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FACULDADE DE EDUCAÇÃO E LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
MESTRADO EM EDUCAÇÃO
HTPC: HORÁRIO DE TRABALHO PEDAGÓGICO COLETIVO
OU HORÁRIO DE TRABALHO PERDIDO?
PAULA RAQUEL GONÇALVES DE SOUSA
SÃO BERNARDO DO CAMPO 2007
PAULA RAQUEL GONÇALVES DE SOUSA
HTPC: HORÁRIO DE TRABALHO PEDAGÓGICO COLETIVO
OU HORÁRIO DE TRABALHO PERDIDO?
Dissertação apresentada como exigência parcial ao Programa de Pós-Graduação da Universidade Metodista de São Paulo, sob orientação da Profª Drª Jane Soares de Almeida para obtenção do título de Mestre em Educação.
UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO
SÃO BERNARDO DO CAMPO 2007
BANCA EXAMINADORA
______________________________________
Profª Drª Jane Soares de Almeida
(presidente)
______________________________________
Prof. Dr. Ivan Russef
____________________________________
Prof. Dr. Joaquim Gonçalves Barbosa
FICHA CATALOGRÁFICA
So89h
Sousa, Paula Raquel Gonçalves de HTPC : horário de trabalho pedagógico coletivo ou horário de trabalho perdido? / Paula Raquel Gonçalves de Sousa. 2007. 140 f. Dissertação (mestrado em Educação) --Faculdade de Educação e Letras da Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2007. Orientação : Jane Soares de Almeida 1. Professores - Formação continuada 2. Jornada de trabalho I.Título. CDD 374.012
2
A meu filho Matheus Yuri, pela alegria
Ao meu esposo Gilberto, pelo companheirismo, amor e respeito.
Aos meus pais, que me ajudaram a escrever minha história.
Aos meus irmãos, pela fé
À minha vó Maria, mulher forte e corajosa.
E a todos os meus familiares, que por questões sociais
não podem estar onde estou. Vitória, meu povo!
AgradecimentosAgradecimentosAgradecimentosAgradecimentos
A Deus, em primeiro lugar, que abençoou a mim e aos meus para que eu tivesse paz ao trilhar esse caminho.
À minha orientadora, Profª Drª Jane Soares de Almeida, pela dedicação, amizade e compreensão e apoio.
Ao Prof. Dr. Ivan Russef, pelas contribuições significativas neste trabalho.
Ao meu mestre Joaquim Gonçalves Barbosa, pela inestimável inspiração neste percurso.
Aos professores da Universidade Metodista do Programa em Educação, pelos encontros vivenciados, vividos e
incorporados nesta minha escrita.
À minha companheira de curso Marjô Russo, pela compreensão, amizade e cooperação.
Ao ilustrador Rafael Pereira que conseguiu de forma tenaz traduzir as minhas observações.
Com base no conceito de dialogismo em Bakhtin,
a intencionalidade não existe como uma condição individual , mas como uma condição coletiva,
travada no âmbito das interações verbais. O discurso só se constitui enquanto discurso
quando é um interdiscurso. Ele só pode ser classificado e analisado
quando tomado em consideração a outros discursos.
Cristina Nacif Alves
SOUSA, Paula Raquel Gonçalves de. HTPC: Horário de Trabalho Pedagógico
Coletivo ou Horário de Trabalho Perdido? São Bernardo do Campo: UMESP, 2007,
140 p.
RESUMO
Esta pesquisa investigou o que ocorre no Horário de Trabalho Pedagógico
Coletivo – HTPC – da rede de ensino do Estado de São Paulo em relação à
formação continuada dos professores. Para tanto, fez um resgate histórico da
construção do HTPC e buscou verificar quais ações vêm sendo desenvolvidas nesse
espaço de forma a analisar se realmente é um local utilizado como formação
contínua ou se a sua institucionalização caracterizou uma “obrigatoriedade” que
acarreta resistência dos atores envolvidos. A pesquisa, de caráter qualitativo, foi
realizada em uma escola de Santo André, município da Grande São Paulo, por meio
de um estudo de caso. Os HTPCs foram observados no período de um semestre e
deles foram extraídos momentos, aqui denominados de “cenas”, que serviram como
base de análise das atividades realizadas nesse horário. O estudo utilizou, como
instrumentos de pesquisa, entrevista semi-estruturada com a Professora
Coordenadora e questionários para os professores de um grupo do período noturno
objetivando averiguar quais as suas concepções sobre formação contínua e sobre
as atividades efetivamente desenvolvidas buscando determinar concordâncias ou
discordâncias.
Palavras-chaves: Formação contínua; horário de trabalho pedagógico;
SOUSA, Paula Raquel Gonçalves de. HTPC: Horário de Trabalho Pedagógico
Coletivo ou Horário de Trabalho Perdido? São Bernardo do Campo: UMESP, 2007,
140 p.
ABSTRACT
This research investigated the events that occurred in the collective time of
pedagogical work- HTPC- at public schools in the estate educational system in
relation to continuing formation of teachers. Therefore, it was made a historical
salvage of HTPC and looked for verifying which actions were being developed in this
time in order to analyze if this space is, in fact, used as continuing formation purpose
or its institutionalization became an “ obligation” that contributes to resistance of the
characters involved. The qualitative investigation was realized at an estate school in
Santo Andre, municipality of Sao Paulo, through a case study. The meetings were
observed during a semester of 2006 and became scenes that were the analysis base
for understanding what activities were realized. The study also used as investigation
instruments, semi structured interview with the coordinator teacher and questionnaire
for the teachers group, aiming to verify their conceptions about the continuing
formation and the events occurred in order to determine agreements and
disagreements between theory and practice.
Key words: continuing formation, collective time of pedagogical work.
SUMÁRIO
Introdução .................................................................................................................... 01
Capítulo I – A história da construção do Horário de Trabalho
Pedagógico Coletivo na rede estadual de São Paulo................. 05
1.1 O cenário educacional nas últimas décadas do século XX............................. 06
1.2 A política pública da Secretaria da Educação e a implementação
do HTPC e da função do Professor Coordenador........................................... 09
1.2.1 A política educacional da gestão do PMDB em São Paulo......................... 09
1.2.1.1O Ciclo Básico e a Jornada Única................................................................. 13
1.2.1.2 A Escola-Padrão........................................................................................... 19
1.2.2 A política educacional da gestão do PSDB em São Paulo......................... 23
1.2.2.1 Escola de cara Nova: Progressão Continuada e Regime de Ciclos........... 23
1.3 O Professor Coordenador e o HTPC na legislação......................................... 29
Capítulo II – O caminhar da pesquisa................................................................. 36
2.1 Contextualizando a pesquisa........................................................................... 36
2.2 Refletindo sobre o percurso metodológico: algumas observações................. 39
2.3 Um olhar sobre a escola................................................................................... 49
Capítulo III – Cenas do HTPC de uma escola: observações
do cotidiano à luz dos teóricos ..................................................... 52
3.1 Entre estratégias, táticas, espaço e tempo – conceitos
adotados nesta pesquisa............................................................................ 52
3.2 As representações dos professores e do Professor Coordenador
sobre a formação contínua no HTPC................................................................ 58
Considerações Finais............................................................................................ 103
Bibliografia............................................................................................................ 108
Anexos.................................................................................................................... 113
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Quadros Quadro 1 Correspondência de horas em sala de aula com horas de trabalho pedagógico.... 32 Quadro 2 HTPCs observados................................................................................................. 45 Quadro 3 Caracterização dos professores participantes do H.T.P.C...................................... 47 Agrupamentos
Agrupamento 1 – Dicotomia Teoria e Prática......................................................... 66
Cena 1 – “Teoria e prática”...................................................................................... 67
Cena 2 – “Leitura não dá”........................................................................................ 69
Cena 3 – “Monólogo da Coordenadora”.................................................................. 71
Cena 4 – “Preciso moralizar o HTPC”...................................................................... 77
Agrupamento 2 – Função Burocrática do HTPC...................................................... 82
Cena 5 – “Avisos do Diretor”.................................................................................... 83
Agrupamento 3 – HTPC e Escrita............................................................................. 89
Cena 6 – “Sem registro”............................................................................................ 90
Cena 7 – “Escrever bem é...ir embora mais cedo!”.................................................. 91
Agrupamento 4 – O Tempo no HTPC....................................................................... 96
Cena 8 – “HTPC de 15 em 15 dias”.......................................................................... 98
Cena 9 – “Reunião interrompida”.............................................................................. 99
LISTA DE ANEXOS
Anexo1
Questionário para professores............................................................................ 113
Anexo2
Roteiro de entrevista semi-estruturada com a Professora Coordenadora......... 114
Anexo 3
Respostas dos professores................................................................................. 115
Anexo 4
Síntese da entrevista com a Professora Coordenadora da escola.................... 121
Anexo 5
Hora de Trabalho Pedagógico – (H.T.P. E H.T.P.C.)......................................... 125
Anexo 6
Deliberação CEE Nº 09/1997, de 30 de julho de 1997....................................... 128
Anexo 7
Lei Complementar N.º 836, de 30 de dezembro de 1997................................... 130
2
INTRODUÇÃO
“A consciência não é individual, mas social e ideológica.
O material da consciência é a linguagem
sendo as condições de produção
determinantes do discurso”.
Cristina Nacif Alves
INTRODUÇÃO
Sou professora da rede estadual desde 1991 e, portanto, nestes meus 16
anos de Magistério tenho vivenciado, enquanto educadora e funcionária pública,
diversas realidades ao sabor das políticas públicas implementadas pelas diferentes
gestões político-partidárias que assumiram o governo de São Paulo.
Evidentemente, as ações da política educacional do Partido da Social
Democracia Brasileira – PSDB – foram as que mais repercutiram no meu cotidiano,
pois as acompanho desde o seu início. Nesse governo, ainda no primeiro mandato,
foi instituído o posto de trabalho de Professor Coordenador, antiga reivindicação da
categoria, por melhor qualidade do aspecto pedagógico da ação docente, e foi nesse
contexto que me vi tentada a alçar novos caminhos na Educação.
Em 1996 assumi a função de coordenadora em uma escola na região de
Varginha, um bairro periférico e carente da zona Sul de São Paulo. Foi uma
experiência inigualável, pois a mudança da função trouxe-me uma enorme confusão
profissional, visto que do dia para a noite, passei de professora a coordenadora sem
ter nenhum tipo de capacitação para isso.
Os meus dilemas que até então eram individuais, passaram a ser coletivos,
pois não sabia o que fazer diante das demandas dos professores que me
procuravam angustiados por uma solução ou orientação. Sentia-me perdida e
confusa, mas como tinha assumido esse compromisso frente aos 51 professores
que me apoiaram sem exceção, uma vez que fui eleita por unanimidade no dia da
apresentação de meu projeto, senti que não poderia e nem deveria desapontá-los.
No exercício solitário da coordenação, recorri a capacitações sobre variados
temas e disciplinas e incessantemente passei a multiplicar tudo o que vinha
aprendendo nesses cursos. Aos poucos, percebi que os professores passaram a me
respeitar e confiar em meu trabalho, pois sabiam que se eu não fosse capaz de dar
2
uma resposta no momento em que me procuravam com certeza eu buscaria as
informações que fossem necessárias.
Mas isso também se tornou um problema, pois o grupo tornou-se
extremamente dependente da coordenação, o que culminou com a não construção
da autonomia dos professores. Confesso também que naquele momento não tinha a
clareza da situação que tenho agora: as demandas eram de ordem prática e eu não
fazia muitas reflexões sobre minhas ações.
Em 1998 mudei-me para Santo André, onde voltei a lecionar. Em 2003
novamente assumi a coordenação em uma escola de 1ª a 4ª séries. Por minha
formação ser em Letras, precisei me aperfeiçoar em Alfabetização. Nesse percurso,
mais uma vez retomei os mesmos sentimentos de solidão, pois percebi que a função
de Professor Coordenador, por não ter definido ainda uma identidade na rede
estadual, podia ser comparada à de um “bombeiro”, que vive apagando incêndios e
não tem uma territorialidade própria. Ele é um “faz-tudo” na escola.
Dessa vez, mais amadurecida pela experiência, não queria ser apenas uma
multiplicadora de conhecimento, mas queria fazer um trabalho de formação
continuada com os professores de forma que estes desenvolvessem a autonomia
pedagógica.
Via no Horário de Trabalho Pedagógico Coletivo – HTPC1- uma
possibilidade real para a condução de uma formação que possibilitasse contato com
experiências e reflexões que pudessem ser úteis à compreensão e à solução de
problemas presentes, não somente nas práticas educativas, mas também, nas
ações de outras esferas da vida.
Porém, com o desenrolar do tempo, uma preocupação bastante reiterada do
ponto de vista profissional veio a se estabelecer. Como lidar com o HTPC de forma a
implementar um projeto de formação continuada realmente consistente para os
1 O HTPC é a abreviação utilizada comumente para Horário de Trabalho Pedagógico Coletivo. Faz parte da jornada de trabalho obrigatório do professor. São reuniões com periodicidade semanal, com duas horas de duração e devem ser realizadas na unidade escolar sob a coordenação do Professor Coordenador a fim de discutir práxis, teorias etc.
3
professores que por mim eram coordenados, haja vista a dicotomia existente entre o
que a legislação apregoa ser função do PC e as demandas reais da unidade escolar,
Diretoria de Ensino e Secretaria da Educação?
Diante do meu inconformismo em relação ao desperdício desse momento
privilegiado de encontro com os professores e do descaso de alguns colegas de
função frente à assunção de sua responsabilidade relativa à formação de seu grupo
de professores, senti-me impelida a pesquisar possíveis contribuições a essa
situação.
Procurei apontar possibilidades e necessidades dentro de um projeto de
formação que levasse em consideração as práticas dos professores e formadores
como ponto de partida e de chegada para novas aprendizagens e não apenas para
a crítica que imobiliza as iniciativas.
Por meio desta pesquisa, portanto, busquei entender a dinâmica de um
HTPC no que concerne a sua função primordial que é a formação contínua dos
professores em serviço, detectando suas características espaciais e temporais,
pretendendo com esse levantamento interpretar as relações desenvolvidas entre os
pares, bem como verificar se este é, de fato, um lócus privilegiado de formação em
serviço.
A investigação foi realizada em uma escola da rede pública estadual,
localizada em Santo André, município da Grande São Paulo. Teoricamente, esse
estudo fundamentou-se em três eixos: a análise da formação contínua enquanto
direito e necessidade do professor; a historicidade desse espaço, na perspectiva da
sua institucionalização e a análise das ações desenvolvidas nas reuniões à luz de
teóricos que discorrem sobre questões pertinentes ao tema.
A partir do exposto, esta dissertação foi estruturada em quatro capítulos,
conforme se demonstra a seguir. O primeiro Capítulo – A história da construção do
Horário de Trabalho Pedagógico Coletivo na rede estadual de São Paulo – realizou,
inicialmente, um resgate histórico da construção desse espaço pelos professores da
4
rede pública estadual e a árdua luta travada pelo atendimento a essa demanda.
Logo após, discutiu a legislação que rege esse espaço e a que regulamenta as
atribuições do Professor Coordenador, visto que esse profissional é o principal
responsável pela formação em serviço do docente. Trouxe também uma breve
explanação das vertentes existentes da formação contínua com vistas a determinar
posteriormente nas observações quais estratégias e tendências estão sendo
privilegiadas pelo Professor Coordenador da unidade escolar avaliada.
No segundo capítulo – O caminhar da pesquisa – foi feita uma breve
exposição sobre o percurso teórico-metodológico da pesquisa, buscando teorizar as
escolhas feitas e as dificuldades vivenciadas, a fim de explicitar possíveis limitações
deste estudo.
No terceiro capítulo – Cenas do HTPC de uma escola: observações do
cotidiano à luz dos teóricos – são apresentados os dados relativos à observação
ocorrida in loco com as suas falas, impressões, cenas e o seu caminhar, bem como,
uma análise comparativa entre o que foi observado nas reuniões, em contraposição
com os questionários respondidos pelos professores e com a entrevista semi-
estruturada realizada com a Professora Coordenadora da escola investigada. A
intenção foi avaliar de que forma têm se articulado os discursos e a práxis escolar
no que se refere à importância desse espaço de reflexão. Nesse sentido, foi possível
verificar até que ponto há concordâncias ou dissonâncias entre a prática e a teoria.
