Fabiano Bruno

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 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS ÁREA: ESTUDOS DE LITERATURA ESPECIALIDADE: LITERATURA COMPARADA LINHA DE PESQUISA: RELAÇÕES INTERLITERÁRIAS E TRADUÇÃO TRADUÇÃO, INTERPRETAÇÃO E RECEPÇÃO LITERÁRIA: MANIFESTAÇÕES DE EDGAR ALLAN POE NO BRASIL FABIANO BRUNO GONÇALVES ORIENTADORA: PROFA. DRA. PATRÍCIA LESSA FLORES DA CUNHA PORTO ALEGRE 2006

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Transcript of Fabiano Bruno

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

    INSTITUTO DE LETRAS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS

    REA: ESTUDOS DE LITERATURA ESPECIALIDADE: LITERATURA COMPARADA

    LINHA DE PESQUISA: RELAES INTERLITERRIAS E TRADUO

    TRADUO, INTERPRETAO E RECEPO LITERRIA: MANIFESTAES DE EDGAR ALLAN POE NO BRASIL

    FABIANO BRUNO GONALVES

    ORIENTADORA: PROFA. DRA. PATRCIA LESSA FLORES DA CUNHA

    PORTO ALEGRE 2006

  • FABIANO BRUNO GONALVES

    TRADUO, INTERPRETAO E RECEPO LITERRIA: MANIFESTAES DE EDGAR ALLAN POE NO BRASIL

    PORTO ALEGRE 2006

  • Para Pedro Paulo Bruna e Ilesca Holsbach

  • AGRADECIMENTOS

    Agradeo a Patrcia Lessa Flores da Cunha pelo trabalho de orientao, CAPES pelo

    financiamento e especialmente a Pedro Paulo Bruna, Ilesca Holsbach, Paulo Fernando Bruno

    Gonalves e Andr Luiz Camargo de Lima: exemplos de conduta, companhia, apoio e

    amizade.

  • Good morning! said Bilbo, and he meant it. The sun was shining, and the grass was very green. But Gandalf looked at him from under long bushy eyebrows that stuck out further than the brim of his shady hat. What do you mean? he said. Do you wish me a good morning, or mean that it is a good morning whether I want it or not; or that you feel good this morning; or that it is a morning to be good on? All of them at once, said Bilbo.

    J. R. R. Tolkien

  • RESUMO

    O que ora apresentamos um questionamento sobre o papel da interpretao na

    traduo literria e suas implicaes para as questes de recepo. Analisamos diversas

    tradues em lngua portuguesa brasileira de The Tell-Tale Heart, um conto do escritor norte-

    americano Edgar Allan Poe que apresenta obstculos tidos como intransponveis na traduo.

    A partir da anlise comparativa entre o texto em ingls e suas respectivas tradues,

    analisamos as escolhas de palavras dos tradutores e suas solues para os itens mais

    complexos do texto, bem como as diferenas de interpretao de itens lexicais simples. Para

    fins de embasamento terico, recorremos a postulados crticos e tericos diversos tais como

    os da Literatura Comparada, Teoria Literria, teorias de traduo e interpretao.

    Inicialmente, fazemos uma anlise das contribuies de cada uma dessas reas, para depois

    partirmos para as anlises propriamente ditas. Com isso, tentamos deixar claro que a traduo

    de uma obra literria pode ser vista como uma manifestao aculturada de seu texto de

    partida.

  • ABSTRACT

    What we present here is a questioning about the role of interpretation in literary

    translation and its implications for the reception issues. We have analyzed several Brazilian

    Portuguese translations of The Tell-Tale Heart, a short story by American writer Edgar Allan

    Poe, which presents some so-called unsurmountable obstacles in translation. From

    comparative analysis between the English text and its respective translations, we analyze the

    word choices made by the translators and their solutions for the most complex items, as well

    their different interpretations of simper lexical items. As theoretical support, we have made

    use of the several critical and theoretical postulates such as those of Comparative Literature,

    Literary Theory, translation and interpretation theories. Initially, we analyze the contributions

    of each of those areas, then we go on to the analyzes per se. Thus we try to make it clear that

    the translation of a literary work can be seen as a cultured manifestation of its source text.

  • 8

    SUMRIO

    1 INTRODUO.......................................................................................................................9 2 INTERPRETAO, LXICO E TRADUO...................................................................12

    2.1 Interpretar = trazer vida obra .......................................................................................15 2.2 Lxico .............................................................................................................................18 2.3 O comparatismo e a traduo .........................................................................................19 2.3 A traduo no mbito comparatista ................................................................................20

    3 DA INTERPRETAO LITERRIA .................................................................................22 3.1 Consideraes multidisciplinares sobre a interpretao.................................................25 3.2 O que rege a validade de uma interpretao? .................................................................32 3.3 Quais os limites da interpretao? ..................................................................................37 3.4 A teoria da interpretao de Umberto Eco .....................................................................38 3.5 Como se d a interpretao?...........................................................................................43

    4 DA TEORIA E PRTICA DA TRADUO ......................................................................47 4.1 Interpretao e traduo..................................................................................................48 4.2 Traduzir, omitir ou reformular?......................................................................................60 4.3 Quando um inseto mais que um inseto ........................................................................63 4.4 Questes lexicais ............................................................................................................64 4.5 As experincias de Eco na traduo ...............................................................................69 4.6 A recepo ......................................................................................................................75 4.7 A esttica da recepo ....................................................................................................75 4.8 Traduo e recepo: o caso do Clube do Livro ............................................................81

    5 O AUTOR E AS TRADUES DE SUA OBRA ...............................................................87 5.1 Edgar Allan Poe: uma personagem controversa na histria da literatura.......................87 5.2 Poe na Frana .................................................................................................................89 5.3 O terror de Poe................................................................................................................91 5.4 Da traduo de itens plurissignificativos........................................................................92 5.5 Tradues em anlise......................................................................................................98 5.6 Concluso .....................................................................................................................120

    6 CONSIDERAES FINAIS ..............................................................................................124 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ...................................................................................127 ANEXO ..................................................................................................................................137

  • 9

    1 INTRODUO

    () a melhor traduo absoluta de um texto qualquer simplesmente no existe: s pode existir a

    melhor traduo de tal texto para estes e aqueles destinatrios, para estes e aqueles fins e nesta e

    naquela situao histrica.

    E. Coseriu

    A instigao para este trabalho provm da experincia no nvel de iniciao

    cientfica que tivemos trabalhando no projeto comparatista O texto literrio estrangeiro:

    leitura, traduo, produo1, no qual trabalhvamos por meio das relaes da Literatura

    Comparada com os estudos de traduo e recepo literrias. Esta dissertao se encaixa nos

    moldes da linha de pesquisa Relaes Interliterrias e Traduo do Programa de Ps-

    Graduao em Letras da UFRGS, e revela um trabalho em andamento que traz consigo um

    histrico de mais de quatro anos de estudos de traduo e comparativismo, unindo essas duas

    reas afins em uma nica investigao multidisciplinar. Esse leque diverso nos possibilitou

    fazer um estudo amplo em termos de teoria e de certa forma restrito em termos de prtica:

    tomamos emprestadas contribuies tericas diversas e fazemos anlises que partem de

    palavras.

    A questo da escolha lexical quando do ato tradutrio, sendo essa proveniente

    das estratgias de interpretao por parte do tradutor, pode vir a influenciar, e muito, a

    imagem que se faz de um autor alheio e, igualmente, da prpria cultura do autor, tambm

    alheia em nossa cultura; a questo se torna ainda mais espinhosa quando se trata da traduo

    de unidades lingsticas complexas. Isso comprova que o papel do tradutor literrio de

    imensa importncia tanto para a cultura de seu prprio pas quanto para a cultura do pas ao

    qual pertence o autor do texto que foi traduzido, pois o tradutor o elemento central dessa 1 Sob orientao da Profa. Patrcia Lessa Flores da Cunha, no NET Ncleo de Estudos de Tradusso Olga Fedossejeva. Um dos frutos do trabalho foi o prmio Destaque no XIII Salo de Iniciao Cientfica da UFRGS em 2002.

  • 10

    passagem.

    Uma questo fundamental relacionada ao tema a da recepo2 da obra

    literria traduzida, diretamente relacionada com o ato tradutrio, sendo esse amparado por

    estratgias de interpretao utilizadas pelo tradutor. Ao verter uma palavra ou expresso de

    grande riqueza conotativa e denotativa principalmente levando em considerao o contexto

    de ocorrncia , o tradutor tem a grande possibilidade de fazer com que sua traduo suscite,

    na mente do leitor, uma imagem muito diferente daquela suscitada pelo texto do autor, o que

    gera implicaes vrias, no necessariamente negativas.

    Os debates em torno das questes ditas mais centrais da reflexo sobre a

    traduo, quais sejam, fidelidade, (im)possibilidade terica etc., constituem, igualmente, o

    cerne das questes mais discutidas sobre o assunto em apreo. Acreditamos, porm, que h,

    indubitvel e indiscutivelmente, muito a se discutir em torno dessas questes. Primeiramente,

    pelo simples fato de estarmos lidando com questes sem respostas definitivas, sendo essa uma

    caracterstica intrnseca da(s) disciplina(s) que ampara(m) os estudos de traduo, uma vez

    que no lidamos com cincias exatas, onde, na aritmtica, por exemplo, 2x2=4, sempre foi e

    sempre ser; no h discusso sobre contexto3 de ocorrncia. No caso de tradues literrias,

    que lidam com algo que tem como uma de suas inmeras caractersticas a plurissignificao

    (o que no significa que o resto no a possua tambm), alm de estar eivado das implicaes

    de seu contexto, no h muito a ser imposto; porm, no se pode favorecer o caos,

    corroborando um vale-tudo simplesmente por se tratar de uma cincia no-exata. Em segundo

    lugar, porque cremos que sempre h recriao na traduo literria, seja em nvel maior ou

    menor, seja consciente ou inconscientemente.

    Isso posto, a partir de exemplos extrados de diferentes tradues de um

    mesmo conto de Edgar Allan Poe The tell-tale heart , que apresenta ricos exemplos de

    polissemia e atrelamento cultura do idioma em que foi escrito, tenciona-se, neste trabalho,

    explorar algumas questes sobre diferenas de interpretao e do que ficou pejorativa e

    comumente conhecido como intradu(z/t)ibilidade. Frise-se que o corpus do trabalho

    composto de um nico conto de um norte-americano, seguido da anlise contrastiva desse

    2 Referimo-nos a recepo no no sentido mais passivo que se pode verificar em Jauss (1979); esse ponto ser discutido adiante. 3 Aqui e doravante, nas referncias palavra contexto, leia-se a mesma no sentido de contexto cultural, social, poltico, geogrfico, histrico, econmico tanto de autor como de obra e pblico leitor - e todos os diversos contextos que possam contribuir para a gnese de uma obra literria.

