necessidades e a impossibilidade deimpedir sua absorção pelo Estado, a não ser que fosse dada a elasautonomia absoluta, foram fatores que justificariam, igualmente, aimplementação do sistema no Brasil (Nabuco, 1949a, p.170).

O projeto político de Nabuco previa a compatibilização entremonarquia e federalismo. Definia-a, mesmo, como indispensável àvida política brasileira. Seu projeto, segundo Oliveira Vianna, previanão apenas a descentralização, mas a federação ampla, e tinha comoponto essencial a eletividade dos presidentes provinciais. Mas eraintransigentemente monarquista, diferindo, nesse aspecto, dofederalismo de um Rui Barbosa: “Rui queria a federação, mas eraindiferente à monarquia; Nabuco, ao contrário, idealizava a federaçãocom a monarquia e temia aquela sem esta” (Vianna, 1990, p.45).

Com a abolição, o abolicionista e monarquista torna-se, naspalavras de Nogueira (1984, p.130), apenas monarquista. Apercepção crítica do papel da monarquia transforma-se em apologiadesta. Nabuco sente-se à vontade, por exemplo, para retratar-se, emMinha Formação, como o aristocrata europeizado que nunca deixou,efetivamente, de ser. A análise da identidade nacional serve de base,também, para seu monarquismo. O problema brasileiro não éinstitucional, e sim de identidade: “não são as instituições que nãotem raízes; é o solo que não têm consistência e cujas areias o menorvento revolve... Nenhum terreno pode ser mais próprio do que essepara a cultura da anarquia” (Nabuco, 1990, p.43.5).

A queda da monarquia não se deveu, portanto, a eventuaisfalhas do regime monárquico, mas à inconsistência do Brasil

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enquanto nação, inconsistência essa, contudo, que reclamava aexistência de um regime monárquico. Para Nabuco, “o Brasil quantomais civilizado mais tenderá para a monarquia; quanto mais bárbaro,mais se desinteressará dela” (Nabuco, 1990, p.48).

O monarquismo de Nabuco deriva, assim, de uma questãoidentitária. Referindo-se às suas convicções políticas à época daabolição, ele afirma: “Neste último período a noção de monarquiapara mim era esta: a tradição nacional posta ao serviço da criação dopovo, o vasto inorganismo que só em futuras gerações tomará formae desenvolverá vida” (Nabuco, 1949b, p.54). O povo brasileiro aindanão existia, nem existiria tão cedo. Não tínhamos, ainda, umaidentidade nacional, e a função da monarquia seria a de operar comouma tradição brasileira capaz de servir como base para a gestaçãodessa identidade.

Cultura e identidade nacional são, igualmente, questõesindissociáveis na obra de Nabuco, e, nela, a cultura é uma questãosempre contraditória. O autor define-a como expressão danacionalidade: “a alma do escritor é feita em grande parte de sualíngua” (Nabuco, 1949c, p.135), e Nabuco foi, como intuiu Tristãode Athayde, uma expressão literária dedicada à política: “Ele veiocomo uma expressão literária palpável e viva, dessa longa inspiraçãodesperdiçada para as letras entre as paredes das duas Câmaras”(Athayde, 1990, p.241). Ao mesmo tempo, Nabuco reconhece suaeuropeização: “não revelo nenhum segredo, dizendo queinsensivelmente a minha frase é uma tradução livre, e que nadaseria mais fácil do que vertê-la outra vez para o francês do qual elaprocede” (Nabuco, s.d., p.77). Nesse sentido, na obra de um viajantefrancês contemporâneo de Nabuco, encontramos uma descrição queparece referir-se a ele: “Há nesse país homens de cultura requintada,donos de uma ciência sadia e profunda; seu espírito é filho do espíritofrancês; seus mestres são nossos mestres, nossos sábios, e elesreivindicam com orgulho tal parentesco intelectual” (Leclerc, 1942,p.161).

Nabuco não demonstra ainda, na construção do mosaico deidéias algumas vezes pouco compatíveis que forma a sua obra, a

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preocupação tão comum a seus contemporâneos de manter-se a parda última moda européia, mesmo que tal moda tivesse pouco ounada a ver com a realidade brasileira e nem fosse tão última assim.Apesar disso, seu pensamento é assumidamente europeizado. Nessesentido, Nabuco é antiquado porque sua sensibilidade é antiquada,e não se tornou mais de bom tom a partir dos padrões nacionalistasafinal imperantes na cultura brasileira. Como acentua Mello,

Boa parte do interesse de Minha Formação consiste

precisamente em exprimir a antiga sensibilidade

brasileira da Monarquia e da República Velha,

repudiada pela sua sucessora, a cultura que se tornou

hegemônica a partir dos anos vinte e trinta do século

XX e que atualmente ainda é a nossa, embora caiba

indagar por quanto tempo ainda (Mello, 2002,

p.234).

André Rebouças (1938, p.185) define a França como “minhapátria científica”, assim como Nabuco menciona “a construçãofrancesa do meu espírito” (Nabuco, s/d, p.56): a formação de ambosfoi essencialmente européia e, neste ponto, o autor define-se comorepresentativo da elite brasileira ou, pelo menos, de seu imaginário:

Nós, brasileiros, o mesmo pode-se dizer dos outros

povos americanos, pertencemos à América pelo

sedimento novo, flutuante, do nosso espírito, e à

Europa, por suas camadas estratificadas. Desde que

temos a menor cultura, começa o predomínio destas

sobre aquele. A nossa imaginação não pode deixar de

ser européia (Nabuco, s/d, p.47).

323

Quando faz tal afirmação, entretanto, Nabuco está descrevendoo imaginário da elite a qual pertenceu, imaginário que não era, porexemplo, o de Sílvio Romero e Euclides da Cunha, autoresprofundamente nacionalistas. Para ele, o brasileiro não tem umamentalidade nacional, sua mentalidade é parisiense (Nabuco, 1949b,p.44), mas a atração exercida pela Europa sobre nossos homens de

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letras é definida como uma atração perigosa (Nabuco, 1949a, p.177).Não é à-toa, assim, que a habilidade com a qual ele se expressa emfrancês é reconhecida por Émile Faguet, um escritor francêscontemporâneo de Nabuco, citado por Fréches:

Mencionando tal episódio, Freyre define o livro de Nabucocomo um “livro do mil e novecentos brasileiro que marcou umacomo oposição, involuntária mas significativa, a Os Sertões” (Freyre,1959, v. II, p.640.1).

O Euclides nacionalista e o Nabuco europeizado: essa dualidadetornar-se-ia um lugar comum na cultura brasileira, e Nabuco seria,a partir dela, transformado em representante de uma característicacultural que Belo definiria, nos anos, 30, referindo-se ao autor:“Vivemos com os olhos eternamente alongados sobre o Atlântico,numa nostalgia incurável e cujas raízes parecem mergulhadas nopassado milenário de alguns países da Europa ocidental,principalmente a França” (Belo, 1935, p.78).

É a partir dessa encruzilhada entre nacionalismo e europeísmoque Nabuco busca definir a identidade nacional. Segundo ele, “nofuturo, só uma operação nos poderá salvar – à custa de nossaidentidade nacional – isto é, a transfusão do sangue puro e oxigenadode uma raça livre” (Nabuco, 1977, p.60). Para redimir-se dasconseqüências da escravidão, o Brasil deveria abandonar sua própriaidentidade nacional, contaminada por aquela. A salvação nacionalestaria, portanto, na imigração. Nabuco postula “um país onde todossejam livres; onde, atraída pela franqueza das nossas instituições epela liberdade do nosso regímen, a imigração européia traga sem

324

Na verdade, teremos a agradável surpresa de descobrir

um estrangeiro que maneja nossa língua com

facilidade, habilidade, vigor e elegância. Quase seria

preciso remontar ao século XVIII para encontrar um

escritor não francês capaz de se exprimir com esse

virtuosismo (Fréches, 1969, p.117).

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Tradição, identidade nacional e modernidade em Joaquim Nabuco

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cessar, para os trópicos uma corrente de sangue caucásico, vivaz,enérgico e sadio” (Nabuco, 1977, p.202).

Segundo Tocqueville (1977, p.153), “é um fato constante que,hoje em dia, nos Estados Unidos, os homens mais notáveis raramentesão chamados às funções públicas, e fica-se obrigado a reconhecerque isso tem sido assim na medida em que a democracia ultrapassoutodos os seus antigos limites”. A análise de Nabuco repete a conclusãode Tocqueville, quando ele afirma: “A consciência pública americanaé muito inferior à privada, a moral do Estado à moral da família”(Nabuco, s/d, p.173). Nabuco, de fato, mantém-se infenso àinfluência norte-americana e ele confessa que, mesmo em NovaIorque, se mantinha sob a influência européia, conservando-se alheioà influência americana (Nabuco, s/d, p.167). A cultura superior nãonecessita, segundo ele, de nenhum contingente americano, e apolítica, ali, é vista por ele com desprezo.

Já em relação à Europa, ocorre uma inversão completa. Nabucodedica uma boa parte de Minha formação a descrever suas relaçõescom o pensamento europeu e, basicamente, com os pensamentosfrancês e inglês, o que o leva a divagar: “Às vezes me distraio a pensarque povo eu salvaria, podendo, se a humanidade se devesse reduzira um só... Entre a França e a Inglaterra, fico sempre incerto” (Nabuco,s/d, p.106).

Elite e tradição

Em que pese o grau de autonomia inerente à ação humana,toda ação é, em maior ou menor intensidade, condicionada pelosistema social. Popper busca explicar tal processo: “não podemosimpor nossos interesses ao sistema social; em vez disso, o sistema nos

impõe o que somos levados a acreditar como sendo os nossos interesses.

Faz isso forçando-nos a agir de acordo com o nosso interesse declasse” (Popper, 1974, v. 2, p.121). Partir desse axioma de Popperajuda-nos a compreender como Nabuco descreve a elite pernambucana,

da qual é descendente e com a qual se relaciona, e a entender como ele

se posiciona perante o que considera serem suas tradições.

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Nabuco esmera-se na descrição de uma elite cujos valores, paraele, referem-se a uma época na qual os padrões dominantes sãoincompatíveis com os padrões capitalistas, tendo o autor idealizado-os a partir dessa incompatibilidade. Defendendo a existência históricade tais valores, Nabuco estabelece uma dualidade que será retomada,entre outros autores, por Florestan Fernandes, ao estabelecer umadicotomia entre o fazendeiro interessado primordialmente namanutenção do status senhorial e o fazendeiro cujo comportamentopauta-se pelo interesse na obtenção de lucros (Fernandes, 1975,p.111).

Tais valores tendem, ainda, ao desaparecimento; sãoantiquados, inviáveis, e essa constatação, em Nabuco, é tingida deuma nostalgia melancólica. Realçando o acento evidentementenostálgico do autor, Scwharz afirma que “Nabuco buscava decantara parte boa da experiência brasileira, que em seu argumentoprosperava quando a economia brasileira se apartava do espíritocomercial” (Schwarz, 1997, p.137).

Nabuco é representante de uma elite, e ele a defende e proclamasuas virtudes, virtudes que são as da fidalguia pernambucana, a qual,como ele escreve, “tinha um pejo invencível em matérias de dinheiro:como que pegava nas cédulas nas pontas dos dedos” (Nabuco, 1936,v. I, p.319). Essas palavras seriam repetidas por Oliveira Vianna emsua descrição da mentalidade aristocrática:

O nobre o considerava sujo; as suas mãos não estariam

limpas se tocassem no dinheiro, se se maculassem com

o seu azinhavre; não fazer passar por elas nada que

representasse dinheiro ou proveito expresso ou

concretizado nele – eis o timbre da verdadeira nobreza

(Vianna, 1958, p.135).

326

Ao elogio da fidalguia pernambucana, pode ser contraposta acrítica à corrupção republicana, expressa na correspondência deNabuco a partir da Proclamação. Em 1891, ele já afirma: “O Brasil,ou melhor, o Rio de Janeiro, está como a Califórnia, quando se

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descobriu o ouro, ou a África Austral com a descoberta dosdiamantes. É uma grande feira a que afluem os aventureiros domundo inteiro para enriquecerem de repente” (Nabuco, 1949d, v.I, p.198).

No ano seguinte, ao retornar ao Brasil, ele retoma o tema dadecadência: “Vou assim assistir da própria cena ao descalabroprogressivo do nosso país... No Brasil conservar-me-ei afastado detudo como no estrangeiro” (Nabuco, 1949d, v. I, p.214). Adecadência, por sua vez, gera a inércia forçada: “Não vejo em queempregar atividade e esforço, estando tudo tão moralmenteapodrecido” (Nabuco, 1949d, v. I, p.223). A imagem recorrentequando Nabuco refere-se à República é a de apodrecimento. Em1895, ele retorna a ela: “A situação aqui é apática, triste, desanimada,expressiva da ansiedade, ou antes da incerteza, da indiferença, dovazio, que há em todos os espíritos, em todos os corações. Em umapalavra apodrecemos” (Nabuco, 1949d, v. I, p.255). Finalmente,em 1897, novamente aparece a imagem do declínio: “Eis ao quereduziram o nosso país. De um povo honesto e sério que éramostiraram essa escória sanguinária e epiléptica que hoje nos governa,dominando as ruas e impondo ao governo” (Nabuco, 1949d, v. I,p.274). No Brasil republicano, os valores da fidalguia pernambucanaperderam-se definitivamente; tornaram-se anacrônicos.

Tal perda, contudo, tem origem em um tempo bem maisremoto. Dessa forma, narrando a chegada de seu pai à Câmara, em1843, Nabuco descreve um processo de transição no qual valoresmorais e sociais vigentes no Primeiro Reinado desapareciam outornavam-se obsoletos em contato com uma sociedade cada vez maismercantilizada, sendo tal desaparecimento por ele narrado em tomde evidente desgosto. Segundo Nabuco,

327

Uma nova camada social alastrava tudo, o próprio

Paço; as antigas famílias, o resto da sociedade que se

reunia em torno de Pedro I, agora tratavam de ocultar

do melhor modo que podiam sua irremediável

decadência. Aquela sociedade, em uma palavra,

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desaparecera, com seus hábitos, sua etiqueta, sua

educação, seus princípios e os que figuravam agora

no fastígio eram os novos políticos saídos da revolução

ou os comerciantes enriquecidos. Tudo o mais recuava

para o segundo plano: a política e o dinheiro eram as

duas nobrezas reconhecidas, as duas rodas do carro

social (Nabuco, 1936, v. I, p.38).

Nabuco de Araújo era de outro tempo e de outra estirpe. Eraum aristocrata pernambucano e, nesse contexto, seu grande méritofoi exatamente o de pertencer a um outro tempo: seus valores eramoutros, alheios ao mercantilismo de sua época:

O velho Nabuco possuía com efeito os dois grandes

temores, o de Deus e o da opinião, que são a única

salvaguarda da vida. A hierarquia consolidara-se nele

como um sentimento do qual todos os outros

recebiam o calor e por isto a vida para ele era o respeito;

as satisfações que a prática desse sentimento pode dar

foram o seu maior gozo (Nabuco, 1936, v. I, p.91).

Aqueles eram, portanto, valores de outros tempos e, com odesaparecimento dos valores próprios à monarquia, desapareceramtambém, para Nabuco, o que Resende de Carvalho chama decondições de formação de uma personalidade exemplar (Carvalho,1998, p.46). Representante dessa fidalguia e de seus valores e, aomesmo tempo, defensor da modernização, Nabuco propugna, emníveis cultural e econômico, valores contraditórios. Mas Nabuco deAraújo foi advogado, além de político, fato que seu biógrafomenciona quase de relance, por não condizer com a imagemidealizada de um político absolutamente alheio a valores materiaisque é dele traçada. Como acentua Coelho,

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Nabuco dedica umas poucas páginas à atividade

advocatícia do pai (mais precisamente 16 páginas

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numa obra em quatro volumes), assim mesmo para

defendê-lo de acusações ou insinuações de compor-

tamento pouco ético. Seja como for, talvez sua perc-

epção da advocacia refletisse a opinião do pai que

declarara ter exercido a profissão apenas para poder

pagar dívidas (Coelho, 1999, p.174).

Eram esses, de fato, os valores da elite pernambucana? Outrasperspectivas são menos apologéticas. A aparente benevolência dosenhor de engenho nordestino é, para Eisenberg, um conceito semforos de realidade criado por essa própria elite. Segundo o autor, adefesa do trabalho compulsório feita repetidas vezes pelos senhoresde engenho, pouco antes da abolição, exprimiu, antes de tudo, adificuldade destes em adaptarem-se às relações capitalistas baseadasno trabalho livre. Ademais, como Nabuco e, décadas mais tarde,Gilberto Freyre querem fazer crer, a menor predominância de relaçõescapitalistas verificada nessa região não correspondeu a uma maiorsuavidade no relacionamento entre senhor e escravo (Eisenberg,1977, p.187-192.213). A propósito, Freyre sente-se plenamenteidentificado com Nabuco, definindo o papel histórico por eledesempenhado como “o papel de revolucionário, conservando”(Freyre, 1966, p.89). Vindo de Freyre, não pode haver elogio maior.

Acrescente-se que naquela sociedade, como tende a ocorrerem sociedades escravistas, o status positivo é proporcionado não pelaposse de capital, mas pela posse de escravos. Cria-se uma ideologiaanticapitalista na qual o trabalho converte-se em elementodesvalorizado. Mantém-se a ética do fidalgo.

