F ERNANDO F IUZA açã ação t b li a d a...

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2 7 A N O S Belo Horizonte - Itabira Agosto 2007 - nº 319 Ano 28 - R$ 2,00 Biologia da libertação Biologia da libertação Nove cientistas do Chile, Espanha, EUA e Brasil explicam como se libertar das tentações da certeza O deputado André Quintão fala sobre a Lei da Impunidade. Gustavo Penna mexe com o risco. Mario Pontes encontra Cartola. Moacyr Scliar troca emoções com o leitor. Tudo culpa do Lula. FERNANDO FIUZA Às vezes fico achando que sou uma invenção de vocês. Que eu não existiria se o Cometa não badalasse a minha existência, dando-me verossimilhança, forma, credibilidade. Carlos Drummond de Andrade

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2 7 A N O SBelo Horizonte - Itabira

Agosto 2007 - nº 319

Ano 28 - R$ 2,00

Biologiadalibertação

Biologiadalibertação

Nove cientistas do Chile, Espanha, EUA e Brasil explicam como se libertar das tentações da certeza

O deputado André Quintão fala sobrea Lei da Impunidade.Gustavo Penna mexe com o risco.

Mario Pontes encontra Cartola.Moacyr Scliar troca emoções com o leitor.Tudo culpa do Lula.

FERNANDO FIUZA

Às vezes fico achando que sou uma invenção de vocês. Que eu não existiria se o Cometa não badalasse a minha existência, dando-me verossimilhança, forma, credibilidade.Carlos Drummond de Andrade

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Sete textos enenhum destino

LIBERATION-MCESCHER

No artigo “Bento XVI e a utopia Brasil” (JB,maio de 2007), diz Leonardo Boff: “Normalmentepredomina no Vaticano o ponto de vista institu-cional. Neste ganha centralidade o poder sagra-do, a disciplina e a ordem, necessárias a umorganismo mundial como é a Igreja Católicaromana”. Sem ignorar a necessidade, o teólogoalerta que, no entanto, a simples sujeição à dou-trina pode deixar de fora “a vida concreta dosfiéis”. Essa é uma abordagem inspiradora paraoutros campos do afazer humano. Por exemplo,costumamos ver a ciência como uma chave paradesvendar o mundo, e sua guarda está restrita àautoridade científica.Mas será que essa visão per-manece se olharmos de perto o modo como nós -organismos imersos em uma cultura - efetiva-mente funcionamos? A biologia é um belo espaçopara esse debate. Primeiro, por ser um organismo,aquilo que um biólogo diz sobre o vivo traz con-seqüências para o que diz de si mesmo. Alémdisso, as ciências da vida sempre serviram paralegitimar as mais diversas doutrinas político-ide-ológicas (a “biologia como destino”). Finalmente,nossa cultura pop é ávida por consumir expli-cações deterministas, um filão da biologia que agrande mídia nunca cansou de explorar e perpe-tuar. Eis aí três fatores explosivos quando mistu-rados, exigindo, no mínimo, a nossa reflexão.

Em respeito ao código de ética do CometaItabirano, não tem lugar aqui para a imparciali-dade. Há algumas décadas, na contramão dorançoso discurso objetivista e alienante (que diz“não tenho nada com isso, pergunte ànatureza!”), surgem no cenário acadêmico doismovimentos importantes, oriundos da cibernéti-ca (o estudo dos sistemas de “controle efeedback” em máquinas, organismos e sociedades)e das abordagens sistêmicas em vários campos doconhecimento: a escola chilena da Biologia doConhecer, de Humberto Maturana e Francisco

Varela, e a Teoria dos Sistemas emDesenvolvimento, que tem sua maior expoentena norte-americana Susan Oyama. Comum aambos, levar em conta as efetivas operações dovivo e suas relações com o ambiente e outrosorganismos, além de pouquíssima paciência coma postulação de “fantasmas na máquina” (outroponto em comum é que, para nossa máximasorte, Oyama e Maturana toparam colaborarnesta edição!). Há outros heróis nessa história,mas isso deixamos para o leitor descobrir naspáginas seguintes.

Em sete artigos, nove cientistas - psicólogos,antropólogos, lingüistas e biólogos -, de quatropaíses, discutem o biológico e o biologizar,mostrando que há mais coisas voando no céu erastejando na terra do que sonham os programasgenéticos e os fatores ambientais. O percurso ini-cia com Nelson Vaz e seu texto didático e (éóbvio) terapêutico. Na seqüência, TomásSánchez-Criado desmistifica a máquina-corpo eGuilherme Sá tira o guarda-pó dos cientistas docoletivo. Rubén Gómez-Soriano faz 2001 termi-nar antes de 1968 e Beto Vianna trepa de voltana árvore pra falar de evolução. Como nas profe-cias bíblicas, o caminho termina com sumos pon-tífices: Susan Oyama joga sua definitiva pá de calna distinção entre o biológico e o cultural eHumberto Maturana, escudado pelos co-chilenos Ximena Dávila e Humberto Gutierrez,coloca a cultura e a biologia no seu devido lugar:o nosso.

Se Leonardo Boff permite a ousadia,chamemos esta iniciativa conjunta “Biologia daLibertação”: uma perspectiva liberadora deentulhos reducionistas, mas que não nos livra (anós leitores, cientistas, editores...), nem umpouquinho, da responsabilidade pelo que dize-mos sobre o mundo. Divirtam-se, e, principal-mente, liberem-se. (BV)

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O óbvioNELSON VAZ*

Em uma importante reunião da SBPC, em 1977,Darcy Ribeiro fez uma palestra que se tornou famosa,intitulada: “Sobre o óbvio”, que começava assim:

“Nosso tema é o óbvio. Acho mesmo que os cientistastrabalham é com o óbvio. O negócio deles – nossonegócio – é lidar com o óbvio. Aparentemente, Deusé muito treteiro, faz as coisas de forma tão recôndita edisfarçada que se precisa desta categoria de gente – oscientistas – para ir tirando os véus, desvendando, afim de revelar a obviedade do óbvio. O ruim desteprocedimento é que parece um jogo sem fim. De fato,só conseguimos desmascarar uma obviedade paradescobrir outras, mais óbvias ainda.”(1)

Parece óbvio que o Sol se desloca pelo céu em tornoda Terra, mas à custa de muito sofrimento humano,aprendemos que não é isso o que se passa, mas sim ooposto: a Terra gira em volta do Sol.

Usamos nossas certezas mais arraigadas todo otempo sem questioná-las e elas configuram as realidadesque vivemos. Um outro cientista famoso, o neurobiólo-go/filósofo chileno Humberto Maturana, discute a difi-culdade em questionar essas convicções, fala da “ten-tação da certeza” (la tentación de la certidumbre).Duvidar de uma dessas certezas nos torna inseguros,

parece ameaçar nossa integridade. As alucinaçõesdesagradáveis (bad trips) de muitos usuários não fami-liares com drogas psicodélicas potentes, como o LSD,surgem exatamente da quebra imprevista dessas certezasperceptivas.

