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FACULDADE DE SÃO BENTO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM FILOSOFIA MESTRADO ACADÊMICO Cídio Lopes de Almeida Estética e educação nas obras O Nascimento da Tragédia, Sobre o Futuro dos Nossos Estabelecimentos de Ensino e III Consideração Intempestiva: Schopenhauer Educador de Friedrich W. Nietzsche São Paulo 2010

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FACULDADE DE SÃO BENTO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM FILOSOFIA

MESTRADO ACADÊMICO

Cídio Lopes de Almeida

Estética e educação nas obras

O Nascimento da Tragédia, Sobre o Futuro dos Nossos Estabelecimentos

de Ensino e III Consideração Intempestiva: Schopenhauer Educador de

Friedrich W. Nietzsche

São Paulo

2010

FACULDADE DE SÃO BENTO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM FILOSOFIA

MESTRADO ACADÊMICO

Estética e educação nas obras O Nascimento da Tragédia, Sobre o

Futuro dos Nossos Estabelecimentos de Ensino e III Consideração

Intempestiva: Schopenhauer Educador de Friedrich W. Nietzsche

Cídio Lopes de Almeida

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação Stricto

Sensu em Filosofia da Faculdade de São Bento do Mosteiro de

São Bento de São Paulo, como requisito parcial à obtenção do

título de Mestre em Filosofia.

Área de concentração: História da Filosofia Moderna

Orientador: Prof. Dr. Franklin Leopoldo e Silva

São Paulo

2010

Dedico esta dissertação a Rogério

Ignácio de Almeida Cunha, Zenóbia

Rodrigues Cunha e Rosângela Ribeiro

dos Santos.

IV

AGRADECIMENTOS

Ao Prof. Dr. Franklin Leopoldo e Silva pela orientação que sempre motivou e

valorizou minhas iniciativas na construção do presente trabalho.

Ao Coordenador e ao Vice-Coordenador da Pós-graduação Prof. Dr. Elias

Humberto Alves e Prof. Dr. Djalma Medeiros pelos constantes incentivo e prontidão

nos assuntos administrativos referente ao desenvolvimento do mestrado.

Ao Abade Dom Mathias Tolentino Braga, OSB, pela concessão de bolsa, sem a

qual não seria possível terminar o curso de mestrado no Mosteiro de São Bento.

Ao Prof. Dr. José Carlos Bruni que, em suas aulas, propiciou algumas discussões

sobre Nietzsche que muito contribuíram com meu trabalho.

Aos Professores, Dr. Edelcio Serafim Ottaviani e Drª Maria Cristina Dal Pian,

pela leitura e observações feitas.

Aos colegas do mestrado que me propiciaram uma rica convivência acadêmica.

Não poderia deixar, também, de registrar as contribuições de épocas passadas

sem as quais não teria chegado até aqui. Expresso minha mais profunda gratidão ao

Irmão Israel Poste Ribeiro, FMS, e aos Irmãos Maristas por terem propiciado em minha

vida uma significativa etapa de formação intelectual e introdução aos estudos

universitários. Também, significativa foi minha convivência com o Prof. Dr. Rogério

Ignácio de Almeida Cunha e sua esposa a Profª Zenóbia Rodrigues Cunha, sem os

quais meus sonhos na seara filosófica teriam sucumbido.

V

RESUMO

Pretende-se com a dissertação abordar a Estética e a Educação em Nietzsche

circunscrita a três obras do período de juventude do filósofo, a saber: O Nascimento da

Tragédia, Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino e III Consideração

Intempestiva: Schopenhauer Educador. Nossa investigação irá procurar, em primeiro

momento, compreender a estrutura teórica das obras. Nesse sentido vamos acompanhar

o movimento do autor em demonstrar como surgiu a tragédia e o conhecimento trágico

entre os Gregos Clássicos, sua decadência com o pensamento socrático e ressurgimento,

em solo alemão, com a música de Wagner. Depois, nas conferências Sobre o Furturo de

Nossos Estabelecimentos de Ensino, vamos acompanhar as teses do autor sobre

educação e que, de início, é aquela de educação aristocrática comprometida, isso já na

III Consideração Intempestiva: Schopenhauer Educador, com a formação do gênio. Ao

final desse percurso, pretende-se também destacar as imbricações que se pode fazer da

estética e da educação nesses trabalhos do autor e quais a possíveis atualizações do seu

pensamento para compreender a nossa cena educacional do dias atuais.

VI

ABSTRACT

It is intended to address the dissertation and Aesthetic Education in Nietzsche

limited to three works by the youth of the philosopher, namely: The Birth of Tragedy,

On the future of our schools and untimely III Consideration: Schopenhauer Educator.

Our investigation will look, at first, understand the theoretical structure of the works. In

this sense we will monitor the movement of the author to demonstrate how did the

tragedy and the tragic knowledge among the ancient Greeks, its decay with the Socratic

thought and resurgence in German soil, with the music of Wagner. Then the conference

About the Future of our education, we will follow the author's thesis on education and

that, initially, is that of aristocratic education compromised, this has the unintended

Consideration III: Schopenhauer Educator with the formation of genius. At the end of

this passage is also to highlight the interconnections that can be made of aesthetics and

education in these author's works and what the possible updates of their thinking to

understand our educational scene today.

