Faces da literatura contemporânea: o caso da poesia viral

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DOI: http://dx.doi.org/10.1590/2316-4018472 Faces da literatura contemporânea: o caso da poesia viral Márcio Roberto do Prado 1 Uma fábula do porco-espinho reinventada Entre os momentos decisivos para o estabelecimento da lírica moderna, antes das propostas apresentadas com base na leitura baudelairiana de Poe e seus desdobramentos em grandes herdeiros, como Rimbaud e Mallarmé – e, diretamente após este último, Valéry –, foi de fundamental importância o Frühromantik e suas implicações no tocante à concentração da linguagem poética. 2 Nesse sentido, a metáfora do porco-espinho, recuperada de Arquíloco, além de justificar e referendar a teoria e a prática do fragmento literário, também serviu de pedra de toque para uma visão da lírica na qual seus objetos – os poemas – deveriam primar por uma extrema concentração que, na maioria das vezes, traduz-se em brevidade e concisão. Tal postura ecoa em outros, ainda que prescindindo de um diálogo direto, como no caso do já mencionado Poe. Quando ele, tratando da composição de sua famosa obra “The Raven”, vaticina de modo, então, idiossincrático acerca da extensão do poema, ele o faz nos seguintes termos: A consideração inicial foi a da extensão. Se alguma obra literária é longa demais para ser lida de uma assentada, devemos resignar-nos a dispensar o efeito imensamente importante que se deriva da unidade de impressão, pois, se se requerem duas assentadas, os negócios do mundo interferem e tudo o que se pareça com totalidade é imediatamente destruído. Mas, visto como, ceteris paribus, nenhum poeta pode permitir- se dispensar qualquer coisa que possa auxiliar seu intento, resta a ver se há, na extensão, qualquer vantagem que contrabalance a perda de unidade resultante. Digo logo que não há. O que denominamos um poema longo é, de fato, apenas a sucessão de alguns curtos; isto é, de 1 Doutor em estudos literários, professor do Departamento de Estudos Linguísticos e Literários da Universidade Estadual de Maringá (UEM), Maringá, PR, Brasil. E-mail: [email protected] 2 A primeira parte deste artigo, que trata especificamente da poesia viral, foi publicada, com modificações e de modo mais sintético nos anais do XV Seminário de Pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários e do II Seminário Internacional de Estudos Literários: Poesia na Era da Internacionalização de Saberes, realizados entre os dias 16 e 18 de setembro de 2014, na Unesp, em Araraquara/SP.

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DOI: http://dx.doi.org/10.1590/2316-4018472

Faces da literatura contemporânea: o caso da poesia viral

Márcio Roberto do Prado1

Uma fábula do porco-espinho reinventada

Entre os momentos decisivos para o estabelecimento da lírica

moderna, antes das propostas apresentadas com base na leitura baudelairiana de Poe e seus desdobramentos em grandes herdeiros, como Rimbaud e Mallarmé – e, diretamente após este último, Valéry –, foi de fundamental importância o Frühromantik e suas implicações no tocante à concentração da linguagem poética.2 Nesse sentido, a metáfora do porco-espinho, recuperada de Arquíloco, além de justificar e referendar a teoria e a prática do fragmento literário, também serviu de pedra de toque para uma visão da lírica na qual seus objetos – os poemas – deveriam primar por uma extrema concentração que, na maioria das vezes, traduz-se em brevidade e concisão. Tal postura ecoa em outros, ainda que prescindindo de um diálogo direto, como no caso do já mencionado Poe. Quando ele, tratando da composição de sua famosa obra “The Raven”, vaticina de modo, então, idiossincrático acerca da extensão do poema, ele o faz nos seguintes termos:

A consideração inicial foi a da extensão. Se alguma obra literária é longa demais para ser lida de uma assentada, devemos resignar-nos a dispensar o efeito imensamente importante que se deriva da unidade de impressão, pois, se se requerem duas assentadas, os negócios do mundo interferem e tudo o que se pareça com totalidade é imediatamente destruído. Mas, visto como, ceteris paribus, nenhum poeta pode permitir-se dispensar qualquer coisa que possa auxiliar seu intento, resta a ver se há, na extensão, qualquer vantagem que contrabalance a perda de unidade resultante. Digo logo que não há. O que denominamos um poema longo é, de fato, apenas a sucessão de alguns curtos; isto é, de

1 Doutor em estudos literários, professor do Departamento de Estudos Linguísticos e Literários da Universidade Estadual de Maringá (UEM), Maringá, PR, Brasil. E-mail:

[email protected]

2 A primeira parte deste artigo, que trata especificamente da poesia viral, foi publicada, com modificações

e de modo mais sintético nos anais do XV Seminário de Pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários e do II Seminário Internacional de Estudos Literários: Poesia na Era da

Internacionalização de Saberes, realizados entre os dias 16 e 18 de setembro de 2014, na Unesp, em

Araraquara/SP.

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breves efeitos poéticos. É desnecessário demonstrar que um poema só o é quando emociona, intensamente, elevando a alma; e todas as emoções intensas, por uma necessidade psíquica, são breves. Por essa razão, pelo menos metade do Paraíso perdido é essencialmente prosa, pois uma sucessão de emoções poéticas se intercala, inevitavelmente, de depressões correspondentes; e o conjunto se vê privado, por sua extrema extensão, do vastamente importante elemento artístico, a totalidade, ou unidade de efeito (Poe, 1987, p. 111-112).

Em nome do rigor, chega a uma contagem de versos consideravelmente específica, afirmando ainda que “tendo em vista essas considerações, assim como aquele grau de excitação, que eu não colocava acima do gosto popular nem abaixo do gosto crítico, alcancei logo o que imaginei ser a extensão, conveniente para meu pretendido poema: uma extensão de cerca de cem versos” (Poe, 1987, p. 112). As lições de Poe, a despeito de qualquer julgamento valorativo acerca de sua produção literária, atingem autores os mais diversificados. Quando Baudelaire escreve Les fleurs du mal (1857), ele o faz utilizando uma estrutura na qual cada poema é breve, mas, articulando-se com os outros de sua seção, constitui um todo de sentido; cada seção, por sua vez, unindo-se às demais, trabalha na construção da obra em si. Trata-se do mesmo modelo adotado por T. S. Eliot em The Waste Land (1922) ou por Fernando Pessoa na Mensagem (1934) e, como tal, mostra-se extremamente produtivo na lírica verificada a partir do advento da modernidade literária, consideradas as inevitáveis exceções de praxe. Além da questão da concisão, é notável que os nomes mencionados também se caracterizem por uma produção na qual a literatura é encarada de maneira (auto)crítica. Nesse sentido, apenas temos uma coerência ainda maior tendo em vista o momento decisivo da passagem do século XVIII para o XIX: é no primeiro romantismo alemão que encontramos o ponto de partida da Crítica e da Teoria da Literatura propriamente ditas, e isso se dá por meio das obras de artistas como Novalis ou Schlegel, cuja produção literária se caracteriza também por essa tendência (auto)crítica.

