Exus e Pombas-giras o Masculino e o Feminino Nos Pontos Cantados Da Umbanda
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8/6/2019 Exus e Pombas-giras o Masculino e o Feminino Nos Pontos Cantados Da Umbanda
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Psicologia em Estudo, Maring, v. 6, n. 2, p. 107-113,jul./dez. 2001
EXUS E POMBAS-GIRAS: O MASCULINO E O FEMININO NOS
PONTOS CANTADOS DA UMBANDA1
Adriano Roberto Afonso do Nascimento*
Ldio de Souza#
Zeidi Arajo Trindade
RESUMO. O presente trabalho tem como objetivo a caracterizao dos Exus e Pombas-Giras, atravs dos pontos cantados daUmbanda, considerando aspectos que remetem a uma configurao mais ampla de componentes do imaginrio socialbrasileiro. Foram submetidas Anlise de Contedo 221 letras de pontos de Exu e Pomba-Gira. Os pontos de Exu contmmaior freqncia de menes relacionadas descrio de poder e funes atribudas a essa entidade (31,6% das respostas) e sua identificao e saudao (22,4%). Os pontos de Pomba-Gira apresentam mais freqentemente a descrio de
poder/funes atribudas (30,23% das respostas) e a caracterizao da entidade (30,23%). Os resultados possibilitamrelacionar as caractersticas das entidades aos papis socialmente esperados de homens e mulheres. Exu representado pelaliberdade, fora e, principalmente, pelo trabalho. Pomba-Gira representada atravs de atributos considerados tpicos do sexofeminino, como beleza e sensualidade, e tambm pelo trabalho. Os dados remetem a uma anlise que procura a articulaoentre fatores raciais e de classe social presentes na sociedade brasileira e as caractersticas definidoras das entidades,identificadas nos pontos.Palavras-chaves: umbanda, esteretipo, gnero.
EXUS AND POMBAS-GIRAS:
THE MALE AND FEMALE IN UMBANDA CHANTS
ABSTRACT. The aim of the present paper is the characterization of the Exus (male entities, loosely associated with thedevil) and Pombas-Giras (female entities, the counterparts of the Exus) in the singing chants of the Umbanda religion,focusing on aspects, which relate to a broader configuration of components of the Brazilian social imagery. Two hundred andtwenty one lyrics of Exu and Pomba-Gira chants were subjected to Content Analysis. Exu chants have a higher frequency ofcitations related to the description of power and functions attributed to this entity (31.6% of the answers) and to identificationand greeting (22.4%). Pomba-Gira chants present most frequently the description of attributed power/functions (30.23% ofthe responses) and the entity characterization (30.23%). The results allow for associations of the entities characteristics andthe socially expected roles of men and women. Exu is associated with freedom, force, and, mostly, industry. Pomba-Gira isrepresented by attributes considered typically feminine, such as beauty and sensuality, and also by industry. The data demandan analysis that seeks the articulation of racial factors and social classes present in Brazilian society and the definingcharacteristics of the entities, identified in the chants.Key words: umbanda, stereotypes, gender.
1 Trabalho realizado durante a vigncia de bolsa de produtividade em pesquisa/CNPq.* Doutorando no Programa de Ps-graduao em Psicologia da Universidade Federal do Esprito Santo.
Endereo para correspondncia: Rua Humberto Serrano, 550, apto 201, Ed. Bourdon, Praia da Costa, CEP: 29101-460, VilaVelha-ES. E-mail: [email protected]
# Professor doutor do Programa de Ps-graduao em Psicologia da Universidade Federal do Esprito Santo. Professora doutora do Programa de Ps-graduao em Psicologia da Universidade Federal do Esprito Santo.
INTRODUO
Exu, identificado comumente com um sermatreiro e amoral para os padres ocidentais, sofreu
modificaes importantes desde a sua vinda da frica,com os escravos, at a sua apropriao pela Umbanda.Essa entidade ocupa uma funo mpar entre asdemais divindades cultuadas pelo Candombl,
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possivelmente o culto que ainda mantm a
representao de Exu mais prxima da originria.
