Fábio Martins - Ser Apreendido Pela Tipografia

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  • 1SER APREENDIDOPELA TIPOGRAFIANOTAS SOBRE UMA RESOLUO MATERIAL-INSTRUMENTAL

    FBIO DE OLIVEIRA MARTINS

    BELO HORIZONTE M M X I V

  • 2FBIO DE OLIVEIRA MARTINS

    SER APREENDIDO PELA TIPOGRAFIANOTAS SOBRE UMA RESOLUO MATERIAL-INSTRUMENTAL

    Trabalho de Concluso de Curso (TCC), apresentado ao Colegiado de Graduao em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial para a obteno do ttulo de Bacharel em Artes Visuais.Habilitao em Artes Grficas

    Orientadora: Profa. Dra. Ana Utsch

    BELO HORIZONTE ESCOLA DE BELAS ARTES UFMG 2013

  • 3Sumrio

    1. DA LIGA, DOS HOMENS E DOS GESTOS ..... 3

    2. RESOLUES DE PROBLEMAS ..................... 5

    2.2 - PROBLEMAS RELATIVOS S MQUINAS E FERRAMENTAS 9

    2.3 - PROBLEMAS RELATIVOS AOS MATERIAIS . 10

    3. OS TRS PERODOS DE UMA APREENSO . 11

    3.1 - O EXEMPLO .......................................... 15

    3.2 -A IMITAO .......................................... 20

    3.3 - A DELIBERAO .................................... 24

    4. SOBRE MICRMEGAS E A TIPOGRAFIA ...... 35

    5. CONSIDERAES FINAIS .......................... 40

    SUMRIODA LIGA, DOS HOMENS E DOS GESTOS

    RESOLUES DE PROBLEMAS PROBLEMAS RELATIVOS S MQUINAS E FERRAMENTAS PROBLEMAS RELATIVOS AOS MATERIAIS

    OS TRS PERODOS DE UMA APREENSO

    O EXEMPLO A IMITAO A DELIBERAO

    SOBRE MICRMEGAS E A TIPOGRAFIA

    CONSIDERAES FINAIS

    1

    2

    3

    4

    5

    2.12.2

    3.13.23.3

  • 4 ON EN PARLE PAR MTAPHORE COMME DUNE MAIN LIEUSE QUI, PAR DIVERS APPRTS, SINFLCHIT ET ORIENTE AFIN DE LIER1.

    1 Giordano Bruno. Des Liens (1589-1591), traduit et annot par Danielle Sonnier et Boris Donn. Paris, ditions Allia, 2006, p.9.

  • 5DA LIGA, DOS HOMENS E DOS GESTOS1

  • 61. DA LIGA, DOS HOMENS E DOS GESTOS

    Certamente, no poderemos compreender e problematizar nesses parcos escritos acepes que, relativas s tcnicas tipogrficas, exibem uma continuidade de aproximadamente sete sculos, desde sua suposta inveno por Johann Gutemberg 2. Mas possvel perceber, prioritariamente, que, no sculo XV, a brusca assimilao de uma nova rede de materiais e instrumentos, gestos e smbolos, como as impostas pela fundio dos tipos, definiu o sistema de composio e de impresso em caracteres mveis a tipografia , sistema acompanhado, imediatamente, de uma acelerada difuso da cultura escrita, ento impressa, por todo o mundo ocidental. Paul Dupont, no primeiro volume de sua Histria da Impresso, afirma que a impresso se propaga com uma rapidez incrvel e, antes do fim do sculo XV, ela j se estabelece nas principais cidades da Europa 3.

    A fabricao dos tipos mveis, pelas tcnicas de fundio a partir de matrizes individuais e que por sua vez eram geradas pelo choque de uma puno metlica com a matriz de cobre 4 , estabeleceu uma longa tradio grfica e gestual prpria de suas tcnicas de fabricao e das comunidades de artfices, editores e impressores que a sustentavam. Em uma histria de longa durao, estes homens de letras e chumbo definiram os protocolos que ainda hoje regulam, pela fora da tradio, a materialidade das formas da cultura impressa. As matrizes individuais de liga tipogrfica5, com os movimentos e gestos precisos que elas supem, so, desta forma, a imagem forte eleita aqui para representar o sistema tipogrfico, justamente,

    2 (KARCH, 1966. P. 33), (POLK, 1948. P. 14), (MEGGS e PURVIS, 2009) e (DUPONT, 1854. T.1).3 DUPONT, Paul. Histoire de lImprimerie, t. 1.1854. P. 408.4 (ROCHA, 2013. PP. 13-23)5 80% de chumbo, 5% de estanho e 15% de antimnio (MEGGS e PURVIS, 2009. P. 99).

  • 7por encarnar o extraordinrio artifcio cclico e infinito da composio e da recomposio. Com efeito, frente s outras modalidades de caracteres mveis que antecederam a tipografia, como aqueles constitudos em madeira ou argila j conhecidos dos chineses alguns sculos antes de Gutenberg6 , a liga metlica e as tcnicas de fabricao e de uso por ela imposta constituiu um sistema racionalizado e ativo, que funda a noo de tipografia.

    Compreende-se ento que as operaes desencadeadas pela unio intrnseca e indissocivel estabelecida entre matria e gesto se expressam como formas de materializao do pensamento, para utilizar a bela formulao de Christian Jacob em um projeto de antropologia histrica do saber que se dedicou a estudar as mos do intelecto. Para o autor, que organizou recentemente a obra monumental Lieux de savoir 2: les mains de lintellect 7, as operaes tangveis reguladas por regras, tcnicas e sistemas tecnolgicos produzem, fixam e conservam os atos intelectuais.

    Figura 1 - Composio com tipos mveis (POLK, 1948)

    6 FEBVRE, Lucien et MARTIN Henri-Jean, Lapparition du livre. Paris: Les ditions Albin Miche, 1958, p. 108. 7 JACOB, Christian (org.). Introduction. In: Lieux du Savoir 2: Les mains de lIntellect. Paris, Albin Michel, 2011.

  • 8Um grande exemplo desta forma de materializao do pensamento, plasmado em uma realidade tcnica e concreta, , sem dvida, a ruptura dos protocolos grficos operados por Aldo Manuzio ainda no final do sc. XV. Inscritas em um contexto de oposio ao pensamento e tradio grfica medieval, o clebre editor constituiu uma nova visualidade para as letras de chumbo e para a pgina de papel, ambas unidades tcnicas e estticas que concretizam a cultura grfica do sistema tipogrfico. Duas obras, dois monumentos da cultura escrita so emblemas desta oposio; vejamos o que diz George Painter atravs do bigrafo catalo do clebre impressor renascentista:

    A Bblia de Gutenberg sombria e severamente germnica, gtica, crist e medieval; o Hypnerotomachia, em troca, radiante e gostosamente italiano, clssico, pago e renascentista. Ambos so as mais extraordinrias obras primas da arte da impresso, situados nos dois polos das aspiraes e dos desejos humanos8.

    Ainda para alm dos Sonhos de Polifilo, Aldo Manuzio, na Veneza Renascentista, conferiu fundio tipogrfica outro aspecto que marca a oposio com o passado gtico (ainda prisioneiro das formas geradas pelas formas geradas pelo livro manuscrito), pois, apoiado pelo joalheiro Francesco Griffo de Bologna, deu ao desenho tipogrfico moderno de Jenson outra faceta, com a inveno da fonte inclinada popularmente chamada de itlico, ou grifo. Enric Satu, no conhecido livro que aborda a vida

    8 SATU, Enric. Aldo Manuzio: Editor, Tipgrafo, Livreiro: as pegadas de Aldo Manuzio. Trad.: GIORDANO, Cludio. Cotia-SP, Ateli Editorial, 2004. P. 130.

  • 9editorial de Aldo Manuzio, afirma:

    Embora parea ter sido Amerbach o bom impressor alemo, amigo de Erasmo de Rotterdam o primeiro a gravar um tipo mvel no gtico, acabou sendo o eminente tipgrafo francs quem entalhou a primeira grande tipografia moderna, conhecida ainda hoje com o seu nome: Jenson. 9

    Nesse momento, uma enorme rede tipgrafos, editores, impressores, encadernadores e livreiros os atores responsveis pela produo e difuso do livro no ocidente j teria se estabelecido pela Europa e constitudo a revoluo do impresso10. Mas, anos aps a existncia da brutal experincia editorial Aldina, os europeus teriam como principais representantes da tipografia o francs Claude Garamond, quem, sucedendo Jenson, desenhou letras inclusive a partir dos itlicos de Manuzio. A fundio de Garamond ganhou tamanha aceitao e ateno de sua parte, que considerada como marco para o incio da fundio de tipos como uma atividade parte da edio 11.

    9 SATU, Enric. Aldo Manuzio: Editor, Tipgrafo, Livreiro: as pegadas de Aldo Manuzio. Trad.: GIORDANO, Cludio. Cotia-SP, Ateli Editorial, 2004. P. 96.10 Sobre a noo revoluo do impresso ver: EISENSTEIN, Elisabeth. A revoluo da Cultura Impressa: os primrdios da Europa Moderna. So Paulo, tica, 1998.11 (POLK, 1948. P.16).

  • 10

    Figura 2 - Lista dos primeiros impressores europeus (KARCH, 1966)

    Na Inglaterra, desde a impresso do primeiro livro em lngua inglesa, prximo a 1470, impresso na Blgica por William Caxton, no se esperava pelo surgimento de um grande representante da tipografia, at William Caslon12, no sculo XVIII, de onde surgiriam as bases para a constituio de uma tipografia norte-americana. Mas, apesar de se poder sugerir uma herana europeia deixada tipografia norte-americana, os Estados Unidos da Amrica no foram o primeiro pas a receber as mquinas e ferramentas grficas da Europa, mas o Mxico enviadas pelo Rei de Espanha, em 1536.

    12 (POLK, 1948. P. 17) e (KARCH, 1966. P. 38).