  • 11

    com as respectivas tradues que encontramos. Trata-se, por conseguinte, da anlise de um

    conto com vrias performances tradutrias: vrios contos. Optamos por uma anlise desta

    natureza devido inquietude que nos despertou a diferena percebida na leitura de mais de

    uma traduo do conto referido e a certa carncia constatada na quantidade de material

    existente acerca do papel do tradutor enquanto sujeito interpretante no que tange s escolhas

    lexicais efetuadas pelo mesmo quando da verso de uma obra literria para o vernculo,

    enfocando os efeitos da traduo na recepo da obra. Com isso, o vasto material existente

    sobre Edgar Allan Poe pode vir a receber mais uma contribuio no sentido de se poder

    perceber que cada traduo de uma mesma obra , pelo menos em parte, outra obra. Para

    comprovar essa afirmao, pretende-se constatar, por meio de anlises pormenorizadas do

    corpus, que detalhes aparentemente mnimos palavras, expresses apresentam importncia

    incomensurvel. Iniciaremos pela abordagem de algumas questes que serviro de base para a

    anlise. No Captulo 2, apresentaremos a contextualizao sobre interpretao e traduo dos

    itens lexicais. No Captulo 3, trataremos com mais ateno de questes de interpretao,

    apoiados principalmente nas reflexes de Umberto Eco e em questes de hermenutica. Com

    base em trabalho precedente (GONALVES, 2002), percebeu-se a importncia das escolhas

    lexicais nas tradues, no sentido de contribuir diretamente para a imagem que se faz de um

    autor traduzido. No caso de Poe, so encontradas diversas tradues brasileiras feitas ao longo

    do sculo XX; h as mais aclamadas pela crtica (ditas cannicas, das quais a de Oscar

    Mendes e a de Jos Paulo Paes so exemplares), e as que so pouco referidas (como a de

    Annunziata Capasso de Filippis). No Captulo 4, sero discutidas questes de teoria e prtica

    da traduo e de lxico no que tange aos idiomatismos e s ambigidades. Ainda no mesmo

    captulo, partimos para um breve debate sobre a recepo literria. A anlise propriamente

    dita, baseada em comparaes das tradues com o texto em ingls seguidas de anlises, se

    dar no Captulo 5. Segue-se, finalmente, para o captulo das Consideraes finais.

  • 12

    2 INTERPRETAO, LXICO E TRADUO

    Ser comparatista precisamente levar em considerao as tradues, entre os

    critrios que decidem sobre a natureza e sobre o valor de uma obra.

    Brunel, Pichois, Rousseau

    Se em um contexto qualquer em que se cite a Bblia algum mencionar o Novo

    Testamento, mais especificamente ao Evangelho Segundo So Joo, enunciando No incio

    era a palavra, isso remeter, de imediato, para aqueles minimamente familiarizados com

    os textos do Cristianismo, a uma citao muito recorrente nas cerimnias religiosas, tanto que

    conhecida mesmo por aqueles que no so nem praticantes nem leitores assduos da Bblia.

    Entretanto, para os que possuem um conhecimento mais detalhado do texto sagrado do

    Cristianismo, a citao em questo soar, no mnimo, estranha. Isso se explica pelo fato de

    estarmos familiarizados com a traduo tradicional e, digamos, cannica, da Bblia para o

    portugus brasileiro, qual seja: No princpio era o Verbo e o Verbo estava com Deus, e o

    Verbo era Deus (grifos meus). Na apresentao da edio consultada4, l-se: A inteno

    primeira que a [a traduo da edio em apreo] guiou foi a de ser fiel ao texto e ao mesmo

    tempo fiel ao homem de hoje. (Paulo VI aos biblistas, 1971)5. No que toca questo da

    fidelidade, questo direta ou indiretamente ubqua nos estudos e crticas de traduo, de

    grande valia a leitura de As (in)fidelidades da traduo, de Francis H. Aubert (1994) para

    informaes mais detalhadas. Para o presente estudo, no julgamos adequada uma discusso

    pormenorizada sobre o assunto, limitando-nos, por ora, s seguintes palavras:

    4 Apresentao. In: Bblia sagrada. Vozes, 1983. Traduzido por Mateus Hoepers. A traduo foi feita diretamente do grego. 5 Idem.

  • 13

    A operao tradutora como trnsito criativo de linguagens nada tem a ver

    com a fidelidade, pois ela cria sua prpria verdade e uma relao fortemente

    tramada entre seus diversos momentos, ou seja, entre passado-presente-futuro,

    lugar-tempo onde se processa o movimento de transformao de estruturas e

    eventos. (PLAZA, Julio. Introduo: a traduo como potica sincrnica. In: ___.

    Traduo intersemitica. So Paulo: Perspectiva; (Braslia): CNPq, 1987. p. 1)

    As palavras de Julio Plaza resumem, de certa forma, a viso do pensamento

    ps-estruturalista hoje em voga: no h, segundo esse pensamento, como recuperar

    significados ditos estveis e supostamente contidos nas palavras do autor do texto-fonte ou

    original6. O que Plaza diz vai ao encontro das idias amplamente divulgadas por Rosemary

    Arrojo no Brasil, idias essas que tm como principal substrato a filosofia de Jacques Derrida.

    Voltando ao incio desta dissertao, citemos Translations Other7, cujo autor,

    Theo Hermans, inicia o texto de maneira similar ao presente. Cita In the beginning was the

    Word..., que, conforme o caso citado da traduo brasileira, igualmente uma traduo j

    consagrada para a lngua inglesa. Segundo o humanista holands Erasmo, a traduo de So

    Jernimo para logos, qual seja, verbum, seria mais bem vertida por sermo8. Temos a uma

    enorme fonte de questionamentos: se Mateus Hoepers, um dos tradutores da verso brasileira

    em pauta, traduziu o texto diretamente do grego, por que sua traduo de logos Verbo,

    que nos remete traduo latina de So Jernimo? Por que, no ingls, a traduo Word,

    mais aproximada de logos do que de verbum? As discrepncias nas verses9 mostram que a

    suposta fidelidade preconizada por Paulo VI , no mnimo, capciosa. No teria o tradutor

    brasileiro efetuado sua escolha por razes de tradio, visto que sua traduo relativamente

    recente? uma possibilidade.

    6 Faremos, de agora em diante, amplo uso de aspas ao referirmo-nos a palavras-chave nos estudos de traduo, dentre as quais as palavras original e fonte so, provavelmente, as mais controversas. A esse respeito, vide DERRIDA, Jacques. Torres de Babel. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. 7 HERMANS, Theo. Translations other. Aula inaugural: University Collage London, 19/031996. 8 conversa, conversao; lngua, idioma; dilogo, discusso. 9 Seguem algumas outras verses do mesmo trecho em algumas das lnguas mais importantes do mundo, sendo que nos dois primeiros casos figuram equivalentes de palavra e, nos dois ltimos, de verbo: alemo: Am Anfang war das Wort, und das Wort war bei Gott, und Gott war das Wort; espanhol: En el principio fue la Palabra, y la Palabra estaba con Dios, y la Palabra era Dios; francs: Au commencement tait le Verbe et le Verbe tait avec Dieu et le Verbe tait Dieu; italiano: In principio era il Verbo, il Verbo era presso Dio e il Verbo era Dio.

  • 14

    O exemplo acima serve para tentar explicitar algumas questes muito

    recorrentes e controversas nos debates acerca da traduo literria: a (no) revelao da

    diferena e da alteridade, a (in)visibilidade do tradutor e, o que mais nos interessa para os

    propsitos deste trabalho, o trabalho interpretativo do tradutor, que sempre deixa sua marca,

    seja mais, seja menos explicitamente, podendo tanto contribuir para a imagem do texto/autor

    traduzido quanto para denegri-la. Sabe-se que a Bblia considerada o livro mais importante

    da Histria, superando, inclusive, A evoluo das espcies, de Charles Darwin, livro

    inegavelmente revolucionrio e de importncia inestimvel para o mundo atual ser o que em

    termos de evoluo do conhecimento. O caso da Bblia de extrema delicadeza devido ao

    fato de tratar de questes de f, amide a bengala mais firme utilizada pelo ser humano;

    adendo a isso est o fato de a Bblia ser o livro sagrado da religio mais influente do mundo.

    O que se quer dizer com tudo isso que, se discrepncias desse teor so observveis num

    livro dessa grandeza, que dir nos romances, contos, poemas e todos os outros textos que

    lemos diariamente que no tenham a mesma importncia de um livro sagrado. H que se

    lembrar que o caso citado simples se comparado ao que ocorreu com a Bblia ao longo dos

    sculos, quando de suas tradues e cpias nos mosteiros, ocasies essas em que o livro sofria

    diversos cortes e adaptaes por parte dos monges copistas e tradutores, ento detentores do

    conhecimento. Parafraseando Andr Lefevere, havia uma manipulao da fama sacra, e

    ainda h, uma vez que, atualmente, possvel encontrar verses da Bblia em linguagem

    simplificada o que se encaixa no conceito de traduo intralingual, conforme Jakobson

    (1974).

    Nosso objetivo, com essa introduo, foi o de fornecer elementos que sirvam

    de guia para os principais aspectos que sero abordados neste trabalho; no se trata de um

    trabalho nica e centralmente de Estudos da Traduo10, Tradutologia, Lingstica Aplicada

    ou qualquer outra disciplina que possa fazer uso das questes da traduo, ou da qual as

    questes de traduo possam fazer uso; trata-se de um trabalho comparatista que visa a

    analisar questes de traduo literria no que tange s questes de leitura, interpretao e

    recepo, tanto em relao ao leitor quanto ao tradutor. Partimos do pressuposto de que o

    trabalho do comparatista estudar os objetos que circulam entre diferentes territrios culturais

    e lingsticos, o que inclui as tradues; o trabalho do tradutor fazer com que os objetos 10 Termo cunhado por James S. Holmes em 1972, utilizado pelos pesquisadores das universidades de Tel Aviv, Anturpia, Amsterd e Leuven para nomear seus estudos descritivos da traduo. Para fins de aprofundamento, consultar HOLMES, James S. The name and nature of translation studies. In: VENUTI, Lawrence. The translation studies reader. London and New York: Routledge, 2001. e RODRIGUES, Cristina Carneiro. Traduo e diferena. So Paulo: Editora UNESP, 2000.

  • 15

    circulem. Ambas as disciplinas sofrem questionamentos de limites11; ambas lidam com

    questes de hibridismo, apropriao, interpenetrao cultural. Passemos, agora, delimitao

    do nosso trabalho.