Ilusões são maneiras eficazes e divertidas de ques-tionar nossas certezas, nas quais podemos incorrer semo auxílio de drogas. As ilusões visuais, ou “ilusões deótica”, formam a imensa maioria das ilusões popula-rizadas, mas há ilusões auditivas, táteis, olfativas, enfim,nossos sentidos às vezes burlam nossas certezas. Muitapesquisa é dirigida para as ilusões em busca de entendermelhor o mecanismo normal das percepções e essa nãoé uma tarefa fácil. Quimicamente analisado, o aroma deabacaxi, por exemplo, mostra ser formado por diversassubstâncias voláteis que, unidas, criam em nós o odorde abacaxi maduro. No entanto, a indústria de alimen-tos utiliza compostos artificiais que, isoladamente, sãocapazes de evocar na maioria das pessoas o odor de aba-caxi, uma ilusão olfativa comercialmente explorada.

As ilusões visuais são as mais numerosas e as maischocantes. Há na internet diversas variedades da“ilusão da face ôca” e uma das mais singelas é a dodragãozinho que parece mover o pescoço para nosseguir. Muitos video-clips mostram um pequeninodragão colorido feito de cartolina dobrada, que parecemover o pescoço para seguir a câmera(2). A melhorexperiência, no entanto, é fazer o seu próprio modelo.Baixar da internet um molde bidimensional do

dragão(3), dobrá-lo de acordo com as instruções, fecharum dos olhos e ver como é incrível: ele move opescoço e segue nosso movimento. Uma outra ilusãoda mesma classe (“face ôca”) mostra uma máscara deCharlie Chaplin a girar. O incrível nesta ilusão é quenão conseguimos realmente ver o lado côncavo damáscara: ele surge como um segundo lado convexo agirar no sentido oposto(4).

A maioria das pessoas acha tudo isso divertido, masnão se preocupa seriamente em entender o que se passa,ou seja, por que esse pequeno dragão de papel parece semover? Ou, perguntando de outra forma, por que nossamaneira de ver nos ilude e faz com que vejamos isso? Aresposta é uma lição de humildade: depois de vermosmilhões de faces convexas, não conseguimos aceitar avisão de uma face côncava. Incorremos nesse primeiroequívoco de ver algo côncavo como convexo e tudo omais resulta dessa nossa primeira opção. Aceitar queprojetamos no mundo nossas certezas perceptivas podeser um primeiro passo contrário à “tentação da certeza”.

* Nelson Vaz é doutor em bioquímica e imunologia pela UFMG,com pós-doutorado pelo Instituto Pasteur, na França. É membrotitular da Academia Brasileira de Ciências, sócio-fundador daSociedade Brasileira de Imunologia e consultor das revistasJournal of Infectious Diseases e Scandinavian Journal of Immunology.Escreveu, entre outros artigos, “Nas mãos de imunologistas”(2006, aniversário de Antonio Coutinho, Setúbal, Portugal), emque discute o papel dos cientistas na configuração de um “sistemaimune cognitivo” e a alternativa da Biologia do Conhecer para otratamento do vivo, em geral, e do sistema imune, em particular.

(1) O texto do Darcy está disponível na página http://www.cefetsp.br/edu/eso/filosofia/sobreobviocsc.html (2) O dragão no You Tube: http://www.youtube.com/watch?v=xNgCtLr361E(3) Modelo do dragão para recortar: http://www.grand-illusions.com/opticalillusions/dragon_illusion/ (4) A máscara de Chaplin no You Tube: http://www.youtube.com/watch?v=oJIQTf5UpRU

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A importânciada reflexãopluralista sobreo corpoTOMÁS SÁNCHEZ-CRIADO*

Nas ciências sociais e humanas, o corpo (sempre nosingular) tem sido invariavelmente tratado como umacarcaça, ou, em casos extremos, como objeto (com umalógica de existência associada às metáforas modernistasdo motor ou do relógio) que tem sua única fonte decalidez (de “calor humano”) em nossas maneiras devivê-lo e interpretá-lo. Em alguns casos, o corpo-máquina seria apenas um locus de nossas tendênciashumanas de gerar formas de significação (linguagens,instruções, identidades), em um mundo imaginado comopura combinatória de entidades claramente definidas ediferenciadas.

Talvez devamos explorar outras formas de pensar aarticulação dos corpos com os cenários em que se desen-volvem e sugerir outras maneiras de tratar as relaçõesentre corpo, mundo(s) e sistemas de signos, em que essestrês universos - verdadeiros coletores ou sumidouros denossas explicações -, despertem todo um conjunto derelações múltiplas que possa, finalmente, superá-los.Quero defender a tese de que há corpos além do organ-ismo, formas de significação além dos signos, e mundosalém de uma noção singular da natureza. “Corpo”,então, é uma noção que deveria ser usada sempre noplural: corpos.

Na investigação empírica, as noções de corpo-car-caça e corpo-objeto colocam-nos em grandes apurospara descrever e gerar as delicadas e heterogêneas tra-mas em que vivemos. As controvérsias acerca de uma“metafísica dos corpos” no ocidente moderno baseiam-senaquilo que o antropólogo Clifford Geertz denominou o“animal hierarquicamente estratificado” - ou modelobiopsicossocial -, e que o sociólogo da ciência John Lawchamou de “metafísica euro-americana”: o pacto derelações na constituição histórica de nossas ciências.Esse estaria assentado sobre cinco princípios: 1) exterior-idade (a realidade está fora de nós); 2) independência (arealidade não depende de nossos atos); 3) anterioridade(a realidade nos precede); 4) definição (a realidade temformas definidas e concretas); e 5) singularidade (omundo é uma totalidade: é o “Uno”).

Os cinco princípios foram questionados a partir dediversas áreas, como a própria sociologia da ciência, maso que proponho aqui não é, principalmente, o questiona-mento, mas explorar outras configurações das categoriasque nos guiam em função de suas implicações gerativasde nós mesmos. Se substituirmos as palavras “mundo” e“realidade”, na tipologia acima, por “corpo”, temos aseguinte imagem (ligada ao que o filósofo Hilary Putnamchama “metafísicas da interface”): o corpo é prévio,indivisível como totalidade, independente dos atos que oconstituem e pré-formado geneticamente (portanto,

anterior a nós). Podemos explorar outras formas de veras configurações corpóreas a partir da sua compositivi-dade, de modo a nos tornar sensíveis à variabilidade epluralidade dessas relações e superar o trio corpo-mundo-signos a partir do estudo das práticas em queessas entidades emergem, mas não se esgotam. É o casode aproveitar o pluralismo queWilliam James construiuno início do século 20, como meio de observar a com-posição heterogênea de nossas ações e a pluralidade delógicas em que estamos inseridos, pensando os corpos -como funcionam, com que entidades se relacionam e seco-constroem - de uma maneira mais proveitosa.

Sugiro chamar essa prática de heteropoiesis: não é nasolidão dos nossos corpos que efetuamos e compomos,mas junto às múltiplas entidades com que nos rela-cionamos. Qualquer exemplo em que pensemos, de umacriança brincando no parque a um pai no sofá vendotelevisão (para ficarmos em duas imagens recorrentes doturbocapitalismo ocidental) pode ser relido como orga-nismos imbricados em práticas nas quais se vinculam(em paixão, ou em ação) com outros seres orgânicos enão-orgânicos (bebidas, narrativas, instrumentos...) quedão forma à ação, nos povoam e nos ajudam a efetuar-mo-nos como seres relacionais (e que se pode investigara partir da noção de “mediação”, das obras de BrunoLatour e Michel Serres). Mais que em um exercício desimbolismo, a calidez dos corpos pode ser encontrada naecologia que eles mobilizam e habitam.

