F. PESSOA - ORTÓNIMO - ANÁLISE DE POEMAS

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Escolas I João Araújo Correia 12.º Ano Professora: Rosa M. Ferrão 1 ____________________________________________________________________ 1. Fernando Pessoa Ortónimo O Fingimento poético Autopsicografia O poeta é um fingidor. Finge tão completamente Que chega a fingir que é dor A dor que deveras sente. E os que leem o que escreve, Na dor lida sentem bem, Não as duas que ele teve, Mas só a que eles não têm. E assim nas calhas de roda Gira, a entreter a razão, Esse comboio de corda Que se chama coração. O título do poema "Autopsicografia" análise dos mecanismos psicológicos envolvidos na própria escrita , pode levar-nos à conclusão de que o poeta quer explicar o processo psíquico que nele se passa, ao elaborar um texto poético. O poeta é um fingidor (metáfora) - ocupa lugar de destaque no poema. Caracteriza-se pelo fingimento e finge tão bem que consegue fingir a dor que sente na realidade. Coloca-nos, assim, perante dois tipos distintos de dor : a dor real, sentida (sentir) e a dor fingida, imaginária (pensar). A dor fingida é comunicada através da linguagem verbal. Uma perífrase inicia a segunda estrofe: "os que o leem" leitores. A poesia é apresentada como expressão da profundidade negativa da alma do poeta: a dor. A dor sentida pelo poeta (real) serve de motivo à dor fingida e é expressa pela escrita pelo poeta que serve de motivo à dor sentida pelos leitores (que serve de referência à dor fingida pelos leitores). A terceira parte do poema (terceira estrofe), como a própria expressão "E assim" prenuncia, constitui uma espécie de conclusão : o coração (símbolo da sensibilidade) é um "comboio de corda" sempre a girar nas "calhas de roda" (que o destino fatalmente traçou) para "entreter a razão". Referência à função lúdica da poesia , que começa na fruição de que o próprio poeta goza, no ato da criação artística. São também aqui marcados os dois polos em que se processa a criação do poema: o "coração" (as sensações donde o poema nasce) e a "razão" (a imaginação, onde o poema é inventado). Fecha-se neste fim do poema como que um círculo cuja linha limite marca uma pista sem fim em que nunca se esgota a dinâmica do jogo sensação-imaginação . Aspeto morfossintático Polissíndeto (através da coordenativa "e") das três estrofes do poema, impondo não só a divisão do texto em três partes lógicas, mas também sugerindo uma sequência lógica no desenvolvimento do assunto. Verbos, com exceção da forma "teve" (perfeito), no tempo presente, o que está de acordo com a natureza teórica do poema, que é logo anunciada pelo título "Autopsicografia" (estudo que o poeta faz do fenómeno psicológico que nele se passa no ato da criação artística , portanto no tempo presente). A forma do perfeito "teve" explica-se porque é exigida para marcar a prioridade temporal em que o poeta experimentou as suas dores em relação ao tempo (presente) em que o leitor experimenta a "dor lida". A expressão infinitiva "a entreter" apresenta-se com um nítido aspeto durativo, insinuando a repetição continuada do processo criativo. Note-se a insistência do poeta no processo mais importante da criação poética: o fingimento. Este processo é marcado pelas formas verbais "finge" e "fingir" e pelo substantivo "fingi dor ". O verbo "fingir" (do latim fingere = fingir, pintar, desenhar, construir) aponta não apenas para disfarçar, mas também para construir, modelar, envolvendo, assim, todo o processo criativo desenvolvido pelo poeta na produção do poema: o poeta é um artífice. - Perífrase "os que leem o que escreve" (para significar "os leitores"), portadora de uma expressividade especial: aponta para os dois intervenientes fundamentais do processo poético o emissor (poeta) e os recetores (leitores). Além da reiteração (repetição), já apontada, do verbo "fingir", há ainda a do verbo ("sente", "sentem"), que não se deve desligar da repetição do substantivo "dor" (três vezes), além de outras três vezes que se repete por intermédio de pronomes, ou expressões ("que", "as duas", "a que"). A insistência na "dor" e no "sentir" está de acordo com o facto de o poeta ter tomado a dor como tema exemplificativo da criação poética e pelo facto de as sensações (o sentir) serem o ponto de partida dessa criação. Advérbios: "Finge tão completamente" (poeta); "...deveras sente" (poeta); "... sentem bem" (leitores). Estes advérbios sugerem a veemência, o rigor com que a sensação da dor se impõe, quer ao poeta, quer aos leitores. Os advérbios estão pois a marcar a intenção do autor: expor a sua teoria poética com rigor . O ato de fingir é tão importante que o poeta o superlativou não apenas pela expressão adverbial "tão completamente", mas também por meio da subordinada consecutiva "...que chega a fingir...".

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F. PESSOA - ORTÓNIMO

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Escolas I João Araújo Correia

12.º Ano Professora: Rosa M. Ferrão

1

____________________________________________________________________

1. Fernando Pessoa – Ortónimo – O Fingimento poético

Autopsicografia O poeta é um fingidor.

Finge tão completamente

Que chega a fingir que é dor

A dor que deveras sente.

E os que leem o que escreve,

Na dor lida sentem bem,

Não as duas que ele teve,

Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda

Gira, a entreter a razão,

Esse comboio de corda

Que se chama coração.

O título do poema "Autopsicografia" – análise dos mecanismos psicológicos envolvidos na própria

escrita, pode levar-nos à conclusão de que o poeta quer explicar o processo psíquico que nele se passa, ao

elaborar um texto poético.

O poeta é um fingidor (metáfora) - ocupa lugar de destaque no poema. Caracteriza-se pelo fingimento e

finge tão bem que consegue fingir a dor que sente na realidade. Coloca-nos, assim, perante dois tipos

distintos de dor: a dor real, sentida (sentir) e a dor fingida, imaginária (pensar). A dor fingida é comunicada

através da linguagem verbal.

Uma perífrase inicia a segunda estrofe: "os que o leem" – leitores.

A poesia é apresentada como expressão da profundidade negativa da alma do poeta: a dor. A dor sentida

pelo poeta (real) serve de motivo à dor fingida e é expressa pela escrita pelo poeta que serve de motivo à dor

sentida pelos leitores (que serve de referência à dor fingida pelos leitores).

A terceira parte do poema (terceira estrofe), como a própria expressão "E assim" prenuncia, constitui

uma espécie de conclusão: o coração (símbolo da sensibilidade) é um "comboio de corda" sempre a girar nas

"calhas de roda" (que o destino fatalmente traçou) para "entreter a razão".

– Referência à função lúdica da poesia, que começa na fruição de que o próprio poeta goza, no ato da criação

artística.

– São também aqui marcados os dois polos em que se processa a criação do poema: o "coração" (as

sensações donde o poema nasce) e a "razão" (a imaginação, onde o poema é inventado).

Fecha-se neste fim do poema como que um círculo cuja linha limite marca uma pista sem fim em que

nunca se esgota a dinâmica do jogo sensação-imaginação.

Aspeto morfossintático

– Polissíndeto (através da coordenativa "e") das três estrofes do poema, impondo não só a divisão do texto

em três partes lógicas, mas também sugerindo uma sequência lógica no desenvolvimento do assunto.

– Verbos, com exceção da forma "teve" (perfeito), no tempo presente, o que está de acordo com a natureza

teórica do poema, que é logo anunciada pelo título "Autopsicografia" (estudo que o poeta faz do fenómeno

psicológico que nele se passa no ato da criação artística, portanto no tempo presente). A forma do perfeito

"teve" explica-se porque é exigida para marcar a prioridade temporal em que o poeta experimentou as suas

dores em relação ao tempo (presente) em que o leitor experimenta a "dor lida". A expressão infinitiva "a

entreter" apresenta-se com um nítido aspeto durativo, insinuando a repetição continuada do processo criativo.