Nas considerações finais foram discutidas as variáveis que se
estabeleceram ou não para o fortalecimento e valorização do HTPC como espaço de
reflexão e formação, a partir dos dados obtidos nesta observação. Nesse contexto
foram apresentadas algumas questões que suscitam a dimensão política, histórica e
filosófica desse espaço formativo nas escolas da rede pública, atribuindo-lhe a
importância que lhe é necessária.
5
CAPÍTULO I
A HISTÓRIA DA CONSTRUÇÃO DO HORÁRIO PEDAGÓGICO COLETIVO NA
REDE ESTADUAL DE SÃO PAULO
O objetivo deste capítulo é resgatar e contextualizar a construção do HTPC
na rede estadual de ensino, o que acarretará uma melhor compreensão da
dimensão histórica e política2 que este espaço ocupa, naquilo que chamamos de
“luta histórica” para a sua instituição como um local de formação em serviço dos
docentes da rede. Os fatos, levantamentos e dados aqui expostos delineiam todo o
processo de transformações ocorridas em nossa sociedade, principalmente nas
décadas de 1980 e 1990 no que se refere às políticas educacionais das gestões dos
governos do Partido do Movimento Democrático Brasileiro – PMDB – e Partido da
Social Democracia Brasileira – PSDB – e, também, às demandas dos professores
em busca de melhores condições de trabalho.
Com esse intuito, foi realizada uma análise de periódicos e artigos do
Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (APEOESP),
assim como de toda a legislação federal e estadual que aborda a implantação e a
implementação do Horário de Trabalho Pedagógico e da função do Professor
Coordenador que é o principal responsável pelas ações de formação contínua do
professor em serviço, a fim de delinear em que condições foi o HTPC formalizado
como parte integrante da jornada do professor.
Além desses procedimentos, foi elaborado um breve quadro da formação
continuada e suas transformações nos últimos 20 anos, objetivando analisar as
condições que instituíram esse espaço na rede pública estadual.
2 A proposta deste trabalho não é fazer uma pesquisa histórica e política, visto que a linha desta pesquisa é a “Formação de Educadores”. Entretanto, considera-se necessário fazer uso dessas condições, ainda que de forma sucinta, para contextualizar o HTPC na atualidade.
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1.1 O cenário educacional nas últimas décadas do século XX
Para que se possa compreender a organização das horas de trabalho
pedagógico como parte da jornada de trabalho do professor da rede estadual, faz-se
necessário relacionar o movimento educacional na cidade de São Paulo e as
políticas que a precederam e culminaram com essa implementação. Para tanto,
apresenta-se neste momento, uma breve reflexão sobre o período histórico que
antecedeu as reformas pelas quais passaram a Educação e a escola.
As últimas décadas do século XX foram marcadas por diversas reformas
educacionais em vários países, justificadas pela crise da educação no sentido de
imprimir à Educação uma melhor qualidade. O fracasso escolar dos alunos colocava
em xeque o ensino oferecido aos alunos das escolas, principalmente de rede
pública, onde a rápida expansão do acesso pela democratização da escola trouxe
sérios problemas advindos de questões políticas, metodológicas e, sobretudo,
sociais.
No Brasil, a década de 1980 foi uma época de grande efervescência
política, devido à grande mobilização da sociedade na busca pela restauração do
estado de direito que se constituía em eleições diretas, depois de um longo período
de ditadura militar. A campanha pelas “Diretas Já” mobilizou todo o país e trazia à
cena muitos dos políticos que atualmente estão no poder pelo voto direto da
população.
No ano de 1986, com o estabelecimento do Congresso Nacional
Constituinte, a discussão nacional toma fôlego para a elaboração de uma nova
Constituição Federal da República Federativa do Brasil que foi promulgada em 1988.
A declaração do Direito à Educação é particularmente detalhada nesta Constituição
Federal (CF), representando um salto de qualidade com relação à legislação
anterior, com maior precisão da redação e detalhamento, introduzindo-se, até
7
mesmo, os instrumentos jurídicos para a sua garantia.
A declaração do Direito à Educação aparece no artigo 6º: “São direitos
sociais a educação, (...) na forma desta Constituição”, onde pela primeira vez
explicitam-se os Direitos Sociais, destacando-se, com primazia a educação.
No artigo 205 afirma-se: “A educação, direito de todos e dever do Estado e
da família”. No artigo 206 especifica-se que: “O ensino será ministrado com base nos
seguintes princípios: (...) IV – gratuidade do ensino público nos estabelecimentos
oficiais.” Inova-se a formulação da gratuidade, assegurando-a em todos os níveis da
rede pública, ampliando-a para o ensino médio, tratada nas Constituições anteriores
como exceção e, para o ensino superior, nunca contemplada anteriormente. O artigo
que detalha o Direito à Educação é o 208, formulado nos seguintes termos:
O dever do Estado para com a educação será efetivado mediante a garantia de : I. Ensino fundamental, obrigatório e gratuito, inclusive para os que a ele não tiveram acesso na idade própria; II. Progressiva extensão da obrigatoriedade e gratuidade ao ensino médio3; III. Atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino; IV. Atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a seis anos de idade; V. Acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um; VI. Oferta de ensino noturno regular, adequado às condições do educando; VII. Atendimento ao educando, no ensino fundamental, através de programas suplementares de material didático escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde.
A Constituição da República Federativa de 1988 traz em seu bojo a
necessidade de proporcionar uma educação de qualidade e garante ensino público
gratuito nas escolas oficiais e imputa ao Estado a responsabilidade pelo atendimento
a todos os alunos do Ensino Fundamental e gradualmente se estendendo aos outros
níveis (Ensino Médio e Educação Infantil).
3 A Emenda Constitucional nº. 14, de setembro de 1996, alterou esta redação para “progressiva universalização do ensino médio gratuito”.
8
De uma forma bastante simplista, a melhoria da educação básica se deu
nesse momento, apenas como a expansão da rede física de escolas e a
universalização do Ensino Fundamental. No entanto, essa expansão trouxe sérias
dificuldades no que se refere ao sucesso da escolarização dos alunos, visto que as
taxas de reprovação e evasão eram muito altas, já que a escola não havia se
preparado para atender a diversidade de alunos que tiveram acesso à escolarização
formal e excluíam de seu interior os filhos dos operários provenientes de classes
menos favorecidas.
Embora a pregação da democratização do ensino seja antiga e constante no pensamento brasileiro, sempre que ocorreu uma maciça extensão das oportunidades educativas os educadores sentiram-se chocados no seu zelo pedagógico. E a argumentação que extravasa esse sentimento, invariavelmente, invoca o rebaixamento da qualidade do ensino como um preço inadmissível à ampliação de vagas. Esta legitimidade se revela, em primeiro lugar, ao se considerar que a extensão das oportunidades educativas é apenas um aspecto do processo pedagógico de democratização do ensino...O equívoco dessa idéia reside em desconhecer que a extensão de oportunidades é, sobretudo, uma medida política e não uma simples questão técnico-pedagógica. (AZANHA, 2004, p. 344)
Em consonância com a reflexão de Azanha (2004) verificou-se que, no
processo de democratização no ensino público quanto à acessibilidade, a escola
não poderia apenas se limitar às questões pedagógicas, ou seja, pensar que a
mudança de metodologia ou do programa escolar seriam suficientes para a
resolução dos problemas de universalização da educação.
Esta visão simplifica em muito a concepção ideológica de democracia, pois
a democratização ampla deve ser entendida nas dimensões política, social e
econômica, já que a democratização da educação é irrealizável somente no contexto
intra-escolar.
9
1.2 A política pública da Secretaria da Educação e a implementação do HTPC e
da função do Professor Coordenador
O Estado de São Paulo em sua gestão nos períodos compreendidos entre
1983 a 2006 teve como governadores representantes de dois partidos : PMDB e
PSDB. Este fato não pode ser desvalorizado, pois implica em posições políticas,
antropológicas e filosóficas completamente antagônicas no que se refere à política
educacional dos dois partidos.
Dessa sucessão de longos mandatos, a história da educação paulista foi
sendo constituída por várias iniciativas. Algumas tiveram grande repercussão, como
o Ciclo Básico, que revolucionou a metodologia de alfabetização que vinha até então
sendo utilizada e que até hoje serve de material para discussões teóricas
interessantes. Outras foram pontuais, pois subsistiram por pouco tempo devido à
resistência da malha constituidora da rede ou pela mudança de gestão.
Por essa razão, utilizando do próprio recorte partidário, a análise da política
educacional do Estado de São Paulo será subdividida em dois momentos, sendo o
primeiro de 1983 a 1994 e o segundo, de 1995 a 2006.
1.2.1 A política educacional da gestão do PMDB em São Paulo
Em São Paulo, a gestão do PMDB ocorreu de 1983 a 1994, tendo
consecutivamente três governadores do partido sendo eleitos. A primeira gestão
teve à frente o governador André Franco Montoro (15/03/1983 a 15/03/1987) e a
atuação de três secretários estaduais de Educação: Paulo de Tarso Santos
(15/03/1983 a 28/05/1984), Paulo Renato Costa Souza (29/05/1984 a 19/04/1986) e
José Aristodemo Pinotti (16/05/1986 a 15/03/1987); no interregno entre os dois
últimos, respondeu pela pasta, interinamente, Luiz Carlos Bresser Pereira,
acumulando esta função com a de secretário de governo.
A segunda gestão pemedebista foi a de Orestes Quércia (15/03/1987 a
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15/03/1991), respondendo pela pasta da Educação: Chopin Tavares de Lima
(15/03/1987 a 03/08/1989), Wagner Gonçalves Rossi (04/08/1989 a 10/01/1990),
José Goldemberg (11/01 a 06/04/1990) e Carlos Estevam Martins (07/04/1990 a
15/03/1991). Luiz Antonio Fleury Filho (15/03/1991 a 31/12/1994) foi o terceiro
governador do período, tendo como secretários estaduais de Educação: Fernando
Gomes de Morais (15/03/1991 a 03/09/1993) e, novamente encerrando mandato,
Carlos Estevam Martins (10/09/1993 a 31/12/1994); Luis Patrício Cintra do Prado
Filho atuou interinamente entre duas últimas gestões.
Nesta gestão do PMDB no Estado de São Paulo, os vários secretários da
Pasta da Educação denotam as descontinuidades nas ações promovidas, uma vez
que a permanência na função era demasiadamente curta para a promoção de
transformações realmente significativas no ensino público da rede estadual de São
Paulo.
Essa constatação possibilita engendrar uma visão histórica de que a
política, principalmente a partidária, tem uma cultura negativa que chamaremos aqui
de “territorialização”, pois as descontinuidades não se remetem apenas ao fato das
mudanças dos dirigentes, mas também, à tentativa daquele que toma posse cortar
os projetos anteriores, ou ao menos, renomeá-lo para que fique cravado na história
das plataformas políticas eleitoreiras, a sua autoria.
Para Borges (2000) “as descontinuidades das políticas educacionais
ocorrem devido ao anseio da nova gestão marcar seu território com criações ou
recriações de programas” (p.35).
O governo Franco Montoro (1983-1986) buscou contemplar em sua
proposta de governo dois grandes programas que eram o Ciclo Básico e a Reforma
Curricular.
Palma Filho (2003) faz uma contextualização do período político da
reforma educacional:
11
... André Franco Montoro apresentou-se como candidato ao governo do Estado de São Paulo em 1982, lastreado em um programa que, para o setor educacional, priorizava a descentralização administrativa e a participação dos agentes educacionais no processo de tomada de decisões... a primeira versão, ainda preliminar, da Proposta Montoro data de junho de 1982 e traçava para o setor educacional o seguinte panorama: baixa qualidade, elevadas taxas de evasão escolar, insuficiente remuneração e péssimas condições de trabalho dos professores, falta de programas adequados de aperfeiçoamento e reciclagem do magistério, instalações mal-aproveitadas, ensino profissionalizante restrito e carente de funcionalidade. (p. 18)
De acordo com o Documento SEE/SP 01/83, dentre as causas para este
quadro educacional negativo o programa colocava que eram a “baixa dotação de
recursos à área educacional”, “utilização governamental do sistema de ensino
público para alimentar esquemas de corrupção, clientelismo e distribuição de favores
eleitorais” e “as reformas educacionais impostas de cima para baixo, sem a
participação dos setores interessados” como foi o caso da implementação da
reforma educacional instituída pela Lei Federal n. º 5.692, de 11 de agosto de 1971,
que enfraqueceu o conteúdo básico do ensino ao ser formulada e implementada
ignorando as experiências e reivindicações dos professores, dos técnicos em
educação e da comunidade.
Na educação a proposta era a revalorização do professor como agente
fundamental do sistema de ensino. Portanto, na assunção do governo de São Paulo
em 1983, a partir da Proposta Montoro é divulgado o Documento preliminar para
reorientação das atividades da Secretaria 4 que a partir da análise educacional do
momento propunha à rede uma discussão que se materializasse em uma consulta, a
fim de que as linhas programáticas para a Educação surgissem dos próprios
consultados com vistas a proporcionar uma efetiva melhoria do ensino, uma vez que
as reformas educacionais impostas sem a participação dos setores interessados
repercutiam no fracasso escolar vivenciado nesta época. O cerne central desse
documento era a proposição da democratização da escola pública.
4 Esse documento ficou conhecido na rede como Documento SEE/SP 01/83. Foi redigido pelo professor José Mário Pires Azanha.
12
É também oportuno mencionar que a preocupação com o espaço para
reflexão dos professores na escola inicia-se nesse governo. Sobre isso Duran (2005)
aponta que:
A proposta Montoro contemplou um conjunto de medidas voltadas para a revalorização do professor enquanto participante fundamental do sistema de ensino, com base em diversas ações:...Equilibrar, dentro da carga horária de trabalho, as horas dedicadas às aulas propriamente ditas, com o número de “horas-atividade”, destinadas à preparação de aulas, correção de trabalhos, coordenação interdisciplinar e pedagógica, bem como reciclagem e aperfeiçoamento do corpo docente (p. 88)
A autora ainda complementa:
Esse item da Proposta Montoro era o embrião do que mais tarde viria a constituir as chamadas horas de trabalho/ permanência na escola – HT P – que em conseqüência da sua criação levou a promulgação de um novo estatuto do magistério em 1985. (Duran, 2005, p.89)
Foi com essa nova proposta de constituição de jornada docente que ficou
claro que as atividades educativas não se formalizavam apenas em sala de aula,
mas em atividades antes e após as aulas, que se constituem em preparação das
aulas e reuniões entre os professores para discutir as questões do cotidiano escolar
e atividades inerentes à docência. Esse horário destinado aos momentos coletivos
era, portanto, de suma importância para a melhoria da educação.
Da gestão peemedebista são primordiais legados educacionais: o Projeto do
Ciclo Básico5 em 1983, a Jornada Única6 em 1988, a criação do CEFAM7 em 1988 e
a implantação da Escola – Padrão em 1991.
5 Compreende a 1.ª e 2.ª séries num bloco, cujo processo é de continuidade, visando melhorar a aprendizagem dos alunos e promover sucesso escolar dos alunos iniciantes, já que a 1ª série constituía um verdadeiro gargalo dos alunos tendo altíssimos índices de repetência e evasão escolar. Foi instituído pelo Decreto Estadual de 28/12/1983, 6 Medida instituída pelo Decreto 28.170 de 21/01/88. 7 CEFAM – Centros Específicos de Formação e Aperfeiçoamento do Magistério no âmbito do Estado de São
Paulo, foi instituído pelo Decreto nº 28.089/88 de 13/01/1988. Os centros deviam preocupar-se com a
13
Todos esses programas visavam a uma melhoria na qualidade de ensino e
vinham ao encontro do discurso do governo que propagava uma educação de
qualidade e a ampliação de oportunidades de acesso em atendimento à
universalização do ensino. Alguns destes projetos farão parte desta análise com
vistas a delimitar o surgimento de uma nova concepção de jornada de trabalho
docente, uma nova visão de currículo e também de ensino-aprendizagem .