Abolição e Proclamação da República são divisores de água navida e no pensamento de Nabuco. Mantendo-se fiel ao monar-quismo, ao mesmo tempo que rompe com o movimento monar-quista ou é abandonado por ele ao aderir ao governo republicano,seu pensamento sofre uma nítida inflexão, tornando-se cada vezmais conservador. Nesse momento, Nabuco torna-se um ciosodefensor da necessidade de se preservarem as tradições, demolindo-se apenas o que seja prejudicial e mantendo-se mesmo

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o que seja inútil. Ele define, a partir daí, seu modelo de transformaçãosocial: “Nenhum explosivo é legítimo, porque a ação não pode serde antemão conhecida; é preciso demolir a nível e compasso,retirando pedra por pedra, como foram colocadas” (Nabuco, s/d,p.140).

A questão a definir aqui é se Nabuco tornou-se conservadorcom o passar do tempo, ou se ele foi, desde sempre, um nostálgicode tradições passadas, forçado a adotar uma postura radical devido ànecessidade de lutar pela abolição. Porém, concluída a luta, voltou aseu conservadorismo inicial, representando seu pensamento e açãonos anos 80, durante o abolicionismo, um hiato em sua carreira,como acentua Nogueira (1984, p.113). Seu reformismo radical casa-se, um tanto paradoxalmente, com seu conservadorismo inato, deforma que transformações revolucionárias ou um processo demudanças que contasse com a participação popular e ameaçassecolocar em risco a ordem nacional são sempre rejeitados. Trata-sede uma mistura de conservadorismo e luta por reformas, enfim,definida com precisão por Vianna Filho (1949, p.25):

Da mesma forma, portanto, como o abolicionismo de Nabucoencontra limites por ele mesmo definidos na recusa de envolverescravos no movimento, por temer uma rebelião de conseqüênciasimprevisíveis, seu monarquismo pauta-se pela intransigente recusade perturbar a ordem estabelecida. Seus princípios e sentimentosmonarquistas permanecem, apenas, princípios e sentimentos. Nãoevoluem para a prática transformadora, pela recusa de Nabuco emcorroborar qualquer transformação política revolucionária.

330

Numa palavra, a ânsia de reforma, tão viva e ardente

em Nabuco, era refreada pela idéia ou pelo sentimento

duma evolução natural, progressiva, e que não abrisse

oportunidade a subversões de conseqüências mais ou

menos.

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Tradição, identidade nacional e modernidade em Joaquim Nabuco

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O tradicionalismo de Nabuco não remete, por outro lado, aolusitanismo que foi, por exemplo, o de Varnhagen. Se não chega aantecipar o antilusitanismo ferrenho de um Manoel Bonfim, Nabucotampouco é simpático à colonização portuguesa, chegando aacentuar, em discurso pronunciado em 1880, as liberdades deconsciência e de comércio que os holandeses trouxeram ao Brasil eque teriam prevalecido em caso de sua vitória. Além disso, comoacentua Mello, se sua crítica toma como base as conseqüências doescravismo e não da colonização portuguesa, esta carrega aresponsabilidade de ter introduzido o escravo no Brasil (Mello, 1997,p.395).

O monarquismo de Nabuco nunca será, de qualquer forma,militante como o é seu abolicionismo. Durante a Revolta da Armada,em 1893, Nabuco escreve uma série de artigos francamente favoráveisaos revoltosos e críticos em relação a Floriano (Hanner, 1975, p.111),contudo não indo além disso, apesar de ele ver, no jacobinismoflorianista, um modismo passageiro mas perigoso, por desprezar asinstituições liberais (Queiroz, 1986, p.166). Nabuco será, então,mais apologético da monarquia que crítico da república. Talmonarquismo será publicista a princípio, historiográfico depois(quando escreve Um Estadista do Império, a biografia de seu pai e,de certa forma, do próprio Império) e finalmente memorialista(quando escreve Minha Formação).

O tradicionalismo do autor reflete-se, ainda, em sua formaçãocultural. Se ele foi um reformista em termos sociais, ele foi tambémum conservador no que tange à cultura. Nabuco repudia osurgimento do mercado cultural e proclama os escritores a darem ascostas a esse negócio. Para ele, o mercado de livros matou a obraliterária. Desde que as letras tornaram-se fonte de renda, era forçosotransformar-se o literato também em industrial, e a profissão deescritor é, talvez, a que mais deforma o talento; sua obra torna-seassim odiosa como a tarefa do escravo (Nabuco, 1949b, p.111.3).

Gilberto Freyre (1960, v. I, p.53) filia Nabuco ao que chamade “tradição recifense de contato acadêmico e principalmente extra-acadêmico de intelectuais, homens públicos, e estudantes mais

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inquietos com idéias européias ou anglo e hispano-americanas dereforma social”. Com isso, visa explicar, como deserção, oengajamento de um aristocrata em todo um processo de reformassociais que colocavam em risco a sobrevivência da própria elite daqual Nabuco era filho. Mas será possível falarmos em deserção, seNabuco permanece fiel a valores por ele identificados comoespecíficos dessa elite? Não seria mais correto falarmos em umrepresentante dessa elite lúcido o suficiente para perceber que ospadrões de dominação social baseados na escravidão tornaram-seirremediavelmente anacrônicos, e que o inevitável processo demodernização a ser seguido implicava a adoção do trabalho livre? Adominação por parte de tais elites, de resto, em momento algum éposta em questão por Nabuco; trata-se, antes, de modernizá-la.

Tais vinculações, contudo, são complexas. Se Nabuco é filho,como Freyre o seria, das elites patriarcais pernambucanas, éimportante salientar, por outro lado, que suas bases eleitoraispertenciam ao proletariado recifense. Como acentua Chacon (1981,p.129), “o próprio Nabuco era eleito, quase sempre, pelacircunscrição do bairro do São José, habitado por artesãos livres ebaixa classe média: um típico proletarismo da época”. A integraçãoentre Nabuco e seu eleitorado não foi, contudo, um modelo deharmonia, tendo sido ele quase vaiado nas ruas do Recife, “onde lhesentiam talvez aroma de aristocrata desgarrado entre a plebe” (Freyre,1937, p.270), o que ele, de fato, era.

Já as elites pernambucanas dividem-se quanto à maneira deavaliar a trajetória política de Nabuco. Fica como exemplo um relatode Júlio Bello, filho de família tradicional e futuro senhor deengenho. No internato no qual morava quando adolescente, toma-se conhecimento de um triunfo de Nabuco. Os filhos das famíliasconservadoras vestem-se de luto; os liberais e abolicionistas exultam:

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Eu era, naquela época distante, um pirralho de 13

anos, que me dava por snobismo ao luxo de ser

republicano. De família tradicionalmente liberal, gozei

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Nabuco foi, sim, tradicionalista. Seu apego à tradição ficapatente em um episódio no qual um deputado republicano mineirorecusa-se a proferir o juramento católico regimental para tomar posse,e ele propõe: “Ao menos que ele jure defender a religião do Estado.Ele não é monarquista mas é católico. Assim poderá entrar naCâmara” (Dornas Filho, 1936, p.56).

A sociedade brasileira, porém, não criou, segundo ele, umatradição que a fundamentasse. Aqui, a família carece de unidade, e“a terra não tem valor moral como laço de união social”. Não temostradições, não a preservamos. Diferimos, por exemplo, da Alemanha:“O tempo é noção secundária na vida de um povo que ainda, comoa Alemanha, não rompeu com o seu passado” (Nabuco, 1983, p.392).Espírito tradicionalista, Nabuco lamenta a ausência de laçostradicionais a consolidarem a formação social brasileira.

Para compreendermos a questão da tradição no pensamentode Nabuco, como de resto sua própria trajetória pessoal, política eintelectual, é fundamental situarmos as diferentes etapas a partirdas quais ele vivencia o sentimento religioso. Villaça (1975, p.67)sintetiza a trajetória religiosa de Nabuco: “A evolução espiritual deJoaquim Nabuco passou por três fases: uma infância católica, umajuventude cética, a conversão ao catolicismo em plena maturidade,quarenta e três anos”. O próprio Nabuco data sua conversão, emcarta escrita em 1893: “Nestes últimos anos fez-se em mim umaperfeita evolução católica e a estou escrevendo, ainda que não parao público” (Nabuco, 1949d, v. I, p.221). Oliveira Lima, que oconheceu bem, define a religiosidade de Nabuco como antes deforma que de essência (Lima, 1937, p.26). De fato, um certoceticismo permanece latente quando Nabuco (1949b, p.195) afirma:“A religião pode ser uma grande ilusão, mas é a ilusão da humanidadetoda, ao passo que a irreligião, quando seja a verdade, é a verdade depoucos”.

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no íntimo a vitória do admirável paladino

abolicionista (Bello, 1944, p.69).

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Em 1879, Nabuco é anticlerical e afirma que “a Igreja temsido a mais constante perseguidora do espírito de liberdade, adominadora das consciências, até que se tornou inimigairreconciliável da expansão científica e da liberdade intelectual nonosso século” (Nabuco, 1983, p.123). A Igreja seria, ainda, umentrave – o principal – à modernização. É devido à sua influência,assevera Nabuco, que as civilizações latinas são incapazes deacompanhar as civilizações anglo-saxônicas (ibid., p.130).

Ainda no mesmo ano – durante a Questão Religiosa, portanto– Nabuco ironiza as posições assumidas pela Igreja a partir dacondenação de alguns de seus bispos: “Sendo assim, com a prisão,os dignos prelados nada perderam e ganharam a fama de mártires,que no futuro lhes dará direito à canonização” (Nabuco, 1983,p.211). Em discurso pronunciado no ano seguinte, o autor estendesua crítica ao catolicismo, definindo a religião católica como aexploração de uma política tendo como pretexto o sentimentoreligioso (ibid., p.240). Finalmente, o ceticismo de Nabuco junta-se à crítica que faz da Igreja, denunciada como conivente no quetange à questão escrava. Para ele, “nem os bispos, nem os vigários,nem os confessores, estranham o mercado de entes humanos; asBulas que o condenam são hoje obsoletas” (Nabuco, 1983, p.167).Já em sua autobiografia – balanço de sua trajetória, definição denovos ideais e acerto de contas com seu passado –, Nabuco nãoapenas enfatiza sua reconversão ao catolicismo, como renega seupassado distante da Igreja:

334

Do que preciso fazer renúncia, em favor das traças

que o consumiram, é de tudo o que nesses opúsculos

escrevi em espírito de antagonismo à religião, com a

mais soberba incompreensão de seu papel e da

necessidade, superior a qualquer outra, de aumentar

a sua influência, a sua ação formativa, reparadora, em

todo o caso, consoladora, em nossa vida pública e em

nossos costumes nacionais, no fundo transmissível da

sociedade (Nabuco, s/d, p.36).

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Descrevendo ainda os sentimentos religiosos de Nabuco deAraújo e sua ação política durante a Questão Religiosa, ele afirma:

Nabuco era um verdadeiro católico, um estadista

convencido da necessidade de amparar e desenvolver

o sentimento religioso, como o meio único de

regeneração e aperfeiçoamento da sociedade, a base

permanente de todas as suas instituições e relações

morais, de justiça, de liberdade e de direito (Nabuco,

1936, vol. II, p.271).

Descrevendo seu pai, de certa forma, é a si próprio que Nabucodescreve; são suas convicções de convertido ao catolicismo que eleexprime. Mesmo se visse o catolicismo como obstáculo àmodernidade, nesta declaração de princípios feita de modoenviesado, o empecilho desaparece: “Basta dizer que ele nãocompreendia sociedade sem moral, moral sem Igreja, e que não viano catolicismo um obstáculo, mas a condição do progresso humano”(Nabuco, 1936, v. II, p.277). Modernidade e religião não podem,enfim, caminhar separadas. Nesse sentido, Nabuco faz o elogio daação jesuítica no Brasil e ressalta a importância da religião comoguardiã das tradições e do caráter moral brasileiro, defendendo-anestes termos:

Cada dia o papel da religião cristã, na sua forma

unitária, que é o catolicismo, parece maior e mais

necessário... A ciência não será jamais o culto senão

de uma pequena parcela da humanidade. As massas

se dividirão entre dois cultos: o de Deus e o do

dinheiro (Nabuco, 1949d, v. I, p.41.8).

Na defesa da religião, Nabuco mostra, assim, seu apego àstradições, sendo sua conversão fundamental para compreendermosa evolução de seu pensamento. Esse trecho deixa claro não apenas aimportância essencial da religião na última etapa de sua vida e desua obra, como a própria importância que o autor atribui, a partir

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daí, ao papel a ser desempenhado pela Igreja na vida brasileira: papelformativo, consolidador dos costumes, das tradições. Nabuco, maisque nunca, é tradicionalista.

Tradicionalismo, modernidade e abolicionismo são questõesentrelaçadas na obra de Nabuco. Tratava-se de libertar o escravo daescravidão e o Brasil do escravo, para que a tradição pudesse sermantida a salvo da corrupção introduzida pelo cativo, e amodernidade pudesse, enfim, se instalar livre de sua presença.

Abolicionismo e monarquismo

Escrevendo em 1900, Nabuco faz um balanço das análises atéentão efetuadas sobre o abolicionismo, apontando dois pontos devista contrastantes: um que vê no abolicionismo “um movimentopopular de tendências revolucionárias, que acabou por forçar ogoverno e a dinastia”, e outro que realça o papel decisivo desem-penhado pela própria Coroa, por ter ela assinado as leis de 1871(em um momento, segundo ele, em que não havia nenhuma agitaçãonesse sentido) e de 1888 (Nabuco, 1949c, p.247.9). Sua linhainterpretativa filia-se, claramente, à segunda tendência, e temos umexemplo disso quando Nabuco define o discurso feito por Pedro IIno Conselho de Estado como o fator de criação da questão servil,até então não posta em discussão (Nabuco, 1936, v. II, p.24).

Enquanto dura a luta pela abolição, contudo, Nabuco criticaa atitude tíbia adotada pela Monarquia em frente à questão. Talcrítica incide em três pontos que o autor sintetiza em carta aPatrocínio: nunca cumpriu a lei de 1831, que proibia o tráficonegreiro; deixou revogar a Lei do Ventre Livre; e chamou ao poderos conservadores em meio à luta emancipacionista (Nabuco, 1949d,v. I, p.149). O Nabuco abolicionista atribui, à monarquia, a maiorparte do que até então foi feito em termos de esforços abolicionistas,para em seguida acrescentar: “mas o que não se tem feito, podendo-se fazer mas com vantagem, deve ser levado à mesma conta” (Nabuco,1949a, p.100). Na contabilidade do feito e do por fazer, o resultadofinal, conclui Nabuco, é amplamente desfavorável ao Imperador:

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O que se tem feito por lei é devido principalmente a

ele, mas o que a lei tem feito é muito pouco, é

realmente nada, quando vemos que esse é o resultado

de quarenta e seis anos de reinado e comparamos o

que se salvou do naufrágio com o que se perdeu e se

está perdendo! (Nabuco, 1949a, p.244).

337

[...] todos os homens de governo entre nós, todos os

depositários de uma parcela que fosse de autoridade,

durante o período da escravidão, concorreram, direta

ou indiretamente, para sustentar uma tirania pérfida,

inquisitorial, torturante.

Pedro II é diretamente responsabilizado pela reação conser-vadora que se estruturou nos anos 80, a qual teria tido, nele, seuidealizador (Nabuco, 1949a, p.257). A crítica de Nabuco faz eco,enfim, à então imagem corrente de Pedro II: a de um monarca maispreocupado com os estudos, aos quais se entrega com o ardor e aimperícia de um diletante – a astronomia, por exemplo –, que comos mais urgentes problemas nacionais. Nabuco desfere uma duracrítica ao Imperador, lembrando que “o que ele fez é nada ao ladodo que ele podia ter feito, se a observação das senzalas lhe causassetanto interesse como, por exemplo, a contemplação do céu” (Nabuco,1949a, p.252). Esse é um Nabuco, portanto, muito diferente donostálgico e reverente monarquista que surgirá após a Proclamação.

Crítico de Pedro II durante todo o processo abolicionista,Nabuco vê a monarquia com outros olhos após seu fim, quando elese decide a escrever a história do regime tomando, como ângulo, avida de seu pai. A monarquia foi democrática, afirma ele: “entre ademocracia e a monarquia, no Brasil, houve por vezes desinteligênciase rupturas, mas nunca verdadeiro antagonismo” (Nabuco, 1936, v.I, p.60). Mesmo a responsabilidade pessoal do Imperador pareceesvanecer-se, diluída em uma culpa compartilhada por todos oshomens públicos. Segundo Nabuco (1936, v. I, p.186),

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A maneira como Nabuco vê e analisa a atuação do PoderModerador muda radicalmente. Em 1883, ele assim o define:

Autônomo, só há um poder, entre nós, o poder

irresponsável; só esse tem certeza do dia seguinte; só

esse representa a permanência da tradição nacional.

Os ministros não são mais que as encarnações

secundárias, e às vezes grotescas, dessa entidade

superior (Nabuco, 1983, p.171).

Vinte anos depois, a conclusão é oposta:

A verdade é que o Imperador nunca quis fazer de seus

ministros instrumentos; para isto seria preciso que

ele quisesse governar por si, o que ele não podia fazer...

Não os queria soberbos, não os conservaria servis

(Nabuco, 1936, v. I, p.249)

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Nabuco atribui a Pedro II, em síntese, o papel histórico desuperintendente a traçar as linhas gerais – utilizando, inclusive, talexpressão –, deixando a administração por conta dos ministros. Nãose trata, aqui, de entrar no mérito de qual foi o papel desempenhadopelo Imperador, mas de constatar a mudança evidente no perfiltraçado por Nabuco, passando da crítica à admiração. Os defeitosestruturais do sistema político imperial não derivam da vontade edas atitudes de Pedro II, sendo ele, pelo contrário, “o mais estrênuoe sincero apologista que a liberdade e a pureza das eleições teve emseu reinado”. Foram os partidos que deturparam tudo:

Eram os vícios, a intolerância, a cobiça dos próprios

partidos, nenhum dos quais deixava ao adversário na

legislatura um só lugar que lhe pudessem tomar pela

fraude, pela violência, pela corrupção, o que tornava

a eleição um simulacro, e portanto definitiva, e não

simplesmente interlocutória, a sentença da dissolução

(Nabuco, 1936, v. II, p.93).