VII

SUMÁRIO

Introdução........................................................................................................................01

Capítulo I – O Nascimento da Tragédia

1.1. O Conhecimento Trágico..............................................................................08

1.2. O Coro..........................................................................................................19

1.3. Decadência da Tragédia e do Conhecimento Trágico ................................31

1.4. O Advento da Teoria como Centro Gravitacional da Vida..........................41

1.5. O Renascimento da Tragédia e do Conhecimento Trágico..........................45

1.6. Como Sobreviveu o Trágico: Dois Tipos de Serenojovialidade...................54

1.7. Homens que Lutaram por uma Cultura Autêntica e o Drama Perfeito........66

1.8. A Emoção Trágica........................................................................................74

Capítulo II – Escritos Sobre Educação

2.1. Extensão e Redução da Cultura....................................................................84

2.2. O Desinteresse como Fulcro da Cultura......................................................88

2.3. Situação do Ginásio......................................................................................97

2.4. A Liberdade na Escrita Ainda no Ginásio..................................................100

2.5. A Falsa Necessidade de Cultura.................................................................107

2.6. A Formação Técnica e a Formação do Jovem de Cultura.........................116

2.7. O Problema da Liberdade na Universidade...............................................124

2.8. III Consideração Intempestiva: Schopenhauer Educador..........................132

2.9. O Mestre e seu Percurso Solitário..............................................................140

Capítulo III – A Educação Estética de Nietzsche

3.1. A Educação Aristocrática...........................................................................148

VIII

3.2. A Educação Estética de Nietzsche..............................................................153

3.3. A Educação da Vontade..............................................................................159

3.4. O Egoísmo da Utilidade.............................................................................165

Considerações Finais.....................................................................................................174

Bibliografia....................................................................................................................178

1

INTRODUÇÃO

Propõe-se dissertar acerca de dois veios temáticos nas obras de Nietzsche que o

próprio autor não o fez de modo explícito, isto é, por meio de uma única obra que

tratasse de relacionar diretamente a estética e a educação. Segundo Giorgio Colli,1 há

nessa época da produção do autor um centro de gravitação e ele se manifesta na obra O

Nascimento da Tragédia. Desse projeto, no que antecede e, depois, no que sucede a sua

publicação, é que iremos encontrar o autor lapidando temas de estética, cultura e

educação. Nota-se, então, nos escritos pré-nascimento da tragédia, textos, geralmente

ligados a sua atividade de professor na Universidade de Basiléia, que preparam temas

como Introdução à Tragédia de Sófocles2, A visão Dionisíaca do Mundo

3 entre outros.

Material que chega até nós em forma de livro, mas que se constituem de textos

utilizados para a atividade de docência, tomando o formato livro entre nós e nas

acomodações feita pela edição de Manzino Montinari e Giorgio Colli. Temática

literária, mas com olhos que procuram compreender a cena “oitocentista”,

especialmente aquela que desenrola na sociedade alemã. Seu estudo sobre a tragédia é

com vistas à crítica da ópera de seu tempo. A qual compreende como atividade de

entretenimento dos ricos. Observa-se, portanto, que os temas de estética e educação

afloram das atividades de professor e escritor. Apesar de não se constituírem um único

livro, fazem parte de um conjunto de reflexões realizadas por Nietzsche nesta fase de

sua produção. O “jovem Nietzsche”,4 como é corrente denominá-lo nessa fase,

compreende, portanto, um projeto que se relaciona não apenas em suas obras renomadas

1 Cf. COLLI, Giorgio. Escritos sobre Nietzsche. Trad. Maria Filomena Molder. Lisboa: Relógio d‟água

Editores, 2000, 175 p. 2 Cf. NIETZSCHE, Friederich. Introdução à Tragédia de Sófocles. Trad. Ernani Chaves. Rio de Janeiro:

Ed. Zahar, 2006, 94 p. 3 NIETZSCHE, F. A Visão Dionisíaca do Mundo, e outros Textos de Juventude. Trad. Marcos Sinésio

Pereira Fernandes, Maria Cristina dos Santos de Souza; rev. da trad. Marco Casanova. São Paulo: Martins

Fontes, 2005, 93 p. 4 Cf. GIACOIA JÚNIOR, Osvaldo. Nietzsche. São Paulo: Publifolha, 2000, p. 27 (Col. Folha Explica).

2

e publicadas, como é o caso de O Nascimento da Tragédia, mas aparece nos seus

escritos destinados a exposição de temas no exercício da docência na Universidade de

Basiléia. Nossa demarcação temática procura pesquisar exatamente esse fio reflexivo

do autor, que entre os escritos de língua portuguesa encontra-se em O Nascimento da

Tragédia, Sobre o futuro dos nossos Estabelecimentos de Ensino e III Consideração

Intempestiva: Shopenhauer Educador. O teatro de ação e toda a cenografia utilizada

para desenvolver suas reflexões nas três obras citadas são a literatura, sobretudo as

tragédias gregas, e a cena educacional na qual Nietzsche atuava com professor.

O estudo dos Clássicos em Nietzsche tem um propósito: compreender uma cultura

original que não fosse aquilo que se desenvolvia em seu tempo e, sobretudo, na

modernidade. Da cena cultural, de uma arte feita para o entretenimento, ou autor

procura estudar o surgimento da tragédia para, em contrapartida, denunciar as falácias

existentes na cultura alemã de seu tempo. Cena que, vale destacar, apesar das atividades

culturais em solo Germânico, se desenvolvia com tudo que tinha de direito em Itália e

em França e essas eram o centro das atenções.