Faz-se necessário ressaltar que este estudo não pretende fazer uma análise
aprofundada desses projetos, pois a literatura existente já é bastante rica. O recorte
aqui realizado tem como objetivo pontuar a contribuição dos mesmos para a
instituição da figura do Professor Coordenador, bem como explicitar a necessidade
de um espaço para reuniões e formação em serviço e sua instituição.
1.2.1.1 O Ciclo Básico e a Jornada Única
As reformas propostas pelo governo estadual paulista, naquele momento,
destacaram-se por duas medidas: a implementação do Ciclo Básico de
Alfabetização, em 1984, visando adequar o currículo às características dos alunos e
oportunizar uma aprendizagem mais efetiva e, em 1988, a instalação da Jornada
Única de Trabalho Docente e Discente, que se caracterizou pelo aumento tanto no
tempo de permanência dos alunos na escola (de quatro para seis horas), quanto na
jornada dos professores para quarenta horas semanais.
Conforme já mencionado, a instituição do Ciclo Básico ocorreu por meio do
Decreto Estadual n. º 21.833, datado de 28 de dezembro de 1983. Tinha como
principal diretriz a reunião das duas séries iniciais em uma continuidade. Tal aspecto
permitia uma organização do tempo de ensino-aprendizagem em um período mais
especificidade da formação do professor das séries iniciais do ensino fundamental e da pré-escola (creche e pré-escola) contribuindo para a formação em período integral desse profissional. Curso de nível médio no qual, além de ter uma formação profissional os alunos recebiam uma bolsa de estudos no valor de um salário minimo. O projeto foi extinto em 2005.
14
adequado para o ritmo de desenvolvimento das crianças. O decreto assinalava que
o Ciclo Básico visava a “diminuir a grande distância existente no desempenho das
diferentes camadas da população, criando-se condições para que todos e, em
especial, a clientela mais desfavorecida, tenham possibilidades de escolarização.”8
Outro aspecto bastante relevante consistia em propor uma solução aos altos
índices de evasão e retenção logo na 1ª série do Ensino Fundamental que
contribuíam para que muitos alunos, principalmente os de classes menos
favorecidas, fossem expulsos da educação formal.
Para Fusari (2001), outros pontos importantes que fazem parte do legado do
Ciclo Básico, por exemplo, consistem na mudança de concepção de ensino-
aprendizagem e da avaliação, bem como a reestruturação no regime de trabalho do
docente que passou a contar com carga suplementar de oito horas semanais, sendo
que quatro horas destas previstas deveriam ser cumpridas na escola em atividades
coletivas.
A mudança no regime de trabalho desencadeada pelo Ciclo Básico
introduziu alterações de ordem conceitual na formação docente, especialmente pela
possibilidade de desconstruir uma concepção profissional individualista, associada à
carreira docente, o que foi favorecido pela implantação de espaços de formação
coletiva de educadores, compreendendo as práticas educativas como sujeitas à
criticas e reformulações.
A Jornada Única de Trabalho Docente, no Ciclo Básico, representou um
avanço no que diz respeito à formação contínua dos professores na escola e em
horários coletivos de trabalho pedagógico. No entanto, essa possibilidade de
formação carecia de outros determinantes para o seu desenvolvimento eficaz, que
minimamente podem ser traduzidos em espaço físico adequado, em condições para
que os professores se reúnam dentro de seus horários de trabalho na figura de um
Professor Coordenador, devidamente preparado para assumir a orientação dos
8 A esse respeito, ver SÃO PAULO (Estado). Secretaria da Educação. Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas. Informativo Cenp, São Paulo, p.9 , fev. 1984
15
grupos de professores e propor reflexões sobre a prática docente numa direção
democrática disposta a investir neste espaço institucional de formação.
Há que se concordar que esse projeto é primordial, pois foi nesse momento
que se instaurou a necessidade de um trabalho mais coletivo dos professores, bem
como a percepção da aprendizagem como um processo. Evidentemente, como todo
projeto instituído por decreto, a idéia do autoritarismo e das decisões tomadas “de
cima para baixo” construiu na rede uma resistência declarada ao mesmo, com os
mais variados argumentos: “rebaixamento da qualidade da educação”, “promoção
automática” e questões de infra-estrutura.
A insegurança na proposta era ocasionada também pelo fato de romper
com a tradição cartilhesca de alfabetização que considerava a alfabetização em
etapas, que deviam iniciar-se com o período preparatório, privilegiando, além dos
exercícios motores, a linguagem oral e a silabação como método de ensino e
propunha uma abordagem da alfabetização em uma concepção construtivista.
Nesse contexto, a revisão dos antigos marcos da alfabetização introduziu a
questão da psicogênese da língua escrita a partir da obra de Emilia Ferreiro e Ana
Teberosky que colocavam em xeque a dita “prontidão” para a alfabetização e
partiam do princípio de que a criança constrói o seu conhecimento da língua escrita
a partir de situações onde se lê e escreve num contexto de função social e não
artificial.
Evidentemente, a mudança das concepções de ensino-aprendizagem
repercutiu também na mudança de concepção da avaliação que passou de “medida”
da competência do aluno para constituir-se em importante instrumento de renovação
da prática educativa, uma vez que detectava os avanços realizados pelos alunos e
a retomada de suas dificuldades.
Esse novo entendimento sobre o pensar da criança em relação à leitura e
escrita foi alvo de muitas contra-argumentações, pois o caráter inovador rompia os
padrões de alfabetização e trazia à tona a necessidade de um maior
16
aprofundamento teórico por parte dos professores da rede e trouxe aos mesmos
uma desestabilização de seu papel como professor.
Outro ponto que contribuiu para essa insegurança foi que as orientações
aos professores na época basearam-se na divulgação de textos e algumas práticas
de alfabetização. Somente em 1988 foi apresentada à rede a Proposta Preliminar de
Alfabetização (Duran, 1998), possibilitando aos professores uma análise mais
minuciosa sobre os fundamentos e princípios que norteavam essa nova concepção
de alfabetização.
Como toda experiência inicial, o Ciclo Básico teve muitas resistências, mas
em longo prazo foi possível notar alguns aspectos muito positivos. Em seu trabalho,
Ambrosetti (1989) constatou:
Após esse impacto inicial negativo, outros aspectos, mais positivos, foram sendo percebidos, como a possibilidade de aulas suplementares para os alunos, o incentivo ao trabalho em equipe e a troca de experiências através das reuniões mais freqüentes, o aumento das oportunidades e orientação técnica através de publicações, cursos e encontros (p. 67, grifos meus).
Pela própria dinâmica do Ciclo Básico e pela reivindicação dos pais pela
melhoria da qualidade de ensino, entre outros fatores, a Secretaria implantou a
Jornada Única que se caracterizou pela mudança na carga horária de professores e
alunos. Os alunos do Ciclo Básico tiveram um aumento em sua permanência na
escola de quatro para seis horas diárias, reforço na merenda escolar que passou a
ser de três refeições e a assunção de professores especialistas nas aulas de
Educação Artística e Educação Física.
Os professores tiveram a sua carga horária de 40 horas subdivididas em 26
horas de regência de classe, 6 horas de trabalho pedagógico e 8 horas-atividade. As
seis horas de trabalho pedagógico tinham a finalidade de proporcionar ao professor
um trabalho de formação, fosse na escola, em cursos ou preparação de recursos.
Tal fato deixa bem clara a importância de um espaço de reflexão para uma ação
17
mais consistente dos professores em sala de aula. A Jornada Única também instituiu
a figura do Professor Coordenador para o Ciclo Básico.
Segundo Duran (2005) um balanço realizado após seis meses de
implantação da Jornada Única “apresentava uma perspectiva bastante otimista”, no
entanto, ainda enfrentava alguns problemas, tais como:
Falta de comprometimento de diretores das escolas, dificuldades de reunião de todos os docentes envolvidos na Jornada Única, em função de incompatibilidade de horário e a baixa produtividade das reuniões de trabalho durante as HTP, às vezes realizadas com professores cansados e sem a presença do professor coordenador de CB. (p. 73).
Interessante notar que duas das três causas mencionadas pela autora se
reportam à questão do espaço de formação em serviço, o que demonstra que um
bom trabalho pedagógico só pode ocorrer de forma mais coerente se houver uma
reflexão coletiva entre os professores e a intermediação de um líder que no caso é a
figura do Professor Coordenador.
Ambrosetti (1989) constatou que a sistematização do trabalho pedagógico
passa essencialmente pela freqüência e espaço de troca.
(...) Além disso, por problemas de horário, já que a maioria delas cumpria jornada integral, não estavam ocorrendo as reuniões semanais do Ciclo Básico. Assim, embora o relacionamento pessoal entre elas fosse bom, os contatos se resumiam aos momentos informais de recreio, entrada e saída de períodos, o que dificultava o trabalho em equipe. Havia uma constante troca de idéias e informações, mas não se observava um trabalho em conjunto em torno de objetivos comuns (p. 78, grifos meus).
É oportuno ressaltar que, três anos após sua instituição, o número de
escolas que mantinham a Jornada Única diminuiu muito. Esse fato caracteriza que
não é pelo aumento de tempo na escola que se viabiliza uma Educação de
18
qualidade. A esse respeito, Azanha (2004) aponta que a ...
... melhoria da educação fortemente passa pela questão da Autonomia não somente a autonomia administrativa e pedagógica fixada num regimento próprio, mas uma autonomia impregnada de ideal pedagógico que consistiria essencialmente em uma explicitação” de um ideal de educação que permita uma democrática ordenação pedagógica das relações escolares (p. 56).
Assim como Azanha (2004), também podemos considerar que o elemento
transformador da Educação é a autonomia, entendida aqui como fonte primária para
a construção de relações reais entre os sujeitos que constituem a comunidade
escolar, para tanto, facilitando compreender as diferentes concepções
antropológicas, gnosiológicas e políticas que estão implícitas no fazer pedagógico de
seus atores.
A proposta da Jornada Única foi um importante avanço para o Ciclo Básico
por prever um espaço de troca de experiência entre os professores, tornando-o um
projeto bastante positivo na questão da formação dos trabalhos coletivos como
princípio norteador. Tanto é que, nas escolas em que isso não ocorreu o resultado
foi menos proveitoso.
Propostas ousadas como a do CB representam rupturas com as práticas convencionais e, portanto, dependem fundamentalmente da formação contínua do professor e demais profissionais. Embora tenha havido um esforço nessa direção, o programa desencadeado não teve a abrangência necessária para promover as mudanças qualitativas desejadas. (Duran,2005, p.75)
A afirmação da autora denota a importância de haver, por parte de qualquer
proposta política educacional, o mínimo de planejamento de ações formativas que
envolvam o reconhecimento do espaço escolar como esse lócus privilegiado de
formação contínua, bem como, a formalização de situações de aprendizagem aos
19
professores que permitam acesso a textos de estudo, de fundamentação teórica que
possam ser molas propulsoras a um salto qualitativo de mudança de paradigmas e
avanço da práxis.
1.2.1.2 A Escola-Padrão
Em 22 de outubro de 1991, o Secretário da Educação Fernando Morais
assinou o Programa de Reforma do Ensino Público do Estado de São Paulo. Em seu
título inicial chamado “É Hora da Escola” apresentou o compromisso do governo
com a Educação quanto à “recuperação da Escola Pública” e da “qualidade do
ensino oferecido à sociedade”.
Para tanto, o decreto nº. 33.235 do dia 06 de maio de 1991 criou o Núcleo
de Gestão Estratégica composto por 100 especialistas em Educação. Destes, 35
eram profissionais da rede de ensino que realizaram estudos durante três meses, a
fim de produzir um projeto com raízes no cotidiano da vida escolar. Além deste
Núcleo, a Secretaria solicitou a todas as entidades representativas do magistério e
dos funcionários que oferecessem suas contribuições ao projeto da reforma.
Com a Escola-Padrão, o governo Fleury propôs uma grande reforma no
ensino visando mudar o padrão de qualidade da educação pública de São Paulo.
No documento “Programa de Reforma do Ensino Público do Estado de São
Paulo” consta ainda que a Escola-Padrão é:
(...) uma nova escola que em linhas gerais, nada deve ter de espetaculosa ou fora do comum, senão que ofereça a seus alunos um ensino de alta qualidade... Deve oferecer a seus docentes e administradores condições de trabalho e de remuneração compatíveis com a importância social de sua profissão (Programa de Reforma do ensino público do Estado de São Paulo,1991,p3).
20
Esse projeto tinha como importante premissa a autonomia da organização e
da administração da Educação; portanto, a escola teria uma maior possibilidade de
descentralização das decisões pedagógicas, já que as escolas poderiam escolher as
práticas, técnicas e metodologias de ensino que elas julgassem mais adequadas às
suas realidades.
Essa reforma contava com uma estratégia de implantação gradual.
Inicialmente abrangeria 300 escolas durante o ano de 1992, sendo que a meta seria
a conversão de todas as escolas da rede a esse “novo modelo até o final do
governo”.
Para implementação desta proposta, foi necessária a instituição de uma
nova jornada de trabalho para os profissionais da Escola-Padrão, visando a uma
maior dedicação destes profissionais. O professor III do período diurno faria jus à
jornada integral de trabalho de 40 horas, sendo 25 horas em sala de aula, mais 7
horas em atividades pedagógicas na escola e 8 horas em atividades pedagógicas
em local de livre escolha. Essas horas de atividades passaram a se chamar Horas
de Trabalho Pedagógico (HTP). Para o Professor do noturno a jornada seria de 30
horas, sendo 20 horas em sala de aula e mais 4 horas de trabalho pedagógico na
escola e mais 6 horas de trabalho pedagógico em local de livre escolha. Para os
professores I a jornada era constituída de 40 horas, sendo 30 horas em sala de aula,
5 horas em atividades pedagógicas na escola e 5 horas em local de livre escolha.
Além disso, a escola dispunha de até 5% do número total de aulas
atribuídas pela escola para a realização de tarefas de planejamento e de
coordenação das atividades pedagógicas. Esse crédito poderia ser utilizado para
coordenação de área ou serem atribuídas a professores-assistentes. Os
coordenadores de área e professores-assistentes eram escolhidos entre os
professores da escola, designados pela Direção e Conselho de Escola.
Este projeto instituiu também um Novo Calendário em que a carga anual de
aulas oferecidas aos alunos dos Cursos Fundamental e Médio passasse de 720
horas para 1000 horas letivas.
21
A Escola-Padrão incorporou alguns objetivos e medidas do Ciclo Básico e
da Jornada Única, além de introduzir novas diretrizes, tais como Duran (2005)
evidencia:
Autonomia da escola, ampliação da concepção do sistema de formação continua envolvendo docentes, direção e funcionários administrativos e reorganização do tempo escolar através da extensão da jornada de seis horas aula para todas as séries e a inclusão de tempos específicos para o trabalho pedagógico (HTP) (p.76, grifos meus)
O trabalho do professor neste caso não ficava somente restrito à sala de
aula propriamente dita, mas acontecia em outros espaços, inclusive fora da escola.
É inegável dizer o peso que tem essa concepção de jornada de trabalho.
Em consonância com esses aspectos, vale mencionar as considerações de
Marques (1997):
Embora as atividades de ensino constituam o núcleo que define a escola enquanto instituição social, não é menos verdadeira que a reflexão, o debate, a avaliação e a conseqüente reformulação do que se faz em sala de aula constituem atividades igualmente importantes... a redução da atividade docente às aulas destaca uma concepção de escola que privilegia o seu lado de ensino, de transmissão de conhecimentos exclusivamente e não como instituição de criação de conhecimento e como local de formação; uma concepção que falsamente concebe a possibilidade da primeira sem a segunda o que gera a escola pública pobre que hoje temos. A existência da HTP – hora de trabalho pedagógico- onde se reúnem professores e coordenadores reabre para a escola pública esta nova possibilidade (p. 54).
