Experiências e Símbolos de Transformação Na
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Universidade Federal de Juiz de Fora Instituto de Cincias Humanas e Letras
Mestrado em Cincia da Religio
Experincias e Smbolos de Transformao na
Doutrina da Floresta
Dissertao apresentada ao Programa
de Ps-Graduao em Cincia da
Religio como requisito parcial
obteno do ttulo de mestre em
Cincia da Religio por Srgio Alex
Silva Lima sob orientao do Prof
Dr. Raul Francisco Magalhes
Juiz de Fora 2005
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Dissertao apresentada Banca Examinadora, composta por:
_____________________________________________________
Prof. Dr. Raul Francisco Magalhes
_____________________________________________________
Prof. Dra. Ftima Regina Gomes Tavares
_____________________________________________________ Prof. Dra. Sandra Maria Corra de S Carneiro
-
Uma verdadeira viagem de descobrimento no
encontrar novas terras, mas ter um olhar novo
Marcel Proust
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AGRADECIMENTOS:
A CAPES, pelo incentivo pesquisa.
Aos meus pais Antonio e Vilma, pelo amor, cuidado e confiana.
Aos meus irmos Mara, Marcos, Mrcio, Andr e demais familiares (em especial tia
Bernadete, tia Helena e tia Zete), pela fora e ateno sem medida.
A todos que compem o Programa de Ps-Graduao em Cincia da Religio, por
tornar possvel a realizao deste trabalho.
Ao meu orientador Raul Francisco Magalhes, pela interlocuo e sugestes
imprescindveis.
A toda comunidade do Padre Gaspar Loureno, atravs de D. Zez.
A cada um dos amigos de jornada, fraternas companhias a suavizar as turbulncias do
seguir.
Ao G-11 (Kely, Alex, Patrcia, Marcos, Andra, Marcelo, Nanah, Alain, Reuber e
Andr) e hermanos mineiros, dos tempos da PC e todos os outros.
A Gal, Edel, Joozinho e Dr. Marcelo por suas edificantes colaboraes.
A toda famlia Juramid, a irmandade do Santo Daime, especialmente comunidade
do Matutu (Ruth, Sidney, Mestre Paulino e Guilherme, em nome de todos) e irmos da igreja do
Cu das Estrelas (Rodolfo e ngela, Fernando e Tonha, Mrcio e Adlia, Cludio, Alain, Daniel,
Cristina, rika, Bimbim e Piota em nome dos demais), Gabriel e Vera Fres; Olvio e Rodrigo
do Cu da Campina.
Ao Mestre Irineu e o Padrinho Sebastio.
Ao Santo Daime, o Professor dos Professores, por todos os ensinos, Luz e Fora.
A Infinita Soberania Divina em todas as suas manifestaes e formas.
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INDICE
Resumo ...................................................................................................................... p.02
Apresentao.............................................................................................................. p. 04
I - Primeira Parte - Introduo .............................................................................. p. 16
1 - Os contextos de uso da ayahuasca........................................................................ p. 16
1.1 - Ayahuasca entre os ndios ................................................................................ p. 22
1.2 - Populao mestia amaznica .......................................................................... p. 24
1.3 As principais religies ayahuasqueiras ............................................................ p. 25
1.3.1 - O Santo Daime .............................................................................................. p. 26
1.3.2 - A Barquinha .................................................................................................. p. 31
1.3.3 - A Unio do Vegetal (UDV) .......................................................................... p. 32
2 - xtase, Luz e transformao ............................................................................... p. 37
3 - A cura na pesquisa sobre a ayahuasca ................................................................ p. 40
4 - Aspectos etnobotnicos, psicofarmacolgicos e qumicos da Ayahuasca.......... p. 44
5 - Sincrtico, ecltico... hbrido .............................................................................. p. 46
II - Segunda Parte Experincias e Smbolos de Transformao ..................... p. 51
1. Daime: compreenso do ch e dos seus efeitos / Do auto-conhecimento ............ p. 60
2. Sobre a individuao.............................................................................................. p.70
3. Da Purificao ...................................................................................................... p. 76
4. Outros apontamentos sobre a transformao em Jung.......................................... p. 78
5. Sobre o Renascimento .......................................................................................... p. 85
6. Sofrimento, Morte e Renascimento ...................................................................... p. 91
III Consideraes Finais...................................................................................... p. 96
IV Bibliografia...................................................................................................... p. 100
V Anexos............................................................................................................... p. 104
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RESUMO
O trabalho que segue versa sobre experincias de transformaes existenciais
mencionadas como decorrentes do contato com o universo simblico da doutrina do Santo
Daime, conforme relatadas por membros de dois grupos da religio localizados no estado de
Minas Gerais, nas cidades de Aiuruoca e Juiz de Fora.
Na primeira parte buscamos nos aproximar da diversidade que caracteriza o mundo da
religiosidade ayahuasqueira. Ayahuasca um dos nomes indgenas do ch do Santo Daime. Esse
grupo religioso que considera a bebida um sacramento instituiu-se por volta da dcada de trinta
do sculo XX, na Amaznia, a partir das revelaes recebidas pelo maranhense Raimundo Irineu
Serra, o Mestre Irineu, possuindo hoje ncleos por vrios pases alm dos que existem no Brasil.
Aborda-se ainda a questo da teraputica relacionada a experincias extticas desencadeadas por
psicoativos, bem como detalhes psicofarmacolgicos do Santo Daime.
Na segunda parte apresentamos os resultados do trabalho de campo, associando-os a
reflexes sobre alguns estudos de Mircea Eliade e Carl Gustav Jung. Foram enfocados aspectos
simblicos e mticos relacionados ao tema das transformaes, priorizando elementos
correlacionveis s experincias de transformao apresentadas pelos religiosos como
conseqncia do contato com o Santo Daime.
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ABSTRACT
The following work is about experiences on existential transformations, mentioned as
result of the contact with the symbolic universe of the Santo Daime doctrine, as told by members
of two groups of the religion located in the state of Minas Gerais, in the cities of Aiuruoca and
Juiz de Fora.
In the first part of it, we try to get closer to the diversity that characterizes the world of
the ayahuasqueira religiosity. Ayahuasca is one of the indian names for the Santo Daime tea.
This religious group that considers that drink a sacrament was born at about the thirties in the
20th Century, in Amazonia, on the revelations received by Raimundo Irineu Serra from
Maranho, the Master Irineu, has nowadays nucleus in various countries besides the ones it has
in Brazil. It still touches the therapeutic question related to ecstasy experiences unleashed by
psychoactive, as well as psychopharmacologic details of the Santo Daime.
The second part of this paper presents the results of the research field, associating them to
reflections on some studies by Mircea Eliade and Carl Gustav Jung. It was focused symbolic and
mythic aspects related to the theme of transformations, preferring elements that could be
correlated to the transformation experiences presented by the religious as consequence of the
contact with the Santo Daime.
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APRESENTAO
Esta dissertao de mestrado pretende dar visibilidade a experincias e smbolos
relacionados a processos de transformao, especialmente de carter subjetivo - ligados
cognio, esfera dos valores e crenas, s relaes interpessoais e ao auto-conhecimento,
tambm ao plano corporal e remisso de doenas, tal como mencionados por adeptos da
religio do Santo Daime, especialmente nos dois grupos por ns pesquisados (que sero melhor
apresentados adiante), bem como nas referncias a imagens e smbolos que compem o universo
da Doutrina e que tambm remetam ao tema das transformaes. Buscando dimenses tericas
que abordassem o tema das mudanas ontolgicas recorremos a alguns estudos de Carl Gustav
Jung e Mircea Eliade. O primeiro, com seus estudos em psicologia, sempre teve o tema colocado
de maneira central na sua obra, por essa razo pareceu-nos ainda mais apropriado para ajudar a
compor esse trabalho por seu interesse pelas pesquisas de Histria das Religies e religiosidade
comparada, resultando de tal motivao artigos e livros de valor inegvel para o estudo
acadmico. J Eliade, alm da contribuio de sua Histria Comparada das Religies, fornece-
nos um entendimento sobre o mito enquanto dimenso viva, determinante da vida daqueles que
por ele se norteiam, bastante condizente com a lgica de orientao religiosa, tal como ficou
evidente tambm na perspectiva daimista. Cabe esclarecer que a importncia do estudo sobre a
narrativa mtica nesse trabalho recai sobre o fato de que certa sociedade ou meio cultural que
presentifica a dimenso mtica atualizando-a atravs de uma determinada ordem ritualstica
instaura uma outra relao com a temporalidade e com a subjetividade, o que resulta, e essa
uma hiptese, em conseqncias que podem facilitar a instaurao do que chamamos mais
amplamente de transformaes psicolgicas e mudanas ontolgicas, mais que se traduz de
maneira mais prtica em mudanas de hbitos (na relao com o corpo ou abandono de vcios,
por exemplo) de crenas e valores (viso de mundo e compreenso da constituio do cosmos,
etc.) e nas relaes sociais (com familiares, no trabalho).
No pretendemos, como ficar claro no decorrer do texto, lanar mo das teorias referidas
a fim de propor uma interpretao sobre as conseqncias da experincia religiosa daimista,
tampouco parece-nos legtimo afirmar concluses definitivas a partir do nosso estudo.
Interessou-nos, sobretudo, encontrar semelhanas e paralelos entre as narrativas a respeito dessas
conseqncias consideradas como decorrncia do pertencimento ao universo simblico daimista,
e alguns apontamentos e reflexes referentes aos processos transformacionais, especialmente s
que transcorrem em meios sociais que vivem sob forte influncia da dimenso mtico-religiosa.
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Dividimos o trabalho em duas partes: as informaes da pesquisa de campo, bem como as
reflexes tericas a elas associadas esto na segunda parte. Inicialmente nos preocupamos em
fazer uma aproximao aos universos religiosos erigidos em torno do consumo da ayahuasca1,
como tambm apresentar alguns dados provenientes das pesquisas j realizadas, principalmente
aqueles que discorrem sobre os efeitos mais comumente atribudos ao ch/sacramento, como por
exemplo, os efeitos teraputicos, to comumente mencionados pelos que conhecem o ch. Toda
essa primeira parte, portanto, deve crdito aos pesquisadores do fenmeno ayahuasca, sem quem
ela no ganharia forma to facilmente.
Todo o trabalho, por sua vez, no poderia nascer sem a colaborao das pessoas que se
dispuseram a nos ajudar nos dois grupos do Santo Daime com quem principalmente nos
relacionamos. O primeiro a comunidade do Matutu, localizada na reserva natural Serra do
Papagaio, uma extenso da Serra da Mantiqueira, situada na cidade de Aiuruoca, Minas Gerais,
onde residem cerca de 120 pessoas.