Note-se a insistência do poeta no processo mais importante da criação poética: o fingimento. Este processo é

marcado pelas formas verbais "finge" e "fingir" e pelo substantivo "fingi dor". O verbo "fingir" (do latim

fingere = fingir, pintar, desenhar, construir) aponta não apenas para disfarçar, mas também para construir,

modelar, envolvendo, assim, todo o processo criativo desenvolvido pelo poeta na produção do poema: o

poeta é um artífice.

- Perífrase "os que leem o que escreve" (para significar "os leitores"), portadora de uma expressividade

especial: aponta para os dois intervenientes fundamentais do processo poético – o emissor (poeta) e os

recetores (leitores).

– Além da reiteração (repetição), já apontada, do verbo "fingir", há ainda a do verbo ("sente", "sentem"), que

não se deve desligar da repetição do substantivo "dor" (três vezes), além de outras três vezes que se repete

por intermédio de pronomes, ou expressões ("que", "as duas", "a que"). A insistência na "dor" e no "sentir"

está de acordo com o facto de o poeta ter tomado a dor como tema exemplificativo da criação poética e pelo

facto de as sensações (o sentir) serem o ponto de partida dessa criação.

– Advérbios: "Finge tão completamente" (poeta); "...deveras sente" (poeta); "... sentem bem" (leitores).

Estes advérbios sugerem a veemência, o rigor com que a sensação da dor se impõe, quer ao poeta, quer aos

leitores. Os advérbios estão pois a marcar a intenção do autor: expor a sua teoria poética com rigor. O ato de

fingir é tão importante que o poeta o superlativou não apenas pela expressão adverbial "tão completamente",

mas também por meio da subordinada consecutiva "...que chega a fingir...".

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– Duas metáforas, de valor altamente simbólico, que se encontram na última estrofe: "calhas de roda" e

"comboio de corda".

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Isto

Dizem que finjo ou minto

Tudo que escrevo. Não.

Eu simplesmente sinto

Com a imaginação.

Não uso o coração.

Tudo o que sonho ou passo,

O que me falha ou finda,

É como que um terraço

Sobre outra coisa ainda.

Essa coisa é que é linda.

Por isso escrevo em meio

Do que não está ao pé,

Livre do meu enleio,

Sério do que não é.

Sentir? Sinta quem lê!

Assunto: o fingimento e a criação artística; a racionalização dos sentimentos (sentir com a imaginação, não

usando o coração).

Divisão do poema: duas primeiras quintilhas - negação de que finge ou mente; justificação de que o que faz

é a racionalização dos sentimentos na busca de algo mais belo mas inacessível;

Última quintilha - argumentação de que ao escrever se distancia da realidade, intelectualizando os

sentimentos e elaborando uma nova realidade – a arte.

Sentido da 1.ª estrofe: reconhecimento do que dizem e a negação de que finge ou mente "sinto com a

imaginação/ Não uso o coração" – expressão da intelectualização do sentimento.

Comparação da 2.ª estrofe: "Tudo o que sonho ou passo/ O que me falha ou finda" (primeiro termo da

comparação) "(...) um terraço/ Sobre outra coisa ainda" (segundo termo), ou seja, o mundo real ("terraço") é

reflexo de ("Sobre outra coisa ainda") um mundo ideal ("essa coisa é que é linda" – conceito oculto ou

platónico, mundo que fascina o sujeito poético).

Situação a que chega o sujeito poético - "livre de meu enleio" (desligado do tema). Há um ato de

fingimento de pura elaboração estética e o leitor que sinta o que ele comunica apesar de não sentir ("Sentir?

Sinta quem lê!")

O poema "Isto" apresenta-se como uma espécie de esclarecimento em relação à questão do

fingimento poético enunciada em "Autopsicografia" – não há mentira no ato de criação poética; o fingimento

poético resulta da intelectualização do "sentir" da racionalização. Aqui, o sujeito poético vai mais longe já

que, negando o "uso do coração", aponta para a simultaneidade dos atos de "sentir" e "imaginar",

apresentando-nos a obra poética como uma espécie de síntese onde a sensação surge filtrada pela imaginação

criadora.

A comparação presente na 2.ª estrofe (vv.6-9) evidencia o facto de a realidade que envolve o sujeito

poético ser apenas a "ponte" para "outra coisa": a obra poética, expressão máxima do Belo.

Na 3.ª estrofe, introduzida pela expressão "Por isso" de valor conclusivo/ explicativo, o sujeito

poético recusa a poesia como expressão imediata das sensações. O sentir, no sentido convencional do termo,

é remetido para o leitor.

“Fingir” não é o mesmo que "mentir" – é a tese defendida.

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2. Fernando Pessoa – Ortónimo – O eu fragmentado

“Sou um evadido”

Sou um evadido.

Logo que nasci

Fecharam-me em mim,

Ah, mas eu fugi.

Se a gente se cansa

Do mesmo lugar,

Do mesmo ser

Por que não se cansar?

Minha alma procura-me

Mas eu ando a monte,

Oxalá que ela

Nunca me encontre.

Ser um é cadeia,

Ser eu não é ser.

Viverei fugindo

Mas vivo a valer.

O sujeito poético procura caracterizar a sua realidade fragmentada, servindo-se do campo semântico de

prisão.

Através da reflexão filosófica, a sua opção de fuga aos limites do ser, procura realçar a naturalidade de

cansaço que caracteriza o ser humano e afirma que ser uno é ser prisão e que, por isso, só viverá plenamente fugindo

de si próprio.

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"Não sei quantas almas tenho"

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Não sei quantas almas tenho.

Cada momento mudei.

Continuamente me estranho.

Nunca me vi nem achei.

De tanto ser, só tenho alma.

Quem tem alma não tem calma.

Quem vê é só o que vê,

Quem sente não é quem é,

Atento ao que eu sou e vejo,

Torno-me eles e não eu.

Cada meu sonho ou desejo

É do que nasce e não meu.

Sou minha própria paisagem,

Assisto à minha passagem,

Diverso, móbil e só,

Não sei sentir-me onde estou.

Por isso, alheio, vou lendo

Como páginas, meu ser.

O que segue não prevendo,

O que passou a esquecer.

Noto à margem do que li.

O que julguei que senti.

Releio e digo: "Fui eu"?

Deus sabe, porque o escreveu.

Trata-se de um poema de reflexão por parte de Fernando Pessoa, e não tanto um poema de análise

psicológica da sua mente. É como se a sua obra lhe fosse estranha, quando ele percorre as páginas do seu

passado.

Em Pessoa a obra confunde-se com a vida. Em determinados momentos, Pessoa abdica da vida em

favor da obra (o exemplo maior terá sido Ophélia, a sua única namorada conhecida).

A primeira estrofe mostra aspetos da famosa despersonalização de Fernando Pessoa. Ele diz não

saber quantas almas tem, porque mudou a cada momento. Esta instabilidade é, no entanto, uma instabilidade

de vida e não tanto uma instabilidade de "almas". Certo é que Pessoa, por sempre se expressar por outras

vozes (heterónimas ou pseudónimas), neste momento já não se reconhece –tudo lhe foi sempre estranho,

porque colocou sempre em outras vozes os seus problemas. Esta exteriorização das coisas na sua vida torna-o

estranho à própria vida – parece-lhe que foi outro que a viveu. Este sentimento é uma proteção psicológica de

Pessoa, de se recolher para dentro para não sofrer com a solidão.

A expressão "De tanto ser, só tenho alma", sendo curiosa, parece de fácil expressão. Pessoa quer

dizer que não sente ter vida, mas só alma – ou seja, a sua vida foi e é toda pensada, toda racionalizada.