A atenção aos corpos desde um ponto de vista plura-lista nos leva a: 1) renunciar ao preformacionismo genéti-co (os corpos não são dados, mas executados: são devires,pois gênesis quer também dizer construção e ação, novi-dade e criação, noções que nos permitem escapar dadicotomia potência-ou-ato, como propunham Deleuze eFoucault); e 2) defender a consideração de diferentesplanos genéticos (filogênese, ontogênese, sociogênese,ecologênese...), atentando para a relação ecológicadinâmica entre os corpos e seu contexto para “ser”. Ser,nesse sentido, é melhor pensado como “ser-com”.

Abre-se, assim, diante de nós, todo um programa deinvestigação sobre nossas ecologias plurais e múltiplas.Entendendo por ecologia, aqui, não o contexto como

invólucro ou carcaça circundante e exter-na, mas como con-textere, isto é, tecer-comtodas as tramas em que nos vemos enreda-dos, e que co-constituímos, co-modifi-camos, possibilitando e limitando a nósmesmos. Não mais envoltório, mas o quePerter Sloterdijk chama um “clima antrópi-co”, dinâmico, que nos afeta e que afeta-mos, constituindo o medium em que vive-mos. Podemos, assim, começar a construir agenealogia das práticas heterogêneas (queintegram discursos, utensílios, dispositivos,e outras entidades múltiplas, como os ani-mais domésticos e outros corpos humanos)que co-configuram de forma plural os nos-sos próprios corpos.

Pensar os corpos dessa forma leva ne-cessariamente a questionarmos as noçõescotidianas de natureza e cultura (que supõeum substrato “biológico” comum aohumano, em que todas as diferenças seriam“culturais”). O que chamamos variaçõesculturais seria melhor qualificado comovariações de vínculos, ecologias distintas:montagens funcionais heterogêneas de cor-pos em práticas e ecologias em relação

dinâmica. Talvez isso nos leve a uma concepção plural emúltipla, heteropoiética, do biológico, como algo não se-parado do que se diz cultural. De fato, esse programa deinvestigação foi desenvolvido recentemente por TimIngold (um dos antropólogos mais interessantes de se ler,se é para repensarmos essas distinções) e tem levadoalguns investigadores, como Latour, a propor a noção de“multinaturalismo” como alternativa.

Adicionalmente, e talvez primordialmente, umaatenção pluralista ao corpo é também uma reflexão sobrea sua política: uma consideração relacional sobre nossasinstituições, nossas técnicas e modo de nos constituirmos,sobre como criamos e destruímos nossos hábitos e comonos permitimos ou negamos nosso vínculo com certasentidades e não outras... em suma, nossas ecologias.Pensar assim as relações ecológicas supõe observarmos aspolíticas corporais que se desenham nessas relações, umexercício de governo em domínios como, por exemplo, asciências da saúde que, a partir de noções práticas docorpo, tanto podem nos curar e enriquecer quanto, àsvezes de forma terrivelmente contundente (como nosmovimentos eugenistas), mas também de formas maissutis e menos reconhecíveis, ditar os nossos modos deviver e de morrer. E como nossas ciências humanasexercem uma função política em sua prática científica,através das noções que maneja, apontar para formas derelação plurais (que se desviam das categorias conceptu-ais e do modelo determinista que separa corpo, mundo esignos) é também permitir e articular alternativas devida, outros climas antrópicos, outras ecologias.

(Tradução de Beto Vianna)

* Tomás Sánchez-Criado é psicólogo social e diretor de publi-cações da AIBR. Revista de Antropología Iberoamericana, com tra-balho investigativo nos estudos sociais da ciência e da tecnologia.Editou, com Florentino Blanco, o número especial da AIBR(novembro-dezembro de 2005) Cultura, Tecnociencia yConocimiento: El reto constructivista de los Estudios de la Ciencia, eestá preparando a edição do livro Tecnogénesis. La construcción téc-nica de las ecologías humanas (Madrid, 2007). O número especialda AIBR pode ser acessado no sitewww.aibr.org/antropologia/44nov/articulos/nov0519.php.

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Impropriedades deum meta-primata,ou notas para umaciência dos coletivos

GUILHERME JOSÉ DA SILVA E SÁ*

Há dois tipos de discursos que permeiam o cotidianode cientistas (a saber, biólogos, etólogos, e especifica-mente, primatólogos). Um diz respeito às interaçõesmantidas em campo entre sujeitos-objetos (primatólogose primatas), e o outro se dá nas relações intra-laboratori-ais entre um sujeito-cientista e um objeto-macaco (esteúltimo termo agora transformado em número, código, ouseja, tornado um “OCM”: organismo “culturalmente”modificado).

Certamente entre estas duas construções há algumadiferença, que nos cabe agora esboçá-la. Poder-se-ia argu-mentar que na prática a ciência assim se faz: põem-se delado as narrativas intersubjetivas dos cientistas ondepaixões, inseguranças, sentimentos e motivações sãoindissociáveis das observações empíricas, e adota-se o dis-tanciamento moderno decantado pelos arautos da purifi-cação e calcado na fragmentação daquelas relações sociaisimpuras, e na condição imanente dos termos que as con-formam. Logo, em tese, para ser “científico” é necessáriotornar a ciência na prática algo “paracientífico”. Ora,aplicar indiscriminadamente esta proposição teóricaacabaria por tornar o próprio “fazer ciência” impraticável.

Muito além das trincheiras das guerras da ciência,um serviço (nem tão secreto assim) de inteligênciaoptou por decodificar tais discursos paracientíficos, le-vantando hipóteses sobre para quem, para onde, e paraque produzir ciência. Um solo fértil até então ignoradopor opositores paralisados em seus tecnicismos. É a partirdo rescaldo dos escombros de guerra que hoje nos per-guntamos: o que esperar de uma ciência pautada no dis-curso unívoco e afirmativo sobre o outro (puramente ummonólogo)? E o que dizer de uma ciência envolvendosujeitos-objetos em um coletivo animado de humanos enão-humanos (diálogos impuros)?

Quando lidamos com o estatuto intersubjetivo dasrelações entre pesquisador e objeto, é preciso problema-tizar a oposição entre ciência “pura” e “aplicada”.Tomando por exemplo o trabalho de campo de primató-logos, verifica-se que a subjetivação dos objetos de estu-do (os macacos) é proporcional à objetivação dossujeitos que os estudam. Afinal, é preciso aproximar-sedos primatas, culturalizando-os, mas também é indispen-sável que os primatólogos sejam naturalizados pelos pri-matas, a ponto de que estes não mais se esquivem doacompanhamento humano. Sem esta equação que viabi-liza a relação não há como observar, em seu sentido maiscientífico. As narrativas que dão conta da troca de pers-pectivas experienciais entre esses coletivos são normati-vamente classificadas como paracientíficas, históriasainda não-purificadas. Contudo, é possível contra-argu-mentar que todo o diálogo entre humanos e não-humanos é (cons)ciência aplicada, a fim de possibilitar

que esta relação se estabeleça e frutifique mais tarde emformas de saber purificadas. Por sua vez, a purificaçãodeste discurso conduz-nos a ignorar um de seus inter-locutores: os não-humanos. Não raro percebemos osestudos acerca do discurso científico como esforços paracompreender um monólogo oficial, puro porque purifica-do, mas muito pouco aplicável.

