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Faculdade de Ciências e Letras, UNESP - Universidade EstadualPaulista, Câmpus de AraraquaraReitor: Julio Cezar DuriganVice-reitora: Marilza Vieira Cunha RudgeDiretor: Arnaldo CortinaVíce-diretor: Cláudio César de Paiva

Programa de Pós-Graduação em linguística e I1ngua Portuguesa

Coordenadora: Rosane de Andrade Berlinck

SÉRIE TRILHAS LINGUÍSTlCAS N. o 23

Comitê EditorialCibele Krause-Lemke (UNICENTRO)Erotilde Goreti Pezatti (UNESP-IBILCE)Frantomé Pacheco (UFAM)Gladis Massini-Cagliari (UNESP-FCLAr)Marianne Carvalho Bezerra Cavalcante (UFPB)Marize Mattos Dall-Aglio Hattnher (UNESP-IBILCE)Roberto Gomes Camacho (UNESP-IBILCE)

Comissão Editorial da Pós-graduaçáo em l..iogImnca e língua Portuguesa

Alessandra Dei RéAnise de Abreu G. D'Orange FerreiraArnaldo CortinaBento Carlos Dias da SilvaCristina Martins FargettiLuíz Carlos CagliariRenata Maria Facuri Coelho MarchezanRosane de Andrade Berlinck

Diagramação: Eron Pedroso JanuskeivictzNonnalização: Biblioteca da Faculdade de Ciências e Letras

-

Estudos Iinguísticoscontemporâneos:diferentes olhares

Alessandra DeI RéFabiana KomesuLuciani Tenani

Alessandra JacqueIine Vieira(Org.)

CULTURAACADÊMICAI8áitolta

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Estudos linguísticos contemporâneos: diferentes olhares / Organizado porE829 Alessandra DeI Ré, Fabiana Komesu, Luciana Tenani, Alessandra Jaqueline

Vieira. - São Paulo: Cultura Acadêmica, 2013.202 p. ; 21 em. - (Série Trilhas Linguísticas, 23)

ISBN: 978-85-7983-410-3

1. Linguística 2. Lingua Portuguesa. I. DeI Ré, Alessandra.Il. Komesu, Fabiana. Ill. Tenani, Luciana. IV Vieira, Jaqueline.m. Trilhas Lingüísticas.

CDD410

Ficha catalográficn elaborada pela Biblioteca da FCLAr - UNESP.

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suMÁRIo

Apresentação 7

Informação flnológica na aquisição da escritaAna Ruth Moresco Miranda 11

Os movimentos da criança na enunciaçâoCarmem Luci da Costa Silva 37

Texto e contexto - uma visão funcional da linguagem em (conltextoMaria Helena de Moura Neves 59

Gramaticalizaçâo de construções na pesquisa funcionalistaMariangela Rios de Oliveira 77

Estudos das línguas indígenas do BrasilAngel Corbera Mori '- 97

Pesquisa de línguas indígenas - questões de métodoCristina Martins Fargetti 115

A atividade de reformulação enunciatiua como fundamento para umaprática reflexivaMárcia Romero 137

Influência translinguística, code-switching e aquisiçdo do portuguêsbrasileiro como L3Ester Mirian Scarpa e Gilcélia Santana Pires 155

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Prosodie et musicaiité des langues: de ia transcription musicale à iatranscription de ia prosodieChrisrelle Dodane 175

Sobre os autores e organizadoras ··· 197

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INFORMAÇAo FONOLÓGICANA AQUISIÇÃO DA ESCRITA

Ana Ruth Moresco MlRANDA

Introdução

A proposta psicogenenca definiu novos rumos para osestudos sobre aquisição da escrita ao chamar a atenção para anecessidade de que as investigações, até então voltadas a subsi-diar métodos de ensino, procurassem trazer luz ao processo deconceituaçâo da escrita em toda sua complexidade, tendo comofoco o sujeito cognoscente. Investigações voltadas para o pro-cesso de aprendizagem produzem materiais capazes de oferecerelementos aos pesquisadores para que as hipóteses das criançassobre a linguagem possam ser desveladas.

Os estudos desenvolvidos no Grupo de Estudos sobre aAquisição da Linguagem Escrita (GEALE-FaE/UFPel) anco-ram-se em três ideias principais: o processo de aquisição daescrita é parte integrante de um processo mais geral de aqui-sição da linguagem (ABAURRE, 1991); as crianças atualizamconhecimentos já construídos sobre a gramática sonora de sualíngua durante a aquisição da escrita (MIRANDA, 2009a); oerro ortográfico é elemento chave para a descoberta das hipóte-ses das crianças sobre o sistema de escrita que estão a adquirir(MIRANDA,2009b).

Ao voltarem-se para a análise de erros ortográficos, tais estu-dos visam a contribuir para a compreensão deste complexo pro-

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cesso. São duas as grandes linhas de investigação desenvolvidas:uma voltada à discussão de erros relacionados a dificuldades queemanam do próprio modo de organização do sistema ortográ-fico (MIRANDA; MEDINA; SILVA, 2005; GUIMARÃES,2005; MONTEIRO, 2008) e outra, à abordagem de erros quemostra conexões entre o conhecimento linguístico da criança eo dado de escrita (MIRANDA, 2009a, 2009b; CUNHA, 2004;NEY, 2012, entre outros).