    2.1 Interpretar = trazer vida obra

    Trataremos da traduo de itens plurissignificativos na obra literria; sabe-se

    que a plurissignificao trao indissocivel da escrita artstica, seja na leitura, seja na

    traduo. J escrevemos alhures que:

    O tradutor antes de tudo um leitor, portanto, creio que a tese de uma

    traduo ser imparcial ou fiel no se sustenta: a traduo sempre carregar a marca

    da interpretao de seu realizador, sobretudo no caso da traduo literria, uma vez

    que a linguagem literria , por essncia, plurissignificativa. (GONALVES, 2004)

    A palavra-chave da citao acima e que tambm guiar grande parte deste

    trabalho interpretao: sucintamente, procedimento ativo, geralmente inconsciente, no qual

    quem escreve, traduz ou l uma obra literria a ela atribui significados. Como ser visto neste

    Captulo, a interpretao traz vida obra. As discusses mais atuais sobre traduo lidam

    diretamente com o processo interpretativo, o que as torna muito mais bem fundamentadas e

    mais prximas realidade do que as teorias mais antigas, conforme ser abordado em breve.

    H os que defendem que h limites para a interpretao, assim como h os que defendem que

    essa ilimitada. Como entendemos que uma traduo uma obra criada a partir de outra j

    pronta, mantendo com essa um nvel mximo de aproximao12 ou seja, um limite ,

    entendemos, por conseguinte, que importante o estabelecimento de limites para a

    11 A respeito do debate sobre os limites disciplinares da traduo, vide PYM, Anthony. Why Translation Studies Should Learn to be Homeless. In: MARTINS, Marcia A. P. (org.). Traduo e Multidisciplinaridade. Rio de Janeiro: Lucerna, 1999. 12 Devemos sublinhar que essa uma viso pessoal, sendo que os limites entre traduo e adaptao constituem outro ponto nevrlgico nos estudos de traduo. Entendemos que, quanto mais prximo o ato criativo estiver do original, mais ele se encaixa no conceito de traduo; a via contrria traz uma maior aproximao ao conceito de adaptao.

  • 16

    interpretao, caso contrrio, formar-se- uma possibilidade de interpretao deveras distante

    daquela fornecida pelo original, o que ir interferir consideravelmente na imagem que um

    pblico leitor far daquilo que l. Justifica-se, pois, um olhar mais atento sobre essas

    questes.

    Para fundamentar as discusses sobre interpretao, utilizaremos, no mbito da

    teoria literria, as contribuies de Jonathan Culler (1999), que, em seu livro de introduo

    teoria literria, fornece informaes de grande proveito para nosso propsito; defensor da

    superinterpretao (2001), servir de contraponto s defesas dos limites da interpretao.

    Antoine Compagnon (2001) mostrar, tambm, sua importncia no que diz respeito ao

    estabelecimento de limites em relao inteno e conscincia no ato de escrever. Ocuparo o

    lugar entre interpretao e traduo os textos de Rosemary Arrojo (1992; 1993; 1999) que,

    conforme j foi mencionado, utiliza-se principalmente das idias do filsofo francs Jacques

    Derrida, um dos grandes propaladores do ps-estruturalismo. A obra de Rosemary Arrojo

    (1992a; 1992b; 1993; 1999) em linhas gerais, enfoca a questo da desconstruo do

    logocentrismo ocidental, da crena de que um texto possua significados estticos e

    inalterveis, de que se deve respeito ao texto, no interferindo no que o mesmo diz. Arrojo

    demonstra que o leitor tem papel ativo na leitura, uma vez que est inserido num contexto,

    sendo esse, amide, radicalmente diferente do contexto do produtor do texto. Esse contexto

    (conforme j definido acima, em nota) vai, inevitavelmente, influir nos supostos significados

    inalterveis, provando que toda leitura interpretao. Uma vez que o tradutor , antes de

    tudo, um leitor, o mesmo se aplica a ele. Logo, o leitor de uma traduo estar interpretando

    um texto que foi previamente interpretado por seu tradutor. As idias de Arrojo so

    principalmente baseadas em Jacques Derrida; porm, preferiu-se a obra da autora como bsica

    pelo fato de concentrar-se na questo da traduo, no se descartando, evidentemente,

    eventuais citaes diretas obra de Derrida. Arrojo atualmente o nome mais citado no

    Brasil graas s caractersticas vanguardistas de seus textos que tanto ajudaram a divulgar a

    desconstruo derridiana no Brasil, contribuindo para o avano dos estudos de traduo no

    pas; para a autora, o leitor ocupa um lugar autoral graas ao seu papel ativo de interpretante.

    Para o cerne do que discutiremos nesta parte, tomaremos de emprstimo

    algumas contribuies da filosofia (hermenutica) e da semitica. Com relao filosofia,

    faremos uso principalmente do texto Interpretao: rupturas e continuidades, de Adayr

  • 17

    Tesche (2000). Uma vez que o conhecimento aprofundado13 de filosofia transcende nossos

    limites, consideramos o livro em pauta a ferramenta que mais se adapta s nossas

    necessidades: um levantamento suficientemente abrangente, para nossos propsitos, sobre a

    hermenutica e suas implicaes para a leitura, compilado por mos familiarizadas com a

    Teoria da Literatura.

    Partindo para a Semitica, sero de inestimvel importncia os textos de

    Umberto Eco, catedrtico de Semitica na Universidade de Bolonha e um dos maiores

    intelectuais da atualidade. Os principais textos para nossos fins so Os limites da

    interpretao (2000) e Interpretao e superinterpretao (2001); tambm sero utilizados

    Obra aberta (2003a) e Sobre a literatura (2003b). O uso de Obra aberta, texto pioneiro

    originalmente publicado em 1962, justifica-se por ser esse um livro revolucionrio na

    semitica e que lida, ao mesmo tempo, com pintura, teatro, literatura, enfim, com a obra de

    arte em si, sendo que nele Eco defende j naquela poca o fato de a interpretao depender

    em grande parte do receptor/fruidor da obra: no h unidade de efeito produzida pela obra,

    mas variao de fruidor para fruidor, conforme pode ser atestado pelas seguintes palavras:

    As poticas contemporneas, ao propor estruturas artsticas que exigem

    do fruidor um empenho autnomo especial, freqentemente uma reconstruo,

    sempre varivel, do material proposto, refletem uma tendncia geral de nossa

    cultura em direo queles processos em que, ao invs de uma seqncia unvoca e

    necessria de eventos, se estabelece como que um campo de probabilidades, uma

    ambigidade de situao, capaz de estimular escolhas operativas ou

    interpretativas sempre diferentes. (2003a, p. 93)

    Obra aberta uma obra seminal: coincidindo com as afirmaes dos ps-

    modernistas de que o significado da obra reside no leitor, Eco cr que o autor limita as opes

    interpretativas dos leitores. Algumas obras so mais abertas que outras.

    Em Os limites da interpretao (2000) vemos propriamente o cerne do

    pensamento de Eco a respeito do processo de interpretao, sendo um texto bem aprofundado

    no qual debate a relevncia das intenes do autor, do texto e do leitor quando do processo

    13 Eis, ao nosso ver, um dos grandes problemas de uma rea interdisciplinar.

  • 18

    interpretativo; percebem-se aqui muitos dos elementos de Obra aberta, porm com muito

    mais profundidade e detalhe, riqussimo em exemplos, no qual figura sua defesa de que pode

    no haver regras para determinar quais interpretaes de um texto so melhores, mas h

    regras para determinar quais so inadequadas. Em Interpretao e superinterpretao (2001)

    temos a defesa clara dos limites da interpretao por parte de Eco sendo rebatida pelo filsofo

    Richard Rorty, o terico da literatura Jonathan Culler e a crtica e romancista Christine

    Brooke-Rose, mostrando um debate deveras produtivo, dadas as fundamentaes de cada

    debatedor. Eco tenta estabelecer os limites nos quais os textos podem ser interpretados,

    explicando como a superinterpretao pode ser reconhecida a partir da intentio operis,

    argumentando que a intentio auctoris pode descartar algumas interpretaes. Rorty cr que os

    textos deveriam ser usados pelos leitores da maneira que melhor lhes aprouvesse. Jonathan

    Culler, vido descontrucionista14, defende a superinterpretao, argumentando

    veementemente contra qualquer possvel limite a qualquer interpretao. Christine Brook-

    Rose discute sobre o que denomina histria palimpsesta: possvel ver o que est por baixo

    de uma histria, como em um palimpsesto. O ensaio intitulado Sobre algumas funes da

    literatura, constante no volume Sobre a literatura - ensaios (2003b), servir como ponta de

    lana na exposio das contribuies de Eco, eis que apresenta uma sntese de suas idias

    sobre interpretao que julgamos perfeitamente adequada para nossos propsitos.

    2.2 Lxico

    Quando se l, interpretam-se palavras, itens lexicais, unidades lingsticas que

    podem ser simples ou complexas (Rebello: 2002, p.149); as unidades mais complexas

    revelam-se mais atreladas cultura na qual esto inseridas. Trataremos desses aspectos

    lexicais no Captulo 4, no qual figuraro principalmente dois textos: um texto de Valentn

    Garca Yebra (1989), no qual aborda as questes terico-prticas mais gerais relativas,

    principalmente, aos problemas da traduo; o outro texto a tese de doutorado de Lcia S

    Rebello (2002), no mbito da Literatura Comparada, com enfoques dos estudos de traduo e

    dos estudos lexicogrficos, na qual analisa duas tradues em lngua portuguesa (uma

    brasileira e outra lusitana) de Ars Poetica, de Horcio, estudando as tradues dos adjetivos

    14 A esse respeito, conferir CULLER (1997).

  • 19

    utilizados na obra, fornecendo, ao final da tese, um glossrio de adjetivos horacianos. As

    reflexes da autora foram de grande valia para a elaborao desse captulo. Ambos os textos

    mostraram-se adequados e suficientes para nossos propsitos devido ao fato de tratarem de

    ambigidades e idiotismos e suas implicaes para a traduo o que realmente nos interessa,

    pois esse ser exatamente o ponto de enfoque.

    2.3 O comparatismo e a traduo

    Segundo nos informa Nitrini (2000), a literatura comparada surgiu no final do

    sculo XIX, mas existe genericamente desde que houve duas literaturas para serem

    comparadas; confunde-se, pois, com a histria das literaturas. Comparar prtica e

    caracterstica intrnseca ao ser humano, seja para estabelecer semelhanas ou diferenas.