Assim, cabe a pergunta acerca da continuidade de semelhante tendência em produções da contemporaneidade, especialmente quando as pensamos no âmbito da internet e de seu assombroso alcance, seja considerando-a como repositório, seja pensando em seu público real. Dentre os vários casos dignos de interesse, poderíamos destacar a twitteratura, as fanfictions ou as narrativas transmídia; todavia, tendo

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em vista esta proposta de discussão acerca da lírica, um dos casos mais interessantes é aquele da chamada “poesia viral”. Marcada por sua produção e disseminação via redes sociais, essa manifestação da lírica contemporânea (será evitada aqui a discussão terminológica acerca do termo inexato “poesia”, uma vez que compreensível tendo em vista a história teórica e conceitual da literatura em solo brasileiro) reapresenta a exigência de concentração até aqui discutida, ainda que essa concentração seja sobretudo enfocada com base em seu interpretante mais corriqueiro, a brevidade.

A rápida análise de alguns casos poderá ilustrar o que se pretende, abrindo espaço para uma discussão mais adequada. Focando a atenção no Facebook e nas fanpages de poesia viral, podemos chegar a algumas ocorrências paradigmáticas. É o caso da fanpage Eu me chamo Antônio (Figura 1), na qual encontramos textos que podem ser encarados sob a égide da lírica, muito embora a descrição da página mencione Antônio como um personagem de romance e o responsável pela fanpage qualifique a produção como uma narrativa.

Figura 1 – Perfil da fanpage Eu me chamo Antônio

Uma forte marca de identidade visual caracteriza Eu me chamo

Antônio: a reprodução de guardanapos (Figura 2) nos quais, com fontes

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diferenciadas, encontramos os textos que primam pela concisão e pela concentração. Nesse caso, tais características coadunam-se com o “suporte dentro do suporte”, uma vez que a proposta de utilização de guardanapos como veículos dos textos limita a quantidade de matéria verbal a ser apresentada. Que isso se adéque a uma imperiosidade de tamanho típica das redes sociais não é algo que cause espanto, mas, antes, um sinal de considerável coerência, de modo que a antiga “netiqueta” se transfigura em termos de uma espécie de bienséance suis generis do século XXI.

Figura 2 – Publicação na fanpage Eu me chamo Antônio

A utilização das imagens dos guardanapos e mesmo o trabalho

artístico com as fontes em Eu me chamo Antônio também abrem espaço para outra faceta da demanda de concentração da linguagem verbal: o fato de a mensagem ser potencializada por meio do diálogo de mídias e artes. Tal fato pode ser percebido em outros casos, como o da fanpage Um milhão (Figura 3), na qual elementos visuais se juntam aos textos na composição dos poemas.

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Figura 3 – Perfil da fanpage Um milhão

É interessante notar que a descrição da página (Figura 4) menciona a

necessidade de se “escrever poesia” (e aqui vale a mesma consideração anterior acerca da imprecisão terminológica), o que poderia sugerir uma plena sustentação na linguagem verbal. No entanto, não é o que se verifica, uma vez que o diálogo mencionado antes pode ser facilmente notado em diversas produções (Figura 5).

Figura 4 – Detalhe da descrição da fanpage Um milhão

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Figura 5 – Publicação da fanpage Um milhão

Novamente seria tentador simplificar a questão e perceber na

utilização de outras linguagens que não a verbal uma compensação para as carências decorrentes de uma brevidade que, mais do que uma resposta às já antigas exigências da lírica, seria uma natural consequência de um processo comunicacional ralo e apressado característico não apenas da contemporaneidade, mas também inerente ao suporte do computador e da internet, especialmente no caso de redes sociais como o Facebook. Porém, um olhar mais cuidadoso sobre os objetos em questão abre espaço para novas perspectivas nesse sentido.

Na própria fanpage Um milhão é possível encontrar a coexistência de textos que se caracterizam pelo diálogo entre linguagens e de outros nos quais não apenas a linguagem verbal é predominante, mas, ainda quando problematizada via seus meios de reprodução (como no caso de uma foto de um texto verbal), traz algo de “nostálgico” ao evocar tradicionais suportes da mensagem poética (Figura 6).

Na verdade, a ideia de uma fotografia de uma página de papel na qual um poema que utilize apenas a linguagem verbal (Figura 7) seja reproduzido traduz, na superfície, o diálogo de mídias e linguagens. Entretanto, tal diálogo constitui um paradoxo: em tempos de apropriação natural da imagem como elemento intrínseco na transmissão de mensagens a princípio verbais (algo que pode ser encontrado em um simples emoticon), é o fato de se tratar de uma foto que instaura a presença nostálgica da folha de papel como suporte, uma vez que a supressão da mediação imagético/fotográfica aqui implica a utilização da tela do computador e da página do Facebook como suporte direto para a veiculação do poema. Ou seja, o jogo de alteridades identitárias das

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linguagens envolvidas desdobra-se em um jogo de antigas e novas perspectivas, com consequências para a percepção dessa manifestação da lírica sob o olhar da contemporaneidade.

Figura 6 – Publicações da fanpage Um milhão

Figura 7 – Detalhe de publicação da fanpage Um milhão

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Vale destacar ainda um último caso de fanpage no qual a nostalgia do suporte se mostra presente. Trata-se da página Ex-estranhos (Figura 8), cuja identidade visual se ampara na utilização de imagens de máquinas de escrever e cujos textos, com fontes que reproduzem a escrita dessas máquinas, trazem a memória da prática e do suporte.

Figura 8 – Perfil da fanpage Ex-estranhos

Figura 9 – Publicação na fanpage Ex-

estranhos

Figura 10 – Publicação na fanpage Ex-

estranhos

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A escrita concentrada, neste caso, mostra-se presente, podendo chegar a extremos (Figura 9), mas coexiste com casos de poemas com uma proposta de redação menos concisa (Figura 10), demonstrando uma versatilidade que, mesmo assim, satisfaz na limitação da “folha” utilizada a demanda da lírica moderna e posterior.

Além disso, a fanpage Ex-estranhos apresenta outro elemento digno de interesse, por se tratar de uma produção coletiva que desde a descrição da página reconhece seu caráter colaborativo. Desse modo, a proposta de escrita alinha-se em uma dinâmica colaborativa e participativa que tem sido um dos principais elementos destacados desde o contexto pioneiro das reflexões específicas sobre a cibercultura, como no caso do pensamento de Pierre Lévy (1999), na mesma medida em que pode ser encarada a partir do viés de sua contribuição para a continuidade dos caminhos da lírica, ainda que, no que diz respeito ao modo como o exemplo foi trabalhado, se destaque basicamente no caso específico de sua produção, tendo em vista a concentração, a concisão e a brevidade.

