Exus e Pombas-giras o Masculino e o Feminino Nos Pontos Cantados Da Umbanda

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    Psicologia em Estudo, Maring, v. 6, n. 2, p. 107-113,jul./dez. 2001

    EXUS E POMBAS-GIRAS: O MASCULINO E O FEMININO NOS

    PONTOS CANTADOS DA UMBANDA1

    Adriano Roberto Afonso do Nascimento*

    Ldio de Souza#

    Zeidi Arajo Trindade

    RESUMO. O presente trabalho tem como objetivo a caracterizao dos Exus e Pombas-Giras, atravs dos pontos cantados daUmbanda, considerando aspectos que remetem a uma configurao mais ampla de componentes do imaginrio socialbrasileiro. Foram submetidas Anlise de Contedo 221 letras de pontos de Exu e Pomba-Gira. Os pontos de Exu contmmaior freqncia de menes relacionadas descrio de poder e funes atribudas a essa entidade (31,6% das respostas) e sua identificao e saudao (22,4%). Os pontos de Pomba-Gira apresentam mais freqentemente a descrio de

    poder/funes atribudas (30,23% das respostas) e a caracterizao da entidade (30,23%). Os resultados possibilitamrelacionar as caractersticas das entidades aos papis socialmente esperados de homens e mulheres. Exu representado pelaliberdade, fora e, principalmente, pelo trabalho. Pomba-Gira representada atravs de atributos considerados tpicos do sexofeminino, como beleza e sensualidade, e tambm pelo trabalho. Os dados remetem a uma anlise que procura a articulaoentre fatores raciais e de classe social presentes na sociedade brasileira e as caractersticas definidoras das entidades,identificadas nos pontos.Palavras-chaves: umbanda, esteretipo, gnero.

    EXUS AND POMBAS-GIRAS:

    THE MALE AND FEMALE IN UMBANDA CHANTS

    ABSTRACT. The aim of the present paper is the characterization of the Exus (male entities, loosely associated with thedevil) and Pombas-Giras (female entities, the counterparts of the Exus) in the singing chants of the Umbanda religion,focusing on aspects, which relate to a broader configuration of components of the Brazilian social imagery. Two hundred andtwenty one lyrics of Exu and Pomba-Gira chants were subjected to Content Analysis. Exu chants have a higher frequency ofcitations related to the description of power and functions attributed to this entity (31.6% of the answers) and to identificationand greeting (22.4%). Pomba-Gira chants present most frequently the description of attributed power/functions (30.23% ofthe responses) and the entity characterization (30.23%). The results allow for associations of the entities characteristics andthe socially expected roles of men and women. Exu is associated with freedom, force, and, mostly, industry. Pomba-Gira isrepresented by attributes considered typically feminine, such as beauty and sensuality, and also by industry. The data demandan analysis that seeks the articulation of racial factors and social classes present in Brazilian society and the definingcharacteristics of the entities, identified in the chants.Key words: umbanda, stereotypes, gender.

    1 Trabalho realizado durante a vigncia de bolsa de produtividade em pesquisa/CNPq.* Doutorando no Programa de Ps-graduao em Psicologia da Universidade Federal do Esprito Santo.

    Endereo para correspondncia: Rua Humberto Serrano, 550, apto 201, Ed. Bourdon, Praia da Costa, CEP: 29101-460, VilaVelha-ES. E-mail: [email protected]

    # Professor doutor do Programa de Ps-graduao em Psicologia da Universidade Federal do Esprito Santo. Professora doutora do Programa de Ps-graduao em Psicologia da Universidade Federal do Esprito Santo.

    INTRODUO

    Exu, identificado comumente com um sermatreiro e amoral para os padres ocidentais, sofreu

    modificaes importantes desde a sua vinda da frica,com os escravos, at a sua apropriao pela Umbanda.Essa entidade ocupa uma funo mpar entre asdemais divindades cultuadas pelo Candombl,

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    possivelmente o culto que ainda mantm a

    representao de Exu mais prxima da originria.