    Inicialmente, era prtica geral o estudo binrio: a comparao de duas obras, dois autores,

    duas literaturas, ou seja, sempre o cotejo de um elemento com outro. Os objetivos principais

    eram os de estudar as movimentaes e cruzamentos de fronteiras de um desses elementos,

    atendo-se, mormente, a questes de influncia, exerccio esse que culminava,

    invariavelmente, em questes de superioridade/inferioridade cultural com relao s culturas

    em apreo. Essas prticas vigoraram por muitos anos at que a disciplina comeou a

    paulatinamente ampliar seus horizontes, assumindo cada vez mais o carter multidisciplinar

    que teve seu boom principalmente nos anos 90 do sculo passado dos dias de hoje.

    Estudos que envolvam literatura, principalmente tratando da questo de

    cruzamentos de fronteiras, defrontam-se, naturalmente, com a traduo, qui a maior fora

    motriz das intermediaes, direta ou indiretamente. curioso trazer tona o que os antigos

    comparatistas pensavam sobre a traduo: nos primrdios da literatura comparada,

    principalmente no sculo XIX, no se deveria analisar uma obra literria em traduo;

    somente era fidedigno um estudo com base na leitura do texto na lngua em que foi escrito.

    Etiemble chegou a idealizar um instituto que abarcasse especialistas como egiptlogos,

    sumerlogos, helenistas, latinistas etc., para que fosse possvel a anlise de obras nas mais

    variadas lnguas no texto original. Dessa maneira, o comparatista eximia-se do risco de ler

    uma obra sob a interferncia indesejada causada por um tradutor. De qualquer forma, as

    tradues so veculos dos processos de circulao intercultural objeto de interesse do

  • 20

    comparatista ; logo, conforme Carvalhal (1993), admitindo que um texto estrangeiro passa a

    integrar o sistema no qual traduzido, o comparatista depara-se com a importncia da

    influncia exercida pelo tradutor no texto em que o mesmo opera.

    2.3 A traduo no mbito comparatista

    Atendo-nos mais traduo, comecemos por citar Sandra Nitrini em

    comentrio a um dos estudos mais clssicos sobre traduo literria no Brasil, Byron no

    Brasil, tradues, de Ondia Clia de Carvalho Barboza:

    As tradues de Tibrcio Antnio Craveiro (Lara), e de Francisco Jos

    Pinheiro Guimares (A Peregrinao de Childe Harold) transformaram Byron em

    um poeta quase arcdico, de linguagem contida e sbria. Francisco Otaviano e Joo

    Cardoso comeam a aclimatar o poeta ingls ao nosso romantismo. As tradues de

    Otaviano apelam para o exagero sentimental e as de Joo Cardoso caracterizam-se

    pela retrica afetada e grandiloqente. Byron vai-se abrasileirando cada vez mais

    em parfrases descabeladas que se apresentam ora sensuais, ora piegas, ora mais

    ardentes. Uma outra tendncia no abrasileiramento de Byron a de torn-lo um

    poeta mais fnebre e soturno do que realmente . Essa tendncia comea com

    Otaviano, passa sutilmente por Alvarez de Azevedo e se intensifica na imitao de

    Varela, em cujas mos um poema como To Inez, uma cano tpica do cansao de

    viver, do desalento byroniano, transformada em um poema sinistro e tumular.

    (NITRINI, 2000: p. 231)

    Na seo Traduo e literatura comparada15, parte integrante da introduo

    do livro de Barboza, h uma referncia a Robert Escarpit, que afirmava que o byronismo

    francs deve tanto a Byron quanto ao tradutor de suas obras completas, Amde Pichot

    (BARBOZA, 1975: p.30). Essas palavras, conquanto sejam apenas um exemplo, atestam o

    15 Cumpre acentuar que no livro de Barboza figura explicitamente o domnio da lingstica sobre a traduo na dcada de setenta, diferentemente dos dias atuais.

  • 21

    papel do tradutor enquanto sujeito interpretante; atestam que a obra alterada, recriada;

    atestam que o tradutor visvel, seja mais, seja menos, sendo que o principal elemento que

    torna sua imagem visvel o lxico utilizado por ele (o que inclui, indubitavelmente,

    implicaes estilsticas), e, mais uma vez, atestam que aquilo que o pblico leitor l um

    autor atravs da pena, ou das modernas teclas, de um tradutor.

    Bassnet e Lefevere resumem a funo da traduo na literatura:

    A traduo , naturalmente, uma reescrita de um texto original. Todas as

    reescritas, seja qual for sua inteno, refletem uma certa ideologia e uma potica e,

    como tal, manipulam a literatura para que funcione em uma determinada sociedade

    e de uma determinada forma. A reescrita manipulao, assumida a servio do

    poder, e seu aspecto positivo pode ajudar na evoluo de uma literatura e uma

    sociedade. As reescritas podem introduzir novos conceitos, novos gneros, novos

    artifcios e a histria da traduo a histria da inovao literria, do poder

    modelador de uma cultura sobre outra. Porm, a reescrita tambm pode reprimir a

    inovao, distorcer e conter, e, numa era de manipulao cada vez mais crescente de

    todos os tipos, o estudo dos processos de manipulao da literatura conforme

    exemplificado pela traduo pode nos ajudar a nos dirigir para uma maior

    conscincia do mundo no qual vivemos.16 (BASSNETT, Susan & LEVEVRE,

    Andr., 1992. p. vii)

    Cremos que a funo primeira da traduo jaz na disseminao: lemos uma

    traduo basicamente pelo fato de no conhecermos a lngua na qual o texto original foi

    escrito. Na literatura comparada, os estudos de traduo sobressaem-se principalmente nos

    estudos de recepo e imagologia, mesmo porque so interdependentes. Entre um pblico

    leitor consumidor de uma traduo de um texto norte-americano (para ficarmos com os

    exemplos que aqui sero abordados), o texto que tem repercusso o traduzido, pois esse

    que passa a integrar o sistema17.

    A seguir, olharemos mais de perto os aspectos esboados anteriormente.

    16 Translation is, of course, a rewriting of an original text. All rewritings, whatever their intention, reflect a certain ideology and a poetics and as such manipulate literature to function in a given society in a given way. Rewriting is manipulation, undertaken in the service of power, and in its positive aspect can help in the evolution of a literature and a society. Rewritings can introduce new concepts, new genres, new devices and the history of translation is the history also of literary innovation, of the shaping power of one culture upon another. But rewriting can also repress innovation, distort and contain, and in an age of ever increasing manipulation of all kinds, the study of the manipulation processes of literature as exemplified by translation can help us towards a greater awareness of the world in which we live. 17 Conforme EVEN-ZOHAR, 2000.

  • 22

    3 DA INTERPRETAO LITERRIA

    The proper consumption of literature we call interpretation.

    Robert Scholes

    Os debates em torno da leitura de uma obra literria so, como veremos a

    seguir, amplos e divergentes; tentaremos mostrar, a partir da anlise de algumas posies

    tericas diversas que consideramos mais intrigantes, os elementos mais relevantes para este

    trabalho. Os pontos de vista aqui expostos percorrem caminhos diferentes, porm confluentes:

    dado o trao multidisciplinar inerente s investigaes comparatistas da atualidade, faremos

    uso de teorias de outras reas do conhecimento que, direta ou indiretamente relacionadas

    literatura, se mostram essenciais para o intuito geral do nosso trabalho, qual seja, o de

    enfatizar o papel e a importncia da interpretao em seu envolvimento com a traduo.

  • 23

    Partimos do pressuposto que, ao admirar um quadro, ao ouvir uma msica ou

    ao ler um texto, dentre inmeras outras atividades, temos um papel ativo. O quadro apresenta

    uma imagem esttica e imutvel; as sucesses de notas de uma determinada msica sero

    sempre as mesmas, embora o ritmo e o andamento possam variar, de acordo com o regente ou

    aquele que a executa. Mas, e o texto? Fisicamente, o texto uma sucesso de sinais grficos

    letras. Um texto em particular tambm , como uma obra musical ou uma pintura, imutvel

    fisicamente imutvel. H os casos em que algumas obras, por serem antigas, passam por

    adaptaes ortogrficas e gramaticais ou, quando muito antigas, pedem traduo (como no

    caso de Beowulf18, escrito originalmente em anglo-saxo (ingls arcaico), lido somente por

    uma minoria nos dias atuais). O caso que essa imutabilidade est na obra em si objeto

    fsico, as letras propriamente ditas , e no na mente daquele que com ela interage, o sujeito

    ativo.

    Fala-se de fidelidade ao texto. Em outras palavras, h a crena disseminada de

    que o texto contm em si os significados que seu autor lhe atribuiu a inteno do autor que

    est supostamente contida nos sinais grficos de seu texto e dali pode ser extrada tal qual ele

    a imaginou.

    Sabe-se que a obra literria assim como seu realizador e seu pblico leitor

    est inserida num contexto: seja histrico, geogrfico, social, econmico, subjetivo, sejam

    todos tomados conjuntamente, dependendo do enfoque do estudo a ser realizado aqui

    pressupem-se todos. Portanto, esse contexto, acreditamos, exerce grande influncia nos atos

    de escrita e de leitura. Os questionamentos feitos por Hans-Georg Gadamer em Verdade e

    mtodo (1960) servem para conduzir as reflexes gerais sobre a interpretao, aplicando-se,

    tambm, nossa reflexo: Qual o sentido de um texto literrio? Que relevncia tem para esse

    sentido a inteno do autor? Podemos compreender obras que nos so cultural e

    historicamente estranhas? possvel o entendimento objetivo, ou todo entendimento

    relativo nossa prpria situao histrica?19 (GADAMER apud EAGLETON, 2003: p. 91).

    Podemos, por ora, resumir muito brevemente nossa viso de interpretao: um leitor inserido

    num determinado contexto situacional processa os sinais grficos apreendidos de uma obra

    literria e, com base nesse contexto, far uma interpretao sui generis, parcialmente

    18 Poema pico ingls, sem datao ou autor determinados. Estima-se que foi escrito no sculo VIII, sendo considerado, at hoje, o poema pico annimo mais antigo das lnguas modernas da Europa. Conferir BEOWULF. So Paulo: Hucitec, 1992. Edio traduzida, comentada e introduzida por Ary Gonzalez Galvo. 19 EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introduo. So Paulo: Martins Fontes, 2003.

  • 24

    compartilhada com outros indivduos. Explicitamos o que queremos dizer com parcialmente

    compartilhada com um exemplo criado ad hoc:

    Naquele fim de tarde chuvoso, Helena contemplava o bulevar da janela da sala, no trreo,

    quando viu um menino desorientado passando em frente sua casa.

    A frase propositalmente insuficiente para se saber quais as implicaes do

    que foi narrado, pois queremos levantar algumas questes de como se poderia ler a frase.