  • 11

    Figura 3 - Lista dos primeiros impressores norte-americanos (KARCH, 1966)

    No Brasil, um dos ltimos pases a receber as ferramentas e mquinas tipogrficas em toda a Amrica, somente em 1808 receberia a intitulada Impresso Rgia, oficialmente a primeira grfica brasileira, uma vez que as grficas anteriores a ela eram clandestinas13. Com a fundao da Impresso Rgia, porm, diversas grficas foram criadas por todo o Brasil e, segundo a introduo histrica do Manual do Tipgrafo, de Ralph W. Polk, adaptado para o Brasil por Antnio Sodr C. Cardoso, a difuso das grficas sucessoras Impresso Rgia, tem as datas de:

    Cear, 1824; Paraba, 1826; So Paulo e Rio Grande do Sul, 1827; Rio de Janeiro, 1821; Gois, 1830; Santa Catarina e Alagoas, 1831; Rio Grande do Norte e Sergipe, 1832; Esprito Santo e Mato Grosso, 1840; Paran, 1848 e Amazonas, 1852. 14

    Contraditoriamente, o silncio imposto pela ausncia da palavra impressa no Brasil Colnia e pelo seu tardio aparecimento , ele tambm, uma consequncia das formas de materializao neste caso, imaterializao de um pensamento monrquico que viu na difuso das letras uma ameaa

    13 (POLK, 1948. P. 18) 14 (POLK, 1948. P. 19)

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    ao controle poltico-ideolgico promulgado pela lusofonia15. Este atraso, com relao a outros pases latino-americanos, marcou, sem dvida, os usos e as prticas prprias da tipografia no Brasil, ainda hoje carente de discursos construdos em torno de suas tcnicas, de seus gestos e de seus homens, constatao evidenciada pelas poucas publicaes que se dedicaram a estud-la, seja como tcnica, seja como esttica, seja como histria. A ausncia destes discursos que pode se afirmar pela indiferena traz consigo a ameaa do apagamento das prticas que produziram e agenciaram os sistemas de circulao da cultura impressa16.

    com a conscincia da indissociabilidade entre os modos de produo da tipografia seus modos de existncia as formas de sua difuso e as modalidades de suas diferentes recepes que se inscreve nossa tentativa de compreender as formas de Apreenso do universo tipogrfico em uma experincia desenvolvida no interior de uma oficina tipogrfica na Belo Horizonte do sc. XXI.

    15 Ver: BRAGANA, Anibal e ABREU, Marcia (Org.). O impresso no Brasil. Dois sculos de livros brasileiros. So Paulo, Editora UNESP, 2011. 16 Sobre os rastros deixados pelas obras artsticas e literrias do passado ver o magnfico ensaio: SCHLAGER, Judith. Prsence des uvres perdues. Paris: Hermann, colection Savoir lettres, 2010.

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    RESOLUES DE PROBLEMAS2

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    2. RESOLUES DE PROBLEMAS

    Pode-se considerar com certo otimismo a emergncia de autores que, desde os anos de 1940, fazem germinar nas disciplinas da Filosofia e Antropologia proposies metodolgicas que considerem fortemente as tcnicas, ainda que de modo mais abrangente e no associadas diretamente tipografia: Andre Leroi-Gourhan quem brilhantemente deu novas diretrizes proposio de Marcel Mauss de constituir uma disciplina intitulada Tecnologia nos dois volumes de Evoluo e Tcnicas e nos consecutivos volumes de O Gesto e a Palavra. Da mesma forma apresenta-se o trabalho de Andr-Georges Haudricourt, que dedicou esforos no estudo do cultivo de plantas, dos transportes apoiados por animais, alm dos numerosos artigos e ensaios buscando os parmetros terico-metodolgicos de uma Etnologia das Tcnicas, alguns deles presentes em Tecnologia, uma Cincia Humana e Do Gesto s Tcnicas 17. Alm disso, oscilando vigorosamente entre a Psicologia e a Filosofia, Gilbert Simondon desenvolveu diversas proposies acerca de uma Filosofia das Tcnicas, ou de uma Psico-Sociologia das mquinas e ferramentas o que chamou de Mecanologia , alm de sua clebre teoria da individuao18. Mais recentemente, estes autores tm sido eleitos como forte influncia para a constituio de teorias que dialoguem com a Cultura Material e a Histria das Tcnicas, como o caso de, respectivamente, Pierre Lemonnier e de Anne-Francois Garon, bem como o centro de estudos lAtelier Simondon, o qual apresentam novas proposies intelectuais sob a 17 Os ttulos mencionados no possuem, tradues para o portugus, tendo sofrido, portanto, livre traduo das citaes por parte do autor.

    18 Na primeira parte de sua tese de doutoramento, Gilbert Simondon define a individuao como uma operao perpetuamente varivel, ou seja, como uma contnua mudana de estado, diferenciando os indivduos da massa saturada que os gera e os discernido a partir dos fenmenos da Individuao Fsica, Vital e Psicossocial (SIMONDON, Gilbert. LIndividu et as Gense Physico-Biologique. Paris, Presses Universitaires de France, 1964).

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    gide da obra de Gilbert Simondon.

    No Brasil, pesquisas relativas s tcnicas atravs das abordagens citadas acima tm sido fortemente desenvolvidas, h mais de dez anos, pelo grupo de pesquisa da Unicamp Conhecimento, Tecnologia e Mercado (CTeMe), tendo como alguns de seus agentes Laymert Garcia dos Santos, Pedro Ferreira Peixoto e Emerson Freire19. Estes, animados pelas compatibilizaes que perpassam disciplinas como a Sociologia, a Antropologia e a Filosofia, empregam anlises que vo da msica s artes plsticas, alm de aes que vo da escrita s produes videogrficas. no interior deste quadro terico-metodolgico que se inscreve a presente monografia, que se apropria, principalmente, das proposies dos j mencionados Leroi-Gourhan e Simondon, esclarecidas a seguir.

    Disse Andre Leroi-Gourhan, nas primeiras pginas de um dos volumes de Evoluo e Tcnicas: O testemunho das tcnicas , portanto, precioso 20. Essa acepo, que recebe os tons de uma concluso antecipada, pode remeter herana deixada peLo clebre antroplogo Marcel Mauss em sua proposio de uma anlise das tcnicas e que se apresenta, historicamente, como umas das primeiras proposies relativas Etnologia, que voltou olhares para a associao homem-ferramenta associao que sustenta nossa abordagem. Mas, para alm de consider-la como expresso cultural somente, e inserir a anlise das tcnicas como o tpico de uma anlise antropolgica, Leroi-Gourhan dispe a Tecnologia como centro de apoio de suas acepes, como controlador gravitante de suas atenes. Arquelogo 19 Conferir: SANTOS, Laymert G. Politizar as Novas Tecnologias O impacto scio-tcnico da informao digital e gentica. So Paulo, Editora 34, 2003; PEIXOTO, P.F. Msica Eletrnica e Xamanismo: Tcnicas Contemporneas do xtase. Tese de Doutoramento em Cincias Sociais. Banco de Teses UNICAMP, 2006; FREIRE, Emerson. Da sensao ausente sensao como potncia: tema e variaes sobre a relao arte-tecnologia. Tese de Doutoramento. Campinas, banco de teses UNICAMP, 2012. 20 Para os textos em lnguas estrangeiras h traduo livre nossa.

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    de profisso qualificado em Etnologia pelo programa de Marcel Mauss e Paul Rivet21 , na primeira metade do sculo vinte publicou os dois volumes de seu ttulo Evoluo e Tcnicas intitulados O Homem e a Matria e Meio e Tcnicas, que expuseram o resultado de suas pesquisas realizadas principalmente no Muse de lHomme, este fundado no ano de 1937, em Paris.

    Leroi-Gourhan marca uma ruptura fundamental nas disciplinas dedicadas s tcnicas, seja sob a forma de seus objetos, seja sob a forma de uma histria, ao identificar, no mbito da etnologia, uma preponderncia dos objetos plasmados pela tcnica e uma negligncia dos processos prprios de seus sistemas de fabricao:

    Os quadros classificatrios das tcnicas no so estabelecidos pelos tecnlogos, mas pelos etnlogos, que preferem a repartio dos produtos de um grupo que estudam sob divises cmodas, ao invs de uma anlise da fabricao. Em outros termos, eles consideram antes o forjado que o trabalho dos metais, os tecidos que a tecelagem, a vestimenta que o trabalho das fibras. Um quadro estabelecido sob esses princpios supre corretamente as necessidades de uma anlise cultural, mas desconsidera os problemas propriamente tecnolgicos 22.

    21 No texto que introduz a traduo inglesa de outro ttulo de Leroi-Gourhan, O Gesto e a Palavra LEROI-GOURHAN, A. Gesture and Speech. Trans.: BERGER, Anna B. London, MIT Press, 1993. P. xv e xvi , Randall White apresenta alguns aspectos do percurso acadmico do arquelogo, o que inclui seus diplomas em lngua russa e mandarim, alm da j mencionada qualificao em etnologia. Alm disso, tambm apresentada sua convivncia com Claude Lvi-Strauss, ocupando os dois cargos de diretores assistentes do Muse de lHomme, em 1946.

    22 (LEROI-GOURHAN, 2010, v.1. P. 13.)

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    Ao indicar a necessidade de uma observao tecnolgica das tcnicas, Leroi-Gourhan, afirma ser exigida do tecnlogo a ateno para o dinamismo associativo presente em uma operao, em detrimento de anlises lingusticas e descritivas. Para ele, necessrio que no sejam concentrados esforos em deter o que h de esttico e invarivel do fabrico, o que supe no cercar a tcnica de mritos funcionais, em vista de compatibiliz-la ao cumprimento de um trabalho, de inclu-la no dever de concretizar adequadamente um objeto. Isso seria considerar, ainda, a tcnica remetendo-a ao seu produto funcional, a ao ao objeto, e para increver o nosso objeto nessa crtica a tipografia ao impresso. Para ento observar as dinmicas internas a um determinado conjunto de tcnicas, necessrio que o observador se remeta diretamente pormenorizao dos mtodos elementares de ao sobre a matria 23, das tcnicas de transporte e das tcnicas de fabricao que o compem, compreendendo as cadeias de relaes que constituem o agrupamento humano produtor desse conjunto de tcnicas.

    Efetivar a descrio completa das aes supostas por Leroi-Gourhan, compatibilizando-as com a tipografia, no , claro, a tarefa do presente estudo. Contudo, a ateno devotada ao processo tipogrfico, em detrimento do objeto impresso, constitui a base das inquietudes que guiam a narrativa desenvolvida sobre a apreenso de um jovem desenhista pelas tcnicas tipogrficas suscitada em uma grfica de Belo Horizonte.

    Apreender um problema tecnolgico pode remeter, mesmo que preliminarmente, ao que, desde Marcel Mauss, era intitulado como resoluo de problemas 24. O tcnico, sujeito de apurada inteligncia operatria ou material , recorre aos objetos como solidrios solucionadores de incompatibilidades que

    23 Compostas por preenses, percusses, emprego de gua, emprego do ar, e uso de motor humano. (LEROI-GOURHAN, 2010, v.1. Pp. 43-109) 24 MAUSS, Marcel. Manuel dEthnographie. Paris, Bibliotheque Scientifique, 1947. P. 41.