    Nessa representao ele quem tem o papel/poder de

    servir como elo de comunicao entre os demais

    orixs e desses com os homens. Sua funo o

    prprio estabelecimento e manuteno da ordem do

    mundo espiritual. Alm disso, desempenha tarefas

    especficas determinadas pelos orixs, servindo como

    uma espcie de mensageiro/instrumento (Bastide,

    1978; Verger, 1999; Prandi, 2001).

    Sua identificao histrica com o diabo cristo se

    estabeleceu, portanto, no devido a suas caractersticas

    funcionais, mas sim a aspectos relativos a sua

    aparncia. A rejeio do culto aos orixs e as

    perseguies empreendidas pelos senhores brancos

    criaramnos escravos a necessidade de encontrarem

    entidades crists que os representassem. Como Exu

    uma divindade do fogo, qual eram atribudos chifres,

    membro viril e sexualidade sem freios, assemelhando-

    se representao do diabo cristo, a entidade

    escolhida foi o demnio (Bastide, 1978).

    Na Umbanda, a figura de Exu vai ser construda

    num amlgama de suas funes no Candombl e sua

    percepo como demnio cristo.

    Em princpio existem quatro gneros de

    espritos que compem o panteo

    umbandista; podemos agrup-los em duas

    categorias: a) espritos de luz: caboclos,pretos-velhos e crianas - eles formam o que

    certos umbandistas chamam de 'tringulo da

    Umbanda'; b) espritos das trevas - os exus

    (Ortiz, 1991, p. 71).

    A ordem de apresentao tambm se constitui

    em ordem de valor. Pode-se, atravs dos atributos

    de cada entidade, relacion-las, de forma geral, s

    seguintes imagens: ndio idealizado

    romanticamente, negro escravo e ainda submisso,

    criana branca e homem da classe baixa, cuja falta

    de valores de nobreza o tornam propcio s funesdo labor. Alm desses quatro grupos principais,

    tambm podem ser encontrados baianos,

    boiadeiros, marinheiros, ciganos e mdicos, entre

    outros (Negro 1996).

    Deve-se observar que a posio subalterna de

    algumas entidades compensada por um fator

    fundamental para a sua valorizao: so justamente

    essas que do consultas e, por conseqncia, exercem

    contato e influncia mais prximos aos fiis do que

    aquelas que se encontram em mais alta posio na

    hierarquia espiritual (Birman, 1985). No caso dos exus

    essa proximidade deve ser entendida, sobretudo, comoafinidade, uma vez que eles so as entidades mais

    prximas do homem comum, com suas aflies e

    incertezas (Trindade, 1981; Negro, 1996).

    Essa afinidade pode ser reafirmada pelas

    caractersticas da possesso na Umbanda. Segundo

    definio de Magnani (1986), a possesso a

    ... forma de contato com o sobrenatural

    atravs da incorporao de entidades

    espirituais nos iniciados que,

    momentaneamente despojados de suas

    caractersticas individuais, passam a agir sob

    a influncia daquelas entidades; em alguns

    contextos o mesmo que transe (p. 60).

    Na Umbanda, onde o transe se encontra entre as

    representaes individual e mtica (como no Candombl),

    atualizando personagens que se encontram presentes nocotidiano e na memria popular (Magnani, 1986; Birman,

    1991), as entidades se encontram mais prximas do

    mundo dos homens, uma vez que j viveram e possuem,

    assim, histria objetivada em locais, funes

    desempenhadas e caractersticas pessoais. Aquelas

    entidades que no possuem uma vida objetivamente

    localizada constituem o que podemos chamar de

    categorias vazias, papis sem personagens. Essas

    personagens podem, assim, ser construdas pelo prprio

    mdium, utilizando a sua prpria histria para gerar

    categorias com sentido (Ortiz, 1991).

    Esse fato faz com que seja possvel o estudo dedeterminadas relaes sociais que considere a anlise da

    dinmica que se estabelece no interior da prtica

    umbandista, atravs da prpria interao entre suas

    entidades, por exemplo, nos pontos cantados. Segundo

    Prandi (1996),

    Nas religies afro-brasileiras, todo

    cerimonial cantado ao som dos atabaques, e

    quase todo tambm danando. As cantigas de

    candombl e os pontos-cantados da umbanda

    so instrumentos de identidade das entidades

    (p. 144).