    Suponhamos que uma mulher que esteja h duas semanas fora de casa em uma estressante

    viagem por motivo de negcios; sabendo que essa mesma mulher vive em um bulevar que

    acha extremamente idlico e acolhedor e gosta de chuva, muito provvel que, ao ler a frase

    acima, ela sentir saudades de casa, sentindo-se momentaneamente relaxada e contente pela

    simples leitura da frase em questo. Suponhamos, agora, que a frase seja lida por uma mulher

    que, num cenrio muito semelhante ao descrito (bulevar, dia chuvoso), tenha perdido seu filho

    h pouco tempo: haver conseqncias emocionalmente desastrosas para essa leitora, mesmo

    que tenha lido os mesmos sinais grficos que a executiva havia lido conforme descrito acima.

    Com esse exemplo quisemos demonstrar que diferentes leitores(as) tm diferentes reaes a

    um mesmo texto e, com base nisso, acreditamos que interpretam esse mesmo texto de forma

    igualmente diversa. Quanto ao compartilhamento parcial referido acima, as duas leitoras,

    independentemente de seus contextos situacionais, ho de concordar que leram sobre: a) uma

    mulher que olha para a rua da janela de sua sala; b) um menino caminhando desorientado num

    bulevar, e d) uma tarde chuvosa. Essas informaes esto escritas no texto e no podemos

    negar que ali estejam. A aparncia das personagens, a intensidade da chuva e a disposio dos

    elementos do cenrio ficam por conta da mente de cada um.

    O que se pretende analisar neste captulo a questo dos limites da

    interpretao, levantando hipteses de resposta a algumas indagaes: como se d a

    interpretao? O que rege a validade de uma interpretao? Quais os limites de uma

    interpretao? Para tanto, buscaremos apoio da teoria literria, de algumas questes de

    filosofia, concentrando-nos na hermenutica, e da semitica, utilizando textos de Umberto

    Eco.

  • 25

    3.1 Consideraes multidisciplinares sobre a interpretao

    Segundo a etimologia da palavra interpretao20, essa tem o sentido de uma

    traduo, que aponta, simultaneamente, em duas direes: em direo ao texto a ser

    interpretado e para um pblico que necessita de uma interpretao (MAILLOUX, 1990,

    p.121). como ocorre com Hermes, na mitologia clssica, que recebe a palavra divina,

    interpretando-a, para depois transmiti-la ao homem. Em ambos os casos a interpretao vista

    como traduo; h at mesmo uma relao de significado entre as etimologias, sendo que

    ambas abarcam o sentido de mediao. O que queremos frisar que o texto, ao ser lido, no

    fica de todo intacto; h uma apropriao daquilo que o texto diz e uma assimilao para que o

    leitor ou o intrprete (ou o leitor-intrprete) possa compreend-lo. Eis uma questo um tanto

    capciosa: compreender igual a interpretar? Esse questionamento remete diretamente

    hermenutica, parte da filosofia que se ocupa da interpretao. Por uma questo de clareza,

    iniciaremos algumas reflexes acerca da hermenutica, a ttulo de informao basilar, para

    depois entrarmos em questes de teoria literria e semitica. Convm referir um comentrio

    feito por Rosemary Arrojo, que, apesar de tratar sobre traduo, o que ser abordado com

    mais detalhamento no captulo seguinte, amplamente amparada por conceitos filosficos.

    Conforme Arrojo (1992), a tradio logocntrica21 ocidental dita que o texto

    possui significados latentes e, portanto, recuperveis. Conseqentemente, s podemos

    interpretar aps compreender. Detenhamo-nos um pouco mais sobre essa questo. Parece

    haver uma linha tnue entre as palavras compreender e interpretar em se tratando de

    textos literrios. A compreenso exigiria a crena de que o que se l contm um significado

    esttico, imutvel, independente do contexto no qual est inserido, do leitor e de sua

    subjetividade, bem como de seu contexto; exigiria a crena de que as idias do autor estariam

    ali contidas e somente poderiam engendrar uma nica leitura possvel, sendo as outras

    20 De acordo com o Dicionrio Houaiss, interpretao advm do latim interpretato,nis, significando 'explicao, sentido'; o dicionrio remete ao elemento de composio interpret-, elemento antepositivo, do latim interpres,tis, significando medianeiro, intermedirio, ajudante, assistente, agente; mensageiro, negociante, enviado; dragomano, intrprete, lngua; ugure; o que explica; jurisconsulto; comentador; tradutor. 21 O termo logocentrismo utilizado por Jacques Derrida (1930-2004) para referir-se centralidade do logos no pensamento ocidental, querendo dizer que a verdade est no logos, na palavra falada; aplicado interpretao e traduo, pode-se relacionar com a inteno autoral, com a crena de que a verdade, supostamente depositada no texto pelo seu autor, pode ser recuperada.

  • 26

    consideradas, no mnimo, inadequadas, quando no erradas. Esse tipo de diferenciao

    comum entre tericos e comentadores que adotam os enfoques mais diversos. Adayr Tesche

    nos diz, na esteira do pensamento de Ortega y Gasset, que A compreenso depende sempre do

    ponto de vista de quem olha, pois sempre o homem e sua circunstncia quem olha.

    (TESCHE, 2000, p. 8). J a interpretao, que encerra uma conotao de maior liberdade,

    permitiria que, com base na compreenso prvia do texto, o leitor pudesse mostrar sua

    interferncia, deixar sua marca. A fragilidade da interpretao est no fato de que ela carrega

    a marca da individualidade, pois a interpretao sempre um ato inacabado, fragmentado,

    que permanece em suspenso ao abordar-se a si mesma, pelas palavras de um sempre-outro-

    discurso que seria mais essencial. (TESCHE, 2000, p. 10). Percebe-se, a partir desses

    exemplos de apenas dois autores, que no h consenso geral com relao aos detalhes

    subjacentes a essas questes, mas h consenso no que tange ao papel subjetivo daquele que

    interage com a obra esse consenso, importante sublinhar, jaz sobre o papel do sujeito, e

    no sobre a validade ou autoridade dessa funo. Na filosofia, como j foi dito, essa questo

    de diferenciao permeia toda a hermenutica; o aprofundamento dessas questes22, todavia,

    no de interesse capital para o que ser analisado e, mesmo que o fosse, a mais breve anlise

    possvel excederia os limites da natureza deste trabalho; portanto, seguiremos nosso

    levantamento.

    Emerich Coreth afirma, na Introduo de seu Questes fundamentais de

    hermenutica23, que, dentre os significados da palavra hermenutica, temos declarar,

    anunciar, interpretar ou esclarecer e, por ltimo, traduzir, acepes mltiplas que coincidem

    em significar que alguma coisa tornada compreensvel ou levada compreenso (p. 1).

    Isso se d na interpretao de um enunciado que no fique claro, que seja obscuro, como um

    texto literrio, no qual no se vem os sentidos num primeiro momento, devendo ser tornados

    compreensveis. O procedimento ocorre na traduo de um texto, visto que toda traduo

    consiste na transposio de um complexo significativo para outro horizonte de compreenso

    lingstica (p. 2). O problema objetivo da hermenutica comeou com questes textuais: a

    interpretao das Escrituras (p. 5). Mas o problema da hermenutica a compreenso,

    entendida como apreenso de um sentido. Esse problema era o principal foco nos primrdios

    22 Essas questes podem ser conferidas a bem dizer em qualquer livro que trate de hermenutica, por serem, como j foi dito, questes muito presente na rea; segue a referncia de um bom livro de apoio: RUEDELL, Alosio. Da representao ao sentido: atravs de Schleiermacher hermenutica atual. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000. 23 CORETH, Emerich. Questes fundamentais de hermenutica. So Paulo: EPU, Editora da Universidade de So Paulo, 1973.

  • 27

    da disciplina, pois havia a crena de que as Escrituras possuam um significado que deveria

    ser descoberto. Nos tempos modernos, constatam-se inmeras mudanas de perspectiva e

    atualizaes na forma de pensar, embora as altercaes acerca da busca da verdade no

    tenham sido extinguidas, apenas amainadas. Para Paul Ricoeur, em Interpretao e

    ideologias24, a hermenutica possui uma relao privilegiada com as questes de linguagem,

    devido ao fato de que uma caracterstica especial denominada polissemia est sempre presente

    nessas questes (p 18). Em Alosio Ruedell, lemos que

    No h compreenso efetiva que no dependa de interpretaes

    individuais, como tambm no existe sentido a ser interpretado que, por sua vez, j

    no tenha sido projetado por uma conscincia individual. (RUEDELL, 2000: p. 69)

    Da busca pela verdade inquietao pela sua possvel inalcanabilidade, resta

    admitir que o sujeito interpretante atua sobre o significado (a verdade) pretendido pelo

    autor. Vistos esses elementos relativos hermenutica, avancemos para os aportes literrios.

    Como mola propulsora do New Criticism, I. A. Richards publica The meaning

    of meaning, em 1923, em co-autoria com C. K. Ogden, no qual enfatiza a importncia da

    leitura ou da interpretao, que visa a conhecer um valor, o valor esttico25 (MOISS,

    2002, p. 123).

    Um dos legados mais difundidos do New Criticism a centralizao no ato de

    interpretao, ao contrrio do que era feito antes, a saber, a pesquisa histrico-filolgica e

    biogrfica26 (CULLER, 1988: p. 13). O movimento encorajava a close reading, dava ateno

    linguagem figurada e explorava a fundo a significao; a obra per se deveria ser a

    preocupao central da crtica, e no eram aceitas as crticas impressionistas. Evitando o apelo

    a dados biogrficos do autor, o New Criticism tambm evita cair na armadilha da falcia da

    inteno, sobre a qual falaremos abaixo. Realava-se, tambm, uma perspectiva

    contextualista: somente a partir de todo o contexto das possibilidades interpretativas de toda a

    elocuo, na crena de I. A. Richards, os significados de uma obra literria podem ser

    24 RICOEUR, Paul. Interpretao e ideologias. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990. 25 MOISS, Massaud. Dicionrio de termos literrios. So Paulo: Cultrix, 2002. 26 CULLER, Jonathan. Framing the sign: criticism and its institutions. Norman and London: University of Oklahoma Press, 1988.