Ora, chamar macacos de gente é uma corruptela quedeixaria o mais liberal dos naturalistas abismado! Noentanto, a recorrência destas apropriações dificilmenteseria negada por iniciados no universo da primatologia,alegando constarem apenas como distrações oficiosas.Não é isso o que indica os numerosos relatos de campode pesquisadores renomados como Jane Goodall, DianFossey, Barbara Smuts, Shirley Strum, entre outros.Igualmente inegável é o fato de que este diálogo inter-subjetivo expõe-nos a uma controvérsia mais amplaentre o que pode ou deve ser classificado como oficial ouoficioso no fazer científico.

Situando essa polarização do ponto de vista

antropológico, voltado para a compreensão dos discursoscientíficos, simpatizo com a proposta de Bruno Latour deempreender uma antropologia simétrica do pensamentoocidental, pautada no estudo sistemático de nossas insti-tuições “centrais”, tais como o fazer ciência, o fazerpolítica e a fabricação das leis, por meio de um dispositi-vo etnográfico capaz de dar conta de tais eventos. Fala-se em uma simetria não apenas de objetos, mas tambémem relação ao posicionamento do próprio pesquisadorem relação a eles. Não basta afirmar, portanto, que osimétrico ao cientista de uma renomada instituição depesquisa seria o xamã de algum grupo ameríndio.Limitar-se a esta comparação é correr o risco de subme-ter-se a modelos fáceis onde analogias prevalecem àexistência de eventuais relações homólogas. Ou seja, sepor um lado, distancia-se da sedução em ver con-tinuidade entre xamanismo ameríndio e o neo-xamanis-mo urbano, por outro, não se abdica do fetiche do méto-do comparativo. Latour nos indica que esse processodeve obedecer a uma simetria analítica, relacional, ondeo antropólogo das ciências e tecnologias modernas (oua-modernas) aproxime-se mais do etnólogo que do cien-tista natural. Fazer antropologia da ciência implica, nessesentido, ser um etnólogo na ciência. Traduzir mais queinterpretar, mediar mais que relatar, e realizar mais quedesconstruir.

Libertar-se do naturalismo vigente nas ciências podeestar associado a perceber as incidências animistas queconfiguram os curtos-circuitos no discurso científico.Repensar os binarismos como purificado/não-purificado,oficial/oficioso, objeto/sujeito, puro/aplicado,humano/não-humano, natureza/cultura, talvez seja umaatitude desejável para situar as condições conjuntivas etransformadoras sustentadas pelos agentes durante oprocesso em que estes são consolidados como identi-dades estanques em oposição. Por fim, libertar-se dessetranse epistemológico consiste fundamentalmente emperceber o trânsito de suas transformações.

*Guilherme José da Silva e Sá é doutor em Antropologia Socialpelo Museu Nacional/UFRJ, e professor do Departamento deCiências Sociais da Universidade Federal de Santa Maria.Publicou, entre outros artigos, “Da cultura da diferença à difer-ença das culturas: a apropriação do conceito de cultura no discur-so de primatólogos” (Revista de Antropologia, Florianópolis, 2005) e“Meus macacos são vocês: um antropólogo seguindo primatólogosem campo” (Revista Anthropológicas, Recife, 2005).

07

Homo filmicus:duas versões doprocesso dehominização no anoque não terminou

RUBÉN GÓMEZ-SORIANO*

O terreno artístico, ainda que não tenha sido o único,é o que melhor tem refletido, e até constituído, as difer-entes tipologias vitais - arquetípicas ou etnográficas, degênero ou geracionais, culturais ou biológicas - do conjun-to de organismos que atualmente agrupamos sob o nomede humanidade. E o cinema, desde sua invenção oficialem fins do século 19, por suas tantas particularidades,soube cumprir essa função melhor que nenhum outromeio. Se o cinema é feito do mesmo material que se fabri-cam os sonhos, eu acrescentaria que esse mesmo materialtem também a propriedade de configurar realidades.

Como tinha de ser, as idéias científicas não per-maneceram alheias ou virgens no celulóide. Seja emdocumentários ou na ficção, o cinema segue plasmandobiografias, avanços e utopias nesse território. E um dosassuntos científicos tratados de forma mais prolixa efurta-cor pelo cinema é a teoria da evolução. Idéias aca-lentadas tanto por partidários quanto detratores do dar-winismo, em suas várias interpretações, são expostas demodo um tanto exagerado em certos filmes que, em tese,estariam assim na contramão da ortodoxia científica. Domeu ponto de vista, no entanto, é exatamente pela cari-catura que determinadas concepções, relacionadas aospressupostos evolutivos tradicionais, se manifestam daforma mais evidente. O melhor é irmos logo aos exemp-los, que devem projetar alguma luz no argumento quebusco desenvolver.

1968, além de um ano repleto de sonhos revolu-cionários frustrados, guerras agitadoras de consciênciasdormidas e supressões legitimadas de liberdades, assistiu aestréia de dois filmes que mudaram ou reafirmaramdeterminada idéia que fazemos de nós mesmos. Nosprimeiros minutos de 2001: uma odisséia no espaço, naparte denominada “O amanhecer do homem”, Kubrickmostra-nos um grupo de aus-tralopitecos (membros extintosde nossa linhagem) obrigados,para sobreviver, a enfrentaruma paisagem desoladora e osterríveis predadores que ahabitam. No desfecho, outrobando de australopitecos,armados e bípedes, mata ummembro do primeiro grupo uti-lizando uma de suas ferramen-tas ósseas. A arma é lançadano ar e, na imagem seguinte,vemos uma nave cruzando o

espaço exterior. Uma interpretação possível dessa cena éo humano tornando-se humano ao dominar a técnica eusá-la na luta pela sobrevivência, ainda que isso sig-nifique a aniquilação de grupos-irmãos. Tambémpodemos inferir que entre esse feito e a conquista doespaço não há diferenças importantes, ou desenvolvi-mentos históricos que mereçam destaque, já que, no frigirdos ovos, seguimos sendo os mesmos: é na luta que anatureza humana ganha sentido.

A primeira versão cinematográfica de O planeta dosmacacos narra a epopéia de um grupo de astronautasamericanos, liderado por um personagem desiludido comseus congêneres, o coronel George Taylor. Em suaviagem, o grupo acaba caindo em um “planeta descon-hecido” (de fato, a Terra 300 mil anos no futuro), emque humanos primitivos são dominados por três evoluí-das espécies de grandes símios. Por diversos motivos, ofilme de Franklin Schaffner é uma contundente crítica

da evolução pintada por 2001. Primeiro, a existência desímios naquelas condições joga por terra a visão dessesanimais como proto-humanos, fósseis vivos de quem nósseríamos o produto final após milhões de anos deevolução. O novo planeta é uma fantástica ironia dessaidéia, já que se pensa ali justamente o contrário: o símioveio do humano. E George Taylor, sendo o únicohumano capaz de falar, é sensatamente tomado comoum “elo perdido”. O filme faz referência, portanto, àsnoções de que nenhuma espécie atual é antepassada deoutra (por maior que seja a proximidade filogenéticaentre ambas), e nenhuma progrediu mais que outra(mesmo tendo tomado caminhos evolutivos distintos).