    Considerando que as cantigas se constituem em

    instrumentos que atualizam a identidade das entidades a

    partir de elementos e personagens do cotidiano, o presente

    trabalho tem como objetivo a caracterizao dos Exus e

    Pombas-Giras, atravs dos pontos cantados da Umbanda,

    destacando os aspectos que possibilitam uma articulao

    com componentes do imaginrio social brasileiro.

    MTODO

    Foram analisadas 221 letras de pontos de Exu ePomba-Gira recolhidos em livros e discos que se

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    Psicologia em Estudo, Maring, v. 6, n. 2, p. 107-113, jul./dez. 2001

    propem a colet-los e divulg-los, encontrados em

    lojas de produtos religiosos. As letras foram

    submetidas Anlise de Contedo (Bardin, 1994 e

    Vala, 1986) e agrupadas em categorias. Trs

    subdivises foram previamente consideradas, quais

    sejam: a) pontos de Exu, b) pontos de Pomba-Gira e

    C) pontos de relao, onde so citadas as duas

    entidades.

    RESULTADOS

    As categorias

    a) Descritivos de poder/funes atribudas: pontos

    que fazem referncia s funes das entidades,

    bem como aos poderes que possuem. Ex: Meianoite a mar vazou/ Lua veio anunciar/ Eu j vouvencer demanda/ Sarav, Calunguinha do mar.

    b) Caracterizao (indumentria, imagem): pontos

    que relatam a aparncia fsica das entidades e/oumencionam vesturio e acessrios/instrumentos

    que as caracterizam. Ex: Olha que menina linda/Olha que menina bela/ Pomba-Gira Menina/ Mechamando da janela.

    c) Identificao/saudao: pontos que contm apenas

    o nome da entidade e/ou uma saudao a ela. Ex:

    Pinga Fogo l na encruza/ Pinga-Fogo l na

    serra/ Abre a porta, minha gente/ Pinga-Fogo tna terra.

    d) Relao hierrquica: pontos onde h meno a

    outras entidades associadas a Exu, exceto Pomba-

    Gira, e vice-versa, com alguma relao diferencial

    de poder e/ou hierarquia. Tambm foram

    considerados os pontos que explicitam a posio

    hierrquica que a entidade ocupa. Ex: Exu foibatizado/ E recebeu a sua cruz/ Na falange deDom Miguel/ Kamilo nos defende, nos conduz.

    e) Personalidade: nessa categoria foram includos

    pontos em que h referncia a traos depersonalidade/carter das entidades. Ex:A encruzaestremeceu/ Uma gargalhada soou alm/ SalveExu, que batizado/ Exu do fogo no atacaningum/ O Exu bom, no ataca ningum.

    f) Proteo: pontos que relatam o aspecto protetor

    das entidades queles a quem esto relacionados.

    Ex: Seu Sete-Pedras, livra o caminho que passo/Seu Sete Pedras, livra o caminho que eu passo/Quando ando com Sete-Pedras/ Meus caminhosno tm embarao.

    g) Morada: pontos em que h referncia existncia

    de uma morada especfica das entidades. No

    foram consideradas referncias s ruas,

    encruzilhadas e cemitrios, locais caractersticos de

    permanncia de quase todos os Exus e Pombas-

    Giras, exceto quando os pontos utilizam o verbo

    morar ou seus derivados. Ex: Pomba-Gira, a, a/Pomba-Gira de Macei/ Aonde mora Pomba-Gira/ Ela mora no Macei.

    h) Advertncia: pontos que se propem advertir sobre

    os poderes das entidades, sem fazer referncia

    especfica a esses poderes. Ex: Ao ver Exu naencruza/ Com ele no se meta/ ali que eletrabalha/ O reino de Capa-Preta.