Neste capítulo', os dados de desenvolvimento da escritaapresentados embasarão a reflexão sobre a influência da infor-mação fonológica nas escolhas das crianças ao produzirem umaescrita alfabética. O capítulo encontra-se organizado em trêsseções, além desta introdução. Na próxima, são apresentadasalgumas considerações teóricas sobre o processo de aquisição dalinguagem escrita e sobre o erro ortográfico, bem como sobre aclassificação que propomos para a descrição dos erros encontra-dos nas escritas de crianças das séries iniciais. A seção seguintetraz breves considerações sobre os procedimentos rnetodológi-cos, resultados referentes à distribuição dos erros e a apresen-tação de três tipos de dados que nos permitem refletir sobre ainfluência da informação fonológica nas escolhas gráficas obser-vadas, a saber: erros referentes à grafia de vogais átonas, ao usodo acento gráfico e aos casos de segmentação não-convencional.Por fim, serão tecidas as considerações finais.

Considerafões iniciais: sobre a aquisição da linguagemoral e escrita

Saber como muda a fala da criança à medida que se apro-xima da fala de sua comunidade ou, ainda, como muda suaescrita antes e depois de ela ter compreendido os princípios dosistema alfabético, os quais pressupõem um estabelecimentode relações entre fonemas e grafemas, são tarefas pertinentes à

1 O presente estudo integra pesquisa apoiada pelo CNPq - Processo n°309199/2011-5 e pela FAPERGS - Processo nO11/1294-0.

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Informação fonológica na aquisição da escrita

Psicolinguística. Ao enfocar a linguagem em suas fases de ins-tabilidade e mudança, os estudiosos do desenvolvimento lin-guístico podem oferecer uma descrição da maneira pela qualsão usados os mapas da língua. Para Slobin (1980), tais mapascorrespondem a modelos linguísticos, os quais devem ser consi-derados levando-se em conta o tempo, a direção e o propósito.Este é, na verdade, o grande desafio dos estudiosos do desen-volvimento, uma vez que precisam aliar a elegância descritivados modelos teóricos aos aspectos psicológicos essenciais aosmodelos psicolinguísticos, para, assim, darem conta do fato deas crianças construírem uma gramática própria, que se configu-ra em uma versão do sistema adulto.

A aquisição da linguagem oral é um processo dinâmico e sedesenvolve de forma espontânea e exitosa em um curto interva-lo de tempo e sem que a criança receba instrução específica paraisto. Por esta perspectiva, a criança constrói gradativamente afonologia de sua língua a partir da interaçâo entre mecanismosinatos para a construção da gramática e o input a ela disponí-vel. Aos três anos de idade ela já domina, de modo natural einconsciente, a gramática de sua língua, "[ ... ] sabe muito maisdo que aquilo que aprendeu." (CHOMSKY, 1978, p.115). Jáa aquisição da escrita pressupõe ensino sistemático e exige dacriança a superação de obstáculos cognitivos bastante comple-xos, pois, compreender-o princípio alfabético da escrita, isto é,a correspondência entre grafemas e fonemas, é tarefa não triviale necessária para a compreensão de uma estrutura que é pró-pria do sistema de escrita. O efeito desse tipo de aprendizagemsobre. o processamento da linguagem tem sido tematizado porestudIOSOSdo campo da psicologia, da linguística e da educação.Para Frith (1998), a linguagem nunca mais será a mesma depoisda aquisição de um sistema alfabético de escrita, um processocomparável a uma infecção por vírus, pois o processamento dafala se ' d c. . . dif dra cnnrnvamenre mo inca o. Se antes as palavras intei-ras são tomadas como unidades de processamento, depois, pas-sam a ser os componentes sonoros que constituem as unidadesbásicas.

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Essa metáfora é interessante porque aponta para uma reto-mada dos conhecimentos linguísticos já construídos, sobretudoaqueles do âmbito da fonologia, como uma consequência doprocesso de aquisição da escrita. É importante salientar, porém,que ocorrem reestruturações que afetam o modo de processa-mento da informação linguística ainda durante o processo deaquisição fonológica, como apontam os estudos de Macken(1992). A autora sustenta a ideia segundo a qual a criança, emfase inicial do desenvolvimento fonológico, começa a produzire perceber unidades maiores, como a palavra, passando, subse-quentemente, a realizar processos de análise que a levam a pro-cessar informações estruturais menores, tais como o pé, a síla-ba, o segmento e os traços. Consideramos, no entanto, ambasas visões complementares por tratarem de processos cujas natu-rezas são diversas e por ocorrerem de modo distinto, uma vezque, desenvolver a competência linguística é processo natural eespontâneo, como já referimos, e aprender os princípios do siste-ma alfabético é processo que exige trabalho consciente do apren-diz, a partir da retomada de conhecimentos implícitos sobre alíngua.

A relação entre fonologia e ortografia é um tema de interesseaos estudiosos da aquisição que abordam este assunto a partirde diferentes pontos de vista. Há pesquisas sobre a consciên-cia fonológica cujos resultados apontam para o efeito positivoda alfabetização no processamento da informação fonológica,gerando melhorias na memória e permitindo maior precisão narecuperação de palavras novas (GOSWAMI; BRYANT, 1990);e há outras, com foco sobre as representações fonológicas, querevelam processos reestruturantes por efeito do contato com aescrita, evidenciando uma via de mão dupla, isto é, um efei-to de reciprocidade entre ortografia e fonologia, pois, à medidaque o conhecimento fonológico subsidia a escrita inicial, o con-tato com este novo sistema é capaz de modificar as representa-ções construídas na primeira infância sobre o sistema sonoro dalíngua (MlRANDA, 2009a).