Entender a complexidade do fazer docente só é possível quando a situação
de dialogicidade está posta com seus pares. Um fazer solitário não se contradiz, não
se questiona. É somente na interação com outros que é possível discorrer sobre
suas concepções pedagógicas, políticas e filosóficas. Portanto, a existência do
22
HTPC traz possibilidades, porque oferece condições ao docente de pôr-se em
contato com o outro e percebendo o outro como um “não-eu” e dialogar com a
diferença e se permitir crescer enquanto sujeito-autor dentro da pluralidade de
olhares que constituem a instituição escola, sem perder a sua identidade.
Devido ao número restrito de escolas desse projeto, aproximadamente
1.614 escolas9 (23.7%) em uma rede de 6.806 escolas, veio à tona um movimento
reivindicatório dos professores, no sentido de que o projeto não fosse um ponto de
discriminação e elitização dentro da própria rede de ensino público.
A APEOESP10 em seu jornal sindical Apeoesp em Noticias11 faz duras
críticas ao programa em um suplemento dedicado à análise sobre esse projeto com
a manchete: “Escola-Padrão: pouca modernização para poucos”.
Esse artigo critica o fato de o projeto envolver apenas 5% das escolas da
rede, 6% dos professores e 12% dos alunos, preconizando que esse projeto visava
a uma diferenciação no atendimento educacional no Estado de São Paulo e tinha
caráter experimental, o que poderia acarretar em “esquecimento”, já que tantos
outros projetos foram deixados de lado, tais como: Jornada Única, Ciclo Básico,
CEFAM, PROFIC12 etc.
A Escola-Padrão teve grande força nos dois primeiros anos, mas começou a
perder o fôlego nos anos posteriores e, com a assunção do governo do PSDB, a
primeira medida foi a suspensão das 683 escolas que se transformariam em padrão
em 1995, alegando que procederia a um balanço para a avaliação do mesmo.
A APEOESP em manchete ressalta: “Governo congela Escola-Padrão” e
acenava em seu conteúdo para a possibilidade da extinção deste projeto, já que a
9 Fonte: SEE/CIE em 1995 10 Associação dos Professores das Escolas Públicas de São Paulo 11 Publicação institucional da APEOESP, intitulado APEOESP EM NOTICIAS n. º 175-out/nov-1991. Suplemento de Educação 12 Programa de Formação Integral da Criança – projeto lançado em São Paulo, durante o Governo Montoro, pelo ex- secretário da Educação, Prof. José Aristodemo Pinotti. Este projeto de educação tinha por objetivo, em linhas gerais retirar a criança da rua aumentando o tempo de permanência na escola para oferecer-lhe uma série de serviços que pudessem melhorar sua aprendizagem e o seu desenvolvimento. Seria em São Paulo um prenúncio da escola de tempo integral.
23
Secretaria da Educação afirmou que avaliaria o projeto, ainda em 1995 para, então,
decidir o seu destino no ano seguinte.
1.2.2 A política educacional da gestão do PSDB em São Paulo
O segundo ponto desta análise remete à gestão do PSDB de 1995 a 2006,
tendo à frente do Governo em São Paulo, os governadores Mário Covas e Geraldo
Alckmin, sendo este no segundo mandato. Foram Secretários da Educação desse
período: Teresa Roserly Neubauer da Silva e Gabriel Chalita. Atualmente, por
ocasião de pedido de afastamento do cargo deste último, a Profª Maria Lúcia
Vasconcelos está empossada nessa função.
A mudança do governo do PMDB para o PSDB em 1995 trouxe uma nova
mudança de política educacional também para a rede de ensino público de São
Paulo. No ano seguinte, em 1996, o projeto Escola-Padrão foi descontinuado.
1.2.2.1 Escola de Cara Nova: Progressão Continuada e Regime de Ciclos
Conforme mencionado, o PSDB, em 1995, assumiu o governo do Estado de
São Paulo tendo no comando o governador Mário Covas e, como responsável na
pasta da Educação, Teresa Roserly Neubauer da Silva. A gestão do PSDB trazia
novos paradigmas de gestão com vistas a reorientar a reforma do Estado.
As Diretrizes Educacionais para o Estado de São Paulo (1995/1998)
sinalizavam também para a modernização da educação, objetivando superar a velha
dicotomia: quantidade versus qualidade. Para alcançar essa meta, várias medidas
foram implementadas, dentre as quais se destacam: as que sublinhavam a
necessidade de fortalecimento da autonomia administrativo-pedagógica das
24
Delegacias de Ensino e unidades escolares, delegando-lhes a responsabilidade de
acompanhar o cumprimento das metas estabelecidas.
Ainda visando a uma administração de políticas públicas austeras e
descentralizadoras, há que se mencionar o Decreto nº 40.673/96, posteriormente
alterado pelo Decreto nº. 40.889/96, que instituiu o Programa de Ação de Parceria
Educacional Estado-Município, para atendimento ao Ensino Fundamental,
consolidando o processo de municipalização iniciado em 1989, com o Decreto nº
30.375/89.
Esse ano é marcado pela reestruturação da Rede Física do Sistema de
Ensino Estadual de São Paulo que passou a divisão de escolas do Ciclo I, do Ciclo II
e Ensino Médio em prédios diferentes, alegando para tal a preservação da faixa
etária, física e pedagógica das crianças, bem como a concentração de professores
do mesmo nível de ensino, o que facilitaria a dinâmica organizacional, relacional e
pedagógica das unidades escolares.
Na época, essa decisão foi muito criticada pelos professores e seus
representantes porque significava, de acordo com seus argumentos, “um retrocesso
de 30 anos“, “dificuldade de acesso para as crianças que teriam que se deslocar de
perto de suas residências”, “arbitrariedade do governo que mudaria os professores
de suas unidades, destruindo o Projeto Pedagógico e Político das escolas” etc.
Por estes motivos, no segundo semestre de 1995, a APEOESP liderou uma
campanha contra essa reforma conjuntamente com pais, professores e alunos, que
não foi bem-sucedida, visto que a reorganização estrutural foi levada a cabo.
Com a promulgação da Nova Lei de Diretrizes e Bases Nacional em 1996,
Lei nº 9.394/96, novas flexibilizações de organização dos sistemas de ensino da
Educação Básica são contemplados. Portanto, os ciclos e outros tipos de
agrupamento aparecem indicados no artigo 23 dessa Lei, objetivando a melhoria do
ensino oferecido:
25
A Educação básica poderá organizar-se em séries anuais, períodos semestrais, ciclos, alternância regular de períodos de estudos, grupos não seriados, com base na idade, na competência e em outros critérios, ou por forma diversa de organização, sempre que o interesse do processo de aprendizagem assim o recomendar (LDB nº 9.394/96, Art. 23, grifos meus).
Analisando ainda a legislação das políticas educacionais do período, há que
se observar no Comunicado SE de 22 de março de 1995, as Diretrizes Educacionais
para o Estado de São Paulo, no período de janeiro de 1995 a 31 de dezembro de
1998, algumas assertivas quanto ao quadro educacional do período que
demonstrava índices de desempenho do sistema em sua ineficácia já que em 1992,
no Ensino Fundamental e Médio, as perdas por evasão e repetência alcançaram
1.476.000 alunos, o que representava cerca de 25% do total de alunos matriculados
na rede. Diante desse quadro, a Secretaria Estadual propôs as suas alternativas de
equacionamento desta problemática.
A atual administração considera a perda por repetência e evasão de 30% de todos os alunos que a cada ano freqüentam a escola estadual de primeiro e segundo graus, inexplicável do ponto de vista pedagógico, inaceitável do ponto de vista social e improdutivo do ponto de vista econômico. Assim, várias estratégias estimularão, entre outras ações, a organização da série em ciclos, a composição das classes basicamente por faixas etárias e a instrumentalização do professor e da escola, para trabalhar com grupos heterogêneos (Comunicado SE de 22/03/1995, grifos meus).
Ao se comparar ambas as leis e os períodos entre elas, vimos que as
políticas educacionais federais e estaduais, especificamente no caso de São Paulo,
estavam afinadas pelo mesmo pensamento teórico, até mesmo pelas afinidades
partidárias, já que o governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso e do
Governador Mário Covas eram do PSDB.
Em 1996 a Secretaria da Educação do Estado de São Paulo seguindo as
Diretrizes preconizadas pelo seu programa implantou na rede de ensino do estado
de São Paulo o projeto Reorganização da Trajetória Escolar – Classes de
26
Aceleração13, com a intenção de recuperar o percurso escolar dos alunos em
situação de defasagem idade/série, especialmente os multirrepetentes do Ciclo
Básico14 à 4ª série do Ensino Fundamental.
A implantação desse projeto contou com um programa de capacitação, com
duração de 120 horas anuais para a compreensão de seus pressupostos para
professores e especialistas de coordenação, supervisão e Assistentes Técnicos
Pedagógicos (ATPs) das Delegacias de Ensino15.
Em 1997, a deliberação CEE nº. 09/97 instituiu o Regime de Progressão
Continuada no Ensino Fundamental da Rede Estadual de Ensino de São Paulo.
Segue um trecho do documento:
(...) I - Progressão Continuada Com a finalidade de garantir a todos o direito público subjetivo de acesso, permanência, progressão contínua e bem sucedida no ensino fundamental, a Secretaria de Educação adotou o regime de progressão continuada organizado em dois ciclos, a saber : Ciclo I, correspondente as quatro primeiras séries e o Ciclo II., às quatro últimas séries do ensino fundamental. A progressão continuada em regime seriado está sendo prevista na LDB como mais um dos dispositivos que possibilitam as escolas realizarem propostas pedagógicas que caminhem para superação da cultura da repetência. A organização do ensino fundamental em dois ciclos amplia a experiência bem sucedida no Ciclo Básico na rede estadual. Hoje, as escolas já dispõem de condições favoráveis e adequadas à implementação do regime de progressão continuada. Nos últimos três anos, a Secretaria de Educação promoveu a reorganização da rede física , aumentou o número de horas para os alunos na maioria das escolas, propiciou a existência de coordenador pedagógico e horas de trabalho pedagógico ( HTP ) em todas as unidades escolares, de modo a permitir a avaliação sistemática do desempenho dos alunos, oferecendo-lhes oportunidades de recuperação contínua e paralela sempre que necessário. O momento, pois, é oportuno para a escola avançar e assumir propostas pedagógicas mais condizentes com as necessidades de aprendizagem dos alunos, que
13 Instituído pelo Parecer CEE n. º 170/96. A Proposta Pedagógica de Classes de Aceleração tinha por objetivo recuperar a trajetória dos alunos em situação de defasagem série/idade. Esta situação se refere a alunos que, após diversas retenções, perderam sua turma/classe de origem e acabaram por acompanhar alunos mais novos com interesses diversos aos seus. Como conseqüência, muitos desses alunos abandonam a escola ou permanecem desmotivados. (cf. http://www.crmariocovas.sp.gov.br/prp_a.php?t=012) 14 O gargalo de retenção que antes do CB era verificado na 1ª série transferiu-se para a 2ª série ou Ciclo Básico em Continuidade, também conhecido na rede por C.B.C. 15 Esses órgãos são chamados atualmente de Diretorias de Ensino.
27
respeitam efetivamente seus ritmos e tempos individuais (Deliberação CEE nº 09/97, grifos meus).
A Progressão Continuada, portanto, tinha por fundamental característica,
superar a fragmentação do currículo e oportunizar o ritmo de aprendizagem dos
alunos, contribuindo para uma diminuição das taxas de repetência e evasão escolar.
Para tanto, preconizava um trabalho coletivo forte e conciso no interior das escolas
para que pudesse realmente ser implantado.
A Secretaria Estadual da Educação de São Paulo considerou que as
condições já eram propícias para essa implantação pelo fato de haver
coordenadores pedagógicos nas escolas e os professores terem horas de trabalho
pedagógico em sua jornada. No entanto, a discussão e o debate que deveriam ter
sido feitos com os profissionais da rede para uma mudança desse aporte não foi
efetuada, o que gerou aos professores e profissionais da rede dificuldades de ordem
conceitual, organizacional e técnica, já que essa temática da progressão continuada
demandava novas formas de avaliação do processo ensino-aprendizagem,
concepções de recuperação e reforço, registros formativos dos alunos e a cultura de
avaliação externa.
É interessante mencionar neste momento, a etimologia da palavra
compreender neste caso da Progressão Continuada, utilizando as considerações de
Salles (2002):
Para que algo, uma coisa, um objeto qualquer seja realmente compreendido, é preciso que ele tenha ficado inteiramente dentro do poder de percepção de quem quer ou precise compreender tal objeto. Esse é um sentido etimológico forte e que não dá margem a nuanças; é uma coisa quase física , onde há continente e conteúdo bem definidos, onde o envolvimento é insular. Comprehendere, o verbo latino, significa, pelos dicionários, “amarrar”, “abranger”, “encerrar”, “envolver” e também por extensão, “perceber pelos sentidos”; quer dizer, praticamente cercar e possuir o objeto, seja ele abstrato ou concreto. É tão forte essa acepção assim de retenção que há uma última acepção presente nos dicionários de latim: comprehendere também significa “conceber” (a mulher ao filho), “engravidar”. Como engravidar vem de gravis, “pesado”, através de gravidus, “cheio”, é fácil verificar como é
28
concreta essa idéia original contida na palavra compreensão (p.55, grifos do autor).
Pela profundidade que se faz necessária a compreensão de algo,
exaustivas discussões, debates, análises, reflexões e inflexões deveriam ter ocorrido
entre a Secretaria de Educação e os professores e profissionais da rede, a fim de
que as lacunas fossem “cheias” e esse projeto “concebido” com os envolvidos.
Pela falta de participação da comunidade escolar, especialmente os
docentes na elaboração dessa proposta, a progressão continuada têm muitas vezes
sido tomada como “promoção automática” o que vem trazendo sérios problemas à
qualidade do ensino. As discussões realizadas na época da sua instituição, poucos
efeitos surtiram e o que tem se visto são práticas bastante errôneas levadas a cabo
por uma incompreensão “gerada” na própria rede, visto que a infra-estrutura de
grande maioria das escolas ainda continua organizada por série, bimestre, semestre
e ano, o que não permite uma avaliação formativa e contínua como preconizado
pela legislação.
Não se pretende neste estudo realizar críticas e análises mais profundas
sobre a progressão continuada, devido ao grande recorte instituído por razões de
tempo/espaço. No entanto, não se pode deixar de mencionar que a discussão
central dos professores não é o retrocesso à reprovação, pelos fatores que já foram
amplamente divulgados em diversos estudos, tais como: exclusão, cerceamento das
oportunidades, entre outros. O que se deseja salientar é que mesmo após oito anos
de sua implantação, muitas idéias ainda continuam nebulosas e confusas pela falta
de discussões mais próximas dos atores envolvidos: pais, alunos e os professores, a
fim de que a partir da compreensão da mesma, soluções para os problemas
apresentados sejam construídas nas escolas.
Ora, é óbvio que não é culpa dos profissionais da escola e da escola como
célula-menor de um sistema de ensino com as proporções da rede pública estadual
de São Paulo; mas, longe da romantização das ações dos professores, devemos
considerar que há sim maneiras de melhorar as condições locais de determinadas
29
escolas pela construção de um espaço realmente eficaz de trabalho coletivo.
Neste sentido há que nos sentirmos em parte satisfeitos com a “descoberta”
da Secretaria Estadual da Educação de que uma jornada de trabalho docente não
pode ser apenas composta por atividades em sala de aula, mas também por
momentos que permitam reflexão, análise e planejamento das atividades
desenvolvidas na sala de aula e na escola como um todo, do ponto de vista coletivo.