Atividade cultural decadente a qual Nietzsche os enfeixa nas expressões fariseus e

filisteus da cultura, para denotar o total descompasso da cultura das elites com a vida

social. Seu registro denota que a contradição ia mais longe e não ficava só no plano

social, mas se expandia, passava pela vida social e instaurava concepções de arte e

cultura, operando, também, uma total dissonância estética.

No contexto de denúncia de uma cultura decadente, a moderna, os estudos dos

gregos, que, aliás, já fazia parte do repertório de estudos de Nietzsche desde o colegial,

se acentua com o exercício da docência na Universidade da Basiléia. Sua atividade

docente se dava para alunos de curso superior e para o Pedägogium, que corresponde ao

ensino fundamental II e ensino médio de nossas escolas, onde Nietzsche fazia leitura

3

das tragédias de Ésquilo e Sófocles. Fazia parte, também, de suas atividades a produção

e leitura de textos que versassem sobre sua função na cadeira de filologia clássica.

Contexto que o leva a escrever uma introdução a Trágedia de Sófocles. Nesse itinerário

vão surgindo os temas fundamentais para O Nascimento da Tragédia. Não se trata de

uma evolução retilínea e necessária. Alguns conceitos acerca da tragédia, por exemplo,

sua origem ou quem é o responsável pela sua decadência – Eurípides ou Sófocles, são

apresentados de um modo e depois de outro lá na frente. Movimento que se explica pela

maturação conceitual que o filósofo está fazendo, expresso nos seus escritos, e no

confronto dessas meditações que ocorrem na atividade de professor. Ressalta-se,

portanto, que a prática da docência é um teatro importante, ao lado dos acontecimentos

culturais que vivencia ao lado de amigos, para as exposições, confronto e maturação de

seu trabalho. Prática cotejada, evidentemente, com leituras de filósofos e, em especial

nessa fase, com o convívio cultural travado com Wagner.

Feito o contexto da obra de Nietzsche que vamos dissertar, passemos aos problemas

teóricos aos quais vamos nos ater. Nietzsche tece dura crítica à cultura universitária de

seu tempo. Suas principais investidas são contra a idéia de cultura útil e, sobretudo,

vinculada, a serviço dos propósitos do Estado. Mais uma vez a questão de suas críticas

não se atém a meros aspectos externos. Essa postura da cultura útil e a serviço de

outrem que não ao humano tem uma conformação precisa e é disso de que ele se dispõe

a criticar. Ao dissociar Estado e cultura, o que Nietzsche faz é dizer apenas que a

interferência de outros propósitos no interior da produção cultural que não os próprios

da cultura faz com que o feito cultural se torne contraditório, anacrônico, menor,

inferior.

Nietzsche chama a atenção para o fato de que existe uma dimensão do humano

irredutível, a dimensão da cultura e do valor de ser humano, que não pode ser

4

negligenciada, substituída ou vinculada a nenhum outro propósito. Essa dimensão, que

ele observa ter emergido de modo singular entre os gregos trágicos, é que põe as

questões próprias do homem. No âmbito da estética, ele continua a tecer sua crítica à

modernidade. A arte passa a ser algo que não lida com a condição humana. Ora é

entretenimento, ora é algo para dar lucro financeiro. Tanto nas óperas, acontecimentos

artísticos que movimentavam um número razoável de pessoas naquele contexto, quanto

na educação, na qual Nietzsche atua como professor, a massificação opera um

movimento de esvaziamento e distanciamento do conceito de cultura trágica. Essa

decadência fica mais notória quanto comparada, segundo a concepção que o autor está

perscrutando entre os pré-clássicos, com os gregos da época das tragédias.

Contudo, à primeira vista, nos escritos aqui demarcados por nós para pesquisa,

temos que ter algumas cautelas para não extrair reflexões do tipo “oito ou oitenta”, isto

é, conclusões que vinculam o pensamento de Nietzsche a algum tipo de fundamentação

do “nacional-socialismo” alemão do século XX, conhecido entre nós como nazismo.

Nos escritos Sobre o Futuro de Nossos Estabelecimentos de Ensino há a tese de que a

educação é para poucos, coisa de uma aristocracia da cultura.5 Afirma que a cultura

grega deve ser o modelo, que a cultura moderna é exatamente o oposto dessa e

encontra-se em decadência, que o excesso de história mata a cultura e só faz produzir

indivíduos ilustrados, mas ignóbeis, medíocres, servidores do Estado e nada mais.

Dos vários problemas possíveis, vamos, agora, tentar demarcar alguns que nos

ocupam. As más interpretações decorrentes da contundente crítica da cultura, da

educação, da estética vigente, precisam ser tratadas, pois constituem o ponto peculiar a

partir do qual Nietzsche irá produzir sua reflexão filosófica.

5 Na Correspondência com Wagner, citada em nota anterior, Nietzsche demonstra essa idéia não como

um projeto de raça pura, eleita, entre outras quimeras racistas, mas fica notório que se trata de uma

constatação de que as pessoas não conseguem perceber as sutilezas da vida. Cf. NIETZSCHE, F.

Correspondência com Wagner. 2ª ed. Trad. Maria José de La Fuente. Lisboa: Guimarães Editores, 1915,

p. 27.