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Informação fonológica na aquisição da escrita

Durante os períodos de conceituação da escrita nos quais acriança já é capaz de estabelecer relações entre os níveis fônico egráfico da língua, ou seja, do nível silábico até o nível alfabéti-co (FERREIRO; TEBEROSKY, 1999), os dados de escrita sãoricos em exemplos de manifestações do conhecimento linguís-tico do aprendiz. Depois da compreensão do princípio alfabé-tico, período em que a escrita alfabética passa a ser produzidaconsistentemente, os problemas a serem enfrentados passam aser da ordem da ortografia e serão proporcionais às inconsistên-cias encontradas nas relações que se estabelecem entre fonemase grafemas, em um nível mais abstrato, e entre letras e sons, emum nível mais superficial.

Propostas para a classificação dos erros ortográficos produ-zidos por crianças em fase de desenvolvimento da escrita têmsido feitas por estudiosos como Cagliari (1987), Oliveira eNascimento (1990), Nunes (1992), Morais (2002), Miranda,Mediria e Silva (2005) e Miranda (2010). Em todas elas seobserva a tentativa de oferecer categorias de análise capazes desubsidiar aqueles que se interessam pelo tema. Nos estudos doGEALE, trabalhamos com duas grandes categorias as quais ali-mentam as duas linhas de investigação referidas no início destecapítulo.

A primeira grande categoria engloba erros motivados pelasdificuldades advindas cio próprio sistema ortográfico e têm suaorigem nas assimetrias encontradas entre fonemas e grafemas.Para exemplificar o conjunto de erros a que nos referimos,tomaremos o caso do fonema Isi e dos grafemas a ele relaciona-dos. São dez as formas de grafá-lo em nossa ortografia, confor-me mostra o Quadro 1:

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Quadro 1 - Exemplo de relações múltiplas: umfonema representado por mais de um grafema

fonema grafema Exemplos

Isf 'ss' 'assado''se' 'descer''Sç'3 'desça''xc' 'exceto''xs' 'exsudar''s' 'servo', 'pulso''c' 'cÜ1za', 'macio''ç' 'poço', 'terço''x' 'experimento' ,

'auxiliar''z' 'xadrez'

Fonte: Elaboração própria.

As relações múltiplas, um grafema representando mais de umfonema ou um fonema representado por mais de um grafema(LEMLE, 1987), como exemplificado no Quadro 1, podem ounão ser regidas por regras contextuais. Ao levarmos em conta talaspecto, seremos capazes de reduzir significativamente as opçõesde grafias para tais fonemas. No caso do exemplo dado, é possí-vel observar limitações para o uso de alguns grafemas. Os dígrafos'ss', 'sc'/'sç' e 'xc', por exemplo, somente são licenciados em posiçãointervocálica e os grafemas 's', 'x' e 'z', por seu turno, não podemfigurar nesse contexto para representarem Isl . O resultado dessasobservações, relativamente à grafia da fricativa, é de grande valia

2 No português, a fricativa de final de sílaba, seja grafada com 's', 'X: ou 'z', éfonologicamente interpretada como ISI, um fonema fricativo sem especificaçãopara o traço [sonoro]. Quando em final de sílaba dentro da palavra, manifesta-se foneticamente como mais ou menos [sonoro] dependendo da consoanteque vem depois, 'pa[st]a' e 've[zg]a, por exemplo. Quando em final absoluto, ésempre desvozeada, como em 'mê[s]' e 'talve[s]', portanto.

3 O 'c' com som de [s] e o 'ç' são grafemas que estão em distribuiçãocomplementar no sistema ortográfico da língua. O primeiro antecede vogais[-posterior], leI, lEI e li/; o segundo, vogais [+posterior], lul, 10/, l':ll e la/.

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-Informação fonológica na aquisição da escrita

para o ensino e também para a aprendizagem ortográfica, poisajuda na organização do conteúdo a ser apresentado aos alunos e,também, alivia a carga de memória necessária ao arrnazenamen-to de regras ortográficas consideradas arbitrárias. Relações menosinconsistentes entre fonema e grafema também são encontradas nosistema e podem ser exemplificados como no Quadro 2:

Quadro 2 - Exemplo de relações múltiplas: um grafemarepresentando mais de um fonemas, de acordo com a posição

fonema Exemplos

'r'Ix! 'rato', 'enrolado'Irl 'era', 'prato', 'tambor'

-

Fonte: Elaboração própria.

Um exemplo de relações múltiplas entre um grafema e maisde um fonema diz respeito ao uso do 'r' para representar os fone-mas róticos, forre e fraco. Neste caso, o que se observa são grafiasprevisíveis por regra, pois os contextos em que devemos utilizar 'r'para representar o forte e o' fraco podem ser claramente definidos:em início de palavra ou depois de sílaba travada, 'r' correspondea 'r-forte'; e em encontro consonantal ou em posição de final desílaba ou, ainda, na posição intervocálica, ao 'r-fraco'. Grafias comoessas podem ser ensinadas e aprendidas com base no princípiogerativo que regula sua distribuição.