De acordo com um dos primeiros moradores da comunidade, a quem chamaremos
Neyson, o primeiro trabalho oficial com o Daime aberto no Matutu ocorreu a 19 de maro de
1989; boa parte das pessoas que comearam a viver no local estavam nessa sesso, para muitos
aquela fora sua primeira experincia com o ch.2
O segundo grupo constitui a igreja Cu das Estrelas, localizado no bairro Floresta, na
cidade de Juiz de Fora. H quatro anos o centro vem fazendo regularmente as celebraes
conforme o calendrio oficial da Doutrina; o Cu das Estrelas est vinculado ao CEFLURIS
(Centro da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra) entidade com sede no Cu do Mapi,
na Amaznia, e que coordena os diversos ncleos nacionais e estrangeiros do Santo Daime a ele
associados. A igreja do Cu das Estrelas ou CEFLUAPAS (Centro da Fluente Luz Universal
Antonia Paz Souza) conta com aproximadamente 30 fardados.3
Essa pesquisa valeu-se do que se chama em antropologia observao participante.
Nossos contatos com os grupos foram, principalmente, atravs da nossa participao em sesses
rituais, ou trabalhos espirituais, como costumam referir os daimistas. No decorrer da pesquisa,
participamos de cerca de 20 sesses com o Santo Daime registradas no nosso dirio de campo.
Geralmente no dia seguinte participao do trabalho anotamos nossas impresses e vivncias 1 Ayahuasca significa em lngua quchua, cip das almas, uma vez que aya remete a alma, esprito e huasca a corda, liana ou cip. Segundo LUNA, L. E. apud GOULART, S.L. O contexto simblico do uso do Santo Daime: formao da comunidade e do calendrio ritual in: LABATE, B. C. e ARAJO, W. S. (orgs). O Uso Ritual da Ayahuasca. Mercado de Letras; So Paulo: FAPESP, 2002. 2 Todos os colaboradores dos dois grupos pesquisados esto identificados por pseudnimos. 3 Fardado a forma de designar todo aquele que se reconhece adepto do Santo Daime e aceita as obrigaes e prescries doutrinrias.
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subjetivas e detalhes sobre a estrutura, funcionamento e durao das sesses, quantidade de
doses servida em cada cerimnia, oraes e frmulas de abertura e fechamento dos trabalhos,
caractersticas especficas, etc.
Alm das sesses com o Santo Daime, no dirio de campo tambm foram registradas
muitas das informaes e esclarecimentos obtidos atravs de nossos colaboradores em conversas
mais informais geralmente dadas antes ou depois dos trabalhos, mas tambm em outros
encontros especialmente propostos para conversar sobre as experincias de cada um com o ch.
Apenas nove fiis tiveram suas entrevistas gravadas. Foram ao todo onze horas de udio
registradas em fitas K-7 onde, atravs de roteiro de entrevistas semi-estruturado, o adepto era
convidado a falar sobre suas experincias religiosas, o contato com o Santo Daime, e as
principais conseqncias para sua vida encaradas como decorrncia de tal contato. O roteiro
considerado semi-estruturado porque possuamos alguns tpicos-sugesto a propor no dilogo,
porm o encaminhamento dos temas abordados era flexvel aos rumos apontados pelo
entrevistado, o que nos pareceu bastante produtivo pois permitia a emergncia de temas
considerados importantes por eles e que nem sempre havamos pretendido abordar
deliberadamente.
Em se tratando o Santo Daime de uma doutrina eminentemente musical, uma vez que
todo o cerimonial tem como pea chave os hinos, cujas letras os fiis se referem no como
composies de indivduos, mas como recebidos sob inspirao dos planos espirituais, esses
hinos tambm foram uma fonte importante de conhecimentos a respeito dos principais
ensinamentos e valores que circulam entre os daimistas. Desse modo, comumente nos valemos
das citaes de trechos de hinos que ajudem a ilustrar determinado tema abordado. Um conjunto
de hinos recebidos por algum denominado hinrio.
A respeito do recurso metodolgico da observao participante cabem ainda algumas
palavras, no apenas sobre suas vantagens, mas tambm quanto s dificuldades que a ela
estiveram ligadas na realizao dessa pesquisa, mas que so nuances que parecem prprias do
fazer antropolgico.
Analisando as especificidades da prtica antropolgica, Laplantine defende a
impossibilidade de dissociar observador e observado, apesar da necessidade de distingui-los,
num estudo que considere a totalidade do fenmeno social pesquisado, e demonstra que a
pretensa neutralidade absoluta, busca dos fatos objetivos, e a eliminao da implicao do
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pesquisador no evento pesquisado, ao invs de contribuir pode justamente afastar a possibilidade
da emergncia de uma objetividade aproximada4.
Indagando-se sobre as razes para a represso da subjetividade do pesquisador como no
constituinte da pesquisa, o autor demonstra que a idia de independncia entre os elementos
constituintes da situao de observao provm do modelo objetivista que na fsica
predominou at fins do sculo XIX, sendo importado pelas cincias do homem sem nenhuma
preocupao com a inconvenincia de tal modelo para o estudo de valores, crenas, significaes
e sentimentos, tpicos do comportamento humano. Tal impropriedade foi remediada de maneira
curiosa, nas palavras do antroplogo:
Paradoxalmente, a volta do observador para o campo da observao no
se deu atravs das cincias humanas, nem mesmo da filosofia, e sim por
intermdio da fsica moderna, que reintegra a reflexo sobre a problemtica do
sujeito como condio de possibilidade da prpria atividade cientfica.5
Trata-se a do famoso princpio de incerteza de Heisenberg que demonstrou que um
eltron no podia ser observado sem a criao de uma situao que o transformasse. Na
etnologia a considerao da influncia em mo dupla , no um problema, mas uma fonte
infinitamente fecunda de conhecimento.
Caso no se tente dissimular a presena do pesquisador na pesquisa, a influncia dele
pode se fazer notar j muito precocemente: na escolha do tema pesquisado, por exemplo. No
meu caso no foi diferente.
Alis, minha implicao pessoal nesse processo de pesquisa bastante profunda, em se
tratando de uma abordagem participante relacionada ao consumo religioso de um psicoativo, no
me parece que podia ser muito diferente. No fui levado a estados subjetivos incomuns a partir
dos relatos dos adeptos da doutrina apenas, mas tambm os experienciei diretamente; tendo sido
tal experiencia, inclusive, que me insuflou o tipo de fenmeno religioso que deveria estar
circunscrito enquanto objeto da pesquisa. Se por um lado o fato de no ser um fardado colocava-
me a certa distncia do cotidiano dos fiis, fazendo-me, por exemplo, no poder participar de
todo tipo de cerimnia, vez que a literatura indicava que alguns ritos eram abertos apenas aos
fardados, estrategicamente a no adeso pareceu-me, de sada, um recurso interessante pois,
apesar de alguns acessos limitados, isso ajudava a preservar um certo distanciamento benfico ao
4 LAPLANTINE, Franois. Aprender Antropologia. So Paulo: Editora Brasiliense, 1988, p. 169. 5 Op. cit., p. 172.
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fazer acadmico, no sentido de no gerar um identificao completa com o discurso religioso,
por outro lado, eu no era um estranho que nada sabia concretamente acerca da experincia ritual
com o sacramento, vez que eu conhecera o Santo Daime pouco antes de comear os estudos no
mestrado em Cincia da Religio. Inclusive, apesar de j ter pretenses anteriores em dar
seguimento aos estudos atravs de um mestrado, a opo por realiz-los em tal curso foi, sem
dvida, endossada pela vivncia com o Santo Daime e suas conseqncias. A princpio pensava
em fazer uma pesquisa num curso em Psicologia Social, que a rea de reflexo e prtica do
campo psi com que mais nos alinhamos, mas no transcorrer da vida foram se delineando outros
caminhos. Falando em caminhos, aproveitando que em tela est minha implicao pessoal na
pesquisa, permitam-me uma rpida digresso aos meandros do contexto de nascimento das idias
que vieram culminar nesta pesquisa.
No ano de 2001, inquieto por algumas dvidas relacionadas minha insero
profissional, um certo mal-estar difuso e sensao de falta de nexo, comecei a planejar um modo
para imprimir novo sentido vida. A idia de fazer uma viagem, que j existia, fortaleceu-se.
Conhecer novas terras, pessoas, idias, alm de fascinante, parecia poder me ajudar a sair
daquela crise.
Uma certa indignao com o descompasso entre os grandes avanos tecnolgicos e
cientficos, por um lado, e do outro uma raqutica estrutura nas relaes humanas, no cuidado
com a sade, com a educao e com o outro, tpicas da nossa sociedade, potencializavam o
quadro. Alegrei-me ao descobrir que muitas pessoas subvertiam os cdigos convencionais da
nossa existncia urbana, vivendo em comunidades alternativas existentes pelo Brasil e deliberei
que nas cidades por onde eu passasse, deveria conhecer essas pessoas. Na escolha de um roteiro-
sugesto de viagem privilegiei alguns santurios naturais, lugares em que poderia mais
facilmente encontrar tais comunidades, assim fui levado a algumas das principais chapadas desse
nosso belo pas: Diamantina, dos Veadeiros e dos Guimares (como tambm s imediaes da
Serra da Mantiqueira, no sul mineiro, onde conheci o Santo Daime).
Acreditava que, caso tal empreitada no se validasse em si mesma, nas vivncias e
aprendizagens que teria, poderia ao menos despertar alguma idia para um projeto de mestrado
futuro. Quanto a essa segunda possibilidade j possua a seguinte perspectiva: buscaria conhecer
como essas comunidades lidavam com a questo da auto-sustentao. Talvez dessa forma
entendesse melhor atravs de quais mecanismos buscava-se criar padres sociais diferenciados e
relativamente recortados da sociedade mais ampla na qual esto inseridos. Suspeitava que
poderia depois associar questo da auto-sustentao, o conceito de autopoiesis, que Maturana e
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Varela, em sua biologia cognitiva, tratam como das caractersticas bsicas do viver; a capacidade
de gerao, de criao das prprias condies de existncia, que pode ser vista desde os
organismos unicelulares at as formaes mais complexas, a busca de condies que garantam a
sobrevivncia geral. Para no prolongar muito, foi nessa rota que cheguei comunidade do
Matutu, em Aiuruoca e l entrei em contato com a doutrina daimista.