1.3 O Professor Coordenador e a HTPC na legislação
A presença de coordenação pedagógica na rede estadual paulista tem uma
história antiga. Na década de 1960, nas Escolas Experimentais e Ginásios
Vocacionais.; na década de 1970, nas Escolas Técnicas; na década de 1980 no
Projeto Noturno, nos Centros Específicos de Formação do Magistério – CEFAM e no
Ciclo Básico; na década de 1990, nas Escolas-Padrão como já foi visto
anteriormente. Entretanto, foi só em 1996, pela Resolução nº 28/96, que todas as
escolas passaram a contar com a coordenação, regulamentada depois pela Lei
Complementar nº 836/97:
Artigo 3.º - Para os efeitos desta lei complementar, considera-se: I - Cargo do Magistério: o conjunto de atribuições e responsabilidades conferidas ao profissional do magistério; II - Classe: o conjunto de cargos e de funções-atividades de mesma natureza e igual denominação; III - Carreira do Magistério: o conjunto de cargos de provimento efetivo do Quadro do Magistério, caracterizados pelo desempenho das atividades a que se refere o artigo anterior; IV - Quadro do Magistério: o conjunto de cargos e de funções-atividades de docentes e de profissionais que oferecem suporte pedagógico direto a tais atividades, privativos da Secretaria da Educação. (LC 836/97)
O novo plano de carreira instituído por essa Lei criou o posto de trabalho de
Professor Coordenador cuja forma de preenchimento e atribuições ainda não estão
30
clarificadas e são objetos de regulamentação:
Art. 5.º - Além das classes previstas no artigo anterior, haverá na unidade escolar postos de trabalho destinados às funções de Professor Coordenador e às funções de Vice-Diretor de Escola, na forma a ser estabelecida em regulamento. (...) – pelo exercício da função de Professor Coordenador, o docente receberá, além do vencimento ou salário do seu cargo ou da sua função-atividade, a retribuição correspondente à diferença entre a carga horária semanal desse mesmo cargo ou função-atividade e 40 (quarenta) horas semanais, na forma a ser estabelecida em regulamento (grifos meus).
Para uma maior elucidação, faz-se necessário clarificar os significados de
posto de trabalho, função e cargo na perspectiva da lei:
• Posto de Trabalho é “lugar, em determinada unidade administrativa,
necessário ao desempenho de uma função de serviço público16”
• Função: “conjunto dos direitos, obrigações e atribuições duma pessoa em
sua atividade profissional”, segundo dicionário Aurélio, e que no caso do magistério
público estadual, acontece por meio de designação;
• Cargo: definição de cargo público está inserida no art. 3º da Lei nº 8.112,
de 1990, que assim estabelece:
Art. 3o Cargo público é o conjunto de atribuições e responsabilidades previstas na estrutura organizacional que devem ser cometidas a um servidor. Parágrafo único: Os cargos públicos, acessíveis a todos os brasileiros, são criados por lei, com denominação própria e vencimento pago pelos cofres públicos, para provimento em caráter efetivo ou em comissão.
Sendo, portanto, o Professor Coordenador uma função-atividade, torna este
posto de trabalho instável, sujeito às intempéries da direção e dos professores, o
que constitui para muitos uma descontinuidade de trabalho, visto que há grande
flutuação de professores-coordenadores nas escolas que, movidos pela aparente
16 Lei Complementar nº. 180, de 12 de maio de 1978, art. 5º.
31
facilidade em retornar ao cargo de professor, não são estimulados a construir uma
trajetória consistente nas escolas que realmente resultem em mudanças no campo
pedagógico.
A manutenção da designação do Professor Coordenador na unidade escolar, com a recondução do docente, dar-se-á após a avaliação de seu desempenho, a ser realizada anualmente, por ocasião do início do ano letivo, pela Direção da unidade escolar e pelo Conselho de Escola, justificada com base no pleno cumprimento das atribuições previstas no artigo 2º desta resolução e devidamente registrada em ata. (Artº 14 da Resolução SE 66 de 3 de outubro de 2006)
Assim, voltando aos meandros da lei, o docente a ser designado para o
posto de trabalho de Professor Coordenador deve ter três anos de exercício no
Magistério Público Oficial da Secretaria do Estado da Educação de São Paulo e,
segundo o artigo 4.º do Decreto n.º 40.510 de 4 de dezembro de 1995, as unidades
escolares contarão com docentes designados para a função de coordenação
pedagógica nos períodos diurno e noturno.
Atualmente a designação do Professor Coordenador está regulamentada
pela Resolução SE nº. 66 de 03 de outubro de 2006, que preconiza como funções
desse profissional:
- integração curricular entre os professores de cursos, períodos e turnos diversos;
- elaboração, implementação e avaliação da proposta pedagógica da escola;
- aprimoramento do processo ensino-aprendizagem; - acompanhamento e avaliação do desempenho escolar dos
alunos; - formação continuada dos docentes; - articulação das ações da coordenação pedagógica e
otimização de recursos e parcerias com a comunidade; - dinamização de todos os espaços pedagógicos e
integração dos trabalhos da escola, das equipes de Supervisão e da Oficina Pedagógica da Diretoria de Ensino
Há que se observar, portanto, pela legislação, que as ações formativas são
32
inerentes à função da coordenação que deve ser a responsável em potencial nas
unidades escolares pelo planejamento e realização de atividades que visem ao
aprimoramento das técnicas e procedimentos para melhorar as aulas e a relação
professor/aluno/comunidade.
Pela necessidade da construção do coletivo observa-se que os HTPCs
devem ser organizados com a participação efetiva e coletiva dos professores a fim
de garantir a realização dos projetos pedagógicos que visem à integração horizontal
e vertical do currículo, à interdisciplinaridade e à transversalidade.
Ainda neste novo plano de carreira, estabeleceram-se duas modalidades de
HTP: as que devem ser cumpridas na escola para a realização de reuniões, de
outras atividades pedagógicas, de estudos, de caráter coletivo e de atendimento aos
pais de alunos e as que devem ser cumpridas em local de livre escolha do docente
destinadas a preparação de aulas e a avaliação do desempenho escolar dos alunos
(artigo 13 da Lei Complementar nº. 836/97).
As HTPs integram as jornadas de trabalho dos docentes, sendo, portanto,
obrigatórias:
Quadro 1: Correspondência de horas em sala de aula com horas de trabalho pedagógico
HORAS COM ALUNOS
HORAS NA ESCOLA
H.T.P.C
HORAS LIVRES
H.T.P.L
33 3 4 28 a 32 3 3 23 a 27 2 3 18 a 22 2 2 13 a 17 2 1 10 a 12 2 0
Diante do enorme desafio que está posto para o Professor Coordenador e
da complexidade das tarefas que deve executar, considera-se cada vez mais
premente que o Professor Coordenador torne-se sujeito de sua ação, propondo
33
para tanto, uma assunção de suas responsabilidades enquanto agente formador,
mas sem perder a dimensão histórica e política desse processo de formação, tendo
claro que não é somente no âmbito das unidades escolares que se fará a diferença
educacional, mas na coletivização de seu trabalho, inclusive, constituindo pares, é
que pode repercutir positivamente em seu fazer cotidiano.
O Professor Coordenador e os professores precisam ter a consciência de
que foi preciso muito tempo para que se compreendesse que a jornada de trabalho
do professor não se restringe ao seu desempenho em sala de aula. No entanto,
estamos longe ainda de ter uma distribuição adequada entre o trabalho extra-classe
e o reservado à situação de aula, propriamente dita.
Pode-se perceber que de forma obsoleta e tardia frente às demandas que
estão postas a escola hoje, a Secretaria Estadual de Educação reconhecer que o
trabalho do professor vai além de sua presença corpore e mens em sala de aula, ao
ser instituído o HTP no estatuto do magistério em 1985. Posteriormente, no interior
do Projeto Ciclo Básico, foi criado o HTPC.
Em 1990, com o projeto Escola-Padrão, o HTPC foi ampliado para os
professores de todas as séries das escolas participantes desse projeto e, somente
em 1997, foi estendido a todos os professores da rede.
Essa paulatina ampliação do HTPC é sinal de que, assim como em outros
países que já realizaram a democratização do acesso e a permanência escolar, a
viabilização de projetos pedagógicos diferenciados requer uma melhor distribuição
da jornada de trabalho docente e um espaço de interação social, pedagógico e
político instituído.
O HTPC deve, portanto, ser compreendido assim como Salles (2002) nos
remete à idéia de algo “gestado”, “envolvido” e “concebido”, como produto do
coletivo da escola e não encarado como uma medida meramente burocrática.
É oportuno ressaltar aqui, que esta análise não afirma que o HTPC é a
34
solução dos problemas postos aos educadores, uma vez que estamos longe das
condições ideais que seriam, por exemplo: a revisão da carreira com as suas
devidas equiparações, o fortalecimento da escola como instância democrática capaz
de formar o tão propalado cidadão crítico, uma política educacional voltada para as
pessoas e não para o capital. Nesse sentido, vale concordar com Nóvoa (1992):
A formação de professores deve ser concebida como um dos componentes da mudança, em conexão estreita com outros sectores e áreas de intervenção e não como uma espécie de condição prévia da mudança. A formação não se faz antes da mudança, faz-se durante, produz-se nesse esforço e inovação e de procura dos melhores percursos para a transformação da escola. É esta perspectiva ecológica de mudança interactiva dos profissionais e dos contextos que dá um novo sentido às práticas de formação de professores centradas nas escolas (p.28, grifos meus)
O autor complementa:
As decisões no domínio educativo tem oscilado entre o nível demasiado global do macro-sistema e o nível demasiado restrito da micro–sala de aula. Emerge hoje em dia um novo conceito de instituição escolar, essa espécie de entre-dois onde se decidem grande parte das questões educativas. Definem-se aqui os contornos de uma territorialidade própria onde a autonomia dos professores se pode concretizar.” (p.29, grifos meus)
Portanto, este espaço, entendido como uma possibilidade inter-relacional,
dialógica e de formação, não pode ao acaso tornar-se um espaço também de
libertação?
Nesse sentido, Freire (2002) evidencia:
Na verdade seria incompreensível se a consciência de minha presença no mundo não significasse já a impossibilidade de minha ausência na construção da própria presença. Como presença consciente no mundo não posso escapar à responsabilidade ética no meu mover-me no mundo. Se sou
35
puro produto da determinação genética ou cultural ou de classe, sou irresponsável pelo que faço no mover-me no mundo e se careço de responsabilidade não posso falar em ética. Isto não significa negar os condicionamentos genéticos, culturais, sociais a que estamos submetidos. Significa reconhecer que somos seres condicionados mas não determinados. Reconhecer que a História é tempo de possibilidade e não de determinismo, que o futuro, permita-se reiterar , é problemático e não inexorável. (p. 21, grifos meus)
Diante do exposto, faz-se necessário considerar que pensar o instituído
como algo rígido, implacável e imutável é desacreditar das possibilidades de
movimentação interna dos atores da Educação; é desacreditar do poder coletivo de
possibilitar mudanças; é desacreditar do sentido da existência e reedificar o
fatalismo como princípio.
36
CAPÍTULO II
O CAMINHAR DA PESQUISA
Este capítulo tem por objetivo caracterizar os aspectos teórico-
metodológicos da pesquisa, bem como refletir acerca dos instrumentos utilizados
explicando o porquê das escolhas realizadas e as dificuldades encontradas no
desenrolar deste caminho. Para tanto, o primeiro procedimento foi fazer uma
contextualização da pesquisa, partindo de algumas premissas do ponto de vista
profissional e da caracterização de alguns obstáculos encontrados pelas mudanças
vividas durante esta pesquisa, assim como explicitar os objetivos preconizados. Em
seguida, buscou-se uma reflexão sobre o tipo de pesquisa utilizado, sobre as
possíveis facilidades e dificuldades decorrentes desta escolha e sobre os
instrumentos que se fazem necessários à constituição da pesquisa como algo
relevante. Para finalizar, foi realizada uma caracterização da escola investigada, e
também, do corpo docente envolvido nesta observação.
Retomando a epígrafe que abre este capítulo, é esse objetivo de atentar ao
dito e ao não dito no percurso desta pesquisa, em que se procurou amplificar as
vozes, com vistas a apreender o significado das coisas, ações, acontecimentos dos
diferentes atores desta pesquisa. Ouvindo, pronunciando, engendrando o caminho
percorrido em busca de alcançar uma nova condição.
2.1 Contextualizando a pesquisa
O caminhar da pesquisa, título deste capítulo, foi escolhido para marcar o
aspecto paulatino em que foi constituída esta pesquisa, pois foi dessa forma que ao
longo do percurso no Mestrado foi-se desvelando que a análise do problema de
37
pesquisa era muito mais complexa e rica do que parecia no princípio, uma vez que
as variantes que envolviam este problema deviam ser vislumbradas sob todos os
prismas possíveis.
A análise do cotidiano envolve muito mais do que apenas descrever as
dinâmicas e as rotinas diárias. Envolve também, uma profunda reflexão e uma
investigação sobre a infinita gama de relações, papéis e representações dos sujeitos
neste cotidiano. O pesquisador deve estar atento a todos esses detalhes, pois do
contrário o seu estudo ficará muito superficial.
A riqueza das ações cotidianas está no “implícito”. Na percepção de como
as coisas diariamente são reconstruídas, recriadas, reutilizadas pelas sutilezas dos
acontecimentos que as permeiam. O “invisível” que torna-se “imprescindível” quando
paramos para estudá-lo, pormenorizadamente , com a curiosidade de enxergamos
como crianças o fato pela primeira vez, procurando a compreensão do que vemos
com outros repertórios que não sejam somente os nossos, mas também outros
referenciais.
Essa tentativa de mergulhar no cotidiano buscando novas significações
proporciona ilimitadas perspectivas, de tal sorte que denota a complexidade em que
as ações humanas estão embasadas. Portanto, torna-se emergencial perceber que
a subjetividade envolvendo todos os fatos, coisas e pessoas precisam ser levadas
em consideração para uma análise mais complexa e fidedigna daquilo que será
considerado como nosso objeto de estudo.
A complexidade inerente ao objeto de pesquisa educacional – que na
verdade é sujeito e não meramente um objeto – nos remete a uma tentativa de
compreender e entender todas as dimensões que o compõem e permitem visualizar
a totalidade e não a fragmentação desse ser.
Reconhecer a complexidade como fundamental em um âmbito de conhecimento dado é então, por sua vez, postular o caráter ‘molar’, holístico da realidade estudada e a impossibilidade de sua redução por recorte, por decomposição em elementos
38
mais simples. (ARDOINO apud MARTINS, 1995, p. 8).
Ao mesmo tempo essa consciência de que a pesquisa ocorre em um
terreno complexo permite ao pesquisador-sujeito compreender suas possibilidades e
suas limitações neste processo, tornando-o também sujeito histórico de sua história.
Essa complexidade nos permite apreender que não existe apenas uma
verdade pronta e acabada, mas sim, que a nossa verdade pode ser relativizada,
posto que o nosso “olhar” pode ser permeado por diferentes variáveis, uma vez que
este nosso “olhar” não se faz neutro, mas leva também as nossas implicações.
Implicação aqui entendida como aponta Barbier (apud Martins1985):
... Engajamento pessoal e coletivo do pesquisador em expor sua práxis científica, em função de sua história familiar e libidinal, de suas posições passadas e atual nas relações de produção e de classe, e de seu projeto sócio-político em ato, de tal modo que o investimento que resulte inevitavelmente de tudo isso seja parte integrante e dinâmica de toda atividade de conhecimento (p. 120).
Esse novo olhar nos proporciona descobrir que as reflexões e as
significações que fazemos acerca dos fatos, coisas e pessoas possuem muito da
nossa experiência, vivências e histórias e são transpostas ao nosso modus vivendi e
a nossa forma de encarar o mundo. Ao que parece, esse conhecimento torna
impossível ao pesquisador-sujeito encarar o seu problema de forma superficial, pois
mesmo que o faça por uma questão de tempo e síntese, saberá de suas escolhas e
terá consciência de que muitos outros pontos de sua pesquisa não foram levados
em consideração.
Conforme já foi mencionado na introdução, a problemática aqui suscitada
tem a ver com o objeto de trabalho inerente à coordenação pedagógica. Neste
momento, é oportuno um recorte retratando minha experiência na função de
Professora Coordenadora, para melhor explicitar como o estudo se desenvolveu. No
39
decorrer da pesquisa, devido às flutuações comuns ao serviço público em geral e,
especialmente ao fato de a coordenação na rede estadual ser posto de trabalho,
minha função sofreu alteração ao longo desse processo, por motivos burocráticos e
legais. Atualmente estou no cargo efetivo de PEB II17 em uma escola de Santo
André. Esse afastamento temporário da função de Professor Coordenador trouxe-me
significativo distanciamento da problemática do HTPC, do ponto de vista daquele
que notadamente coordena esse espaço. Entretanto, permitiu-me ver o outro lado da
moeda que neste caso é o pertencimento a um grupo de HTPC enquanto docente-
pesquisador que analisa as ações formativas no HTPC. Um enriquecimento como
este é algo muito produtivo do ponto de vista da problemática, já que vivenciei duas
diferentes posições, neste caso, hierarquicamente falando. No entanto, tornou-se
difícil ser imparcial, pois as minhas implicações neste caso são também de ordem
gestora.