Os erros pertencentes à primeira grande categoria são, pois,aqueles em que entram no jogo as relações múltiplas responsáveistanto por erros relacionados às arbitrariedades do sistema comopor aqueles concernentes às regularidades definíveis por contexto,tanto fonológico como morfológico. Na segunda grande categoria,estão classificados erros com motivação marcadamente fonológica,relacionados ao que consideramos dificuldades representacionaisou, ainda, manifestações da fala na escrita. O grupo de erros queinterpretamos como decorrentes de dificuldades representacionaispodem envolver aspectos melódicos, referentes aos segmentos; ouainda prosódicos, relativos à sílaba, ao acento ou a categorias inte-

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grantes da hierarquia prosódica, tais como o pé, a palavra fono-lógica, o grupo clítico e a frase fonológica, por exemplo. Casosrelacionados ao estabelecimento de relação forte entre a fala e aescrita são aqueles em que se observa uma forma de escrita que seassemelha ao modo como as palavras são pronunciadas na línguaalvo. Embora seja evidente a motivação da fonologia nesses casos,a escolha pela nomenclatura 'motivação fonética' tem o objetivode diferençar este tipo de dado daqueles que não têm eco na falada criança em idade escolar, isto é, casos que podem ser ligados afatos da fonologia observados nas produções orais de crianças bempequenas.

Exemplos de erros fonológicos vinculados a dificuldades rela-cionadas à sílaba e ao segmento e à relação estreita entre fala eescrita estão no Quadro 3:

Quadro 3 - Exemplos de erros de escrita motivados pela fonologia

motivação fonológica motivação fonéticasílaba segmentoCVN sonoras-surdas infinitivo'grade' para 'grande' 'agordou'para 'acordou' 'sai' vara 'sair'

CVCC soantes palatais vogais átonas'mosto' para' monstro' 'porquino' para 'parquinho' 'noti' para 'pote'

Fonte: Elaboração própria.

Os erros apresentados na coluna da esquerda, no Quadro 3, sáorelativos às grafias de sílabas que oferecem algum tipo de complexi-dade fonológica à criança, seja pelo número de unidades da estru-tura silábica, seja pelo tipo de segmento preenchedor dessa estru-tura. Considerando-se que CV é a estrutura canônica, estruturasderivadas desse padrão, tais como CVC, CCv, cevc, VC, VCC,CVCC, CCVCC, por exemplo, apresentam maior grau de com-plexidade, o que pode acarretar algum tipo de dificuldade para suagrafia. Os estudos de Abaurre (1988) e Miranda (2009a, 2009b)discutem, com base na alta incidência de erros na escrita, a dificul-dade das crianças em grafarem estruturas com nasais pós-vocálicas

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Informação fonológica na aquisição da escrita

e, a partir de dados de escrita, apresentam uma reflexão sobre acomplexidade fonológica destas estruturas.

A coluna central do Quadro 3 traz exemplos de dados de escritaem que são observados erros relacionados ao registro gráfico de seg-mentos que, no nível ortográfico, não apresentam inconsistência,em se considerando fonemas e grafemas, uma vez que dizem res-peito a relações biunívocas, quer dizer, um fonema é sempre repre-sentado por um dado grafema ou uice-uersa. Tais situações são, noentanto, relevantes do ponto de vista da fonologia, pois revelamdificuldades no manejo das crianças com traços fonológicos que,na aquisição segmental, trazem algum tipo de complexidade.

Por fim, à esquerda do Quadro 3, estão exemplificados fenôme-nos observados nos dados os quais remetem à pronúncia das pala-vras na variedade das crianças. Além de apagamento de infinitivo ealçamento da vogal átona final, as grafias das crianças apresentamoutros processos observados na oral idade, dentre os quais podemoscitar a redução dos ditongos fonéticos ('caxa' para 'caixa' e 'poco'para 'pouco') ou o alçamento de vogais para evitação do hiato (via-do' para 'veado' e 'juelho' para 'joelho'), entre outros.

Na próxima seção, serão apresentados os resultados da compu-tação dos dados, a fim de que se possa observar o peso de errosdo tipo fonológico no conjunto de erros encontrados em dados deescrita de crianças das séries iniciais e, em seguida, serão aborda-dos três estudos, nos quãis a informação fonológica é interpretadacomo motivadora do erro: Miranda (2009a) com dados da grafiada palavra 'grande' em sua relação com a nasalidade do português;Cunha (2004) com dados de segmentação não-convencional emsua relação com a hierarquia prosódica; e Ney (2012) com dadosde acento gráfico em sua relação com o acento prosódico.

Os dados de escrita e os estudos realizados pelo GEALE

Os dados apresentados neste capítulo foram extraídos de tex-tos que pertencem ao BATALE (Banco de Textos de Aquisição daLinguagem Escrita). Este Banco começou a ser criado em 2001 e écomposto por vários estratos: (i) textos produzidos, entre os anos

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de 2001 a 2004, por crianças de Ia a 4a série de duas escolas, umapública e outra particular, da cidade de Peloras-Rô, (Ii) textos de 1°a 4° ano produzidos por crianças portuguesas da região de Lisboa,em 2008; (iii) textos produzidos por crianças de 1° a 4° ano deduas escolas públicas, da cidade de Pelotas-Ró, coletados em 2009;(iv) textos longitudinais de 15 alunos de EJA, coletados em 2009em escola pública da cidade de Pelotas-RS; (v) textos de 1° a 3°ano produzidos por crianças portuguesas da região do Porto, em

2009.Todas as coletas foram realizadas por integrantes do grupo de

pesquisa e seguiram a mesma metodologia, a saber: a aplicaçãode oficinas de produção textual que visavam a produção de tex-tos espontâneos e cumpriam a seguinte rotina: aquecimento (ativi-dade de estimulação por meio de imagens ou diálogos), produção(atividade de escrita individual) e socialização (atividade de lei-tura das produções realizadas). Em momento posterior, os textosforam digitados em Word, respeitando-se a grafia utilizada e a tro-ca de linhas; digitalizados e salvos em formato JPEG. Dos textosforam extraídas todas as grafias em que havia algum tipo de erroortográfico, as quais foram registradas em fichas específicas para aclassificação dos erros, uma para cada aluno. Após, os erros foraminseridos em um programa computacional criado no Access4' especi-ficamente para a pesquisa, o qual permite a estocagem, a tabulaçâoe a computação dos erros.