    Pontos de Exu

    Os pontos de Exu analisados (80,77% do total)

    apontam maior ocorrncia de menes a aspectos

    relacionados descrio do poder e s funesatribudas a essa entidade (31,6%). Nessa categoria

    so identificados como principais funes/poderes

    dos Exus: trabalhar, vencer demandas, vigiar, levarmensagens, despachar Eb, segurar a gira,defender, conduzir, fazer magia e levar o mal parao fundo do mar. Como segunda categoria commaior freqncia (22,4%), encontramos os pontos

    relativos a sua identificao e saudao. A terceira

    categoria mais freqente (15,3%) aquela que se

    refere ao que chamamos de relaes hierrquicas

    entre os Exus ou entre esses e outras divindades

    (Santo Antnio, Ogum, Dom Miguel). Aqui

    tambm foram includos os pontos onde so

    encontradas referncias a relaes de parentesco

    (outros Exus ou Lcifer) ou filiao a linhas de

    Quimbanda ou Umbanda, desde que estivessem

    explcitas, em ambos os casos, condies desiguais

    de fora (Quadro 1).

    Pontos de Pomba-Gira

    As duas categorias com maior freqncia de

    respostas (30,23% cada) so aquelas que dizem

    respeito s descries de poder/funes e caracterizao da entidade. Como funes/poderes

    atribudos encontramos: trabalhar, comandar a

    madrugada, vencer demandas, carregar mandingapara o fundo do mar, cortar o embarao, vigiar.

    Quanto imagem e indumentria: moa, linda,

    menina bela, muito formosa, farrapos de chita,

    linda saia com sete guizos, figa de ouro,

    "sandalinha de pau", saia rodada, manto de

    veludo rebordado todo em ouro. Os instrumentos

    relacionados Pomba-Gira nos pontos analisados

    so: tesoura, garfo de prata, ponteiro de ao. A

    terceira categoria com maior nmero de menes

    (9,30%) foi a de identificao (Quadro 1).

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    Quadro 1. Quadro comparativo de freqncia das categoriaspara os pontos de Exu e Pomba-Gira.

    CategoriasFreqncia

    Exus%

    Freqncia Pombas Giras

    %

    Descritivos de poder/funes atribudas

    62 31,6 13 30,23

    Identificao 44 22,4 04 9,30

    Relao hierrquica(1) 30 15,3 03 6,98

    Personalidade 17 8,7 03 6,98

    Caracterizao

    (indumentria/imagem)16 8,2 13 30,23

    Proteo 14 7,1 03 6,98

    Morada(2) 07 3,6 03 6,98

    Advertncia 06 3,1 01 2,32

    Total 196 100 43 1000

    (1) Pontos onde h meno a outras entidades associadas a Exu, exceto Pomba

    Gira, e vice-versa, com alguma relao indicativa de diferencial de poder e/ouhierarquia. Tambm foram considerados os pontos que explicitam a posio

    hierquica que a entidade ocupa.

    (2) No foram consideradas referncias s ruas, encruzilhadas e cemitrio, locais

    caractersticos de permanncia de quase todos os Exus, exceto quando os

    pontos utilizam o verbo morar ou seus derivados.

    Pontos de Relao

    Devido pequena quantidade desses pontos (07)

    no nos pareceu relevante submet-los a tratamento

    quantitativo. Uma primeira anlise qualitativa pode,

    entretanto, nos indicar algumas caractersticas da

    relao entre as entidades. A figura de Pomba-Gira

    pode ser identificada como companheira, mulher (noesposa) dos Exus, desempenhando, quando em sua

    presena, os papis esperados da figura feminina no

    contexto do modelo tradicional das relaes de

    gnero. Ex: Exu fez uma casa/ Com sete portas/ Comsete janelas/ Exu no precisa de casa/ Pomba-Giraquem vai morar nela.

    DISCUSSO

    Os dados relacionados s entidades Exu e Pomba-

    Gira, descritos acima, sugerem inicialmente aimportncia da anlise das representaes relativas ao

    feminino e ao masculino em nossa sociedade.

    Para entendermos a forma como se processam as

    relaes entre o masculino e feminino no Brasil,

    fundamental que consideremos a tradio patriarcal

    historicamente dominante nos sistemas social,

    econmico e cultural. Segundo Parker (1991), a

    diferenciao entre homens e mulheres poderia, sob

    determinado aspecto, ser considerada, na sociedade

    brasileira, como formada por plos atividade-

    passividade, dominncia-submisso, fora-fragilidade.

