Expressoes Do Inferno

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III Mostra de Pesquisa da Pós- Graduação PUCRS Expressões do Inferno Construção do imaginário de inferno e suas linguagens visuais Milene Gomes Sacco Sanguiné , Prof. Dr. Carlos Gerbase (orientador) PPGCOM, Faculdade de Comunicação, PUCRS, Resumo Saber qual imaginário o sujeito contemporâneo tem acerca do universo infernal, pode servir para a compreensão deste mesmo sujeito e suas diversas facetas culturais. A importância, ou até mesmo a desimportância, que a possibilidade de punição/recompensa ou desejo/culpa possuem na vida desse sujeito podem contribuir para a compreensão dos valores atribuídos à moral, à ética e até ao deixar-se seduzir. Questões estas tão importantes para os processos comunicacionais na atualidade. No entanto, o imaginário contemporâneo expresso no filme “Nossa Música” de Jean-Claude Godard (França/Suíça, 2004) possui origens pregressas que podem ser buscadas e analisadas através do conceito de perspectiva em abismo de Eduardo Cañizal Peñuela. Foi Eduardo Peñuela Cañizal que apontou a existência de uma “perspectiva em abismo” no cinema do espanhol Pedro Almodóvar, que constrói algumas imagens buscando substratos imagéticos nos filmes de Luis Buñuel, que por sua vez, as reconstrói a partir de cenas de outros III Mostra de Pesquisa da Pós-Graduação – PUCRS, 2008

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III Mostra de Pesquisa da Ps-Graduao

PUCRS Expresses do Inferno

Construo do imaginrio de inferno

e suas linguagens visuais

Milene Gomes Sacco Sanguin, Prof. Dr. Carlos Gerbase (orientador)

PPGCOM, Faculdade de Comunicao, PUCRS,

Resumo

Saber qual imaginrio o sujeito contemporneo tem acerca do universo infernal, pode servir para a compreenso deste mesmo sujeito e suas diversas facetas culturais. A importncia, ou at mesmo a desimportncia, que a possibilidade de punio/recompensa ou desejo/culpa possuem na vida desse sujeito podem contribuir para a compreenso dos valores atribudos moral, tica e at ao deixar-se seduzir. Questes estas to importantes para os processos comunicacionais na atualidade.

No entanto, o imaginrio contemporneo expresso no filme Nossa Msica de Jean-Claude Godard (Frana/Sua, 2004) possui origens pregressas que podem ser buscadas e analisadas atravs do conceito de perspectiva em abismo de Eduardo Caizal Peuela.

Foi Eduardo Peuela Caizal que apontou a existncia de uma perspectiva em abismo no cinema do espanhol Pedro Almodvar, que constri algumas imagens buscando substratos imagticos nos filmes de Luis Buuel, que por sua vez, as reconstri a partir de cenas de outros filmes ou ainda de imagens clssicas da pintura espanhola. (...) (Baitello, 2000, online). Percorrendo um caminho historicamente regressivo, de acordo com a perspectiva em abismo, encontram-se diversas obras como expresso do inferno at chegar-se Comdia de Dante Alighieri (1301 1320). Da mesma forma v-se este fenmeno dar-se atravs da intertextualidade, que no exclusiva da contemporaneidade, mas tpica do ps-modernismo. Roland Barthes definiu o intertexto como a impossibilidade de viver fora do texto infinito (1975, 36). Linda Hutccheon lembra que:

Ao escrever sobre seu romance O Nome da Rosa, Umberto Eco afirma: Descobri o que os escritores sempre souberam (e nos disseram muitas e muitas vezes): os livros sempre falam sobre outros livros, e toda estria conta uma estria que j foi contada (1984, 20) (Hutcheon, p.166, 1988).

Em sua Comdia, Dante Alighieri utilizou elementos de outra obra, a Eneida de Virglio, seu poeta romano favorito. Desta, Dante utilizou aspectos e elementos do imaginrio clssico, como seus mitos e lendas, e misturou-os a outros elementos do imaginrio cristo. Quando o escritor e bigrafo de Dante, Giovanni Boccacio, inicia o Lectura Dantis, um rito quase cannico de ler e interpretar os escritos de Dante em praa pblica acrescido o adjetivo de divina, assim, a Divina Comdia de forma oral vai se disseminar. A escolha da lngua (o vulgato) como tambm do tipo de estruturao do poema contriburam muito para que ela se popularizasse atravs da repetio oral por se aproximar da fala humana.O imaginrio social estrutura-se principalmente por contgio: aceitao do modelo do outro (lgica tribal), disseminao (igualdade na diferena e imitao (distino do todo por difuso de uma parte). No imaginrio h sempre desvio. No desvio h potencialidade de canonizao. O imaginrio explica o eu (parte) no outro (todo). Mostra como se permanece individual no grupo e grupal na cultura (Silva, 2006, pg. 13-14).