Entretanto, mesmo se levando em conta a riqueza e o potencial do objeto, sua legitimação não se dá de modo natural e tranquilo. O próprio suporte parece ainda carecer, no julgamento geral, de plena capacidade de justificar e referendar as produções que por meio dele são veiculadas, de maneira que, não raras vezes, ao obter destaque na cena cultural, produções oriundas da internet migram para o legitimado suporte do papel, como no caso da fanpage Eu me chamo Antônio, com textos publicados sob a forma de livro pela editora Intrínseca (Figura 11).

Figura 11 – Site da Editora Intrínseca

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É curioso notar como a apresentação dos poemas, potencializada pelos

recursos do computador e da internet, se configura como elemento imprescindível, determinando, inclusive, o projeto gráfico editorial particular levado às livrarias. Contudo, isso não muda o fato de que a posterior publicação em uma mídia mais tradicional (e intelectual e academicamente ainda celebrada de modo mais efetivo) parece transparecer um ganho e uma evolução em termos de legitimidade e valor.

Há ainda um elemento que não foi devidamente destacado e é merecedor de atenção. A mencionada dinâmica colaborativa e participativa tem como uma de suas facetas mais instigantes o fato de os participantes de um determinado contexto cultural atuarem naquilo que Henry Jenkins, argutamente, chamou de “adhocracia autocorretiva” (Jenkins, 2009, p. 338). Isso pode ser facilmente notado não apenas nos comentários de cada postagem nas fanpages mencionadas, mas também em outros espaços nos quais tal discurso possa arborescer. A título de exemplo, podemos retomar a página Ex-estranhos, que apresenta, entre aqueles que a “curtiram”, endereços de outras páginas da internet, e não apenas do Facebook (Figura 12). Um dos casos que podem ser destacados é o do site Homo literatus, que, em postagem de março de 2014, tratou justamente da literatura viral, trabalhando, dentre outros, a Ex-estranhos.

Figura 12 – Detalhe da fanpage Ex-estranhos

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Figura 13 – Site do Homo Literatus

O texto (Figura 14), assinado por Lucas Reis Gonçalves, inicia-se com

considerações sobre o fato de, na contemporaneidade, todos serem poetas – e críticos, e fotógrafos e jornalistas e tudo –, o que por si nos poderia colocar diante de um esvaziamento valorativo por hiper-realização, tal como já o havia percebido Jean Baudrillard, quando, ao tratar do caráter transestético de seu tempo por meio do recorte do transexual, retomou Andy Warhol para afirmar:

Quando Andy Warhol diz: “Todas as obras são belas, não preciso escolher, todas as obras contemporâneas se equivalem”; quando diz: “A arte está em toda parte, logo, já não existe, todo o mundo é genial”, ninguém pode acreditar. Mas ele está descrevendo a configuração da estética moderna, que é a de um agnosticismo radical (Baudrillard, 2001, p. 29).

Porém, seria um reducionismo simplista igualar, sem critérios, uma percepção do valor que afeta o conceito de obra de arte e uma prática artística e crítica que, por seu turno, problematiza o próprio valor. Nesse sentido, mantendo o foco no site Homo literatus e em sua postagem sobre a literatura viral, é interessante destacar um dos mais controversos espaços da adhocracia jenkinsiana: a caixa de comentários. Nesse espaço (Figura 15), percebe-se esforço no sentido de uma estabilização valorativa por meio de um discurso nostálgico, como se pode notar na emblemática referência a Vinicius de Moraes feita por uma das comentaristas (“„Que não seja imortal, posto que é chama/Mas que seja infinito enquanto dure‟ – Eu prefiro essa forma carinhosa que Vinicius

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de Moraes retratava o amor”). Igualmente emblemático, embora possa parecer fortuito, é o fato de a mesma comentarista – que se apresenta como professora, por sinal – retomar a palavra pouco depois para perguntar e responder: “Ler é um hábito, um vício, cultura ou entretenimento?/Acredito que depende do momento”.

Figura 14 – Detalhe do site do Homo Literatus

Poderíamos destacar como o comentário coloca a questão da leitura –

e, por conseguinte, da escrita literária – em termos de disputa de espaços de cultura e recreação, reflexão que se encontra na ordem do dia. Mas não deixa de ser intrigante outro aspecto: o fato de o comentário, sem utilizar todo o espaço da primeira linha, como se fosse feito em versos, constituir-se em um eco (entretenimento/momento) que pode deixar de ser visto como mero vício de linguagem caso o encaremos sob o prisma da rima. É inevitável não lembrar da afirmação influente de Schlegel (1994, p. 91):

Poesia só pode ser criticada por poesia. Um juízo artístico que não é, ele próprio, uma obra de arte, seja em seu tema, enquanto exposição da impressão necessária em seu devir, seja por meio de uma bela forma e um tom liberal no espírito das velhas sátiras romanas, não tem, em absoluto, direito de cidadania no reino da arte.

De pronto já poderíamos atualizar a ação direta do ato crítico como resposta criativa à provocação (também criativa) suscitada pela obra de arte em termos de agência das partes envolvidas, utilizando o termo tal como propõe Janet Murray (2003, p. 127). Embora não seja o caso de

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escalonar cada ocorrência em termos de valor, podemos tranquilamente encarar tais fenômenos como o desdobramento desse momento inicial e decisivo da lírica moderna, que determinou um produtivo elemento de cunho formal (a concentração extrema, traduzida em termos de concisão e brevidade), bem como uma práxis de notáveis desdobramentos (a produção de uma literatura autocrítica e autoconsciente).

Todavia, a despeito de suas implicações para a discussão dos rumos da lírica na contemporaneidade e mesmo em um futuro próximo, produções como as destacadas até o momento com muita frequência não gozam de consideração e atenção na medida em que seria necessário para que fossem esmiuçadas e devidamente analisadas. Os motivos para semelhante quadro podem se desdobrar em várias frentes, mas todos convergem para a questão do valor e da legitimação. Seriam as produções elencadas “dignas” de figurar no rol da literatura? Seriam demonstrações do engenho humano capazes de se elevar à condição de obras de arte? Embora existam estudos realizados no âmbito acadêmico acerca de tais produções, essas perguntas ainda são lançadas, explicando eventuais carências de trabalhos sobre o assunto, apesar de sua evidente urgência.