Conhecer como se dá a formação continuada na escola, a partir do espaço
de aprendizagem do Horário de Trabalho Pedagógico Coletivo (HTPC) é o
propósito central dessa pesquisa. Para atingir esse objetivo, são destacados os
aspectos que devem permear essa análise:
• As contribuições da abordagem multirreferencial como fundamentação teórica
em confrontação com a observação realizada;
• As estratégias e táticas utilizadas pelos professores e Professor Coordenador
frente à burocratização do espaço de aprendizagem;
• O discurso, como meio de compreensão das concepções da realidade dos
professores e Professor Coordenador dos HTPCs observados.
2.2 Refletindo sobre o percurso metodológico: algumas observações
A metodologia ocupa um lugar importante no interior das pesquisas, uma
vez que ela faz parte essencial da visão social e está introduzida na teoria. Assim, “
17 Abreviatura de Professor de Educação Básica.
40
(...) a metodologia inclui as concepções teóricas da abordagem, o conjunto de
técnicas que possibilitam a apreensão da realidade e também o potencial criativo do
pesquisador.” (Minayo apud Marques, 1993, p.22).
O entendimento do quantitativo e qualitativo, do sentido da Ciência atual
tem implicações diretas na prática da pesquisa, tanto no que se refere ao trato com
os dados, como aos procedimentos de sua coleta.
Assim, nesta pesquisa foram utilizados dados quantitativos e qualitativos,
assumindo a sua complementaridade. Igualmente, a noção de ciência aqui
apresentada terá a ver com o reconhecimento e análise de circunstâncias
particulares e processos que os grandes números não captam e que requer a
presença física do pesquisador.
O estudo da dimensão subjetiva vai requerer um contato com os sujeitos, em situações formais ou informais de entrevistas individuais ou coletivas, de modo que lhes permitam expressar opiniões, pontos de vista, concepções e representações. A dimensão subjetiva tem estreita relação com os aspectos institucionais e instrucionais, e sua análise estará sempre voltada a uma ou outra dessas dimensões. (André, 2003, p.17)
A opção pela realização de um estudo de caso foi justamente por considerar
que esse estudo tem por primordial fundamento um acompanhamento mais
sistemático das dinâmicas escolares e, portanto, uma maior capacidade de
apreensão da realidade do cotidiano escolar. Nesse sentido, André (2003) ressalta
que a escola é um:
... espaço social em que ocorrem movimentos de aproximação e de afastamento, onde se produzem e reelaboram conhecimentos, valores e significados, vai exigir o rompimento com uma visão estática, repetitiva, disforme, para considerá-lo, segundo Giroux (1986), um terreno cultural caracterizado por vários graus de acomodação, constatação e resistência, uma pluralidade de linguagens e objetivos conflitantes ( p.15).
41
Não se faz necessário fazer grandes delongas no sentido de caracterizar os
outros tipos de pesquisa, já que desde o início foi previsto que o estudo de caso era
o mais adequado à proposição da pesquisa, uma vez que se tratava de uma
abordagem que poderia propiciar ao pesquisador elementos muito ricos da
cotidianidade.
...a ênfase no processo, naquilo que está ocorrendo e não no produto ou nos resultados finais. As perguntas que geralmente são feitas neste tipo de pesquisa são as seguintes: O que caracteriza esse fenômeno ? O que está acontecendo neste momento ? Como têm evoluído? (André, 2003, p.29)
Os dados qualitativos aqui utilizados se originam de duas fontes: as
documentais e as fontes orais. Foram consideradas de fontes documentais:
• Os documentos oficiais;
• Diretrizes emanadas diretamente do governo;
• Pareceres do Conselho Estadual da Educação;
• Planos Gestão , Proposta de Trabalho do Professor Coordenador e
Plano de H.T.P.C.
Tais fontes são constituídas por lei, leis complementares, decretos,
resoluções da Secretaria da Educação, orientações, etc.
Foram considerados documentos de fonte oral as informações obtidas
junto ao pessoal da escola através de:
• Entrevista semi-estruturada com a Professora Coordenadora da
escola observada;
• Questionários elaborados para o grupo de professores que
participavam do H.T.P. C. observado;
• Observação e registro de cenas, falas, interações em um H.T.P.C.
durante o primeiro semestre de 2006.
42
A entrevista com a coordenadora exigiu certa flexibilidade, pois foi marcada
e desmarcada pelo menos quatro vezes, alegando-se necessidade por parte da
coordenação de outros afazeres que eram de caráter emergencial. Tal aspecto foi
perfeitamente compreendido, pelo conhecimento e experiência pessoal neste posto
de trabalho em que muitas vezes as demandas são maiores do que a nossa
capacidade de acompanhá-las. No entanto, vale ressaltar que o Professor
Coordenador precisa mobilizar-se no sentido de planejar, mesmo que minimamente
as suas ações para não se tornar “refém” das emergências.
Tomar decisões diante de tantas solicitações, tantas emergências, tantos conflitos que representam o cotidiano escolar não é fácil. Usando de uma metáfora, como fizeram os depoentes, o coordenador está sempre diante de um labirinto de escolhas. É preciso ter sagacidade para definir alguns pontos e atacá-los com os recursos adequados, levando em conta a situação concreta da escola, inserida num sistema escolar mais amplo, e os seus próprios limites, profissionais e pessoais. (Almeida, 2003, p.45)
É oportuno mencionar também a importância de não se limitar a ação do
Professor Coordenador no âmbito da escola, visto que a sua atuação atinge uma
esfera mais ampla.
Esse registro tem como intuito apenas clarificar que muitas vezes o aspecto
pedagógico fica de lado nas escolas, não somente pela falta de comprometimento
ou vontade dos Professores Coordenadores que são atropelados pelo cotidiano,
mas pela falta de planejamento das políticas educacionais vigentes, que sequer
possibilita ao Professor Coordenador um tempo e espaço para reflexão sobre os
seus afazeres a fim de proceder a mudanças e adequações que forem necessárias à
sua prática.
Quando finalmente foi realizada a entrevista, esta trouxe importantes
contribuições à pesquisa conforme pode ser verificado no Capítulo III.
43
Quanto aos questionários entregues aos professores desse HTPC também
houve alguns problemas que são dignos de nota, visto que aconteceu uma demora
além do esperado para o retorno dos mesmos, bem como várias reposições por
diferentes razões, tais como: “perdi o questionário”, “esqueci em casa, depois trago”,
“fiquei com algumas dúvidas” etc.
Em um primeiro momento, foram entregues os questionários durante o
HTPC para que eles levassem para casa e respondessem. A coordenadora queria
que fosse realizada uma discussão da problemática de formação continuada no
próprio HTPC, mas depois de algumas ponderações, considerou-se que tal fato
poderia influenciar nas respostas dos mesmos.
Foi dado um prazo aos professores de uma semana para a devolução dos
questionários, no entanto, dos dez questionários entregues somente dois retornaram
no prazo marcado.
Alguns professores precisaram ter os questionários repostos pelos motivos
já citados acima. Importante registrar que, na entrega dos questionários, os
professores foram orientados de que se tratava de um objeto de pesquisa de caráter
sigiloso e que seria de primordial importância que eles os respondessem de forma
simples e direta. Ainda nas orientações, foi solicitado que os mesmos fossem
entregues à Professora Coordenadora da escola, no próximo encontro.
Explicitou-se ainda, que os professores ficariam livres da obrigatoriedade
da identificação, pois havia o receio de que eles se sentissem constrangidos pela
possível identificação de suas respostas ao se expressarem.
Esse episódio da resistência dos professores, ao que parece, foi bastante
significativo porque proporcionou algumas prévias análises, tais como:
1ª hipótese – os professores não deram importância a esse questionário por
não haver uma sistematização uma cultura de produção pelos professores da escola
são traços aparentes da condição de que não há aprendizagem qualitativa neste
44
momento, bem como o desinteresse que muitos professores demonstram com a
questão de preenchimento de fichas, relatórios etc. Isto mostra que a escrita é um
ato profundamente burocrático no espaço escolar, ou ainda, a descrença de que
pudesse haver algum retorno desse preenchimento, visto que os docentes já estão
habituados com a prática da escrita pela escrita sem haver devolutiva de suas
produções.
2ª hipótese – devido à grande empatia existente entre coordenação e
professores, os mesmos sentiram-se compelidos a proceder de forma protetora, pois
o questionário levantava algumas perguntas que poderiam comprometer a figura do
Professor Coordenador da escola. Pode ser um movimento de resistência a uma
reflexão que os levaria a constatar e materializar a profunda deficiência existente na
condução desse horário como formação contínua por muitos fatores, dentre os
quais, alguns inerentes à própria Professora Coordenadora .
Foi necessária outra tentativa para que finalmente os questionários fossem
coletados, mas desta vez o H.T.P.C foi destinado ao preenchimento e recolhimento
dos mesmos.
Ainda como parte da coleta de dados de fonte secundária, foram realizadas
observações no período de um semestre do horário de trabalho pedagógico desta
escola, bem como a análise dos Planos de coordenação e de H.T.P.C.
O uso da observação foi considerado eficaz como um recurso válido para a
coleta de dados, pois propicia oportunidade de conhecimento mútuo entre
professores e pesquisadora e plenifica o exercício de convivência das mesmas
partes em uma multiplicidade de aspectos e reações desencadeadas pela
participação em ações formativas desenvolvidas no horário coletivo.
A esse respeito André (2003) aponta que:
A observação é chamada de participante porque parte do princípio de que o pesquisador tem sempre um grau de interação com a situação estudada, afetando-a e sendo por
45
ela afetado. As entrevistas têm a finalidade de aprofundar as questões e esclarecer os problemas observados. Os documentos são usados no sentido de contextualizar o fenômeno, explicitar suas vinculações mais profundas e completar as informações coletadas através de outras fontes (p.28).
As reuniões das Horas de Trabalho Pedagógico Coletivo eram realizadas
em dois dias, sendo:
● Terças-Feiras: das 10:00 às 11:50min e 17:00 às 18:50 min;
● Quartas-Feiras: das13:30 às 15:30 min.
O horário de trabalho pedagógico observado acontecia às terças-feiras no
período compreendido entre 17h30 às 18h50, envolvendo um grupo de 10
professores, sendo alguns do período diurno e outros do período noturno.
Este HTPC foi escolhido, primeiramente, porque se constituía em uma
amostra mais complexa, visto que envolvia professores dos diferentes turnos e,
portanto, poderia oferecer algumas variantes importantes; e, em segundo lugar,
porque contava com maior regularidade de realizações, visto que as convocações
para reuniões da Diretoria de Ensino aos Professores Coordenadores eram
concentradas no período diurno.
Devido à heterogeneidade deste grupo a observação tornou-se rica e a
diversidade de compreensão trazida pelas respostas dos questionários permitiu ao
estudo a possibilidade de tomar contato com as diferentes interpretações das
situações vivenciadas nas reuniões. As observações aconteceram no período
compreendido entre março e junho de 2006:
Quadro 2: HTPCs observados
DATA TEMA PRESENÇA DA P.C.
07/03/2006 Saresp Sim
14/03/2006 Informes Da Escola Sim
21/03/2006 Habilidades/Competências Sim
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28/03/2006 Habilidades/Competências Sim
04/04/2006 Sem Pauta Não
11/04/2006 Avisos Não
18/04/2006 Informes Sim
25/04/2006 Sem Pauta Não
02/05/2006 Avaliação Sim
09/05/2006 Artigo Sobre Tipos De Morte Sim
16/05/2006 Caso Do Aluno João Sim
23/05/2006 Organização Festa Junina Sim
30/05/2006 Organização Festa Junina Sim
06/06/2006 Sem Pauta Atendimento à Mãe
13/06/2006 Questões Do Enem Não
20/06/2006 Sem Pauta Não
27/06/2006 Informes Sim
Pelo calendário escolar, estava prevista a realização de dezessete
encontros no primeiro semestre. Desse montante, onze reuniões foram realizadas
com a presença da Professora Coordenadora e seis reuniões foram feitas sem a
presença da coordenação, sendo que um destes encontros foi liderado pela direção
da escola.
Os temas tratados não possuíam uma seqüencialidade e não tinham
vínculos entre si. Os temas Habilidades e Competências e a organização da Festa
Junina foram pauta de mais de um encontro. Ainda, quatro HTPCs não tiveram
pautas definidas e abordaram assuntos diversos.
A metodologia utilizada para a condução das reuniões pôde ser assim
classificada:
� Em seis encontros, foram utilizados textos teóricos para discussão;
� Em cinco reuniões, houve ‘troca de experiências’, ainda que não
sistematizadas; (consideraremos para fins de classificação assuntos
sobre alunos, mesmo que sem proposições de encaminhamento);
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� E nos seis encontros restantes, o método expositivo para informes,
avisos e aspectos organizacionais da escola.
As reuniões de H.T.P. C. não aconteciam em um lugar específico, pois a
escola não possuía sala ociosa. Portanto, a reunião era realizada na sala dos
professores, fato que tornava muito difícil o fluir da mesma, já que constantes
interrupções aconteciam tanto pela entrada de funcionários como de outros
professores que não participavam dessa reunião e, também, de alunos que queriam
conversar com os professores.
Participaram desta reunião dez professores, sendo quatro professores de
Português, um professor de Matemática, dois professores de Ciências, um professor
de Geografia, um professor de Filosofia e um professor de Educação Física.
Quadro 3: Caracterização dos professores participantes do H.T.P.C.
Professor Área Tempo de magistério
P1 GEOGRAFIA 12
P2 PORTUGUÊS 11
P3 FILOSOFIA 11
P4 MATEMÁTICA 08
P5 PORTUGUÊS 16
P6 CIÊNCIAS 15
P7 PORTUGUÊS 08
P8 CIÊNCIAS 17
P9 PORTUGUÊS 03
P10 EDUCAÇÃO FISICA 10
Deste grupo, seis contavam com mais de dez anos de magistério, três
professores estavam entre cinco e dez anos e um contava com menos de cinco anos
de profissão. Esse dado é bastante relevante, pois pudemos verificar os diferentes
entendimentos sobre formação contínua entre os grupos de professores recém-
formados e os que possuíam maior tempo de serviço.
Ficou evidente na análise desses dados que a formação inicial recebida
48
perpassou também a idéia de ensino-aprendizagem que esses professores levaram
para a sua vida cotidiana e que reflete muitas vezes numa resistência aos novos
modelos de formação, como também no conflito entre a teoria preconizada e a
práxis do docente.
A escolha da escola não obedeceu a nenhum critério técnico pré-
estabelecido. Deu-se por ser o lugar onde eu lecionava, o que sobremaneira
facilitaria o trabalho de pesquisa, visto que a circulação entre as diferentes situações
da escola enriqueceria os dados.
É importante mencionar também que essa aparente facilidade realmente
poderia afetar a imparcialidade da pesquisa, uma vez que a circulação entre os
pólos facilita, mas traz também um pertencimento deveras arraigado que muitas
vezes dificulta o distanciamento necessário em um estudo dessa natureza.
André (2003) observa que um dos grandes problemas de pesquisas do tipo
etnográfico é a confusão existente entre sujeito e objeto de estudo, e que o grande
desafio neste caso é:
(...) saber trabalhar o envolvimento e a subjetividade, mantendo necessário distanciamento que requer o trabalho científico. Distanciamento que não é sinônimo de neutralidade, mas que preserva o rigor (...) sendo o estranhamento – um esforço sistemático de análise de uma situação familiar como se fosse estranha (p.48).
Portanto, para se ter um maior cabedal de perspectivas considera-se que os
questionários e a entrevista com a coordenação poderiam oferecer outras visões
acerca das ações formativas desenvolvidas na escola, sendo uma forma de não
apenas lidar com as nossas significações, mas também com a dos outros;
ultrapassando e admitindo outras lógicas de entender o problema.