Pois bem, apesar de no ter me tornado um fardado eu freqentei alguns trabalhos
espirituais da doutrina. Sem dvida nenhuma, tal participao foi fundamentalmente
enriquecedora. Aos que j conhecem o Santo Daime no difcil compreender porque os
vegetais que lhe compem so designados de plantas professoras ou plantas mestras,
sobretudo nos meios curandeiros da vasta regio amaznica. As aprendizagens, especialmente
relacionadas ao auto-conhecimento (no primeiro experimento, por exemplo, fui levado a
ressignificar diversas situaes da minha histria pessoal, presentificadas em flashes de vrias
circunstncias j vividas, especificidades a respeito de relacionamentos interpessoais, inclusive
detalhes no mais presentes na memria, tudo sob novas perspectivas, instaurando outros
sentidos indubitavelmente vivenciados como mais amplos e esclarecedores), tessitura do real
(que facilmente pode ser sentido como comportando dimenses existenciais mais sutis e menos
concretas que o visvel mundo fsico, o que os religiosos vo designar por plano espiritual, que
tambm faculta um sentimento de unidade conectando tudo que compe a vida, experimentado
com tanta convico quanto o a certeza do teor de inenarrvel que a acompanha), etc. Como
fcil notar, a importncia e o carter especial com que foram vividos tais efeitos, comportam
uma complexidade dificultosa de se falar a respeito num universo to distinto do religioso quanto
o acadmico.
A linguagem cientfica e a religiosa parecem opor-se largamente quanto forma de
perceber e explicar o mundo sua volta, de modo que algo dessa empreitada de fazer comunicar
tais esferas parece fadada ao fracasso. Cada universo pauta-se numa lgica de apreenso e
codificao da realidade s vezes inversa do outro. Um mal-estar aflorava ao perceber em
alguns contedos uma impossibilidade de traduo em palavras ou numa narrativa descritiva
objetiva. Muito se inscrevia na ordem do no-dito, no pronuncivel porque profundamente
marcado no registro do sensvel, uma experincia afetiva e corporalmente registrada mas com
poucas chances de se transmutar ao simblico. Lembrava-me de Verger e do ttulo da exposio
de fotos e artefatos de sua vida e obra organizada pela Fundao Pierre Verger: O mensageiro
entre dois mundos, o olhar viajante de Pierre Fatumbi. Pensei na dureza de pretender-se tradutor
entre mundos que falam lnguas to distintas.
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A convico quanto importncia e ao saber inerentes aos vividos em alguns ritos
daimistas nem sempre comportavam a possibilidade de uma justificao segundo os critrios da
racionalidade ocidental, cartesiana, o que em nada parecia invalidar ou desvalorizar o aprendido.
Apesar das dificuldades de tal magnitude, outra sensao nos acompanhou: uma tentativa de
tanger o experimentado no deveria, contudo, ser abandonada, apesar das limitaes explanadas.
Ademais, assumimos um compromisso com a academia ao transformarmos o que poderia no
passar de uma experincia pessoal em projeto de pesquisa a respeito de um fenmeno descrito
pelos daimistas: haviam experimentado mudanas ontolgicas percebidas como decorrentes das
vivncias com o Santo Daime. Agora os critrios de elucidao e validao do evento estudado
passavam a depender, no mais da minha experincia, mas das declaraes e posicionamentos
manifestados pelos que colaboraram para a realizao dessa pesquisa, os daimistas dos grupos
estudados. O trnsito entre o espao acadmico e o religioso no foi nada fcil e as
especificidades desses deslocamentos so discutidas tambm por outros pesquisadores do campo
ayahuasqueiro. Bia Labate, importante estudiosa do assunto, busca estimular a reflexo sobre os
aspectos dessa dupla insero. Co-organizadora de O Uso Ritual da Ayahuasca6 com
Wladimyr Sena Arajo, publicao que rene pesquisas nacionais e estrangeiras muitas das quais
foram apresentadas no I CURA (I Congresso sobre o Uso Ritual da Ayahuasca) que aconteceu
em 1997, na cidade de Campinas no Instituto de Filosofia e Cincias Humanas da UNICAMP.
Tal evento foi idealizado e organizado por Labate que tambm publicou recentemente um outro
livro, fruto da sua dissertao de mestrado: A Reinveno do Uso da Ayahuasca nos Centros
Urbanos7. Na introduo deste trabalho, a autora trata do histrico da sua pesquisa e de aspectos
metodolgicos tpicos dos estudos sobre o que denomina religies ayahuasqueiras brasileiras
cujos principais representantes so o Santo Daime, a Barquinha e a Unio do Vegetal, grupos
que tem como centro de suas prticas o consumo religioso do ch ayahuasca, nesses grupos mais
conhecido por Daime (na Barquinha e no Santo Daime) ou Vegetal (na UDV Unio do
Vegetal). A bebida tem ainda vrias outras denominaes indgenas, alm de ayahuasca, que so
adiante mencionadas no tpico sobre os distintos contextos do consumo da ayahuasca.
A antroploga que fardada no Santo Daime, descreve as dificuldades sentidas pelo
pertencimento duplo: Para ser sincera, sinto-me num fio: para os daimistas talvez eu seja mais
uma cientista, uma pesquisadora, na academia, a minha filiao religiosa pode ser vista com
6 LABATE, B. C. e ARAJO, W. S. (orgs). O Uso Ritual da Ayahuasca. Campinas, SP: Mercado de Letras, So Paulo: Fapesp, 2002. 7 LABATE, B. C. A reinveno do uso da ayahuasca nos centros urbanos. Campinas, SP: Mercado de Letras, So Paulo: Fapesp, 2004.
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desdm ou preconceito8. Tambm experimentei tal sensao, apesar de no ter aderido ao grupo
pesquisado da mesma maneira que Labate. Se num dos grupos religiosos, quando falei da
pesquisa fui logo no comeo indagado com uma atmosfera tipo: o que pretendes? Na
universidade tive que ouvir posies claramente preconceituosas, fruto de um desconhecimento
do assunto que eu tratava, travestido em piadinhas feitas por colegas de curso insinuando dever
ser bom estudar algo que produz um barato legal. Naturalmente tais brincadeiras refletem
uma ignorncia a respeito da complexidade do processo desencadeado pela experincia ritual
daimista, o que muitas vezes imps travessias vivenciais bastante dolorosas e difceis, que bem
distantes de ser um barato confrontavam com experincias limite de quase-morte, s
amenizadas com a posterior percepo e desencadeamento de insights ligados ao que ento podia
ser compreendido como mortes simblicas, reviravoltas de significaes ligadas vida. A esse
respeito vale citar uma passagem do interessante artigo de Soares no qual ele diz:
Hipteses sociolgicas parte, no h como negar que esto em jogo
temas, concepes e comportamento referentes a esferas bsicas da vida social e
da experincia existencial: da famlia poltica, da educao aos caminhos
profissionais, da identidade aos cuidados com o corpo frequentemente, alis, ao
contrrio de certas experincias e determinadas observaes do senso comum,
mais prximos da disciplina espartana do que de um vago e pervasivo
narcisismo hedonista (...).9
Aproveitando essa meno aos cuidados com o corpo, notamos que Soares observa com
bastante preciso as especificidades e nuances que essas relaes assumem na cultura daimista.
Ele demonstra que h uma inseparvel articulao entre o fsico e o psicolgico espiritualizado
e que a
(...) sade supe qualidades extrnsecas ao funcionamento autnomo da
mquina humana, como a adeso a valores, o padro de atitudes, a relao com os
outros e com a natureza, com a prpria espiritualidade e com a alimentao.
Sade o ndice de integrao csmica ou de equilbrio com a unidade
harmnica do todo10.
8 Op. cit., p. 34. 9 SOARES, L. E. O Santo Daime no contexto da Nova Conscincia Religiosa in: LANDIM, L. (org.). Cadernos do ISER, n. 23 Sinais dos Tempos-Diversidade Religiosa no Brasil. Rio de Janeiro, ISER (Instituto Social de Estudos da Religio), 1990. 10 Op. cit., p. 266.
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Isso nos recorda que, no decorrer dessa pesquisa, vrias expresses ocorreram para nos
referirmos s mudanas existenciais mencionadas como conseqncia da experincia exttica
daimista: cura, transformao, sade, renascimento espiritual, enfim, a dificuldade revelava
nosso impasse. Usar a palavra cura parecia remeter, de maneira muito intensa, dimenso
orgnica e privilegiava, assim, um modelo de compreenso de influncia biomdica pouco
condizente com a perspectiva daimista. Sade nos trazia essa mesma dificuldade exceto se
lembrssemos das especificidades mencionadas na citao acima, ou ainda, se retomssemos a
informao trazida na raiz latina da palavra: Salus, que vem a ser a mesma que compe a palavra
salvao; coincidncia preciosa pois nos coloca em contato simultneo com uma imagem de
ocorrncias tanto bio-psquicas, quanto metafsicas e religiosas. Renascimento espiritual
apontava, em sentido inverso, para um privilgio da leitura religiosa podendo vir a dificultar o
entendimento dos que no se situam internamente em tal discursiva. Portanto falar em
transformao foi despontando como mais apropriado para esse estudo, primeiro porque se
presta bem a descrever as modificaes narradas pelos adeptos da doutrina, apesar de que,
mesmo tendo sido usada por alguns, era principalmente cura a palavra preferida pela maioria dos
fiis; depois a palavra ajudava por ser tpica do nosso prprio campo de reflexo original: a
psicologia. O prprio Jung a ela recorre para remeter a esses processos, como ser visto na
segunda parte do trabalho.
A expresso Doutrina da Floresta ser usada como sinnimo para Santo Daime.
Doutrina como frequentemente os daimistas se referem ao corpo institucional de que fazem
parte, a palavra tambm aparece em muitos hinos com esse sentido. Floresta, evoca o contexto
de origem dos primeiros cultos daimistas, nascidos na regio amaznica e tambm usada aqui
em referncia forma como tratada por Jung, enquanto metfora para falar do inconsciente,
por remeter ao tema do desconhecido, de mundo inexplorado, lembrando o obscuro e profundo,
fonte de vida e mistrio. Curiosamente Floresta tambm o nome do bairro onde se situa um
dos grupos daimistas aqui estudado: a igreja de Juiz de Fora, o Cu das Estrelas.