Como sempre passou para o pensamento tudo o que lhe acontecia, tudo o que sente é na alma, e parece que

nada sente no corpo. Esta divisão corpo/alma é essencial no todo da obra de Pessoa e reflete uma das

características da mesma – a extrema racionalização, o reduzir de todos os impulsos a uma inteligência

recusando as emoções puras.

Mas Pessoa sabe que a vantagem de tudo ser inteligência tem desvantagens: "Quem tem alma não

tem calma", diz ele. Quer dizer que quem pensa não tem paz – eis um novo princípio de grande

importância: é inconciliável pensar e viver, ou se vive sem pensar ou se pensa sem viver. Viver a vida ou

pensar a vida é um oposto que sempre desafia Fernando Pessoa.

"Quem vê é só o que vê, / Quem sente não é quem é," marca ainda mais esta oposição viver/pensar.

"Quem vê" é aquele que vive só a vida e não a pensa (sente). "Quem sente não é quem é" – quer dizer que o

pensamento impede a ação na vida, isto é, viver e pensar tornam-se inconciliáveis.

Na 2.ª estrofe, Pessoa sentindo essa oposição pensar/viver transforma-se no papel, nas personagens

dos seus heterónimos. E os heterónimos nascem das necessidades da sua vida – são filtros para o que vai

acontecendo. À medida que são apresentados desafios a Pessoa, ele enfrenta-os indiretamente pelos

seus filtros literários, pelas suas personagens literárias. Por isso ele diz que os sonhos e desejos é "do

que nasce" e não dele. Ele como que apenas assiste à passagem da sua vida, porque se recusa vivê-la

simplesmente. Tudo é analisado, dissecado, e tudo por isso se torna falso, uma ilusão de realidade

simbolizada. Pessoa é "diverso, móbil e só". Ou seja, multiplica-se, viaja, e está no final sozinho, sem salvação.

Esta instabilidade, redução do um aos muitos, acaba por significar que ele deixa de sentir – "Não sei sentir-

me onde estou". A vida é-lhe estranha e como a vida os sentimentos. Deixar de sentir é também deixar de

viver – é alienar-se de tudo, proteger-se da vida, dos perigos, de tudo, para se recolher dentro de si, e por

detrás dos seus personagens literários.

Na 3.ª estância, "Alheio", ele lê então "como páginas" o seu "ser". A sua vida confunde-se com a

sua obra – tanto que Pessoa diz ler como páginas o seu ser. A vida foi racionalizada, foi reduzida a

linguagem escrita, transferida para os seus personagens literários, que acabam por viver a sua vida por si, por

deixá-lo a um canto, reduzido quase a nada enquanto individualidade.

Pessoa-ele-mesmo apenas prevê e esquece. É uma espécie de pivot, de centro físico de tudo o resto,

mas quase sem atividade. Ele é apenas uma "nota à margem" do livro que foi a sua vida. Alheio ao seu

Destino (foi Deus que o escreveu), ele já não distingue quem nele viveu as coisas.

Note-se, ainda, neste poema, a grande solidão de Pessoa – já reduzido a apenas uma nota de margem

na vida (e na sua obra). Pessoa era a pessoa real (passando o pleonasmo), mas aqui torna-se evidente que a

pessoa real foi obliterada, desmultiplicada em muitos outros, até que quase nada restasse do original. Nada

para pensar, e sobretudo nada que sentisse o mundo à sua volta. Pessoa-ele-mesmo morreu para o mundo e já

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nada sente, e sobretudo o que sente é que a vida já não pode ser vivida sem ser por intermédio de um outro

eu. E isto quer dizer que nele mesmo a esperança de viver estava definitivamente perdida.

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”Viajar! Perder países!”

Viajar! Perder países!

Ser outro constantemente,

Por a alma não ter raízes

De viver de ver somente!

Não pertencer nem a mim!

Ir em frente, ir a seguir

A ausência de ter um fim,

E a ânsia de o conseguir!

Viajar assim é viagem.

Mas faço-o sem ter de meu

Mais que o sonho da passagem.

O resto é só terra e céu.

Trata-se de um poema ortónimo de Pessoa, escrito já em 1933. É um poema claramente de

desilusão, de perda de esperança.

O ato de viajar ilustra a incapacidade de sentir as coisas apenas por aquilo que elas são. É assim

compreensível que Pessoa veja no ato de viajar constantemente o ato de negar a paz de existir sem o

movimento. "Ser outro constantemente" é assumir que a viagem anula a individualidade, porque o ser tem de

interpretar as paisagens e assim anular-se a si mesmo.

Mas por outro lado a viagem – se é que anula a individualidade do ser – também apresenta um

desafio inovador: viajar é uma espécie de ferramenta que permite o não-ser. Ao viajar o homem anula a sua

própria individualidade e isso pode, pelo menos para Pessoa, apresentar um lado positivo. Estar anulado é

deixar de sentir a dor de viver: viajar é deixar de ser quem se é, para ser transportado ao puro ato de observar

as paisagens da viagem. É viver nas paisagens e não em si mesmo. Ter um fim: um destino, torna-se numa

ausência, porque a ausência está presente na negação do ser – a ânsia de conseguir chegar torna-se a única

preocupação dessa vida de viajante.

Vemos no entanto que Pessoa – ao teorizar sobre a viagem – assume também que a sua teoria se

afasta da sua prática. Ele diz-nos o que é, na teoria, viajar, mas na verdade ele ao viajar pode não sentir

inteiramente o que nos disse. Ele tem aquele "sonho da passagem", o ideal do viajante que anula tudo o resto

em favor da paisagem, mas não quer dizer que sempre sinta isso. Há porventura momentos em que ele ainda

não se consegue anular – e em que tudo é apenas "terra e céu". Aqui, como em outros instantes, há o

inevitável confronto das teorias Pessoanas com a realidade – no ponto exato em que o ideal confronta o real.

3. Fernando Pessoa – Ortónimo – A Dor de Pensar

"Ela canta, pobre ceifeira"

Ela canta, pobre ceifeira,

Julgando-se feliz talvez;

Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia

De alegre e anónima viuvez,

Ondula como um canto de ave

No ar limpo como um limiar,

E há curvas no enredo suave

Do som que ela tem a cantar.

Ouvi-la alegra e entristece,

Na sua voz há o campo e a lida,

E canta como se tivesse

Mais razões p’ra cantar que a vida.

Ah, canta, canta sem razão!

O que em mim sente 'stá pensando.

Derrama no meu coração

A tua incerta voz ondeando!

Ah, poder ser tu, sendo eu!

Ter a tua alegre inconsciência,

E a consciência disso! Ó céu!

Ó campo! Ó canção! A ciência

Pesa tanto e a vida é tão breve!

Entrai por mim dentro! Tornai

Minha alma a vossa sombra leve!

Depois, levando-me, passai!

O poema pode ser dividido em duas partes:

1- A primeira são as três quadras iniciais, relatando o poeta o que vê, uma ceifeira que canta (e é

sobre ela que a focalização dele incide):

Nesta primeira parte predomina o presente de carácter durativo: a passagem do tempo sugere o

deslizar do canto da ceifeira na imaginação do poeta, que nela medita; a pontuação é igualmente

representativa da descrição que é feita; no entanto, é necessário referir que esta descrição seria objetiva se o

sujeito poético não introduzisse a sua perspetiva (vv. 2, 11 e 12). Esta subjetividade vai adensar-se de

seguida.

Uma sensação de tristeza e de angústia atravessa as primeiras quadras, apesar do canto da ceifeira

ser considerado de forma positiva: “pobre ceifeira, / Julgando-se feliz talvez”; "alegre e anónima viuvez”;

“Ouvi-la alegra e entristece”; “E canta como se tivesse / Mais razões p’ra cantar que a vida”.