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Tradição, identidade nacional e modernidade em Joaquim Nabuco

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Ele próprio um liberal, Nabuco ressalta a inconsistênciadoutrinária dos partidos imperiais, sempre prontos a seguirempolíticas pouco ou nada condizentes com seus princípios partidários:

Um dos fatores que inviabilizariam a adoção do regimedemocrático, no Brasil, seria o personalismo imperante na atividadepolítica, o que Nabuco constata em 1886, ao afirmar: “a adesão dospartidários no Brasil não é a idéias, mas a homens” (Nabuco, 1949a,p.189). A monarquia brasileira representaria, então, o ápice dopersonalismo político, uma vez que “todo o nosso sistema de governoassenta sobre a vontade de um só homem, cuja inteligência é o limiteda nossa vida nacional” (Nabuco, 1949a, p.223). Caberia aoliberalismo criar mecanismos de atuação que se situassem além davontade e dos limites impostos pelo Poder Moderador. Só assimliberalismo e abolicionismo poderiam se fundir, e só assim oliberalismo brasileiro teria justificada sua existência.

Nabuco sempre lutou pela democratização da vida políticabrasileira, servindo de exemplo as críticas feitas por ele à Lei Saraiva,promulgada em 1881, que restringia drasticamente o direito de votoa partir de critérios ligados à riqueza e profissão, fazendo desaparecercontingentes inteiros de eleitores. Nesse momento, lembra Rodrigues(1982, p.157), Nabuco afirma não conhecer “nenhum título nohomem de dinheiro que o torne melhor do que qualquer outrocidadão brasileiro para se fazer representar no Parlamento”, sendoseu objetivo a democratização da vida partidária. Referindo-se aoautor, Prado (1999, p.261) salienta: “A reforma partidária queadvogava objetivava a constituição de um partido popular,comprometido com o povo e com as reformas sociais”.

A monarquia constitucional, tal como existente na Inglaterraé, para Nabuco, o mais democrático dos regimes, por manter o

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Não era a qualificação de conservador que impediria

um desses partidos de oferecer-se para as inovações as

mais ousadas, como não era o de liberal que tolheria

o outro de secundar as medidas as mais autoritárias

(Nabuco, 1936, v. II, p.117).

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governo sempre nas mãos da representação nacional, enquanto que,em uma república como a americana, o povo limita-se a escolherseus representantes. Conclui ele: “Comparando os dois governos, onorte-americano ficou-me parecendo um relógio que marca as horasda opinião, o inglês, um relógio que marca até os segundos” (Nabuco,1949c, p.28). A descrição que Nabuco faz do gabinete liderado porParaná, em 1850, é fundamental para compreendermos seupensamento político:

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A autoridade sente-se moralmente responsável; o

ministro não é um déspota que possa levar de rojo

câmaras e partido, acima deles está a Coroa, está

opinião de seus pares, estão os princípios geralmente

aceitos, está o espírito de moderação e a rotina dos

precedentes (Nabuco, 1936, v. I, p.257).

O liberalismo de Nabuco é, finalmente, definido de formacomparativa e com precisão por Oliveira Vianna, que vê, em JoaquimNabuco e em Rui Barbosa, representantes exemplares do liberalismobrasileiro às vésperas da proclamação da República:

Rui e Nabuco, um e outro exprimiam perfeitamente

o estado do pensamento liberal do país, no período

imediatamente precursor da queda do velho regime –

e que era: ou de simpatia, ou de indiferença pela

Monarquia; mas, não, nunca, de crença no regime

contrário – no regime republicano (Vianna, 1990,

p.94).

O monarquismo de Nabuco – e, concomitantemente, seu anti-republicanismo – é, ainda, de fundo moral. Diferente da República,a Monarquia deriva sua legitimidade – e sua superioridade – datradição e da moral: “O respeito à dignidade da nação, o desejo devê-la altamente reputada no mundo, era natural na monarquia, queera o governo pela força moral somente” (Nabuco, 1937, p.180).

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A opinião pública é o fundamento da atividade política, e foiexatamente a construção desse fundamento que a escravidãoinviabilizou. Segundo Nabuco, “não há, com a escravidão, essa forçapoderosa chamada opinião pública, ao mesmo tempo alavanca e oponto de apoio das individualidades que representam o que há demais adiantado no país” (Nabuco, 1977, p.170). Com isso, a vidapolítica é mutilada, e o Poder Moderador reina absoluto e semcontrastes.

Conforme Nabuco, “antes de tudo, o Reinado é do Impe-rador... opor-se a ele, aos seus planos, à sua política, era renunciarao poder” (Nabuco, 1936, v. II, p.374). O personalismo que aproeminência do Poder Moderador impõe ao sistema parlamentardebilita-o e constituiu-se na negação do sistema político preconizadopor Nabuco, já que este tem seu eixo no equilíbrio e rotatividade dopoder. Mas as origens de tal situação não se encontram nele mesmo:é a própria sociedade brasileira, são as características de sua populaçãoque, na perspectiva de Nabuco, desfiguram o ideal político e tornaminviável sua adoção. Referindo-se, então, ao Poder Moderador,Nabuco conclui:

Se é um poder sem contraste, não é por culpa dele,

mas pela impossibilidade de implantar em uma

população como a brasileira a verdade eleitoral, e

porque a verdade eleitoral ainda tornaria o eleitorado

mais adeso ao governo qualquer que fosse, isto é, ao

poder que tinha o direito de nomear (Nabuco, 1936,

v. II, p.377).

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Desaparecida a Monarquia, Nabuco mantém-se leal a ela nãopor uma questão de fidelidade pessoal, mas por motivos muitopróximos aos que o fizeram recusar o republicanismo quando jovem:a defesa de ideais e de uma certa estética ligada à monarquia, osquais ele busca definir:

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A muitos é impossível deixar de ver no ocupante dotrono o homem ou a mulher, o acidente ou a pessoa,

para ver a função, a existência tradicional, a lei do

movimento político. Desses pode-se dizer que são

deficientes em imaginação simbólica; mas,

desaparecendo o simbolismo, podemos estar certos

de que desaparecerá também o ideal na religião, na

poesia, na arte, na sociedade, no Estado (Nabuco,

1949c, p.131.2).

O monarquismo de Nabuco é de origem tanto estética quantopolítica, o que ele deixa claro ao ressaltar seu desinteresse políticoquando chega de sua primeira viagem à Europa. Essa indiferençaenglobava tudo que lembrasse republicanismo, e que é por elejustificado “porque a minha estética política tinha começado a tornar-se exclusivamente monárquica” (Nabuco, 1949c, p.93). Sua recusaao republicanismo deriva, assim, de uma postura estética e existencial:“O que me impediu de ser republicano na mocidade, foi muitoprovavelmente o ter sido sensível à impressão aristocrática da vida”(Nabuco, 1949c, p.124).

A república latino-americana, para Nabuco, é uma espécie demonarquia degenerada, o que o leva a esta comparação: “Muitomais extensa e profunda do que a degeneração republicana damonarquia no Brasil é a degeneração monárquica da república emtoda a América do Sul” (Nabuco, 1990, p.40). Mas como, enfim,Nabuco aderiu à República? A adesão de Nabuco ao regimerepublicano teria se dado por intermédio de Rio Branco, responsávelpor sua nomeação como Ministro Plenipotenciário em Londres erepresentante brasileiro na questão das Guianas. Monarquista comoNabuco, Rio Branco havia feito a transição com relativa facilidade,ao passo que “Joaquim Nabuco fora tão longe na sua intransigênciaque, podia-se dizer, havia cortado as pontes atrás de si” (Rio-Branco,1942, p.137).

A decisão de aceitar um cargo no governo Campos Salles geroucríticas ferozes a Nabuco por parte dos monarquistas, que acentua-vam não apenas sua traição, mas também seu pouco ou nenhum

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Tradição, identidade nacional e modernidade em Joaquim Nabuco

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[...] o “caso Nabuco” tornou-se alvo de artigos de

jornais republicanos e monarquistas durante o mês

de abril de 1899. Estava na ordem do dia a discussão

de um princípio caro aos restauradores: a não aceitação

de cargos públicos no regime republicano.

Situando Nabuco

Sem ambições teóricas, sem a preocupação obsessiva de casaras teorias de seu tempo com a realidade brasileira (um casamentoraramente bem-sucedido), Nabuco viu-se livre para encarar talrealidade sem os binóculos teóricos que impediram tantos de seuscontemporâneos de enxergá-la de forma mais precisa. Nabucoexplicou o Brasil por meio da organização econômica do País e apartir das relações de trabalho nele existentes, ignorando asexplicações ligadas ao meio e à raça às quais Euclides e Romero,entre outros, apegaram-se. Nesse sentido, o “elitista, aristocrático eeuropeizado” Nabuco foi, provavelmente, o mais radical e inovadorpensador entre seus contemporâneos.

Ao centrar o foco na organização econômica e social brasileira,Nabuco criou o contraponto a toda a discussão sobre a identidadenacional delineada por seus contemporâneos. Ele não a proble-matizou nem a cultuou exatamente porque, como acentua Mello,ignorou qualquer pretensão brasileira à originalidade. Somos umanação marcada pela herança do escravismo e, nesse sentido, compar-tilhamos da mesma característica nacional de tantos países ame-ricanos (inclusive os Estados Unidos) marcados pela mesma herança(Mello, 2002, p.238). É a escravidão que nos define, não qualqueridentidade mais ou menos nacional, mais ou menos específica. Dessaconstatação, deriva a originalidade de Nabuco, do fato de ele tersituado em termos socioeconômicos precisos o debate sobreidentidade nacional, tradição e modernidade.

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envolvimento efetivo com o movimento. Como acentua Janotti(1986, p.172):

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Tradition, national identity and modernity in: Joaquim Nabuco

Abstract. The works of Joaquim Nabuco articulate social and political analysistaking, In: first place, the abolitionism as a center issue. In a second stage, takingas watershed the abolition and republic, the historian and memorialist worriedabout the rescue and preservation of traditions of monarchy period become morerelevant. The purpose of the text is to analyze the evolution of the author’s thoughts,taking both phases as parameters, as well as the debate on national identity, traditionand modernity.Keywords: Monarchy. Tradition. Modernity. Politics.

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Tradição, identidade nacional e modernidade em Joaquim Nabuco

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Regionalismo, historiografia

e memória:

Sepé Tiaraju em dois tempos

Resumo. O artigo explora o modo como diferentes processos e atores laboram aformalização de memórias coletivas, focalizando especificamente as relações entreregionalismo e identidade nacional no Rio Grande do Sul. Retomando posiçõesdivergentes quanto ao “peso” das Missões na configuração da memória local,examina formas oficiais e subterrâneas de representação da ancestralidade gaúcha.Ambas se encontram vinculadas a um discurso regionalista patenteado, de umlado, pela ação do Estado em suas relações com os intelectuais e, de outro, porsujeitos identificados com a arte popular e com o tradicionalismo. Finalmente,chama a atenção para as relações de interdependência entre História e memória,observando que o conhecimento acerca das arenas de luta pelo controle da culturae dos imaginários permite recolocar a questão dos estilos de construçãohistoriográfica, relacionando-as à identidade social do historiador.Palavras-chave: Memória. Historiografia. Regionalismo. Rio Grande do Sul.

*Letícia Borges Nedel é Mestre em História Social pela UFRJ e Doutoranda em

História na UnB.

Este texto aborda parte do processo de construção de umamemória histórica nacional para o Rio Grande do Sul, examinandoduas variantes de um discurso regionalista que é patenteado eveiculado, de um lado, pela ação do Estado em suas relações com

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os intelectuais e, de outro, por sujeitos identificados com a cultura

popular e com o tradicionalismo. A análise envolve uma espécie de“geopolítica” da memória local, na qual se tentam entrever questõesligadas à renovação de métodos, abordagens e objetos que a Históriavem experimentando nas últimas décadas. Essa renova-ção tem sidoreivindicada por diferentes linhas de pesquisa que tomam, entreoutros temas, os processos identitários por objeto de análise.

Neste caso, trata-se de explorar a dinâmica segmentar e confli-tuosa pela qual uma forma de pertencimento territorial inscrita naordem das relações metonímicas – ou seja, de uma alteridade que seestabelece na relação parte-todo – é integrada aos quadros de umacultura nacional que lhe precede e dá sentido. A região, aquientendida como classificação derivada de um processo anterior deunificação política, depende, como outras unidades de singularizaçãocultural, da organização da experiência em um relato encadeado,capaz de oferecer um sentido de ancestralidade, isto é, decontinuidade e coerência entre passado e presente.1 Tendo esse pres-suposto em vista, três interrogações vão pontuar a reflexão. Consi-derando o lugar ocupado pela operação histórica2 em nossa sociedade,a primeira questão interroga sobre como o desenvolvimento dadisciplina contribuiu para a formalização de modelos consensuaisem torno do passado e demais aspectos constitutivos da regionalidade

sulina. A segunda questão indaga sobre os limites dessa memóriaalimentada pela prática historiográfica, ao considerar a concorrênciaentre os intelectuais e outros agentes também envolvidos com aenunciação do discurso identitário, mas atuantes do lado de foradas instituições. A última questão inquire sobre o modo como oshistoriadores de hoje devem lidar com as interconexões entre Históriae memória e quais as tensões resultantes desse cruzamento. Em outraspalavras, é lícito reduzir o discurso histórico a uma entre outraspráticas mediadoras do passado – como o mito por exemplo –, ou adisciplina mantém uma relação específica com o referente que nosautoriza a classificá-la numa categoria à parte?

Essas questões serão elucidadas em um plano narrativo,cumprindo a meta comum a todo historiador de contar uma história,

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Regionalismo, historiografia e memória: Sepé Tiaraju em dois tempos

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com seus impasses e desenlaces, para dali extrair algum resultadoteórico. O corpus documental é formado por dois textos de naturezasdiferentes, um historiográfico, outro poético. O primeiro é umparecer fornecido ao Governo do estado pelo Instituto Histórico eGeográfico do Rio Grande do Sul (IHGRS) em 1955. O segundotexto traz a transcrição de uma payada, algo situado entre a músicae a poesia gauchescas, e que portanto envolve práticas encenadasnum espaço social onde a oralidade detém um papel privilegiado detransmissão de saberes e valores. A payada em questão, intituladaDefeito, caracteriza-se pelos versos de teor agressivo, expressamentedirigidos à academia histórica. Eles foram compostos por um artistaque, sem nunca ter usufruído do estatuto de intelectual, deixou suamarca no imaginário regional com uma obra que concebe um RioGrande do Sul feito à imagem e semelhança das Missões,3 tendocomo âncoras a presença indígena guarani e a experiência jesuítica.O autor do poema é o autodenominado “payador indomado”, NoelFabrício Borges da Cunha, mais conhecido por Noel Guarany,compositor e intérprete que, além de reivindicar a herançamissioneira para os habitantes do estado, retrata o herói civilizadorgaúcho como tipo humano originário (autóctone) de um territóriomais antigo que o Brasil, não só contíguo ao Prata, mas integrado aele.

Os dois textos, apesar de distantes vinte anos um do outro,remetem, de forma mais ou menos explícita, a um fato preciso,ocorrido em Porto Alegre em meados dos anos 1950 e que ficoumarcado na lembrança de todos os intelectuais ativos ou em iníciode carreira daquela época. Trata-se do “caso Sepé”, uma das tantaspolêmicas que dividiram o Instituto Histórico e Geográfico do RioGrande do Sul (IHGRS) entre 1945 e 1955. O debate públicoaberto por dois reconhecidos sócios – Moysés – Velhinho eMansuetto Bernardi, julgava a conveniência em se erguer ummonumento aos 200 anos de morte do guarani reduzido SepéTiaraju, completados em fevereiro de 1956. Na contenda, à qual sejuntaram outros historiadores, aparecem duas posições divergentesquanto ao “peso” das Missões na configuração da memória oficial

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sul-rio-grandense, bem como à pertinência de integrar esse períodocontroverso de formação do estado aos quadros da história local.

Em vista dos argumentos lançados nas alegações e acusaçõesmútuas, e atentando à posição legitimada (e legitimadora) do IHGRSenquanto foro privilegiado de produção historiográfica no estado,este trabalho vai inscrevê-lo na “problemática dos lugares”,desenvolvida por Pierre Nora4 no clássico Les Lieux de Mémoire,publicado pela Gallimard entre 1984 e 1992. Seguindo alguns dosprincípios enunciados por esse e outros autores, que não caberiaenumerar de antemão, a discussão em torno do papel cabido a Sepéservirá de porta de entrada para se pensar a relação recíproca mantidaentre História e memória na elaboração de certas propriedades“típicas” e supostamente congênitas da região em frente à formaçãonacional brasileira e às demais partes do conjunto. Veremos que, nocaso em questão, essa relação foi pautada por homens para quemera dever de ofício oferecer um diagnóstico preciso da “origem” –portuguesa ou espanhola? – do Rio Grande do Sul.