Tambm Soares, em artigo j mencionado, articula a continental floresta Amaznica com
a dimenso inconsciente; depois de sugerir numa espcie de topologia nacional, situar-se no Sul
e Sudeste nossa racionalidade, nossa afetividade no Nordeste e Centro-oeste, ele diz da
Amaznia:
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Nem corao, nem razo: pulsa, l no interior sombrio e imperscrutvel
da selva, algo que vivo e se manifesta por excessos, fonte inesgotvel de vida
e ameaa de aniquilamento e morte, algo que irredutvel e irremediavelmente
outro, exterior, distante e tambm central, intimo prximo, presente; enfim, algo
que na topologia simblica da nao ocupa o lugar do inconsciente ou, talvez
mais precisamente, do Isso, no modelo freudiano da alma humana.11
Como j dissemos, o trabalho est dividido em duas partes. Na primeira pretendemos dar
uma viso ampla e rpida sobre o universo da assim chamada religiosidade ayahuasqueira. Que
universos sociais, simblicos e mticos agregam-se em torno da bebida ritual dos povos da
Amaznia, o ch ayahuasca, o vinho das almas em lngua quchua? Desde pilar central do
edifcio cosmognico de dezenas de naes indgenas, onde geralmente dos principais recursos
da tecnologia sagrada de que os xams lanam mo, passando pelas comunidades ribeirinhas, os
designados mestios, grupos dos descendentes do encontro entre colonizadores e nativos, que
herdaram, entre outras coisas, muitos dos conhecimentos fitoterpicos e relacionados ao reino
vegetal que possuam os antigos moradores do local.
Estudaremos instigantes movimentos religiosos de hbrida constituio que aglutinam em
suas crenas e prticas elementos cristos, xamnicos, esotricos, espritas e afro-descendentes,
dos quais destacaremos os trs mais conhecidos e pesquisados: a Barquinha, a Unio do Vegetal,
e o Santo Daime, este ltimo grupo aquele que enfatizaremos naturalmente por tratar-se do que
mais conhecemos terica e experiencialmente, mesmo sabendo que h muito mais a saber do que
conseguimos metabolizar e concretizar no texto que segue.
No tpico intitulado xtase, Luz e Transformao antecipamos de algum modo a tnica
da segunda parte da dissertao, pois a referenciamos certas dimenses mticas da doutrina
daimista, como por exemplo alguns dos seus aspectos apolneos e dionisacos. Buscamos
tambm introduzir algumas comparaes entre vivncias recorrentes a diversas tradies como,
no caso, a experincia de uma Luz enquanto evento mstico e essa estratgia voltar a ser usada
sempre que pudermos nos valer dos estudos comparados que contribuam nesse sentido.
Tratamos ainda nessa parte das classificaes etnobotnicas das plantas que compem o
ch, bem como dos elementos qumicos mais destacados presentes no cip Jagube e na folha
Rainha, maneira principal como os daimistas designam cada um dos elementos constituintes do
ch que resulta da sua unio. Santo Daime o nome dado a esse Ser Divino, conforme
compreendem, produzido pela fervura do cip (macerado pelos homens) mais a folha 11 Op. cit., p. 272-273.
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(criteriosamente selecionada e livre das impurezas eventuais pelo trabalho exclusivamente
feminino). Como atuam na dinmica dos nossos neuro-transmissores esses elementos
responsveis pelo efeito-ayahuasca e que desdobramentos ocasionam?
Por fim abordamos os principais apontamentos encontrados nas pesquisas j realizadas
sobre a questo da cura, ou como preferimos tratar nesse trabalho, das transformaes cujo
desencadeamento atribudo ao contato com o Santo Daime. De qualquer forma esse tema no
estar apenas circunscrito a esse ltimo ponto, uma vez que a atribuio do valor teraputico , as
mudanas ontolgicas amplas por que passaram, por experincia, as principais lideranas ou
fundadores de alguma das religies ayahuasqueiras, enfim, a atribuio desse carter
transformacional, perpassam os contextos simblicos e imaginrios por onde se costuma
consagrar essa bebida.
Tratamos, ainda no ltimo ponto dessa parte, sobre o hibridismo tpico das religies
ayahuasqueiras e nos questionamos sobre o valor de algumas posturas dicotomizantes, prprias
do discurso racionalista, na abordagem de manifestaes culturais como a religio. Apontamos
as proximidades estruturais e histricas entre o Santo Daime e a Umbanda, ambas bastante
flexveis aos contatos e rearranjos promovidos pela comunicao intereligiosa, e tambm s
diferenas, em especial, no que tange s modalidades do contato com o mundo espiritual.
J na segunda parte desejamos trazer as informaes vindas da pesquisa de campo, das
entrevistas, do dirio, das leituras dos hinos e oraes daimistas, dos smbolos e imagens que
estimularam o entendimento de como se processam os eventos existenciais e psquicos
vivenciados no mbito da cultura daimista, compreendidos como facilitadores e instauradores de
processos transformacionais. Para isso tentamos mostrar os principais modos de como os fiis se
referem ao sacramento psicoativo, dialtica entre a dimenso sagrada e a dimenso tcnica, e
como elas funcionam, ou melhor, como percebido seu funcionamento no que tange sua ao
e efeitos produzidos na interao com o dinamismo humano.
Paralelamente apresentao das experincias de transformao relatadas pelos
colaboradores da pesquisa, bem como sugeridas em imagens do universo daimista,
trabalharemos com as reflexes sobre mitos e smbolos relacionadas problemtica circunscrita
em nossa investigao. Eliade e Jung, principalmente, nos fornecem as bases tericas para tal
empreitada: o primeiro com seu mtodo comparativo da Histria das Religies favorece a
compreenso de alguns fenmenos que abordamos atravs da evocao das similaridades que
guardam com outros fatos culturais mais estudados, ou j bem conhecidos, como o xtase
xamnico ou o fenmeno da luz mstica, por exemplo. tambm por esse mesmo vis que
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resolvemos trazer cena histrias da mitologia grega nas quais identificamos temas comuns
nossa pesquisa, como por exemplo, o da morte e renascimento, to central nos relatos de alguns
heris mticos quanto em descries de aspectos da ritualstica do Santo Daime. Quanto a essas
cenas mitolgicas o auxlio valioso , sobretudo, o de Junito de Souza Brando.
J Jung nos ajuda a pensar como uma prtica religiosa pode influenciar na ordenao de
contedos simblicos e experincias, fornecendo sua assimilao dinmica da subjetividade
humana. Tambm nos permite abordar como se desenrolam os processos de transformaes
psquicas e, mais especificamente, quais os aspectos mais destacados da sua teoria sobre a
individuao, que como o autor se refere aos processos de desenvolvimento psicolgico.
Cabe frisar que pretendemos, com a presena nesse trabalho de conceitos da psicologia
junguiana, no uma tentativa de propor uma interpretao da experincia religiosa daimista luz
de tal teoria, porm encontrar paralelos, evocar semelhanas entre ela e os processos
transformacionais subjetivos, tais como descritos pelos adeptos do Santo Daime bem como
sugeridos em smbolos e imagens presentes na doutrina. Sem pretenses amplas nem definitivas
seria ensaiar um movimento anlogo ao do pensador suo em suas obras posteriores a 1930
onde, aps ter demonstrado o processo de desenvolvimento humano acompanhando vrios casos
individuais ele os compara: (...) s vias de aperfeioamento propostas por certas vias de
aperfeioamento espirituais. O analista se torna de algum modo historiador das religies, e sua
pesquisa se focalizar principalmente sobre trs universos tradicionais: o lamasmo tibetano, (...)
a alquimia ocidental (...) e finalmente, o cristianismo (...)12.
Focalizaremos seus estudos sobre o cristianismo e a alquimia, por razes que nos
parecem claras: o primeiro por ser o principal universo de referncia, ao lado do universo
xamnico, na constituio da simblica daimista e a alquimia por ser abordada como filosofia
oculta, que projeta sobre a matria qumica eventos que se processam no mbito do psquico, o
que nos estimula a fazer assossiaes com os desdobramentos subjetivos disparados pela
qumica, mas no somente, do ch psicoativo que estudamos.
12 MASQUELIER, Y. T. C. G. JUNG A sacralidade da experincia interior. So Paulo: Paulus, 1994, p. 78.
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I Primeira Parte - Introduo
1. Os contextos de uso da Ayahuasca
Ayahuasca, Santo Daime ou Vegetal so as formas mais usadas para referir-se ao ch
feito a partir de um cip e das folhas de um arbusto, considerados sagrados pelos adeptos das
religies que o utilizam, bem como por vrias tribos da Floresta Amaznica. O ch consumido
tambm por muitas pessoas do meio caboclo amazonense, que o conhecem atravs dos
curandeiros locais. A planta foi classificada em 1852 pelo botnico Richard Spruce, mais adiante
apresentaremos outras informaes a respeito da histria da pesquisa acadmica sobre esse
recurso da medicina natural amaznica.
Tradicionalmente usada pelos ndios amazonenses em seus rituais xamnicos, contexto
em que apresenta uma variedade de outras designaes13, o vegetal logo foi incorporado por
algumas pessoas do meio caboclo, especialmente atravs dos xams mestios, reconhecedores
dos amplos poderes atribudos ao mesmo. Mas a expanso dos usos cerimoniais da ayahuasca
ainda ganharia novas feies. Na primeira metade do sculo passado, nos limites da Amaznia
brasileira, comearam a se institucionalizar os primeiros grupos religiosos estruturados em torno
do consumo ritual da ayahuasca, constitudos num mbito de predominante catolicismo popular,
mas tambm sob influncia afro-descendente, esprita e esotrica.
O uso institucionalizado da ayahuasca entre grupos no indgenas comeou na Amaznia
na dcada de 30 do sculo XX, tempo da criao do primeiro centro daimista, hoje conhecido
como Alto Santo. Seu fundador, Raimundo Irineu Serra, nascido no Maranho, chegou em 1912
regio para trabalhar nos seringais. No s entre ndios, mas tambm entre a populao mestia
ou cabocla, j h muito tempo utilizava-se cerimonialmente o ch, atribuindo-lhe importncia na
identificao, preveno ou tratamento de doenas; nos rituais mgico-religiosos ou como
facilitador dos contatos sociais. divulgado que grupos indgenas peruanos foram responsveis
pela iniciao de Raimundo Irineu, mais tarde conhecido como Mestre Irineu. Acredita-se que
atravs da tradio espiritual dos Incas, a ingesto da Yaj foi transmitida s populaes ainda
residentes na regio.