A voz da ceifeira, que se espalha pelo ar “como um canto de ave”, desperta no poeta sentimentos

contraditórios que remetem para a vida pobre e dura daquela mulher, apesar de a cantiga ser,

aparentemente, alegre: “e a sua voz cheia / De alegre e anónima viuvez”; “Ouvi-la alegra e entristece, /

Na sua voz há o campo e a lida”.

2 - A segunda parte é constituída pelas três quadras finais, onde o poeta tece considerações sobre

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a simplicidade da ceifeira e, sobretudo, sobre si próprio. Assim, esta 2.ª parte é muito mais subjetiva do

que a primeira; o objeto de análise é o sujeito poético por oposição à simplicidade da ceifeira.

Predominam o imperativo e as frases exclamativas pois o poeta dirige-se diretamente à ceifeira e

aos elementos da natureza: “Ah, canta, canta sem razão!”; “Ah, poder ser tu, sendo eu!”; “Ó céu! / Ó

campo! Ó canção!”

Tendo sido um dos poetas que mais se serviu da inteligência, Pessoa sempre se sentiu torturado por

ser um ser pensante. Por isso aspira à inconsciência da ceifeira quando ouve a sua “incerta voz” (alegre e

triste): “Ah, poder ser tu, sendo eu! / Ter a tua alegre inconsciência / E a consciência disso!”

Deste modo, o poeta reflete sobre a intelectualização do sentir (“O que em mim sente ‘stá

pensando”), sobre a “dor de pensar” (“A ciência / Pesa tanto e a vida é tão breve!”), desejando a

inconsciência: “Tornai / Minha alma a vossa sombra leve! / Depois, levando-me, passai!” (tal como a voz

da ceifeira que se espalha no ar). No entanto, o poeta aspira ao impossível pois ter consciência da

inconsciência, é deixar de ser inconsciente. Por ter consciência desta impossibilidade, o poeta apela ao

céu, ao campo e à canção.

A temática da fragmentação do “eu” é evidente: “Ah, poder ser tu, sendo eu! / Ter a tua alegre

inconsciência / E a consciência disso!” O próprio pensamento é fonte de sofrimento (dor de pensar); por

isso, o poema culmina na última quadra com um desejo de dispersão, de aniquilamento.

Recursos estilísticos:

Antítese - versos 4, 9, 18-19; Dupla adjetivação – verso 4; Comparação – versos 5, 6; Invocação – versos 13,

15 e seguintes; Metáfora – versos 5, 7, 15, 16; Exclamações e verbos no imperativo – versos 13, 15-16 e

seguintes.

Aspecto formal: poema composto por seis quadras em versos octossílabos. O esquema rimático de todas as

quadras é ABAB e a rima é cruzada.

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”Gato que brincas na rua”

Gato que brincas na rua

Como se fosse na cama

Invejo a sorte que é tua

Por que nem sorte se chama

Bom servo das leis fatais

Que regem pedras e gentes,

Que tens instintos gerais

E sentes só o que sentes.

És feliz porque és assim,

Todo o nada que és é teu.

Eu vejo-me e estou sem mim,

Conheço-me e não sou eu.

Podemos imaginar Fernando Pessoa do alto da sua janela, num qualquer dos seus quartos alugados,

vendo o rebuliço normal da cidade e sobretudo o pormenor indecifrável das pequenas coisas. Entre elas

estaria o pequeno gato a brincar na rua que dava para a sua casa.

Este poema aborda não a "dor de pensar" que invade a mente de Pessoa e o impede de viver

plenamente a vida, mas antes a maneira como Pessoa observava as coisas fúteis da vida: é nos pormenores

ínfimos que a análise filosófica de Pessoa se extrema e encontra os maiores significados.

Este poema lembra o poema Tabacaria, onde a certo ponto Pessoa move a sua atenção para a

rapariga que come chocolates, absorta do resto do mundo. É esta falta de preocupação (o ser "bruto", que

aparece por ex. em Ricardo Reis), que espanta Pessoa e o intriga - sendo que também faz nascer nele a

inveja.

Na 1.ª estância, Pessoa inveja realmente "a sorte" do gato, que é a sorte de ser inconsciente e

poder brincar sem pensar em mais nada - brinca na rua "como se fosse na cama".

Na 2.ª, o gato é "bom servo das leis fatais", ou seja, cumpre o seu destino sem se opor

minimamente a ele - cumpre o desejo mais alto de Reis, que é o de sentir o destino como coisa inevitável

enquanto se cumpre. O assumir deste destino universal, que rege "pedras e gentes" é um motivo de alta

nobreza. Mas o homem é incapaz (a menos que seja "bruto") de ter esta atitude, porque alguns homens (como

Pessoa), não têm apenas os "instintos gerais", que regem o gato - que sente "só o que sente" e nada mais.

Na 3.ª estrofe, a razão da inveja do sujeito poético, mais do que inveja pela falta de preocupação, é

inveja pela simples felicidade que existe quando se vive plenamente as coisas sem pensar. "És feliz

porque és assim" é uma expressão de profunda miséria, de quem observa e tem a consciência plena que é

infeliz. Embora o gato seja apenas "o nada", ele é-o plenamente, enquanto Pessoa sente que se conhece e

conhece a sua situação, mas não consegue ser feliz assim.

No paradoxo pensar/viver, o poeta inveja a felicidade alheia, seja de pessoas ou animais, porque a

felicidade alheia é inatingível e baseada em princípios que ele sente nunca poder alcançar. Sobretudo

aqueles princípios de simplicidade, acessíveis apenas aos "brutos", ou aos animais, como o pequeno gato que

brinca tranquilo na rua. Pessoa sabe que nunca poderá ser apenas um "bruto", muito menos um animal - é

este peso enorme que esmaga a sua esperança em ser feliz.

Fernando Pessoa – Ortónimo – A Dor de Pensar – A solidão de ser

”Não sei ser triste a valer…”

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Não sei ser triste a valer

Nem ser alegre deveras.

Acreditem: não sei ser.

Serão as almas sinceras

Assim também, sem saber?

Ah, ante a ficção da alma

E a mentira da emoção,

Com que prazer me dá calma

Ver uma flor sem razão

Florir sem ter coração!

Mas enfim não há diferença.

Se a flor flore sem querer,

Sem querer a gente pensa.

O que nela é florescer

Em nós é ter consciência.

Depois, a nós como a ela,

Quando o Fado a faz passar,

Surgem as patas dos deuses

E ambos nos vêm calcar.

'Stá bem, enquanto não vêm

Vamos florir ou pensar.

O poema que se inicia com "Não sei ser triste a valer..." é um poema ortónimo de Fernando Pessoa

que toca um tema querido à vertente ortónima da sua poesia - a oposição entre pensar e sentir, ou mais

exatamente entre pensar e viver.

A temática é desenvolvida pela análise dialética e comparativa, entre o ato de pensar (humano) e o

ato de florir (natural). Pessoa tenta, na comparação, estabelecer uma linha condutora entre o absurdo de

pensar perante o absurdo de florir - ambas as ações serão afinal naturais e semelhantes? Dizendo isto, Pessoa

tira o conteúdo revolucionário do pensar e assemelha-o ao ato simples do florir. Assim pensar, como florir,

não tem um significado intrínseco, uma finalidade lógica superior. Pensar é, como florir, uma ação sem

significado além do significado que encerra em si mesma - esgota-se portanto no seu próprio ato, não tem

um seguimento e uma conclusão e aí reside o seu absurdo.

A mudança entre a interrogação (1.ª estrofe) e a exclamação (2.ª estrofe), que passa depois para um

tom declarativo é de simples análise. Pessoa tenta nas duas primeiras estrofes estabelecer a sua comparação -

a linha condutora, pelas evidências e semelhanças entre pensar e florir. Por isso, primeiro interroga e

depois afirma para si mesmo a realidade. As restantes estrofes são já produto de uma conclusão do poeta -

são, à sua maneira, um ato de pensar que também se extingue em si mesmo e em que "se pensa o

pensamento". Por isso, o tom declarativo final, de conclusão, dá uma continuação lógica às duas primeiras

estrofes.