Regionalismo à gaúcha

As finalidades que, nessa época, presidiam o exercíciohistoriográfico remetem a uma concepção de “ciência” situada a meiocaminho entre a pedagogia cívica e a detecção – através de técnicasdocumentárias regradas coletivamente – de “leis gerais” pelas quaisse poderia prever a evolução histórica de uma nação, “preparando-a” para o futuro.5 Como assinalou Ricardo Benzaquém de Araújo,essa dupla exigência de objetividade e de entusiasmo patrióticofuncionou como

uma criativa e permanente fonte de tensões no interior

da historiografia, não só gerando acusações, ora de

“partidarismo”, ora de falta de originalidade, mas

também propiciando um instigante debate acerca das

condições em que se produz a história na moderna

acepção do termo” (Araújo, 1988, p.32).

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A primeira coisa a notar então é que, para além das discor-dâncias entre os envolvidos na discussão, os marcos referenciais daformação do estado figuravam como uma conjunção de “fatoshistóricos” e “condições naturais” que determinariam a priori odestino político e moral de seus habitantes. Sobre isso, já foi bemressaltado o engajamento das elites culturais na criação do gaúchoheróico, ícone de uma identidade marcada pela permanente “tensãoentre autonomia e integração”,6 em que a fronteira desempenha umpapel crucial no enquadramento cultural da região. De fato, desde oséculo XIX, o Rio Grande do Sul costuma ser retratado como umterritório de diferença substantiva em relação às demais regiõesbrasileiras. Encarada pelos políticos e letrados da “província” oracomo um trunfo, ora como uma desvantagem, essa pré-noção écertamente conseqüência lógica de um paradoxo inicial: o de que aregião, entendida como elo primário de identificação entre oindivíduo e a nação, apela, no caso rio-grandense, a uma unidade“de origem” que ultrapassa em muito as fronteiras políticas doterritório nacional. Apesar de se definirem tardiamente, tais limitesnão invalidam as experiências compartilhadas pelos habitantes doestado finalmente conquistado pelo continental império portuguêsem 1801 e os da porção espanhola do império “fragmentado” emrepúblicas nas guerras de independência.

Assim, se é verdade que o passado não se impõe ao historiadorpor si mesmo, mas, pelo contrário, é investigado em função dasperguntas elaboradas desde o presente, a insistência com que certasquestões foram e continuam sendo formuladas no Rio Grande doSul é significativa. A amplitude e a recorrência com que opertencimento local foi estrategicamente acionado entre diferentesgrupos e esferas da vida social e a ampla penetração atual dessediscurso na mídia e nas instituições de governo, além da freqüênciacom que se realizam os debates e ressignificações de noções como“gaúcho”, “região”, “fronteira”, “caudilho” etc., levaram RubenOliven (1989, p.13) a definir o Rio Grande como “um caso deregionalismo bem-sucedido”. Vale notar, desde já, que um “sucesso”desse tipo será sempre tão relativo e transitório quanto forem a

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extensão e duração dos consensos firmados em torno dos critériosdefinidores do “gaúcho originário”, – donde se conclui, preliminar-mente, estarmos lidando aqui com memórias em disputa.

Já não se fazem memórias como antigamente

Esse tema da memória tem uma trajetória recente no campode investigação histórica. Nas ciências sociais, Maurice Halbwachs(1877-1945) foi quem primeiro se apropriou dela como um objetoespecífico de estudos. Resgatando-a da Psicologia do início do século,ele investigou a maneira como uma memória coletiva enraíza-se eliga-se às comunidades sociais, mostrando que a lembrança podefuncionar como instrumento de integração do indivíduo à família,ao grupo e à sociedade global.7 Suas obras – Les Cadres Sociaux de la

Mémoire (1925) e La Mémoire Collective (1950) –, além de situarempela primeira vez a questão onde ela figura de fato, isto é, no terrenoda linguagem, propuseram o abandono das abordagens até entãoconduzidas pela psicologia individual, que investia nas correlaçõesentre memória-mnemotecnia, ou memória-mimese.8 Contraria-mente, em Halbwachs, a memória deixa de ser pensada como umafaculdade reprodutora ou deformante de uma realidade conscienteou não; ali, ela não é mais o “espelho deturpador” da realidade,como disse Jean Pierre Rioux (1997, p.337), mas elemento cons-tituído e instituidor do real, figurando como um fator transformadorna evolução histórica de uma sociedade.

No que diz respeito ao campo de reflexão da história, entre ascondições de possibilidade da emergência dos “Lugares de memória”como objeto de análise estão, segundo Pierre Nora (1997, p.4699),de um lado, o “retorno reflexivo” da disciplina sobre si mesma e, deoutro, o fim de uma tradição de memória, determinado pelapassagem de “uma consciência nacional unitária a uma consciênciade si” individualista, psicologizada, privativa e patrimonial. Na esteirado pós 2ª Guerra, Guerra Fria, queda do socialismo real e adventodo que se chegou a chamar “fim das utopias” e “crise da história”, adesconfiança para com as antigas promessas do progresso científico

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e a percepção de um tempo acelerado pela mídia e os avanços tec-nológicos promoveram o giro que teria levado a disciplina a sedesidentificar com o próprio passado, fazendo de si mesma umcampo de experimentação e análise.9 Desabrigada do regime deverdade inquestionável que lhe servira de refúgio no século XIX,sem poder mais apostar na coincidência entre o discurso histórico eseu referente,10 a “ciência magistra” abandona sua vocação cívico-pedagógica em prol de um olhar autocrítico, que se desloca da“nação” para a sociedade.

As histórias resultantes dessa revolução epistemológica têm emcomum o projeto de romper o contrato de verdade baseado numatemporalidade linear e compartilhada, no qual o futuro pareciaprevisível, já que “prenunciado” pelo passado. Curiosamente, nomomento em que se passa a considerar a defasagem entre o passadoe o conhecimento acerca dele, vê-se reforçado o interesse doshistoriadores pelo arquivo. Este, junto com a noção de documento,tem alargada sua concepção para alcançar o léxico dos atores. Assim,já nos anos setenta, pesquisas baseadas no método da história oralmostravam o caráter potencialmente opressor da memória nacionale, ao lado dela, a coexistência de temporalidades autônomas econcorrentes no tecido social.11 Notada a importância da experiênciae o imperativo dos sujeitos sobre o trabalho da rememoração, abria-se também, para os historiadores, a possibilidade de identificar, nassociedades, o modo como memórias conflitantes são geradas emuma “permanente interação entre o vivido, o aprendido e otransmitido” (Pollak, 1989, p.9). Surge daí uma outra história,povoada por problemas e grupos humanos até então negligenciadospela tradição acadêmica.

Dessas considerações, procede a escolha de se trabalhar com apayada de Noel Guarany como um contraponto ao textohistoriográfico. Até porque, sendo Defeito uma peça composta “emhonra” de uma memória “antiacadêmica” (missioneira), além deilustrar parâmetros alternativos de conformação de umaancestralidade específica para o Rio Grande, ela exibe também ascontradições inerentes ao discurso identitário. Vale dizer que,

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operando numa dimensão macro, o pertencimento faz-senecessariamente no sentido da incorporação e exclusão simultâneasde práticas e personagens sociais específicos. Essa dimensão seletivaé tão necessária à construção das identidades territoriais, que ErnestRenan (1997, p.13-15) chegou a inscrevê-la na própria definiçãoda nacionalidade, ao afirmar que

L’oubli, et je dirai même l’erreur historique, sont un

facteur essentiel de la création d’une nation, et c’est

ainsi que le progrès des études historiques est souvent

pour la nationalité un danger. L’investigation

historique, en effet, remet en lumières les faits de

violence que se sont passés à l’origine de toutes les

formations politiques [...] L’unité se fait toujours

brutalement [...] Or l’essence d’une nation est que

tous les individus aient beaucoup de choses en

commun, et aussi que tous aient oublié bien des

choses.

Sem perder de vista a demonstração, pelas investigações sobrecontramemórias, de que aparentes “esquecimentos” podiam seconstituir, na verdade, em formas de resistência à história oficial(Pollak, 2000), o projeto de Pierre Nora volta a apostar nas instânciasinstitucionais de produção de lembranças feitas para seremlargamente partilhadas. Com esse objetivo, a equipe de autoresreeditou, no estudo da memória nacional francesa, uma históriapolítica definida, segundo o organizador, em sua extensão maisarrojada, porque dimensionada pelo simbólico:12

O caminho está aberto a toda uma outra história: não

mais os determinantes, mas seus efeitos; não mais as

ações memorizadas nem mesmo comemoradas, mas

o rastro de suas ações e o jogo das comemorações;

não os acontecimentos por eles mesmos, mas sua

construção no tempo, o apagamento e ressurgência

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de suas significações. Não o passado tal como se

passou, mas seus reempregos sucessivos, não a

tradição, mas a maneira como ela se constituiu e

transmitiu (Nora, 1992a, p.24).

O trecho citado de certa forma antecipa o itinerário daargumentação aqui desenvolvida. Ela parte da convergência havidaentre o nascimento de uma disciplina e a gênese do Estado nacional,para entender a emergência, no esteio da chamada “viradalingüística”, de tantos “novos velhos” objetos, como a história política,a biografia, a narrativa, o sujeito, o acontecimento, etc. Sob esseaspecto, a longevidade do tipo de História inaugurado sob um regimede diversificação de suportes materiais da memória, posto em práticano Brasil desde a criação do Instituto Histórico e GeográficoBrasileiro – IHGB – em 1838, testemunha a “intimidade” estreitaque antecedeu a atual “incompatibilidade de gênios” (Rioux, 1997)entre mãe e filha, Mnemósine e Clio.13

De certa forma, essa incompatibilidade é traída pelo própriodeslocamento semântico que nos permite, hoje, chamar memorialistas

aos que até ontem eram reputados historiadores. Contudo, se éverdade que a História deixou de ser a colecionadora das relíquiasnacionais, ela se obriga a admitir ter, com a memória, uma relaçãode estreita interdependência. Compreender as práticas mediadorasdo passado como instâncias de luta pelo controle da cultura permite-nos retrilhar os caminhos que levaram a determinados estilos deconstrução historiográfica, colocando sob escrutínio a própriaidentidade social de seus artífices. Mais ainda quando situamos anarrativa, que é o modo operacional por excelência da escritahistórica, no quadro social de regulação da amnésia, pois, comobem advertiu Marc Ferro (1989, p.59), “o esquecimento não tem omesmo estatuto segundo proceda do trabalho do historiador ou dosdiferentes espaços da memória nas sociedades”.

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A “região” em disputa

Tomar a principal arena de discussão historiográfica do estadocomo “lugar” da memória histórica sul-rio-grandense pode bemdemonstrar a existência de uma polifonia de tempos dentro daprópria disciplina. Isso porque, em linhas gerais, enquanto em outraspartes os anos cinqüenta marcaram a chegada de parâmetros de inves-tigação que colocaram o marxismo no horizonte analítico de proble-mas como urbanização, subdesenvolvimento e desigualdade socialdo País, no Rio Grande do Sul, o modelo de referência encon-trava-se ainda estreitamente vinculado ao projeto historiográfico lançadono século anterior, pela padroeira das academias de eruditos no Brasil.

A história sistematizada pelo IHGB (sobretudo a contar de1849-50) havia servido para conferir o sentido de continuidadenecessário a um passado “nacional” definido retroativamente.Delimitando seus “contornos” em bases substancialistas – ecumprindo à risca o check list identitário14 geográfico, étnico,histórico e folclórico que materializa a diacrise com um “outro”–, aselites políticas responsáveis por esse projeto buscavam inserir o Paísna cadeia civilizadora das nações ocidentais. Tratava-se de fixar, parao Brasil, uma raiz branca e européia, presumidamente confirmadapor uma independência não traumática. Vale notar que o IHGB foitambém o lugar onde primeiro se operou a fusão semântica entreprovíncia e fronteira, estratégia discursiva tornada recorrente noregionalismo gaúcho. Contemplada por uma memória pragmática edeclaradamente elitista, na qual o papel do Estado central constitui-se no fio condutor da história do Brasil (cf. Guimarães, 1988, p.9),essa fórmula específica de apreensão das “regiões” tomava-as poralvo de vigilância e controle permanentes, ou por se constituíremem espaço de estranhamento interno – caso da clássica oposiçãointerior x litoral e da imposição de missões civilizadoras às populaçõesindígenas –, ou por estarem diretamente vinculadas à questão dasoberania do território. O Rio Grande de São Pedro encarna, dentrodesse modelo fundador de um saber adequado às necessidades decentralização administrativa e de homogeneização das elites políticas

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imperiais, o espaço limítrofe com um “outro” que é definido, comobem indicou Manoel Salgado Guimarães (1988, p.7), a partir docritério “das diferenças quanto às formas de organização do Estado.”De acordo com esse postulado, são acusados, internamente, osímpetos desagregadores e a “imaturidade política” das elitesperiféricas, ao passo que “os inimigos externos do Brasil são repre-sentados pelas repúblicas latino-americanas [...] corporificando aforma republicana de governo, ao mesmo tempo, a representaçãoda barbárie” (id., ibid.).

A adaptação do passado local aos parâmetros de leitura da naçãofoi complexa e demorada. De fato, não passaram despercebidas asdificuldades intrínsecas à fundamentação histórica de uma identidaderegional apta à competição política com as outras unidadesfederativas, em se tratando de um estado tardiamente integrado aoslimites do Brasil e, ainda por cima, limítrofe com os “maus exemplos”de fragmentação dos estados nacionais vizinhos.imperiais, o espaçolimítrofe com um “outro” que é definido, como bem indicou ManoelSalgado Guimarães (1988, p.7), a partir do critério “das diferençasquanto às formas de organização do Estado.” De acordo com essepostulado, são acusados, internamente, os ímpetos desagregadorese a “imaturidade política” das elites periféricas, ao passo que “osinimigos externos do Brasil são representados pelas repúblicas latino-americanas [...] corporificando a forma republicana de governo, aomesmo tempo, a representação da barbárie” (id., ibid.).

A adaptação do passado local aos parâmetros de leitura da naçãofoi complexa e demorada. De fato, não passaram despercebidas asdificuldades intrínsecas à fundamentação histórica de uma identidaderegional apta à competição política com as outras unidadesfederativas, em se tratando de um estado tardiamente integrado aoslimites do Brasil e, ainda por cima, limítrofe com os “maus exemplos”de fragmentação dos estados nacionais vizinhos.

Embora a consagração de instituições e grupos destinados aessa tarefa guarde uma estreita vinculação com o processo deespecialização da pesquisa, sua história começa antes da criação efetivade um Instituto Histórico e Geográfico em 1920. Na verdade, o

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despertar para a particularidade cultural sulina emergiu na fendadas lutas partidárias do entresséculo XIX-XX, quando foramformuladas, no jornalismo político, as grandes questões sobre asquais os historiadores se debruçariam até pelo menos os anos 60.Proclamada pelos jovens abolicionistas e republicanos num momentode crise e de transformações profundas na matriz econômica daprovíncia, a denúncia federativista – expressa em 1870 nos termos“Centralização = Desmembramento; Descentralização = Unidade”– foi transferida, nas primeiras décadas do século seguinte, para aagenda cultural. Traduzido em bandeira de descentralizaçãointelectual do País, o lema abasteceu um mercado de bens culturaisregionais, incrementando uma tradição histórico-literária específicana qual se projetaram as linhagens locais de reconhecimentointelectual (cf. Nedel, 1999).

Por motivos que não caberiam nas dimensões deste texto, etendo eles já sido expostos em outra oportunidade, em lugar do queIeda Gutfreindt (1989, 1995, p.148-152) chamou de platinismo elusitanismo,15 preferimos assinalar, nessa tradição, a presença de umatensão permanente entre dois registros sob os quais as elites culturaisdefinem a posição-limite do estado no concerto nacional. O primeirodeles privilegia a identificação de um sujeito folk – herói anônimo eautóctone – associado ao mundo rural, à condição de rebaixamentosocial e à intimidade com o meio físico. Compreende a delimitaçãoda singularidade do Rio Grande em rota de aproximação crescentecom a gauchesca platina, através da exploração literária da linguagem“dialetal” da fronteira, sobretudo a partir dos anos vinte. Já sob osegundo registro, ligado à história alimentada pelas pesquisasgenealógicas e “descobertas” documentais, o foco de atenção desvia-se do terreno da linguagem e dos costumes para o da geopolítica,mais precisamente para as marchas e contramarchas de Portugal eEspanha sobre o Rio Grande de São Pedro.

No primeiro caso, as hierarquias de autores organizam-se emtorno do cânone literário regionalista,16 por sua vez valorado na tensãoconstitutiva do mérito artístico, ou seja, situado entre a inovação e arepetição de modelos estéticos consagrados. No segundo caso, o

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critério de “autenticidade” das narrativas tem procedência diversa.O juízo repousa, para todos os efeitos, em um domínio diagnósticodefinidor da “verdade extraída” de registros oficiais, relativos a eventose personagens que sintetizariam a contribuição gaúcha para aconstrução do Estado brasileiro. Desse modo, e diferentemente daênfase singularizante da literatura, a vinculação pragmática da matrizhistórica com o campo institucional é mais imediata, expressando-se tanto na recolha das efemérides quanto no conteúdo dos relatos.A região é ali submetida às percepções do centro: as monografias

esquadrinham o território, sua população, o surgimento das cidades,a origem dos topônimos, a especialização econômica, semprebuscando inscrever a região na história nacional. Vale dizer que,contrariamente à experiência platina, no Brasil o gaúcho retratadopela História confunde-se com o agente da conquista, associaçãoque obscurece o presumido caráter “anônimo” e “espontâneo” desuas criações.17 Deslocado da estância para a caserna, o heróicivilizador desvincula-se do estereótipo do bom selvagem, passandoa constar no rol nominado e nobiliárquico dos desbravadores luso-brasileiros, e não raro republicanos, que povoam o panteão políticolocal.