A designao Santo Daime foi inicialmente feita pelo Mestre Irineu, criador do Centro de
Iluminao Crist Luz Universal Alto Santo (CICLU). A forma Santo Daime tornou-se comum,
tanto para referir-se ao ch quanto aos cultos vinculados ao CICLU e ao CEFLURIS (Centro
13 Entre os quais yag, nixipae, shori, ondi, kahi ide, gahpi, capi, e he ohekoa so alguns deles.
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Ecltico da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra)14. Costuma-se explicar que o nome
Daime tenha nascido dos rogativos (dai-me fora, dai-me amor..) constantes nas situaes de
consumo do ch entre os caboclos, quando pediam o que desejavam conseguir com auxlio dos
planos espirituais mas encontramos pelo menos uma outra hiptese para a proposio do nome
Daime. Para Monteiro da Silva a palavra teria sido composta atravs de recursos cabalsticos
esotricos. No nos esqueamos que o Mestre Irineu era j naquela poca filiado s ordens
esotricas Rosacruz e Comunho do Pensamento. A primeira parte da palavra DA estaria em
conexo com a ltima slaba de JURAMID (ou DAM), estando ambas relacionadas a D, a
serpente mtica dos cultos Fon de DAHOME. A serpente uma viso recorrente nas miraes
descritas em distintos contextos de utilizao da ayahuasca, alis esse nome de origem Quchua -
cip das almas - evoca por semelhana a imagem da serpente. O animal tambm smbolo do
orix Oxumar, relacionado transformao, alis como a serpente de uma maneira bastante
recorrrente concebida nas mitologias de maneira geral, tal como na imagem do urobros, a
serpente que engole a prpria cauda, enquanto smbolo do princpio e fim cclicos do universo15.
Juramidam considerado o nome astral do Mestre Irineu, tambm compreendido como uma
entidade associada a Cristo, utiliza-se tambm a expresso Povo de Juramidam para referir-se
aos daimistas conforme nos esclarece Vera Fres:
A expresso Povo de Juramidam refere-se aos descendentes de
Juramidam, nome que o iniciador da doutrina recebeu das entidades divinas do
Santo Daime. Juramidam o chefe da misso. Jura o pai e midam o filho
Juramidam representa a segunda volta de Jesus Cristo na Terra, sendo assim, o
Povo de Juramidam o povo de Jesus Cristo.16
O CEFLURIS a entidade que administra todas as igrejas do Santo Daime (no Brasil e
no exterior) a ele vinculados, e foi criado pelo Padrinho Sebastio que ao lado do Mestre Irineu,
segundo Groisman17 (...) so as figuras centrais do panteo das lideranas espirituais dos
daimistas ligados ao CEFLURIS. Os outros grupos mais conhecidos que consideram a
ayahuasca um sacramento, que sero apreciados mais detidamente adiante, so a Unio do
14 LABATE, B.C. e ARAJO, W. S (orgs.). Op. cit., p. 231-232. 15 MONTEIRO DA SILVA, C. O uso ritual da ayahuasca e o reencontro de duas tradies. A mirao e a incorporao no culto do Santo Daime. In: LABATE, B.C. e ARAUJO, W.S. (orgs.). Op. cit., p. 367. 16 FRES, V. Santo Daime cultura amaznica, Histria do Povo Juramid. Manaus: Suframa, 1986, p. 26. 17 GROISMAN, A. Eu Venho da Floresta - um estudo sobre o contexto simblico do uso do Santo Daime. Florianpolis: ed. da UFSC, 1999, p.17.
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Vegetal e a Barquinha, tendo este ltimo ficado praticamente restrito regio amaznica, salvo
as excees de alguns ncleos criados em outras regies, enquanto os outros dois, Santo Daime e
Unio do Vegetal, expandiram-se pelo Brasil e tambm para outros pases. O ch tomado pelos
adeptos das religies ayahuasqueiras obtido atravs da decoco do cip Jagube
(Banisteriopsis Caapi) misturado com as folhas do arbusto Psychotria Viridis, conhecida como
folha Rainha ou Chacrona. Entre os ndios so reconhecidas dezenas de outras plantas que
podem ser mescladas ao ch, a partir da identificao de necessidades nas quais as mesmas so
utilizadas como remdios.
Por produzir estados de conscincia que transcendem os estados convencionais,
transformando a maneira como a realidade percebida, a substncia considerada psicoativa,
expresso que resolvemos usar em detrimento de outras que evocam uma carga de sentido
pejorativo, como drogas por exemplo. Concordamos com Perlongher e julgamos tambm que a
esta altura fica muito difcil continuar sem questionar a amplido capciosa da noo mdico-
policial de drogas18. A expresso alucingeno tambm nos parece amplamente imprpria; em
psiquiatria define-se alucinao como erro perceptivo de carter psicopatolgico19,
entendimentos que indicariam um descrdito para com o sujeito da experincia atribuindo-lhe
juzos de valor negativizantes, alm de negligenciar a recorrncia de sensaes e imagens
descritas por vrios daimistas, como por exemplo, a percepo de certas luzes e cores, sensao
de ligao com o meio circundante com correlata percepo de dissoluo da individualidade,
ampliao de conhecimentos etc.20 Conforme a perspectiva de alguns autores21, tambm se
costuma usar a expresso entegeno. Derivada do grego entheos, significa o que leva algum a
experimentar o divino em si; esse termo parece se aproximar bem do que pensam os daimistas
sobre a substncia. O neologismo entegeno foi apresentado por Gordon-Wasson22, como
proposio de um comit constitudo para discutir as imprecises dos vocbulos empregados
para referir-se s substncias vegetais sagradas, em especial quelas usadas nos Mistrios de
Eleusis, Mistrios rficos entre outros. Recusavam-se, sobremaneira, imprpria e equivocada
expresso alucingeno e explicavam o sentido da nova palavra proposta: dios generado dentro. 18 PERLONGHER, N. Droga e xtase in: Religio e Sociedade. V. 16. n.3, Rio de Janeiro: ISER, 1994. 19 Para ver uma interessante discusso sobre a leitura psicopatologizante que faz equivaler o delrio e, nessa mesma lgica, a alucinao a erros de juzo ou idias patologicamente falsas, recorrer ao texto de SERPA JR.,Octvio. Dando sentido ao mundo: classificar e delirar in: COSTA, Jurandir F. Redescries da psicanlise, Relume-Dumar, em que o autor, a partir da noo wittgensteiniana de jogos de linguagem demonstra que conceber toda produo discursiva outra enquanto erro, significa que optamos por nos apoiar numa teoria referencial do significado, tpica das cincias da natureza, o que pode ser uma opo limitante. 20 ARAJO, W.S. Navegando Sobre as Ondas do Daime: histria, cosmologia e ritual da Barquinha. Campinas, So Paulo: ed. da UNICAMP, 1999, p. 69-88. 21 Por exemplo: MACRAE, E. Guiado Pela Lua. So Paulo: Brasiliense, 1992. 22 GORDON-WASSON, R. La bsqueda de Persfone. Mxico: Fondo de Cultura Econmica, 1992, p.32.
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Segundo Groisman23, o uso de substncias psicoativas em contexto religioso ganha
visibilidade no Brasil, sobretudo a partir da dcada de oitenta. Nesse tempo foram criados
ncleos daimistas fora da regio Amaznica, assim como se publicam alguns trabalhos
acadmicos sobre o assunto.
A partir do contato com os adeptos de dois ncleos daimistas, um situado numa rea de
reserva natural da Serra do Papagaio, no pequeno municpio de Aiuruoca, e outro localizado no
bairro Floresta, na cidade de Juiz de Fora, investigamos como estes sujeitos percebiam mudanas
em suas vidas como decorrncia do contato com o Santo Daime. Uma importante categoria a ser
considerada nesse estudo a mirao. De acordo com Monteiro da Silva24, o termo possui status
sagrado, significando mais que ver (...) o estado de mirao no se confunde com as vises
alucinatrias. Podem ocorrer fenmenos homlogos aos estados de xtase, transe ou
possesso. Complementando a definio do fenmeno, acompanhemos Groisman que diz que
a mirao
(...) uma palavra especial usada para definir o estado de conscincia no qual
possvel ter contato com a espiritualidade. Ela se manifesta atravs de um conjunto de
percepes que proporcionam uma sensao de transcendncia. (...) pode ser uma
viso, (...) sons ou cheiros que no fazem parte da situao em que se est; pode ser
uma introduo num outro universo, onde transitam seres de natureza desconhecida;
(...) pode ser uma experincia cognitiva.25
Ao apreciar tais experincias subjetivas no podemos ignorar que elas esto submetidas a
certos fatores condicionantes. Para Winkelman, citado por Pelez26 seriam trs os fatores
relacionados experincia psicodlica: neurofisiolgicos, set e setting. O primeiro diz respeito s
caractersticas do agente consumido na sua ao sobre o organismo; o set engloba as
caractersticas psquicas do sujeito bem como as suas atitudes relacionadas experincia; j o
setting inclui o entorno social e aspectos culturais que vo modelar e dar sentidos experincia.
Se esses dois ltimos fatores, set e setting, tm um carter particular - onde podemos situar as
especificidades orientadas pela cultura daimista quanto ao setting - j os fatores
neurofisiolgicos so considerados pelo autor como universais, visto que sua atuao ocorre nos
mesmos receptores cerebrais humanos. 23 GROISMAN, A. op.cit. 24 MONTEIRO DA SILVA, C. Op. cit., p. 367. 25 GROISMAN, A. op.cit, p. 55-56. 26 PELEZ, M.C. No mundo se cura tudo, interpretaes sobre a cura espiritual no Santo Daime. Dissertao de Mestrado em Antropologia Social, UFSC, Florianpolis, 1994, p.18.
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O uso ritual de substncias psicoestimulantes como o Santo Daime, atrai o interesse de
diversos segmentos do saber, dada a multiplicidade de fatores constituintes do fenmeno. Assim,
a qumica, a biologia, a farmacologia, a sociologia, a antropologia, a psicologia, a etnobotnica e
a psiquiatria so alguns exemplos de abordagens que convergem seus interesses para o estudo do
tema. Diante da hbrida constituio do fenmeno, somos convidados a tentar uma articulao
das contribuies oriundas de distintos campos do conhecimento, promovendo uma maior
fluidez entre as fronteiras disciplinares, o que julgamos ser especialmente importante para as
cincias humanas.
Em se tratando de um estudo em cincias das religies, concordamos com Camura27 que
a considera uma rea (...) constituda por um agregado de cincias (humanas) particulares, cada
uma com seu mtodo prprio, a tratar do tema comum da religio. rea que tende, conforme o
autor, a um crescente pluralismo metodolgico que nos distancia da idia de um paradigma nico
norteando os estudos do campo.
Dessa forma, podem nos ajudar os estudos sobre a composio qumica do ch
esclarecendo como atua no nosso sistema neuroendcrino. A psicologia e a farmacologia podem
facilitar o entendimento sobre os efeitos psquicos e fisiolgicos da substncia. A primeira
disciplina possibilitaria ainda a discusso sobre o carter teraputico atribudo ao Daime
relacionando-o com suas prprias perspectivas tericas quanto a concepes de cura. A
antropologia e a sociologia, por outro lado, alm de auxiliarem a compreender a dimenso
cultural e grupal formatadoras da experincia transcendente, serviro como inspirao para os
modelos metodolgicos de abordagem do tema.