Os dados apresentados neste capítulo são pertencentes ao pri-meiro estrato do BATALE, composto por 2024 textos, dos quais154 correspondem a escritas não alfabéticas. O levantamento doserros resultou em um total de, aproximadamente, 30.000 dados,2/3 deles na escola pública e 1/3 na escola particular, extraídos de1003 e 867 textos espontâneos, respectivamente.

A fim de oferecer uma visão geral, estão apresentados dois grá-ficos que ilustram a distribuição dos erros, considerando-se as duasgrandes categorias referidas anteriormente: erros relativos à com-plexidade do sistema ortográfico do português (arbitrariedade e

4 Programa criado pelo Professor Luís Isaías Centena do Amaral (UFPel).

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Informação fonológica na aquisição da escrita

contextualidade) e erros relacionados a aspectos fonético-fonológi-cos (segmental ou prosódico), Não fazem parte desta computação,os erros de acentuação e os de segmentação não-convencional, pois,ainda que, em nossa análise, ambos sejam analisados do ponto devista da fonologia, em especial da prosódia, a discussão em tornodeles exige a consideração de fatores relacionados a motivações deordem gráfica, como ficará evidente quando os trabalhos de Cunha(2004) e Ney (2012) forem mencionados adiante.

Gráfico 1 - Distribuição de erros - Escola Pública

fonologia

• ortografia

Fonte: Dados da pesquisa.

Gráfico 2 - Distribuição de erros - Escola Particular

fonologia

• ortografia

Fonte: Dados da pesquisa.

. O primeiro aspecto a ser observado é relativo à grande incidên-cia de erros relacionados a aspectos da fonologia da língua, maiorque aqueles referentes à ortografia, em ambas as escolas. É interes-sante notar também que, mesmo o número total de erros encon-trados 'bl· . alna pu ica seja equiv ente ao dobro do total encontradona escola particular, a distribuição, em se considerando as duasgrandes categorias, é muito semelhante. Em uma visão menos geraldaquela que está nos Gráficos 1 e 2, considerando-se a distribui-

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çâo dos erros de acordo com as subcategorias utilizadas, duas con-sideradas ortográficas e quatro fonológicas, a saber: arbitrariedade econtextualidade versus motivação fonética, fonologia da sílaba e dosegmento, segmentação não-convencional e acento gráfico, é apre-sentada a distribuição nos Gráficos 3 e 4.

Gráfico 3 - Distribuição por tipo - Escola Particular

contextualidade

• arbitrariedade

C acentuaçio

csegmentaçAo

.fonologia

fonética

Fonte: Dados da pesquisa.

Gráfico 4 - Distribuição por tipo - Escola Pública

contextualidade

• arbitrariedade

Fonte: Dados da pesquisa.

C acentuação

C segmentaçio

.fonologia

fonética

Os gráficos 3 e 4 novamente reforçam a tendência expressa nosanteriores, pois mostram, mesmo com a inclusão dos dados refe-rentes à acentuação e à segmentação não-convencional, uma distri-

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Informação fonológica na aquisição da escrita

buição similar entre as duas escolas, a despeito de o volume total deerros ser maior, conforme recém referido.

Considerando o foco do capítulo, voltado para o efeito dainformação fonológíca em erros ortográficos extraídos de textosproduzidos por crianças que frequentam as séries iniciais, serãodiscutidos, primeiramente, dados referentes a uma grafia que temchamado a atenção nos dados do BATALE. Erros referentes aoregistro da palavra 'grande' estão presentes em muitos dos textos docorpus. A alta incidência deste item lexical é motivada pela oficinaproposta às crianças que recebem uma sequência de quadrinhos deEva Furnari, intitulada O tricô, cuja história pode ser ilustrada pelanarrativa de um aluno de Ia série da escola particular mostrada nareprodução na Figura 1:

Figura 1 - Exemplo de grafia da palavra 'grande'

Fonte: BATALE (1" série).

Sugestão de Leitura: Certo dia a bruxa Onilda / estava fazendo a blusado seu / gato ela disse pro seu gato/ ele experimentou sua camisa ficou /grande a bruxa ficou muito / assustada ela penso e mando / um feitiçoele ficou grande / fim.

Vemos, na Figura 1, uma série de erros típicos deste períodoem que as crianças estão começando a se apropriar do sistema deescrita do português. Erros motivados por inconsistências na rela-ção fonema-grafema, como em 'dice' e 'ceu' para 'disse' e 'seu', porexemplo; não registro do morfema flexional - u nos verbos do pre-térito perfeito, na terceira pessoa do singular, como em 'fico' - 'feco'

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para 'ficou, entre outros; e vários casos em que não há a grafia danasal pós-vocálica, como em 'peso, 'esprimeto', 'medo' e 'corde'para 'penso, 'experimentou', 'mandou' e 'grande', respectivamen-te. Grafias como estas últimas são muito frequentes no início daescolarização e remetem a uma questão importante à fonologia dalíngua.