Nessa representao ele quem tem o papel/poder de
servir como elo de comunicao entre os demais
orixs e desses com os homens. Sua funo o
prprio estabelecimento e manuteno da ordem do
mundo espiritual. Alm disso, desempenha tarefas
especficas determinadas pelos orixs, servindo como
uma espcie de mensageiro/instrumento (Bastide,
1978; Verger, 1999; Prandi, 2001).
Sua identificao histrica com o diabo cristo se
estabeleceu, portanto, no devido a suas caractersticas
funcionais, mas sim a aspectos relativos a sua
aparncia. A rejeio do culto aos orixs e as
perseguies empreendidas pelos senhores brancos
criaramnos escravos a necessidade de encontrarem
entidades crists que os representassem. Como Exu
uma divindade do fogo, qual eram atribudos chifres,
membro viril e sexualidade sem freios, assemelhando-
se representao do diabo cristo, a entidade
escolhida foi o demnio (Bastide, 1978).
Na Umbanda, a figura de Exu vai ser construda
num amlgama de suas funes no Candombl e sua
percepo como demnio cristo.
Em princpio existem quatro gneros de
espritos que compem o panteo
umbandista; podemos agrup-los em duas
categorias: a) espritos de luz: caboclos,pretos-velhos e crianas - eles formam o que
certos umbandistas chamam de 'tringulo da
Umbanda'; b) espritos das trevas - os exus
(Ortiz, 1991, p. 71).
A ordem de apresentao tambm se constitui
em ordem de valor. Pode-se, atravs dos atributos
de cada entidade, relacion-las, de forma geral, s
seguintes imagens: ndio idealizado
romanticamente, negro escravo e ainda submisso,
criana branca e homem da classe baixa, cuja falta
de valores de nobreza o tornam propcio s funesdo labor. Alm desses quatro grupos principais,
tambm podem ser encontrados baianos,
boiadeiros, marinheiros, ciganos e mdicos, entre
outros (Negro 1996).
Deve-se observar que a posio subalterna de
algumas entidades compensada por um fator
fundamental para a sua valorizao: so justamente
essas que do consultas e, por conseqncia, exercem
contato e influncia mais prximos aos fiis do que
aquelas que se encontram em mais alta posio na
hierarquia espiritual (Birman, 1985). No caso dos exus
essa proximidade deve ser entendida, sobretudo, comoafinidade, uma vez que eles so as entidades mais
prximas do homem comum, com suas aflies e
incertezas (Trindade, 1981; Negro, 1996).
Essa afinidade pode ser reafirmada pelas
caractersticas da possesso na Umbanda. Segundo
definio de Magnani (1986), a possesso a
... forma de contato com o sobrenatural
atravs da incorporao de entidades
espirituais nos iniciados que,
momentaneamente despojados de suas
caractersticas individuais, passam a agir sob
a influncia daquelas entidades; em alguns
contextos o mesmo que transe (p. 60).
Na Umbanda, onde o transe se encontra entre as
representaes individual e mtica (como no Candombl),
atualizando personagens que se encontram presentes nocotidiano e na memria popular (Magnani, 1986; Birman,
1991), as entidades se encontram mais prximas do
mundo dos homens, uma vez que j viveram e possuem,
assim, histria objetivada em locais, funes
desempenhadas e caractersticas pessoais. Aquelas
entidades que no possuem uma vida objetivamente
localizada constituem o que podemos chamar de
categorias vazias, papis sem personagens. Essas
personagens podem, assim, ser construdas pelo prprio
mdium, utilizando a sua prpria histria para gerar
categorias com sentido (Ortiz, 1991).
Esse fato faz com que seja possvel o estudo dedeterminadas relaes sociais que considere a anlise da
dinmica que se estabelece no interior da prtica
umbandista, atravs da prpria interao entre suas
entidades, por exemplo, nos pontos cantados. Segundo
Prandi (1996),
Nas religies afro-brasileiras, todo
cerimonial cantado ao som dos atabaques, e
quase todo tambm danando. As cantigas de
candombl e os pontos-cantados da umbanda
so instrumentos de identidade das entidades
(p. 144).