68 foi um ano fértil de acontecimentos que fizeremtrepidar alguns dos alicercesem que se assentava o século20. E como acontece com asgrandes ocasiões, em quetodos gostariam de estar pre-sentes, deve ser uma minoria -entre os que se dizem progres-sistas e têm mais de 50 anos -os que não estiveram no maiofrancês, não se manifestaramcontra a guerra do Vietnã, ounão se opuseram ativamenteàs medidas repressivas dasditaduras de Costa e Silva e de

Franco. E, contudo, o processo histórico que nos levou àatualidade parece contradizer esses testemunhos. Omodus vivendi da maior parte dos ocidentais, àquelaépoca, ajustar-se-ia mais à comodidade brindada por umestado de alienação, parecido com aquele vivido pelosaustralopitecos de 2001 antes de descobrir as qualidadesletais da ferramenta óssea, ou pelos humanos jádesprovidos de linguagem no Planeta dos macacos.

Seguindo o famoso livro de Zuenir Ventura (de queroubei parte do título do meu artigo), que fala do cortede liberdades nunca recuperadas de todo, parece queparte dessa alienação generalizada vem sendo conserva-da, e, para ela, têm contribuído notavelmente certasidéias evolucionistas. O argumento defendido por certosmatizes disciplinares como a sociobiologia e a psicologiaevolutiva (duas das correntes mais reducionistas dentrodo denominado “programa adaptacionista”) atribui aresponsabilidade de nossos atos a uma natureza de que

não podemos escapar e é a contrapartida do viver denossos “antepassados filogenéticos”, extintos (como oAustralopithecus) ou não (como o chimpanzé). Nessavisão, somos meros escravos da vontade milenar denosso egoísta código genético e de nossa inalterávelinteligência maquiavélica, e qualquer ato de rebeldiacontra a natureza só pode ser diagnosticado como umapatologia a erradicar.

O argumento da inevitabilidade biológica, adespeito de não ser respaldado pela biologia molecularou evolutiva, e remar contra até mesmo as alegações deneutralidade científica de seus partidários, foi geradohistoricamente e tem se mantido vigente até os nossosdias, com grande penetração em nossa cultura atual.Mas não é coincidência ele legitimar logo a competiçãodesenfreada do modelo neoliberal, herdeiro direto edileto do neocolonialismo? Eis um tempo que já passada hora terminar.

(Tradução: Beto Vianna e Flávia Rodrigues)

* Rubén Gómez-Soriano, doutorando pelo Departamento dePsicología Básica da Universidad Autónoma de Madrid, desen-volve sua tese sobre o impacto do bonobo (Pan paniscus) na con-stituição de determinadas antropologias. Escreveu, entre outrosartigos, “Un proyecto de ingeniería humana: Robert M. Yerkes y elLaboratorio de Biología Primate” (Revista de historia de la psicología,Vol. 27, 2006) e, com Beto Vianna, “Eslabones encontrados: losgrandes simios y el imaginario occidental” (AIBR. Revista deAntropología - Número Especial Nov.-Dic. 2005).

A guinlagem eo camaco(1)

BETO VIANNA*

Eu costumava rondar Ouro Preto na década de 80,quando conheci o Profeta Gentileza. Cabelos, barba etúnica longos e brancos, distribuindo flores e pregando oamor com tabuinhas coloridas, Gentileza era reputadovisionário, sábio ou louco, como tantos outros no seumesmíssimo estilo. Fosse como fosse, ele tinha algo pre-cioso para compartilhar, que anos mais tarde ouvi minhaprofessora Cristina Magro chamar de “higiene vocabu-lar”. O velho repetia como um mantra: “não diga obriga-do, diga agradecido”, e “não diga por favor, diga por gen-tileza”. Pedia-nos para abandonar termos senhoriais,convites à submissão e à negação do outro, e, em seulugar, recomendava a assepsia da gentileza, que - tam-bém palavras do Profeta - “gera gentileza”.

Nesse ponto, tem gente que franze a sobrancelha: sefalamos assim há tanto tempo, qual a razão de mudar?Outros sentem-se ameaçados, como se algo fundamentalse quebrasse na mudança. Os primeiros estão justificadosna medida em que a linguagem é um jogo de “conser-vação na conversação”, que permite, mas não garante,continuarmos a interagir com os demais membros danossa comunidade (higiene em excesso leva ao isola-mento, da mesma forma que a mania de limpeza leva aorisco de eliminar as bactérias erradas). Mas a sensaçãode desconforto surge pois, mais vezes do que se imagina,aquilo que falamos (e o jeito que falamos) pode tornar-seum entrave para avaliarmos se nossos projetos são tãobons quanto gostaríamos que fossem. Tomamos como“dado” práticas antigas que, de outro modo, faríamosmelhor em mudar.

Veja nossa linguagem acerca da evolução biológica.Um fenômeno abordado com tal elegância por Darwin aponto de, no ambiente acadêmico atual, não con-seguirmos pensar em qualquer boa alternativa para adiversidade orgânica (o barulho em torno do “criacionis-mo científico” e do “design inteligente” tem mais a vercom o projeto de poder da ultra-direita que com odebate acadêmico; aliás, juntar criacionismo com cientí-fico e design com inteligente, nesse contexto, são doisbelos exemplos de insalubridade vocabular crítica). Se aevolução é unânime, há espaço para o debate sobremecanismos evolutivos, a seleção darwiniana sendo ape-nas um deles (embora hegemônico nos últimos 80 anos,e, nos últimos 30, nem tanto). De todo modo, o que meinteressa são as escolhas que fazemos ao falar deevolução, e isso tropeça no ambiente profissional dobiólogo da mesma forma que em nosso mundo leigo.

Responda rápido e do fundo do coração: qual é o sermais evoluído do planeta? A academia oferece bonsmotivos tanto para considerarmos que esse tipo de esco-lha não faz muito sentido quanto para pensarmos que“humano” é a resposta mais razoável. Todo organismo éfruto de uma história comum de bilhões de anos; umas

espécies surgiram mais, outras menos recentemente; emesmo que fôssemos o produto mais recente daevolução (e não somos) não podemos dizer que acumu-lamos mais “unidades de evolução”: afinal, seres cujasgerações contam-se em dias podem ter mudado milharesde vezes mais que nós, no mesmo período. E consideran-do apenas a espécie humana, desde seu surgimento háuns 200 mil anos, não parece haver nenhum sentidoimportante em que “nós” evoluímos (se nós tivéssemosevoluído, nós já não seríamos nós).

Mas e toda essa conversa sobre evolução humana?Antes de nos sentirmos ludibriados, é preciso ver que háum truque inofensivo aí. O que um biólogo chama deevolução humana é a história de uma linhagem, cujobroto “final” (ou seja, o foco da atenção) é nossa própriaespécie. A medida canônica da linhagem é, ou o gêneroHomo, ou nosso lado do ramo após a separação, há uns 6milhões de anos, da linhagem das duas espécies vivasmais próximas do humano (bonobos e chimpanzés). Masem que sentido técnico é dito que o humano é “maisevoluído”? Fácil: somos mais inteligentes que o resto domundo vivo, ou, usando o jargão da moda, temos mais“capacidade cognitiva”, e, coroando essa cognição privi-legiada, temos linguagem. É aí que eu sugiro que todosnós, leigos e profissionais juntos, precisamos urgente deum banho demorado.