Sobre a dificuldade de as crianças grafarem a nasal pós-vocálicaem sua escrita inicial, Abaurre (1988) menciona o fato de ser estauma grafia contra-intuitiva, uma vez que para a criança a vogalnasalizada parece ter realidade monofonêmica, em vez de ser prove-niente de uma sequência VN, como propõe Bisol (1992). Tambémos estudos desenvolvidos por Miranda (2009a) discutem a repre-sentação de tal estrutura e sugerem que, para a criança, a nasalida-de vocálica não é resultante de uma sequência de vogal mais seg-mento nasal situado na coda silábica, sendo necessário para umareestruturação representacional, capaz de coincidir com as análisespropostas para o modelo adulto, que os sujeitos passem pelo pro-cesso de aquisição da escrita, período em que poderão atualizarseus conhecimentos fonológicos, realizando a adequação necessáriaàs estruturas representacionais criadas durante o desenvolvimentofonológico.

Nos dados do BATAlE, uma computação dos erros envolvendoa nasal pós-vocálica e as outras consoantes que podem estar nestaposição, 's', 'r', 'I', mostrou que, em 78% dos casos nos quais umerro na grafia de estruturas CVC é verificado, a nasal está envolvi-da. A palavra 'grande' é um bom exemplo para uma reflexão sobreo que' consideramos uma complexidade fonológica manifesta naescrita. Onde estará esta complexidade se, do ponto de vista daortografia, as relações fonema grafema são biunívocas?

Quadro 4 - Variedade de grafias da palavra 'grande'

'corde' 'gerde' 'ficocrede' 'guremde'

~gard~_ 'gode' ~~oqurate' 'guende'--------'grade' 'quorti' 'gade' 'grãnde'

Fonte: Elaboração própria.

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Informação fono/ógica na aquisição da escrita

Nos dados apresentados no Quadro 4, além do caso específi-co da vogal nasalizada e de sua grafia, que no português é reali-zada como vogal mais consoante nasal, um 'm' ou um 'n', vemosexemplos de dessonorização de oclusivas, 'd' e 'g' grafados com asletras que correspondem às contrapartes surdas dos fonemas IdJ e1g/, a saber: os grafemas 't' e 'c' -'qu', respectivamente; e redução doencontro consonantal.

As escolhas gráficas referentes à nasal, especificamente, reve-lam diferentes estratégias utilizadas pelas crianças para resolverema complexidade na grafia da vogal nasalizada: metáteses, como em'corde', 'garde', 'gerde', 'quorti', casos em que a rótica passa parao lugar em que a nasal deveria ser registrada; e mudança na qua-lidade da vogal, corno exemplificado pelos casos em que, em vezdo 'à, a escolha recai no 'o' ou no 'e', associada à supressão do ele-mento nasal. Os exemplos da coluna mais à direita são os únicosproduzidos por crianças de 2' série, os demais são de textos da 1'.Naqueles casos, a consoante nasal já é grafada, mas ainda na for-ma não-padrão e observa-se, nas grafias, o uso do grafema 'gu' paragarantir a correspondência com Ig/, talvez por efeito de um avançona aquisição de regras contextuais, e a presença do til para marcarclaramente a nasalidade.

Estes breves comentários a respeito das grafias da sequência VNsustentam uma argumentação acerca do efeito da fonologia sobreas escolhas gráficas das erianças, e servem como claro exemplo dapotência dos dados de escrita inicial para que questões relacionadasàs representações fonológicas das crianças possam ser discutidas àluz dos modelos teóricos vigentes, os quais, por estarem mais volta-dos às gramáticas adultas, podem não dar conta de dados do desen-volvimento. .

O próximo tipo de erro, que revela efeitos de conhecimentosfonológicos, a ser tratado neste capítulo, diz respeito às segmen-tações não-convencionais estudadas por Cunha (2004), divididasem hipo, hipersegmentações e híbridos: não preservação do espa-ço entre palavras gráficas, alocação indevida de espaços brancos eambos os processos na mesma grafia, respectivamente. A autoraanalisou os dados encontrados em textos do BATALE com base

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na Fonologia Prosódica, conforme proposta por Nespor e Vogel(1994), modelo teórico que propõe uma hierarquia para os cons-tituintes prosódicos, os quais podem ser depreendidos da cadeiada fala. Desde a posição mais alta até a mais baixa da hierarquiatemos: Enunciado (U); Frase entonacional (I), Frase fonológica(~), Grupo clítico (C), Palavra fonológica (ro), Pé (L:) e Sílaba (c).

A proposta de Cunha (2004) para a descrição dos dadosderiva das combinações possíveis entre dois tipos de palavras:Palavra Gramatical (PG): as que possuem apenas um significa-do gramatical e não são portadoras de acento, como é o casodos clíticos; e Palavra Fonológica (PF): as que possuem acentoprimário, incluídas também todas as forma potenciais, isto é,formas que poderiam pertencer ao léxico pela sua constituiçãoestrutural. As combinações possíveis e os respectivos exemplosestão no Quadro 5:

Quadro 5 - Exemplos de segmentações não-convencionais

PF+PG PF+PF PG+PF PG+PGhipo 'matalo' matá-lo 'podentrar ' pode entrar 'olobo' o lobo 'paque' pra que

hiper 'gritan do' gritando 'guarda napo' guardanapo 'em hora' embora

Fonte: Elaboração própria

o levantamento dos casos de segmentação não-convencionalnos dados do BATALE, em cada uma das escolas, está distribuídocomo mostram os gráficos 5 e 6:

Gráfico 5 - Distribuição segmentação não-convencional - Escola Pública

.hlposseg

.hlperseg

Chfbrldos

Fonte: Dados da pesquisa.