O significado da quarta estrofe é para reforçar a sua ideia que o pensar, tal como o florir, é um ato

absurdo, sem final definitivo. Pessoa recorre a uma imagem forte – o espezinhar da flor pelos pés de

alguém é o mesmo que acontece com o pensar. Ou seja, quem pensa (Pessoa ele mesmo) é esmagado pela

vida, porque a vida não é para aqueles que pensam, é precisamente para aqueles que ignoram o

pensamento e apenas vivem. Pensar é sofrer. Todas as análises e conclusões são infrutíferas, porque no

final são espezinhadas pelo destino, pelos deuses.

NOTA - A identidade perdida, a consciência do absurdo da existência, a tensão

sinceridade/fingimento, consciência/inconsciência, sonho/realidade, a oposição sentir/pensar,

pensamento/vontade, esperança/desilusão, o anti-sentimentalismo: intelectualização da emoção, os estados

negativos: solidão, cepticismo, tédio, angústia, cansaço, desespero, frustração, a inquietação metafísica – dor

de viver e a auto-análise são características de Pessoa ortónimo, e, cada uma delas está presente neste poema,

relacionadas entre si.

_________________________________________________________________________ Fernando Pessoa – Ortónimo – A Dor de Pensar – Sonhar

“Contemplo o que não vejo”

Contemplo o que não vejo.

É tarde, é quase escuro,

E quanto em mim desejo

Está parado ante o muro.

Por cima o céu é grande;

Sinto árvores além;

Embora o vento abrande,

Há folhas em vaivém.

Tudo é do outro lado,

No que há e no que penso.

Nem há ramo agitado

Que o céu não seja imenso.

Confunde-se o que existe

Com o que durmo e sou

Não sinto, não sou triste,

Mas triste é o que estou.

O poema "Contemplo o que não vejo" é um poema ortónimo de Fernando Pessoa, datado de

7/9/1933.

Nos últimos meses de 1933, Pessoa vivia uma grande crise psíquica, que, afectando a sua vida

quotidiana, lhe trouxe uma grande onda de criatividade literária. Tinha quebrado a sua relação com Ophélia

em 1931 e tinha grandes problemas em conseguir reunir a sua obra para publicação, vivendo igualmente com

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grandes dificuldades financeiras. Adicionando a este clima depressivo, Salazar, eleito Presidente do Conselho

em Julho de 1932, começara a impor legislação restritiva da liberdade de expressão em Portugal.

O poeta, em 1933, está assim numa fase tardia da sua vida, completamente desiludido com ela e

sem ilusões quanto ao seu futuro imediato. Este poema é reflexo dessa mesma desilusão.

Na primeira estrofe, Pessoa coloca-se metaforicamente atrás de um muro que na realidade é a

fronteira entre o seu desejo e a realidade da sua vida. A contemplação do que não vê, é a visão de uma

realidade apenas imaginada, irreal. Provavelmente à noite - como de hábito escrevia – o poeta acordado

imagina o que poderia ter sido a sua vida. O muro ao pé do qual se imagina parado é a óbvia manifestação de

tudo o que o impediu sempre de realizar os seus sonhos.

"Tudo é do outro lado" – como que dizendo que nada é acessível, nada pode ser real. O sujeito

poético coloca-se numa posição extremamente isolada, solitária, e toda a realidade, todo o mundo é dividido

entre o "eu" e o "resto", os "outros". Ele adivinha a possibilidade de esse mundo inacessível ser real –

adivinha o céu por cima do muro, ou seja, que o outro lado do muro é real e apenas inacessível. É aliás o

facto simples de isso tudo existir e de apenas lhe ser inacessível que torna tudo mais doloroso.

Não há tempo neste poema para uma explicação demorada sobre as causas deste isolamento. Esta é

aliás uma das características do ortónimo – a simplicidade dos versos curtos e pouco expansivos, que dizem

apenas o necessário, numa forma condensada e rápida, intelectualmente sintética. Mas, de certa forma, a

explicação torna-se redundante perante a mera escala do sofrimento e do facto de tudo isto lhe ser

inescapável.

O poeta privilegia porém, na última estrofe, em forma de conclusão, a revelação de como tudo isto o

afecta pessoalmente. Ele diz que a sensação de perda se tornou tão familiar que se confunde com ele próprio.

Ele é o que sente que perdeu. Ele assumiu essa perda de esperança no seu íntimo e não pode recusá-la

enquanto parte essencial do seu ser. O seu falhanço é quem ele é – a consequência imediata disso é que ele

deixou de sentir: "Não sinto, não sou triste, / Mas triste é o que estou". Estes últimos dois versos caracterizam

o estado emocional (e psíquico) de Fernando

Pessoa no fim da sua vida (morreria dali a 2 anos, em 1935). A dor foi tão intensa que ele chegou a

um ponto em que teve de deixar de a sentir. E quem deixar de sentir dor, deixa de sentir também tudo o resto.

A sua vida era uma vida dormente, sombria, sem emoção. Sabia que estava triste, mas não se sentia triste, de

tal forma a desilusão com a vida o tinha "morto por dentro".

Bóiam leves desatentos

Bóiam leves desatentos,

Meus pensamentos de mágoa,

Como, no sono dos ventos,

As algas, cabelos lentos

Do corpo morto das águas.

Bóiam como folhas mortas

Á tona de águas paradas

São coisas vestindo nadas,

Pós remoinhando nas portas

Das casas abandonadas.

Sono de ser, sem remédio,

Vestígio do que não foi,

Leve magoa, breve tédio,

Não se pára, se flui;

Não se existe ou de doí.

Este poema foi feito para caracterizar os pensamentos do sujeito poético que eram “leves” e

“desatentos”, semelhantes a “algas” ou “cabelos” que “bóiam” lentamente “à tona de águas”; são as coisas

insignificantes como “pós” ou como “nadas”. O sujeito poético, observando o seu mundo inteiro, redu-lo a

uma insignificância insuportável. Sobressaem, na caracterização dos pensamentos, os seguintes recursos: a

metáfora, a comparação, a adjetivação expressiva e o paradoxo.

O sujeito poético visiona neste poema um espelho coberto de elementos físicos sem vida, que

fazem lembrar desperdício e que não permitem o encontro consigo mesmo. Deste desencontro resulta a

angústia, a “mágoa”, o tédio, a dor, a frustração e o sentimento de vazio que dominam o sujeito poético.

O que me dói não é - Fernando Pessoa - Cancioneiro- 05/09/1933

______________________________________________________________________

O que me dói não é

O que há no coração

Mas essas coisas lindas

Que nunca existirão…

São as formas sem forma

Que passam sem que a dor

As possa conhecer

Ou as sonhar o amor.

São como se a tristeza

Fosse árvore e, uma a uma,

Caíssem suas folhas

Entre o vestígio e a bruma.

"Poema tardio de Fernando Pessoa, escrito em nome próprio e datado de 1933, "O que me dói não

é..." é um poema típico da fase tardia da produção poética ortónima de Fernando Pessoa.

A poesia ortónima de Fernando Pessoa segue um ritmo próprio e diferenciado do ritmo das obras

paralelas dos seus heterónimos. De certo modo é, como Pessoa disse, ainda Fernando Pessoa mas estripado

de todas as dimensões que eram usadas para escrever em nome dos heterónimos.

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Resta Fernando Pessoa ele mesmo, pouco mas ainda muito. Mais racional e frio, algo

intelectual e pensativo, sem chegar a assumir a sua tristeza num desespero real e destrutivo.

Cabisbaixo mas quase indefinido nas suas palavras bem medidas.