Considerando que as cantigas se constituem em
instrumentos que atualizam a identidade das entidades a
partir de elementos e personagens do cotidiano, o presente
trabalho tem como objetivo a caracterizao dos Exus e
Pombas-Giras, atravs dos pontos cantados da Umbanda,
destacando os aspectos que possibilitam uma articulao
com componentes do imaginrio social brasileiro.
MTODO
Foram analisadas 221 letras de pontos de Exu ePomba-Gira recolhidos em livros e discos que se
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propem a colet-los e divulg-los, encontrados em
lojas de produtos religiosos. As letras foram
submetidas Anlise de Contedo (Bardin, 1994 e
Vala, 1986) e agrupadas em categorias. Trs
subdivises foram previamente consideradas, quais
sejam: a) pontos de Exu, b) pontos de Pomba-Gira e
C) pontos de relao, onde so citadas as duas
entidades.
RESULTADOS
As categorias
a) Descritivos de poder/funes atribudas: pontos
que fazem referncia s funes das entidades,
bem como aos poderes que possuem. Ex: Meianoite a mar vazou/ Lua veio anunciar/ Eu j vouvencer demanda/ Sarav, Calunguinha do mar.
b) Caracterizao (indumentria, imagem): pontos
que relatam a aparncia fsica das entidades e/oumencionam vesturio e acessrios/instrumentos
que as caracterizam. Ex: Olha que menina linda/Olha que menina bela/ Pomba-Gira Menina/ Mechamando da janela.
c) Identificao/saudao: pontos que contm apenas
o nome da entidade e/ou uma saudao a ela. Ex:
Pinga Fogo l na encruza/ Pinga-Fogo l na
serra/ Abre a porta, minha gente/ Pinga-Fogo tna terra.
d) Relao hierrquica: pontos onde h meno a
outras entidades associadas a Exu, exceto Pomba-
Gira, e vice-versa, com alguma relao diferencial
de poder e/ou hierarquia. Tambm foram
considerados os pontos que explicitam a posio
hierrquica que a entidade ocupa. Ex: Exu foibatizado/ E recebeu a sua cruz/ Na falange deDom Miguel/ Kamilo nos defende, nos conduz.
e) Personalidade: nessa categoria foram includos
pontos em que h referncia a traos depersonalidade/carter das entidades. Ex:A encruzaestremeceu/ Uma gargalhada soou alm/ SalveExu, que batizado/ Exu do fogo no atacaningum/ O Exu bom, no ataca ningum.
f) Proteo: pontos que relatam o aspecto protetor
das entidades queles a quem esto relacionados.
Ex: Seu Sete-Pedras, livra o caminho que passo/Seu Sete Pedras, livra o caminho que eu passo/Quando ando com Sete-Pedras/ Meus caminhosno tm embarao.
g) Morada: pontos em que h referncia existncia
de uma morada especfica das entidades. No
foram consideradas referncias s ruas,
encruzilhadas e cemitrios, locais caractersticos de
permanncia de quase todos os Exus e Pombas-
Giras, exceto quando os pontos utilizam o verbo
morar ou seus derivados. Ex: Pomba-Gira, a, a/Pomba-Gira de Macei/ Aonde mora Pomba-Gira/ Ela mora no Macei.
h) Advertncia: pontos que se propem advertir sobre
os poderes das entidades, sem fazer referncia
especfica a esses poderes. Ex: Ao ver Exu naencruza/ Com ele no se meta/ ali que eletrabalha/ O reino de Capa-Preta.