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    impedem, ou interceptam, uma ao concreta e objetiva. Incompatibilidades, essas, que podem ocorrer tanto nas circunstncias acidentais de uma inveno, como na operao de uma mquina ou ferramenta.

    Podemos assim supor que, para o tipgrafo, a impresso de uma tiragem o seu problema, por excelncia. Mas a encomenda dos exemplares de uma srie de impressos no seno o problema inicial, o estopim para irresolutas redes de operaes por realizar, de progressivas concrees, at o estado final da resoluo que a tiragem mesma. Seja inventando novos mecanismos e objetos, ou operando mquinas e ferramentas grficas, o tipgrafo impede que esse germe de irresoluo ganhe campo, ou seja, emprega o intenso esforo de conter o problema inicial, impedindo sua difuso, ou desdobramentos consecutivos em problemas secundrios.

    Mas essa uma difcil tarefa, o que nas palavras do mestre tipgrafo mineiro Ademir Matias que h mais de quarenta anos convive instrumentalmente com a tipografia expresso pelos dizeres imprimir o mais fcil, o que demora preparar. A preparao, nesse sentido, no seno a cadeia de resolues empregadas nos problemas secundrios tiragem, que aqui discernimos como problemas relativos s mquinas e ferramentas, ou relativos aos materiais.

    Certamente, tais categoriais so inter-relacionadas e compem antes duas intensas manifestaes de um continuum, do que, propriamente, uma diviso em um par de oposies.

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    2.2. PROBLEMAS RELATIVOS S MQUINAS E FERRAMENTAS

    Se as borrachas de um rolo grfico sofrem rachaduras, se o motor da impressora no apresenta controle de velocidade, ou se uma chave-de-cunhas se quebra, temos a problemas que concernem diretamente s mquinas e ferramentas grficas. As solues para esses problemas podem ser compreendidas em trs nveis, respectivamente:

    Nvel de Resoluo Descrio

    I simples Nvel em que um componente ou ferramenta de fcil obteno, geralmente compreendendo a aquisio ou emprstimo.

    II mdia Nvel em que o componente ou ferramenta no localizado para aquisio ou emprstimo, mas so conhecidos os parmetros de sua fabricao. Esse nvel compreende a realizao de projetos mecnicos e eltricos, cuja execuo delegada a tcnicos especializados.

    III complexa Nvel em que o componente ou ferramenta no localizado para aquisio ou emprstimo ou fabricao por outro tcnico, exigindo a concepo do projeto e a construo do objeto. Nesse caso, a complexidade afirmada pela necessidade de que o tcnico compreenda as propriedades dos materiais que constituem o componente ou ferramenta perdido, o que a associa segunda categoria.

    Quadro 1 - Nveis de resoluo para problemas instrumentais

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    2.3. - PROBLEMAS RELATIVOS AOS MATERIAIS

    Mais complexos que os problemas relativos s ferramentas, tais problemas compreendem desde o esgotamento das reservas de tintas, at a falta de papis, passando por solventes, adesivos e graxas. Sua resoluo pode tambm ser dividida em trs nveis:

    Nveis de Resoluo Descrio

    I - simples Nvel que compreende a aquisio ou emprstimo de um material de fcil obteno, como por exemplo, papel Couch Fosco, tinta Offset e querosene.

    II - mdio Nvel em que o material no de fcil obteno, mas cujos parmetros de fabricao ou sntese fsico-qumica so conhecidos, como o exemplo de fabricao de tinta Offset seguindo um catlogo Pantone, ou a encomenda de papis artesanalmente fabricados.

    III complexo Nvel em que no possvel a aquisio, o emprstimo, ou a encomenda do material, mas h o conhecimento a respeito das suas propriedades fsico-qumicas, possibilitando sua sntese ou fabricao in-loco. O que no se aplica grfica de Ademir Matias.

    Quadro 2 - Nveis de resoluo para problemas materiais

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    OS TRS PERODOS DE UMA APREENSO3

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    3. OS TRS PERODOS DE UMA APREENSO

    Os episdios que seguem daro a ler e a ver as operaes e estruturas tcnicas compreendidas por uma oficina tipogrfica belo-horizontina. A individualidade de um atelier se prolongar at a individualidade mesma de cada operao e de cada objeto. Exibir o funcionamento desta oficina, que transborda os desgnios de subservincia supostos como nica relao possvel dada pelo polinmio homem-tcnica-natureza afirmada pela noo de trabalho25 , ser a tarefa da narrativa que tenta apreender a afeco de Ademir Matias pelas operaes, pelos mecanismos e pelas invenes, enfim, para utilizar uma bela expresso de Simondon, as alegrias instrumentalizadas26 entre gesto, matria e ferramenta. Alegrias essas que compem o fundo diacrnico e fragmentado das memrias narradas e descritas que conferem forma a este captulo.

    Divididos em trs perodos, as narrativas de operaes como podemos intitular, nesse momento, as crnicas que seguem , alm de privilegiar, em larga medida, a exposio dos processos de composio e impresso tipogrfica, expressam minha progressiva associao s tcnicas, ferramentas e materiais empregados na tipografia praticada pelo Sr. Ademir Matias de Almeida. Ainda que no seja possvel discernir os nveis exatos dessa associao27, podemos compreender os episdios dessas narrativas como

    25 Gilbert Simondon, em Du Mode dExistence des Objetes Techniques, critica a associao das tcnicas unicamente ao trabalho, afirmando que foi apreendido atravs do trabalho humano, pensado e julgado como instrumento, adjuvante, ou produto do trabalho (SIMONDON, 2012. P. 327).

    26 (SIMONDON, 1996)

    27 Rainer Miranda Brito, em um brilhante artigo, discerne trs nveis presentes no que chamou de uma sociognese da associao operador-ferramenta, dos quais extramos: Interao menor

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    divididos em: I as coordenadas preliminares de uma resoluo material, tcnica e fisiolgica, para problemas subjetivos; II a delegao, ainda que desconfiada, ao aprendiz, para o auxlio em operaes concernentes montagem de uma base para estampagem a quente; III a confiana prolongada, a delegao de uma tiragem, quase integralmente, ao aprendiz.

    Tais fases expressam, nas mnimas medidas das associaes gestuais-instrumentais que as inspiram, a complexa constituio do que podemos nomear tipografia enquanto tecnologia de produo do impresso em uma grfica em Belo Horizonte.

    Ainda que de maneira preliminar, esses escritos exibem a necessidade de que, para dar o devido incio a uma observao tecnolgica das cadeias operatrias da tipografia, sejam consideradas suas aes mais elementares. Porm, essa proposio poderia ser efetivamente concretizada somente se antes forem discernidos os aspectos da minha apreenso pela tipografia, na mirade de sinais que ocupam a realidade perceptiva de um aprendiz: a de um sujeito atento, de olhos abertos e ouvidos dispostos uma silenciosa e quase translcida presena no atelier. O estado de aprendiz se configura, talvez, na sua presena entre as mquinas em jornadas de horas quase integrais, observando-as em suas mnimas medidas, em suas midas operaes, em meio aos encontros que o arrebatam e o convidam para novas investigaes. Assim, atentar para as parcelas constituintes de uma tipografia exigiu do aprendiz a resoluo dos excessos informacionais que podemos supor para todo aquele que seja pouco habituado com o universo da tipografia.

    nvel , Cooperao nvel mdio e Possesso nvel mximo (BRITO, R. M. A Possesso Rtmica Viola-Violeiro. Artigo para o II Encontro Internacional sobre Imaginrios Sonoros. 2013. P. 5. No prelo). Ainda que no sejam diretamente transponveis para a tipografia, os perodos dessa associao suposta por Rainer Miranda do a ver a constituio progressiva e varivel da habilidade operatria.

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    Em outras palavras, a intensa experincia de incluso de um jovem desenhista em uma grfica como a de Ademir Matias, tem sua expresso garantida pela diviso nestes trs episdios e que discernem trs etapas fundamentais dessa relao: o exemplo, a imitao, e a deliberao. Tais etapas, por sua vez, exibem a progresso de um aprendizado centrado na resoluo de problemas, das quais extramos: I o exemplo de uma resoluo; II uma resoluo conjunta, entre eu e o tipgrafo; III uma resoluo parcial a mim delegada.

    A eleio por narrativas, em detrimento das descries28, foi provocada pela necessidade de encontrar, em meio mirade de ocorrncias sinestsicas, um ponto focal de uma anlise tecnolgica: a operao. Convidado pela leitura das obras de Gilbert Simondon, Andr-Georges Haudricourt e Andr Leroi-Gourhan, podemos considerar a necessidade de uma observao das tcnicas tipogrficas em seu estado dinmico, no tempo prprio de sua no menos singular ordem interna. Isso significaria captar, em mxima proporo, os ndices dessa dinmica prpria Tipografia Matias, o que poderia no ocorrer imediatamente caso apenas fossem descritos os objetos que compem oficina do Sr. Matias, pois, na integrao gestual-instrumental que ocorre, propriamente, o que chamamos de uma operao tcnica. Essa integrao no ocorre seno em ao, podendo ir da catao de tipos mveis impresso de milhares de folhas de papel.

    Dedicando esforos analticos e narrativos sobre as operaes empregadas na grfica do Sr. Matias, pode-se objetivar essa progresso sob a noo de emprstimo, reforada por Leroi-Gourhan 29, que o define como a 28 O discernimento entre descrio e narrao pode ser mais bem apreciado em um artigo sobre literatura comparada de Georg Lukcs, o qual dissocia os pares narrar-participar e descrever-observar, acerca de romances burgueses do sculo XIX e a literatura sovitica do incio do sculo XX e, ainda que trate de temas muito especficos, so exibidos os aspectos constituintes dessas duas modalidades textuais (LUKCS, Georg. Narrar ou descrever? In: Ensaios Sbre Literatura. Coord.: KONDER, Leandro. Rio de Janeiro, Editra Civilizao Brasileira S. A, 1965. Pp. 43-94).

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    transplantao de um novo elemento tcnico em um meio interior30 que dispe dos mtodos de como assimil-lo imediatamente 31. Nesse sentido, os trs perodos que apresentam a apreenso pela tipografia, do a ver os sucessivos emprstimos que constituram a noo de resoluo de problemas e a gama de experincias de um pouco hbil operador de tipos e mquinas grficas.