Assim, cabe agora questionarmos os motivos das reservas notadas não apenas no tocante à poesia viral, mas em relação aos processos comunicacionais e culturais da internet e do computador como um todo, tendo em vista duas frentes de abordagem da literatura: a pesquisa científica e a sala de aula. Tal enfoque, permitindo que se coloque em destaque o assunto, cumpre importante papel e ajuda a desnudar como o velho problema da negação do Outro ainda surge na ordem do dia, em constante atualização.

Orgulho e preconceito: o olhar sobre a literatura entre a incompreensão e o medo

Há uma passagem de Harold Bloom que, apesar de longa, merece

ser reproduzida em função de sua visão apocalíptica do contexto em que se insere. Afirma o crítico estadunidense:

É lamentável que na leitura de caráter profissional raramente tenhamos a oportunidade de resgatar o prazer que a referida atividade nos trazia na juventude, quando livros despertavam o entusiasmo de que falava Hazlitt. Hoje em dia, a maneira como lemos depende, em parte, da distância em que nos encontramos das

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universidades, onde a leitura não é ensinada como algo que proporciona prazer, isto é, segundo os significados mais profundos da estética do prazer. Tanto para um jovem como para uma pessoa mais madura, não é nada cômodo confrontar, de peito aberto, o que há de mais intenso em Shakespeare, e. g., em Rei Lear; entretanto, deixar de ler Rei Lear plenamente (ou seja, sem expectativas ideológicas) é deixar-se enganar cognitiva e esteticamente. A infância passada diante de um aparelho televisor leva à adolescência diante de uma tela de computador, e a universidade recebe alunos que dificilmente aceitarão a ideia de que “é preciso / Sair como se chega [...] Quando for a hora”. A leitura se desintegra e, juntamente com ela, grande parte do ego se esvai. Porém, de nada adianta lamentar, e o problema não há de ser remediado com promessas e programas. O que é possível ser feito só pode ser implementado por meio de ingerências elitistas, o que atualmente é inaceitável, por bons e maus motivos. Ainda existem leitores solitários, jovens e idosos, em toda parte, mesmo nas universidades. Se resta à crítica literária, hoje em dia, alguma função, esta será a de dirigir-se ao leitor solitário, que lê por iniciativa própria, e não segundo interesses que, supostamente, transcendam o ser (Bloom, 2001, p. 19).

A passagem reproduzida faz parte do prólogo de um livro cujo ousado e pretensioso título é Como e por que ler (o prólogo em questão tem como seu próprio título “Por que ler?”). Aqueles que estejam familiarizados com a produção de Bloom, sobretudo após seu famoso O cânone ocidental, reconhecerão o tom severo de defesa do cânone e da leitura das “grandes obras” da literatura. Entrando em confronto com aquilo que chama de “Escola do Ressentimento” (os estudos culturais, a crítica feminista, dentre tantos outros), Bloom lança-se em uma cruzada contra o que seria um assédio ao cânone e à cultura humanística que esse cânone representa. E é de especial interesse que, em sua defesa, sobrem ataques à própria universidade, sede do que poderíamos chamar de “leitura literária profissional”, e a práticas comunicacionais atreladas à televisão e ao computador. Pois, no fim das contas, contra semelhante ameaça, pretende Bloom assumir o árduo papel de ensinar a ler, evitando o risco de que os futuros leitores, incautos, se percam pelo caminho, desviando-se, assim, do farol seguro representado pelos grandes escritores da humanidade.

Entretanto, não seria despropositado considerar que os leitores possuíssem seus próprios meios de defesa, e que o próprio ato de ler, por si só, representasse uma complexidade tal que não pudesse ser

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limitada a uma normatividade monológica. Apenas para mencionar outro prólogo, desta vez aquele feito à primeira edição da História universal da infâmia, do escritor argentino Jorge Luis Borges, temos a seguinte visão:

Às vezes acredito que os bons leitores são cisnes ainda mais negros e singulares que os bons autores. Ninguém negará que as peças atribuídas por Valéry a seu mais que perfeito Edmond Teste valem evidentemente menos que as de sua esposa e amigos... Ler, além do mais, é uma atividade posterior à de escrever, é mais resignada, mais atenciosa, mais intelectual (Borges, 1993, p. 15).

Palavras eloquentes de um autor maior. Porém, embora estejamos mais inclinados atualmente a reduzir e a relativizar a normatização da escrita da literatura, ainda encaramos com certa naturalidade essa mesma normatização com relação à leitura e aos processos de escrita que, sem a pretensão artística, se propõem a explicar a literatura e a disseminá-la. Quando acrescentamos à discussão o cenário mais recente, com o computador e a internet, o quadro torna-se ainda mais grave: não estaríamos apenas permitindo que a grande produção artística da humanidade fosse soterrada sob uma quantidade ciclópica de ruído comunicacional, seja ele escrito ou não; ante as práticas de leitura – e de escrita – que grassam nos ambientes virtuais, a própria capacidade de leitura encontrar-se-ia em risco, substituída por formas rasteiras e apressadas de decodificação da palavra escrita – tal como o senso comum imagina ser a regra inescapável das redes sociais.

Aqui uma ideia se impõe: preconceito. Afinal, é curioso notar que, na esmagadora maioria das vezes, as críticas mais ferrenhas surgem daqueles que não estão dispostos a considerar o fenômeno de dentro nem vivem de modo intenso a realidade de comunicação que têm a pretensão de conhecer e compreender a ponto de poder criticar. Adotando a solução mais fácil, preferem a nostalgia injustificada de uma Era de Ouro que, na verdade, não houve e o medo de uma Era do Caos que, na verdade, não há.

O que há, verdadeiramente, é uma quantidade enorme de informação que não para de crescer e com a qual temos de lidar. O que há, verdadeiramente, é a necessidade de atualização que rege um fenômeno como a internet de modo incontornável. O que há, verdadeiramente e por fim, é a necessidade de se evitar qualquer preconceito para que possamos enfocar os reais desafios que se

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apresentam para aquele que lê, bem como para aqueles que pretendem refletir sobre o que se lê, seja por meio de estudos críticos, seja por meio da mediação de leitura em sala de aula. Em suma, um exercício de humildade capaz de colocar por terra uma postura intelectual que se transfigura em orgulho, não aquele orgulho que se origina da autoconsciência e da autocrítica, mas pura e simples soberba da mente, um dos avatares da ilusão. Assim, poderemos ver com clareza que os receios oriundos de tal cenário nascem da incompreensão, que, por sua vez, se alimenta do orgulho e do preconceito. Despidos de pré-julgamentos excludentes e de uma soberba intelectual estéril, podemos encarar elementos mais palpáveis, tais como os complexos que fazem de nós o que somos em termos comunicacionais, complexos como os dois que discutiremos a seguir.