Pontos de Exu
Os pontos de Exu analisados (80,77% do total)
apontam maior ocorrncia de menes a aspectos
relacionados descrio do poder e s funesatribudas a essa entidade (31,6%). Nessa categoria
so identificados como principais funes/poderes
dos Exus: trabalhar, vencer demandas, vigiar, levarmensagens, despachar Eb, segurar a gira,defender, conduzir, fazer magia e levar o mal parao fundo do mar. Como segunda categoria commaior freqncia (22,4%), encontramos os pontos
relativos a sua identificao e saudao. A terceira
categoria mais freqente (15,3%) aquela que se
refere ao que chamamos de relaes hierrquicas
entre os Exus ou entre esses e outras divindades
(Santo Antnio, Ogum, Dom Miguel). Aqui
tambm foram includos os pontos onde so
encontradas referncias a relaes de parentesco
(outros Exus ou Lcifer) ou filiao a linhas de
Quimbanda ou Umbanda, desde que estivessem
explcitas, em ambos os casos, condies desiguais
de fora (Quadro 1).
Pontos de Pomba-Gira
As duas categorias com maior freqncia de
respostas (30,23% cada) so aquelas que dizem
respeito s descries de poder/funes e caracterizao da entidade. Como funes/poderes
atribudos encontramos: trabalhar, comandar a
madrugada, vencer demandas, carregar mandingapara o fundo do mar, cortar o embarao, vigiar.
Quanto imagem e indumentria: moa, linda,
menina bela, muito formosa, farrapos de chita,
linda saia com sete guizos, figa de ouro,
"sandalinha de pau", saia rodada, manto de
veludo rebordado todo em ouro. Os instrumentos
relacionados Pomba-Gira nos pontos analisados
so: tesoura, garfo de prata, ponteiro de ao. A
terceira categoria com maior nmero de menes
(9,30%) foi a de identificao (Quadro 1).
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Quadro 1. Quadro comparativo de freqncia das categoriaspara os pontos de Exu e Pomba-Gira.
CategoriasFreqncia
Exus%
Freqncia Pombas Giras
%
Descritivos de poder/funes atribudas
62 31,6 13 30,23
Identificao 44 22,4 04 9,30
Relao hierrquica(1) 30 15,3 03 6,98
Personalidade 17 8,7 03 6,98
Caracterizao
(indumentria/imagem)16 8,2 13 30,23
Proteo 14 7,1 03 6,98
Morada(2) 07 3,6 03 6,98
Advertncia 06 3,1 01 2,32
Total 196 100 43 1000
(1) Pontos onde h meno a outras entidades associadas a Exu, exceto Pomba
Gira, e vice-versa, com alguma relao indicativa de diferencial de poder e/ouhierarquia. Tambm foram considerados os pontos que explicitam a posio
hierquica que a entidade ocupa.
(2) No foram consideradas referncias s ruas, encruzilhadas e cemitrio, locais
caractersticos de permanncia de quase todos os Exus, exceto quando os
pontos utilizam o verbo morar ou seus derivados.
Pontos de Relao
Devido pequena quantidade desses pontos (07)
no nos pareceu relevante submet-los a tratamento
quantitativo. Uma primeira anlise qualitativa pode,
entretanto, nos indicar algumas caractersticas da
relao entre as entidades. A figura de Pomba-Gira
pode ser identificada como companheira, mulher (noesposa) dos Exus, desempenhando, quando em sua
presena, os papis esperados da figura feminina no
contexto do modelo tradicional das relaes de
gnero. Ex: Exu fez uma casa/ Com sete portas/ Comsete janelas/ Exu no precisa de casa/ Pomba-Giraquem vai morar nela.
DISCUSSO
Os dados relacionados s entidades Exu e Pomba-
Gira, descritos acima, sugerem inicialmente aimportncia da anlise das representaes relativas ao
feminino e ao masculino em nossa sociedade.
Para entendermos a forma como se processam as
relaes entre o masculino e feminino no Brasil,
fundamental que consideremos a tradio patriarcal
historicamente dominante nos sistemas social,
econmico e cultural. Segundo Parker (1991), a
diferenciao entre homens e mulheres poderia, sob
determinado aspecto, ser considerada, na sociedade
brasileira, como formada por plos atividade-
passividade, dominncia-submisso, fora-fragilidade.