    Essa polarizao no se d, entretanto, de formaabsoluta, devendo ser consideradas posies

    intermedirias marcadas pela presena de papis como

    o da prostituta. Contudo, esses papis, valorizados

    negativamente, funcionam mais como um fator de

    referncia a ser considerado para ser evitado, do que

    como um lugar com importncia estrutural para o

    funcionamento do prprio sistema. Os valores sociais

    relacionados ao feminino referem-se tradicionalmente

    virgindade, submisso e procriao, enquanto os

    masculinos relacionam-se fora, autoridade e

    realizao sexual.

    Os dados coletados nos revelam a presena desses

    valores. Exu caracterizado principalmente pelas suas

    funes. Fundem-se na sua caracterizao o homem da

    noite e o trabalhador, papis historicamente associados

    ao masculino. O trabalho de Exu, entretanto, o que

    podemos designar como braal; aqui se apresenta a

    primeira caracterstica de classe. A sua identificao

    com a noite apresenta aspectos que tambm podem ser

    considerados indicadores de classe. Os lugares que

    freqenta comumente no so os destinados s

    camadas mais privilegiadas; seu local a rua, onde

    acontecem tradicionalmente as manifestaes do povo.

    Tambm o lugar atribudo s desordens, ao

    permissvel e ao potencialmente perigoso (DaMatta,

    1991).

    H vrios Exus para diversas funes/interesses.

    Sua atuao se refere s esferas da sade, financeira,

    afetiva (motivos pelos quais mais so procurados) e

    sexual. Os Exus e Pombas-Giras so definidos

    principalmente pelo seu carter sexual, relacionado

    sua amoralidade, e, podemos dizer, provavelmente,

    aos lugares que freqentam.

    Pomba-Gira desempenha, por sua vez, funes,

    segundo os dados, muito semelhantes s dos Exus.

    Tambm uma mulher da rua e do trabalho.

    Entretanto, o lugar da rua no aquele esperado

    socialmente para a mulher, segundo a tradio

    patriarcal, podendo promover a sua identificao com

    as caractersticas atribudas prostituta. Montero

    (1985) tambm identificou semelhanas entre ascaractersticas atribudas Pomba-Gira e o

    esteretipo da prostituta, em oposio aos esteretipos

    da jovem virgem associado s caboclas, da me a

    Iemanj e da me preta s pretas-velhas. Apesar das

    semelhanas porventura encontradas, no constatamos

    referncias explcitas Pomba-Gira como prostituta

    nos pontos analisados. Sua identificao com essa

    figura, como dito, est baseada sobretudo nos lugares

    que freqenta. Aqui, deve-se recordar que a categoria

    por ns definida como Morada no inclui os lugares

    onde as entidades transitam. Associao de Exus e

    Pombas-Giras com ruas e cemitrios so quase umaconstante nos pontos analisados, o que no quer dizer

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    que habitem nesses locais, e sim que mais

    provavelmente nele permaneam por afinidade ou

    pelas caractersticas dos trabalhos que realizam ali.

    Ex: Existe um Exu mulher/ Que no trabalha toa/

    Quando passa pela encruza/ Maria Quitria no

    vacila/ Ela no faz coisa boa.

    Sobre a relao entre as Pombas-Giras e a

    prostituio, nos diz Meyer:

    Como mulher, sua associao ao Mal, sua

    demonizao passa pela imemorial marca

    infamante da feminilidade: a luxria.

    Encarnada noutro antigo esteretipo: a

    prostituta. Uma 'mulher da vida', com 'sete

    maridos', bem marcada, me parece, pelo

    tempo em que se constitua a Umbanda no

    espao urbano: vrios dos seus pontoscantados que ouvi, remetem a um espao

    escuso da cidade, que j foi sinnimo de

    devassido e 'mulher perdida': a Pomba-Gira

    de cabar (1993, p. 104-105).

    Segundo Prandi (1996), a Pomba-Gira "trata dos

    casos de amor, protege as mulheres que a procuram,

    capaz de propiciar qualquer tipo de unio amorosa e

    sexual" (p. 148). A ela esto associados os trabalhos

    de feitiaria, principalmente amorosa, o que nos

    permite fazer um paralelo com o espao

    tradicionalmente relacionado mulher, ou seja, o

    quintal, lugar das ervas e dos segredos mgicos eteraputicos (Del Priore, 1993). Suas atividades

    situam-se nos espaos exteriores casa (a rua e o

    quintal), o que pode indicar a sua no-pertena ao

    ncleo familiar, uma vez que no se ajusta aos papis

    tradicionais de esposa, me ou filha.