Se há algo suspeito em escolhermos o humano (logonós!) como o ser mais evoluído do planeta, não há nadade especial no fato de você e eu, que estamos conversan-do pelas linhas deste texto, sermos ambos humanos. Issotem a ver com o fato de que as nossas escolhas vocabu-lares tanto nos fazem pensar e agir de um jeito (e nãooutro) quanto nos permitem conversar sobre certascoisas juntos (mas não outras). Se ampliarmos o sufi-ciente o leque dessas escolhas, veremos que não apenasnós e nossa comunidade (de, digamos, pessoas que jáouviram falar em “evolução biológica” e sabem ler por-tuguês), mas centenas de milhões de outros organismoshumanos poderão partilhar da conversa, de um jeito quemembros de outras espécies não poderiam. O que estou

dizendo é que nossa multidão de escolhas vocabulares(nossas culturas), por mais heterogênea que seja (e ela ébastante), possui uma história comum: a história denossa espécie. Mas estou dizendo também que essejogo consensual não é garantia de que estabelece-mos qualquer contato especial com a realidadeque outros seres não estabeleçam (o que querque signifique “contato com a realidade” - isso,sozinho, já merece uma boa escovadela). Nãohá nenhum sentido útil em dizer que evoluí-mos “mais” que outros competidores, comonuma maratona com um prêmio no final,ainda que os caminhos tenham se bifurcadoao longo da trajetória. Além do mais, qual-quer outro percurso devem ser tão bom quan-to o nosso (ou o “deles” não teria continuadoaté aqui, como continuou).Nem todo mundo concorda comigo sobre o

que chamo de linguagem, e mesmo alguns demeus colegas de “Biologia da Libertação” indicariam

meu nome para candidato a uma assepsia, nessaquestão.Mas, como lingüista por formação, darwinistapor opção e avesso a escadas evolutivas (levando da sim-plicidade à complexidade: nós, mamíferos) ou cognitivas(levando da escuridão à luz: nós, cientistas), prefiroentender a linguagem como um fenômeno irredutivel-mente relacional, implicada, ao mesmo tempo, na relaçãoestabelecida entre organismos e na evolução biológica. Ese é pra levar a sério as mudanças conceptuais que estoupropondo, essa dupla implicação não pode tomar a formade um produto da evolução (humana) e pré-condiçãopara as relações (humanas). A referência a “objetos domundo”, tão prezada como marca distintiva dahumanidade, resulta de interações culturalmente contex-tualizas, constituindo, aqui e agora, esse mesmo mundo.A linguagem é tecida na própria trama onde se dão asrelações inter-orgânicas, e é na dinâmica do rompimentoe estreitamento dessa trama que se formam grupos popu-lacionais suficientemente distintos entre si, e suficiente-

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(1) Para aqueles pouco fluentes em guinlagem camaco, uma língua itabirana, o título deste artigo, traduzido para o português, é "A linguagem e o macaco".

bém físico, pré-programado e controladoa partir de dentro, enquanto o que éaprendido é um acidente da história pes-soal, um produto da mente, não docorpo. Tais contrastes deveriam levantarsuspeitas como o eco de um antigo dua-lismo, mas continuamos aceitando suainterpenetração em assuntos sociais. Pormais veemente que seja este debate, nãohá um conjunto coerente de critériospara que possamos separar traços biológi-cos de não-biológicos. Há apenas umaprofusão de indícios, alguns contra-ditórios, outros simplesmente obscuros.Alguns critérios referem-se a populaçõesde organismos, outros ao desenvolvimen-to individual. Uns têm a ver com aevolução, outros com mecanismos inter-nos, e assim por diante.

Tais controvérsias são sempre cons-truídas a partir de crenças antigas e bas-tante gastas, não apenas sobre mente ecorpo, mas também sobre forma ematéria, essência e acidente, instinto eaprendizado, bem como as mais recentessobre evolução, genes e ambiente. Muitojá foi dito sobre tais debates (às vezes irritantes). Maspouco ganhamos com “soluções” conciliatórias masinadequadas - ainda que soem mais respeitáveis -, emque tudo é uma mistura de natureza e cultura, de modoque precisamos discernir as proporções corretas de cadauma, ou em que os genes estabelecem o alcance dosefeitos possíveis do ambiente. Se as categorias tradi-cionais natureza-ou-cultura são incoerentes, como sugeriacima, tais compromissos “razoáveis” também não irãofuncionar.

Tanta controvérsia poderia nos levar à conclusão deque precisamos nos “libertar da biologia” (ou dos biólo-gos!). Longe disso, sugiro que nos livremos de todo umaparato de hábitos conceituais que mantêm vivo odebate. Entre eles, reina inconteste a virtual deificaçãodo gene. E não me refiro apenas à ênfase excessiva, masà investidura de poderes quase-divinos ao DNA, de ini-ciar a mudança de modo autônomo (como em “os genesdirigem o desenvolvimento mas permanecem eles mes-mos inalterados”) e de conter e executar planos de com-plexidade prodigiosa (“o programa-mestre prevê eadministra o input ambiental”). O gene dá forma àmatéria inerte. Imortal, o gene avança através das ger-ações enquanto os pobres organismos surgem e perecem.O contraponto a essa fonte interna de forma é desem-

penhado, no debate tradicional, pelo ambiente,fornecendo as perturbações, os detalhes mais triviais, oapoio e a matéria-prima.

E que tal se essas crenças mudassem? Vamos suporque o DNA não é um repositório de representações einstruções descorporificadas, mas, ao invés disso, umaestrutura física, tal como outras partes do corpo. Semdúvida maravilhosa, essa estrutura funcionaria apenaspor meio de sua interação com uma série de outras, demodo diverso em cada lugar, tempo e condição dife-rentes. Isso, aliás, é o que a biologia molecular, despidade sua retórica mais inflamada, tem nos mostrado.Vamos supor, ainda, que as operações e os produtosdessas interações - digamos, as proteínas - dependem,do mesmo modo, das condições em níveis mais altos deorganização. Nesse caso, o organismo surge no cadinhodessa miríade de interações contextualmente depen-dentes, forma e função sendo efetivadas em estreitainterdependência com o entorno; é desnecessário - éaté incompreensível - atribuir a essas seqüências, pordramáticas que possam parecer, a um imóvel motorcentral.

Se os efeitos de outras estruturas internas, e fatoresno mundo fora dos limites do organismo, são igualmentecontingentes com a presença e o estado de outros com-

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Mudançade hábitoSUSAN OYAMA*

“Há dois tipos de pessoas no mundo: aquelas que gostamde dicotomias e aquelas que não gostam. Eu sou do segundotipo”. (piada contada por um amigo)

Há uma geração, a posição politicamente progressista(libertária?) sobre a homossexualidade nos EUA, era ade que a orientação sexual era aprendida. Hoje, defen-sores dos direitos homossexuais preferem dizer que ela éinata. Na complexa história dessa questão, argumentoslegais e morais são quase sempre vinculados aos científi-cos, com uma tendência geral para explicações biológi-cas. Pela legislação norte-americana, por exemplo, certosgrupos biologicamente definidos têm direito a proteçãoespecial. O argumento “da natureza” é igualmente usadopara minimizar o papel da escolha na orientação sexual,evitando a atribuição de pecado. Chamar algo de“biológico” (ou genético, natural, inato), não é fazeruma simples afirmação científica. É também se pronun-ciar sobre a relevância da experiência e das condições deexistência, sobre a possibilidade (e até mesmo o desejo)de mudança. O mesmo vale para os termos opostos: cul-tural, adquirido, ambiental.

Se algo é biológico, dizemos comumente que é tam-

mente coesos internamente, para que sigam diferentespercursos históricos particulares (as espécies) e realizemas diferentes possibilidades dessa história comum (as cul-turas).