    Primeiramente, o exemplo configura o emprstimo da prpria noo de resoluo de problemas, ou seja, do significado de uma resoluo material-instrumental para problemas diversos; no segundo perodo, a imitao, que constitui um emprstimo gestual-instrumental, com a demonstrao de uma cadeia de operaes e a incluso do aprendiz nelas; por fim, a deliberao, composta por um emprstimo instrumental, pela permisso para o uso das mquinas e ferramentas da grfica. Pode-se, em outros termos, considerar que esses trs perodos compreendem os ndices do que fazer, os ndices de como fazer e a permisso para fazer, os quais ns podemos discernir na tabela que segue:

    Exemplo Imitao DeliberaoEmprstimo de uma noo Emprstimo gestual-

    instrumentalEmprstimo instrumental

    Quadro 3 - os trs nveis de emprstimo

    29 (LEROI-GOURHAN, 2010, v.2, P. 351).30 Por sua vez, definido como um meio constitudo pelas tradies mentais de determinada unidade tnica (LEROI-GOURHAN, 2010, v.2. P. 336), o ambiente interior milieu interieur pode ser considerado, em certa medida, tanto a grfica de Ademir Matias, quanto o Museu Vivo Memria Grfica, onde fui aprendiz e auxiliar do tipgrafo Jos do Monte e onde amide tentei introduzir solues propostas pelo prprio Ademir Matias. 31 (Id. P. 359).

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    A deliberao por esse ttulo tratada e no por liberao , pois, ainda que seja o ltimo estgio, ela ainda compreende uma restrio residual, um impedimento a cada novo problema. Isso se expressa pela constante necessidade de novos emprstimos gestuais-instrumentais, alimentando a realizao de consultas, ou indagaes, relativas a uma dada operao, ferramenta ou material. O ato de direcionar uma questo, ou problema, at um operador mais experiente nesse caso um hbil tipgrafo no indica necessariamente uma resoluo, mas possibilita, pela incluso de uma nova perspectiva, uma srie de operaes conjuntamente empregadas, tendo como governador dessas aes a figura do mestre. Assim, ocorre um retorno parcial ao segundo perodo, em que o tipgrafo estabelece novamente o controle dos gestos do aprendiz 32, conferindo nitidez s coordenadas que suscitam os movimentos do menos experiente operador.

    Os trs perodos dessa associao permitiro compreender como o jovem desenhista foi incorporado pelo complexo conjunto de operaes ocorrentes na grfica do tipgrafo Ademir Matias, os quais so apresentados a seguir.

    3.1. O EXEMPLO

    Em frente ao porto nmero 96 de uma rua do bairro Santa Efignia, pela manh, aps pressionar uma das campainhas instaladas na parede, eu aguardava a recepo de Ademir Matias. Mal correram alguns segundos e pude ouvir uma vagarosa caminhada, seguida pelo brusco desentrave do trinco e, tendo deslocado em sua direo a seo do porto, Ademir aparecia, 32 Esse controle pode se dar ao entendimento atravs de um recurso lingustico de recorrente emprego nesses momentos: o modo verbal imperativo. A utilizao de um verbo em imperativo, no discurso de um tcnico, significa a designao de um sentido preciso s aes do aprendiz: at onde ir, o que fazer e em que perodo de tempo.

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    j se dispondo surpreso com a visita. Solicitava uma apressada entrada, mas, antes, olhava para direita e a esquerda da rua e, cumprimentados alguns passantes, dirigia-se para dentro da casa. Seguimos por um estreito corredor, desviando-nos de algumas plantas e, detrs de uma rea de servios domsticos encoberta por telhas de amianto, podia-se perceber que repousava, sobre uma porta de metal, um velho letreiro assinalando que ali era Tipografia Matias e, gentilmente, era-me oferecida a entrada. Os blocos de papel prximos a uma mesa de plstico, uma caixa com espirais ao lado de uma televiso de tubo, um poema de Shakespeare impresso e colado na porta de uma geladeira ou as aparas de fitas adesivas pelo cho se dispunham como indcios de que se estava em uma grfica, ainda que dividissem a rea com um fogo e outras ferramentas concernentes alimentao domstica. Ademir, solcito, tentava dispor algumas xcaras e uma garrafa com caf sobre a mesa, enquanto procurava a mnima rea hbil para se depositar as louas entre os papis dispersos. Desde o porto, ele descrevia uma recente encomenda, da tiragem ao nmero de tcnicas associadas: o nmero de cores exigido, ou se haveria estampagem a quente, relevo seco, etc. A descrio das demandas ento cedeu lugar descrio dos problemas que teve durante as operaes e, quando nos dispnhamos sentados mesa e bebendo do caf, a fala de Ademir ento tomava o aspecto de crtica aos recentes oramentos requisitados sua grfica, afirmando sobre os seus clientes certa inabilidade descritiva dos resultados desejados, da tiragem necessria e da gramatura dos papis, por exemplo.

    Nesse momento, outro nimo lhe tomava. A inquietude o fez se levantar, caminhar at a porta, volver esquerda e desaparecer. Retornou portando uma pasta de plstico translucida, na qual reservava impressas as descries das encomendas. Foi a mim requisitado o exame dos oramentos e, ouvindo

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    minha leitura, Ademir afirmava no terem sido elencados os nomes dos papis, sua gramatura e, no raro, ouvia-se na descrio das encomendas os termos de uma incompatibilidade entre a tecnologia de impresso e as operaes desejadas pelos seus clientes: cores indicadas em percentuais CMYK ou cdigos Pantone, grandes zonas de cobertura o que Matias nomeia chapados , vernizes e texturas, alm de ilustraes em policromia, que se apresentavam como os documentos que conferiram fora afirmao dele de que necessrio que se conhea a grfica para a qual seja requisitada a prestao de servios.

    O grfico como s vezes se intitula converteu, ento, a prolixidade de sua reclamao em uma sucinta afirmao de que, sendo um tcnico, dispunha-se para a resoluo de problemas, mas, no lhe sendo identificados os parmetros do problema a resolver, pouco poderia fazer, uma vez que no desejava longos perodos de deduo do que lhe era encomendado. Deste modo, frente o mnimo sinal de incompatibilidade, Matias poderia recusar o pedido e, inclusive, no responder s mensagens. Sua impacincia para as operaes em computadores no permitiu que aprendesse a enviar e receber arquivos pelo correio eletrnico e, nessas condies, deixou sob a responsabilidade de seu irmo a impresso dos pedidos de oramento. Sua insatisfao se expressava no juzo que fazia acerca da comunicao no falada que tinha com os seus clientes, mas que no se resolveria em um telefonema. Alegando insuficincia nas descries dos programas oferecidos para suas operaes, exigia que se comunicassem in-loco, nas condies em que fosse possvel demonstrar aos clientes algo que houvesse de concernente s suas mquinas e ferramentas. Discutidas algumas das mensagens eletrnicas que Matias me exibia, a furiosa velocidade de suas analogias o disps para justificar suas exigncias no ttulo que deram ao dia em que nasceu 5 de maio, o dia da comunicao e, no menos veloz,

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    iniciou a narrao de uma resoluo que propusera para um problema, o que nos d a oportunidade de identificar a dimenso do pensamento grfico do mestre.

    De incio, no sabendo identificar, cronologicamente, quando havia ocorrido, narrou a sua inscrio em um curso oferecido pela prefeitura de Belo Horizonte; soube identificar a rua e o andar do prdio onde, por uma ou duas semanas, ps-se disposio de um grupo de colegas e de um professor ao qual estava atribuda a tarefa de definir e discutir as caractersticas de sua personalidade. Passados alguns dias, Ademir fora noticiado do que lhe faltava ao nimo: a comunicao. Uma tabela lhe foi entregue como comprovao do que era desprovido a sua mentalidade, e lhe foi requisitado tal como aos outros alunos , que propusesse uma soluo para o que, sendo talvez uma mera timidez emudecedora, fora elevada a um nvel geral de isolamento. No me disse, Ademir, quantos dias ele teve para apresentar a resoluo, mas, demonstrou, foi o suficiente para que pudesse levar consigo a tabela com a pontuao que lhe foi designada e, aps produzir algumas fotocpias, recortou-as em pequeno formato, imprimindo nelas um convite, acompanhado de um grfico, o qual foi redesenhado em cada folha. Antes, ele negociara a reserva de algumas vagas, o suficiente para todos os seus colegas e acompanhantes, em uma churrascaria de endereo prximo ao do local do curso, e disso tratava o convite. Poucos convidados no foram, ou talvez um, e, em uma celebrao paga por Matias, gastaram algumas horas associados a uma mesa e louas, alimentando-se.

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    Figura 4 - Convite para o jantar de Ademir Matias

    O convite para o jantar33 pode constituir, em certa medida, a resoluo de problemas de que falamos anteriormente. A resoluo de Ademir para o problema de comunicao, identificado no grfico como necessidade de associao34, foi centrada no impresso, mas partiu de suas mquinas, tipos e papis, em uma poderosa juno, em operao. Pode-se perceber 33 Ao qual tive acesso somente meses aps me ter sido narrado esse episdio. 34 Foi-me dito pelo tipografo, em outra visita, que a pontuao indicava uma necessidade, levando-nos a compreender que, quanto maior era o nvel do indicador, era suposta uma menor disposio do avaliado para a qualidade indicada.

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    que sua maior pendncia em associao tem uma brusca oposio de 20 pontos empregada pela fora fisiolgica do avaliado e foi na unio desses fatores que Matias, possivelmente, tenha encontrado a soluo para o problema suposto. Nas palavras de Rainer Miranda Brito, poder-se-ia considerar o que foi acima narrado como um problema de recursos e no de discursos 35 e, tendo sido assim compreendido o problema por Ademir, a soluo no pde ser por ele executada seno com os recursos disponveis: uma resoluo material, empregando mquinas, ferramentas, tipos, tintas e papis na concretizao do mencionado convite impresso.

    H 26 anos, a inveno do convite36 constituiu uma resposta concreta e objetiva ao problema que foi suposto ao tipgrafo: uma resposta fisiolgica e tcnica, que o associou a todos os alunos do curso, como anfitrio em um jantar, cujos veculos iniciais e finais foram os objetos. Inicialmente, foram empregados os materiais e ferramentas de sua grfica na gerao do convite e, no jantar, louas e alimentos. Eis uma resoluo objetiva para problemas subjetivos, uma apreenso tcnica das irresolutas organizaes emocionais, dando s ltimas outro aspecto, outra faceta, que lhes conferem um sentido compacto, expresso, nesse caso, pela tiragem dos convites. Ademir associa-se s mquinas para imprimir o convite, e realiza o convite para se associar a seus convidados. Por isso considerar a gerao desse folheto uma resoluo material-instrumental, pois, ela parte das disposies musculares e da afeio do tipgrafo por suas mquinas e ferramentas em direo ao seu suposto isolamento discursivo. Eis o exemplo da noo de resoluo de problemas, tal como compreendida pelo tipgrafo.