    Os dados revelam a entidade como dotada de

    uma beleza "fsica" e uma vaidade, que bem

    correspondem expectativa em relao ao papel

    feminino, no qual a mulher deve se conservar sempre

    bonita, pois esse o seu maior bem, a fim de satisfazer

    o homem. Conforme nos mostram os pontos de

    relao, esse o papel da Pomba-Gira, em presena

    dos Exus. Se considerarmos tambm as marcas de raa

    e classe que esto a eles relacionadas na literatura, seu

    papel se torna duplamente estereotipado, uma vez que

    mulher e negra (Montero, 1985; Ortiz, 1991).

    Como pode ser visto, a identificao tradicional

    de Exu com o diabo cristo no est relacionada

    somente a sua aparncia original, africana.

    Componentes outros se somam a essa aparncia e

    remetem a uma caracterizao de aes tambm

    prxima. Talvez o principal desses componentes seja a

    sexualidade exacerbada. Historicamente, o diabo no

    ocidente utiliza o sexo dos humanos para tent-los

    (Nogueira, 2000). H referncias diversas na histria

    do Brasil sobre a proximidade entre o diabo e a

    luxria, as prticas mgicas, a busca da resoluo de

    problemas cotidianos, por fim, sua proximidade com o

    prprio homem (Souza, 1989). At mesmo o carter

    ambguo da sexualidade esteve a ele relacionado, na

    figura de ncubos e scubos (Mott, 1988). Nesse

    ponto, h um aspecto particularmente importante: o

    diabo formou, desde o nosso perodo colonial, uma

    trade bastante constante com a prostituio e a magia

    sexual. Segundo Souza,

    No Brasil colonial, dentre os que se

    ocuparam da magia, talvez a categoria mais

    estigmatizada com a prostituio tenha sido a

    das mulheres que vendiam filtros de amor,

    ensinavam oraes para prender homens,

    receitavam beberagens e lavatrios de ervas.Magia sexual e prostituio pareciam andar

    sempre juntas (1989, p. 241).

    Companheiro da prostituta, o malandro figura

    recorrente no imaginrio brasileiro. Sua avaliao,

    entretanto, tende a ser menos negativa do que a dela.

    Segundo DaMatta (1997), sua caracterizao est

    relacionada sua averso pelo trabalho e

    individualizao da sua figura e de seus costumes.

    Contudo, inegvel em nosso meio social a

    valorizao da sua desenvoltura para resolver

    problemas e quase sempre levar vantagem, inclusivenas situaes francamente adversas.

    Uma estrutura marcada pela hierarquia, como o

    caso da Umbanda, certamente deve refletir em si

    aspectos da ordem social que a comporta. A relao de

    dominao-subordinao encontrada no Candombl

    entre os orixs e Exu (Trindade, 1982) tambm pode

    ser percebida na Umbanda. Outro fator relevante na

    identificao do lugar ocupado por Pomba-Gira e Exu

    na prtica umbandista a considerao das

    delimitaes provenientes dos conceitos de linha e

    falange que "... constituem divises que agrupam as

    entidades de acordo com afinidades intelectuais emorais, origem tnica e, principalmente, segundo o

    estgio de evoluo espiritual em que se apresentam,

    no astral" (Magnani, 1986, p. 33). Essas divises

    implicam uma hierarquia que indica, mais do que uma

    simples diviso entre o bem e o mal, esse

    caracterizado como inferior quele, a necessidade de

    que "... o simbolismo dos ritos exprima a subordinao

    do princpio espiritual inferior ao princpio superior"

    (Ortiz, 1991, p. 141).

    Essa hierarquia est presente de forma

    significativa nos dados apresentados acima, nos quais

    o reconhecimento de diferentes poderes se constituiem um princpio organizador que impede o caos. Na

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    hierarquia identificada pode-se notar claramente asuperioridade dos Exus. A eles esto subordinadas asPombas-Giras, menos numerosas, fato que se refletiuinclusive na quantidade geral de pontos coletados.