Entre a ascensão e a deposição de Getúlio Vargas, os padrõesdescritivos da gênese regional propostos pelo IHGRS repousaramna estrita federalização do projeto historiográfico elaborado pelosnotáveis do IHGB. Mesmo após a entrada de referenciais culturalistasde análise – o que viria a acontecer só na década de 1950 –, oshistoriadores trataram de conciliar o ideário republicano aosenunciados dos eruditos do Império, revertendo a pecha de estadolimítrofe com a “barbárie” castelhana em condição de sentinela dafronteira austral da “América Portuguesa”. Sob esse critério, a teseseparatista da Revolução Farroupilha chegou a ser, nas palavras deMoysés Velhinho, “arquivada”, após ter sua interpretaçãoconvencionada pelo Congresso promovido pelo IHGRS em alusãoao Centenário Farroupilha, em 1935. Desde então, os historiadorestodos se referiam a ela de um mesmo modo: como uma revolta deinspiração republicana e liberal, em defesa da integridade moral de

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um Império desatento às necessidades da província. Sujeitadas asregras da disciplina à observância das fronteiras nacionais, o “lugarde origem”, “berço histórico” do Rio Grande do Sul, também foirigorosamente fixado em um calendário oficial de efemérides.Evidentemente ele coincidia com o início da ocupação do territóriopelos portugueses (fundação da cidade de Rio Grande, com aconstrução do forte de Jesus Maria José em 1737), em lugar daexperiência jesuítica que a antecedera. Sob a vigilância da “academia”,a história missioneira deixava de dizer respeito à formação do estado.

Nos anos cinqüenta, não obstante o exercício intelectualpermanecer incontestavelmente legitimado pela pedagogia cívica, odiagnóstico cultural da região passou a ser debatido no ir e vir deduas posições contrastantes, sustentadas pelos memorialistasformados à luz dessa história historicista. Para autores como SouzaDocca, Othelo Rosa e Moysés Vellinho, o objeto exclusivo da“história regional” era a participação gaúcha na construção do Estadobrasileiro, consubstanciada no heroísmo “documentalmente com-provado” de tropeiros desbravadores e próceres republicanos. Contrá-rios à diversificação do acervo documental da disciplina, esse grupode autores justificava, como a maioria dos de então, a antiga idéiada especificidade do Sul em relação ao restante do Brasil, vinculando-a mais ao papel desempenhado na conquista armada de um territórioem disputa do que às criações “anônimas” de uma cultura singular.

Enquanto isso, outros autores, adversários permanentes eeventualmente aliados táticos dos primeiros, defendiam adiversificação relativa dos temas de pesquisa. Sob influência doculturalismo norte-americano em voga (aqui mediado pela obrafundadora de Gilberto Freyre),18 incorporavam o linguajar, acontribuição étnica de negros e indígenas, seus costumes e suareligiosidade a um quadro de objetos compartilhado pela História eo Folclore. Declaradamente “convertidos” ao “popular”, ou por suasligações com as vanguardas literárias modernistas de São Paulo eRecife, ou por seu apreço à temática e aos mestres da gauchesca

platina, para eles, a afirmação das heterogeneidades regionais era acondição mesma de apreensão (e de manutenção) da unidade

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brasileira. Esse vetor de maior abertura, tanto à diversidade internada região quanto à admissão da reciprocidade cultural do Rio Grandecom os vizinhos, contribuiu para o entrincheiramento de nomescomo Dante de Laytano, Manoelito de Ornellas e Walter Spalding,entre outros, em torno do Museu Julio de Castilhos e da ComissãoEstadual de Folclore (ambos chefiados por Laytano), já que, nodomínio da História, as regras continuavam ditadas pela alaadversária dentro do IHGRS.19

Concomitante à massificação do tradicionalismo e aodesdobramento de uma série de práticas rituais e comerciais de baseidentitária, a passagem do folclore “literário” ao folclore “científico”acompanhou então a revisão das interpretações canônicas da região

entre os eruditos locais. Propondo uma comunicação mais assíduacom intelectuais conhecidos no centro do País (entre eles, GilbertoFreyre, Renato Almeida, Roger Bastide, Melville Herkowits), o atoresenvolvidos com o revisionismo que tomou conta da produção escritada época observavam a má posição do estado em vista de outrosmercados culturais regionais. Para eles, o principal adversário já nãoera tanto o centro, mas o Nordeste – cujos representantes haviam secolocado na ponta do processo de elaboração de bens simbólicosnacionais. Com o fim do Estado Novo, a ordem era inserir o RioGrande nos quadros de uma cultura brasileira elaborada segundo alinha de representação regionalizada lançada dos anos vinte e quehavia sido encampada pelo governo em pleno processo de retomadada centralização política entre os anos 1930-1945.20

A retomada “científica” da herança modernista pelos histo-riadores, adaptada ao contexto de questionamento da autoridadeda História por uma nova geração de sociólogos universitários,representou, para uma parcela dessa intelectualidade periférica, umconvite à atualização da história que vinham praticando. Aatualização contemplava a descrição das regiões a partir da cultura ede novas fontes (como a tradição oral) produzidas por grupos que atradicional história política e diplomática não comportava. O desvioda atenção para esferas informais da vida social oferecia então, aosanalistas, uma via privilegiada de reconstituição dos elos de

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continuidade entre presente e passado, sujeito e objeto, região enação. Empresa ao mesmo tempo “científica” e patrimonial, aelaboração de “história social e até íntima” da nação, baseada nacrônica regional, cotidiana e familiar de um “passado mais próximode todos nós”,21 afiançava esse diagnóstico integrador, aparecendotambém como a condição necessária para que a nação superasse oestatuto de mero fato geográfico e se entranhasse afetivamente namemória de seus habitantes.

O “caso Sepé”

Nos anos 50, as tensões entre essas duas formas de configuraçãoda regionalidade repercutiam com força, ultrapassando os murosdo Instituto e mobilizando a opinião pública em geral através daimprensa, da publicação em série de obras que firmavam posição nadiscussão e de manifestos assinados por intelectuais dissidentes, emrepúdio à ação da Comissão de História do Instituto. O affaire

começou com um parecer, encomendado ao final de 1955 peloGovernador Ildo Meneghetti. Pelo documento, a instituição deveriase pronunciar a respeito do pedido feito ao governo por um oficialdo exército, o Major João Carlos Nobre da Veiga, de mandar erguer,no município de São Gabriel, um monumento em homenagem aosduzentos anos de morte do índio guarani Sepé Tiaraju,22 corregedorda redução de São Miguel e mártir da Guerra Guaranítica. Mas oque era para ser só mais um dos tantos documentos diagnósticosencomendados àquele órgão pelo governo23 transformou-se nodesencadeador de um verdadeiro fato de opinião, repleto de agravospessoais e de efeitos adversos ao próprio Instituto.

No pedido, o major Nobre da Veiga justificava sua demandamostrando o sentido exemplar que uma homenagem ao heróidesaparecido “em holocausto à pátria” teria, na medida em que seestaria louvando, na pessoa dele, “o passado de lutas, glórias esacrifícios” de todo o “povo gaúcho”. A proposta foi fundamentadaem duas alegações: primeiro, a de que

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Ao que tudo indica, era este verdadeiro brasileiro, na

acepção pura da palavra, o principal chefe dos

guaranis, na resistência heróica que estes ofereceram

ao cumprimento dos artigos do Tratado de Madrid,

assinado por portugueses e espanhóis, em 13 de janeiro

de 1750. [Segunda:] este índio simboliza na singeleza

da sua vida, na pobreza de seus recursos materiais e

no incomparável devotamento patriótico, o valor

pessoal do brasileiro, que em todas as épocas de sua

história, sempre se opôs à sanha incoercível de seus

adversários [...].24

O documento expedido em resposta pela Comissão de Históriaavaliava o mérito dessas justificativas segundo o que julgava ser apertinência das memórias de Sepé e do território por ele representado– as Missões – aos “gaúchos brasileiros” de então. Nessa avaliação, jáde saída advertia para a dificuldade de “opinar sobre o brasileirismode um indígena que tinha um sentido de Pátria, e que se afirmouem luta contra os portugueses.” (apud Bernardi, 1980a, p.140).Tendo um “sentido de pátria”, e de pátria que não era portuguesa,Tiaraju não poderia encarnar o patriotismo do gaúcho brasileiro,pelo simples fato de que, para a Comissão de História do Instituto,o Rio Grande do Sul estava representado nas guerras de demarcaçãopela parte futuramente beneficiada com a integração do território.Nas palavras dos três signatários – e dos demais membros queaprovaram o documento em assembléia ordinária –, a improcedênciado pedido era cristalina, já que Sepé, sendo súdito de Espanha, sópodia ser inimigo do lado (pelo menos posteriormente) brasileiroda contenda: o lado português.

Reagindo contra as estipulações do tratado de Madrid

– cuja justiça ou injustiça não é o momento de

considerar – Sepé somente poderia ter em vista a

integridade territorial da chamada “Província do

Paraguai”, a que pertenciam os sete povos das Missões:

defendia, portanto, em última análise, a Coroa

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espanhola [...] A conclusão parece-nos irretorquível:

não só é inaceitável o “brasileirismo” de Sepé, como

ainda não é admissível encará-lo como uma expressão

do sentimento, das tendências, dos interesses, da alma

coletiva, enfim, do povo gaúcho, que se estava

formando ao signo da civilização portuguesa (idem).

Na argumentação, os historiadores também aproveitaram paracondenar uma série de mitificações em torno desse herói indígenajá promovido a santo e a motivo folclórico, o que lhe alterava osignificado, desfigurando a “personalidade real”, única relevante àluz da ciência histórica e digna de sua “exegese”. Sugeriam então,em substituição a Sepé, que se desse um título a Rafael PintoBandeira, apelidado “o fronteiro do sul” (ibid., p.141) por ter ajudadoa despertar no Rio Grande a consciência de autodefesa a partir daresistência à invasão espanhola de 1763:

Quando lemos que Sepé foi “o Primeiro Caudilho

Rio-grandense” a nós mesmos perguntamos que noção

ele poder ter do Rio Grande do Sul, e se nos será

lícito praticar a grave injustiça de conferir-lhe um

título a que tem inconcusso e líquido direito um

Rafael Pinto Bandeira, o fronteiro do sul, que delineou

as nossas fronteiras e que, com seu ingente esforço

criou e consolidou esse Rio Grande do Sul, que Sepé

valentemente combateu, opondo-se quanto pôde, ao

destino histórico de sua inclusão na civilização lusitana

e no Brasil? (idem).

Assim, os historiadores de então, contrários ou não a Sepé,restringiam a relação do discurso histórico com o referente aorefinamento da crítica documental externa, calcando-a na exatidãocronológica dos fatos e na autenticidade das fontes oficiais. Enquantoo heroísmo de Sepé era destituído de significação histórica eprincipalmente de qualquer valor simbólico integrador, o de PintoBandeira podia, pelo contrário, ser situado no solo do rigor científico,

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tendo a seu favor, como demarcadora dessa diferença, a existênciade um documento “autêntico”, “valioso” e “comprobatório” (apudBernardi, 1980a, p.140). Com esse argumento, a erudiçãodocumentária subtraía Sepé do capital nacional da história gaúcha,deslocando-o para o terreno incerto das lendas e das superstições.

Mas o Major não estava sozinho, e, imediatamente, outroseruditos vieram em socorro de seus motivos e de encontro aosargumentos da Comissão. O primeiro a fazê-lo, e talvez o maisenérgico dos que o fizeram, foi Mansuetto Bernardi, que passoutodo o ano seguinte se confrontando publicamente com MoysésVelhinho.25 A essa altura, Mansuetto Bernardi era, tanto quantoVelhinho, uma personalidade célebre na vida cultural e política doestado.26 Mais do que isso, ele era um velho interessado no assuntoSepé. Ainda quando pleiteava uma vaga de sócio no Instituto, em1926, fizera uma palestra no Museu Julio de Castilhos (a convite deseu diretor, Alcides Maya), intitulada O Primeiro Caudilho Rio-

Grandense, quando procurou confirmar a tese de que o primeirocaudilho do Rio Grande do Sul, ao menos “cronologicamente, foi ocacique Sepé Tiaraju, que nasceu e viveu, combateu e morreu noterritório dos Sete Povos das Missões, na época pré-açoriana.”(Bernardi, 1980a, p.17). Sem entabular uma conceituação precisado “caudilhismo” (como mais tarde se tornaria hábito, ainda que demaneira invertida entre os historiadores do Prata e do Rio Grandedo Sul), Mansueto louvava a audácia e o patriotismo do índio que,sem o apoio dos missionários, dirigira a resistência indígena aoconfisco dos bens e terras em que viviam e viveram seus ancestraispor 150 anos. Após descrever a atuação “bravia” de Sepé na guerrade demarcação, relatava ainda sua “ressurreição” lendária como“protomártir civil das Missões” (Bernardi, 1980a, p.28),documentada pela poesia gauchesca e pela tradição oral, nas quaisaparecia canonizado como São Sepé e abençoado pelo “lunar”.

Na semana do Bicentenário, Bernardi (1980b, p.37) publicou,no Correio do Povo, um manifesto no qual se mostrava indignadocom o fato de, sendo membro antigo da Associação, ver-sedesautorizado por ela.27 Além disso, recorreu a outros sócios para

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forçar uma retratação dos responsáveis pelo parecer, liderou acampanha pelo monumento e, ainda naquele ano, convenceu o Padrejesuíta Luiz Gonzaga Jaeger, especialista em Missões e em Companhiade Jesus, a manifestar publicamente sua inconformidade com avotação (seu voto tinha sido o único “sim, com restrições” na reuniãoque aprovou o parecer por sete a zero) e a fazer um mea-culpa emfrente aos pares, lançando sua réplica à Comissão na assembléiaseguinte.28 Meses mais tarde, Bernardi ainda encabeçava uma listade vinte e um sócios que, num contraparecer entregue ao Gover-nador, desautorizavam a Comissão de História.29

O contra-ataque não só não tardou, como se prolongoubastante, sob as penas de Moysés Velhinho e de Othelo Rosa. Nãobastasse Bernardi tentar habilitar a memória de um líder que, tendolutado contra os exércitos de Portugal (e Espanha, diga-se depassagem), podia ser considerado “traidor” do Rio Grande, fazerisso associando-o com o caudilhismo, fenômeno que o Institutosempre se empenhara em restringir aos ditadores platinos, eraultrapassar os limites canônicos da História.30

Durante anos, continuaram sendo lançados argumentos eprotestos pelos jornais que poderiam continuar sendo expostos atéa exaustão. Mas, nos limites de que dispomos, gostaríamos agora dedestacar alguns aspectos presentes no debate, antes de entrar naposição de Noel Guarany. O primeiro deles é o de que, além daregião, a figura do “gaúcho heróico” foi o objeto maior de disputa,já que sua ressemantização e reabilitação moral eram as precondiçõesdo próprio uso gentílico. O segundo aspecto é o de que, apesar detodas as aparentes discordâncias entre os “leitores” eruditos domonumento a Sepé, é notável o acordo dos historiadores quanto ànecessidade de obedecerem a preceitos de cientificidade,condicionando o exercício da pedagogia cívica às “descobertas”documentais. De um lado, pressupunham o entendimento do objetocomo uma realidade externa à problemática levantada pelohistoriador – e, por isso, a condição geopolítica do estado, suasituação de fronteira, pôde ser tomada ao mesmo tempo como um“fenômeno” e como “chave explicativa” do passado. De outro lado,

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essa história-memória, preocupada que estava em edificar um caráterinato para a região, buscava também identificar os heróis fundadores,e nisso residiu a polêmica de 1955. Daí outro aspecto fundamental:o de que, nessa construção seletiva, afetiva, performativa ecompetitiva de atributos do gaúcho (e por extensão de todos os sul-rio-grandenses), houvesse a estratégia comum de “resgatar” diferentespontos no mapa regional, conferindo-lhes cargas desiguais dehistoricidade. Nesse sentido, fica claro que o “rigor comprobatório”das fontes escritas servia tanto para fundamentar uma total ausênciade objetividade de parte do historiador – ou melhor, umaobjetividade totalmente delegada ao documento –, quanto umatradição disciplinar cuja função devia ser a de arbitrar a transmissãodos valores patrióticos, garantindo a liderança e a legitimidade doRio Grande no concerto da federação. Sob esse pressuposto, a regiãoconstava, nas formulações históricas desde Bernardi até Velhinho,como o elemento precursor da nacionalidade. Ela surgia comovínculo natural primário, não apenas anterior ao vínculo nacional,mas responsável direto pela construção ou pela quebra dessa unidade.Dadas essas condições, suprimir a presença indígena e missioneirana memória era o jeito de apagar a ingerência espanhola na históriaregional, ou seja, o passado era lido e reescrito de trás para frente.

O discurso das origens – essa “forma profana da narrativamitológica” (cf. Nora, 1997, p.34) – formou o repertório dosclássicos publicados no Rio Grande do Sul, e a dramaticidade comque os autores tentaram resolver a ambigüidade identitária do estadotalvez só seja comparável ao bem conhecido dilema racial brasileiro.O teor obsessivo dessa busca sugere que são os termos sob os quaisos estudiosos da história concebem o objeto e a operação quepretende dar conta dele que determinam a natureza das relaçõesentre seu trabalho e a função celebradora da memória. Se, comoquer Nora, a vigilância comemorativa é o que perfaz a verdade damemória institucionalizada, ela também sustentou a legitimidadeprofissional dos historiadores no Rio Grande do Sul. Sob esse aspecto,as dissensões entre as vertentes não dizem respeito somente àatribuição de uma função socializante para as narrativas, mas a

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contextos específicos de luta pela abertura e reconhecimento públicode espaços próprios de atuação dos intelectuais.