    35 (BRITO, R. M. 2013. P. 4)36 Gilbert Simondon, na tese complementar ao seu doutoramento em Psicologia, afirma que, a concretizao ou seja, a constituio progressiva de um dado objeto condicionada por uma inveno que supe o problema resolvido (SIMONDON, 2012. P. 68) e na suposio imaginativa de Ademir que residem os potenciais inventivos aos quais elogiamos nos presentes escritos, apesar de no podermos nos delongar em observaes acerca de seus inventos, propriamente.

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    3.2. A IMITAO

    Entremeava tarde de sbado sob o sol das dezesseis horas e o calor tomava conta da rua quando toquei a segunda campainha do nmero 96 e aguardei Ademir. Novamente a lenta e invisvel caminhada que se fazia notar pelo som do arrastar dos calados no cho, o porto aberto num gesto poderoso, a surpresa, o olhar de Matias para a direita e a esquerda da rua, o convite para a entrada. No corredor que nos encaminhava ao fundo da casa que eu soube depois, era de seu irmo, Adelmo , aproximando-nos da porta da grfica, Ademir descreveu uma recente encomenda, a qual exigia impresso a quente e, apesar de amide designar as largas tiragens de hot stamp a um vizinho e colega impressor, Lulu, optou por imprimir em sua grfica. Disse-me que as encomendas eram escassas e, ainda que houvesse, diariamente, telefonemas e mensagens eletrnicas dos desejosos em calcular a tiragem de cartes de visitas ou convites de casamento, poucos eram continuados. Assim, sendo pouco o dinheiro que receberia pelo servio como no raro ouo serem intituladas as encomendas , Ademir elegeu suas mquinas para a impresso da tiragem. Passamos pela porta da grfica e fui convidado a depositar sobre uma das cinco cadeiras as bolsas. Deixei-as prximas ao armrio de metal e segui a caminhada do tipgrafo por um estreito vo entre uma pia, pacotes de papel sobre o cho, um cavalete de tipos e a esteira de um forno operado em tiragens que exijam relevo americano.

    Fomos bancada sobre a qual era preparada a rama para a operao de estampagem a quente e, ento, rapidamente, foi a mim apresentado o problema: a lmina do clich era maior que a base disponvel em cerca de 6mm. Deixssemos de sustentar o que se prolongou do clich para alm da base metlica, facilmente ele seria dobrado e, para tal, o apoio suplementar exigiria uma altura compatvel com a espessura da pea.

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    Tal base era componente de um conjunto inventado na grfica de Ademir, que consiste em uma adaptao de sua impressora Catu Formato 4 de leque para impresso a quente. Eram retirados os rolos emborrachados da mquina e, num suporte era acoplada uma caixa metlica com um potencimetro que modulava o calor informado por vias eltricas; da caixa, alguns fios conduziam a corrente at pinos de cermica que, penetrados na dita base, aqueciam-na.

    Matias, na ocasio de usinagem da base de lato projetou uma sequencia de orifcios para difuso de calor em sua parte anterior, concentrando o aquecimento na regio de contato da base com o clich. Nestas condies, a dimenso da base no era o suficiente para garantir que a matriz fosse sustentada e no danificada. Sugeri, ento, que justapusssemos um azur de lato base, uma vez que o componente tipogrfico cuja uma das faces imprime linhas contnuas e paralelas possua altura tipogrfica 37 e tambm era composta de lato. Deste modo, duas incompatibilidades se dariam por resolvidas: a altura tipogrfica do azur excedia a altura da base, mas o primeiro poderia sofrer desbaste por lixamento at que as medidas de suas alturas equivalessem; as ligas que compunham a chapa e o azur poderiam diferir minimamente nos percentuais de metais acrescidos, mas, aquecer-se-iam de modo um tanto mais equivalente do que a associao de ligas das quais os elementos qumicos sejam distintos lato e o chumbo tipogrfico, por exemplo. Ademir, ento, recolheu um azur em uma das gavetas metlicas de sua bancada e, depois de contornar a grande mesa de metal, abriu a porta de correr, que o levaria ao estreito labirinto de sucatas. L se encontrava uma serra de bancada montada por ele com os restos de um ampliador fotogrfico e cujo eixo, na lateral da mquina, revolucionava tambm um disco de lixa quando acionada.

    37 2,356 cm ou um pouco superior.

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    No seriam poucas as vezes que descreveria os caminhos entre a bancada e a serra: a calibragem do esquadro da mquina com uma de suas peas tipogrficas38, a retirada do disco de lixa, a colagem de uma nova folha de lixa sobre o disco metlico usando adesivo de contato, o marco traado faca no azur, o disco recolocado, o acionamento da mquina. S ento foi iniciado o lixamento e, em menos de um minuto, o componente se aqueceu bruscamente. Involuntariamente, Matias retirou suas mos e, antes que fosse a ele possvel pressionar o acionador e interromper a corrente eltrica da mquina, o pesado azur se fez acompanhar pela velocssima rotao do disco e foi lanado em minha direo. Sequer pude fazer juzo de minha condio e vi minha perna direita se deslocar para a minha esquerda, enquanto eu ouvia retumbar a parede da bancada, atingida. Olhamo-nos, eu e Ademir e, sem feridos, retomamos as operaes.

    Figura 5 - Fios e Azurs de Lato (POLK, 1948)

    38 No raro se percebe que Matias, quando desejoso de geometrizar as coordenadas de uma operao, apropriar-se de um componente de espacejamento tipogrfico, como uma guarnio de ferro cuja largura e comprimento geram distncias acima de 48pt equivalente a 1, 8048 cm , convenientemente medida em Furos e Cceros.

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    Recolhido, o azur foi disposto em frente o disco de lixa, desta vez, seguido por uma guarnio e s ento as mos de Matias. Cinco minutos consecutivos de desbaste e a j abafada atmosfera poeirenta da grfica ganhou algum calor a mais, exigindo dele a interrupo para uma primeira checagem: um milmetro ou menos o que havia sido retirado, de outros quatro por lixar. Novamente a lixa, o azur, a guarnio, as mos e, por mais alguns minutos outro milmetro foi diminudo entre a borda do componente e a linha que equivalesse sua altura da chapa que suporta o clich. Mas, quase meia hora passada nos relgios e com os dedos correndo da base para o apoio suplementar sem que houvesse degraus, percebemos que os pinos de cermica teriam entrada possvel em apenas uma das laterais da chapa, o que por sua vez no permitiria aquecer todo o clich.

    Ento, outros minutos, outras montagens experimentadas e, recolhendo outra pea de lato em sua gaveta, colocando-o esquerda da borda posterior da chapa e deslocando a segunda pea para a direita da borda anterior, Matias me disse ter mediado uma nova soluo. Ele argumentou sobre o que ele percebeu como necessidade de que as fontes de calor no se concentrassem em uma borda, pois, caso ocorresse, ocupando o clich amplamente a rea da chapa, apenas a regio mais aquecida imprimiria a camada metlica da fita no papel. Para tal, seria dele requisitado que dedicasse novos esforos para o desbaste do segundo azur: faca, demarcou as coordenados para o desbaste do mencionado lingote, levou-o mesa da mquina e, frente o disco de lixa, disps o que haveria de lixar, seguido da guarnio, e empurrou-os com uma das mos, enquanto com a outra acionava o motor. Lentamente os minutos passaram e, desta vez, talvez no tenhamos alcanado meia hora e tnhamos j a altura tal como demarcada. Ademir montou a rama guarnies, lingotes e fios , certificou-

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    se que estavam disponveis os orifcios da chapa de lato e observou o encaixe do clich, colando-o em seguida. S ento, girou o quanto pode num nico gesto o cunho mais prximo de si, depois, da mesma maneira, o que estava direita da base; com o martelo de borracha, cada pea da rama foi rebaixada, e os cunhos foram abertos, pressionando-as.

    Figura 6 - Lingotes e guarnies tipogrficas (POLK, 1948).

    Da bancada, a rama foi levada impressora, os pinos de cermica inseridos, a fita metlica acoplada haste e, quando eu poderia esperar alguma notcia sua ou pedido de auxlio, Ademir desligou a sua mquina e me disse que, mesmo que apreciasse o meu auxlio, preferia descansar, deixando para o prximo dia impresso da tiragem exigida pelo cliente. Disse-me, tambm, que Eliana, sua esposa, o auxiliaria e, por j ter anoitecido, no iria me ocupar at muito tarde. Insistiu em argumentar que o que restou a impresso era, para ele, menos problemtica e desgastante que as operaes de desenho dos registros e alamento das composies tipogrficas argumento que ganharia fora na sucinta frase passo mais tempo preparando que imprimindo. Eu, quem desde a primeira de suas justificativas ofertadas j estava satisfeito, concordei verbalmente. Ento, enquanto nos encaminhvamos mesa em frente sua televiso, fechvamos as janelas e portas e pressionvamos os interruptores das lmpadas, apagando-as. Matias acionou o televisor, sentou-se, e pediu que eu fosse a padaria

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    buscar algo para o nosso caf da tarde e, quando retornei, conversamos um pouco. Ainda que o cansao o tornasse um pouco menos falante, ele se disps a monologar as anedotas que lhe eram de predileo, descrever quem estivera na grfica nos ltimos dias, falar do que lhe impressionava e enquanto isso comia e bebia , mas, enfim, eu tinha de ir embora. Despedi-me, ele permaneceu sentado e, quase emudecido pelo cansao, pediu que eu fechasse o porto ao sair.

    3.3. A DELIBERAO

    O ar quente e mido que sucedia uma chuva de primavera abraava a calada sob a rvore. At mesmo era possvel observar no asfalto as manchas escuras da gua que ainda no haviam evaporado enquanto se ouvia Ademir caminhar em direo entrada de sua casa e grfica. Rapidamente o porto se abriu, ele detrs, com o rosto despido da barba que, diria ele depois, persistiu por mais de um ano e s foi retirada para um tratamento dentrio. Sorriu, mas no deu espao para os cumprimentos, logo dizendo que no havia cronograma para pausas e que meu auxlio ali seria valioso, pois, h uns dias, era dele requisitado um servio como ele mesmo denomina as atividades concernentes ao trabalho que exigiria a interrupo de outros, mais urgentes e caros. Perguntou a mim se eu estava disponvel, durante o fim-de-semana, para imprimir o verso de mil cartes-de-visita que ocupavam, em algumas caixas e sacolas, o cho prximo s quinas de sua estante papeleira e que ali estavam havia mais que um ms. Enquanto caminhvamos pelo corredor, abrindo caminho entre as plantas que haviam se prolongado at metade da largura da passagem, Ademir elencava os servios, as tiragens e os prazos acordados para a

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    entrega dos impressos. Sem delongas, pediu-me, assim que passamos pela porta da grfica, que eu deixasse sobre as cadeiras as bolsas para que fossemos at os prelos de platina para que ele me mostrasse o que em suas prprias palavras se configurou como o que me aguardava. Mas, antes que passssemos pela cozinha, a campainha foi tocada. Fui convidado por ele para me sentar mesa e esperar que atendesse a quem o chamou pelo porto e, para que eu me ocupasse, ofereceu-me um oramento impresso para leitura. Corri os olhos da primeira letra ao ponto final das trs linhas que compunham o pedido algumas dezenas de vezes e, algumas outras dezenas de vezes, eu observei as fotografias anexadas em uma segunda folha. Enquanto isso, eu podia ouvir Ademir abrir o porto, conversar com os seus clientes, leva-los ao seu escritrio, discutir as ofertas, narrar algumas anedotas, encaminh-los at o porto e se despedir.