Complexo de Leonardo

Um dos aspectos mais curiosos do gênio renascentista Leonardo da

Vinci consiste no fato de que sua polimatia quase sobre-humana era acompanhada por uma tendência fortíssima a deixar inacabadas algumas obras que, não raras vezes, permaneciam como pouco mais que rascunhos ou esboços. Não precisamos relembrar projetos que, como projetos, foram plenamente realizados, ainda que não tenham encontrado materialidade posterior sob a forma de construções ou máquinas engenhosas. Podemos destacar obras como “A adoração dos magos”, trabalhada entre 1481 e 1482. Embora encomendada pelos pios monges de São Donato de Scopeto, ela nunca teve oportunidade de uma visão daquilo que deveria ser sua forma final, tal como podemos até hoje verificar na Galleria degli Uffizi, em Florença. Do ponto de vista artístico, não se tratava de um esboço para uma futura (e hipotética) obra: já era um trabalho em andamento. Do ponto de vista prático, é importante ressaltar que se tratava de uma encomenda, no fim, profissional – paga, inclusive. Contudo, a obra, essa primeira grande pintura de Leonardo – e a primeira que podemos atribuir com mais segurança ao mestre –, permaneceu inconclusa.

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Figura 15 – Leonardo da Vinci, A adoração dos magos (1481-1482)

A dinâmica comunicacional na qual se insere o leitor mais recente,

sobretudo o nativo digital, compartilha alguns aspectos da natureza de Leonardo, como a ânsia polimática e a tendência ao inconcluso. Contudo, conforme já pudemos antecipar ao tratar dos preconceitos inerentes às reflexões sobre esse atual interagente – na maioria das vezes um ciberagente – do par leitura/escrita, esses dois aspectos são vistos, em boa parte das vezes, sob uma ótica negativa.

A ânsia polimática, o desejo de fazer tudo, é vista como falta de foco, convite e explicação para mais superficialidade e incapacidade de imersão. Ao articular convergencialmente leitura e escrita (mas não apenas isso), o ciberagente abre-se, em especial com o auxílio da internet e do computador, a um universo de possibilidades. O dia a dia pode contar com a leitura (acompanhada de comentários) de dezenas de blogs favoritos, postagens em seu(s) próprio(s) blog(s) pessoal(ais), conferência dos principais tweets (seguidos pelo retweet ou pelo tweet original provocado pelo que se lê), atualização do Facebook e de todas as demais redes sociais às quais está conectado, edição de jogos como no caso da criação de faces, kits e tudo o que envolve franquias como Pro

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Evolution Soccer ou Fifa, inúmeros downloads de filmes, séries, livros, músicas e toda sorte de bens culturais do interesse do ciberagente. Acrescente-se a isso, no caso de um hipotético adolescente, o tempo passado na escola e as obrigações diretamente decorrentes dela, bem como ao menos um espectro de vida social e algumas inevitáveis horas de sono e teremos dificuldade em encaixar a lista em 24 horas. A menos, é claro, que tudo seja feito de modo extremamente superficial, por meio de flashes actanciais que impediriam qualquer consistência ou conteúdo.

A outra possibilidade para tamanha atividade consistiria no outro elemento apontado – a tendência ao inconcluso. Se não pudermos partir do princípio segundo o qual a ânsia polimática gere indiscutivelmente resultados superficiais e “ruins”, então a conclusão poderia ser a de que o aparente exagero de ações impediria que se finalizasse qualquer coisa. O número de blogs deixados de lado com apenas uma dúzia de postagens, os perfis abandonados ou cancelados nas diversas redes sociais, o volume impressionante de arquivos baixados e esquecidos em pastas “para ler/assistir/ouvir depois”, tudo contribuiria para reforçar a tese do inconcluso.

Desse modo, o nativo digital, o ciberagente, mesmo fugindo de uma conotação estritamente freudiana (Freud, 2007), estaria sujeito a um Complexo de Leonardo: fadado a fazer quase tudo, mas de modo superficial, ou a fazer tudo quase, deixando uma coleção impressionante de rascunhos que não deveriam ser apenas rascunhos. Entretanto, a própria referência a Leonardo da Vinci deveria ser capaz de, ao menos, acenar com possibilidades mais positivas. Afinal, conforme já apontamos aqui, trata-se, sobretudo, de trocar uma polêmica estéril sobre escalonamento valorativo em função de uma perspectiva do “diferente”. Não podemos tentar avaliar e analisar a dinâmica comunicacional que se desdobra atualmente sob a égide de pressupostos e valores que serviam, e bem, para uma dinâmica diversa. Na verdade, nem se trata de uma constatação tão inovadora: a ambiguidade do phármacon platônico que leva Sócrates a questionar a escrita já antecipava um conflito que se repete nos dias de hoje. Aquilo que “se perde” seria por demais valioso para que permitíssemos tamanho assédio à cultura humana. Mas realmente há perda? Embora um aedo nos moldes daqueles que disseminavam as epopeias homéricas não tenha mais espaço (a menos que pensemos em uma situação artificial), as epopeias em si continuam presentes e atuantes em nossa cultura. E não seriam elas o fim, cujo meio era o aedo, que deveríamos preservar? Se a resposta for

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“sim”, como não saudar os meios que otimizem o processo, desprendendo-nos do paradoxo de um “trabalho intelectual braçal” em proveito de nossas metas mais relevantes?

Uma decorrência merece destaque e leva ao nosso Complexo de Leonardo: a modificação dos meios leva à modificação da relação que o ser humano estabelece com aqueles com os quais se comunica tanto quanto com a própria comunicação como processo. Apresentando um exemplo dos mais óbvios e repetidos, conversas mantidas paralelamente com mais de dez interlocutores em um messenger qualquer (utilizando texto, vídeo e áudio), nem sempre por meio da mesma janela, impossibilitariam qualquer diálogo mais profundo, levando a uma profusão de expressões como “claro, “sim”, “não” ou, simplesmente, “kkkkkkk”. Isso pode ocorrer, mas a questão impressionante não está focada na pretensa profundidade da conversa, mas, antes, no fato de que o ciberagente, como cibercomunicante, mantém várias conversas simultâneas sem perder o fio comunicacional em nenhuma delas, algo impensável, nos mesmos termos, em um diálogo “cara a cara”. Além disso, basta frequentar um mero chat para esbarrar com inúmeras situações em que dois interlocutores se retirem da sala para uma conversa privada – e, por conseguinte, mais aprofundada e detida. Há um contrato dialógico, regido por regras de – para utilizar um termo já citado e já arcaico – “netiqueta”. Nesse contrato, a conversa múltipla ou entre dois interlocutores convive com outros elementos como a utilização ou não de caixa alta. Diferente, apenas diferente.