Enquanto “guardiães” da memória regional, os historiadorescontaram com o direito de enquadrar os significados extraídos deum passado que era, ao mesmo tempo, inventado e inventariado e,portanto, um meio eficaz de legitimação de poderes. Precisamentenesse ponto, revela-se o proveito de uma história dos lugares emque se refugia o passado da disciplina histórica. Esse objeto novopode bem manifestar o campo de possibilidades metodológicas emque se vem atuando, no cruzamento entre as novas linhas de pesquisae uma história das representações, em que o cultural não existe per

se, mas é social e concretamente instituído.31 Em outras palavras, seo estudo das práticas mediadoras do passado sugere a necessidadede uma história social de seus sujeitos mediadores, essa última análisehá de mostrar que a história contada nas instituições diretamenteencarregadas de sua produção é função, também, das lutas travadasentre os “profissionais do enquadramento” da memória.32

Vale então inserir, na análise da controvérsia de Sepé, um dadoque diz respeito ao estado de forças na competição entre os inte-lectuais da História e outros agentes mediadores, sobretudo ostradicionalistas, que aparecem com força no processo de“transbordamento” da memória gaúcha nos anos cinqüenta. Enquan-to a linha interpretativa de Velhinho e Rosa prescrevia o passadoregional como o capítulo militar da história brasileira, a posiçãocontrária – representada por Bernardi e, mais ainda, pelo grupo queo apoiava (historiadores-folcloristas, como Dante de Laytano e WalterSpalding) – investia na memória “local” (cf. Gasnier, 1997, p.3423-3478), abrigada nos costumes e no folclore. Tributária dos próceresdas literaturas romântica e modernista, coletora não só dosdocumentos oficiais, mas do passado “presentificado” pela tradiçãooral, essa memória ativista sugeria uma relativa variação de temasem relação ao repertório clássico da historiografia, sobretudo porqueo local ali se fazia representar por um novo sujeito histórico, pelo“guardião” de um passado vivenciado na prática: o “povo”, únicoelemento capaz de revelar o “substrato psíquico” da província.

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Assim, nem a organicidade da historiografia ocupada com asorigens, nem a correlação das versões históricas com os posicio-namentos políticos dos autores devem ofuscar o aspecto litigioso danormalização do passado no Rio Grande do Sul. O patrulhamentoexercido pelo Instituto confirma o caráter sedicioso da identidadelocal, que nunca partiu de um consenso apriorístico quanto aos seusatributos. Pelo contrário, a prática hoje corrente de representar oestado pelas alegorias “típicas” de um território singular, mas radi-calmente integrado ao conjunto das demais especificidades regionaisque constituem a pluralidade indivisível como um traço próprio“da” cultura nacional, foi construída à custa de reformulações perió-dicas e de acirradas disputas por prestígio e autoridade intelectuais.Sob a roupagem do rigorismo documental das análises, estava emjogo, nas discussões, não apenas a “validade” científica ou a grandezamoral das interpretações, mas a legitimidade em se constituíremseus autores como “porta-vozes” da região.

Fora dos meios institucional e acadêmico, essa legitimidade,se não chegou a ser questionada pelo Movimento Tradicionalistacomo um todo, foi duramente atacada por um jovem intérprete,também crítico do próprio tradicionalismo, que preferia, porquestões sobre as quais não caberia falar agora, denominar-se nativistae que, como ele, se mostrava preocupado com a erosão dos costumesantigos.

O autor, “mais brabo do que mutuca”33

Gaúcho missioneiro, nascido “na Bossoroca” (entãopertencente ao município de São Luiz Gonzaga) em 1941, NoelGuarany profissionalizou-se em 1962, após viajar pelo Paraguai,Argentina e Uruguai. Revendo a própria trajetória, o intérpreteconfere um sentido iniciático a essa viagem (“antes eu cantava atroco de canha”) (Noel..., 1977). Segundo ele, a experiência foi aresponsável pela troca de seu repertório, até então formado por tangose boleros, por um outro, afinado com a milonga, a chimarrita e ostemas folclóricos gauchescos. Após a viagem, Noel também passou

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a reclamar para si uma imagem de erudito e pesquisador da músicamissioneira. Em entrevista concedida nos anos 70, pouco apóscancelado, pela censura, o show que faria em companhia de nomescomo Milton Nascimento, Chico Buarque, MPB4 e Nara Leão,Guarany repontava essa auto-identificação estreita entre vida e obra,comum quando se trata da arte engajada no proselitismo identitário:

Quando eu quis cantar as Missões e não sabia por

onde começar, fui até Assunção, no Paraguai, e de lá

fui descendo pelos campos, pelos meios rurais

paraguaios. Depois entrei na Argentina, estive em

Misiones, de lá a Corrientes, depois Santa Fé, onde

existe muito índice de música guaranítica. De Santa

Fé passei à fronteira do Uruguai, cuja música em

muitos casos assemelha-se à paraguaia. Mas aqui no

Rio Grande do Sul não havia autoridade musical

nenhuma, a não ser o Barbosa Lessa, que tem

conhecimento de causa, mas não tinha intérpretes para

suas músicas. Então, dentro da poesia do Barbosa

Lessa, do Jayme Caetano Braum e do Aureliano de

Figueiredo Pinto, encontrei condições de cantar as

Missões, e de agüentar no osso do peito, dizer: “essa

aqui é a música missioneira” (idem).

Em 1983, Noel Guarany abandonou com alarde a cena artística(Noel..., 1983), retornando, anos mais tarde, não menos indignado,dizendo-se

[...] cansado dessa situação de país subdesenvolvido,

onde é preciso passar por mil peripécias culturais. Sou

um especialista em folclore missioneiro, mas nunca

me chamaram para falar sobre isso. Preferem outros

bobalhões por razões políticas. O Brasil é um país

comandado por mentecaptos (Guarany apud Etelvein,

1988).

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Morto em 1997, aos 56 anos, Guarany é, de fato, um dosnomes menos celebrados publicamente pelo MTG. Ao contráriode Jayme Caetano Braum, Barbosa Lessa, Antônio Augusto Fagundese Paixão Cortes, por exemplo, ele não tem CTG batizado com seunome, nunca trabalhou para o Estado nem administrou qualquerdas instituições fundadas no esteio da proliferação de CTGs nosanos 50, embora tenha sido reconhecido como um dos grandesnomes da gauchesca (gênero que inclui composições argentinas euruguaias, além de rio-grandenses) por críticos do centro do País,como Maurício Kubrusly e José Ramos Tinhorão.

O Defeito em questão

A payada Defeito34 figura como uma espécie de libelo tardiocontra a versão histórica oficial defendida pelos pareceristas doIHGRS. Organizada em duas partes, tem a primeira estruturadacomo um desafio recitado, ao longo do qual a referência ao carátersuspeito e ilícito do discurso acadêmico sobre a cultura é umaconstante. Já a segunda parte é cantada em ritmo milongueiro,propondo os fundamentos do culto às tradições missioneiras edelegando ao “payador indomado” a missão de manifestá-las, detransmiti-las e de zelar por sua integridade. As páginas seguintestrazem o poema na íntegra.

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Existem falsos professoresDe canudos mal-havidos,Chacais da literaturaLordecos, subnutridosDe gestação duvidosaForam neste mundo parido.Do rincão da BossorocaDa São Luiz à academiaLá das MissõesOriental pátria,Folclore e poesiaPatriotismo hereditárioPayador por dinastiaQue academia bagualBarbaresca e secularRegada com sangue e suorPlanta-se pátria pra darNativismo é recompensa,Folclore, pra replantar.Nesse mundo legendárioExponho todo o atavismoMisto de um grito de guerraRessonâncias de lirismoRebatendo aos quatro ventos

Supérfluos proselitismosDos ateus da realidadeDescrentes do autoctonismo.Regionalismo não faloSó em termos continentinosDe oceano para oceanoDo Caribe ao muro andino,Meu povo só tem fronteirasMarcadas pelo destino.Nos alfarrábios da históriaAtenienses e espartanosBanharam de sangue a terraEntre gregos e troianos– Nós aqui, os missioneiros,Com lusos e castelhanos.Ficou ruínas em AtenasE ficou ruínas aquiRegistro maquiavélicoDa minha pátria guarani– Por que tombou TiarajúE o guapo Guacurari.Aí está reles gringosDe canudinho suspeito:O teu falso paramento

Defeito

Noel Guarany

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nismo.

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eiros,os.s

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:

A monge não dá direito.– Direitos, só eu que tenhoDou sursis ao meu defeito.Ah, payador indomadoSempre a lutar contra o ventoA pátria é um fundamentoUm grito no descampado.É um eco renovadoNa garganta da querênciaDesafiando a prepotênciaQue quer ditar os valores,Mas a estes ditadoresNão chamamos de excelência.Nasci no centro dos ventosNo barro das oraçõesMeu destino são raízesQue brotam das Reduções– Onde o canto é a voz da pátriaMisteriosa das Missões.Por isso, a bem da históriaHei de cantar altaneiroDizendo verdades cruasNo meu estilo campeiro– Quando o Rio Grande nasceuJá existia um missioneiro.

Assim erguemos a pátriaComo quem ergue um altarE a guardamos sagradaNo viver e no cantarAs legendas missioneirasQue jamais hão de mancharÉ um dever dos payadoresZelar o bem da verdadeCom a garganta nos tentosE um rasgo de eternidadeE seguir cruzando o mundo– Escravos da liberdade.Como disse Martín Fierro– O cantor, legenda e glóriaQue deixou para o porvirSalmos da crioula história– Saibam que esquecer o ruimTambém é se ter memória.E vou calando a guitarra– A deusa da pulperiaQue me acompanha gaudériaNas minhas andanças braviasFecundando a pampa grande– alma, garra e melodia

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Vê-se que, de saída, o payador evidencia um endereçopreviamente determinado para a contundência dos seus versos,expondo, em tom de denúncia, a existência de “falsos professores,os chacais da literatura.” Através dessa referência velada ao críticoliterário Moysés Velhinho, o autor também reclama, para quem“vive” cotidianamente a tradição, a autoridade última em designaras raízes culturais do gaúcho: nesse caso, presume-se que a históriapertença a quem a carrega na memória, integrando o “hoje” ao mundo

legendário (o processo histórico vivido como recordação) que lhe dásentido.

A natureza desse argumento permaneceria opaca se não sesoubessem as razões pelas quais o autor decidiu optar pelo acentodiacrítico. Essas razões evidentemente ultrapassam em muito oterreno da “criatividade artística”, que é socialmente condicionadae, por isso mesmo, acionada num jogo de oposições que privilegiadeterminados cenários e personagens em detrimento de outros. Àluz do conhecimento histórico, o poema torna-se então documento,dado material e base de análise de um problema de hegemoniacultural que deve ser integrado à história política e social rio-grandense.

A payada mistura presente e passado num tempo mítico (aoinvés de progressivo, repetitivo), eliminando as fronteiras políticase privilegiando referenciais históricos e geográficos capazes decaracterizar a cultura rio-grandense numa matriz local vinculada aoPrata. As âncoras do passado indiviso são os pontos de ligação coma “outra banda”, como o limite “natural” do rio Uruguai, a experiênciajesuítica dos Sete Povos, a presença indígena, o contrabando de gado,os “xibeiros” e caudilhos de parte a parte envolvidos nas revoluçõesFarroupilha, Federalista e Cisplatina, como David Canabarro,Aparicio e Gumercindo Saraiva, Silveira Martins e Andresito Artigas.

Noel Guarany, ocupado em localizar a experiência missioneiracomo berço gerador do gaúcho, na estrofe “Do rincão da Bossoroca/Da São Luiz à academia/Lá das Missões/Oriental pátria, folclore epoesia/Patriotismo hereditário/Payador por dinastia”, começa poranunciar a própria procedência, reclamando desde já a autoridade

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de “filho da terra” para se pronunciar em nome dela. Simultanea-mente, ele afirma o vigor e o valor da academia autóctone (numaespécie da paródia à popular “escola da vida”), forjada pela históriasangrenta das Missões. A academia então seria vigorosa porqueinstalada na memória, herdada, presentificada e atualizada pelospayadores.

Nos versos seguintes, a referência ao universal, representadapela guerra de Tróia, coloca o passado das Missões em pé de igualdadecom os acontecimentos mais “nobres” da tradição ocidental. Ambasas guerras – guaranítica e ateniense – são entendidas como alvorecerda história. O uso do termo “alfarrábios” é aqui significativo, porquereclama o valor pela antigüidade e toma a experiência jesuítica comomarco inicial de ocupação do RS – o que fora tradicionalmentenegado pelos historiadores.

A presença indígena é nobilitada, tanto pela figura de SepéTiaraju, quanto pela evocação de um herói platino sob o pseudônimoGuarany (Andresito Artigas é o “guapo Guacurari, índio reduzidoem São Borja e adotado por José Artigas). Desse modo, a filiaçãoétnica torna-se parte da condição heróica: o próprio autor da poesiaauto-intitula-se “Guarany”; ele, a pátria e os missioneiros; os inimigossão os lusos e os castelhanos. Assim, o que havia sido pejorativamentenomeado pela ala documentarista do Instituto como “ruínas” e“lendas” é revertido em emblema: as ruínas, que seriam sinônimode insignificância cultural, transformam-se em testemunho materialdo passado, e as lendas, o terreno fértil que permite a transmissãoda memória entre as gerações.

Os dois últimos versos da estrofe, “Nesse mundo legendário/exponho todo o atavismo/Misto de um grito de guerra/Ressonânciasde lirismo/Rebatendo aos quatro ventos/Supérfluos proselitismos/Dos ateus da realidade/Descrentes do autoctonismo”, exprimem umdos fundamentos essenciais ao discurso ancestral: o de operar sobreuma identificação consentida ou, pelo menos retrospectivamente –como disse Dukheim a propósito da religião –, sobre “uma ilusãobem fundamentada” (apud Bourdieu, 1989, p.121). O seu poderde realização efetiva está no reconhecimento pelo grupo da verdade

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imaginada, e tanto Noel Guarany quanto os alvos de sua denúnciaentendem essa realidade como um dado natural, uma verdadeapriorística.

Ao mesmo tempo, independentemente do sentido dado peloautor aos versos da mencionada estrofe, eles colocam, sob asexpressões “ateus da realidade” e “descrença no autoctonismo”, umproblema enfrentado durante muito tempo pelas análises das lutasde representação. Apenas muito recentemente foi possível perceber-se o caráter performativo dos discursos de construção de identidades,isto é, o poder que a “crença coletiva tem de criar, pela sua energiamobilizadora [as “ressonâncias de lirismo”], as condições de suaprópria realização” (Bourdieu, 1989, p.121).

Nos versos “Regionalismo não falo/Só em termoscontinentinos –:/De oceano para oceano/Do Caribe ao muroandino/Meu povo só tem fronteiras/Marcadas pelo destino./Ah,payador indomado/Sempre a lutar contra o vento/A pátria é umfundamento/Um grito no descampado./É um eco renovado/Nagarganta da querência/Desafiando a prepotência/Que quer ditar osvalores/Mas a estes ditadores/Não chamamos de excelência.”, o autorenuncia as fronteiras da região: a pátria como “um fundamento”,um “eco renovado”, supõe a perpetuação da unidade passada pelamemória presente – missão do mediador/payador. O regionalismoparte não de “termos continentinos” (ou seja, a banda de cá do rioUruguai), mas das “fronteiras marcadas pelo destino”, pela história.

A região delineada por Noel Guarany supõe, portanto, umaaproximação radical com os países platinos (o que se expressa tambémno vocabulário empregado no poema, repleto de termos adaptadosao português, ou transpostos do castelhano). O recurso serve parareforçar sua identificação de payador afinado com as linhagenscelebrizadas de folcloristas argentinos. Por conta disso, o jogo deoposições desloca-se da contraposição portugueses versus espanhóis,Brasil versus Argentina e Uruguai – segundo as tradicionais versõeshistoriográficas do IHGB e IHGRS – para guaranis versus lusos ecastelhanos, ou ainda missioneiros versus “reles gringos”.

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A oposição campo versus cidade está referida, neste caso, à lógicainterna da “província” (o RS). Como a disputa se dá pela definiçãodos termos originais do suposto caráter regional, e a contenda ocorreentre um leigo e as autoridades intelectuais do estado, não se trataaqui de opor o estado como um todo à capital do País, mas decontrapor o interiorano (sintetizado na figura típica do gaúcho) aos“almofadinhas” da capital.35 Ao mesmo tempo, a figura idealizadado gaúcho libertário é conformada como antítese do colono servil eroceiro, os “reles gringos”. Noel encobre, dessa forma, todas asalteridades internas, como a presença de imigrantes alemães eitalianos nas Missões e a prática simultânea da atividade pastoril e ada agricultura familiar na região. Preocupado em identificar asMissões com a origem do gaúcho, ele unifica o pampa – conformaçãotopográfica limitada à fronteira sul e oeste do estado.

O uso situacional das classificações e dos estigmas é um bomindício de que as formas de solidariedade produzidas, partilhadas edisputadas pelos indivíduos em sociedade são muitas, o que impugnaa hipótese de que a nacionalidade ou mesmo a identidade regionalimponham-se como princípio básico de classificação entre oshomens. Na verdade, categorias múltiplas e transterritoriais, comoas identidades geracional, religiosa e de classe, não são excludentesentre si; cada uma delas é, pelo contrário, acionada em circunstânciasdiferentes com vistas à satisfação de interesses específicos de gruposdeterminados, em circunstâncias também determinadas. É a próprialógica segmentar do pertencimento o elemento que confere suaeficácia às classificações de origem, uma vez que, ao serem acionadas,elas mascaram as demais diferenças.