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Informação fonológica na aquisição da escrita

Gráfico 6 - Distribuição segmentação não-convencional=- Escola Particular

.hlposseg

.hlperses

Chibrldos

Fonte: Dados da pesquisa.

Também em relação a estes dados, chama atenção o fato deambas as escolas apresentarem distribuição semelhante, ainda que onúmero total de erros encontrados em cada uma delas seja bastantedistinto: 2.067 na pública e 554 na particular. Os gráficos apresen-tados mostram que as hipossegmentações são mais frequentes doque as hipersegmentações, Tal resultado vai ao encontro de outrosestudos que apontam a mesma tendência e consideram que ascrianças, em fase inicial da escrita alfabética, tendem a escrever semsegmentar palavra por palavra, seguindo a percepção que têm dacadeia da fala como um contínuo (CAGLIARI, 1987; ABAURRE,1991; CUNHA, 2004).

Dois exemplos de escrita que apresentam segmentação não--c~nvencional estão nas Figuras 2 e 3, em textos produzidos porcrianças de 1a e 3' séries, respectivamente:

Figura 2 - Exemplo de escrita hipossegmentada

Fonte: BATALE(1' série).

Sugestãode Leitur . O ha. meu cac orro e o nome dele é tobi e ele pula / epula ele gosta de mim.

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Figura 3 - Exemplo de escrita com hipo e hipossegmentações

Fonte: BATALE(3" série).

Sugestãode Leitura: Os passarinhos levaram um susto que não I imaginae Chico Bento se escondeu atrás de um I morro cheio de capim o espan-talho ficou táo I feliz que abraçou o espantalho depois ele I estava capi-nando para colocar as sementes / e sentiu uma coisadiferente e ele mes- /mo se assustou do espantalho. / Ele mesmo se assustou do espantalho.

o exemplo na Figura 2 ilustra os achados de estudos, como osrecém referidos, revelando a tendência à criação de grupos de pala-vras, que, de acordo com Cunha (2004), apontam para a influênciade constituintes prosódicos iguais ou maiores que a frase fonológi-ca. O único caso de hipersegmentação observado, 'e legostademi'para ele gosta de mim pode ser interpretado como uma tentativade evitar a sequência de duas vogais idênticas ou um indício doreconhecimento do clítico 'e', como já registrado anteriormen-te. Na Figura 3, o texto produzido por aluno da 3" série, mostraexemplos de hiper e hipossegmentações e também de híbridos. Ashipersegmentações encontradas, 'seiscondeu', dicapim, ilustram oque Cunha (2004) considera como sendo os casos mais frequen-tes de hipossegmentação, aqueles em que o clítico se liga à palavraacentuada que está à sua direita. Já as hipersegmentações, 'a par-sou', 'a tras' e 'as sostou' para abraçou, atrás e assustou; parecem estarsendo motivadas pelo reconhecimento dos clíticos como palavrasgráficas autônomas, em um movimento inverso àquele observadonas hipossegmentações.

Os dados exemplificados seguem a tendência observada pelaautora que observou em sua pesquisa que, à direita, restam for-

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-Informação flnológica na aquisição da escrita

mas cuja estrutura é compatível com aquela das palavras lexicais,isto é, um tipo de pé métrico existente na língua e, à esquerda,uma forma que se identifica com um clítico, neste caso especí-fico, o artigo definido feminino plural e singular. O exemplo dehíbrido encontrado no texto mostra, antes de tudo, a indecisãoda criança em relação ao tipo de grafia que a forma exige. Paraa mesma sequência, se assustou, duas opções 'se as sostou' e 'seassostou': a primeira com hipersegmentação e a segunda com hipoe hipersegmentação. Este dado parece sugerir que, não satisfei-ta com a primeira grafia, a criança busca uma alternativa emque combina os dois processos, os quais, de acordo com Cunha(2004), estão ordenados: primeiro a hipossegmentação, processomotivado mais fortemente pela cadeia da fala, e depois a hiper-segmentação, cuja motivação inclui também aspectos próprios dosistema de escrita.

O estudo de Ney (2012), sobre o uso do acento gráfico porcrianças das séries iniciais, mostra tendências gerais em relação aouso e não uso do acento gráfico, em se considerando a norma, epropõe uma análise que avalia as motivações fonológicas para oserros observados. A análise realizada levou em conta a metade dostextos pertencentes ao primeiro estrato do BATALE e foram com-putados 3.383 dados, erros e acertos. O resultado geral da compu-tação de erros e acertos, em cada uma das escolas analisadas, estáapresentado nos gráficos~ e 8,:

Gráfico 7 - Acento gráfico - erros e acertos - Escola Pública

Fonte: Dados da pesquisa.

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Gráfico 8 - Acento gráfico - erros e acertos - Escola Particular

Fonte: Dados da pesquisa.