Este poema em análise é suma perfeita de todos estes vectores complementares. Pessoa fala

da sua tristeza, mas de forma intelectual, sem assumir um sentimento seja ele qual for. Como se

conseguisse colocar a sua tristeza debaixo de um microscópio e a analisasse a frio, à maneira de

uma autópsia, para melhor compreender o que sentia.

Como análise post-mortem que é, vê-se logo que se torna infrutífera. Querer compreender

o que é depois de esse ser estar morto não traz vantagem qualquer a nenhum ser que está vivo.

Matar para compreender não é, em rigor, razão suficiente para querer saber mais, apenas menos.

Pessoa queixa-se da ausência, do que não tem. E essa queixa é dirigida às "formas sem

forma que passam", sem que a dor as conhecesse ou o amor as faça suas. Queixa-se não do que "há no coração", mas das "coisas lindas que nunca existirão".

Queixa-se afinal de um futuro que tema nunca vai chegar. Estamos em 1933 e Fernando Pessoa tem

2 anos de vida restante. Estaria já certo do seu destino? Que acabaria sozinho e sem ambições concretas, sem

estar feliz? Talvez. Talvez a sua poesia sempre refletisse este medo e esta certeza negra - de que os seus

sonhos teriam sido sempre demasiado altos para alguma vez se realizarem e que, na verdade, a sua felicidade

andava na tal bruma que ele refere, mas numa bruma rasteira, baixa demais para os seus olhos sempre em

busca das estrelas.

A sua busca pelas formas indefinidas, do sonho ou da realidade, marca o seu percurso terreno.

Sejam estas formas as pessoas que passavam ou as ideias e as verdades, nem interessa. São formas porque

são confirmações da sua incapacidade de as capturar e de as fazer deixar de ser apenas formas. Toda a forma

é uma indefinição, uma falta de humanidade, de calor. Tem forma apenas aquilo que não tem conteúdo, que é

vazio, linhas, sem dentro, só fora.

A tristeza que ele sente, equipara-a a estas formas a caírem em forma de folhas à sua volta, num

ambiente frio e desolado. A sua vida é vivida no meio deste desespero racional em que se encontra preso e

para o qual nunca achará uma saída racional. Porventura porque nenhuma saída racional poderá alguma vez

existir para um homem desesperado com a realidade. Mas a saída emocional era-lhe já impossível - ele estava

demasiado esvaziado, era afinal também já uma forma, como as formas que desejava possuir e compreender,

era já só fora, linhas, sem dentro, sem conteúdo, frio e distante.

No vestígio e na bruma vivia os seus dias inconsequentes. Mesmo a sua obra talvez o desanimasse e

apenas um pequeno, indistinto timbre de imortalidade o fizesse ainda respirar e trabalhar pelas noites frias da

cidade, do alto da sua janela para a rua cheia de Universo. Ainda assim insistia em ficar vivo enquanto

pudesse. Vivo enquanto todas as folhas não caíssem da sua árvore da tristeza e deixassem sequer de existir

razões para ser apenas forma e, que pouco pedem as formas, só para existir.

Tenho tanto sentimento - Fernando Pessoa - Cancioneiro- 18/09/1933

Tenho tanto sentimento

Que é frequente persuadir-me

De que sou sentimental,

Mas reconheço, ao medir-me,

Que tudo isso é pensamento,

Que não senti afinal.

Temos, todos que vivemos,

Uma vida que é vivida

E outra vida que é pensada,

E a única vida que temos

É essa que é dividida

Entre a verdadeira e a errada.

Qual porém é a verdadeira

E qual errada, ninguém

Nos saberá explicar;

E vivemos de maneira

Que a vida que a gente tem

É a que tem que pensar.

4. A nostalgia da infância

Chuva Oblíqua

O maestro sacode a batuta,

E lânguida e triste a música rompe…

Lembra-me a minha infância, aquele dia

Em que eu brincava ao pé dum muro de quintal

Atirando-lhe com uma bola que tinha dum lado

O deslizar dum cão verde, e do outro lado

Um cavalo azul a correr com um jockey

amarelo…

Do meu quintal… E a música atira com bolas

À minha infância… E o muro do quintal é feito de

gestos

De batuta e rotações confusas de cães verdes

E cavalos azuis e jockeys amarelos…

Todo o teatro é um muro branco de música

Por onde um cão verde corre atrás da minha saudade

Da minha infância, cavalo azul com um jockey

amarelo…

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Prossegue a música, e eis na minha infância

De repente entre mim e o maestro, muro branco,

Vai e vem a bola, ora um cão verde,

Ora um cavalo azul com um jockey amarelo…

Todo o teatro é o meu quintal, a minha infância

Está em todos os lugares, e a bola vem a tocar

música,

Uma música triste e vaga que passeia no meu

quintal

Vestida de cão verde tornando-se jockey

amarelo…

(Tão rápida gira a bola entre mim e os

músicos…)

Atiro-a de encontro à minha infância e ela

Atravessa o teatro todo que está aos meus pés

A brincar com um jockey amarelo e um cão verde

E um cavalo azul que aparece por cima do muro

E dum lado para o outro, da direita para a esquerda,

Donde há árvores e entre os ramos ao pé da copa

Com orquestras a tocar música,

Para onde há filas de bolas na loja onde a comprei

E o homem da loja sorri entre as memórias da minha

infância…

E a música cessa como um muro que desaba,

A bola rola pelo despenhadeiro dos meus sonhos

interrompidos,

E do alto dum cavalo azul, o maestro, jockey amarelo

tornando-se preto

Agradece, pousando a batuta em cima da fuga dum

muro,

E curva-se, sorrindo, com uma bola branca em cima da

cabeça,

Bola branca que lhe desaparece pelas costas abaixo…

- Sexta parte: . Verificada a impossibilidade, ao longo das cinco partes anteriores, de encontrar a Totalidade no mundo

exterior, no interior de si próprio ou na reunião de elementos masculinos e femininos, vai o poeta, agora,

procurá-la, na evocação da infância.

. A recordação é desencadeada pela audição de música, tocada por uma orquestra imaginária, sob a batuta

de um maestro (poeta). E, então, revê-se o muro do quintal onde, na infância, jogava a bola que, pela sua

esfericidade, faz lembrar a origem, a perfeição, a completude. Enquanto a música dura, todo o universo,

com as suas peripécias e figuras, desfila perante nós.

. No início da última estrofe, a música cessa, as cores apagam-se, restam o preto e o branco. A bola, agora

branca, da infância (perfeição da inocência) passa para o “lado de lá”, pelas costas abaixo do maestro-poeta.

Perdida a infância, jamais se poderá recuperar a Totalidade..

Pobre velha música!

Pobre velha música!

Não sei por que agrado,

Enche-se de lágrimas

Meu olhar parado.

Recordo ouvir-te.

Não sei se te ouvi

Nessa minha infância

Que me lembra em ti.

Com que ânsia tão raiva

Quero aquele outrora!

E eu era feliz? Não sei;

Fui-o outrora agora.

O poema "Pobre velha música" é um poema ortónimo de Fernando Pessoa, sem data, mas

publicado na Revista Athena em Dezembro de 1924.

Como em muitos outros poemas ortónimos (escritos em seu próprio nome), Pessoa usa a temática

da sua infância, em contraposição com o presente, considerando sempre a infância como um "período

dourado" da sua vida, que já não vai regressar. Neste caso é a "pobre velha música" que simboliza esse

período. Sabemos aliás que a mãe de Pessoa tocava piano.

- Esta composição poética é constituída por três quadras de versos de seis sílabas métricas

(hexassílabos).