Essa tendncia em considerar as contribuies de diversas disciplinas vem sendo
preferida por alguns pesquisadores contemporneos do fenmeno ayahuasca. Ns, apesar de
podermos utilizar as contribuies de distintas reas, fornecendo uma compreenso mais ampla
do objeto pesquisado e buscando evitar reducionismos, teremos, porm, que reconhecer a
necessidade de delimitar nosso foco de ateno e considerando as pretenses deste trabalho
priorizamos as reflexes de carter antropolgico e psicolgico.
Mesmo concordando com Morin, que nos diz:
27 CAMURA, M. Entre as cincias humanas e a teologia: gnese e contexto do Programa de Ps-Graduao em Cincia da Religio de Juiz de Fora em cotejo com seus congneres no Brasil. In: O Estudo das Religies. GUERREIRO, Silas (org.). So Paulo: Paulinas, 2003, p.142-3.
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Assim, todo o acontecimento cognitivo necessita da conjugao de
processos energticos, qumicos, fisiolgicos, psicolgicos, cerebrais,
existenciais, culturais, lingsticos, lgicos, ideais, individuais, coletivos,
pessoais, transpessoais e impessoais que se engrenam uns aos outros. O
conhecimento , portanto, um fenmeno multidimensional, no sentido em que ,
de maneira inseparvel, ao mesmo tempo fsico, biolgico, cerebral, mental,
psicolgico, cultural, social.28
Precisaremos centralizar o foco das nossas lentes a fim de perseguir o objetivo central
deste trabalho, a saber: dar visibilidade s narrativas bem como a alguns smbolos doutrinrios
que designam transformaes ontolgicas.
A fim de melhor vislumbrar as caractersticas da cultura ayahuasqueira vamos agora
verificar suas principais nuances, estudando os distintos contextos de consumo da ayahuasca
com nfase nos aspectos histricos e na diversificao dos modos de consumo surgidos com a
expanso dos grupos ayahuasqueiros.
Labate investiga na sua dissertao de mestrado o que denomina de novas formas de
consumo da ayahuasca29 nos centros urbanos. Ela encontrou vrias situaes em que se
reinventaram as caractersticas do consumo da substncia: em grupos de teatro, trabalhos
destinados recuperao de moradores de ruas, entre praticantes de meditao do Osho, entre
msicos, no atendimento em consultrios e na realizao de terapias corporais, entre
candomblecistas, associado terapia de florais e no contexto de prticas neoxamnicas.
A possibilidade de emergncia dessas novas situaes deve-se, sobretudo, expanso das
religies ayahuasqueiras brasileiras30 para alm das fronteiras da regio amaznica, bem como
devido s buscas que motivaram muitos moradores de reas urbanizadas do pas a conhecerem o
uso da substncia no seu contexto originrio, seja no mbito desses grupos religiosos, com
curandeiros do meio amaznico, ou mesmo entre os ndios, detentores originrios dos
conhecimentos sobre os potenciais de diversas plantas. Depois de retornarem para suas cidades
de origem muitas dessas pessoas providenciaram formas de permanecer participando dos
28 MORIN, E. apud DIAS JR., W. Dirio de viagem. In LABATE, B. C. e ARAJO, W. S. (orgs.). Op. cit. 29 LABATE, Beatriz Caiuby. A Reinveno do Uso da Ayahuasca nos Centros Urbanos. Dissertao de Mestrado em Antropologia Social, UNICAMP, 2000. 30 Conforme j mencionado, podem-se considerar atualmente trs as principais religies ayahuasqueiras: Santo Daime, UDV e Barquinha. Segundo LABATE (op. cit., 2002, p. 231-232), Santo Daime, alm de referir-se forma como a maior parte dos fiis desses cultos designam a bebida ritual, tambm o nome da religio do Alto Santo, centro criado por Raimundo Irineu Serra, e do CEFLURIS, Centro Ecltico da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra, criado por Sebastio Mota de Melo, que funciona como uma entidade coordenadora dos demais centros espalhados pelo Brasil e exterior a ele vinculados, tambm referidos como Santo Daime.
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trabalhos espirituais com ayahuasca aderindo a algum ncleo j existente ou mesmo fundando
um ponto para realizao de cerimnias rituais com as plantas amaznicas, seja tentando manter
o padro ritual conforme haviam aprendido ou ainda criando outros rituais a partir de mltiplos
referenciais ou matrizes religiosas a que se vinculavam ou passaram a se vincular esses sujeitos
aps o contato com o Santo Daime.
Os fundadores da religio do Santo Daime e da Unio do Vegetal, ou UDV,
respectivamente Mestre Irineu e Mestre Gabriel, foram iniciados no uso da ayahuasca atravs de
pessoas do meio caboclo, o primeiro com um curandeiro peruano, e o segundo entre os
seringueiros. Estes ltimos, por sua vez, so representantes da classe dos que aprenderam
historicamente a usar Plantas Sagradas com a populao indgena. Visando historicizar o
processo de expanso dos usos da ayahuasca, pretendemos caracterizar brevemente os distintos
contextos em que o fenmeno ocorre. Buscando seguir o mesmo sentido em que o processo de
expanso do uso ritual da ayahuasca se orienta31, apresentaremos seqencialmente as principais
caractersticas do consumo do ch entre os ndios, a populao rural amaznica e entre os
adeptos dos trs grupos religiosos mais destacados, dos quais traaremos em linhas gerais os
aspectos histricos mais relevantes.
De modo a estabelecer uma perspectiva panormica sobre o estado contemporneo do
consumo da ayahuasca, iremos agora acompanhar suas especificidades de acordo com o meio
onde ele ocorre.
1.1. Ayahuasca entre os ndios.
Labate32 afirma que na Amaznia Ocidental foram contabilizados 72 grupos indgenas
que usam ayahuasca. Influenciados pela percepo de vrias similaridades de crenas e hbitos,
bem como pelo trao comum de conhecer yag. Os antroplogos, conforme assinala Zuluaga33
designam os diversos grupos do Piemonte Amaznico de cultura do yage a ayahuasca
entre esses povos a planta mais valorizada.
31 Usando a mesma lgica de organizao de O uso ritual da ayahuasca. LABATE, B. C. e ARAJO, W. S. orgs., op. cit., 2002. 32 LABATE, B. C. A literatura sobre as religies ayahuasqueiras, in: LABATE B. C. e ARAJO, W. S. (orgs.), op. cit., p. 231. 33 ZULUAGA, G. A cultura do yag, um caminho de ndios, in: LABATE, B. C. e ARAJO, W. S. (orgs.), op. cit., p. 131.
22
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Para Reichel-Dolmatoff34, as experincias com plantas psicotrpicas possuem, entre
muitos ndios americanos, uma importncia capital na constituio de seus conceitos mgico-
religiosos, influenciando e at determinando a mitologia, a simbologia e o manejo de vrios
estados de conscincia fundamentais para seu povo.
Pedro Luz, estudando os significados elaborados entre os consumidores indgenas de
lngua Pano, Aruk e Tukano35, estabelece as caractersticas comuns aos diversos grupos.
Assinala que as diferenas restringem-se nomeao e a certas particularidades interpretativas
decorrentes das vivncias prprias de cada grupo.
Tambm caracterizados pelo autor supra citado como pertencentes a uma rea cultural
comum, esses diversos grupos indgenas compartilham as crenas na existncia de um outro
mundo (espiritual ou sobrenatural) que se pode contatar atravs da bebida sagrada, o que
possibilita aprendizados e conhecimentos existenciais valiosos e mesmo indispensveis; a
concepo de que as vises acessadas pelas plantas tm um carter absolutamente verdadeiro
pois permitem um contato com a real essncia do mundo, a atribuio de um poder pedaggico
ayahuasca, influenciando a moral e a conduta dos sujeitos que passam a reorganizar suas
relaes sociais com a ancestralidade e com os seres sobrenaturais, as convices nas
conseqncias teraputicas da planta (...) sendo seu uso no diagnstico e na cura xamnica
presente em todos os grupos vistos neste trabalho.36
Conclui-se que, enquanto mediadora das formas de apreenso do real, a Banisteriopsis
um veculo fundamental para a constituio e manuteno da identidade tribal entre os grupos
pesquisados. Luz diz ainda, no que corrobora com a viso nativa, que certos fatos s podem ser
conhecidos atravs da experincia direta com a substncia pois estariam para alm da
possibilidade de apreenso atravs da palavra.
Zuluaga destaca cinco contextos do consumo no indgena do yag. Esses usos novos so
considerados pelo autor como levianos, questo que merece uma discusso e confronto com
outras perspectivas37, especialmente acerca das controversas noes de pureza e sincretismo, o
que faremos em momento mais oportuno, quando estivermos discutindo o carter hbrido da
doutrina. O julgamento do autor bastante apressado e orientado por uma viso meio romntica,
34 REICHEIL - DOLMATOFF, G. O contexto cultural de um alucingeno aborgine: Banisteriopsis Caapi, in: COELHO, V. P. Os alucingenos e o mundo simblico. So Paulo: EPU, Ed. USP, 1976, pp. 59-60. 35Entre os povos de lngua Pano foram pesquisados pelo autor os Kaxinaw, os Yaminawa, os Sharanawa e os Marubo; Os Ashaninka e Machigunga do grupo Aruk e os Tukano foram representados atravs dos Airo-pai, Makunas, Desanas, Barasanas, Sionas e Tatuyos. LUZ, Pedro. O uso amerndio do Caapi in: LABATE, B. C. e ARAJO, W. S. (orgs.) op. cit. 36 LUZ, P. op. cit., p. 61 37 Tal como a de MaCRAE, E. op. cit., por exemplo.
23
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interessada num modelo puro dificilmente existente. Essas novas formas de consumo da
ayahuasca por ele apresentadas so:
A. Entre a populao mestia nas prticas de curandeirismo, principalmente nas cidades
de Iquito e Pucallpa, no Peru, e Mocoa na Colmbia;
B. Entre os religiosos brasileiros dos grupos do Santo Daime, Unio do Vegetal e
Barquinha;
C. Como objeto de pesquisas cientficas, para elucidao de sua eficcia teraputica,
sobretudo entre mdicos ocidentais. Como exemplo temos o Centro de Recuperao
de Toxicomanias localizado na cidade peruana de Tarapoto, dirigido pelo mdico
francs e naturoterapeuta Jacques Mabit, os trabalhos de Josep Fericgla, antroplogo
catalo, ou ainda as pesquisas farmacolgicas do neuropsiquiatra chileno Claudio
Naranjo;
D. Entre os chamados neoxams e entre pessoas identificadas com o estilo new age,
prticas recm-surgidas e nomeadas pelo autor como um novo humanismo
filosfico38 e, finalmente;
E. Aqueles que apenas buscam as sensaes provocadas pelas plantas. Uns procura de
experincias mais autnticas e outros mais oportunistas. O autor afirma que se pode
conseguir pela Internet uma garrafa de yag, comenta tambm da existncia de
agncias norte-americanas que organizam viagens para o Brasil, Equador e Peru,
basicamente objetivando o consumo da substncia atravs de algum pretenso xam.