5

É preciso, portanto, pensar a crítica nietzscheana da cultura e da educação tendo

em vista essa possibilidade interpretativa. Não temos dúvidas do ponto de vista do

autor, ele não defende nenhum tipo de racismo.6 A questão é que seu trabalho de

desmonte da cultura vigente irá por o dedo em uma ferida que exatamente produz os

anacronismos no âmbito da cultura decadente que se expressa nas idéias de espectador

da arte e na idéia de sujeito como ser pensante e capaz de argüir o Ser pelo poder da

lógica. Defender uma educação do gênio, de uma aristocracia é combustível farto para

conclusões apressadas de que se trata de interesses elitistas; logo de uns poucos. Tal

veio interpretativo é dissonante e procura logo uma resposta que se atém à aparência ou

um mero ordenamento social. Nietzsche crítica nas manifestações culturais de seu

tempo exatamente seu caráter superficial e alijamento do conhecimento trágico. As

críticas construídas por Nietzsche no que toca a educação e a cultura nos coloca o

desafio: como pensar a educação, como projeto estético cultural, do homem sem

praticar um tosco etnocentrismo ou puritanismo de raça?

Um segundo grupo de problemas que teremos de tratar em nosso trabalho, concerne

o estético e o cognoscitivo da obra principal de nossa investigação. Se por um lado, no

problema anterior, teremos que pensar a implicações sociais, agora é mais sutil. Há aí,

sem dúvida, uma proposta que tem no drama trágico seu ponto de referência. Sabe-se,

por exemplo, que a concepção de tragédia não é a mesma de Aristóteles,7 aliás, sendo

essa combatida indiretamente e apontada como motora da ópera de sua época. O que

estará posto nessa nova forma de conhecer? Um conhecimento conceitual susceptível de

ser memorizado não é o caso. No lugar desse conhecimento Nietzsche preconiza o

“transe dionisíaco”. Mas como, então, pensarmos? Ou será essa noção tão naturalizada

6 No livro A Minha irmã e eu, Nietzsche demonstra, já em tratamento psiquiátrico, total aversão ao

semitismo. Cf. NIETZSCHE, F. A minha irmã e eu. Trad. Rubens Eduardo Frias. São Paulo: Ed. Moraes.

1992, p. 4. 7 Cf. DIAS, R. M. A influência de Schopenhauer na filosofia da arte de Nietzsche em O Nascimento da

Tragédia. Cadernos Nietzsche, 3, p. 7-21.

6

entre nós que parece não haver outro ser além do pensar? Decorre daí, também, a

pergunta como seria uma sociedade assim disposta? Só carnaval, vinho e as orgias

bacantes? A Tragédia Grega, para Nietzsche, consegue aparar, aquilo que por si só seria

inviável: a pulsão dionisíaca. Em seus vários escritos ele trata disso e a conciliação, que

é sempre tensa, com Apolo é fundamental, feito que é perceptível em O Nascimento da

Tragédia.

No debate dessas questões esboçadas pode-se, ainda, pensar como desenvolver um

projeto educacional e cultural decorrentes da cultura grega trágica. Eleita pelo autor não

com modelo ideal, mas muito mais como um arquétipo capaz de incidir na vida dos

modernos de seu tempo. Suas preocupações com a Grécia não eram a de retorno ideal

aquele momento cultural. Fato que produziria um projeto impossível de se concretizar.

Mas, como seus comentadores nos alertam, Nietzsche procura pensar saídas para o seu

tempo. Não se trata de mais um utilitarista que questiona as opções vigentes e propõe o

seu caminho como o válido. Fica então, mais um nó a ser desatado: como a estética, a

vida estética, pode ser a via do conhecimento. Como a música, motor da tragédia,

poderá cumprir papel de formação dos cidadãos de uma dada nação. Como viver para a

cultura, feito dos Gregos trágicos e administrar as questões práticas da vida. São

questões que teremos de pensar, também, em nossa pesquisa.

Para fazermos essa investigação, então, vamos, no primeiro capítulo, procurar

compreender o movimento de construção8 da obra O Nascimento da Tragédia e seus

8 A disposição de nosso trabalho encontra referência na seguinte observação de Scarlett Marton:

“Diversas são as motivações que a Nietzsche conduzem os estudiosos das novas gerações. Nele se

inspiram grande número de trabalhos; deles tratam outros tantos. Há os que buscam reinscrever o seu

pensamento em sua época, resgatando seus referenciais teóricos, científicos e culturais, e os que procuram

compreendê-lo à luz de sua inserção no conjunto da história da filosofia. Há os que querem reconstituir

seu percurso intelectual, recuperando o confronto com seus contemporâneos e predecessores, e os que

pretendem realçar seu caráter radical e inovador. Há os que se empenham em elaborar estudos

sistemáticos, que propõem uma visão de conjunto de sua obra, e os que se dedicam a trabalhos pontuais

sobre alguns de seus temas. E é esta diversidade que constitui nossa maior riqueza.” Em itálico realçamos

a parte em específico que coaduna com nosso trabalho de mestrado. Cf. MARTON, Scarlett.

7

conceitos relacionados ao surgimento da tragédia, seu declínio e renascimento, segundo

Nietzsche, através do drama musical de Wagner. Nossa atenção, também, estará voltada

para compreender as implicações do conteúdo dessa primeira obra filosófica de

Nietzsche com a educação, ou seja, em que medida os processos próprios da tragédia

podem ser formativos ou como a estética preconizada nessa obra perfaz, também, um

intinerário formativo.