Isso nos serve para pensar, se considerarmos o contexto de sala de aula, em todos os atores envolvidos, mas serve de modo ainda mais eficiente quando pensamos nos educandos. Para analisarmos os professores e os pesquisadores de literatura, atores fundamentais no processo de mediação da leitura, outro complexo pode ser mais ilustrativo. Esse complexo não está mais tão ligado ao “objeto” de reflexão do intelectual, mas é inerente ao próprio intelectual e, muitas vezes, atravanca avanços absolutamente necessários para uma reflexão mais eficiente sobre o tema.

Complexo de Beethoven

Os progressivos problemas auditivos de Ludwig van Beethoven

legaram à história da música uma de suas imagens mais tocantes: a

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figura do gênio musical surdo, compondo sinfonias e sonatas que ouviria apenas com a alma. Mesmo que a realidade dos fatos não fosse tão simplista e a degeneração tenha sido lenta e gradual, neste caso específico a versão é mais interessante e útil do que uma eventual – e igualmente questionável, no fim das contas – “verdade dos fatos”. Afinal, em seu testamento de Heiligenstadt, datado de 1802, Beethoven escreve de modo tocante (tradução e negrito nossos):

Para meus irmãos Karl e (Johann) Beethoven.

Vocês, que pensam que sou um ser cheio de ódio, obstinado, misantropo, ou que me fazem passar por tal, como vocês são injustos! Vocês ignoram a razão secreta daquilo que lhes parece ser assim. Desde a infância, meu coração e meu espírito mostravam inclinação para este sentimento delicado: a benevolência. Sempre estive disposto a realizar grandes ações; mas não se esqueçam que desde a mais tenra idade, aos seis anos, fui vítima de um mal pernicioso, que a incapacidade dos médicos acabou por agravar ainda mais. Encontrando decepções, ano após ano, com relação a minhas esperanças de melhoras, forçado, por fim, a vislumbrar a perspectiva de uma enfermidade duradoura, cuja cura exigiria vários anos (admitindo que essa cura fosse possível), dotado de um temperamento ardente e ativo, sujeito às distrações oferecidas pela sociedade, vi-me obrigado a me isolar, a passar minha vida longe do mundo, solitário. Se por vezes me ocorria de tentar ignorar aquilo por que passava, a triste experiência de minha audição perdida vinha me lembrar duramente de tudo. E, todavia, não conseguiria dizer a todos: “Falem mais alto, gritem, pois eu sou surdo!”. Ah, como confessar a fraqueza de um sentido que, em mim, deveria ser infinitamente mais desenvolvido que nos outros, de um sentido que outrora eu possuí com uma perfeição que poucos músicos conheceram? (Beethoven, 1936, p. 79-81).

Essa ideia oferece um problema com o qual têm de lidar tanto os professores que se veem diante do desafio de mediar o processo de ensino-aprendizagem em tempos atuais quanto os pesquisadores que queiram não apenas decifrar a mecânica e a gramática dos novos processos comunicacionais, mas também entender como esses processos interferem diretamente na sala de aula: como acompanhar a evolução?

Em alguns casos, que se tornarão obviamente mais frequentes com o passar dos anos até se tornarem regra, os professores estão amplamente familiarizados com os recursos computacionais e com as dinâmicas deles oriundas. Esses professores utilizam com desenvoltura as redes

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sociais, mantêm blogs bem concebidos e bem conduzidos e não se acanham em responder a seus e-mails ou conversar via WhatsApp mesmo aos domingos e feriados. Alguns desses professores, inclusive, fazem questão de tentar aliar suas práticas didático-pedagógicas aos recursos que se oferecem a um clique. Porém, no momento em que este texto é escrito, ainda temos um considerável número de professores e pesquisadores para os quais esse cenário até aqui descrito é um incômodo “outro”, quando não se configura como um completo desconhecido. Trata-se de algo que se constata já há algum tempo, tal como pode ser verificado, a título de exemplo, em um relato de pesquisa de Maria Teresa de Assunção Freitas, pesquisa esta que trabalhou com professores de escolas públicas e particulares e sua relação com a internet e outros recursos tecnológicos. A despeito de diferenças previsíveis de recursos nos dois contextos, é sempre interessante ressaltar um dos “achados” da pesquisa:

Fazendo uma síntese dos achados dessa pesquisa, podemos dizer que, em relação à formação inicial de professores, pudemos compreender como os professores desses cursos de formação, tanto presenciais quanto a distância, ainda não se integraram de fato à cibercultura. Até fazem certo uso pessoal do computador e acessam a internet para comunicação através de e-mail e de alguma navegação pela web; no entanto, não vinculam essas atividades à sua prática pedagógica (Freitas, 2009, p. 67).

Assim, se partíssemos do princípio de que a assimilação da tecnologia e de seus impactos é já real e inevitável em sua crescente intensidade, poderíamos, de modo pertinente, questionar se estamos diante de um quadro severo de “evolua ou morra”. Dessa maneira, professores e pesquisadores veem-se constrangidos diante de sua aparente inadequação a um contexto no qual deveriam se mover com desenvoltura, bem como de suas deficiências em uma competência na qual deveriam, inclusive, possuir maior performance que os demais.

Esse é o contexto no qual se desenvolve outro complexo, o Complexo de Beethoven, do qual derivam os princípios de inadequação contextual e déficit da condição sine qua non. À semelhança daquilo que sugerem as palavras de Beethoven em seu testamento, a falta de excelência – ou mesmo a total e paradoxal deficiência – em um campo no qual se esperaria um desempenho maior do que o de não especialistas leva a uma inevitável sensação de deslocamento, de inadequação, de não

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pertencimento que, não raras vezes, provoca um movimento de defesa no sentido de recusa e afastamento.

A fim de ilustrar a inadequação contextual, tomemos um exemplo na figura do professor de ensino fundamental e médio. Ao perceber sua falta de desenvoltura com relação à internet e às novas – aceitemos ainda o termo – tecnologias, o professor vê-se diante de duas opções: ou a) busca equiparar-se àqueles que possuem ampla proficiência nos domínios agora necessários, esbarrando em demandas igualmente urgentes de suas exigências de sala de aula (com cargas horárias frequentemente abusivas aliadas a uma remuneração insuficiente) e em um modelo de ensino-aprendizagem que nem sempre está aberto a inovações, em especial aquelas cujos resultados não estejam ainda plenamente comprovados; ou b) foge de toda e qualquer situação que o lance em território que se revele hostil devido à inadequação contextual que percebe como inerente a si. Seria fácil ver aqui apenas uma censurável covardia ou uma injustificável preguiça que levariam à fuga. No entanto, muitas vezes o afastamento não representa a busca de uma zona de conforto, mas, antes, uma tentativa de manter um padrão de excelência e um domínio de conteúdos e procedimentos que possam garantir boas aulas e resultados expressivos.