1.2. Populao mestia amaznica.
Antes do advento dos grupos religiosos que sistematizaram uma doutrina do uso da
ayahuasca, e ainda atualmente, muitas pessoas das comunidades ribeirinhas e outras povoaes
do meio amaznico tambm conhecem a tradio de consumo do yag, principalmente atravs
de xams locais.
O xamanismo amaznico foi muito estudado por Luna39. Os grupos praticantes dessa
tradio, tambm chamados de vegetalistas, historicamente se constituram a partir do contato
38 Op. cit., p. 134. 39 LUNA, L. E. Xamanismo amaznico, ayahuasca, antropomorfismo e mundo natural, in: LABATE, B. C. e ARAJO, W. S. (orgs.) op. cit. Nesse artigo encontramos na bibliografia referncia a diversos outros trabalhos do autor publicados nos seguintes anos: 1982, 1984, 1986a, 1986b, 1989, 1990, 1991, 1996 e junto com AMARINDO, P. em 1991.
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entre populao indgena e ribeirinha (j missionizados) com os caucheiros 40 (muitos dos quais
peruanos). O uso da ayahuasca nesse contexto est fortemente ligado s prticas de
curandeirismo. Conforme j mencionamos, esse fenmeno pode ser amplamente encontrado
sobretudo em cidades peruanas e colombianas e se trata da aplicao dos conhecimentos sobre as
plantas medicinais aprendidos com os ndios. MacRae41 distingue o xamanismo mestio do
indgena, do qual o primeiro se originou. Para o autor, o termo mestio equivale ao caboclo
brasileiro. Todo meio amaznico, apesar de abranger territrios de distintos pases, possui uma
considervel homogeneidade, produtora de um estilo de vida geral com muitos traos comuns.
A regio sofreu radicais transformaes em decorrncia da colonizao ibrica,
posteriormente com a economia da borracha e, com o seu declnio, se registra um grande xodo
dos moradores da floresta em direo aos crescentes centros urbanos regionais. Apesar disso,
resistem as prticas xamanicas e um imaginrio povoado de espritos da floresta, da gua e do ar.
Os curandeiros vegetalistas se reconhecem como catlicos e so caracterizados como
portadores de lucidez, memria e sade notveis, a despeito de ainda circular na literatura uma
forma de conceb-los como portadores de patologias e desequilbrios psquicos.
De acordo com Labate: Embora em vrios pases da Amrica do Sul, tais como
Colmbia, Bolvia, Peru, Venezuela e Equador, haja uma tradio de consumo da ayahuasca por
xams e vegetalistas, curiosamente somente no Brasil que se desenvolvem religies de
populao no-indgenas que fazem uso desta bebida.42 A seguir, examinaremos informaes
bsicas sobre as religies que se formularam a partir da incorporao do uso tradicional da
ayahuasca e buscaremos dar relevo especial aos seus aspectos histricos constitutivos. Note-se
que nos detivemos especialmente religio do Santo Daime, naturalmente por se tratar do grupo
religioso que mais nos aproximamos (experiencial e teoricamente) durante a realizao dessa
pesquisa.
1.3. As principais religies ayahuasqueiras.
O Santo Daime, a Barquinha e a Unio do Vegetal, apesar de pertencerem mesma
matriz de consumo no-indgena da ayahuasca no Brasil realizam, cada uma a seu modo,
40 Segundo FRANCO e CONEIO ( in LABATE e ARAJO (orgs.)op. cit., p.202), os caucheiros so extratores de ltex que usam uma tcnica diferenciada dos outros seringueiros, pois no seu modo a rvore precisa ser derrubada. 41 MACRAE, E. op. cit., p. 30. 42 Op. cit., 2002, p. 231.
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rearranjos singulares aglutinando elementos cristos, esotricos, kardecistas e afro-brasileiros43.
Quanto ao processo de crescimento desses grupos, enquanto o Santo Daime e a Unio do
Vegetal ramificaram-se em direo aos centros urbanos e, posteriormente, para outros pases
como Espanha, Holanda, Estados Unidos e Japo, lugares que sediam ncleos do Santo Daime, a
Barquinha praticamente conservou-se no Acre, onde surgiu. A maior parte das pesquisas j
realizadas referem-se ao Santo Daime, talvez por se tratar do grupo que, ao lado da UDV, mais
se expandiu atravs do CEFLURIS. Vamos iniciar abordando-o tambm por tratar-se
historicamente do grupo que primeiro se constituiu.
1.3.1. O Santo Daime.
Pretendemos abordar os principais aspectos presentes na poca da elaborao dos
primeiros cultos do Santo Daime, o contexto scio-econmico, as principais matrizes religiosas
que ajudaram a formatar a religiosidade daimista, alguns acontecimentos e narrativas sobre as
revelaes originais, as principais lideranas e as vertentes por eles criadas.
Numa perspectiva scio-histrica, o surgimento dos primeiros cultos daimistas est no
momento situado entre os dois grandes ciclos da borracha, o primeiro ocorrera no incio do
sculo passado e o segundo nas dcadas de 1930 e 1940. grande nessa poca a presena de
imigrantes nordestinos, entre os quais est Raimundo Irineu Serra.
Para MacRae, tal como mencionamos, h nos costumes e crenas dos caboclos
amaznicos do incio do sculo passado uma certa homogeneidade que originou-se a partir dos
trabalhos dos missionrios que desde o sculo XVII ... impuseram o catolicismo atravs do
desmembramento das sociedades indgenas e sua incorporao s aldeias missionrias44. Para o
historiador francs Serge Gruzinski45 a partir desse momento que comeam a se difundir as
festas catlicas que, como veremos adiante, possuem importncia capital na formao do Santo
Daime. A cultura popular amaznica caracteriza-se fortemente pela pajelana - outro modo de
falar das atividades xamanicas - e a crena nos santos populares. Porm, a partir do ciclo da
borracha esse quadro vai se complexificar com a chegada de nordestinos, principalmente do
estado do Maranho. Monteiro da Silva constatou que ... a populao da regio amaznica
passa de 330 mil pessoas em 1872 para 1 milho e 400 mil em 192946. Com a nova
43 LABATE, B. C. op. cit., p. 232. 44 Op. cit., p. 59. 45 GRUZINSKI, S. O pensamento mestio, So Paulo: Companhia das letras, 2002, p. 33. 46 Op. cit., p. 371.
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configurao social podemos agora tambm encontrar na regio a presena da religiosidade afro-
brasileira, comeam a se estabelecer encontros que transformaro profundamente a religiosidade
local.
Na dcada de 1930, perodo de crescente urbanizao brasileira, a cidade de Rio Branco,
no Acre, recebe grande migrao de ex-seringueiros em decorrncia da desativao de vrios
seringais, ocasionada pela queda da exportao da borracha. A migrao para os centros urbanos,
sem infra-estrutura adequada, impe uma readaptao nova ordem socioeconmica ento
nascente. Surgem novas relaes de trabalho e interpessoais, outros modelos de conduta, etc. De
maneira geral, h um maior afastamento entre as pessoas, fomentado pelas novas dinmicas cada
vez mais determinadas pela lgica capitalstica de produo de subjetividades. Inevitavelmente
vo se enfraquecendo antigas prticas como o multiro, o compadrio e as festas dos santos
cristos, nitidamente importantes estratgias de coeso grupal, segundo Goulart quando o culto
de Raimundo Irineu Serra comea a ser organizado em Rio Branco, essas prticas j no tm a
fora e o significado que tinham no passado47. justamente atravs do resgate e ressignificao
dessas prticas que Irineu e seus vizinhos conseguiro reorganizar-se materialmente. Nesse
momento o Mestre Irineu j se destacava na realizao de trabalhos espirituais, inclusive com a
ayahuasca. A seguir, um pouco do seu percurso.
Raimundo Irineu Serra, nascido a 15 de dezembro de 1892 em So Lus do Ferret,
Maranho, de famlia vinculada s tradies afro-brasileiras, chega ao sul do Acre no incio do
sculo XX. Por meio de um curandeiro peruano, chamado Crescncio Pizango ele e Antonio
Costa foram iniciados no uso da ayahuasca. Eles criaram o Centro de Regenerao e F (CRF)
que inaugura o uso regular da ayahuasca entre a populao urbana, o centro situava-se na cidade
de Brasilia, Acre, e teria funcionado entre 1913 e 1929.
Voltando ao tempo da iniciao do Mestre Irineu, descobrimos que h poucos detalhes e
informaes sobre esse perodo que acabam adquirindo, segundo MacRae, ... um certo tom de
mito fundador48. Sabe-se que numa de suas primeiras experincias o Mestre Irineu viu Clara,
uma entidade feminina identificada como Nossa Senhora da Conceio ou a Rainha da Floresta.
Ela lhe trouxe algumas instrues que se fossem seguidas lhe preparariam para uma misso
especial, quando se tornaria um grande curador.
47 GOULART, S. L. O contexto de surgimento do culto do Santo Daime: formao da comunidade e do calendrio ritual, in: LABATE, B. C. e ARAJO, W. S. (orgs.) op.cit., p. 319. 48 Sua designao de mestre, para MacRae, atesta sua vinculao tradio vegetalista do meio curandeiril amaznico, onde a alta hierarquia assim reconhecida. Op. cit. p. 62-64.
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Embrenhado na mata, isolado por oito dias, Mestre Irineu tomava daime, seguindo
rigorosamente as dietas alimentares (comia apenas macaxeira sem sal) e sexuais (no podia ter
nenhum contato com mulheres) ia recebendo os ensinamentos atravs das miraes
proporcionadas pela prpria Rainha da Floresta, conforme acredita-se. Como perceberemos, de
acordo com as crenas daimistas, muitos ensinamentos bem como os hinos rituais no so
compostos, pois compreende-se entre os adeptos da doutrina que estes so recebidos dos planos
espirituais da existncia. Voltaremos a falar sobre esse momento constitutivo da doutrina na
segunda parte do trabalho.
Ao afastar-se do CRF, no incio da dcada de 1930 o Mestre Irineu cria o Centro de
Iluminao Crist Luz Universal Alto Santo (CICLU), na cidade de Rio Branco e passa a
receber os hinos que iro compor O Cruzeiro, conjunto de hinos considerado como uma
ressistematizao dos ensinamentos de Cristo.49
Das prticas tradicionais absorvidas pelo Santo Daime foi, sem dvida, a devoo aos
santos cristos que marcou mais profundamente a nova doutrina. Os tradicionais festejos aos
santos sempre reuniam o povo, que nas celebraes conjuntas firmavam uma identidade que
valorizava a solidariedade e estreitava relaes. Esses festejos foram determinantes na criao e
estabelecimento do calendrio ritual daimista que, ainda hoje possui os mais importantes
acontecimentos litrgicos nos dias de santos catlicos.