No capítulo seguinte nosso labor é fazer exame das Conferências que Nietzche

executou na Universidade da Basiléia, que rececebeu título de Sobre o Futuro de

Nossos Estabelecimentos de Ensino, e da III Consideração Intempestiva: Schopenhauer

Educador. Aí de modo mais direto no que a educação nosso exercício terá duas etapas.

A primeira é a de compreender as idéias de Nietzsche sobre os estabelecimentos de

ensino, no qual atuava como professor. Na segunda etapa, precisamente na III

Consideração Intempestiva: Schopenhauer Educador, nossa investigação procura

compreender como Nietzsche toma Schopenhauer como modelo de mestre, como

educador e quais são os obstáculos, modernos certamente, que o gênio e mestre tem que

vencer para chegar à afirmação de si.

Por último, sem a pretensão de fazer uma síntese magistral, iremos procurar

tratar de articular os temas de estética e educação dos dois capítulos anteriores. Na

perspectiva de compreender como Nietzsche advoga uma educação aristocrática e como

é a educação estética em Nietzsche e quais implicações podemos fazer com a educação

da vontade, como projeto educativo para nossos dias. O que certamente nos colocará,

também, em confronto com ao menos um de dos egoísmos de nossos que parece reinar

na sociedade atual: a utilidade como tribunal da ação pedagógica.

Extravagâncias. Ensaios sobre a filosofia de Nietzsche. São Paulo: Discurso Editorial/Editora Unijuí,

2000, p. 208.

8

CAPÍTULO I:

O NASCIMENTO DA TRAGÉDIA

1.1. O CONHECIMENTO TRÁGICO

A obra O Nascimento da Tragédia certamente tem um projeto, com início meio

e fim e que nos dispomos aqui acompanhar. O olhar por meio do qual vamos perscrutá-

la certamente é o do conhecimento trágico, como o próprio autor, nas linhas de seu

texto, nos assevera. Poderíamos desenvolver um projeto dissertativo no qual

arrolaríamos as idéias do autor de modo a fazer esporadicamente citações para

corroborar nossa empreitada. Essa certamente é uma via possível. Contudo, optamos

por um outro processo, averiguar as linhas da obra e certificar o autor entende por

conhecimento trágico. Como nos adverte Carlos A. R. Moura:

“[...] nenhum autor parece suscitar tantas dificuldades metodológicas para o

seu interprete quanto Nietzsche, o que já se evidencia pela exuberante

diversidade de interpretações a que sua obra foi submetida. Essa divergência

entre as interpretações permanece tributária, em grande parte, de uma

constatação muito freqüente entre seus comentadores: Nietzsche seria um

autor „contraditório‟.” (MOURA, 2005, p. IX)

Imbuídos do propósito de saber o que é o conhecimento trágico, prestemos

atenção ao alerta sinalizado pelo autor na abertura da obra O Nascimento da Tragédia:9

“Teremos ganho muito a favor da ciência estética se chegarmos não apenas à

intelecção lógica mas à certeza imediata da introvisão de que o contínuo

desenvolvimento da arte está ligado à duplicidade do apolíneo e do

dionisíaco.” (NT, 2001, p. 27)

Esse convite a um olhar peculiar, no qual não é o primado da lógica, da

linguagem científica, mas o de uma “imediata introvisão”, que irá determinar o ritmo do

conteúdo da obra em questão. Serão as pulsões dionisíacas e as ponderações apolíneas

os motores de engendramento do conteúdo aqui refletido. Toda a sua investigação irá

9 Adotamos, para a citação da obra O Nascimento da Tragédia, a convenção proposta pelos Cadernos

Nietzsche segundo o qual a referência à obra pode ser através de suas iniciais NT, seguida pelo ano da

edição, em português, e pelo número da página correspondente à idéia e/ou citação da obra.

NIETZSCHE, F. O Nascimento da Tragédia ou Helenismo e Pessimismo. Trad. notas e posfácio Jacó

Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, 177 p.

9

fazer uso, então, dessa linguagem que se utiliza de metáforas vinculadas ao teatro e à

literatura das tragédias da Grécia Antiga,10

para revelar, com muito mais força, suas

teses filosóficas acerca do conhecimento e de como ele é produzido. Nesse mote, ele

propõe que o conhecimento surgiu de um jogo entre duas partes. “A seus dois deuses da

arte, Apolo e Dionísio, vincula-se a nossa cognição de que o mundo helênico existe uma

enorme contraposição.”11

Nietzsche compreende que a realidade, o real, surge desse

jogo. Quando ele fala de duelo quer dizer que o movimento que caracteriza a realidade é

parecido com uma luta entre o deus Apolo e Dionísio. Para ele pensar o real como

sendo apenas uma dessas forças, representadas pelos deuses da mitologia Grega, seria

uma negação do movimento presente no real.