Na segunda parte do poema, o autor muda de interlocutor,dirigindo-se apenas indiretamente à Academia. Ele passa a privilegiar,primeiro, a evocação de seus próprios atributos de menestrel. Aquiele se dirige prioritariamente ao grupo do qual se alça a porta-voz, eisso é fundamental na medida em que constitui um mecanismo amais de exclusão da autoridade do IHGRS sobre as Missões,fundamentando o sentido manifesto do poema. Por sua vez, omanifesto – veículo privilegiado de demarcação das posições nas lutas

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de representação – ao unificar identidades, alçando o grupo àexistência social, tanto diante de outros grupos quanto de si mesmo.Pela objetivação verbal da existência do grupo, ele dá a partida àmobilização pelo direito ao reconhecimento da diferença (Bourdieu,1989, p.118). Não obstante, a eficácia das palavras dependerá, nestecomo em qualquer caso, do reconhecimento da autoridade de quemfala pelo grupo ao qual se dirige. Por isso é que o autor inicia acanção pela demonstração de sua própria origem, antes mesmo defalar em nome daqueles que quer representar, atestando assim alegitimidade do discurso para o próprio grupo em nome do qual seexpressa.

Finalizando, é necessário salientar o sentido imaginário do“grupo” a que se dirige o poeta. A ênfase da obra está toda emfundamentar sua existência pela ancestralidade: seja o missioneiroagricultor, peão, imigrante, ou qualquer outro, ele participa do“grupo” na medida em que herda o passado regional. O “dever dopayador”, para Guarany, é justamente transmitir essa herança depertencimento. Aos que consideram a reprodução de uma unidadeimaginária como sinônimo de ilusão histórica, faltaria saber que teruma identidade própria não é apenas ver-se a si mesmo, mas sersocialmente reconhecido enquanto tal.

Considerações finais

Após tantos jogos semânticos, talvez haja tempo para umapergunta retórica: afinal, o que é a memória? Uma resposta provisóriadiria que ela é o tanto de passado que permanece no presente. Comoo texto tentou demonstrar, porém, esse passado não se mantém vivocomo uma espécie de precipitação (no sentido que a química dápara a palavra) da experiência em nossa consciência através do tempo.Fosse assim, não teríamos memórias herdadas e aprendidas nopróprio processo de socialização pelo qual passamos ao longo davida. Na verdade, a presentificação do passado depende de umtrabalho ativo de rememoração que, além de inventivo e seletivo, épolítico porque regido pela interação entre atores e grupos situados

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em posições freqüentemente desiguais na escala social. Por outrolado, trabalhar sobre os usos sociais do passado representa, para ohistoriador, uma espécie de confronto consigo mesmo. Isso porque,seja numa abordagem mais etnológica das cosmologias elaboradaspor sociedades ágrafas, seja numa abordagem mais política, centradanas instituições ou na dimensão simbólica da violência exercida peloEstado, o tema traz consigo necessariamente a interrogação inversasobre o estatuto disciplinar da História, posto que, quando sepergunta o que é a memória, está-se perguntando, indiretamente, oque as distingue a ponto de uma tornar-se objeto da outra.

Como foi mencionado, já não é mais atribuição da disciplinaregistrar os fatos marcantes da epopéia nacional. O que uma Históriacontemporânea da memória pretende é avaliar a repercussão socialde determinados acontecimentos e a dinâmica com que sãoproduzidas essas repercussões, situando o problema em umadeterminada duração. Sem se dar por vencida pela autoridade daexperiência, como quer Guarany, ou se contentar com descreverpor não poder explicar, o objetivo de uma tal análise será, comodisse Jean Pierre Rioux, fecundar a tensão fulcral deste debate, queé a defasagem existente entre o instituído e o vivido, cuja avaliaçãoé um dever de ofício para o historiador.36

De acordo com a sugestão desse autor, inserida em uma históriasocial da cultura, o escrutínio da memória conduz a aplicar as regrasmais “positivas” do metier de historiador, aquelas que objetivam esocializam o tempo, contado e recortado numa narrativa. Contudo,essa operação só ganha consistência epistemológica na medida emque se reconciliar com o fato de ser, como sua própria matéria deanálise, um modo socialmente regulado de apropriação do passado.É ao preço de se haver com o compartilhamento da linguagem entresi e seus objetos que uma história da memória institucional vai revelarsua potencialidade heurística, consciente de que o passado é sempremediado e de que o tempo não é uma dimensão unívoca da realidade,mensurada pelo relógio ou pelos sentidos. Ele é, a um só tempo, osubstrato ontológico da história e uma escolha do historiador, razão

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pela qual essa escrita tomará sempre – na função evocatória danarrativa, na percepção do efêmero e da alteridade que ela trazconsigo – uma coloração emotiva. Em suma, a intensidade afetivaprópria de todo discurso acerca do ausente torna plástico o trabalhodo historiador, fazendo do seu texto um portador de memóriapotencial.

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Abstract. The paper explores the way as different processes and actors work oncollective memories, focusing specifically on relations between regionalism andnational identity at Rio Grande do Sul. Retaking opposed positions referring tothe “weight” of the Missões in the local memory, it examines official and alternativerepresentations of gaucho traditions. Both are linked to a regional discourse,endorsed by State’s action in its relations with intellectuals on one hand, and onthe other hand by citizens identified with popular art and traditionalism. Finally,this text points out the interdependence relations between History and Memory,considering that the knowledge of the struggles for controlling cultural identitiesallows to place the issue of social identity of historians, and their differentshistoriographic styles.Keywords: Memory. Historiography. Regionalism. Rio Grande do Sul.

Notas

1“[...] a memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade, tantoindividual como coletiva, na medida em que ela é também um fator extremamenteimportante do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou deum grupo em sua reconstrução de si.” (Pollak, 1992, p. 204).2 A História como uma operação, segundo o conceito formalizado por Michel deCerteau, é o resultado da combinação entre um lugar social (uma profissão, ummeio), uma prática, isto é, os procedimentos de análise e as regras que lhe conferemum caráter disciplinar, e uma escrita (o texto histórico). Com esse pressuposto,Certeau ressalta o caráter institucional, o jogo de forças sociais e as regras decomposição ocultas na escrita histórica, permitindo integrar “a” História à realidadesocial enquanto atividade humana, enquanto prática (Certeau, 1982, p.66).3 A região das Missões – cujo nome deriva das reduções de índios guaraniscatequizados pelos jesuítas a serviço da coroa espanhola a partir do século XVII –ocupa a parte noroeste do estado, entre a fronteira com a Argentina e com os

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campos de cima da serra, correspondendo à área banhada pelos rios Ijuí, Ibicuí,até o Jacuí. Essa região, de onde se repeliram ataques bandeirantes no século XVI,permaneceu em litígio entre espanhóis e portugueses desde 1750, e só foipermanentemente ocupada pelos últimos em 1801, com o Tratado de Badajoz.4 O problema dos lugares institucionais de memória é o objeto particularmentetrabalhado pela análise da construção da memória nacional francesa, na coleçãode sete volumes organizados por Pierre Nora entre 1984 e 1992, publicados pelaEditora Gallimard. Algumas citações serão referidas à edição in quarto, em trêsvolumes publicados em 1997 pela mesma Editora.5 A fusão de pressupostos evolucionistas com o adágio ciceronianista da históriamagistra vitae formam o eixo em torno do qual Lindolfo Collor, em discurso deabertura à cerimônia de fundação do IHGRS, sintetizou as relações da históriacom outros saberes, definindo suas finalidades: “[...] como a história érigorosamente uma ciência de observação em que se resumem todas as outras, asua sistematização não será possível sem um estudo constante dos fatos que nelase concatenam, de sorte a se irem estabelecendo em leis todos os fenômenos quese ligam entre si por circunstâncias invariáveis de semelhança, coexistência ousucessão. O estudo da história tem, pois, uma dupla e convergente finalidade: –Visto por um prisma restrito, dá às sociedades que o praticam a possibilidadesempre renovada de melhor preparar o futuro pelo conhecimento do passado, aopasso que, de um ponto de vista mais amplo e geral, concorre para a fixaçãosistemática das leis que regem o gradual desenvolvimento da humanidade, tantomoral como material.” (Collor, 1921, p.4-5).6 Rubem Oliven (1992) assinala que, nas atualizações da auto-representaçãoregional, as peculiaridades históricas do estado sustentaram, de um lado, a ênfasena fragilidade dos laços mantidos com o resto do país e, de outro, o meio deafirmação da brasilidade do Rio Grande.7 Ver Lins de Barros (1989, p. 30).8 Em resposta à psicologia de Bergson, Halbwachs (2002) argumenta, no iníciode Le Cadres Sociaux de la Mémoire, não haver razão para “[...] perguntar-se ondeestão as lembranças, onde elas se conservam, se no meu cérebro ou em qualquercanto de meu espírito onde só eu teria acesso, pois que elas me vêm do exterior, eporque os grupos aos quais pertenço oferecem-me a cada instante os meios de asreconstruir”.9 Para autores como Pierre Nora e Jacques Le Goff, a desidentificação traduz onascimento de uma “consciência historiográfica” na disciplina: “alguma coisafundamental se inicia quando a história começa a fazer sua própria história. Onascimento de uma preocupação historiográfica [...] interrogando-se sobre seusmeios materiais e conceituais, sobre os procedimentos de sua própria produção eas etapas sociais de sua difusão, sobre sua própria constituição em tradição, toda ahistória entrou em sua idade historiográfica, consumindo sua desidentificação

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com a memória. Uma memória que se tornou, ela mesma, objeto de uma históriapossível.” (Nora, 1997, p.28). Jacques Le Goff (1992, p.542), citando FrançoisFuret, designa uma “revolução da consciência historiográfica” que desloca o própriofazer histórico da periferia para o centro do debate, ao afirmar que, no séculoXIX, “ao princípio era o documento; hoje, ao princípio é o problema”.10 Cf. a “epistemologia da coincidência”, referida por Roger Chartier em À Beirada Falésia (2002, p. 13).11 Michael Pollak foi um dos primeiros autores a ressaltar a opressão de memóriasoficiais sobre agentes que viveram experiências largamente apropriadas pelo estadoNacional. Em estudo sobre o silenciamento público e a formalização de uma“memória subterrânea” entre ex-deportados judeus, mostrou que “No momentodo retorno do reprimido, não é o autor do ‘crime’ [a Alemanha] que ocupa oprimeiro lugar entre os acusados, mas aqueles que, ao forjar uma memória oficial,conduziram as vítimas da história ao silêncio e à renegação de si mesmas.” Omesmo autor adverte que “Embora na maioria das vezes esteja ligada a fenômenosde dominação, a clivagem entre memória oficial e dominante e memóriassubterrâneas [...] não remete forçosamente à oposição entre Estado dominante esociedade civil. Encontramos com mais freqüência esse problema nas relaçõesentre grupos minoritário e sociedade englobante.” (Pollak, 1989, p. 5).12 Segundo o autor, “é nesta dimensão simbólica, a menos estudada e talvez a maisnova, que se situa hoje a reinterrogação do político pela historia, pela filosofia,pelo direito e pela literatura” (Nora, 1992b, V. II, p. XXI). Vale destacar que,neste caso, colocar o problema que define a construção do objeto nos termos deum determinado nível de realidade não implica considerar instânciashierarquicamente dispostas entre o que seria a realidade (“objetiva”) e asrepresentações da realidade (“subjetivas”), mas em afirmar a equivalência dos objetosdo conhecimento com respeito à adoção de uma determinada perspectiva de análise.Cf. Chartier (1990, p.73-80).13 A expressão é de Rioux (1997, p. 327).14 Em La Creation des Identités Nationales, Anne-Marie Thiesse (1999, p.207)propõe a análise, em meio ao processo de criação das identidades nacionaiseuropéias, dos esforços intelectuais empreendidos para provar a existência concretada nação. Deslocando a ênfase do inventário de atributos ancestrais para osmecanismos e veículos de sua construção e disseminação, a autora ressalta o trabalhode observação mútua intrínseco à criação de check lists identitários, acrescentandoque “é preciso de tudo para criar um mundo, mas a lista dos ingredientes necessáriosà representação de uma identidade nacional é bem delimitada”.15 Críticas à metodologia aplicada na formulação desses conceitos poderão serencontrados em Nedel (1999, p. 22 et passim, 2004).16 Este cânone concentrou sobre si praticamente toda a prosa de ficção produzidano estado até os anos 50 e teve, no conto – que, até os anos 30, era o gênero deiniciação, dando lugar em seguida ao romance social –, sua expressão preferencial.

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17 Cesar Guazzeli (2001/2002, p.58) mostra bem como, do processo de regeneraçãopletórica do gaúcho no Uruguai, Argentina e Brasil, saíram gêmeos bivitelinos,gerados no fundo comum da paisagem fronteiriça: “Guardadas as proporções –nos países de fala castelhana o gaúcho esteve relacionado à defesa de lo nuestrocontra o estrangeiro, e no Rio Grande assumiu o papel de ‘sentinela avançada’ doBrasil –, [enquanto] dos dois lados da fronteira assumiu característicasestereotipadas que diziam respeito à liberdade, força, orgulho, rudeza, reunindoas melhores qualidades do trabalhador rural às do guerreiro que defende as justascausas, como independência, república, federalismo e nacionalidade.”18 Sobre a entrada desses referenciais no Rio Grande do Sul, ver Nedel (1999, cap.IV).19 A Comissão, criada em 1948 e oficiosamente sediada no Museu Julio deCastilhos, era a representante oficial gaúcha da Comissão Nacional de Folclore(CNFL), vinculada ao Ministério das Relações Exteriores no Rio de Janeiro. Suaorganização em 1947, como parte da convenção internacional de criação daUNESCO, representou a partida rumo a um enérgico esforço em prol dainstitucionalização dos estudos de Folclore no Brasil, projeto disciplinar defendidoem um momento estratégico e intermediário dentro do desenvolvimento dasCiências Sociais. Ver Nedel (1999) e Vilhena (1997).20 Nas décadas de trinta e quarenta, consagra-se, no Brasil, o parâmetro regionalistade composição literária e pictórica da cultura nacional, que havia sido lançadopelos modernismos. Como ressaltou Heloísa Pontes, as experiências culturais devanguarda do decênio anterior perdem, desde aí, a marca original de transgressão,sofrendo um processo de “normalização” (Pontes, 1988, p.58). No mesmo período– marcado pelo desenvolvimento do mercado interno de bens culturais e o chamado“boom” das atividades relacionadas ao livro – as grandes editoras, seus catálogos eos anuários brasileiros de Literatura formariam, juntamente com o Estado, umaarena privilegiada de delineamento dos contornos regionais do mapa brasileiro,assim como da identidade social dos escritores. Segundo Gustavo Sora, elesmediarão uma competição intelectual “[...] marcada pelo problema da unidadeentre as unidades da federação. Literatura ou interpretações das regiões eram osprodutos que mediavam [a] disputa entre intelectuais de diferentes rincões dopaís pela imposição de ‘tipos humanos’ e ‘tradições genuinamente brasileiras’.”(Sorá, 1998, p. 248).21 Tais sugestões constam no “Prefácio” de Gilberto Freyre à coletânea Região eTradição, publicada em 1940.22 Ali, em 7 de fevereiro de 1756, três dias antes da famosa “Batalha de Caibaté”– desfecho trágico da guerra –, Sepé foi abatido numa escaramuça pelo governadorde Montevidéu, José Joaquim Viana, membro das forças espanholas de demarcaçãodas Missões. Tiaraju havia sido um dos principais líderes da resistência à entregadas Reduções, de seus bens e terras aos portugueses e à transferência compulsória

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de toda a população reduzida para terras de Espanha, sem direito a levar consigoquaisquer bens.23 Os pareceres históricos do Instituto eram usados na elaboração do calendáriofestivo regional, na construção de obras e monumentos, na liberação de verbaspara compras de acervo a museus locais e na confecção dos símbolos oficiais dospoderes públicos. Exemplo disso foram as encomendas do escudo da prefeitura dePorto Alegre, cuja data de fundação, depois de intensa discussão entre oshistoriadores, acabou trocada de 1740 para 1772. Especificamente quanto aocaso Sepé, o parecer do Instituto, a réplica apresentada na assembléia seguinte emuitos manifestos de historiadores, folcloristas e tradicionalistas estão reproduzidosnos apêndices da chamada “Obra Completa” de Mansuetto Bernardi, escrita em1957 e toda ela dedicada ao assunto. Ver Bernardi (1980). Uma análise, sob outroponto de vista, dessa discussão pode ser encontrada em Gutfreind (1989, p. 200e seguintes).24 Parecer da Comissão de História do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grandedo Sul Contra Sepé Tiaraju (Bernardi, 1980, p. 139).25 Moysés Velhinho foi um estudioso da literatura e da história dos mais atuantese controversos do Rio Grande do Sul. Iniciou sua carreira como crítico literário, jáprotagonizando polêmicas quando, em meados de 1925, sob o pseudônimo dePaulo Arinos, travou debate na imprensa com Rubens de Barcellos a propósito daobra de Alcides Maya. Participou dos preparativos da Revolução de 30, ao lado deOswaldo Aranha, e, após a vitória, seguiu para o Rio de Janeiro, a fim de exercera função de chefe de seu gabinete no Ministério das Relações Exteriores. Retornouum ano depois para Porto Alegre, onde continuou militando na imprensa partidárianos jornais Jornal da Manhã e A Federação, órgão do Partido Republicano Liberal,sucessor do PRR. Foi deputado estadual por esse partido de 1935 a 37. Ingressouno IHGRS em 1949.26 Membro do IHGRS desde 1927, foi Intendente Municipal de São Leopoldo,diretor da Livraria do Globo entre 1918 e 1930, fundador da famosa Revista doGlobo, amigo de Alcides Maya e líder influente do chamado “grupo da Livraria”.Além disso, já tinha sido diretor de escola, funcionário da Secretaria do Interiordo RS e partícipe da campanha revolucionária de 30, sendo chamado por Vargaspara dirigir a Casa da Moeda, entre 1930 e 1938.27 O Manifesto foi publicado pelo Correio do Povo, de Porto Alegre, em 5.2.1955.28 Na réplica, transparece o “remorso” do Pe. Luiz Gonzaga Jaeger ao falar dosmotivos que o teriam levado a refutar a Comissão e o próprio voto: “ia-se meagravando no espírito a nítida sensação de se haver cometido uma flagrante injustiçacontra um índio altamente benemérito do nosso velho Rio Grande, que dera asua vida por uma causa das mais nobres e que deveria sair a defendê-lo”. LuizGonzaga Jaeger, Refutação do Parecer da Comissão de História (apud Bernardi,1980b, p. 146).