A causa do sentimento de inadequação é o déficit da condição sine qua non. Para compreendermos o princípio, o mais interessante seria direcionar o foco para os pesquisadores, em especial os do meio universitário. Estes, sobretudo nos dias atuais, convivem com a demanda de hiperespecialização. E não basta trabalhar um domínio extremamente recortado e específico, é preciso realizar o impossível em termos de conhecimento humano e “esgotar” o tema estudado: é preciso saber “tudo” o que se produz no domínio e “tudo” o que se produz sobre o domínio. No caso do contexto cibercultural, a atualização de conteúdos é constante e se dá em progressão geométrica, o que já dificultaria essa aspiração ao esgotamento. No caso de um pesquisador que não esteja familiarizado com esse universo, a impressão é a de estar no âmago de um novo paradoxo de Aquiles e da tartaruga, com o agravante de que o espaço não apenas é infinitamente dividido: ele também arboresce, criando um painel que, visto de fora e sem familiaridade, pode ser realmente assustador.

Obviamente, tanto os professores de ensino fundamental e médio atuam como pesquisadores em suas capacitações e em sua constante

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busca por melhores situações de sala de aula quanto os pesquisadores mencionados, salvo raríssimas exceções, são igualmente docentes. Além disso, os dois princípios do Complexo de Beethoven encontram-se relacionados, alimentando-se mutuamente. Desse modo, um exemplo geral pode dar conta de todas as frentes em termos de ilustração. Suponhamos um professor (não importa o nível de ensino) que pretenda utilizar um blog como ferramenta ao mesmo tempo de reflexão didático-pedagógica e de prática de sala de aula. Ele deve levar em conta aspectos de algo que poderíamos chamar, sem qualquer ironia, de uma “poética bloguística”, segundo a qual esperamos, dentre outras coisas, postagens concisas, interação pelos comentários e atualização constante. Apenas esses três elementos apresentam dificuldades concretas para o novato ou o estrangeiro. A concisão das postagens gera tensão com a necessidade de maior elaboração reflexiva, por exemplo. A interação pelos comentários, por sua vez, pode gerar dificuldades de gerenciamento de tempo (não há como controlar a chegada dos comentários), dificultando sua utilização como uma eventual ferramenta de otimização da escrita segundo a norma padrão em função de sua essencial concisão traduzida em brevidade e em função da adequação a esse processo de comunicação específico e ao contrato de comunicação que ele estabelece e pressupõe.

Por sua vez, a necessidade de atualização constante retoma o problema do tempo e nos faz lembrar que um blog plenamente ativo apresenta postagens diárias, em várias ocasiões mais de uma postagem por dia. Uma vez que a manutenção do blog ocupa uma posição normalmente periférica nas pesquisas e nas questões de sala de aula, como esperar que o professor/pesquisador viva uma verdadeira imersão em tal universo? Sem a imersão surge a impressão de não se esgotar realmente o objeto, o que leva à sensação de se possuir uma deficiência fundamental em uma frente que pareceria indispensável para uma reflexão adequada sobre o tema em termos de cientificidade e rigor. Disso decorre a outra sensação, a de se estar em um local que não nos pertence e ao qual não pertencemos. Disso ao descomprometimento e ao desinvestimento é um breve e fácil passo.

Contudo, embora os dois complexos sejam compreensíveis, talvez até mesmo inevitáveis, na passagem da primeira para a segunda década do século XXI não devem ser desculpas para a imobilidade e para o conformismo. A quantidade de problemas e dúvidas ainda é maior do

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que a de soluções e respostas, mas isso não significa que estejamos diante de um beco sem saída. Ao contrário: a abertura que se dá em função da falta de certezas é o que justamente nos permite ter esperanças.

À guisa de conclusão: a coragem de girar a maçaneta

Na conclusão do volume editado por Henry Jenkins e Wyn Kelley,

Reading in a participatory culture: remixing Moby-Dick in the English classroom (2013), Jenna McWilliams e Katie Clinton, após a apresentação e a discussão nas páginas anteriores de uma instigante proposta educacional feita com o clássico de Melville que leva em conta o letramento digital, chegam a uma formulação que, apesar de começar a soar óbvia, vale como lembrete do que até aqui se propôs:

A fim de transformar os ambientes de aprendizagem, é preciso evitar preconceitos resistentes e muito arraigados sobre educação. Os educadores precisam questionar as formas de pensar frequentemente tidas como certas sobre os objetivos e os processos de escolarização: especialmente aquelas cujas premissas sejam baseadas em hierarquia, disciplinas, cânones, notas, normas, especialização acadêmica e controle. Isso não significa que tudo esteja errado na educação tradicional, ou que ela não tenha coisas valiosas para oferecer. Mas, como educadores, precisamos sempre nos perguntar que práticas estão atendendo às necessidades dos nossos alunos, que alunos estão sendo atendidos, e que formas de aprendizagem estão sendo otimizadas. Todos nós precisamos fazer essas perguntas no tocante aos valores do letramento impresso tradicional e precisamos fazê-las também a respeito das novas práticas de cultura participativa que podemos implementar em nossas escolas (McWilliams e Clinton, 2013, p. 196).

Conforme destacado anteriormente, o fato de se perceber e mesmo de se aceitar semelhante cenário não significa ausência de dificuldades para sua plena implementação. Todavia, a constatação dos desafios que se apresentam a todos aqueles que buscam (re)conhecer as exigências do atual processo de comunicação não deve ser um agente da imobilidade ou do preconceito. Receios são naturais, dúvidas, inevitáveis. Contudo, preconceitos não têm espaço na reflexão intelectual sobre o fenômeno aqui abordado, especialmente quando o contexto se modifica de maneira tão evidente que traz consigo uma demanda urgente por novas abordagens (ou, para evitar um “novo” com décadas de existência, abordagens “específicas”).

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Usando uma analogia grosseira, quando um martelo não nos serve para fixar um parafuso, isso não quer dizer que o martelo esteja “errado” ou mesmo “ultrapassado”, sequer significa que os “pregos” não existam mais. Apenas quer dizer que problemas específicos demandam soluções específicas, de modo que o mais importante é encontrar a ferramenta certa, e no caso de essa ferramenta não existir, inventá-la.

Inventar a ferramenta demanda certa dose de esperança, sobretudo a esperança de que essa ferramenta seja possível. No caso do Complexo de Leonardo, forjar essa ferramenta passa por um exercício da tolerância, de escuta e de aceitação do discurso da alteridade, meta já desgastada por anos de referência sem eficiência. Compreender que um ciberagente leia e escreva de modo diferente faz com que coloquemos em questão muitas das certezas e dos valores que nos embasam como professores e como pesquisadores. Mas, em última instância, não entra em conflito com um dos mais importantes princípios da cientificidade: a ideia de que o objeto não está nem “certo”, nem “errado”, apenas exige que nos esforcemos para compreendê-lo em sua natureza completa.