  • 28

    convenientemente apreendidos (AGUIAR E SILVA, 1974, pp. 578-579). Para uma sinopse

    dos principais traos do movimento, vale citar um excerto do verbete Crtica, de Massaud

    Moiss:

    Na verdade, a expresso new criticism engloba crticos e doutrinas nem

    sempre uniformes ou unnimes. De modo geral, porm, concordam com os

    seguintes quesitos: o texto literrio deve ser encarado como um objeto em si, de

    maneira tal que a anlise se concentre nos seus elementos constituintes (close

    reading), ou seja, na sua linguagem, entendida como uma estrutura de

    significados (anlise semntica); interessa-lhes detectar a tenso a ironia, o

    paradoxo, o simbolismo, a ambigidade, a estrutura dramtica, em suma, o

    carter ontolgico do texto. Desprezam a classificao dos gneros e as

    aproximaes crticas propostas pela Sociologia, a tica, a Filologia, a Histria etc.

    Entretanto, o exame do material lingstico no raro compelia os novos crticos a

    aceitar as informaes oriundas da Antropologia, da Psicanlise, do Folclore, da

    Estatstica, etc. (MOISS, 2002: p. 124)

    Esses preceitos revelam uma herana da fenomenologia, que apregoava a

    leitura totalmente imanente do texto, pois esse a materializao da conscincia de seu autor

    (EAGLETON, 2003: p. 81). A linguagem fixava significados, sendo imaculada pelo mundo

    exterior (Idem, p. 84). Heidegger acreditava que a interpretao literria no estava

    fundamentada na atividade humana, sendo algo que deveramos deixar ocorrer ao entregarmo-

    nos ao texto. No tocante validade de elementos extratextuais na interpretao, uma das

    contribuies crticas mais reconhecidas seria a de T. S. Eliot, que

    (...) formulou nos seus ensaios algumas das orientaes basilares do new

    criticism: a ateno do crtico deve recair sobre a obra e no sobre a biografia do

    autor; necessidade de analisar rigorosamente a obra literria como uma estrutura

    verbal autnoma; condenao da crtica literria regida por preocupaes

    extraliterrias; rejeio da crtica impressionista. (AGUIAR E SILVA, 1974, p. 580)

  • 29

    Aqui a busca pela verdade no se atm autoridade do criador do texto: a

    interpretao imanente ao texto por si s, no aceitando elementos que dele estejam fora. O

    fato de estudar textos literrios sem aceitar aportes alheios parece, hoje em dia,

    autocontraditrio. Mesmo por que, indiretamente, sempre utilizamos conhecimentos oriundos

    de outras reas do conhecimento durante o processo de leitura. Isso se relaciona com o

    contexto do leitor: para interpretar, necessrio conhecimento de mundo, que ser, mesmo

    que inconscientemente, aplicado no momento de leitura.

    Em Contra a interpretao27, ensaio contido em volume homnimo, Susan

    Sontag manifesta, como j sugere o ttulo, suas resistncias com relao a essa homenagem

    prestada obra pela mediocridade (p. 18). Ao longo de todo o texto, perceptvel que sua

    atitude manifesta uma crena nos limites impostos ao ato interpretativo; por outro lado,

    transparece o que hoje se denominaria uma viso intencionalista, ou mesmo essencialista, em

    especial sob o ponto de vista do ps-estruturalismo: critica os assombrosos significados que

    so falhos, falsos, artificiais e que no conseguem convencer (p. 18). Suas idias de

    interpretao vlidas parecem oscilar entre a inteno do autor e a da obra como regra de

    validao.

    Sem limitar-se literatura, mas dirigindo-se arte em geral, cita como

    exemplo daquilo que critica as interpretaes freudianas de O silncio, do cineasta sueco

    Ingmar Bergman. Nessa obra, h uma cena em que figura um tanque a circular ruidosamente

    pelas ruas, cuja imagem interpretada como um smbolo flico pelos freudianos. Para Sontag,

    aqueles que procuram uma interpretao freudiana no tanque expressam apenas sua

    incapacidade de responder quilo que est efetivamente na tela (pp. 18-19). Isso tambm

    indica, para a autora, uma insatisfao com a obra, desejando substitu-la por alguma outra

    coisa (p. 19). A interpretao vista como praga (p. 20), arrogncia (p 21). pgina 16,

    prope que interpretar empobrecer, esvaziar o mundo para erguer, edificar um mundo

    fantasmagrico de significados; as aspas eloqentes que envolvem a palavra significados

    indicam que, interpretando, fazemos uma imitao do mundo, empobrecendo-o, ao invs de

    experiment-lo de forma imediata (podemos interpretar, com o perdo de Sontag, a palavra

    imediata como sem mediao, conforme a raiz latina). Interpretar um convencionalismo,

    pois, a partir desse ato, tornamos a obra de arte dcil (p.16). O ato em si j viola a arte,

    tornando-a um objeto de uso encaixado num esquema mental de categorias (p. 19). Um

    27 SONTAG, Susan. Contra a interpretao. Porto Alegre: L&PM, 1987.

  • 30

    argumento um tanto inquietante diz respeito pintura abstrata, que a tentativa de no ter

    nenhum contedo no sentido comum (p. 19), no podendo, portanto, ser interpretada. Esse

    comentrio de Sontag parece-nos intrigante: se no conseguimos ver o suficiente

    explicitamente, o que nos resta, ento, seno interpretar?

    Finalmente, a autora concorda que uma obra de arte possa ser interpretada,

    contanto que a interpretao no usurpe seu lugar; cr que, se nos ativssemos menos ao

    contedo e mais forma, o problema seria resolvido. curioso notar, a esse respeito, que,

    voltando trs pargrafos na leitura do texto, a autora caracteriza a distino entre contedo e

    forma como ilusria (p.20). O valor atual mais libertador da arte, para a autora, a

    transparncia, para que possamos ver a coisa em si, sem nada acrescentar, sem mediaes.

    Trouxemos o texto de Sontag para ilustrar uma das diversas vises sobre

    interpretao; apesar de seu radicalismo, de suas crticas incisivas, o texto j tem sua

    importncia enraizada nas questes de que trata. Aps a exposio de uma perspectiva

    contestadora, avancemos para uma proposta mais elaborada e fecunda.

    Em livro intitulado Textual power28, Robert Scholes oferece propostas que nos

    sero de grande valia, pois dedica grande parte do livro s questes que circundam a

    interpretao, a comear pela afirmao de que toda ao significativa, desde usar uma

    gravata, abraar um amigo, preparar uma refeio, s significativa na medida em que um

    signo em algum cdigo interpretativo (SCHOLES, 1985: p.1). Nessa obra, a literatura vista

    acima de tudo como arte. Discorrendo sobre a leitura de textos literrios, prope uma

    tripartio constituda de leitura, interpretao e crtica. A leitura considerada por Scholes

    um ato inconsciente e fluente; se h alguma coisa que atrapalhe essa fluncia, d-se a

    passagem para a interpretao. Processo consciente, interpretar uma habilidade maior que a

    da leitura e se torna necessria em textos que causam uma sensao de falha por parte do

    leitor, bem como de incompletude; lemos uma fbula para saber a estria, mas a

    interpretamos para saber a moral; () a interpretao pode ser tanto o resultado de algum

    excesso de significado em um texto quanto de alguma deficincia de conhecimento do

    leitor29 (SCHOLES, p. 21). Quando ocorre o inverso, entra-se no terreno da crtica, que se d

    quando h alguma deficincia no texto ou excesso no leitor. H uma necessidade de preencher

    determinadas lacunas, em geral com base em alguma ideologia de grupo, como no caso das 28 SCHOLES, Robert. Textual power. New Haven and London, Yale University Press, 1985. 29 (...) interpretation can be the result of either some excess of meaning in a text or of some deficiency of knowledge in the reader.

  • 31

    feministas. Em suma, produzimos texto dentro (within) de texto na leitura, texto sobre (upon)

    texto na interpretao e texto contra (against) texto na crtica (SCHOLES, 1985: p. 24). S

    podemos ler o que o autor diz, o que est explcito; para chegarmos ao que um texto

    representa, necessrio conhecimento. A [i]nterpretao situa-se no outro lado da leitura.

    Seu domnio o no-dito: o implcito, talvez, ou mesmo o reprimido30 (SCHOLES, 1985: p.

    32). O autor considera a interpretao um ato incompleto sem que haja uma incurso crtica;

    interpretao e crtica completam a leitura.

    Quanto polmica da intencionalidade como critrio de validade de uma

    interpretao, Scholes no cr em uma posio entre a autoridade do autor e a autoridade do

    leitor no que tange ao significado de uma obra. O sistema cultural o ingrediente que est

    faltando para que se resolva o impasse, pois nele que todos os elementos envolvidos na

    polmica seja autor, seja texto, seja leitor esto inseridos; quem l est alocado em um

    ponto especfico de uma tradio cultural que exerce influncia no processo de decodificao

    de signos. Scholes no cr na validade da intencionalidade autoral como sendo o que dita a

    interpretao correta; somente podemos presumir a inteno do autor, sem nunca termos

    acesso a ela, pois isso impossvel, sendo o acesso suposta intencionalidade puramente

    textual31. O apelo inteno do autor no considerado de todo invlido: um objetivo

    parcial da interpretao, e no a chave para o significado vlido. (SCHOLES, 1985: p. 50)

    Nas vrias pginas dedicadas a crticas a Is there a text in this class?, de

    Stanley Fish, encontram-se diversas amostras da posio de Scholes quanto interpretao.

    Scholes cita a idia de Fish, segundo a qual no h texto, sendo esse apenas uma fantasia da

    imaginao do leitor, pois o leitor que o constri, sendo tolhido apenas pela comunidade

    interpretativa a qual pertence, que o controla totalmente em termos de ideologia; o texto no

    oferece resistncia nem fomento a determinadas estratgias interpretativas. Scholes refuta as

    asseres de Fish conforme podemos ver no seguinte trecho:

    Suposies diferentes, at mesmo conflitantes, podem presidir a qualquer

    leitura de um nico texto por uma nica pessoa. So, na verdade, as prprias

    diferenas diferenas dentro do leitor, que jamais um membro unificado de um

    30 Interpretation lies on the other side of reading. Its domain is the unsaid: the implied, perhaps, or even the repressed. 31 Gerald Graff diz que podemos alcanar as intenes de uma pessoa por meio de inferncias (GRAFF, 1990: p. 166).