    Retornando, Matias me convidou para que retomssemos o problema inicial da impresso dos cartes de visita. Caminhamos at sua bancada metlica com tampo de mrmore e de um envelope foi retirado o clich metlico com o qual seria impresso o milheiro de cartes e depositado sobre a bancada. Ademir pediu-me que recolhesse em uma caixa, prxima ao seu cavalete de tipos, duas bases de ferro de 5 furos de comprimento e duas de 4 furos e, tendo limpado as peas com estopa embebida em querosene, experimentamos a posio do clich, que coube sobre as bases, apesar de algumas rebarbas39. Percebendo alguns excessos na matriz, Ademir contornou a bancada e, levando o clich em uma das mos, foi at o seu robusto torno que ele tambm nomeia morsa e, prendendo o clich em uma de suas zonas rebaixadas, retirou parte das bordas com um pequeno

    39 As operaes de desbaste mecnico e manual dos metais, alm de gerar o que chamado pelos industriais de cavaco resduos da retirada de material , quando no conferem pea trabalhada o acabamento planificado, deixam as rebarbas. No caso do clich, as rebarbas eram salincias pontiagudas em suas extremidades e que, alm de poder cortar o operador durante o manuseio da pea, poderiam ser impressas junto da rea de interesse da matriz.

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    serrote de fita dentada tambm apelidada de segueta. Em seguida, retirou o clich, girou-o, prendeu-o e retirou o que restou das bordas. Deixando o serrote sobre o monturo que ocupava h anos sua bancada de ferramentas fixas, ele quem verbalizava todas as operaes amide as anunciando por agora a gente vai..., continuou a frase dizendo lixar para no deixar que as rebarbas do corte manchem a impresso. Alguns minutos foram dedicados ao desbaste das mencionas rebarbas no disco de lixa que compunha a serra circular de mesa construda por Ademir e, passado isso, ele contornou a bancada para retomarmos a colagem do clich sobre as bases, que rapidamente foi executada. Mas, tambm rapidamente, tivemos de desfazer a montagem, pois percebemos, remetendo-nos impresso, que no haveria espao para incluso das peas de ajuste os quadrados de MDF e as pinas metlicas40 , o que nos levou a substituir uma das bases de 4 furos por uma outra de 3 furos, deixando um vo suficientemente espaoso para a incluso de uma pina sobre a mesa da impressora, sem que o clich fosse arranhado.

    Com isso imaginamos ser possvel mediar os ajustes de composio a incluso dos brancos , mas somente at percebermos que uma das bases era mais baixa que as demais em aparentes 3pts, o que nos exigiu a complementao tipomtrica. Sem que fosse necessrio recorrer ao tipmetro, Ademir logo recolheu uma entrelinha de 3 furos de comprimento, 3 pontos de espessura e 2,05cm de altura41 e, tendo passado sobre ela

    40 Componentes empregados no registro de impresso, tambm inventados por Matias, substituindo os quadrados tipogrficos e as pinas de papel. Matias argumenta que, dada a dificuldade em encontrar componentes tipogrficos para a compra, a substituio dos caracteres danificados seria prejudicada, levando-o a economizar os tipos em suas prprias palavras. A soluo, portanto, foi empregar outros componentes, de fcil fabricao: os paraleleppedos de MDF, recortados de chapas de 4mm; as pinas metlicas, recortadas de latas de alumnio e dobradas em seguida. Alm disso, ao invs de usar adesivo PVA para a adeso das pinas de paraleleppedos ao tmpano da impressora, so usados adesivos em fita dupla-face.41 O que, somente em pontos, equivale a 144 x 58,6 x 3 pts.

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    um basto de cola PVP42, pde a unir base. Pediu-me, em seguida, que conferisse se havia ainda algum desnvel e, para tal exame, eu deveria arrastar um dos dedos da entrelinha para a base. Fi-lo e no percebi brusca passagem, o que para Matias serviu de sinal para que passssemos incluso dos lingotes e das guarnies. Assim, na medida em que estavam os componentes ao alcance de sua mo por ele eram buscados e, para as mais distantes, pedia-me que os catasse: era a mim indicado o lugar que ocupavam em uma das duas estantes sobre a bancada, ou em algum lugar do cavalete tipogrfico e as medidas da espessura e largura da pea em furos para as guarnies e pontos para as entrelinhas e quadrados. De modo a garantir a coeso do que se compunha, as peas eram estreitamente acopladas e, para evitar que escorregassem entre si em caso de baixa compresso , Ademir acrescentou o que chama de capim: finas tiras de papel nos intervalos das guarnies, acentuando o atrito dos componentes. Seguidamente, os cunhos43 foram um pouco abertos, para que apertassem a composio e a mesma chave que abriu os cunhos foi reorientada para martelar um retalho de madeira forrado com blanqueta44 e apoiado sobre a composio, nivelando-a.

    Figura 7 - Modelo de Assentador Tipogrfico (KARCH, 1966)

    42 Ademir a chama, usando da metonmia de uma marca pelo produto, de Cola Pritt.43 Componente metlico bipartido com uma rosca interna, chamada castanha e que, quando revolucionada, afasta seus dois lingotes, pressionando os tipos e peas de espao contra as paredes do chassi metlico onde so depositados e que recebe o nome de rama.44 O assentador tipogrfico, por Ademir intitulado toquinho de bater chapa, por Jos do Monte, tipgrafo do Museu Vivo Memria Grfica, intitulado tamborim. Mas, para alm de sua nomenclatura, ambos utilizam da combinao de um retalho de madeira forrado com a manta emborrachada usada em impresses Offset, a que ambos chamam blanqueta.

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    O assentamento garantiu uma altura aparentemente simtrica a todas as peas de espaamento e, ao clich, a planificao das superfcies de seus altos-relevos. Com isso, os cunhos foram abertos ainda mais, pressionando as bases e os lingotes de espao e, para testar a compresso dos componentes, a rama foi iada, sendo colocada sob ela a chave-de-cunhas. Com as mos, Matias pressionou as peas, procurando alguma que casse com facilidade e, no tendo isso ocorrido, considerou finalizada a montagem, levando-a para prximo da mquina onde eu imprimiria a tiragem dos cartes-de-visita.

    Figura 8 - Modelo de Cunha e Chave-de-Cunhas (KARCH, 1966)

    Espalhei a tinta sobre a platina da mquina e puxando uma comprida alavanca uma primeira vez, o leque se fechou e o conjunto de rolos de borracha da mquina correu para fora do vo entre a mesa de alimentao e o leito da rama e, sobre a platina, distribuiu a tinta. Por algumas dezenas de vezes mais eu baixei e icei a alavanca da mquina45, at que a tinta 45 A impressora de platina manual recebeu dos grficos o apelido de tocada a feijo. O termo se explica na exigncia, pela mquina, de que o operador seja a sua fonte de energia e informao, o que, segundo Gilbert Simondon, define uma modalidade operatria, a saber, a artesanal (SIMDONDON, 2006). Essa exigncia de uma regulao manual de percurso e intensidade de movimento tendo como foco a alavanca da mquina , implica, naturalmente, maiores gastos energticos que uma

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    cobrisse suficientemente todo o disco metlico sobre o qual a depositei inicialmente. Iniciei, ento, os ajustes de impresso: duas lminas de carto calandrado coladas sobre o tmpano46, a rama encaixada no leito, um primeiro teste. A medio em centmetros e milmetros das distncias da impresso at as extremidades do tmpano, quando comparadas com as medidas da folha da tiragem, forneceram a posio exigida para que as folhas da tiragem fossem impressas segundo a orientao de uma prova anteriormente fornecida. Com esquadro e lpis, contornei a rea de impresso, em seguida delimitando o lugar onde seriam depositadas, uma por vez, as folhas por imprimir. Nesse momento, foram inclusos os retalhos de MDF, cortados em cubos, bem como as pinas metlicas e, em seguida, impresso o primeiro exemplar da tiragem de cartes-de-visita que nos foi requisitada.

    Figura 9 - Incluso de quadrados e pinas sobre o tmpano da impressora (KARCH, 1966)

    Em uma das laterais do carto a impresso estava clara, isso devido a uma brusca diferena de corpo tipogrfico entre essa regio e as demais reas.

    regulao somente informacional: como o caso de impressoras alimentadas por eletricidade, que liberam o operador de controlar manualmente a intensidade dos movimentos da mquina, atendo-se somente a controlar o percurso de seus mecanismos internos. 46 Mesa mvel onde se dispem as folhas, uma a uma, para a impresso.

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    Alm disso, a matriz estava encharcada de tinta, o que me levou a crer, junto de Matias, que os rolos passavam muito prximos do clich. Ademir sugeriu que recolhssemos duas canaletas de contra-vinco47, j utilizadas, e, desviando-as de sua funo48, as colssemos sobre os trilhos por onde corre a rolaria, elevando-a em 2pt. Feito isso, retirei a tinta excessiva da matriz e imprimi mais um carto, obtendo dessa vez mais nitidez nas reas de impresso, apenas restando que ajustasse a compresso na rea mais clara, ento sendo possvel que eu iniciasse a tiragem. Para tal, foi necessrio realizar o que Matias e Z do Monte chamam de alamento, ou calo, o qual pode ser dividido em duas etapas:

    1 Alamento geral Realizado, geralmente, com a incluso de uma folha de papel entre a rama e o leito, ou com a colagem de uma folha de papel diretamente na base da rama.

    2 Alamento localizado Realizado, geralmente, com a incluso de um recorte de papel, ou fita-adesiva, sobre o tmpano, nas reas identificadas como pouco ntidas.