    O carter moralmente ambguo das entidades,evidenciado pela costumeira associao entre os Exuse a figura do trickster (Augras, 1983; Queiroz, 1991),sugere ser este um aspecto relacionado ao lugar quelhe designado na hierarquia da umbanda. Ascategorias denominadas "personalidade", "proteo" e"advertncia" referem-se a essa ambigidade. Aquiencontramos Exu e Pomba-Gira como seres capazesde fazer tanto o bem quanto o mal, e por issomerecedores dos maiores cuidados e respeito. Amoralidade das aes da entidade vai ser, entretanto,determinada pelo pedido do "consulente", pois essequem vai fazer a sua oferenda, o seu pagamento. Emltima instncia a responsabilidade moral daqueleque faz o pedido. A labilidade dessas entidadespossibilita a solicitao de determinados favoressomente a elas, no a outras consideradas maisevoludas, pois poderia causar negativas ourepreenses. Alm desse fato, a percepo de Exucomo algum que j passou por condies adversas,em vida, pode caracteriz-lo como um interlocutorcapaz de melhor entender os motivos daquele quepede, sendo, em determinado sentido, um igual.

    Dois eixos de submisso podem ser entoconsiderados como centrais na anlise. O primeiro serelaciona posio da figura feminina, localizada margem pelo sexo e pela condio social. Seusatributos concedem-lhe a aparncia desejada pelomasculino ao mesmo tempo em que sua caracterizaocomo ser com sexualidade extremada a relega a umasituao em que sua insero na rede social no podese dar atravs do papel de me/esposa, sendoassociada prostituta na trama dos personagenscotidianos. Suas funes estaro relacionadas aospedidos de carter sexual e afetivo, localizando-a

    ento, conforme a moral crist, no campo do pecado,ou seja, das trevas.O segundo eixo diz respeito condio de Exu.

    Dado como amoral, s pode ser admitido para ele olocal das trevas, a noite. ali que pode expressar seucarter sinuoso, escondido do convvio dos quetrabalham normalmente. Aqui tambm podemosconsiderar a sua inaptido para o papel de pai/esposo,sendo considerado inadequado para as funesreprodutivas. Deve-se observar que no soencontradas referncias familiares para os Exus ePombas-Giras, o que comum para os Pretos e

    Pretas-Velhas, geralmente chamados de tio/tia,av/av ou pai/me.

    A relao que se estabelece com Exu muitasvezes a de compadrio (Verger, 1999), reforando apossibilidade de sua identificao, por parte de quem oconsulta, como um igual. medida que admitimos aentidade como um molde a ser preenchido pelomdium, podemos tambm admitir que os esteretipos aela historicamente relacionados encontram nelepossibilidade de se atualizarem e por isso sobreviverem.No nos estamos referindo a uma simples incorporaodo papel, mas sim a um mecanismo que permite aconstruo de um campo de significados que esto deacordo com a prpria percepo do mundo pelomdium e pelos fiis. Pombas-Giras e Exus sorepresentaes de personagens presentes na vidacotidiana, que apresentam tanto caractersticasindividuais distintivas quanto traos coletivos de classe,o que proporciona a manuteno do esteretipo. Vistascomo a prpria ambivalncia, as caracterizaes nopoderiam ser diferentes: as entidades que possuemcomo funo primeira o trabalho, so percebidas comomalandro e prostituta. Como perigosas, necessitam deoutras entidades mais elevadas para que sejamcontroladas e exeram de forma adequada suas funes.Segundo a descrio das moradas, so imigrantes queaportam num contexto que os considera inaptos para odesenvolvimento de funes que no estejamrelacionadas ao trabalho braal.

    Exu e Pomba-Gira podem ser, em ltimainstncia, alguns dos personagens pertencentes scamadas empobrecidas da sociedade, submetidas atoda sorte de preconceitos raciais, sociais, econmicose culturais, que acabam por ser assumidos epropagados pela prpria classe. Mscaras quepermanecem como modelo e reflexo das prpriascontradies do sistema social do nosso pas.

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  • 8/6/2019 Exus e Pombas-giras o Masculino e o Feminino Nos Pontos Cantados Da Umbanda

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    Recebido em 06/08/2001

    Revisado em 23/11/2001

    Aceito em 30/11/2001