No caso do Complexo de Beethoven, temos a necessidade de repensar os modelos do professor e do pesquisador, inclusive redimensionando e relativizando nossas noções de “especialização” e “domínio do conteúdo”. O advento da internet, por exemplo, modificou nosso modo de encarar a erudição, apesar da evidente necessidade de ajustes que ainda notamos. Aliás, quando pensamos em um blog como mediador de leitura e não como utensílio ou suporte para o mediador de leitura, não estamos apenas flexibilizando a expressão: estamos, aos poucos, encontrando um novo universo que jamais poderia ser considerado ruim apenas por ser novo ou desconhecido.

Por fim, a despeito das inseguranças, podemos encarar o cenário sob a égide da esperança. Afinal, com todos os entraves, preconceitos e bloqueios, a internet possibilitou uma real democratização de conteúdos (artísticos ou não) como jamais se viu na história da humanidade. Isso mudou a maneira como as pessoas pensam e como, após pensarem, elas se comunicam. Muito ainda será modificado, muito ainda será questionado. Mas a mudança não será. A mudança é, simplesmente é. Por isso, mantenhamos também a esperança na ferramenta vindoura, ou, para renovarmos a metáfora, pensemos que estamos diante de uma porta cuja chave aparentemente ainda não foi forjada. Aqui surge uma reiteração do processo para que se busque a chave certa, mas também

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surge outra perspectiva, uma perspectiva sintetizada de modo perfeito pelo estudioso da cibercultura Pierre Lévy em um livro muito particular, no qual, após estudar tão a fundo a sociedade que o circunda, passa a uma provocativa análise de si mesmo: O fogo liberador. Pensando em nossa metáfora, afirma Lévy (2001, p. 24):

Quando eu tinha dez anos, levava para a escola a chave de casa, porque eu voltava antes de meus pais, que às vezes trabalhavam até tarde. Numa noite de inverno, quando cheguei na porta de casa, procurei a chave e não achei. A casa estava isolada. A noite caía. Estava sem a chave. Fiquei esperando na frente de casa. Uma hora, duas horas, três horas. Meus pais não chegavam. Achei que nunca mais fossem voltar. Pus-me a chorar. Sentia-me muito sozinho, abandonado, exilado, infeliz. Finalmente meus pais chegaram. “Por que você está chorando?”, perguntaram. “Como vimos que você tinha esquecido a chave, deixamos a porta aberta.” Empurrei a porta. Ela estava aberta. Não tinha nem sequer pensado em tentar abri-la sem chave. [...] Quis contar essa história [...] só para dizer que sei que você não tem a chave. Ninguém tem a chave. Ninguém nunca a teve. Não precisamos de chave. A porta está aberta. Entre em sua casa.

Aceitaremos o convite? Não podemos garantir nada a respeito do que se encontra dentro da casa. No entanto, como é nossa, podemos ter a esperança final de que seja algo de bom, algo de muito bom, mesmo que seu interior pareça estranho e labiríntico. Nesse caso, a dança do passado e do presente traduz-se em promessa de futuro, retomando no corriqueiro do cotidiano, mesmo na aparente – apenas aparente – banalidade de uma rede social (na qual todos parecem uma massa amorfa e pouco heroica, onde o ego egoísta aparentemente dita o tom, onde a promessa de contato humano soa falsa em sua virtualidade), algo de eterno, porque mítico, ou, como destaca Joseph Campbell em entrevista a Bill Moyers:

Não precisamos correr sozinhos o risco da aventura, pois os heróis de todos os tempos a enfrentaram antes de nós. O labirinto é conhecido em toda a sua extensão. Temos apenas de seguir a trilha do herói, e lá, onde temíamos encontrar algo abominável, encontraremos um deus. E lá, onde esperávamos matar alguém, mataremos a nós mesmos. Onde imaginávamos viajar para longe, iremos ter ao centro da nossa própria existência. E lá, onde pensávamos estar sós, estaremos na companhia do mundo todo (Campbell, 1995, p. 131).

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Que essa generosa promessa, tão provocativamente adequada ao contexto das redes sociais, continue a nos instigar para que não tenhamos a tentação covarde de calar casos como os destacados aqui. Casos como o da poesia viral no Facebook, que, em sua configuração e em seu flerte com o inartístico e o descartável, colocam-se como a outra face da literatura, como a face do Outro da literatura. Afinal, isso nos diz respeito em termos éticos, uma vez que a literatura sempre se colocou, ela própria, como um Outro da própria humanidade, um Outro espelhado em um livro, e que agora, nos dias de hoje e naqueles vindouros, se transforma apenas para continuar sendo o livro da face de nossa existência.

Referências

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Recebido em dezembro de 2014. Aprovado em maio de 2015.

resumo/abstract/resumen

Faces da literatura contemporânea: o caso da poesia viral

Márcio Roberto do Prado

Este artigo pretende discutir uma das faces da literatura contemporânea – a poesia viral, presente em fanpages brasileiras do Facebook, colocando-a em

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perspectiva frente a uma demanda da lírica a partir da modernidade literária: a necessidade de concentração da linguagem poética e de exercício crítico. Além disso, serão discutidos alguns motivos para a resistência ante a dinâmica literária e comunicacional da internet que ainda hoje pode ser sentida por parte de professores e pesquisadores de literatura, tendo em vista a problemática do valor.

Palavras-chave: leitura, literatura, cibercultura, poesia viral.

Faces of contemporary literature: the viral poetry

Márcio Roberto do Prado

This article aims at discussing an aspect of contemporary literature, the viral poetry in Brazilian fanpages on Facebook, in perspective from a lyrical demand of literary modernity: the need for concentration of poetic language and critical exercise. In addition, we discuss some reasons for the resistance that still can be felt by literature teachers and researchers, with focus on the problem of value.

Keywords: reading, literature, cyberculture, viral poetry.

Facetas de la literatura contemporánea: el caso de la poesía viral

Márcio Roberto do Prado

El propósito de este artículo es analizar una de las facetas de la literatura contemporánea, la poesía viral, presente en fanpages brasileñas de Facebook, poniéndola en perspectiva frente a una demanda de la lírica que se remonta a la modernidad literaria: la necesidad de concentración del lenguaje poético y del ejercicio crítico. Además, se discutirán las razones para la resistencia a la dinámica literaria y comunicacional del internet, que todavía hoy se nota por parte de los profesores e investigadores de la literatura, teniendo en cuenta la problemática del valor.

Palabras clave: lectura, literatura, cibercultura, poesía viral.