A computação dos dados mostra que nos textos da escola parti-cular foram encontrados mais contextos para o uso do acento gráfi-co e que as crianças acertam mais, havendo uma diferença de 13%em favor da escola particular. Já a distribuição referente a acertos eerros, levando-se em conta a posição do acento (oxítona, paroxí-tona e proparoxítona) mostra que, em ambas as escolas, o númerode acertos é maior na grafia de palavras oxítonas e monossílabostônicos com 61 % de acertos e os acertos referentes às paroxítonas eproparoxítonas atingem percentuais bem mais baixos, 37% e 27%,respectivamente. O índice de acertos em monossílabos e em oxíto-nas pode ser explicado, em parte, pela alta frequência de palavrascom esta estrutura no contexto escolar. A análise de tipos (types),realizada pela autora, mostra que a maior variedade é referente aogrupo das proparoxítonas, 64 tipos, sendo os conjuntos das paro-xítonas, oxítonas e monossílabos tônicos aqueles que menos varie-dade apresentam, 17,27 el6. Tal constatação ajuda a explicar porque oxítonas e monossílabos tônicos atingem índices tão altos deacertos. Já a explicação para o índice baixo de acertos das paroxí-tonas não pode ser explicado por esta via, mas sim pelo fato deser este o acento prosódico preferencial e por serem tais palavrasnão acentuadas graficamente, exceto quando terminam em sílabapesada.

O estudo de Ney (2012) ateve-se também aos usos indevidosde acentos gráficos, os quais proporcionaram uma discussão capazde trazer à tona a influência da fonologia, especificamente do acen-to prosódico da língua nas escolhas gráficas das crianças estudadas.

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-lnformação fonológica na aquisiçâo da escrita

No quadro 6, são apresentadas duas situações em que a fonologiaparece estar exercendo influência sobre a escrita das crianças: (a)acento na sílaba trocada e (b) omissão de acento em proparoxíto-

nas.

Quadro 6 - Exemplos de erros na grafia do acento

(a) 'passáro', 'passarós', 'tupopotárno'~zoologíco'

b)' is~ridicu'.z...:abobra', 'pinci', 'e~!_~te_'

Fonte: Elaboração própria.

Os exemplos apresentados em (6a) e (6b) são representativosdo conjunto de dados apresentados por Ney (2012), referentes aoserros encontrados na grafia das proparoxítonas. Embora na amos-tra estudada a incidência maior seja referente a omissões, os usosobservados trazem informação relevante para a discussão relativa àintuição prosódica das crianças. Em (ôa), estão exemplos de dadosem que a criança insere o acento gráfico na sílaba trocada possi-velmente por efeito da memória gráfica, quer dizer, ela sabe que apalavra tem acento gráfico, mas, na hora de determinar a posição,opta por registrá-lo na segunda janela, reservada ao acento paroxí-tono, exatamente aquele considerado defoult pelas análises do acen-to em português (BISOL, 1992).

Ainda em relação ~ proparoxítonas, acento que em termosprosódicos é excepcional na língua, vale observar que se trata deformas às quais há sempre a exigência do uso de acento gráfico.Nos dados, foram encontradas grafias em que as crianças eliminamsílabas ou segmentos, ajustando as palavras a uma estrutura paroxí-tona - como o fazem os falantes do português que, independentedo estigma social, para abóbora e fósforo produzem abobra e fosfru;ou ainda aqueles que sofrem o estigma e, para formas como estôma-g~ e sãbado, produzem estombo e sabu. Assim, seja por apócope ouSlllcope, os falantes, como as crianças em suas escritas, ajustam aspalavras aos padrões menos marcados.

Outro achado interessante da autora, diz respeito ao uso fre-quente do acento gráfico pelas crianças com a finalidade de mar-

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car abertura tímbrica da vogal média, resolvendo assim a assimetriaobservada no sistema gráfico em relação ao ortográfico, já que esteapresenta apenas cinco grafemas para registrar os sete fonemas dalíngua.

Considerações finais

Neste capítulo, ao analisarmos os erros ortográficos produzi-dos por crianças das séries iniciais, buscamos contribuir para como desenvolvimento dos estudos sobre a aquisição da linguagem,argumentando em favor da potência dos dados de escrita para quefenômenos do âmbito da aquisição da língua oral possam ser maisbem compreendidos. Nossos dados mostram que as crianças lan-çam mão do conhecimento já construído sobre a fonologia de sualíngua e, ao fazerem isto, o fazem de um modo novo, pois têm apossibilidade de processar a língua de uma forma mais explícita,reanalisando suas estruturas mais básicas, como a sílaba, o acento etambém outros constituintes fonológicos.

Os dados de escrita espontânea, por esta perspectiva, ajudam adesvelar a estrutura subjacente das formas linguísticas, tornando-asvisíveis, e funcionam, assim, como uma verdadeira janela para arepresentação. As escolhas gráficas das crianças revelam, além do seuconhecimento fonológico, o conhecimento construído acerca dasformas ortográficas. As hipóteses que constroem, sobre o funciona-mento do sistema de escrita, ficam mais visíveis, à medida que oserros passam a ser lidos e interpretados com base em categorias cla-ramente definidas, capazes de preservar informações concernentesà natureza do erro.

Ao olharmos de modo mais vertical para as relações que seestabelecem entre o conhecimento fonológico e o ortográfico -um que é parte da competência fonológica da criança e outro queestá em plena construção -, não podemos ignorar os atravessa-mentos de um no outro. Uma proposta para a classificação deerros, como a que fazemos, intenta aproximar pesquisa e ensino,oferecendo uma visão mais ampla do processo de aquisição daescrita pela criança e procura apontar para a necessidade de uma

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Informação fonológica na aquisição da escrita

abordagem linguística que amplie a compreensão de fenômenosordinários do cotidiano escolar, acreditando, como afirma Smith(1989, p.23) que "[ ...] a teoria é nosso escudo contra a perplexi-

dade."

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