Essa polarizao no se d, entretanto, de formaabsoluta, devendo ser consideradas posies
intermedirias marcadas pela presena de papis como
o da prostituta. Contudo, esses papis, valorizados
negativamente, funcionam mais como um fator de
referncia a ser considerado para ser evitado, do que
como um lugar com importncia estrutural para o
funcionamento do prprio sistema. Os valores sociais
relacionados ao feminino referem-se tradicionalmente
virgindade, submisso e procriao, enquanto os
masculinos relacionam-se fora, autoridade e
realizao sexual.
Os dados coletados nos revelam a presena desses
valores. Exu caracterizado principalmente pelas suas
funes. Fundem-se na sua caracterizao o homem da
noite e o trabalhador, papis historicamente associados
ao masculino. O trabalho de Exu, entretanto, o que
podemos designar como braal; aqui se apresenta a
primeira caracterstica de classe. A sua identificao
com a noite apresenta aspectos que tambm podem ser
considerados indicadores de classe. Os lugares que
freqenta comumente no so os destinados s
camadas mais privilegiadas; seu local a rua, onde
acontecem tradicionalmente as manifestaes do povo.
Tambm o lugar atribudo s desordens, ao
permissvel e ao potencialmente perigoso (DaMatta,
1991).
H vrios Exus para diversas funes/interesses.
Sua atuao se refere s esferas da sade, financeira,
afetiva (motivos pelos quais mais so procurados) e
sexual. Os Exus e Pombas-Giras so definidos
principalmente pelo seu carter sexual, relacionado
sua amoralidade, e, podemos dizer, provavelmente,
aos lugares que freqentam.
Pomba-Gira desempenha, por sua vez, funes,
segundo os dados, muito semelhantes s dos Exus.
Tambm uma mulher da rua e do trabalho.
Entretanto, o lugar da rua no aquele esperado
socialmente para a mulher, segundo a tradio
patriarcal, podendo promover a sua identificao com
as caractersticas atribudas prostituta. Montero
(1985) tambm identificou semelhanas entre ascaractersticas atribudas Pomba-Gira e o
esteretipo da prostituta, em oposio aos esteretipos
da jovem virgem associado s caboclas, da me a
Iemanj e da me preta s pretas-velhas. Apesar das
semelhanas porventura encontradas, no constatamos
referncias explcitas Pomba-Gira como prostituta
nos pontos analisados. Sua identificao com essa
figura, como dito, est baseada sobretudo nos lugares
que freqenta. Aqui, deve-se recordar que a categoria
por ns definida como Morada no inclui os lugares
onde as entidades transitam. Associao de Exus e
Pombas-Giras com ruas e cemitrios so quase umaconstante nos pontos analisados, o que no quer dizer
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que habitem nesses locais, e sim que mais
provavelmente nele permaneam por afinidade ou
pelas caractersticas dos trabalhos que realizam ali.
Ex: Existe um Exu mulher/ Que no trabalha toa/
Quando passa pela encruza/ Maria Quitria no
vacila/ Ela no faz coisa boa.
Sobre a relao entre as Pombas-Giras e a
prostituio, nos diz Meyer:
Como mulher, sua associao ao Mal, sua
demonizao passa pela imemorial marca
infamante da feminilidade: a luxria.
Encarnada noutro antigo esteretipo: a
prostituta. Uma 'mulher da vida', com 'sete
maridos', bem marcada, me parece, pelo
tempo em que se constitua a Umbanda no
espao urbano: vrios dos seus pontoscantados que ouvi, remetem a um espao
escuso da cidade, que j foi sinnimo de
devassido e 'mulher perdida': a Pomba-Gira
de cabar (1993, p. 104-105).
Segundo Prandi (1996), a Pomba-Gira "trata dos
casos de amor, protege as mulheres que a procuram,
capaz de propiciar qualquer tipo de unio amorosa e
sexual" (p. 148). A ela esto associados os trabalhos
de feitiaria, principalmente amorosa, o que nos
permite fazer um paralelo com o espao
tradicionalmente relacionado mulher, ou seja, o
quintal, lugar das ervas e dos segredos mgicos eteraputicos (Del Priore, 1993). Suas atividades
situam-se nos espaos exteriores casa (a rua e o
quintal), o que pode indicar a sua no-pertena ao
ncleo familiar, uma vez que no se ajusta aos papis
tradicionais de esposa, me ou filha.