    Quadro 4 - Etapas do Alamento para Impressoras de Leque

    O alamento se justifica no fato de que as tcnicas de impresso tipogrfica

    47 Componente de tamanho varivel, constitudo de uma fita plstica com uma canaleta central, utilizada para acentuar os vincos mecanicamente produzidos. 48 Os desvios de funo, recorrentes em todas as nossas narrativas de operaes, so definidos por Christian Pierre Kasper como casos em que um artefato submetido a um uso outro que no aquele considerado adequado (KASPER, Christian Pierre. Habitar a Rua. Tese de doutoramento em Cincias Sociais. Campinas, Banco de Teses e Dissertaes UNICAMP, 2006. P. 140).

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    empregam, principalmente, a compresso mecnica como recurso para o transporte de camadas localizadas de tinta, do topo dos caracteres tipogrficos para o papel. Nesse sentido, o estreitamento do contato da matriz com o papel, independente da modalidade de impresso tipogrfica, ocasiona maior penetrao da matriz na folha, o que se apresenta como uma das resolues possveis de impresso. Para o caso de uma impressora de tmpano tambm intitulada impressora de leque, platina49, ou minerva50 os calos so efetuados entre a matriz e o leito, na base da matriz diretamente, ou sobre o tmpano. Este ltimo empregado principalmente em caso de alamentos localizados, ou seja, de reas de impresso restritas, para o seu equilbrio com as demais pores da chapa.

    Figura 10 - Modalidades de Impresso Tipogrfica (POLK, 1948)

    Tendo feito o alamento, uma nova prova foi impressa, a qual eu apresentei a Matias, que indagou: estabilizou?. Respondi um tanto hesitante, temendo

    49 Nomes considerados tanto por Ademir Matias como por Z do Monte e que tambm foram encontrados nos manuais eleitos como principal bibliografia para a presente monografia, (KARCH, 1966) e (POLK, 1948). 50 Ralph W. Polk, sobre a nomenclatura minerva, considera que o nome minerva para mquinas dsse tipo est, alis, embora indevidamente, bastante divulgado e deve ser evitado para no fazer confuso com a marca (POLK, 1948. P. 104).

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    que houvesse alguma armadilha retrica de sua parte, mas, pareceu-me em seguida, no havia malcias, nem o habitual deboche: o silncio pouco constrangedor que habita a concentrao de um operador em ao imperava. Retomaria a tiragem dois dias depois, tendo me ocupado at aquele momento apenas dos preparativos.

    *

    No domingo, estive ao porto prximo ao meio-dia, quando Ademir comumente sai da grfica para almoar em algum dos restaurantes prximos sua residncia e oficina. Devido interrupo do fornecimento de energia eltrica, apenas 30 minutos aps a minha chegada calada que o tipgrafo se deparou comigo, surpreso que eu estivesse beira de seu porto. Explicou a mim sobre como se prolongava a ausncia de eletricidade desde a madrugada, pediu desculpas por no ter me recebido prontamente e me convidou para almoarmos.

    Tendo retornado grfica, pude ordenar as fileiras de cartes seguindo a respectiva gramatura de cada lmina. O projeto envolvia a seleo de embalagens e o uso imprevisto delas como lminas para cartes-de-visita e, por terem sido empregadas diversas embalagens, eu pude discernir 15 tipos diferentes de papel para o milheiro: com diferentes espessuras e tratamentos de superfcie como vernizes e outras impresses , organizei a estranha tiragem que, no raro, tinha entre as sortidas pilhas de cartes ora cem, ora cinco exemplares de um tipo de papel, quando no somente um.

    Feita a seleo preliminar, organizei-os em trs grandes grupos para a impresso: I - fina espessura, II - mdia espessura e III - larga espessura,

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    o que diminuiu a necessidade de alamento a cada novo tipo de carto. Empilhei, ento, as lminas de mdia espessura ao lado da impressora, e iniciei a conduo da primeira folha: empurrei-a em direo ao esquadro gerado pelo registro de impresso, puxei a alavanca, fechando o leque com alguma fora, aguardei um segundo, elevei a alavanca que, abrindo o leque, permitiu-me recolher do tmpano o carto recm-impresso. Observei a folha, em busca de incongruncias, de algum problema a mais para resolver, mas, ao que me parecia naquele momento, a resoluo restante concernia, finalmente, impresso de todos os mil cartes-de-visita. Assim sendo, preparei o nimo e continuei a realizar a mencionada cadeia de impresso, a qual foi bem descrita em 10 quadros de A a J por Ralph W. Polk e que, por sua vez, podem ser discernidas em: A Verificao das condies da mquina; B Posicionamento do operador em condies ergonomicamente favorveis ao movimento dos braos; C Ventilao da pilha de papis e sua inclinao, em vista de facilitar o manuseio das folhas; D A catao da folha, na extremidade mais prxima do operador; E O Avanar da folha sobre o tmpano em movimento de abertura; F A aproximao da folha com as guias de registro sobre o tmpano; G O ajustar da folha junto s pinas inferiores; H o deslizar das folhas em direo s guias laterais; I A retirada da folha impressa do tmpano com a mo esquerda e a simultnea incluso de uma nova folha com a mo direita; J A deposio da folha impressa sobre uma segunda pilha.

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    Figura 11 - As 10 etapas supostas para a conduo do papel prensa (POLK, 1948. P.120)

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    Tais etapas compreendem a conduo de papel, principalmente, em impressoras com acionamento eltrico, as quais, como j visto, no dependem do operador como recurso energtico. Durante a impresso do milheiro de cartes-de-visita na pequena impressora manual essa cadeia foi interrompida, devido necessidade de se mover a alavanca que promove o fechamento do leque e a distribuio de tinta pela platina. Essa interrupo ocasiona, assim, a incluso de um item, a que chamaremos H. Esse item compreende a etapa de impresso propriamente, podendo ser dividido em dois semiperodos, a saber, H1 rebaixamento da alavanca at o fechamento total do leque e H2 elevao da alavanca, dando total abertura ao leque. Somente ento a operao continuada, com os consecutivos perodos I e J, seguidamente retornando ao perodo F. A sequncia prevista e compreendida durante toda a impresso de: A, B, C, D, E, F, G, H, H (1 e 2), I, J, F... At o cumprimento da tiragem. Tal cadeia compreende a soluo geral do problema fundador que uma tiragem, um problema que d fora a uma mirade de outros problemas que, ora sendo resolvidos, ora sendo negligenciados, do visibilidade cadeia de resolues que integram o que compreendemos por imprimir.

    Desde o incio da tarde at o incio da noite, a impresso dos mil exemplares dos cartes de visita ocorreu de maneira atribulada. Uma cadeia de novos problemas exigiu que certas operaes fossem empregadas com certo excesso de clculos: o recorrente fornecimento de apenas um exemplar de um determinado tipo de papel, forando a realizao de testes preliminares em outras folhas; a baixa viscosidade e a transparncia da tinta que exigiu, para a matriz, sucessivas limpezas e, para os cartes, duplicao da cobertura 51. Por fim, de ombros doloridos, pude considerar que: se foram mil cartes-de-visita impressos, muitos, tambm, foram os problemas 51 O que Matias nomeia bater, ou seja, imprimir. Nesse caso, bater duas vezes significa imprimir duas vezes sobre o mesmo carto.

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    auxiliares interceptando a concretizao dessa linhagem. Esses problemas concerniram tanto s mquinas e ferramentas quanto aos materiais e, ouso dizer, exibiam incontveis incompatibilidades que quase impossibilitaram a concluso do milheiro.

    Mas, foi aps essa sucesso tirana de interceptaes que pude concluir a tiragem, o que marca o perodo de deliberao, onde as aes no sofriam mais as condues de um mestre. Ao invs disso, a deliberao configurou ao tipgrafo a imagem de um hbil colega, mais experiente, ao qual recorrentemente seria possvel indagar e questionar sobre novos problemas. O segundo perodo, o de uma imitao, havia sido superado, e no mais necessitaria retornar a ele, ou menos, no como o jovem pouco conhecedor das entranhas propriedades constituintes daquele conjunto tcnico a que chamamos grfica.

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    SOBRE MICRMEGAS E A TIPOGRAFIA4

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    4. SOBRE MICRMEGAS E A TIPOGRAFIA

    Desde uma experincia como assistente de composio e impresso tipogrfica, em 2011, para a produo de um livro-de-artista de Amir Brito Cadr, transbordei das interaes contemplativas uma associao particular com a tipografia. Tendo conhecido, nesse perodo, o tipgrafo Ademir Matias, sofri a incluso peridica em seu crculo de conviventes operadores, como um aprendiz no declarado, seguindo-o em suas atenciosas demonstraes de inventos, tcnicas e materiais.

    Figura 12 - Micrmegas, de Fbio Martins, 12 x 22,5cm

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    Como os objetos no obedecem no se concretiza de forma autnoma e espontnea tenham eles intenes artstica ou no , optamos por discernir os nveis que cumprem, em certa medida, com a gnese do livro intitulado Micrmegas. Essa impossibilidade foi expressa e justificada, em amplo discernimento, por Leroi-Gourhan, que cito:

    Quando nos dispomos a investigar o que a inveno, devemos problematizar a inveno pura, ex nihilo, perguntando-nos se essa no uma noo ardilosa. Para que as tcnicas evoluam, necessria a aquisio ligada a qualquer coisa preexistente, mesmo que distante e de maneira inverossmil (LEROI-GOURHAN, 2010, v.2. P. 344).

    Uma inveno artstica justificada pela gerao espontnea, alm de transformar o objeto concretizado por mirades de operaes mentais em algo inapreensvel, daria a qualquer discurso que o contornasse o aspecto de um exerccio retrico52. Mas isso no significa que uma sntese mental de incompatibilidades sensveis53 possa ser unicamente remetida ao discurso do inventor, pois, ela pode e revela as complexas cadeias de resolues

    52 Ana Utsch, discorrendo acerca da conservao-restaurao de documentos grficos, estabelece uma discusso sobre a oposio matria e esprito no mbito das disciplinas formalistas de descrio do livro : anlises bibliogrficas, paleogrficas e de crticas literrias e textuais,. Sob tal abordagem,as produes prprias da cultura escrita aparecem como atemporais e universais. (UTSCH, 2013. P. 2). matria atribudo o sentido de algo que corrompe a autenticidade da Obra (UTSCH, 2013. P.2) e, nessas circunstncias, tais acepes do a perceber uma ao objetiva, tcnica, alijada das atividades do intelecto e desconsiderada como saber. 53 Podemos aqui nos remeter diretamente tese de doutoramento de Emerson Freire, na qual, em uma fala sobre a angstia de Czanne mencionada por Merleau-Ponty , encontramos Ele prprio a manifestava diversas vezes, pela sua dificuldade em realizar suas sensaes, como quem lida com algo superior a si mesmo, insuportvel, uma batalha maiscula (FREIRE, Emerson. Da sensao ausente Sensao como Potncia: tema e variaes sobre a relao arte-tecnologia. Tese de Doutoramento. Campinas, Banco de Teses e Dissertaes UNICAMP. 2012. P. 83).