Dizer que há uma distinção de grau entre linguagem(para o H. sapiens) e comunicação (para todo o resto) éconfiar demais no antiquado vocabulário da GrandeCadeia do Ser (aquela que vai dos repolhos aos anjos),mal-disfarçado por uma confiança igualmente excessivano vocabulário que torna o conhecimento humano maispróximo do Ser doMundo. Demasiado humanos, jásabemos como decidir, consensualmente, aquilo que ébom ou ruim, e não há utilidade adicional em argumen-tar que temos uma superioridade intrínseca na manipu-lação do ambiente. Na história particular de nossa lin-hagem, paramos de conversar com os outros macacos,mas nas conversas que podemos escolher entre nós mes-mos, sempre haverá espaço sobrando para a velha e boagentileza.

* Beto Vianna é doutor em lingüística pela UFMG e pesquisou ainteração de grandes símios na Fundação Zoo-Botânica de BeloHorizonte e no Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva,em Leipzig. Escreveu, entre outros artigos, “Sombras naBatcaverna: a charada cartesiana, o coringa kantiano e ospingüins de Darwin” (Revista da USP, nº 63, 2004) e, com RubénGómez-Soriano, “Grandes símios em linguagem: uma crítica doconceito de evolução da linguagem à luz das abordagens sistêmi-cas” (Anais do I Congreso Iberoamericano de Antropología, Havana,2007).

ponentes do complexo desenvolvimental, então tambémnão haverá uma fonte externa independente de “infor-mação” para suprir o lado “cultural” da dicotomianatureza-cultura. Nem o DNA, nem qualquer outroparticipante no desenvolvimento, opera autonoma-mente ou controla o todo: os efeitos de qualquer fatorsão causados conjuntamente, dependem do restante docomplexo e frustram nossos esforços de alocar respons-abilidades para o desenvolvimento individual de umorganismo.

Digo ainda que todas essas mudanças de hábito con-ceitual são apoiadas pela pesquisa biológica de um modoque a linguagem de instruções codificadas não é (e issonão quer dizer que tudo o que estou contestando podeser testado empiricamente: como demonstrar que pro-gramas literalmente existem no DNA? Eis aí parte doproblema). Mas como acontece com os sistemas - poisisso é o que eu venho descrevendo - uma pequenamudança leva às vezes a uma cascata de outras. (Àsvezes. E às vezes um sem-número de mudanças não temnenhum efeito significativo. Muitas características doorganismo são estáveis em uma grande variedade decondições).

Uma implicação dessas mudanças é que nenhumconstituinte contém a essência do organismo, ou esta-belece, sozinho, o seu destino. Não faz sentido dizer quealguns resultados já estão pré-configurados, inscritos nocódigo nuclear, mesmo se eles aparecem com regulari-dade. Nem podemos atribuir um traço individual a uminteractante principal e apenas trivialmente a outros(embora pesquisas em grupos de organismos permitamafirmações quantitativas). Ou seja, ao contrário do queé afirmado dentro da persistente dicotomia natureza-ou-cultura, todas as características são “biológicas”, poistodas caracterizam um ser vivo. Todas são “adquiridas”,no sentido de que precisam desenvolver-se. E todas são“ambientais”, pois condições particulares são necessáriaspara que ocorram.

Nossa visão da evolução muda, também. O discursopadrão de que apenas os genes passam à geraçãoseguinte na hereditariedade é expandido para incorporartodo o complexo (organismo-e-ambiente) do sistema emdesenvolvimento. Podemos então ver a evolução nãocomo apenas mudanças em freqüências gênicas, mascomo mudança na constituição e distribuição de sis-temas em desenvolvimento.

Essa perspectiva retrabalhada não fornece respostasautomáticas às questões que há muito vêm alimentandoo debate natureza-ou-cultura (tal traço é inevitável? Énatural, ou devíamos tentar mudá-lo?). Ela nos encora-ja, porém, a ser mais claros sobre tais questões, varren-do do cenário um vocabulário multiuso e hábitosarraigados que têm acumulado tanta ambigüidade sob otapete, por tanto tempo. A mudança serve tambémpara impedir a inútil tentativa de responder a taisquestões achando o equilíbrio correto entre o controleinterno e externo (principalmente inato? Parte ambien-tal?), ao invés de nos debruçarmos diretamente sobre ascomplexidades da vida real e das incertezas e possibili-dades que ela nos traz.

(Tradução de Beto Vianna, revisão de Cristina Berio)

* Susan Oyama, Professora Emérita de psicologia da CityUniversity of New York, é a principal proponente da Teoria dosSistemas em Desenvolvimento e escreveu, entre outras obras, Theontogeny of information: developmental systems and evolution(Cambridge University Press, 1985, 2a. edição de 2000 com prefá-cio de Richard Lewontin) e Evolution’s eye: a systems view of thebiology-culture divide (Duke University Press, 2000).

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Viver e conviverna diversidadeculturalXIMENA DÁVILA, HUMBERTO MATURANA E

HUMBERTO GUTIÉRREZ*

Os problemas humanos não surgem de erros noraciocinar, mas de conflitos no emocionar. Os erros doraciocinar surgem como equívocos ao se operar comcoerências lógicas em um domínio particular de coerên-cias operacionais, e se resolvem revisando as operaçõesnesse domínio. Já os problemas humanos surgem noentrecruzamento inconsciente de desejos contraditórios,e se resolvem desde um meta-domínio reflexivo que per-mite ao indivíduo, como um ato na emoção, olhar paraesses desejos e assumir se quer ou não o mundo e ohabitar que surgiriam caso desejasse que um ou outrodesses desejos guiasse o seu agir. Nesse sentido, o enten-der e o atuar é sempre um ato individual que surge noser co-criador com outros de um habitar em uma comu-nidade. Todo ser vivo existe em um mundo que surgecom ele, e o habitar ocorre como uma trama relacionalde múltiplas dimensões que constitui o âmbito em quese realiza o seu viver. O atuar de um ser vivo ocorresempre em um lugar operacional desde onde não se vê,mas implica, toda a trama relacional do habitar.

Nós, humanos, vivemos em comunidades constituí-das como redes de conversação em uma biosfera que noscontém e torna possíveis como o âmbito biológico donosso viver. Todo ser vivo existe na realização de seuviver como indivíduo, e opera como centro corporal

dinâmico onde se entrecruzam todas as dimensões daexistência que surge a partir do próprio organismo. Porisso todo ser vivo opera como o centro do cosmos desdeseu existir como totalidade fechada, irredutível enquan-to sistema autopoiético(1). Nós, humanos, enquanto seresexistindo no linguajar, vemos o cosmos que vivemoscomo aquilo que nos contém, a partir do explicar nossoexistir enquanto seres conscientes.

Nós, seres vivos, existimos em comunidades de clas-ses distintas. Os humanos, em particular, existem emcomunidades integradas por indivíduos conscientes de simesmos, que podem refletir sobre sua própria existênciae ser conscientes de que, com seu viver, vão configuran-do os mundos que vivem, e que esses mundos não pre-existem o seu viver. A convivência em comunidadeocorre como um âmbito de existência que se configurano conviver dos indivíduos que a compõe a partir de seuviver individual. Reciprocamente, o viver individual dosmembros de uma comunidade se configura na convivên-cia, gerado com a participação do indivíduo no conviverna comunidade que integra.