Os dados revelam a entidade como dotada de
uma beleza "fsica" e uma vaidade, que bem
correspondem expectativa em relao ao papel
feminino, no qual a mulher deve se conservar sempre
bonita, pois esse o seu maior bem, a fim de satisfazer
o homem. Conforme nos mostram os pontos de
relao, esse o papel da Pomba-Gira, em presena
dos Exus. Se considerarmos tambm as marcas de raa
e classe que esto a eles relacionadas na literatura, seu
papel se torna duplamente estereotipado, uma vez que
mulher e negra (Montero, 1985; Ortiz, 1991).
Como pode ser visto, a identificao tradicional
de Exu com o diabo cristo no est relacionada
somente a sua aparncia original, africana.
Componentes outros se somam a essa aparncia e
remetem a uma caracterizao de aes tambm
prxima. Talvez o principal desses componentes seja a
sexualidade exacerbada. Historicamente, o diabo no
ocidente utiliza o sexo dos humanos para tent-los
(Nogueira, 2000). H referncias diversas na histria
do Brasil sobre a proximidade entre o diabo e a
luxria, as prticas mgicas, a busca da resoluo de
problemas cotidianos, por fim, sua proximidade com o
prprio homem (Souza, 1989). At mesmo o carter
ambguo da sexualidade esteve a ele relacionado, na
figura de ncubos e scubos (Mott, 1988). Nesse
ponto, h um aspecto particularmente importante: o
diabo formou, desde o nosso perodo colonial, uma
trade bastante constante com a prostituio e a magia
sexual. Segundo Souza,
No Brasil colonial, dentre os que se
ocuparam da magia, talvez a categoria mais
estigmatizada com a prostituio tenha sido a
das mulheres que vendiam filtros de amor,
ensinavam oraes para prender homens,
receitavam beberagens e lavatrios de ervas.Magia sexual e prostituio pareciam andar
sempre juntas (1989, p. 241).
Companheiro da prostituta, o malandro figura
recorrente no imaginrio brasileiro. Sua avaliao,
entretanto, tende a ser menos negativa do que a dela.
Segundo DaMatta (1997), sua caracterizao est
relacionada sua averso pelo trabalho e
individualizao da sua figura e de seus costumes.
Contudo, inegvel em nosso meio social a
valorizao da sua desenvoltura para resolver
problemas e quase sempre levar vantagem, inclusivenas situaes francamente adversas.
Uma estrutura marcada pela hierarquia, como o
caso da Umbanda, certamente deve refletir em si
aspectos da ordem social que a comporta. A relao de
dominao-subordinao encontrada no Candombl
entre os orixs e Exu (Trindade, 1982) tambm pode
ser percebida na Umbanda. Outro fator relevante na
identificao do lugar ocupado por Pomba-Gira e Exu
na prtica umbandista a considerao das
delimitaes provenientes dos conceitos de linha e
falange que "... constituem divises que agrupam as
entidades de acordo com afinidades intelectuais emorais, origem tnica e, principalmente, segundo o
estgio de evoluo espiritual em que se apresentam,
no astral" (Magnani, 1986, p. 33). Essas divises
implicam uma hierarquia que indica, mais do que uma
simples diviso entre o bem e o mal, esse
caracterizado como inferior quele, a necessidade de
que "... o simbolismo dos ritos exprima a subordinao
do princpio espiritual inferior ao princpio superior"
(Ortiz, 1991, p. 141).
Essa hierarquia est presente de forma
significativa nos dados apresentados acima, nos quais
o reconhecimento de diferentes poderes se constituiem um princpio organizador que impede o caos. Na
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hierarquia identificada pode-se notar claramente asuperioridade dos Exus. A eles esto subordinadas asPombas-Giras, menos numerosas, fato que se refletiuinclusive na quantidade geral de pontos coletados.