Sobre o duelo anunciado entre Apolo e Dionísio, Nietzsche, ainda na primeira

página, já assinala o fato de que houve uma solução no aparente duelo de forças

constitutivas da cultura helênica. “[...] por fim, através de um miraculoso ato metafísico

da „vontade‟ helênica, apareceram emparelhados um com o outro, e nesse

emparelhamento tanto a obra de arte dionisíaca quanto a apolínea geraram a tragédia

ática.”12

Será, então, no entorno da tragédia que o autor fará o percurso de sua obra que

marca sua produção propriamente filosófica. É no uso da análise o teatro da tragédia

grega, no poeta lírico, na epopéia, na música do coro que ele vai extrair sua reflexão

sobre a “verdade trágica”, sobre sua origem e sobre como ela poderá um dia surgir entre

os seus, vários séculos depois de seu desaparecimento. Sobre essa “solução” de que

aludimos, vale, antes de continuarmos, dizer algo. No que toca ao duelo Dionísio Apolo

10

No nosso texto, sempre que nos remetermos à Grécia, estaremos fazendo uso das seguintes

demarcações históricas. Época clássica ou socrática referente ao período do florescimento da filosofia que

inclui os três grandes nomes da filosofia: Sócrates, Platão e Aristóteles. Época trágica, por outro lado,

como um período no qual o conhecimento filosófico não havia emergido na sua força total e prevalecia

uma cultura na qual as manifestações teatrais era o momento de “conhecimento do povo”. Nesse

momento das tragédias e até mesmo antes de seu surgimento prevalecia uma estreita relação com os

mitos, em oposição ao conhecimento racional que irá substituí-lo no desenvolvimento histórico-cultural

da Grécia Antiga. 11

NT, 1992, p. 27. 12

NT, 1992, p. 27.

10

não se pode aplicar uma dialética que visa uma síntese. A esse respeito Gilles Deleuze

nos diz: “o comentador de Nietzsche deve principalmente evitar „dialetizar‟ o

pensamento nietzscheniano sob seja que pretexto for”.13

Deleuze, na seqüência de seu

pensamento acerca do não dialetizar Nietzsche, continua sua observação e nos propõe

romper com um olhar que procura eliminar a tensão produtiva própria do trágico e ver a

tragédia como momento de solução dessa tensão, uma síntese.

Ainda, segundo Deleuze, “a dialética propõe uma certa concepção do trágico:

liga o trágico ao negativo, à oposição, à contradição.” Para início de nosso trabalho

basta esse aviso, de suma importância, de que no trágico nietzscheano não se encontra o

apagamento da tensão, ao contrário, será dessa tensão, sempre posta e nunca dirimida,

que a tragédia grega se nutrirá e no entender de Nietzsche será por isso que esse

momento cultural deve ser considerado como genial.

Passemos aos pontos que o autor disserta e nos apresenta essa construção da

realidade ou da verdade ainda entre os gregos antigos.

Antes propriamente de averiguar entre os gregos, Nietzsche pensa que é

necessário a toda criação figurativa uma característica:

“A bela aparência do mundo do sonho, em cuja produção cada ser humano é

um artista consumado, constitui a precondição de toda arte plástica, mas

também, como veremos, de uma importante metade da poesia. Nós

desfrutamos de uma compreensão imediata da figuração, todas as formas nos

falam, não há nada que seja indiferente e inútil.” (NT, 1992, p. 28)

O autor nos propõe e ao mesmo tempo põe em suspenso algo novo: o sonho, a

produção onírica como fonte de construção da realidade, ou como fonte de verdade, isto

é, como expressando algo do cerne da vida, da força que faz tudo vir-a-ser. Para melhor

elucidar esse ponto vale recorrermos a Eugen Fink que nos auxilia a compreender essa

questão do sonho como uma intuição criadora. Comentando exatamente a mesma

passagem da citação acima ele nos diz:

13

DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a Filosofia. Trad. Antônio M. Magalhães. Portugal: Rés Editora, p. 19.

11

“O sonho cria o mundo das imagens, o cenário das formas, das figuras; a sua

magia produz a aparência bela que proporciona à alma a felicidade de uma

visão definida; o sonho, por muito arbitrário que seja o seu curso, produz

imagens, sempre imagens, é uma força plástica, é visão criadora. Apolo, diz

Nietzsche, foi concebido pelos gregos como sendo precisamente esta força

capaz de criar o mundo de imagens que se manifesta no sonho dos homens,

mas que tem ainda mais poderes. E é neste ponto que da interpretação

psicológica do sonho, Nietzsche dá um salto brusco: Apolo não cria apenas o

mundo de imagens do sonho dos homens, cria outrossim o mundo de

imagens daquilo a que o homem habitualmente chama o real.” (FINK, 1983,

p. 24)

Segundo FINK, Nietzsche então faz a seguinte operação: de algo psicológico, o

sonho, ele passa “para o sonho da própria natureza original”. E mais adiante ele

contínua: “Nietzsche pensa por analogia: ao sonho do homem, criador de imagens, é

análogo o poder do ser, produtor de formas e imagens, a que dá o nome de Apolo.”14

E

Nietzsche contínua a assinalar a existência desse véu, o sonho, sob o qual jaz algo

importante:

“O homem da propensão filosófica tem mesmo a premonição de que também

sob essa realidade, na qual vivemos e somos, se encontra oculta uma outra,

inteiramente diversa, que, portanto, também é uma aparência: e

Schopenhauer assinalou sem rodeios, como características da aptidão

filosófica, o dom de em certas ocasiões considerar os homens e todas as

coisas como puros fantasmas ou imagens oníricas.” (NT, 1992, p. 28)

Ou seja, há um mundo da aparência, do qual os sonhos podem ser, também,

tomados como uma outra realidade, deixando transparecer, com isso, que, além deles,

existe um outro algo, que nesse momento é para Nietzsche a chamada vontade. E será

na criação da arte, no sonho, a fórmula para se resolver esse problema posto de

aparência e coisa-em-si, “pois a partir dessas imagens interpreta a vida e com base

nessas ocorrências exercita-se para a vida”.15

O sonhar é como um vestíbulo, um

exercício importante para a vida; para as criações simbólicas acerca da vida.