Tudo o que nós, humanos, fazemos ou pensamos,ocorre em nossa realização enquanto indivíduos, quernos encontremos sós ou em comunidade. Mais que isso,tudo o que nós, humanos, fazemos, pensamos ou senti-mos, ocorre desde o nosso existir fundamental comoseres conscientes que operam ou podem operar nareflexão, com consciência de si mesmos. O indivíduohumano de uma classe ou outra surge segundo o convi-ver que se vive em uma comunidade que ele integra, e oconviver na comunidade surge com um caráter ou outrosegundo o viver individual de quem integra essa comu-nidade com o seu viver.

Ainda que as comunidades humanas sejam com-postas por seres que operam ou podem operar comoindivíduos conscientes de si, elas não são conscientes desi. Só seres humanos, existindo na linguagem, sãocapazes de operar com consciência de si, de apontar paraseus atos e desejos e perguntar se querem esse agir edesejar, e se querem o que dizem que querem.Comunidades humanas não podem fazer isso enquanto

comunidades, e seu operar como conjuntoshumanos parecerá, a um observador, implicarmais ou menos consciência social, ética, espiri-tual ou ecológica segundo o operar daquelesque a integram. Só os indivíduos podem serconscientes e, portanto, responsáveis pelo queocorre no interior da comunidade que inte-gram, e pelas conseqüências que o modo de serda comunidade traz para o entorno biológico enão-biológico que a contém e a torna possível.

De acordo com tudo o que foi dito, pen-samos que o problema central que vivemos, comohumanidade no presente de nossa culturapatriarcal/matriarcal, surge da oposição de desejos depoder, controle e dominação, que constituem o pano defundo emocional dessa cultura, e o desejo de cuidado econservação do humano e do entorno, o respeito por simesmo e pelos outros que no fundo todos temos comoparte de uma história humana comum. Um dos contex-tos mais esclarecedores desse conflito central no atualmomento da história humana, que é a oposição da tramaemocional da cultura patriarcal/matriarcal com a biolo-gia do amar, se dá ao entendermos o fenômeno social ouda convivência aplicando noções dualistas que funda-mentalmente expressam uma oposição entre as dimen-sões individual e coletiva, outorgando a cada uma, umanatureza distinta. Assim, no mais das vezes, ao queremosdar conta de sua compreensão, terminamos por reduziruma à outra, dissociando-as sem considerar a integrali-dade fenomênica implicada - a perspectiva sistêmica.

Compreender que toda comunidade é um conviverque se orienta desde cada viver individual, segundo umemocionar ou desejar que, como tal, fundamenta tantonosso viver quanto o conviver, é fundamental paraentender a natureza do social. É, então, na realização denosso viver e conviver que surge o mundo que vivemose convivemos, como uma expansão de nossa corporali-dade, e que, ao ser resultado de um curso histórico,momento a momento em uma co-deriva estrutural,aparece para nós, como surgindo do nada, a nossa iden-tidade coletiva. A identidade coletiva surge do co-emo-cionar que modula a co-deriva estrutural que surge emnosso presente individual como o mundo social quevivemos e convivemos, como se não houvéssemos par-ticipado de sua geração. Isso de fato, se deu no trânsitoinconsciente de nossa transformação na convivênciacom o mundo e no viver o nosso ser que surge comoresultado de um fazer-com-os-outros, em uma históriade conservação e mudança.

Desse modo, a transformação se dá no interactuar de

uns e outros como indivíduos, que,enquanto co-emocionam, conservamum modo particular de viver e con-viver que, por sua vez, ao dependerdos desejos e emoções como um panode fundo que determina o curso desseconviver, sempre está aberto a orien-tar-se para uma co-deriva distintadaquela conservada até o momento.Isso quer dizer que uma cultura temcomo pano de fundo uma multidi-

mensionalidade que a todo momento e circunstânciapode mudar, e que são os próprios indivíduos e seusdesejos que os levam a querer orientar-se para um mododistinto de querer agir com os outros, que delimitam amultidimensionalidade de fundo, resultando em umcurso de transformação no conviver.

Há então, em toda cultura, um fundo multidimen-sional, que é propriamente a “multidimensionalidadeindividual” desde onde é gerado um âmbito de inte-rações suficientemente intensas com outros no emo-cionar e no linguajar, que pode resultar seja um modoespecífico de interagir ou um modo de vida a conservar.Nesse último caso, pode-se dizer que há uma maioramplitude da multidimensionalidade de fundo envolvidaque no primeiro. Em qualquer caso, são os desejos deconservar ou de mudar o conservado o que sempre estáem jogo, e portanto uma cultura fundamenta-se na con-servação dos desejos que os próprios participantes vivemindividualmente em seu conviver social.

Assim, os modos de viver e conviver conservados sãotanto o pano de fundo quanto o suceder do mundo quesurge do nosso agir no mundo que vivemos e convive-mos, e desde onde se constituem como uma rede deconfigurações sensório-motoras que vão modulando emodelando nosso espaço psíquico relacional, dando umcaráter ou outro ao nosso ser e ao nosso agir segundo a

trama emocional que vivemos e na realização presentedesse modo de viver e conviver. Que somos como vive-mos e vivemos do jeito que somos parece óbvio. O quenão é óbvio é que tanto nossa identidade individualquanto coletiva repousam no mesmo fundamento: atrama de desejos que conservamos em nosso viver e con-viver desde nossa corporalidade no habitar que vivemose convivemos.

Tudo o que foi exposto leva-nos a concluir que adiversidade cultural tem seu fundamento nos desejos dosindivíduos que geram, em seu interactuar com outros, aprópria cultura que eles mesmos integram. A partir desseolhar, podemos compreender que na base da constitu-ição da diversidade cultural estão os distintos desejos dosmuitos indivíduos que se orientam de modos distintosem seu viver e conviver a multidimensionalidade, quecomo pano de fundo inconsciente do viver, encontra-sesempre implicada, e que são os desejos que determinamos diferentes modos de viver essa multidimensionalidade,resultando em um conviver particular que se distinguede outros conviveres a partir do curso dos próprios dese-jos individuais que se vivem na convivência.

Ao distinguir uma diversidade cultural distinguimos,ao mesmo tempo, distintos desejos que se conservam eque resultam em distintos modos de viver e de conviver,e que como tais constituem uma diversidade cultural noviver humano que surge naturalmente de nossacondição de ser seres humanos. É a nossa condição nat-ural de existência, ou melhor, de co-existência.

(Tradução de Flávia Rodrigues e Beto Vianna)

* Ximena Dávila, Humberto Maturana e Humberto Gutiérrez sãodocentes e investigadores do Instituto Matríztico, um espaço dereflexão, investigação, formação e colaboração entre comunidadeshumanas criado a partir do encontro de Ximena Dávila eHumberto Maturana com a distinção que denominaram MatrizBiológica Cultural da Existência, dando origem ao trabalho cientí-fico conhecido hoje como Biologia Cultural.

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(1) Abstração do operar dos seres vivos apresentada pela primeira vez em 1970 por Humberto Maturana e Francisco Varela na Universidade de Illinois. Uma rede fechada de produções moleculares que produz de modo recursivo a mesmarede de produções moleculares que a produziu e define seu limite permanecendo aberta ao fluxo de matéria através dela é um sistema autopoiético e um sistema autopoiético é um sistema vivo.

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