- Na primeira estrofe, o sujeito poético realça a temática da infância que não é mais do que um

paraíso perdido. Isto faz com que ele apresente sentimentos de angústia e nostalgia. Quando ouve a música,

lembra-se do passado e chora com saudades desse tempo. No primeiro verso desta estrofe, encontramos

uma dupla-adjetivação anteposta (“Pobre velha música!” – a infância já está longe e o hábito de ouvir

música também).Pessoa introduz-nos, assim, o tema do poema, lembrando a "velha música", provavelmente

tocada pela sua mãe na sua infância, talvez ainda antes de sair de Lisboa para Durban. A lembrança, embora

seja talvez de um período feliz, traz-lhe uma grande tristeza, porque está associada a uma idade perdida, que

nunca mais regressará. O início do poema traduz também o uso de duas figuras de estilo, personificação e

hipérbole (a "pobre e velha música"). A parte final do poema parece conter uma anástrofe: troca da ordem

das palavras, quando normalmente se diria "o meu olhar parado enche-se de lágrimas".

- A segunda estrofe é iniciada com a recordação de tempos passados, onde ouvia a música com

outros sentimentos. Existe uma dúvida constante pois como a sua infância não foi alegre, o sujeito lírico

acha que não a viveu. Pessoa, ao recordar, no entanto, sente uma estranheza comum. O facto é que é ele que

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sente, mas quem na realidade sentiu verdadeiramente o sentido da música foi ele mas numa outra idade. A

lembrança é como se fosse uma experiência em segunda mão, que só pode ser estranha à verdade do que se

sente. O "outro" era ele enquanto criança, e ele recorda-se dele próprio enquanto criança a ouvir a música.

Há aqui, mesmo que de maneira menos óbvia, uma antítese entre passado e presente.

- Na terceira estrofe, o poeta revela o desejo de regressar ao passado talvez devido ao facto de não

ter tido infância e pretender ver como ela é, mas sabe esse regresso impossível. Simultaneamente, ele tem

consciência que mesmo que conseguisse regressar não conseguiria ser feliz agora. O seu desejo projeta-se

num plano temporal impossível de realizar: ele ser criança então, mas adulto agora, ao mesmo tempo. O

paradoxo é explícito quando ele diz: "fui-o outrora agora”, que simboliza a fusão entre o passado e o

presente.

Assim, o tempo é abordado através de uma perceção sensorial e de uma perceção cognitiva.

Podemos observar que, nos 5 primeiros versos, os verbos estão empregados no presente e, a partir daí, há

uma mistura dos tempos verbais que evidencia o desdobramento de um conflito que representa a antítese

temporal: o passado, que se apresenta através da memória de Fernando e o presente, que é contaminado pela

sua própria emoção. Há a radicalização da razão em conflito entre o que ele viveu antes e o que ele vive

agora.

"Com que ânsia tão raiva" - O emprego do vocábulo raiva nesse verso configura a intensidade

dramática, centrada na experiência entre o ser do poeta e o tempo.

"E eu era feliz? Não sei;"_ Ele nem sabe se era feliz e nem diz se era porque quer evidenciar que

felicidade é algo abstrato, subjetivo.

"Fui-o outrora agora " _ esse último verso aponta para a total falta de clareza. Não é uma estrutura

comunicativa, linguística ou gramatical. O verso parece desconexo, mas podemos inferir que há um sentido

dentro do contexto do poema _ de que ele foi feliz no passado e agora, ao revivê-lo no presente, sente-se

feliz, ou melhor, ele não é feliz no presente, a felicidade existe na presentificação do passado.

A música, a interlocutora do poeta, não é música, mas uma investigação do tempo, não no plano

cronológico, e sim no plano da existencialidade humana.

Este poema revela, portanto, o esforço de um ser tocado pelo desvendamento de sua subjetividade.

Ao perceber-se senhor de sua temporalidade, afirma-se como o único responsável perante a construção de sua

história. Este último verso_ o desfecho do poema _ baseando-se em uma construção que transgride o código

sintático-semântico, na verdade, é uma estrutura que não pode ser reduzida a um plano de mensagem no qual

os seus termos possam comunicar o que, separadamente, significariam. O verso só vale como um todo, isto é,

dentro do poema.

Sendo assim, não se trata de um passado, de um presente ou de um futuro, mas da simbiose de todos esses

tempos a revelar o estado de verdade do ser perante si mesmo.

"Quando as crianças brincam"

Quando as crianças brincam

E eu as oiço brincar,

Qualquer coisa em minha alma

Começa a se alegrar.

E toda aquela infância

Que não tive me vem,

Numa onda de alegria

Que não foi de ninguém.

Se quem fui é enigma,

E quem serei visão,

Quem sou ao menos sinta

Isto no coração.

O poema "Quando as crianças brincam" é um poema ortónimo de Fernando Pessoa, datado de

5/9/1933.

O tema da infância é um tema recorrente, reconfortante e doloroso para Pessoa.

Fernando Pessoa viveu uma infância feliz até aos 5/6 anos. Com a morte do pai muda-se para África

do Sul, com apenas 8 anos, registando todos os pormenores dessa mudança na sua psique. A barreira dos 6

anos marca o princípio de uma tristeza imensa que sempre o acompanhará. Ele recordará assim, de modo

ambivalente, este período da sua vida. Há poemas em que a infância é recordada como tempo feliz (poema

"quando era criança", por exemplo) e outros em que ela é recordada pelo oposto.

Neste poema, Pessoa recorda a infância tanto pelo que teve de feliz como de infeliz.

Na 1.ª estrofe, a memória visual de Pessoa é ativada pelo movimento das crianças, sobretudo pelos

sons. A memória humana guarda eventos, muitas da vezes, relacionando-os com os sentidos (cheirar algo

pode ativar a nossa memória, assim como ver algo, ou sentir algo com as mãos). Neste caso, é o som que

ativa a memória de Pessoa. A atividade das crianças ativa em Pessoa uma alegria e não propriamente uma

memória imediata.

No caso da 2.ª estrofe, Pessoa tira uma alegria de uma infância que não teve, precisamente porque a

sua própria infância não foi completamente feliz. Não o foi completamente, mas também não o foi totalmente

infeliz. É esta réstia de felicidade, da vida até aos 6 anos, que de certo modo torna Pessoa são, que lhe

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permite lembrar um pouco da felicidade infantil. É a partir deste pouco que Pessoa extrapola o resto - este

pouco serve-lhe para imaginar uma "infância totalmente feliz". É esta "memória projectada" que é dele,

quando ele olha para as crianças. Ele imagina assim como poderia ter tido uma infância totalmente feliz e faz

desta projeção a sua realidade momentânea.

Por isso ele diz que a memória "não foi de ninguém". É uma memória construída, projetada a partir

de uma outra memória parcial.

Na 3.ª estrofe, esta pequena felicidade é o que suporta Pessoa nos momentos mais difíceis. Como

ele, nós também em momentos recordamos a nossa infância, principalmente quando na nossa vida adulta nos

encontramos em dificuldades - a infância é um porto seguro para as inseguranças dos adultos. É na infância

que se define o mais básico dos princípios, valores e traves mestras da nossa personalidade e das nossas

crenças.

Pessoa racionaliza o facto de a emoção o confortar, mas associa a esse conforto a realidade de ele

ser um "enigma" e uma "visão". Para Pessoa a constatação de um facto não se fica apenas por essa mesma

constatação e isso revela a sua necessidade permanente de racionalizar, de manter o controlo da sua mente e

do que o rodeia. Esta necessidade de controlo absoluto é sinal óbvio dessa mesma infância perdida. É o

pequeno rapaz que sentiu todo o seu mundo perder-se subitamente que tenta, enquanto adulto, racionalizar

tudo à sua volta, de maneira progressivamente mais desesperada.

_________________________________________________________________________ A morte da infância - “O Menino de sua mãe”

No plaino abandonado

Que a morna brisa aquece,

De balas trespassado-

Duas, de lado a lado-,

Jaz morto, e arrefece.