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29 O contraparecer leva o título de Pá de Cal sobre o Assunto Sepé. Nele, historiadoresligados aos estudos de folclore, como Dante de Laytano e Walter Spalding, emilitares, como De Paranhos Antunes e Henrique Oscar Wiedespahn, aliados eamigos de Dante de Laytano, posicionam-se ao lado de Bernardi, identificandoem Sepé, entre outros valores, o de ter sido um gaúcho “muito mais brasileiro –não no sentido político e moderno do vocábulo, mas no sentido etnogênico eracial do que os mais velhos rio-grandenses, pois estes descendem de lusitanosaqui aportados, no máximo há 230 anos, ao passo que ele provinha de uma ‘nação’aqui radicada ‘desde o tempo do dilúvio” (Cf. Bernardi, 1980b, p. 171).30 Nos cadernos culturais do Correio do Povo, encontra-se, dois anos após, ainda acontinuidade da polêmica, sucedendo-se artigos pró ou contra o Monumento.Ver, a título de exemplo, as posições de Castro (1957, p. 8) e Ferreira Filho (1957,p. 13). Também é notável, quanto à longevidade da discussão, o fato de que,quase dez anos mais tarde, Moysés Velhinho (1964) retome sua posição e amplieos argumentos contra Bernardi e Teschauer ao publicar Capitania d’El Rey: aspectospolêmicos da formação rio-grandense.31 Neste caso, em consonância com Roger Chartier, à ”representação” devem-seatribuir três sentidos simultâneos: um primeiro, inspirado nas críticas de Durkheime Mauss às filosofias apriorista e empirista da consciência, de esquemas partilhadosde percepção e de juízo herdados, que corresponderiam à própria incorporaçãono indivíduo da estrutura social – “as configurações intelectuais múltiplas, atravésdas quais a realidade é contraditoriamente construída pelos diferentes grupos”. Osegundo sentido diz respeito à construção dinâmica dos significados, quecorresponde ao processo de luta pela imposição das identidades sociais: “as práticasque visam fazer reconhecer uma identidade social, exibir uma maneira própria deestar no mundo, significar simbolicamente um estatuto e uma posição”. Por último,o sentido mais cênico da palavra tem a ver com a “apresentação” da identidadesocial – “as formas institucionalizadas e objetivadas graças às quais uns‘representantes’ (instâncias coletivas ou pessoas singulares) marcam de forma visívele perpetuada a existência do grupo, da classe ou da comunidade” (Chartier, 1990,p. 23).32 “O trabalho de enquadramento da memória alimenta-se do material fornecidopela história. Esse material pode sem dúvida ser interpretado e combinado a umsem-número de referências associadas; guiado pela preocupação não apenas demanter as fronteiras sociais, mas também de modificá-las, esse trabalho reinterpretaincessantemente o passado em função dos combates do presente e do futuro.”(Pollak, 1989, p. 9-10).33 Expressão empregada pelo poeta Jayme Caetano Braum nos versos deapresentação de Noel Guarany no disco Quatro troncos missioneiros (Rio de Janeiro,CBS, s/d): “[...] Noel Guarany/Tropeando desde guri/Nunca cai em arapuca/Mais brabo do que mutuca/Vem do berço de Sepé/Andou morando em Bagé/NaBaixada do Manduca”.

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34 O poema foi transcrito do disco Alma, Garra e Melodia. Coleção Música Populardo Sul, Rio de Janeiro: Copacabana; FINEP, 1981.35 É recorrente, na obra de Noel Guarany, a referência pejorativa aos centros urbanosde formação intelectual: além da alusão aos “canudos mal-havidos” dos professoresde Porto Alegre, em outras poesias, ele constrói personagens que vão “comprarcanudos em Pelotas”. A constância dessas referências, se guarda alguma relaçãocom o baixo grau de instrução formal do poeta, remete mais à tradição gauchescade Martin Fierro, na qual a formação na “escola da vida” distingue o gaucho dosfilhos ilustrados de estancieiros cosmopolitas.36 “O historiador da memória deve viver e ultrapassar [...] uma tensão fecundamas lancinante e seguidamente incômoda: o esquartejamento, constitutivo dodomínio cultural, entre o instituído e o vivido: entre, de uma parte, as memóriasnacionais em contínuo, autárquicas, comemoradas, auto-satisfeitas, ensinadas paraserem partilhadas e, de outra parte, as memórias particulares, comunitárias ou‘multiculturais’, soltas ao vento e muito ao sabor de um tempo deslocado.” (Rioux,1997, p.327).

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Regionalismo, historiografia e memória: Sepé Tiaraju em dois tempos

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Anos 90, Porto Alegre, v. 11, n. 19/20, p.347-389, jan./dez. 2004

Letícia Borge Nedel

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RIOUX, Jean-Pierre. La memóire collective. In: RIOUX, J. P.; SIRINELLI, J.F. Pour une histoire culturelle. Paris: Seuil, 1997. p. 235-253.

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PROGRAMADE PÓS-GRADUAÇÃO

EM HISTÓRIADA UFRGS

Anos 90, Porto Alegre, v. 11, n. 19/20, p.391-400, jan./dez. 2004

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RELAÇÕES SOCIAIS DE DOMINAÇÃO E RESISTÊNCIA

Tem como ênfase as múltiplas formas pelas quais os sujeitos sociaisse constituem, relacionam-se, dominam, resistem, reagem, constroem/destroem uma ordem social. Nesta perspectiva estão contemplados, entreoutros: relações econômicas, relações de classe, relações de trabalho, relaçõesde gênero, constituição de identidades sociais, minorias, rebeldia popular,movimentos sociais, organizações populares, lutas urbanas, lutascamponesas, estratégias de dominação e resistência, relações familiares,constituição e disciplinamento do espaço urbano e a vida cotidiana.

RELAÇÕES DE PODER POLÍTICO-INSTITUCIONAIS

Tem como ênfase a constituição, legitimação, exercício, ocultamentoe as várias formas de contestação dos múltiplos poderes que se desenvolvemno âmbito político-institucional. Nesta perspectiva estão contempladasquestões como: Estados nacionais, separatismos e relações internacionais;origem e difusão dos nacionalismos; fronteiras; identidades regionais enacionais; a criação e a institucionalização dos espaços público e privado,a construção da cidadania e seu exercício; regimes autoritários e democracia;instituições partidárias, hospitalares, religiosas, carcerárias e militares;legislação e transgressão; ordem e desordem, reforma e revolução.

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Linhas de Pesquisado PPG em História

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CULTURA E REPRESENTAÇÕES

A linha tem como eixo que aproxima as pesquisas dos seus professoresuma abordagem teórica pertinente à História Cultural, ou seja, aquelacentrada no conceito da representação e do entendimento da cultura comouma construção de sentidos partilhados. Enfoca as diversas práticas erepresentações coletivas pelas quais os homens, através da história, atribuemsignificado ao mundo. Este campo contempla as análises sobre aconstrução das múltiplas identidades (étnicas, raciais, de gênero, regionais,nacionais, urbanas); a produção de saberes e relações de poder; as variadasformas de produção, transmissão, recepção e difusão da cultura; ascondições de emergência, construção e transmissão da memória e dopatrimônio; os estudos sobre a narrativa e a leitura e, em particular, aescrita da história; as relações entre a história e a literatura; o estudo dassensibilidades e da subjetividade; a produção de mitos, utopias eimaginários sociais; os estudos sobre iconografia e iconologia; as análisessobre a ordenação do espaço, as práticas sociais e as representações domundo urbano; os estudos sobre a institucionalização de ritos; a produçãosignificada da cultura material.

TEORIA DA HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA

Tem como ênfase a problemática da produção do conhecimentohistórico, em suas dimensões teórico-metodológicas e historiográficos.Desenvolve investigações sobre percursos historiográficos com delimitaçõesespaciais, temporais ou temáticas; também se ocupa – sem desconhecersua historicidade e caráter instrumental – das tendências analíticas, escolas,teorias e métodos presentes no trabalho do historiador e questões que,com diferentes abordagens, comparecerem, tais como: estrutura/sujeito;fragmentação/ totalidade; temporalidade/espacialidade; objetividade/subjetividade; realidade/ representação; cotidiano/história; ciência/ficção;interdisciplinaridade.

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Autora: NAGEL, Liane Maria

Título: As Missões no imaginário e nas representações das Artes Visuais.Rio Grande do Sul, segunda metade do século XXOrientador: Prof. Dr. José Augusto Costa AvanciniDefendida em: 30/01/2004Banca Examinadora: Profs. Drs. Lizete Dias de Oliveira (ULBRA), MariaEunice Maciel (UFRGS/PPG-Antropologia), Francisco Marshall(UFRGS/PPG-História)

Autor: GANDRA, Edgar Ávila

Título: Porto dos Direitos: a trajetória do Sindicato dos Trabalhadoresnos serviços portuários de Porto Alegre no período de 1959 a 1969, atravésda análise das suas atasOrientadora: Profa. Dra. Sílvia Regina Ferraz PetersenDefendida em: 03/03/2004Banca Examinadora: Profs. Drs. Ieda Gutfreind (UNISINOS), MarluzaMarques Harres (UNISINOS), Benito Bisso Schmidt (UFRGS/PPG-História)

Autor: HAGEMEYER, Rafael Rosa

Título: A identidade antifascista no cancioneiro da Guerra Civil EspanholaOrientadora: Profa. Dra. Sílvia Regina Ferraz PetersenDefendida em: 12/04/2004Comissão Avaliadora: Profs. Drs. Maria Helena Rolim Capelato (USP),Marcos Francisco Napolitano de Eugênio (UFPR), Cesar Augusto BarcellosGuazzelli (UFRGS/PPG-História)

395Teses defendidas

em 2004

Anos 90, Porto Alegre, v. 11, n. 19/20, p.391-400, jan./dez. 2004

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Autor: BENEDUZI, Luís Fernando

Título: Mal di Paese: as reelaborações de um vêneto imaginário na ex-colônia de Conde d’Eu (1884-1925)Orientadora: Profa. Dra. Sandra Jatahy PesaventoDefendida em: 22/7/2004Banca Examinadora: Profs. Drs. Roberto Vecchi (Univ. Bologna/Itália),Eloisa Helena Capovilla da Luz Ramos (UNISINOS), Nuncia Santorode Constantino (PUCRS), Regina Weber (UFRGS/PPG-História)

Autor: BLANCO, Fernando Luís

Título: Fronteras Étnicas en el corazón de América del Sur (1776-1820)Orientadora: Profa. Dra. Susana Bleil de SouzaDefendida em: 10/9/2004Banca Examinadora: Profs. Drs. Chiara Vangelista (Univ. Turim/Itália),Maria de Fátima Costa (Univ. Federal de Mato Grosso), Héctor HugoTrinchero (Univ. Buenos Aires, Argentina), Sandra Jatahy Pesavento(UFRGS/PPG-História)

Autor: PACHECO, Ricardo de Aguiar

Título: A vaga sombra do poder: vida associativa e cultura política naPorto Alegre na década de 1920Orientadora: Profa. Dra. Helga Iracema Landgraf PiccoloDefendida em: 29/10/2004Banca Examinadora: Profs. Drs. Eloisa Helena Capovilla da Luz Ramos(UNISINOS), René Ernaini Gertz (PUCRS), Sandra Jatahy Pesavento(PPG-História/UFRGS), Paulo Gilberto Fagundes Vizentini (UFRGS/PPG-História)

Autora: KLEIN, Ana Inez

Título: Fronteiras de Cristal: um estudo sobre a memória e a história atravésdas crônicas “Antigualhas: reminiscências de Porto Alegre”Orientador: Profa. Dra. José Augusto AvanciniDefendida em: 21/12/2004Banca Examinadora: Profs. Drs. André Atila Fertig (UFSM), Maria Eunicede Souza Maciel (Antropologia/UFRGS), Márcia Ivana de Lima e Silva(PPG-Letras/UFRGS), Maria Luiza Filippozzi Martini (UFRGS/PPG-História)

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Anos 90, Porto Alegre, v. 11, n. 19/20, p.391-400, jan./dez. 2004

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Autor: NICOLAZZI, Fernando Felizardo

Título: O conceito de experiência histórica e a narrativa historiográficaOrientador: Prof. Dr. Temístocles A. Correa CezarDefesa em: 03/02/2004Banca Examinadora: Profs. Drs. Manoel Luiza Lima Salgado (UFRJ),Cláudio Pereira Elmir (UNISINOS), Sílvia Regina Ferraz Petersen(UFRGS/PPG-História)

Autora: MÉNDEZ, Natália Pietra

Título: Discursos e Práticas do Movimento Feminista em Porto alegre(1975-1982)Orientadora: Profa. Dra. Claudia WassermanDefesa em: 04/02/2004Banca Examinadora: Profs. Drs. Rachel Soihet (UFF), Céli Regina JardimPinto (UFRGS/PPG-C. Política), Cesar Augusto Barcellos Guazzelli(UFRGS/PPG-História)

Autor: FRAGA, Gerson Wasen

Título: Brancos e Vermelhos: a Guerra Civil Espanhola através das páginasdo jornal Correio do Povo (1936-1939)Orientador : Prof. Dr. Cesar Augusto Barcellos GuazzelliDefesa em: 05/02/2004Banca Examinadora: Profs. Drs. Maria Helena Rolim Capelato (USP),Claudia Wasserman (UFRGS/PPG-História), Temístocles A. Correa Cezar(UFRGS/PPG-História)

397Dissertações defendidas

em 2004

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Autor: SILVA, Márcio Antônio Both da

Título: Por uma lógica camponesa: caboclos e imigrantes na formação doagro-rio-grandense (1850-1900)Orientadora: Profa. Dra. Regina WeberDefesa em: 05/02/2004Banca Examinadora: Profs. Drs. Arlene Anelia Renck (UNOCHAPECÓ),Paulo Afonso Zarth (UNIJUÍ), Helen Osório (UFRGS/PPG-História)

Autor: PASSUELLO, Victor

Título: O mito das quatro idades e as concepções especulativas da histórianas tradições clássicas e judaico-helenísticasOrientador : Prof. Dr. Francisco MarshallDefesa em: 06/02/2004Banca Examinadora: Profs. Drs. Kátia Maria Paim Pozzer (ULBRA), PauloAugusto de Souza Nogueira (UMESP), Temístocles A. Correa Cezar(UFRGS/PPG-História)

Autor: COSTA, Hilton

Título: Horizontes raciais: a idéia de raça no pensamento social brasileiroOrientador : Prof. Dr. José Rivair MacedoDefesa em: 05/03/2004Banca Examinadora: Profs. Drs. Maria Eunice Maciel (UFRGS-Antropologia), Carla Simone Rodeghero (UFRGS/PPG-História),Temístocles A. Correa Cezar (UFRGS/PPG-História)

Autora: ROSA, Michele Rossoni

Título: O pensamento de esquerda e a revista Civilização Brasileira (1965-1968)Orientador : Prof. Dr. Cesar Augusto Barcellos GuazzelliDefesa em: 12/4/2004Banca Examinadora: Profs. Drs. Maria Helena Rolim Capelato (USP),Claudia Wasserman (UFRGS/PPG-História), Temístocles Cezar (UFRGS/PPG-História)

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Autora: FRAGA, Thais Gomes

Título: Os subterrâneos emergem: a institucionalização da cultura e atemporada dos museus no Rio Grande do Sul (1987-1990)Orientadora: Profª. Dra. Sandra Jatahy PesaventoDefendida em: 29/07/2004Banca Examinadora: Profs. Drs. Maria Medianeira Padoin (UFSM), EloisaCapovilla da Luz Ramos (UNISINOS), Maria Luiza Filippozzi Martini(PPG-História/UFRGS)

Autor: REMIÃO, Cláudio Roberto Dornelles

Título: Música e Brasil – uma interpretação dos primeiros usos dobarrocoOrientador : Prof. Dr. Francisco MarshallDefendida em: 1o/10/2004Banca Examinadora: Profs. Drs. Paulo Augusto Castagna (PPG-Música/UNESP), Márcia Ramos de Oliveira (UDESC), José Augusto CostaAvancini (PPG-História/UFRGS)

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Anos 90, Porto Alegre, v. 11, n. 19/20, p.391-400, jan./dez. 2004

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NORMAS PARA PUBLICAÇÃO NA REVISTA ANOS 90

1. A revista Anos 90 aceita artigos inéditos na área de Históriae disciplinas afins e outras matérias como resenhas de livros,entrevistas, discussões historiográficas da atualidade etc.

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