Cantar e danar, agora reinventados nos hinos e no bailado, era prprio do carter festivo
do povo catlico que assim celebrava seus santos. Goulart nos faz ver que, naquele momento, no
entanto, esses hbitos vinham sendo cada vez mais intensamente desestimulados e condenados
pela ortodoxia crescente das autoridades eclesiais. Porm, ao invs de submeter-se
completamente nova moral catlica, formas de resistncia se instauraram. A autora insere aqui
as prticas religiosas emergentes em torno do Mestre Irineu pois, segundo diz: o culto do Santo
Daime recupera o significado da festa, da dana e do canto. A ausncia da dana, da msica, da
festa, vista, alis, como um empecilho para a comunicao com a realidade sagrada.50.
Verifica-se a marca de prticas indgenas no Santo Daime, entendido enquanto sistema
simblico que experimenta um ethos composto por elementos presentes no xamanismo que lhe
so comuns, por exemplo: a noo de mltiplos planos constitutivos do universo, ligados por um
princpio energtico que pode ser mediado pelo xam, que tem acesso a experincias extticas51.
Outras assimilaes tambm realizadas nesse momento constitutivo da doutrina daimista 49 GROISMAN, op. cit. 50 Op. cit., p. 327 51 MONTEIRO DA SILVA, C., op. cit.
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referem-se s prticas de curandeirismo, sobremaneira as dos vegetalistas ayahuasqueiros. Se
anteriormente essas prticas conviviam pacificamente com o catolicismo, cada qual
resguardando seu valor, no mbito desse novo cenrio social passaro a sofrer um processo de
deslegitimao e at mesmo de perseguies policiais, produzindo uma incompatibilidade entre
as prticas catlicas e curandeiras, que antes era inexistente. O culto do Mestre Irineu rearticular
ambas e obviamente sofrer retaliaes por isso.
No podemos nos esquecer que nesse tempo vigora no Cdigo Penal artigos ...
referentes prtica ilegal da medicina, da magia e que proibia o curandeirismo .. Mestre Irineu,
assim como lideranas de terreiros e de outras casas religiosas sofreram perseguies mas
tambm souberam articular estratgias de defesa buscando a proteo das elites, sobretudo
polticas, muitos dos quais visavam, entre outras coisas, beneficiar-se do carisma das lideranas
espirituais junto aos fiis/eleitores.52
Na dcada de 1970 ocorrem eventos que imprimiro marcas importantes ao movimento
daimista. Em 1971, com a morte do Mestre Irineu, indica-se Lencio Gomes como seu sucessor
e em 1974, em decorrncia de desacordos internos, ocorre a sada de mais de cem fiis da
comunidade que optaram por seguir Sebastio Mota Melo. Aproximando-nos um pouco mais da
sua histria, verificamos que o Padrinho Sebastio, como era tratado pelos seus, nasce a 07 de
outubro de 1920 no estado do Amazonas. Participava de trabalhos em mesas de espiritismo
Kardecista, onde incorporava guias conhecidos como o mdico Bezerra de Menezes e o
professor Antonio Jorge para realizao de atendimentos e curas espirituais53.
Em 1959 ele passa a morar na zona perifrica de Rio Branco, na Colnia 5.000, onde
viviam os familiares da sua esposa, Rita Gregrio. No ano de 1965 procura o Mestre Irineu para
curar-se de grave doena de fgado. Recuperado, continua freqentando o Alto Santo logo se
destacando na comunidade.
Quanto ao estopim da ciso ouamos MacRae: em 1974, por ocasio de uma das
espordicas investidas policiais contra o culto, Padrinho Sebastio, para demonstrar seu apego
ordem, prope fazer um trabalho para as autoridades que incluiria o hasteamento solene da
bandeira brasileira. Lencio Gomes discorda acusando o Padrinho de querer introduzir
mudanas no ritual, e se assim o desejasse que fosse faz-lo em sua prpria casa. Assim tiveram
incio as sesses autnomas na Colnia 5.000, que at ento mantinha um funcionamento
52 A colnia Custdio de Freitas, onde veio a se instalar o Alto Santo ou CICLU, foi obtida por Mestre Irineu na dcada de 1940 por influncia do governador do Acre, Guiomard dos Santos. MACRAE, op.cit. 53 MACRAE, E. op. cit., p. 71.
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subordinado ao Alto Santo, para onde destinava, antes do rompimento, metade do ch que
produzia conforme acordo firmado com o Mestre Irineu.
O Padrinho e seus seguidores mudar-se-o ainda mais duas vezes at firmar a
comunidade, hoje conhecida como Cu do Mapi, sede mundial do movimento, considerada a
Nova Jerusalm dos daimistas. A Colnia 5.000 tornava-se pequena no fim da dcada de 70 para
abrigar os simpatizantes que, a essa altura, no se restringiam a pessoas da redondeza, muitos
vinham de outras regies brasileiras, sobremaneira do Sudeste, e tambm do exterior. Em 1980 o
INCRA (Instituto de Colonizao e Reforma Agrria) autoriza o assentamento da comunidade
no municpio amazonense de Boca do Acre. Dois anos depois a comunidade havia implantado
um seringal com produo anual entre 10 e 15 toneladas de borracha.
Nesse tempo, porm, essas terras foram solicitadas por uma empresa do sul do pas que se
identificava como proprietria. Alimentados pela idia de que ainda no haviam chegado no
lugar ideal para instalao da sua Nova Jerusalm, seguiram para Pauini, Amazonas. O novo
local indicado pelo INCRA, situar-se-ia s margens do igarap do Mapi, um local isolado
dentro da floresta aonde s se chega aps dois dias de viagem de canoa.
Para identificar como aps sair da cidade do Rio Branco para o interior da floresta
Amaznica, o culto do Santo Daime expande-se para zonas urbanas, s que dessa vez num
contexto bem mais amplo, precisamos retomar algumas circunstncias. preciso recordar que
nos encontramos no perodo ditatorial militar, contexto amplamente repressivo que comea a
despertar ideologias e atitudes, principalmente entre os jovens, de resistncia e recusa do status
quo. Levantam-se crticas sociedade blica, aos valores fteis do consumismo crescente,
excluso social.. Valorizam-se idias anti-burguesas, h uma busca pelas filosofias orientais, por
prticas religiosas nativas e acredita-se que as revolues sociais deveriam ser precedidas por
mudanas internas. Em linhas gerais, cresce o nmero daqueles que anseiam por novos modelos
de existncia no pautados pela asceno social, dentre estes, muitos abandonaram suas
ocupaes para sair em busca de novos estilos. Muitos jovens da classe mdia comeam a fazer
peregrinaes, a maioria costumava ir ao Peru, s runas de Machu-Pichu, mas alguns tambm se
dirigiram para o Acre.
Muitos encontraram respostas a seus anseios na Colnia 5.000 pois, como disse MacRae:
encontravam l uma comunidade agrcola implantada, liderada pelo venervel e
hospitaleiro Padrinho Sebastio, que lhes acenava com sua ecltica doutrina de
origem indgena e apontava para uma bem demarcada senda de conhecimento
inicitico. Atravs do uso da ayahuasca, desde o incio se poderia ter acesso a
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experincias de xtase e iluminao que os seguidores de outras escolas
espiritualistas s pensam em alcanar no fim de suas vidas.54
Com o retorno desses visitantes s suas cidades e com a divulgao dos seus novos
ideais, comeam-se a produzir condies que desembocaro na criao de vrios ncleos
daimistas, agora j num contexto scio-econmico bem distinto, o das classes mdias urbanas.
Primeiro na cidade do Rio de janeiro criou-se em 1982 o Centro Ecltico Fluente Luz Universal
Sebastio Mota de Melo (CEFLUSME). Ainda no Estado do Rio, criam-se centros em Visconde
de Mau, Pedra de Guaratiba e Friburgo; em Minas Gerais nas cidades de Belo Horizonte, Santa
Luzia, Caxambu e Aiuruoca, tambm em Braslia, Florianpolis e So Paulo.
1.3.2 - A Barquinha.55
Em 1945 na capital do Acre, Rio Branco, Daniel Pereira de Matos criou o Centro Esprita
e Culto de Orao Casa de Jesus Fonte de Luz, a Barquinha. O criador da Barquinha nasceu em
So Lus do Maranho. Filho de escravos, ainda na infncia Daniel foi incorporado Marinha.
Sabe-se que na dcada de 20 ele j se encontrava no Acre. Trabalhava como barbeiro e descrito
como grande bomio, isso at antes da criao da Casa de Cultos. Seu envolvimento com as
farras e bebedeiras est, inclusive, intimamente ligado histria da sua converso.
Voltando embriagado de uma de suas celebraes com os amigos, adormeceu beira do
caminho. A mesmo recebeu uma revelao, a viso de um livro azul que lhe era entregue por
dois anjos. Sem dar muita ateno ao significado da viso que tivera, Daniel no sabia que o
evento voltaria a lhe ocorrer algum tempo depois, aps j ter sido iniciado nos trabalhos com a
ayahuasca.
Abusando das bebidas alcolicas, Daniel passou a sofrer de graves problemas de fgado.
Mestre Irineu, que freqentava a barbearia do seu conterrneo, tomando conhecimento das
dificuldades que o amigo enfrentava, convida-o a tratar-se espiritualmente com o Santo Daime, o
que comea a acontecer a partir de 1936. Certa vez, de volta da colnia onde o Mestre Irineu
realizava suas atividades religiosas, Daniel, ao adormecer pelo caminho, tem novamente a viso
dos anjos com o livro azul a lhe falarem de uma misso que ele deveria cumprir.
Daniel conseguiu a liberao informal de uma propriedade desabitada onde construiu
uma pequena casa de taipa, que depois ficaria conhecida como capelinha. A comeou a fazer o 54 Op. cit., p. 78 55 Todas as informaes aqui recolhidas so frutos das pesquisas de ARAJO, 1999 e 2002, op. Cit.
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que considerava como obras de caridade, atendendo crianas, adultos com problemas de sade e
familiares, casos de alcoolismo etc. Assim nasce a Barquinha.
Falecido em 1958, desde o ano anterior, o Mestre Daniel comeou a anunciar aos seus
seguidores que faria uma viagem, ambiguamente entendida ora como possvel retorno sua terra
natal, ora como seu fale