Entre 1480 a 1490, Sandro Botticelli, a pedido dos mecenas Mdici, elabora alguns desenhos ilustrando a Divina Comdia. Comea, assim, o universo da visualidade do poema de Dante e sua relao de intertextualidade entre poema e sua traduo pictrica. Desta forma visual, seu alcance vai se expandir e outros artistas como William Blake (Inglaterra, 1820), Gustav Dor (Frana, 1832-1883) e Salvador Dali (Espanha, 1958) vo se somar aos tradutores visuais da Divina Comdia, ampliando cada vez mais o conhecimento do poema e a influncia no imaginrio social desde a renascena, a modernidade e a ps-modernidade. Como por exemplo, os quadrinhos de Sandow Birk (EUA, 2000) da srie feita para televiso e dirigida por Peter Greenaway (Inglaterra, 1996), o CD produzido pela banda de rock Sepultura (2004) e a traduo cinematogrfica chamada Nossa Msica, de Jean-Luc Godard (Frana/Sua, 2004). Esta ltima, o ponto de chegada deste trabalho.

O filme Nossa Msica constitudo de trs partes: Inferno (Reino I), Purgatrio (Reino II) e Paraso (Reino III). Embora aqui se v analisar apenas a primeira parte, correspondente ao Inferno, importante que se diga que o filme Nossa Msica traz dentro de si uma infinidade de signos, mas o filme como um todo um signo que est relacionado com outras obras sob o aspecto da perspectiva em abismo, da semiose e da relao de intertextualidade. Podemos observar que existe um elo entre o filme em questo e outras obras, que retroagem em direo da obra de Dante Alighieri, a Divina Comdia. Vemos, assim, o mesmo tema expresso por quatro tipos de representaes artsticas: cinema, pintura, literatura e msica numa relao intertextual evidente.

No Inferno de Godard a cor adicionada e trabalhada sempre de modo a causar estranhamento e xtase pelo uso da complementariedade ou do contraste e pela profuso de tonalidades. Um Inferno ao mesmo tempo expressionista e barroco, mas, sobretudo ps-moderno, em que pode-se observar uma grande variedade de fragmentos de origens mltiplas: desde o cinema mudo at imagens documentais atuais, a todo tempo interrompidas por pausas em telas pretas. Apresenta-se, assim, um Godard ao mesmo tempo pintor, por usar as cores de forma to hbil como elemento comunicante, e garimpeiro, por vasculhar o universo das imagens pr-produzidas e escolher aquelas que servem ao seu intuito. Sobre esse hibridismo Cauduro nos diz que a esttica ps-moderna sabe-se resultado da intertextualidade, da citao, da cpia, da hibridao de vrios estilos diferentes disponibilizados por repertrios visuais de diferentes histrias (idem, 2000).No Inferno tudo no , tudo apenas possibilidade de ser, um devir. O espectador fica a perguntar se as imagens so reais, se so documentais, se so representaes ou fragmentos de outros filmes j vistos antes, e que se intrometem no Inferno atravs da perspectiva em abismo. A operao da simulao nunca cessou: fazer parecer real o que no foi invocado para dar conta da escultura grega quanto da perspectiva (a famosa iluso de profundidade), da pintura dita trompe-loeil at o apogeu do movimento barroco. (...) Cada poca teve seus simulacros. A nossa tem como particular ter feito nascer entidades hbridas, situadas entre o que real (segundo o modo do objeto) e o que no (segundo o modo da representao). (WEISSBERG, 2004, p.117)A inteno do artista contemporneo Jean-Luc Godard talvez seja a de emocionar e chocar olhares to embotados de imagens violentas. As imagens do Inferno so trabalhadas, a todo instante, de forma digital para tornar o pixel aparente. Contudo, elas so profundamente contundentes e muitas vezes chocantes: cabeas arrancadas, cadveres em decomposio, enforcados, crianas famlicas, sangue espalhado. Contudo, o potico no lhe abandona e, sim, emociona.

Ainda assim, a maior emoo esttica est na possibilidade que a bricolage abre, na contemporaneidade, de ampliar o sentido imagtico de fragmentos presos no tempo e esvaziados de significado pela repetio, produzindo signos que at ento eram impensados. O aparentemente inadequado comunicando melhor do que o previsvel. O previsvel comunicando de forma eficiente por estar deslocado, fora de contexto. Como bricoleur, Godard nos mostra que a linguagem contempornea pode ser a da diferena e do inusitado fazendo emergir os sentidos de seu Inferno que surgem com uma multiplicidade e uma fora que evoca a sensao de verossimilhana. Certamente outras mentes captam outros tantos signos advindos do mesmo Inferno.