Algumas observações foram registradas em um diário de campo e outras
foram gravadas em fitas cassetes (nem todos os encontros foram gravados). Os
registros tinham como objetivo captar os acontecimentos, temas discutidos e as
49
relações travadas nas reuniões em contraposição ao entendimento do que é
formação contínua daquele grupo.
Essas observações, registros escritos e gravados, exaustivamente
avaliados, foram transformados em nove cenas que se constituem de pequenos
fragmentos das ações desenvolvidas na reunião e que suscitam na análise uma
iniciativa de compreender o fenômeno educacional ali presente. Tais aspectos
encontram-se detalhados no Capítulo III deste estudo.
2.3 Um olhar sobre a escola: caracterizando o espaço pesquisado
A escola pesquisada localiza-se em uma região de Santo André, de fácil
acesso às zonas periféricas da Zona Leste de São Paulo. Por esta razão, grande
parte dos alunos é oriunda do Parque São Rafael, São Mateus e Parque São Lucas.
O interesse dos pais por essa escola justifica-se pelo fato de que muitas
escolas da Zona Leste, próximas as suas residências, apresentam alto índice de
violência intra-escolar, desorganização funcional e administrativa, além de as
condições de ensino-aprendizagem serem precárias. Por isso, os pais preferem
fazer um esforço no sentido de pagar transporte aos filhos e propiciar-lhes uma
melhor oportunidade de formação.
Essa escola é da rede estadual de ensino e está reorganizada para receber
alunos do Ensino Fundamental/Ciclo II e Ensino Médio. Conta com quinze salas de
aula, sendo uma delas, classe de recursos para deficientes visuais, já que esta
escola tem alunos deficientes visuais nas salas regulares. Algumas dessas salas
não possuem mesas e cadeiras para os professores que improvisam utilizando-se
de carteiras de alunos, a fim de compor o seu espaço. Mas, no geral, as salas têm
boas condições de uso.
A escola funciona em três turnos, sendo dois diurnos e um noturno. Nos
períodos da manhã e noite é oferecido o Ensino Médio e à tarde o Ensino
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Fundamental (5ª a 8ª séries). No Ensino Fundamental há 631 alunos e no Ensino
Médio 569 alunos, de acordo com plano gestão de 2003/2006.
O núcleo de gestão conta com um diretor, um vice-diretor e um Professor
Coordenador diurno. No período noturno não há esse profissional porque o número
de classes é insuficiente de acordo com a legislação vigente para a criação da
função. Os três membros da gestão escolar mantêm uma escala de trabalho bem
distribuída, o que permite que a escola tenha sempre um dos responsáveis pela
escola nos diferentes períodos.
O quadro administrativo conta com quatro oficiais de escola, um secretário,
um inspetor de aluno, cinco serventes, um zelador e quatro pessoas da frente de
trabalho18. Dos quarenta e quatro professores que a escola possui, trinta e um são
professores efetivos.
No aspecto organizacional, a escola não apresenta grandes problemas. Os
funcionários de uma maneira geral, tanto os da Secretaria quanto os dos Serviços
Gerais da escola, argumentam que há falta de funcionários e falam da sobrecarga
das tarefas; mas esse é um dado que realmente não é preponderante nesta escola,
já que todas as funções administrativas e de manutenção têm um bom desempenho
e dão conta das atividades de suas responsabilidades. Talvez fosse necessário
mais um inspetor para uma melhor distribuição de tarefas, mas vale salientar que a
inspetora dessa escola é extremamente comprometida e eficiente em sua função.
Nas questões de infra-estrutura, a escola apresenta boas condições.
Dispõe de biblioteca que possui sistema de empréstimo aos alunos e uma
professora readaptada na função de bibliotecária. Devido ao grande esforço dessa
professora, a biblioteca encontra-se bem organizada e possui um controle adequado
dos volumes que entram e saem desse recinto.
18 Frente de Trabalho: projeto do governo do Estado de São Paulo que objetiva: proporcionar ocupação, qualificação profissional e renda para trabalhadores desempregados por meio de uma atividade produtiva e curso de qualificação profissional. O bolsista permanece no programa por até nove meses, com jornada de atividades de 6 horas diárias, quatro dias por semana e se obriga a participar, no quinto dia, de um curso de qualificação profissional ou alfabetização. O bolsista recebe mensalmente uma bolsa-auxílio; cartão alimentação; seguro de acidentes pessoais e auxílio-deslocamento, quando for o caso.
51
Possui também sala de informática, com onze equipamentos interligados à
rede de Internet. No entanto, somente nove têm plenas condições de uso. A grande
dificuldade para a utilização deste recurso pelos professores consiste em
desconhecimento dos procedimentos mínimos de uso do computador, organização
da sala e número de alunos por equipamento. Outro problema também é o acesso,
que se torna difícil pela quantidade de chaves e portas, o que demanda muito tempo
e contribui para a inviabilização de sua utilização em aulas com duração de
cinqüenta minutos. A escola conta com um laboratório, mas as condições são
precárias. Não possui mobiliário adequado e há poucos materiais específicos.
Pela análise do Plano Escolar dessa escola, os objetivos gerais são
fundamentados na Lei 9394/96, que estabelece as Diretrizes e Bases da Educação
Nacional. Assim, busca-se oferecer a todos os alunos a formação básica para a
cidadania, a partir da criação na escola de condições de aprendizagem para o
desenvolvimento de competências e habilidades que proporcionem uma atuação
ativa e critica na sociedade. O Projeto Pedagógico da escola de acordo com o Plano
2003/2006 tem como objetivos:
... a intenção de contribuir para a formação do cidadão, levando o aluno a conscientizar-se sobre o seu papel como agente atuador e modificador do meio em que vive, e conhecendo-o como um todo, global, e o que pode ser feito para melhorar o ambiente hoje e para que futuras gerações possam usufruir de planeta saudável... Trabalhar o aluno como cidadão é trabalhar seus direitos e deveres e ensinar-lhes como e quando usá-los. A escola tem como objetivo orientar os alunos para que tenham um futuro promissor... (p. 7).
Os eixos temáticos para o projeto da escola foram o Meio Ambiente para o
1º semestre e Direitos Humanos para o 2º semestre de 2006.
A articulação dos temas, assim como o seu desenvolvimento e
acompanhamento, segundo o documento, registrou que esses aconteceriam nos
HTPCs, durante todo o ano letivo.
52
CAPÍTULO III
CENAS DO HTPC DE UMA ESCOLA:
OBSERVAÇÕES DO COTIDIANO À LUZ DOS TEÓRICOS
Considerando o que foi exposto nos capítulos anteriores, são apresentadas
a seguir, as contribuições da literatura que nos possibilitaram a compreensão de que
o cotidiano é um rico instrumental para o engendramento nas questões do senso-
comum e o lugar do HTPC como possibilidade do entrelaçamento entre saberes e
saberes-fazeres e caracterizando-se por sua circunscrição temporal e histórica,
especialmente, pelo movimento de formação contínua dos docentes.
A partir da fundamentação teórica presente neste capítulo, o estudo
procurou estabelecer neste momento uma aproximação com os dados da pesquisa,
no intuito de detectar práxis e teoria, buscando suas convergências e divergências
numa perspectiva de desvelar se há inventividade e criatividade quando os sujeitos
se apropriam de algo instituído socialmente (neste caso específico, instituído pela
legislação) e se reapropriam disso produzindo diferenciações em sua utilização e em
seu resultado.
Para realizar o entrelaçamento das impressões observadas, foram utilizadas
as cenas registradas como elementos geradores da análise, juntamente com os
dados coletados na entrevista com a Professora Coordenadora, dos questionários
preenchidos pelos professores e dos Planos de Gestão e de HTPC.
3.1 Entre táticas, estratégias, espaço e tempo – conceitos adotados nesta
pesquisa.
Certeau (2000) traz a esta investigação a observação dos movimentos
53
subliminares existentes nas práticas cotidianas e no cotidiano em si. Há muito tempo
as pessoas têm vislumbrado esse termo cotidiano, relacionando-o com ações
repetitivas e uniformizantes, muitas vezes, inclusive, fazendo trocadilhos com o
termo rotina. Nesse sentido, o autor aponta que:
O cotidiano é aquilo que nos é dado cada dia (ou que nos cabe em partilha), nos pressiona dia após dia, nos oprime, pois existe uma opressão do presente. Todo dia, pela manhã, aquilo que assumimos, ao despertar, é o peso da vida, a dificuldade de viver, ou de viver nesta ou noutra condição, com esta fadiga, com este desejo. O cotidiano é aquilo que nos prende intimamente, a partir do interior. É uma história a meio-caminho de nós mesmos, quase em retirada, às vezes velada. Não se deve esquecer este “mundo memória”, segundo a expressão de Peguy. É um mundo que amamos profundamente, memória olfativa, memória dos lugares da infância, memória do corpo, dos gestos da infância, dos prazeres. Talvez não seja inútil sublinhar a importância do domínio desta história “irracional” ou desta “não-história” , como o diz A. Dupront. O que interessa ao historiador do cotidiano é o Invisível... (p.31).
O cotidiano, portanto, segundo Certeau (2000), é constituído de importantes
elementos que, aparentemente simplórios, possibilitam desvelar que por trás de
práticas comuns há um vasto território a ser descoberto.
Em consonância com esse autor, vale trazer para esta discussão as
considerações de Grispun (2001):
O que acontece no cotidiano (...) não pode ser visto apenas de fora para dentro, isto é, como algo que aconteceu (...) [ali mesmo] e será analisado por terceiros; é preciso ver também o que o sujeito fez para que isso acontecesse, sua parte (potencialidade) e como reagiu ao que aconteceu, enquanto outros também agiram (possibilidade). A prática social mostra sua verdade no cotidiano, quer se relacione à arte, à filosofia ou à política... ( p. 54, parênteses do autor).
De acordo com essa concepção, o que aparentemente parece ao sujeito
leigo apenas a massificação institucionalizada e repetitiva, na verdade, se observada
54
de forma mais atenciosa, pode desvelar o movimento instituinte por parte dos
sujeitos, homem ordinário, comum. Pode ter espaço através da “antidisciplina” para
a superação da homogeneidade, ou seja, apesar dos mesmos sistemas a
inventividade e a criatividade dos indivíduos produzem novas formas de uso e
consumo de todas as coisas instituídas. Essa capacidade latente, muitas vezes,
invisível a uma visão superficial das coisas, só pode ser desvelada quando a
observação do pesquisador ultrapassa o senso comum e olha a realidade com um
olhar de complexidade.
Nesse contexto Adorno (apud Barbosa, 1998) ressalta:
O perscrutador atento às nuances, aos pequenos gestos, ao sutil jogo entre a opressão e a liberação que se trava, não nas arenas grandiosas dos embates políticos ou armadores, mas no tecido fino da vida social(...) Fazer falar o emudecido(...) É que nele toda a experiência histórica imediata, a qual não é em absoluto indiferente, passa direto pela malha fina da própria inserção pessoal no mundo, pela biografia, em suma, mas não por uma biografia narcisista e complacente, e sim pela busca na própria carne das condições para combater bom combate, nas circunstâncias dadas: a defesa da diferença qualitativa, da particularidade, da individualidade ameaçadas pelo avanço da sociedade como totalidade integrada e tendenciosamente assimiladora universal (p.23).
A complexidade entendida desta forma desvela as infinitas gamas de
relações existentes nas práticas sociais. Essas práticas tecidas no cotidiano pelo
homem comum não expressam apenas uma reação individual, pois cada um traz em
si uma pluralidade incoerente de suas determinações relacionais.
Há o reconhecimento da capacidade que existe na ação ou prática do
Homem Ordinário (ou o homem da rua ou homem comum; um praticante) que com
seu modo de ser de astúcias (táticas de invenção no espaço; criador de artimanhas,
de embates, de projetos etc.), diante das estratégias (ações próprias do dominador),
recria no cotidiano práticas de vida, deixando desvelar seus desejos e seus sonhos,
um “fazer com". O cotidiano do ser ordinário revela seres não passivos, seres
55
críticos, seres abusados, seres criativos... É só crer para ver ali nas redes.
O cotidiano ao qual Certeau (2000) se refere é o espaço de criatividade, de
belas práticas que clamam por serem desvelados e mostradas no que elas contêm
da humanidade humanamente vivida “para com”. Diante das estratégias do
dominador, se desvelam as táticas do homem mergulhado no cotidiano.
(...) a ação calculada que é determinada pela ausência de um próprio. Então nenhuma delimitação de fora lhe fornece a condição de autonomia. A tática não tem por lugar senão o do outro. E por isso deve jogar com o terreno que lhe é imposto tal como o organiza a lei de uma força estranha (p.100).
A estratégia, do sujeito de querer e poder, ao ser isolada, torna-se
estratégia. Já a tática...
é o movimento “dentro do campo de visão do inimigo” (...), e no espaço por ele controlado. (...) Ela opera golpe por golpe, lance por lance. Aproveita as “ocasiões” e delas depende, sem base para estocar benefícios, aumentar a propriedade e preverem saídas. O que ela ganha não se conserva. Este não-lugar lhe permite sem dúvida mobilidade, mas numa docilidade aos azares do tempo, para captar no vôo as possibilidades oferecidas por um instante. Tem que utilizar, vigilante, as falhas que as conjunturas particulares vão abrindo na vigilância do poder proprietário. Aí vai caçar. Cria ali surpresas . Consegue estar onde ninguém espera. É astúcia. (Certeau, 2000, p. 101)
Nesse sentido, essa visão de cotidiano implica em uma postura ou em uma
atitude de envolvimento e pertencimento frente ao cotidiano vivido, porque não há
outra maneira de se compreender a lógica do cotidiano se não estivermos
inteiramente mergulhados nele.
Certeau (2000) constata micro exercícios (táticas) de oposição e
afrontamentos (quase sempre corajosos) contra as estratégias incluídas no cotidiano
pelos aparatos de repressão, eles mesmos, em constantes aberturas aos fazedores
ou praticantes, de brechas. Essas brechas abertas pelos “deslizes” dos aparatos ou
56
abertos “a tapa” pelos praticantes inventivos do cotidiano, acaba por solidificar
efêmeras recriações e transcriações, ganhando mais oxigênio de viver aí mesmo.
É o observar do repetitivo, o observar aquilo que corrompe corajosamente o
ritmo morno das horas. Isso significa buscar compreender como os sujeitos ou
pessoas mergulhadas na existência cotidiana (re)começam, (re)criam, (re)tomam ali
mesmo a transformação (de si e do cotidiano de si) e por quais caminhos
(modificações graduais ou por saltos arriscados e vorazes).
(...) [existem] Mil maneiras de jogar/desfazer o jogo do outro, ou seja, o espaço instituído por outros, caracteriza a atividade, sutil, tenaz, resistente, de grupos que, por não terem um próprio, devem desembaraçar-se em uma rede de forças e de representações estabelecidas. Têm que “fazer com” (p. 79, grifos do autor).
O cotidiano não é apenas um lugar/espaço onde se cristalizam os modos
disciplinares ou de construção de hábitos e atitudes, de elaboração (e interiorização)
de conceitos, mas nele o espaço é de afirmação de identidades e autorias, espaço
do ouvir e do falar.
O cotidiano é um espaço privilegiado de reflexão da prática educativa
cotidiana, ao promover a discussão e (des)velamento dessas relações. O cotidiano é
tecido pelas necessidades cotidianas, pelos fazeres e saberes de todos nós que o
compartilhamos.
Trata-se, portanto, de uma “antidisciplina” na arte do fazer que agrega
táticas e estratégias como forma de superar a cotidianidade aparentemente
homogênea
Isso permite ressaltar que mesmo em sistemas altamente
institucionalizados, por exemplo, o léxico, os códigos sociais e a linguagem podem
produzir superações no modo em como produzimos os atos, discursos e uso.