  • 32

    nico grupo unificado so essas prprias diferenas que criam o espao no qual o

    leitor exercita uma medida de liberdade interpretativa32. (SCHOLES, 1985: p. 154)

    A palavra medida (measure) diz muito sobre a posio de Scholes: a

    liberdade interpretativa no total. Antes de tentarmos compilar as opinies do autor,

    partamos para a crtica derradeira a Fish. Scholes acusa Fish de autocontradio, uma vez que

    diz que os significados so situacionais (diferentes em cada situao), ao mesmo tempo em

    que refuta a tese de Searle (atos de fala diretos e indiretos). Searle diz que h diferena entre

    dizer Tenho que estudar para uma prova e utilizar essa mesma frase como resposta a um

    convite para ir ao cinema: o falante no quer dizer exata e unicamente aquilo (ato de fala

    direto), mas tambm implicar No; recuso-me a ir ao cinema com voc (ato de fala

    indireto); Fish acredita e insiste que h apenas um significado, o de informar que h a

    necessidade de estudar para uma prova. Parece-nos suficientemente claro que h uma grande

    diferena situacional entre uma simples declarao e uma resposta a uma pergunta. Essa, em

    geral, regida por uma srie de implicaes scio-culturais que nos impedem de nos guiarmos

    unicamente pela lgica, como seria o caso de responder No pergunta Voc gostou?,

    feita por algum que acabou de nos dar um presente de que no gostamos.

    Desde o incio de suas reflexes at o final da crtica contumaz a Stanley Fish,

    pareceu-nos bem claro que, na opinio de Robert Scholes, h limites para a interpretao e

    que h, nos textos, uma resistncia a interpretaes livres. O leitor, para Scholes,

    indubitavelmente tem papel ativo na leitura da obra literria, sendo que seu lugar no sistema

    cultural concorre para a decodificao da obra.

    3.2 O que rege a validade de uma interpretao?

    32 Different, even conflicting, assumptions may preside over any reading of a single text by a single person. It is in fact the very differences differences within the reader, who is never a unified member of a single unified group it is these very differences that create the space in which the reader exercises a measure of interpretive freedom.

  • 33

    Em sua maioria, as teorias sobre interpretao, segundo Mailloux, no s tm a

    pretenso de descrever como ocorre a interpretao, mas de prescrever como ela deveria

    ocorrer33 (MAILLOUX, 1990, p.123). Cremos que prescrever tem seus perigos, uma vez que

    no h leis incontestveis para tanto. Podemos, sim, levantar hipteses para o que pode ser

    mais (ou menos) adequado em determinadas circunstncias. Analisemos um exemplo: um

    determinado leitor, adepto da liberdade total no interpretar, l The raven, de Edgar Allan Poe

    como se esse fosse uma expresso de alvio por parte do narrador por ter perdido Lenore,

    justificando a atmosfera lgubre, de profundssima tristeza que o poema passa para a

    maioria dos leitores, como sendo ironia. Essa interpretao nos soa absurda, pois no se v

    nenhum indcio dessa natureza no poema, nem no contedo nem na musicalidade funesta,

    nem na sonoridade sibilante, e muito menos na cadncia ominosa do poema. Resumindo:

    convencionalmente, a interpretao um disparate. Mas fica a pergunta: est correta essa

    interpretao? Mailloux lembra-nos de que as interpretaes comumente tidas como corretas

    so aquelas consideradas acuradas, aceitveis, vlidas (MAILLOUX, 1990, p. 126). Como

    no se trata de uma cincia exata, h o problema da indeterminao: Gerald Graff aponta que

    a indeterminao j preocupou muitos professores de literatura, eis que minaria a base de sua

    prtica, uma vez que, segundo o princpio de indeterminao, no poderia haver interpretao

    correta34 (p. 163). A indeterminao uma propriedade do texto que o infecta, tornando tanto

    a interpretao da literatura como a literatura em si incertas, ameaando a autoridade de

    ambas; tentar alcanar um sentido determinado uma empresa fadada ao fracasso, uma

    limitao. A indeterminao vitima a literatura (p. 165). Permanece a pergunta: a

    interpretao acima vlida? No tocante validade, examinemos a proposta de E. D. Hirsch.

    Considerada a mais estrnua resposta mudana na aplicao do

    antiintencionalismo35 (PATTERSON, 1990: p. 142) a obra intitulada Validity in

    interpretation, de E. D. Hirsch, intencionalista ferrenho, conforme demonstra sua asseverao

    de que [s]empre que o significado estiver ligado a uma seqncia de palavras, impossvel

    33 MAILOUX, Steven. Interpretation. In: LENTRICCHIA, Frank & McLAUGHLIN, Thomas (eds.). Critical terms for literary study. Chicago and London: The University of Chicago Press, 1990. 34 GRAFF, Gerald. Determinacy/Indeterminacy. In: LENTRICCHIA, Frank & McLAUGHLIN, Thomas (eds.). Critical terms for literary study. Chicago and London: The University of Chicago Press, 1990. 35 PATTERSON, Annabel. Intention. In: LENTRICCHIA, Frank & McLAUGHLIN, Thomas (eds.). Critical terms for literary study. Chicago and London: The University of Chicago Press, 1990.

  • 34

    escapar de um autor36 (p. 5). Dedicando um volume de quase trezentas pginas defesa do

    intencionalismo, Hirsch apresenta idias bem fundamentadas: seu modelo terico fornece uma

    diferenciao entre significado (meaning), e significao (significance). O significado o que

    os signos representam; decisivamente dependente da inteno autoral. Aquilo que foi escrito

    por um autor apenas pode significar o que esse mesmo autor pretendeu que significasse no

    momento de sua criao. A significao, por sua vez, relaciona-se com o contexto pessoal,

    social, cultural do leitor; aquilo que surge da relao do significado com a pessoa que o

    assimila. Um sujeito pode assimilar uma significao que transcende o que o autor pretendeu,

    permanecendo vlida como interpretao, mas no como significado.

    No obstante a fundamentao consistente, sob o nosso ponto de vista, Hirsch

    no apresenta uma base suficientemente convincente para impor sua tese de que o significado

    vlido o que fora pretendido pelo autor.

    Uma vez que o autor tenha sido desapiedadamente descartado como aquele que

    determina o significado de seu texto, parece no haver princpios para julgar a validade de

    uma interpretao (p. 3). Banir o autor original como o determinante do significado

    significou rejeitar o nico princpio normativo convincente que poderia emprestar validade a

    uma interpretao37 (p. 5). Isso tudo no significa, de forma alguma, que Hirsch negue a

    possibilidade de haver mais de uma interpretao para um mesmo texto, visto que (...) a

    mesma seqncia de signos lingsticos pode representar mais de um significado complexo38

    (p. 9). Vrias leituras, vrias interpretaes so plausveis, pertinentes, mas esse fato no

    significa, absolutamente, que qualquer uma delas seja a interpretao correta. Sobre o

    fenmeno quase ubquo de um autor mudar sua viso de seu prprio texto, Hirsch argumenta

    que possvel, porm teoricamente irrelevante. Pelo visto, o que realmente prevalece a

    inteno do momento da escrita, o que nos remete antiga busca hermenutica pela verdade.

    Argumenta que bvio que a compreenso anterior interpretao e diferente dela. A

    interpretao muito mais pessoal e incontrolvel, ao passo que a compreenso mais

    regrada, exigindo do leitor uma estruturao (construction) ativa do significado. No se d

    apenas atravs do texto: precisamos de pressupostos filolgicos (por exemplo, conhecer a

    lngua na qual o texto est escrito) para que possamos compreend-lo. Poderamos atribuir a

    36 Whenever meaning is attached to a sequence of words it is impossible to escape an author. HIRSCH, E. D. Jr. Validity in interpretation. New Haven and London: Yale University Press, 1967. 37 To banish the original author as the determiner of meaning was to reject the only compelling normative principle that could lend validity to an interpretation. 38 () the same sequence of linguistic signs can represent more that one complex meaning.

  • 35

    essa concepo at mesmo certo cientificismo, para ajustarmo-nos ao tom do texto de Hirsch,

    que prima por um rigor cientfico que hoje sabemos dificilmente alcanado nas cincias

    humanas. O autor menciona a metfora dos observadores de um prdio (visto como o

    significado), cada um posicionado em um ngulo diverso: todos vero o mesmo prdio, porm

    um ver a fachada, outro a lateral etc., ou seja, ngulos distintos, interpretaes igualmente

    distintas. A asseverao mais intrigante do texto de Hirsch , em nossa opinio, a de que est

    equivocada a crena do historicista ctico, segundo a qual esse cr que as nossas

    experincias atuais no so as mesmas do passado, bem como nossas maneiras de pensar;

    Hirsch nega que s consigamos compreender um texto nos nossos prprios termos, j que o

    significado verbal deve ser apreendido em seus prprios termos, isso se o for39 (p. 135).

    Segundo Umberto Eco40, (e)ntre a inteno inacessvel do autor e a inteno

    discutvel do leitor est a inteno transparente do texto, que invalida uma interpretao

    insustentvel. (ECO, 2001, p. 93) O exemplo de The raven, acima, um caso, parece-nos, de

    interpretao insustentvel. Outro exemplo sobre uma outra questo correlata a validade da

    inteno do autor parece pertinente. Uma das interpretaes mais recorrentes da Guerra do

    Anel de The Lord of the Rings, que surgiu praticamente com a publicao do livro e perdurou

    por dcadas, a de que as foras opostas (o bem e o mal, basicamente) em guerra na Terra-

    Mdia representavam as foras contrrias da Segunda Guerra Mundial. John Ronald Reuel

    Tolkien, autor do texto, negou veementemente at a morte que essa interpretao fosse vlida,

    pois essa no era sua inteno. H que lembrar que Tolkien conheceu os horrores da guerra

    pessoalmente, lutando no exrcito ingls, e que sua inteno ao escrever um texto no precisa,

    necessariamente, ser consciente. Isso uma questo de contexto, de bagagem. Sabe-se que h

    discusses no-pacficas a respeito da interferncia das experincias pessoais do autor em sua

    obra. Como somos partidrios do eixo que defende a idia de que h interferncia,

    acreditamos que, no caso do exemplo acima, houve interferncia, consciente ou no; nossa

    crena se tornar mais bem fundamentada ao comentarmos com mais pormenor a teoria de

    Eco. Havendo ou no, se Tolkien teve ou no a inteno da representao mencionada,

    concordamos com Compagnon, quando diz que:

    No somente o sentido do texto no se esgota com a inteno nem se lhe

    equivale no pode ser reduzido ao sentido que tem para o autor e seus 39 () since the verbal meaning has to be construed in its own terms if it is to be construed at all. 40 ECO, Umberto. Entre autor e texto. In: ___. Interpretao e superinterpretao. So Paulo: Martins Fontes, 2001a.

  • 36

    contemporneos , mas deve ainda incluir a histria de sua crtica por todos os

    leitores de todas as idades, sua percepo passada, presente e futura.