Aliás, aqui é apresentado Apolo como esse deus capaz de criar o mundo da

aparência, do sonho, e com isso ele é a potência, a força da natureza artística capaz de

14

FINK, Eugen. A filosofia de Nietzsche. Trad. Joaquim Lourenço. Lisboa: Presença, 1983, p. 24. 15

NT, 1992, p. 29.

12

conceituar, demarcar; e é dele que procede, portanto, o mundo da aparência e do

indivíduo. Para Roberto Machado “o apolíneo é para Nietzsche o princípio de

individuação, um processo de criação do indivíduo, que se realiza como uma

experiência da medida e da consciência de si.”16

Ainda no texto: “[...] poder-se-ia inclusive caracterizar Apolo com a esplêndida

imagem divina do principium indivivuationis [...]”, conceito com o qual Nietzsche irá

opor a Vontade, que é representada por Dionísio, como sendo um princípio que a tudo

dissolve dessa individualidade.

Aqui há uma necessidade de explicitar um aparente embate. De um lado temos

Apolo, deus demarcador, criador da individualidade, e que faz sempre esse movimento.

Por outro lado temos forças que dissolvem essas demarcações, essas forças são

dionisíacas, e como totalidade sua tendência é acabar com a individualidade. Eis o jogo

de forças, um puxa para a individualidade, para o particular, Apolo, outra força procura

desmanchar, despedaçar essa identidade e transformá-la em não-identidade. Nesse jogo,

necessário para a vida existir, deve haver um equilíbrio. Nesse jogo de aparência e

essência há, na proposta de Nietzsche, algo que faz reconduzir essa relação a um campo

saudável, é preciso, para a vida existir, que o indivíduo possa se relacionar de modo

adequado com esse outro lado do real que é a essência. Para isso, “ser-nos-á dado lançar

um olhar à essência do dionisíaco, que é trazido a nós, o mais de perto possível, pela

analogia da embriaguez.”17

A celebração dionisíaca é um momento de retorno ao cerne da vida, pois

segundo Nietzsche, inicialmente existia apenas o todo. “A experiência dionisíaca é a

possibilidade de escapar da divisão da individualidade, e se fundir ao uno, ao ser; é a

16

MACHADO, R. C. M. (Org.). Nietzsche e a polêmica sobre O nascimento da tragédia. Rio de Janeiro:

Jorge Zahar Editor, 2005, V. 1, p. 7. 17

NT, 1992, p. 30.

13

possibilidade de integração da parte na totalidade.”18

Considerando que a via conceitual

é uma tentativa de fragmentar esse todo, e de certo modo perdendo-o, esse movimento

de retorno ao cerne é como sonho. É um deixar-se acreditar no sonho. Tem-se

consciência disso, faz, produz isso como sendo uma forma consciente de viver a vida,

mesmo ela sendo trágica. Mas para retornar ao ser é preciso deixar-se: “sob a magia do

dionisíaco torna a selar-se não apenas o laço de pessoa a pessoa, mas também a natureza

alheada, inamistosa ou subjugada volta a celebrar a festa de reconciliação [...]”. 19

FINK, também, diz que esse movimento é o mesmo que se notou em Apolo. De algo

humano psicológico, o sonho, há um salto para a percepção de que a própria natureza é

que age. Assim, também, “o mesmo é válido também para a embriaguez; primeiramente

ela é encarnada como qualquer coisa de humano, como aquele estado de êxtase onde

temos o sentimento da queda de todas as barreiras, de sairmos de nós próprios, de nos

tornarmos um com o todo, de desaguarmos, de mergulharmos no oceano infinito.”20

Desse processo passa-se, segundo FINK, para algo cósmico na qual “a embriaguez é a

torrente cósmica, um delírio báquico que destrói, despedaça, reabsorve todas as formas,

que suprime tudo, o que é finito e individual. É o grande ímpeto da vida.”21

O que se pode notar, tanto em Nietzsche como na leitura de FINK, até aqui é que

o autor propõe ver que o real como movimento, e que isso se expressa de dois modos.

Um é caracterizado por Apolo, forma, aparência, estável, outro é Dionísio, movimento,

natureza, fulcro do real. Eles se relacionam, e o êxtase é, digamos assim, o jeito desse

mundo fenomênico se relacionar com esse centro do real, donde um dia partiu, sem

deixar de ser por completo, daí a saudade e a vontade de retornar a ele ser uma

constante do mundo da individuação.

18

MACHADO, 2005, p. 8. 19

NT, 1992, p. 31. 20

FINK, 1983, p. 25.