57
Outra importante contribuição de Certeau (2000) para este estudo é a
distinção que o autor faz entre lugar e espaço que fundamenta a análise do HTPC,
como espaço de aprendizagem: “Lugar é a ordem (seja qual for) segundo a qual se
distribuem elementos nas relações de coexistência (...) Um lugar é, portanto, uma
configuração instantânea de posições. Implica uma indicação de estabilidade(...O
espaço é o lugar praticado).” (p.201, parênteses do autor)
A estabilidade do lugar está na questão de, por meio de algo, no caso o
HTPC, colocar pessoas em relações sociais. Sendo assim, o movimento instituinte-
instituído possibilita novas organizações, interações, relações.
Por isso o HTPC posto pela regulamentação de que ele constitui parte da
jornada do professor, confere ao mesmo o significado de lugar (no sentido da
coexistência). Mas a movimentação das relações humanas no jogo da convivência
pessoal-profissional imprime ao HTPC o “ status” de espaço.
Além do espaço fixo onde se encontram, no caso o Professor
Coordenador e os professores, há o espaço virtual, onde a ação é percebida, e,
ainda, todos os espaços do imaginário e do inconsciente vividos/projetados pelos
participantes, além do espaço intersubjetivo, que é quando esses espaços se
cruzam e produzem, novamente, mais espaços.
ESPAÇO VIRTUAL
PROFESSOR – COORDENADOR PROFESSORES
ESPAÇO REAL
58
A questão então é: que sentidos são dados às práticas por aqueles que as
praticam? Por que não partir dessas práticas/lugares, do que estão produzindo, do
que criam de sentido, das questões que delas emergem? Por que são sempre
consideradas como algo menor, um quase “não-lugar” onde o caminho é sempre de
algo superior em direção aquilo que é considerado menor?
Em relação ao tempo, há que se observar a ineficiência do conceito fechado
de tempo datado, marcado pelo relógio. O tempo comum, aqui, paradoxalmente, não
é o datado, mas o experimentado, o tempo convivido, compartilhado, o tempo
intersubjetivo.
Nesse contexto Borba (2003) evidencia que “(...) o tempo que é
didaticamente importante não é o tempo do relógio e sim o tempo emocional, o
tempo perpassado por uma densidade emocional. Tempo que é definido por uma
história, ou histórias, pessoal” (p. 51).
Sobre essa concepção de tempo, encontram-se neste capítulo algumas
reflexões que baseadas nas falas, cenas e depoimentos dos participantes desta
pesquisa, serão discutidos mais adiante.
A título de conclusão, os marcos teóricos utilizados nesta pesquisa são os
aqui tratados; portanto, com base nessas concepções, propõe-se a partir de agora a
análise dos dados coletados.
3.2 As representações dos professores e do Professor Coordenador sobre a
formação contínua no HTPC
Estamos, na atualidade, vivendo transformações políticas, econômicas,
59
sociais e educacionais. As mudanças na Educação se evidenciam, principalmente,
em virtude das reformas que têm se constituído como uma ação globalizada.
Todo esse esforço tem acrescido novas exigências ao professor, tornando
mais complexa a função docente, pois hoje a ação desse profissional não se limita
apenas ao domínio cognitivo, mas pressupõe, também, a capacidade de dar conta
das mudanças curriculares, lidar com a violência, facilitar a aprendizagem, organizar
o trabalho em grupo, cuidar do equilíbrio afetivo do aluno, assumir o papel de
assistente social, compor com a família no desenvolvimento de princípios éticos e
morais, incluir alunos com necessidades especiais à turma etc.
Fala-se em competência profissional docente, mas diariamente reforça-se o
discurso da “incompetência”, revelada por meio dos índices de analfabetismo,
evasão, má qualidade dos serviços públicos, sobretudo da escola pública, atestada
pelas avaliações institucionais (SAEB, SARESP, ENEM etc)19 que indicam aos
leitores desses dados, um profissional mal formado, sem competência para realizar
um bom trabalho de formação com as crianças e com os jovens.
Foi a partir desse quadro avaliativo que a formação contínua dos docentes
ganhou grande destaque nas discussões nas mais diferentes instâncias e tem sido
tratada como possibilidade real de alavancar a qualidade da educação pública.
A formação contínua dos docentes tem,ao longo dos momentos históricos,
recebido diferentes padronizações, conformações e características impressas ao
sabor das correntes e tendências pedagógicas vivenciadas pela mesma ou pelas
políticas educacionais das diferentes agremiações partidárias-políticas, uma vez que
não é algo descolado da realidade. Portanto, muitos termos foram utilizados para
caracterizar os cursos que os professores que já estavam em serviço faziam.
A partir das concepções de Marin (1995) é possível apontar que:
19 SAEB – Sistema de Avaliação da Educação Básica; SARESP – Sistema de Avaliação e Rendimento do Estado de São Paulo e ENEM – Exame Nacional do Ensino Médio. Essas são avaliações externas que medem a qualidade do ensino público no Brasil e indicam as dificuldades a serem trabalhadas pelos profissionais e teóricos da Educação.
60
• O termo “reciclagem” traz a idéia de descartabilidade dos conhecimentos, o
que acarreta em ações formativas descontextualizadas, rápidas e superficiais;
• “Treinamento” corrobora para a concepção de padronização e modelagem
das ações, numa perspectiva tecnicista e mecânica, o que seria discordante
com os princípios norteadores da Educação;
• “Aperfeiçoamento” implica na idéia de incompletude, uma tentativa de
habilitar, convencer, persuadir no intuito de tornar perfeito.
• “Capacitação” traz à tona a idéia de tornar-se capaz numa função curativa e
remediadora.
Marin (1995) explica que Educação permanente, formação continuada, e
Educação continuada são termos que podem ser colocados no mesmo bloco, pois
são similares. Embora admitindo que existam nuanças entre esses termos,
considera que são complementares e não contraditórios, uma vez que colocam
como eixo da formação o conhecimento que se constitui no suporte das interações
que possibilitam a superação dos problemas e das dificuldades. Constatando a
multiplicidade de significados, a autora indica que lhe parece que a terminologia
educação continuada...
...pode ser utilizada para uma abordagem mais ampla, rica e potencial, na medida em que pode incorporar as noções anteriores – treinamento, capacitação, aperfeiçoamento – dependendo da perspectiva, do objetivo específico ou dos aspectos a serem focalizados no processo educativo, permitindo que tenhamos visões menos fragmentárias, mais inclusivas, menos maniqueístas ou polarizadoras (Marin, 1995, p. 19).
Dentro desse contexto, neste estudo foi feita a opção pelo uso de formação
continuada, para fazer referências aos processos de formação do educador que já
concluiu sua formação inicial e exerce sua profissão, uma vez que é o termo usado
pela maioria dos educadores que apontam para a discussão e/ou para a proposição
de projetos que levam em conta um professor inserido em um contexto sócio-
histórico e que tem como função transmitir o conhecimento socialmente acumulado
61
em uma perspectiva transformadora da realidade (Mazzeu, 1998; Lima, 2001;
Belintane, 2002; Pimenta e Ghedin, 2002; Gatti, 2003; Geglio, 2003; entre outros).
Segundo essa análise os diferentes termos reciclagem, capacitações,etc
trazem em seu bojo concepções diferentes sobre como um profissional em exercício
aprende, bem como sobre o atendimento aos objetivos específicos da educação
pública em determinado período, procurando ações rápidas para possíveis
operações “tapa-buraco” na educação pública.
As implicações deste ou daquele termo têm a ver com a ideologia
subjacente e na maioria das vezes, têm a ver também com a falta de
comprometimento com a educação que aparentemente vive somente de “modas
educacionais” e, portanto, não se definem como políticas educacionais sérias e de
longo prazo.
A esse respeito, Carvalho e Simões (2002) afirmam que:
De modo geral, os autores dos diferentes artigos tendem a recusar o conceito de formação continuada significando treinamento, cursos, seminários, palestras, etc. assumindo a concepção de formação continuada como processo que encontra na sua centralidade no agir dos educadores no cotidiano escolar (p. 189, grifos meus).
Isso deixa claro que ações isoladas, desconexas, superficiais e aligeiradas
propostas externamente não podem ser encaradas como situações formativas
efetivas, pois a singularidade de cada escola precisa constituir um projeto de
formação que contemple as suas reais necessidades, as quais tornam-se
impossíveis de serem resolvidas sem uma estratégia intencional de formação
contínua docente. Essa nova perspectiva de formação traz infinitas possibilidades de
condução porque leva em conta as diferentes características dos grupos.
Fusari (1997) afirma que a escola “é espaço e tempo de formação
profissional no local de trabalho e a partir dele (...) a formação contínua, exatamente
ao contrário da inicial, é infinita enquanto possibilidade de crescimento pessoal-
62
profissional do educador” (p. 159, grifos meus).
Dado o exagero de a formação contínua, durante anos, ter centrado suas atividades na retirada dos educandos de seu local de trabalho, principalmente da escola – fato amplamente criticado em todas as avaliações realizadas – há atualmente uma forte tendência em valorizar a escola como lócus da formação contínua. (FUSARI, 1997, p. 166)
Com a possibilidade da formação continuada na escola, pode-se considerar
que o horário de trabalho pedagógico coletivo é o espaço de aprendizagem real e
concreto dessa sistematização de ação formativa, visto que por ser de caráter
obrigatório, reúne grupos de professores em dias e horários determinados, o que por
si só já confere e garante um mínimo de estabilidade necessária para uma
seqüencialidade de estratégias.
A proximidade com os problemas em sua estrutura micro permite que os
docentes e o Professor Coordenador tenham mais facilidade na definição das
temáticas que precisam ser confrontadas, analisadas, estudadas e aprofundadas em
suas reuniões, o que acarreta numa qualificação desse espaço, como espaço de
aprendizagem.
Em relação a esse espaço de aprendizagem, vale trazer para a análise,
novamente as concepções de Certeau (1996) que faz uma clarificação bastante
interessante:
Existe espaço sempre que se tomam em conta vetores de direção, quantidades de velocidade e variável de tempo. O espaço é um cruzamento de móveis. É de certo modo animado pelo conjunto de movimentos que aí se desdobram. Espaço é o efeito produzido pelas operações que o orientam, o circunstanciam, o temporizam e o levam a funcionar em unidade polivalente de programas conflitais ou de proximidades contratuais (p. 202).
A partir dessas considerações pode-se inferir que o lugar como estabilidade,
o HTPC, já está posto institucionalmente através da legislação que o rege e
63
normativa. Já está ali, nas suas diretrizes, a definição de posições: Professor
Coordenador e professores em uma relação de hierarquia. O espaço de
aprendizagem será construído, “concebido” e “gestado” nas relações que ali forem
estabelecidas, quer dizer, o espaço é o lugar praticado. É o lugar em movimento. No
espaço de aprendizagem as posições não devem ser estabelecidas pela lei, são
legitimadas pelas necessidades coletivas; portanto, o Professor Coordenador não
deverá ser necessariamente o responsável pelas ações formativas, visto que a
relação possível será de colaboração, não apenas de hierarquia.
É oportuno acrescentar ainda que a formação contínua na escola é uma
vertente, e que igualmente importantes há outras conformações que precisam
também fazer parte das ações formativas dos docentes para não incorrermos em
superestimar a formação em um ambiente micro e desconsiderar as contribuições
que podem vir de ambientes externos.
A seguir, são descritas as representações20 dos professores do HTPC
pesquisado sobre formação contínua:
� Estar num constante aprendizado, ou seja, se informando, buscando e aprendendo para aprimorar o trabalho e se aprimorar como pessoa. (P3) � É um aprendizado que se reforma e se renova sem parar. (P4) � Aprendizado diário que engloba o período de trabalho. (P5) � Deve ser entendida como um mecanismo inteligente e eficaz de ajuste da realidade. (P7) � Um processo pelo qual o professor, através de cursos, palestras e seminários, mantêm-se atualizado tanto na sua disciplina, quanto na área de educação. (P8) � É o que se faz nos diferentes cursos oferecidos na área da Educação, bem como nas trocas de experiências e leituras de revistas, livros, projetos em Educação. (P9) � Oportunidade de ler, fazer cursos de atualização para estar ciente das mudanças na área da Educação. (P10)
20 Todas as transcrições presentes nesta dissertação foram feitas na íntegra, sem correção, objetivando fidelidade máxima aos sujeitos da pesquisa.
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Por esses depoimentos dados, pode-se perceber, portanto, que para muitos
professores a formação contínua apresenta-se de forma generalista, como sendo
aprendizagem, informação e mecanismo de ajuste.
Esse mecanismo de ajuste, ao qual se referiu o P7, demonstra a visão
tecnicista do processo de aprendizado, ou seja, os professores consideram que pela
assimilação de diferentes informações, dados e teorias, será possível alcançar maior
competência em seu trabalho adequando muitas vezes só o discurso às novas
teorias educacionais, porém poucas vezes contribuindo em real mudança da prática,
pois se torna impossível construir uma aprendizagem efetiva, se não houver
disponibilidade para confrontar idéias, reconhecer limites e deficiências no próprio
trabalho. Esse mecanismo não é somente externo, mas também interno.
É interessante acrescentar que os meios para a formação contínua se
processam por meio de cursos, palestras, seminários que oferecem possibilidade de
atualização sobre as novas teorias educacionais vigentes.
De uma maneira geral, para os professores as ações formativas são
encaradas de forma externa ao espaço escolar. Isso ocorre porque a escola, como
espaço de aprendizagem, não tem ainda oferecido um plano real de formação dos
docentes.
Por esta razão, a formação contínua desenvolvida na escola precisa ser
vista como meio também de aprendizagem, pois ela apresenta alguns aspectos de
suma importância, ou seja, a valorização dos saberes docentes e suas experiências,
a criação de novos modos de socialização profissional, além de propor uma
formação contextualizada.
Diferentemente da formação em serviço nos moldes tradicionais (viabilizada
mediante cursos, palestras, encontros, seminários e debates oferecidos, normalmente, fora
do local de trabalho e de maneira fragmentada), a formação na escola, uma modalidade
que não retira o professor do local de trabalho, proporciona os elementos que
compõem o currículo dessa formação (as dificuldades da prática), articulando o
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coletivo dos professores numa reflexão partilhada e relacionada com o Projeto
Político Pedagógico.
Essa dificuldade de entender a escola como lócus também de formação
contínua se deve a diversos fatores, é claro, mas como o foco deste estudo é o
HTPC como espaço de aprendizagem, percebe-se que em algumas escolas não há
um direcionamento das reuniões para que a formação contínua seja ação
permanente no espaço.
A esse respeito Hernandéz (1997) aponta que “não é apenas questão de
saber como os docentes aprendem, mas que condições eles têm, em sua escola,
para integrar o aprendido às suas práticas cotidianas” (p.85)
Cabe, então, que a gestão pedagógica faça uma análise da sua
problemática interna e proceda a um planejamento estratégico para que as reuniões
pedagógicas sejam parte de um processo de formação de seus docentes. Para
tanto, é necessário que haja uma valorização desses momentos por parte de toda a
comunidade escolar.
A seguir, objetivando explicitar com maior fidelidade as observações
realizadas nos encontros do HTPC, os fatos são apresentados no formato de
“história em quadrinhos” que aqui são denominados de “Cenas”.
O total compreende noves situações que mereceram ser destacadas. É oportuno
mencionar que as datas registradas em cada “Cena” não obedeceram a uma seqüência de
ordem cronológica, mas sim, foram agrupadas de acordo com os aspectos que se
assemelharam e/ou com os temas vivenciados.
Este procedimento possibilitou uma análise mais estruturada, e
conseqüentemente, mais significativa. Os agrupamentos ficaram assim organizados:
1 – Dicotomia Teoria e Prática; 2 – Função Burocrática do HTPC; 3 – HTPC e
escrita; 4 – O tempo no HTPC.
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Agrupamento 1
Dicotomia Teoria e Prática
“É fundamental que na prática de formação docente,
o aprendiz de educador assuma que o indispensável pensar certo
não é presente dos deuses nem se acha nos guias de professores que
iluminados intelectuais escrevem desde o centro do poder, mas,
pelo contrário, o pensar certo que supera o ingênuo tem que ser
produzido pelo próprio aprendiz em comunhão com o professor formador”.
Paulo Freire
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Cena 1Cena 1Cena 1Cena 1---- Teoria e Prática Teoria e Prática Teoria e Prática Teoria e Prática