Tão jovem! Que jovem era!

(agora que idade tem?)

Filho único, a mãe lhe dera

Um nome e o mantivera:

«O menino de sua mãe.»

De outra algibeira, alada

Ponta a roçar o solo,

A brancura embainhada

De um lenço… deu-lho a criada

Velha que o trouxe ao colo.

Raia-lhe a farda o sangue.

De braços estendidos,

Alvo, louro, exangue,

Fita com olhar langue

E cego os céus perdidos.

Caiu-lhe da algibeira

A cigarreira breve.

Dera-lhe a mãe. Está inteira

E boa a cigarreira.

Ele é que já não serve.

Lá longe, em casa, há a prece:

“Que volte cedo, e bem!”

(Malhas que o Império tece!)

Jaz morto e apodrece

O menino da sua mãe

O poema “O menino de sua Mãe”, publicado na revista Contemporânea, em 1926, é porventura um

dos mais conhecidos dos poemas ortónimos de Pessoa. Quando o publica Fernando tem 38 anos e está num

período de grande criatividade poética. No entanto, este poema dá importância à dor que sempre assolou o

poeta e pensador até ao fim dos seus dias.

É importante saber que Fernando Pessoa vive os primeiros anos da sua vida num idílio familiar, no

seio de pessoas que o amam e que o adoram ainda sem compromissos e sem o fazerem duvidar do amor. É

um idílio também espacial, a família vive numa casa espaçosa no Chiado, nas traseiras do Teatro de S. Carlos

e na vizinhança da Igreja dos Mártires. Os primeiros cinco anos da sua vida são passados na sua aldeia que é

o arquétipo de alegria infantil e pura. Na aldeia, enquanto criança, afastado do mundo, rodeado do pai ainda

vivo, da mãe, da sua avó e de duas criadas velhas.

Cedo o seu pai se afasta, por virtude da sua saúde frágil, morrendo ainda jovem. A sua mãe tinha

uma cultura invulgar para uma mulher da época, sabia inglês e francês e influenciou o seu filho no apreciar

das coisas belas.

Até aos seus cinco anos, o seu paraíso é este: a atenção completa e devotada da sua mãe e a

presença de um pai culto e gentil, que perde quase inconscientemente, sem que ele deixe em si a marca

forte de uma personalidade masculina. Nunca mais Pessoa se esquece desta vida tranquila e que sempre

recordará em pena e sofrimento, por saber perdida para sempre. Em 1893, o pai adoece gravemente e o

irmão mais novo de Pessoa também. O seu aniversário não se celebra como até então. Algo muda

decisivamente. Um mês depois do 5.º aniversário de Pessoa, o seu pai morre, a família muda-se para uma

casa mais pequena, longe do Tejo, longe do Teatro de S. Carlos e longe da Igreja dos Mártires.

“O menino de sua Mãe” é o próprio Fernando Pessoa (ele mesmo). Com a morte do seu irmão

mais novo, a sua mãe inconsolável volta-se novamente para “o seu menino”. Pessoa sente regressar por

instantes um idílio possível, de carinho devotado, mas seria uma ilusão breve. Às vezes tido como o poeta

racional, pensador frio da realidade humana, Fernando leva sempre junto de si esse carinho materno que o

alimentou nas horas decisivas da formação do seu ser e que até à morte o animavam na ternura de todas as

coisas. É o dia 13 de Junho de 1894 o último dia de Fernando Pessoa enquanto “menino de sua mãe”, é o seu

último aniversário comemorado na exclusiva atenção da sua progenitora. Sem amigos, preso à sua mãe e ao

pequeno mundo, o pequeno homem começa então a imaginar outros mundos e outras realidades. Trata-

se de uma reação, talvez inconsciente de fuga, à invasão do seu mundo por quem será brevemente o seu

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padrasto. A sua mãe iria abandoná-lo, não em presença, mas talvez mais dolorosamente em afastamento e

dedicação. Perdida a ternura, perdida a inocência do Éden, o “menino de sua mãe” torna-se mais frio,

sombrio, dedicado ao palco interior dele mesmo, drama pessoal introspectivo. Há uma mágoa que o inunda e

que nunca o vai deixar: “no plano abandonado, que a brisa morna aquece”, note-se o “abandonado”, ele vai

sempre sentir o abandono daquela em que sempre confiou o seu íntimo e que depois torna difícil acreditar

novamente no amor sincero. Em 1896, vai para a África do Sul e consuma-se o abandono, a deslocação

terminal da sua identidade de fora (mãe) para dentro (o seu intimo drama pessoal). Talvez seja tão dolorosa a

partida, a desilusão, a perda de tudo o que antes era seguro, que Pessoa sente a necessidade de deslocar para

outras personalidades, que ainda são ele mesmo, essa dor que lhe parece cruel demais para suportar sozinho.

O homem “abstratamente intelectual” em que se torna esconde um ser que nunca recuperou da

traição da sua mãe. Cedo tinha-se dado completamente, coração e sensibilidade e tinha sido traído cruelmente

por aquela que mais ele amava.

“Filho único, a mãe lhe dera / Um nome e o mantivera: / «O menino de sua mãe» ”. Enquanto filho

único, Fernando Pessoa foi feliz, até aos seus 5 anos. Mas o abandono da mãe trouxe-lhe uma dor, que

percorre toda a sua vida.

Ó sino da minha aldeia Ó sino da minha aldeia,

Dolente na tarde calma,

Cada tua badalada

Soa dentro da minha alma.

E é tão lento o teu soar,

Tão como triste da vida,

Que já a primeira pancada

Tem o som de repetida.

Por mais que me tanjas perto

Quando passo, sempre errante,

És para mim como um sonho,

Soas-me na alma distante.

A cada pancada tua,

Vibrante no céu aberto,

Sinto mais longe o passado,

Sinto a saudade mais perto.

1. Sino que toca dentro da alma, é um toque que lembra a Pessoa memórias de infância, portanto um toque

que não o deixa indiferente, como qualquer outro toque de outra igreja.

2. "Tão como triste da vida": o poeta quer dizer "Tão lento como triste da vida", no entanto retira essa

palavra.

3. É um sino metafórico: representa outra coisa, as suas memórias de infância.

4. Errante é aqui "sem destino", sem futuro, sem esperança. Isto porque ele apenas na sua infância

encontra conforto e sentido para a vida.

5. "Tanjas perto" e "tocas-me na alma distante" é uma contraposição, quase ironia. Pois que "tanjas" é um

tocar de instrumento e "tocas-me" é um tocar quase fisico, de influência.

6. "aldeia" é no poema um eufemismo para o espaço onde Pessoa nasceu e cresceu, entre uma igreja e um

teatro lírico. Pequena aldeia é no sentido de ter sido a sua aldeia dentro da grande cidade, o seu espaço dentro

do espaço indefinido que era de todos.

_________________________________________________________________________ OUTROS POEMAS DE FERNANDO PESSOA

Posso ter defeitos, viver ansioso e ficar irritado algumas vezes

Posso ter defeitos, viver ansioso e ficar irritado algumas vezes,

mas não esqueço de que a minha vida é a maior empresa do mundo.

E que posso evitar que ela vá a falência.

Ser feliz é reconhecer que vale a pena viver apesar de todos os desafios, incompreensões e períodos de crise.

Ser feliz é deixar de ser vítima dos problemas e

se tornar um autor da própria história.

É atravessar desertos fora de si, mas ser capaz de encontrar

um oásis no recôndito da sua alma .

É agradecer a Deus a cada manhã pelo milagre da vida.

Ser feliz é não ter medo dos próprios sentimentos.

É saber falar de si mesmo.

É ter coragem para ouvir um 'não'.

É ter segurança para receber uma crítica, mesmo que injusta.

Pedras no caminho?

Guardo todas, um dia vou construir um castelo...