O carter moralmente ambguo das entidades,evidenciado pela costumeira associao entre os Exuse a figura do trickster (Augras, 1983; Queiroz, 1991),sugere ser este um aspecto relacionado ao lugar quelhe designado na hierarquia da umbanda. Ascategorias denominadas "personalidade", "proteo" e"advertncia" referem-se a essa ambigidade. Aquiencontramos Exu e Pomba-Gira como seres capazesde fazer tanto o bem quanto o mal, e por issomerecedores dos maiores cuidados e respeito. Amoralidade das aes da entidade vai ser, entretanto,determinada pelo pedido do "consulente", pois essequem vai fazer a sua oferenda, o seu pagamento. Emltima instncia a responsabilidade moral daqueleque faz o pedido. A labilidade dessas entidadespossibilita a solicitao de determinados favoressomente a elas, no a outras consideradas maisevoludas, pois poderia causar negativas ourepreenses. Alm desse fato, a percepo de Exucomo algum que j passou por condies adversas,em vida, pode caracteriz-lo como um interlocutorcapaz de melhor entender os motivos daquele quepede, sendo, em determinado sentido, um igual.
Dois eixos de submisso podem ser entoconsiderados como centrais na anlise. O primeiro serelaciona posio da figura feminina, localizada margem pelo sexo e pela condio social. Seusatributos concedem-lhe a aparncia desejada pelomasculino ao mesmo tempo em que sua caracterizaocomo ser com sexualidade extremada a relega a umasituao em que sua insero na rede social no podese dar atravs do papel de me/esposa, sendoassociada prostituta na trama dos personagenscotidianos. Suas funes estaro relacionadas aospedidos de carter sexual e afetivo, localizando-a
ento, conforme a moral crist, no campo do pecado,ou seja, das trevas.O segundo eixo diz respeito condio de Exu.
Dado como amoral, s pode ser admitido para ele olocal das trevas, a noite. ali que pode expressar seucarter sinuoso, escondido do convvio dos quetrabalham normalmente. Aqui tambm podemosconsiderar a sua inaptido para o papel de pai/esposo,sendo considerado inadequado para as funesreprodutivas. Deve-se observar que no soencontradas referncias familiares para os Exus ePombas-Giras, o que comum para os Pretos e
Pretas-Velhas, geralmente chamados de tio/tia,av/av ou pai/me.
A relao que se estabelece com Exu muitasvezes a de compadrio (Verger, 1999), reforando apossibilidade de sua identificao, por parte de quem oconsulta, como um igual. medida que admitimos aentidade como um molde a ser preenchido pelomdium, podemos tambm admitir que os esteretipos aela historicamente relacionados encontram nelepossibilidade de se atualizarem e por isso sobreviverem.No nos estamos referindo a uma simples incorporaodo papel, mas sim a um mecanismo que permite aconstruo de um campo de significados que esto deacordo com a prpria percepo do mundo pelomdium e pelos fiis. Pombas-Giras e Exus sorepresentaes de personagens presentes na vidacotidiana, que apresentam tanto caractersticasindividuais distintivas quanto traos coletivos de classe,o que proporciona a manuteno do esteretipo. Vistascomo a prpria ambivalncia, as caracterizaes nopoderiam ser diferentes: as entidades que possuemcomo funo primeira o trabalho, so percebidas comomalandro e prostituta. Como perigosas, necessitam deoutras entidades mais elevadas para que sejamcontroladas e exeram de forma adequada suas funes.Segundo a descrio das moradas, so imigrantes queaportam num contexto que os considera inaptos para odesenvolvimento de funes que no estejamrelacionadas ao trabalho braal.
Exu e Pomba-Gira podem ser, em ltimainstncia, alguns dos personagens pertencentes scamadas empobrecidas da sociedade, submetidas atoda sorte de preconceitos raciais, sociais, econmicose culturais, que acabam por ser assumidos epropagados pela prpria classe. Mscaras quepermanecem como modelo e reflexo das prpriascontradies do sistema social do nosso pas.
BIBLIOGRAFIA
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Recebido em 06/08/2001
Revisado em 23/11/2001
Aceito em 30/11/2001