Introduo

Em 1320, Dante Alighieri termina de escrever a Comdia; em 2004, Jean-Luc Godard lana o filme Nossa Msica. Essas duas obras so divididas em 3 partes: Inferno, Purgatrio e Paraso. O objetivo deste trabalho detectar as confluncias de significado entre as duas obras, bem como o trajeto que o imaginrio, produzido pela primeira, cumpriu ao longo de cerca de 7 sculos que as separam.

Tambm objeto deste trabalho detectar e recolher as manifestaes artsticas que expressaram a primeira parte da Comdia, chamada Inferno, e discutir a atualizao que o imaginrio acerca deste sofreu desde a Idade Mdia, passando pelo modernismo e sua manifestao na ps-modernidade representada pela primeira parte do filme Nossa Msica: Reino I Inferno.Para tanto, esto sendo usados os conceitos de imaginrio em Gilbert Durand, Michel Maffesoli e Juremir Machado da Silva; o conceito de perspectiva em abismo, de Eduardo Caizal Peuela, intertextualidade de Linda Hutcheon e observao colateral de Charles Sanders Peirce.Com estes elementos o empreendimento da pesquisa busca compreender as relaes intertextuais entre o Inferno de Alighieri e o Inferno de Godard.Metodologia

Analisou-se a primeira parte do filme Nossa Msica de Jean-Luc Godard (Frana/Sua, 2004), intitulada Reino I Inferno, procurando detectar elementos que expressassem o imaginrio acerca do inferno na atualidade. Aps buscou-se a origem destes elementos, encontrando na obra de Dante Alighieri correspondncias entre as duas obras. Procedeu-se uma anlise da Comdia, recortando sua primeira parte: Inferno e detectando elementos significantes do imaginrio coletivo expresso a poca de Alighieri. Aps recolheu-se outras expresses artsticas do Inferno produzidas ao longo do trajeto percorrido pelo imaginrio dos artistas como expresso da poca em que foram produzidas.

Para anlise do material encontrado usou-se teorias acerca do imaginrio, intertextualidade, perspectiva em abismo e observao colateral.Resultados e Discusso

A anlise de como foi construdo o imaginrio a partir da Divina Comdia possibilitou observar a importncia da oralidade, como tecnologia do imaginrio no poluente (Silva, 2006) para a construo de um imaginrio grupal e sua disseminao.

A coleta do material pictrico permitiu observar como o imaginrio acerca do inferno foi sofrendo alteraes, se libertando ou retomando elementos estticos comuns Idade Mdia, dando conta de que talvez no haja uma linearidade no trajeto deste imaginrio. Tambm foi possvel observar que, segundo nos diz Durand (1998), as transformaes ocorridas na bacia semntica ocorrem em um longo espao de tempo de dimenses medidas em sculos.

Em relao s expresses do inferno na ps-modernidade, foi possvel observar um deslocamento do ambiente do inferno em direo ao aqui e agora. Ou seja, da dimenso do ps-morten a realidade infernal passou a fazer parte do mundo dos homens em seu dia-a-dia. Isso pode ser percebido na histria em quadrinhos de Sandow Birk que situou o inferno em So Francisco, o purgatrio em Los Angeles e o paraso em Nova York. J Jean-Luc Godard, obedecendo esttica ps-moderna, constri sua obra misturando cenas que povoam o imaginrio cinematogrfico da modernidade com imagens reais de acontecimentos histricos do sculo XXI. Para isso produziu uma composio baseada na bricolage de Lvi-Strauss (1964), conseguindo com isso um efeito de verossimilhana mobilizador para questes relacionadas com a realidade mundial e com a condio humana.Concluso

Ao longo dos cerca de 700 anos que separam a escritura da Comdia, de Dante Alighieri, da obra cinematogrfica intitulada Nossa Msica, de Jean-Luc Godard, o trajeto do imaginrio acerca do inferno sofreu modificaes e deslocamentos. No entanto, possvel perceber que este imaginrio nunca esteve ausente, pelo contrrio, foi em cada poca interpretado e traduzido artisticamente de acordo com o pensamento e a esttica vigente. Assim sendo, o imaginrio infernal foi uma constante na vida dos homens e mulheres e, expresso nas artes, suscita discusses sobre sua origem e veracidade.

De forma alegrica, puramente religiosa ou como metfora para a condio humana, o inferno acompanha o homem em suas indagaes sobre o seu prprio futuro e o do mundo. Isto est colocado de forma veemente no filme Nossa Msica, que com sua esttica ps-moderna e recursos usados por Godard, como a bricolage, o uso da profuso cromtica e as telas pretas, nos coloca ainda em posio de sensibilidade para um tema to antigo.

Desta forma, a bacia semntica continua seu trajeto sendo acrescida de novos signos e tomando novas direes.Referncias

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