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    materiais que a concretizam. O objeto artstico , antes de tudo, um objeto mensurvel, quantificvel, e as aes que o suscitam no poderiam ser menos concretas: o objeto artstico precedido de uma operao tcnica e, em sua construo, so empregadas diversas ferramentas. Micrmegas um livro, com folhas de papel cortadas em guilhotina, impressas com clichs tipogrficos e tipos mveis; seus biflios foram dobrados manualmente e, com pincel e cola, as fotografias que o compem foram encoladas.

    A expresso dessa relao, entre tipgrafo e desenhista, no somente suscitada pelo livro, mas s foi possibilitada pelos consecutivos emprstimos gestuais-instrumentais entre os dois operadores um mais especializado para a conduo de impressoras tipogrficas, outro mais especializado para a conduo de pontas-secas e canetas em curtos percursos, sobre papis de pequenos formatos. A grfica, como meio favorvel s trocas materiais, possibilitou a concreo desse objeto que, em pensamento, era uma rede de noes irresolutas acerca da prpria matria da presente monografia, dessa apreenso pela tipografia. A constituio do livro pertence aos perodos dessa incluso, reflexo e matria de reflexo das relaes ocorrentes em grfica. Micrmegas retoma a gnese dessa apreenso, encenando a catao de um primeiro tipo no caixotim de uma gaveta tipogrfica e o desdobramento de uma constatao: a de que as pequenas dimenses desse caractere tipogrfico compreendiam uma estrutura, diversas facetas, ranhuras e reentrncias que configuravam uma das incontveis singularidades microscpicas da grfica. Essa gnese, retomada ou inventada, somente pde ser reativada pelos dificilmente numerveis emprstimos de noes, gestos e instrumentos entre mim e Ademir Matias de Almeida.

    Para reiterar essas relaes de emprstimo, cabe considerar a tabela que exprime os nveis de resoluo de problemas instrumentais e materiais, dessa vez considerando o prprio livro como incentivador dessas trocas:

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    RESOLUES PARA PROBLEMAS INSTRUMENTAIS

    I A realizao do livro na oficina tipogrfica de Ademir Matias, com seus tipos, mquinas e ferramentas; a utilizao de instrumentos de desenho tcnico, como esquadros, rguas, tipmetros e compassos.

    II A encomenda de clichs flexogrficos em resina sairel e a diviso do trabalho de impresso com o prprio tipgrafo.

    III A combinao de peas de compassos e fios tipgrafos na inveno de uma ferramenta para gravar linhas paralelas sobre as impresses fotogrficas do livro.

    Tabela 5 - Resolues para problemas instrumentais em Micrmegas

    RESOLUES PARA PROBLEMAS MATERIAIS

    I A aquisio e emprstimos de papis, cartes, tecidos e tintas. Nesse caso, com majoritria associao ao nvel I da tabela anterior.

    II No se aplica.

    III No se aplica.

    Tabela 6 - Resoluo para problemas materiais em Micrmegas

    As fotografias, que compem os biflios do livro, exibem os componentes tipogrficos em seus abrigos regulares, cujas dimenses so reconsideradas atravs de uma orientao da tipometria ampliada para todo o domnio da grfica. Mesmo as estantes metlicas, ou os apertados corredores da tipografia tiveram, nas propores das fotografias impressas, as suas medidas novamente calculadas em cceros, pontos e furos. A ordem prpria a cada

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    objeto, em seu rinco microscpico e individual, foi observada e posta em relao de grandeza com os objetos vizinhos atravs da tipometria: mquinas de escrever, serras circulares, ferramentas, estantes e caracteres tipogrficos tiveram sua incluso na grfica reafirmada atravs da medio, ainda que nunca tenham deixado de participar, de algum modo, do orgnico e contnuo ordenamento da oficina. Ou, ao menos, a incluso de todos os dispersos elementos nesse imenso grupo a que chamamos grfica foi percebida somente aps a sua compreenso mtrica, uma vez que tais desenhos exprimem a experincia mesma de ser includo e incluir em si os gradientes de operaes concernentes tipografia. A tipometria, portanto, o mote para o reconhecimento de problemas gerais: na composio tipogrfica, identificando as pores no preenchidas das chapas, pode ser considerada a ferramenta que compatibiliza um problema a um dado cdigo, o que por sua vez sugere uma resoluo precisamente delineada; nos desenhos, a tipometria tornada uma ferramenta trans-analtica, ampliada como maneira prpria a uma apreenso perceptiva, como carter de uma mentalidade.

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    Figura 13 - Micrmegas, de Fbio Martins, 15 x 22,5 cm

    Quando nos trs perodos de construo da noo de resoluo de problemas as trs narrativas , a tipometria se fazia presente, como um recurso de visualizao dos problemas relativos composio e impresso tipogrfica, possibilitando encontrar as peas compatveis para ocupar os vos entre a chapa composta e os limites da rama, entre as fileiras de caracteres as linhas de texto , entre os tipos. A medio tipogrfica um dos aspectos constituintes de unio menos instvel entre o tipgrafo e os tipos, ela um mtodo de comunicao entre esse hbil operador e suas mquinas e ferramentas grficas, inclusive, possibilitando a distino deste frente um visitante pouco conhecedor.

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    Nesse sentido, o conto de Voltaire se apresenta como forte auxiliar na reconstituio da gnese da mencionada incluso do jovem desenhista na tipografia. Micrmegas narra a visita do habitante de uma estrela distante, a Sria, ao planeta Saturno, onde conhece um dos habitantes desse lugar. A diferena entre as dimenses do habitante da estrela, Micrmegas, e o habitante do planeta brusca: preciso que o pequeno gigante se deite, para que o saturniano, de p, possa falar com ele. Aps conversarem sobre as medidas de seus sentidos, suas cores primrias, seus sis, comparando-os, ambos dirigem-se em uma viagem interplanetria o que para eles no passa de uma mudana de ares entre distintos pases , chegando ao planeta Terra. Junto de outros companheiros que com eles viajaram, do a volta em todo o globo em apenas 36h e, no tendo encontrado ningum perceptvel aos seus sentidos, discutem sobre a existncia de vida nesse lugar. Voltaire dir que eles curvaram-se, deitaram-se, tatearam por toda parte, mas, como seus olhos e suas mos no eram proporcionais aos pequenos seres que por aqui rastejam, no tiveram a menor sensao que os fizesse desconfiar de que ns e nossos coirmos, os demais habitantes desse globo, tivssemos a honra de existir 54. Nessas condies iniciada uma discusso entre os dois extraterrestres e, tendo o saturniano se apressado nas concluses de que no havia vida nesse planeta, Micrmegas o responde:

    Pois dizia ele com seus olhinhos voc no consegue perceber certas estrelas de quinta grandeza que eu vejo com muito claramente; da, voc pode concluir que essas estrelas no existem?

    Mas eu apalpei bem disse o ano.

    54 (VOLTAIRE, 2012. P. 32).

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    Voc sentiu mal disse o outro. 55

    Entre o Micrmegas de Voltaire e o Micrmegas realizado na grfica de Ademir Matias, pode-se supor fortes semelhanas. Evidentemente, no se trata de uma viagem interplanetria a um lugar desconhecido completamente, mas de um terreno novo para um dos falantes: indo at a morada de Micrmegas, o jovem saturniano se dispe para o reconhecimento das dimenses dos instrumentos e materiais que a constituem e cujo regente e habitante no seno o tipgrafo. As fotografias que integram o Micrmegas tipogrfico exibem, sob o mote das medies, um reconhecimento em dinmica de execuo56: como desdobramento da experincia esttica fruda em novos domnios, a tipometria s vezes obsessivamente empregada , refere-se diretamente necessidade de ampliao das potncias analticas e perceptivas do observador. Entra-se uma primeira vez em uma tipografia e, tendo sado, as percepes todas so demudadas: olhar, sentir, ou mesmo desenhar, no suscita as mesmas definies aps essa primeira visita.

    55 (VOLTAIRE, 2012. P. 33). 56 Gilbert Simondon, em um artigo intitulado Mentalidade Tcnica, apresenta dois postulados de projeto filosfico de compreender a tcnica como parte de uma mentalidade particular. Destes, extraio o segundo: se tentamos compreender completamente um ser, necessrio que faamos tomando-o em sua entelquia [em ato], e no em sua inatividade, em seu estado esttico (SIMONDON, 2006. P 347).

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    CONSIDERAES FINAIS5

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    5. CONSIDERAES FINAIS

    Na mirade de influncias, estmulos e impresses estticas a que se pode sentir e viver em uma grfica, a constituio desse livro Micrmegas se apresenta como sntese da associao de um desenhista e um tipgrafo, ou, como o prprio Ademir Matias prefere ser intitulado, grfico. Isso, pois, foi na conjuno dos contnuos esforos em possibilitar recorrentes emprstimos gestuais-instrumentais, de trocas de experincias, que uma noo surgiu, foi aceita e utilizada em larga escala: a resoluo de problemas. No houvesse essa convergncia de interesses, centrada em uma noo a que ambos apoiamos o emprego, talvez a associao mestre-aprendiz aqui exaltada inclusive por sua contempornea escassez teria sido impossibilitada, o que por sua vez anularia a possibilidade de concretizao do mencionado livro. Micrmegas, por fim, apresenta, em alguns de seus aspectos, essa conjuno de conhecimentos e emprstimos mediados por dois humanos com diferenas de idade a superar 40 anos, tambm nasceendo dessa conjuno. E, no poderia deixar de considerar, o livro suscita a continuidade dessa associao, constituindo uma progressiva continuao gestual-instrumental vista entre os homens que dividem admiraes em comum e, cuja amizade provoca, por fim, incontveis alegrias instrumentalizadas57.

    57 Termo cunhado por Gilbert Simondon em uma carta endereada a Jacques Derrida e que exprime, justamente, a alegria no emprego de um instrumento, resolvendo problema determinado (SIMODON, 1996).

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    O PRESENTE E-BOOK FOI GERADO PARA LIVRE CIRCU-LAO E NO POSSUI FINS LUCRATIVOS. DIAGRAMA-DO PELO PRPRIO AUTOR, A EDIO ELETRNICA DESSA MONOGRAFIA FOI COMPOSTA UTILIZANDO AS TIPOLOGIAS FUTURA STD E ARIAL E AS IMAGENS EMPREGADAS NESSE EXEMPLAR NUMRICO FORAM RETIRADAS DO PROJETO GRFICO DA MONOGRAFIA IMPRESSA EM DEZEMBRO DE 2013.

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