    (COMPAGNON, 1999, p. 64)

    Pode-se perceber que, medida que se vo tecendo comentrios sobre essas

    questes, surgem discrepncias e contradies. Sabe-se que a obra literria , por natureza,

    plurissignificativa, polissmica. Possui um significado original pretendido pelo autor, mas

    que, ao menos parcialmente, se desvanece quando de seu trmino, ficando aberta41 s

    interpretaes dos leitores. Cada gerao de leitores interpreta uma mesma obra luz de seu

    tempo, de seu contexto. No toa que os grandes clssicos so, de tempos em tempos,

    retraduzidos, uma vez que a linguagem, as idias e o prprio tempo mudam. As tradues so,

    nesse sentido, atualizaes de uma obra. O prprio autor, ao ler sua prpria obra aps um

    determinado tempo, entende-a diferentemente de quando a produziu. Os originais no

    envelhecem at o ponto em que se tornam to antigos que os leitores no tm mais acesso

    linguagem daquele tempo, sendo as obras submetidas a uma traduo intralingual, como foi o

    caso de Beowulf, que j citamos.

    Como estabelecer, ento, regras para a validade de uma interpretao? Em

    relao a estabelecer o autor como baliza nica (Hirsch), Jonathan Culler, sob a tica

    desconstrucionista, diz:

    Restringir o sentido de uma obra ao que um autor poderia ter tencionado

    permanece uma estratgia crtica possvel, mas geralmente nos dias de hoje esse

    sentido est amarrado no a uma inteno interior mas anlise das circunstncias

    pessoais ou histricas do autor: que tipo de ato esse autor estava realizando, dada a

    situao do momento? Essa estratgia denigre respostas posteriores obra,

    sugerindo que a obra responde a preocupaes de seu momento de criao e apenas

    acidentalmente s preocupaes de leitores subseqentes. (CULLER: 1999, p. 69)

    41 A esse respeito, para um amplo tratamento da questo do carter aberto da obra de arte, conferir Obra aberta (So Paulo: Perspectiva, 2003), no qual Umberto Eco considera a obra de James Joyce o exemplo mximo de obra aberta.

  • 37

    H inmeros casos em que o leitor v coisas numa obra que no foram

    conscientemente pretendidas pelo autor, mas que so perfeitamente pertinentes.

    Conseqentemente, a tese de que o autor o nico elemento que rege a validade da

    interpretao no se sustenta. O maior problema de todos que no h uma resposta

    definitiva, dada a volatilidade das intenes. Resta, portanto, tentarmos expor o que nos

    parece mais pertinente com base no que est sendo aqui analisado. Isso ser feito no final

    deste captulo.

    3.3 Quais os limites da interpretao?

    Dos diversos paradoxos apresentados por uma teoria intencional do significado, a do objeto intencional

    compartilhado , talvez, a mais fundamental. Uma vez que toda inteno , at certo ponto, nica, o

    significado de qualquer texto que eu possa ler , num sentido bem real, qualquer coisa que eu queira que

    ele seja. Ao mesmo tempo, uma vez que a obra em apreo vigora como o objeto constitudo pela inteno

    original do autor, seu significado nico deve ser necessariamente dele. Esse paradoxo est no topo dos que

    agora so os debates legendrios sobre a inteno do autor e a autonomia textual que polarizaram a

    academia americana aps a Segunda Guerra Mundial (...).

    William Ray

    O paradoxo apontado por William Ray (RAY: 1984, p.9), na epgrafe, ainda

    que implicitamente, diz muito sobre os limites da interpretao. Pode ser interpretado como

    um convite defesa da interpretao limitada, bem como da ilimitada. Ray cita Heidegger,

    que acreditava que a interpretao literria no era algo que fazamos, mas que deveramos

    deixar acontecer: no era, portanto, um ato humano, mas imanente obra. Subjaz a um alto

    grau de (de)limitao. J Culler nos diz que no conhecemos o sentido de uma obra literria

    da mesma maneira que conhecemos o sentido de John is eager to please42 e, portanto, no

    podemos tomar o sentido como um dado mas temos que busc-lo (CULLER: 1999, p.65)

    (grifo nosso). As opinies so muito divididas e, embora cada lado se defenda bem, o

    equilbrio das foras parece ser a melhor opo. No se trata meramente de ficar em cima do

    muro, mas de opor-se a divises radicais feitas a golpes de faco, como se houvesse nas

    42 John est ansioso por agradar.

  • 38

    cincias humanas algo como gua e leo no se misturam, como na qumica, ou 5x2=10, e

    nunca 5x2=11, como na aritmtica.

    Na interpretao, a questo dos limites tem-se mostrado a mais espinhosa, bem

    como na teoria literria per se. No se pode fazer uma obra significar qualquer coisa: ela

    resiste e voc tem de se esforar para convencer os outros da pertinncia de sua leitura

    (CULLER: 1999, p. 68). Corroborando a idia de Culler, cremos que pertinncia a palavra-

    chave, no importando se a interpretao moderada ou extrema. Podemos entender melhor

    sua noo de pertinncia no trecho a seguir, no qual deixa implcito que, desconsiderando

    vos exagerados de imaginao, o extremismo tem grande valor:

    Muitas interpretaes extremas, como muitas interpretaes

    moderadas, sem dvida tero pouco impacto, por serem consideradas pouco

    convincentes, redundantes, irrelevantes ou aborrecidas, mas, se forem extremas,

    tero mais possibilidade, parece-me, de esclarecer ligaes ou implicaes ainda

    no percebidas ou sobre as quais ainda no se refletiu, do que tentarem manter-se

    seguras ou moderadas (CULLER, 2001, p. 131).

    Ou seja, o extremismo interpretativo ilumina o caminho para novas

    descobertas43. Porm, quanto menos extremas as interpretaes, mais seguras sero. Cabe ao

    leitor, com devida parcimnia, escolher seu caminho. Para tentarmos responder pergunta

    sobre o que rege os limites de uma interpretao, devemos, primeiramente, ampararmo-nos

    em Umberto Eco.

    3.4 A teoria da interpretao de Umberto Eco

    Deixamos para dedicar a ltima anlise terica deste captulo a Umberto Eco,

    devido ao fato de, em nosso entendimento, ser esse o autor que apresente a reflexo mais rica

    e abrangente. No se deve, de maneira alguma, pensar que abrangente signifique raso. Eco 43 Uma maior exposio das idias de Culler a esse respeito pode ser conferida no texto Em defesa da superinterpretao (CULLER, 2001).

  • 39

    apresenta teorias extremamente bem fundamentadas e, a partir da leitura dessas, possvel

    estabelecer uma maneira satisfatria de interpretar atravs do equilbrio no uso de seus

    modelos. Eco tem dedicado numerosos volumes s questes de interpretao das obras de

    arte, o que logicamente inclui as literrias. Para os propsitos deste trabalho, no entanto,

    julgou-se desnecessrio um levantamento exaustivo de sua produo terica, remetendo-nos

    exposio que segue. Justificamos nossa posio pelo fato de que boa parte daquilo que Eco

    fala est, de uma forma ou de outra, abordado nas anlises j feitas. Alm disso, ao longo de

    toda a sua obra, h constantes retomadas dos temas que aborda, na comparao de um livro

    com outro. As obras que compem o cerne de sua teoria da interpretao so Obra aberta44 e,

    principalmente, Lector in fabula45 e Os limites da interpretao46. Uma sntese de suas idias

    pode ser conferida na seguinte citao do texto Sobre algumas funes da literatura47:

    A leitura de obras literrias nos obriga a um exerccio de fidelidade e de

    respeito na liberdade da interpretao. H uma perigosa heresia crtica, tpica de

    nossos dias, para a qual de uma obra literria pode-se fazer o que se queira, nela

    lendo aquilo que nossos mais incontrolveis impulsos nos sugerirem. No

    verdade. As obras literrias nos convidam liberdade de interpretao, pois

    propem um discurso como muitos planos de leitura e nos colocam diante das

    ambigidades, da linguagem e da vida. (ECO, 2003b, p.12)

    Parece que a palavra-chave do pensamento de Eco limite. Segundo

    exemplos do mesmo texto citado, no se pode dizer que Sherlock Holmes casado, pois no

    h, na obra de Sir Arthur Conan Doyle, nenhum indcio para cr-lo. Clark Kent o Super-

    Homem, assim como Bruce Wayne o Batman: todos aqueles que j leram os respectivos

    quadrinhos sabem dessas verdades. Segundo Eco, essas so as chamadas verdades

    hermenuticas: no h como abandonarmo-nos a derivas interpretativas. A obra aberta e

    dela pode-se fazer leituras infindveis, mas, atentando para algumas marcas no texto, veremos

    que h elementos que nos limitam. O mundo da literatura um universo no qual possvel

    fazer testes para estabelecer se um leitor tem o sentido da realidade ou presa de suas

    prprias alucinaes (ECO, 2003b, pp. 14-15). Sua estratgia simples e antiga, tomada de

    44 ECO, Umberto. Obra aberta. So Paulo: Perspectiva, 2003a. 45 ECO. Lector in fabula. So Paulo: Perspectiva, 2004. 46 ECO, Umberto. Os limites da interpretao. So Paulo: Perspectiva, 2000. 47 ECO, Umberto. Sobre a literatura ensaios. Rio de Janeiro: Record, 2003b.

  • 40

    emprstimo de Santo Agostinho, em De doctrina christiana, qual seja, a de procurar num

    texto algo que corrobore ou no a interpretao que fizemos de uma parte (ECO, 2001a, p.

    76). Em outras palavras, o contexto em que um trecho interpretado a chave bsica para

    validar ou invalidar a interpretao. Eco critica a propenso clssica a considerar que o

    correto era descobrir num texto ou o que seu autor pretendia dizer, ou o que o texto dizia

    independentemente das intenes de seu autor (ECO, 2003b, pp. 74-75). No processo de

    leitura, para que se possa compreender a obra, o leitor a reinventa num ato de congenialidade

    com o autor (ECO, 2003a, p. 41). Em suma: entram em jogo a inteno do autor, aquilo que

    est no texto, e aquilo que o leitor traz consigo; cada elemento dessa relao tem uma

    inteno prpria. Em relao s intenes envolvidas no processo interpretativo, vale abordar

    a tricotomia das intentiones proposta por Eco:

    Intentio auctoris: inteno do autor. Embora alguns poucos ainda defendam que essa recupervel, esse fato comumente inaceitvel. S possvel levantar hipteses sobre

    o que o autor quis dizer com base nos elementos mais explcitos dos dados disponveis

    para tanto.

    Intentio operis: inteno da obra. Semelhante intentio anterior, porm centrada no texto, ou seja, naquilo que o texto oferece ao leitor.

    Intentio lectoris: a contribuio do leitor ao interpretar uma obra. A inteno do leitor a mais controversa da atualidade, possivelmente devido a superinterpretaes das

    idias de Jacques Derrida.

    H discordncia entre os tericos em