21 FINK, 1983, p. 25.

14

Em termos mais preciso o autor assim nos apresenta os impulsos que estão na

natureza: “[...] o apolíneo e o seu oposto, o dionisíaco, como poderes artísticos que, sem

a mediação do artista humano, irrompem da própria natureza [...].”22 Aqui é interessante

notar que a pulsão onírica, apolínea, não é um ato intelectual, mas uma pulsão natural “e

nos quais os impulsos artísticos desta se satisfazem imediatamente e por via direta”,

através do sonho. Isso nos faz pôr em suspenso em pensar que já o apolíneo é obra da

razão. Mais adiante iremos ver a razão de uma outra perspectiva, a socrática, por ora,

concentremo-nos no percurso do autor e aqui temos o mundo onírico como sendo

apolíneo sem mediação e, por outro lado, temos o êxtase que pode matar, que pode

despedaçar o indivíduo, como força dionisíaca. Certamente esses dois impulsos da

natureza irão se casar em um dado momento que é na tragédia grega, “enquanto artista

ao mesmo tempo onírico e extático.”23

Acerca dos impulsos artísticos presentes na natureza vale observar que

Nietzsche considera que a natureza se cria. Daí a idéia de impulso artístico da natureza.

A criação, que depois o humano também terá essa marca, é um impulso inerente à

natureza. O artista quando cria imita a natureza ou revela em si a parte dessa natureza.

Tecidos suas considerações sobre os impulsos artísticos e como eles se

acomodam, Nietzsche procura agora averiguar:

“a fim de reconhecer em que grau e até que ponto estavam neles

desenvolvidos esses impulsos artísticos na natureza: o que nos colocará em

condições de compreender e apreciar mais profundamente a relação do artista

helênico com os seus arquétipos ou, [...] a imitação da natureza”.(NT, 1992,

p. 32)

Nietzsche parte agora na direção de saber como os impulsos naturais se

acomodam ou como os artistas gregos organizam esse impulso oriundo da natureza.

Nessa rota, ele percebe que os “Ditirambos de Dionísio” são a manifestação em solo

22

NT, 1992, p. 32. 23

NT, 1992, p. 32.

15

Grego das pulsões dionisíacas. Se inicialmente temos os impulsos como força da

natureza, agora, depois de registrar a presença de Dionísio nas festas bacantes, ele se

manifesta não mais como algo natural, orgiástico, mas como arte. E aqui vale ressaltar o

“ditirambo dionisíaco” como música. O som ou a musicalização, no qual o corpo é

embriagado pela percussão excitante, faz com que se reconciliem as forças constitutivas

da natureza, permitindo assim, a existência da realidade como nos é comum proceder

com ela. De impulso natural essas forças sempre irão se expressar de modo artístico e

sempre conciliando, sopesando duas pulsões. “Agora a essência da natureza deve

expressar-se por via simbólica, um novo mundo de símbolos se faz necessário, todo o

simbolismo corporal, não apenas o simbolismo dos lábios, dos semblantes, das palavras,

mas o conjunto inteiro [...].”24

Nesse jogo de criação, no qual toda palavra será

considerada uma criação metafórica ou criação. Aqui vale relembrar as observações de

FINK sobre a passagem de condições psicológicas para cósmicas ou naturais. No

movimento do texto de Nietzsche, primeiro ele fala dos impulsos naturais e, depois, em

como ele se manifesta artisticamente. Operação que FINK chama de salto.

Mas como esse jogo teve início? Como os gregos conseguiram fazer com que a

máxima do deus silvestre, Sileno, de que era melhor não nascer e, depois de ter nascido,

era melhor morrer, se convertesse e possibilitasse a vida? “O grego conheceu e sentiu os

temores e os horrores do existir: para que lhe fosse possível de algum modo viver, teve

de colocar ali, entre ele e a vida, a resplendente criação onírica dos deuses olímpicos.”25

Certamente, esse momento é fundamental para compreendermos o novo jeito de lidar

com a verdade. É nesse contexto que Nietzsche cunha, propõe, um novo olhar para a

“Senhora Verdade”. Não que ele proponha um ceticismo, mas propõe um novo olhar de

como surge a verdade.

24

NT, 1992, p. 35. 25

NT, 1992, p. 37.

16

Em um balanço preliminar Nietzsche pontua que em sua busca para certificar

como essas forças, apolínea e dionisíaca, se deram em solo grego ele certifica que é “na

tragédia ática e no ditirambo dramático” a manifestação dessa união.

Para melhor compreendermos o que é a tragédia em seu contexto social

lancemos mão da análise de Jaeguer.26

Segundo ele, após a vitória de Atenas sobre os

Persas, instalou-se em Atenas um novo modelo de governo. Não mais baseado nas

aristocracias rurais e proprietárias de terras, mas agora estribada no espírito de um povo

que venceu seus “invasores”, o qual crê na sua participação como pedra fundamental na

constituição do Estado. Nesse novo período é que floresceu, então a arte Dórica, mais

enxuta, robusta, forte. Substituindo a arte Jônica própria daquela corte abastada, onde o

que importava era ser bem nascido. A hereditariedade é que determinava o futuro dos

indivíduos e não seus méritos. A arte dórica, a que Nietzsche se refere como sendo o

mais belo rebento ou como o casamento mais adequado entre Apolo e Dionísio, é isso:

representa a pulsão de um povo, o desejo de um povo.

É nesse contexto que surge a “tragédia Ática e do ditirambo dramático, como

alvo comum de ambos os impulsos, cuja misteriosa união conjugal, depois de

prolongada luta prévia, se glorificou em semelhante rebento [...]”.27

Faz-se mister nesse percurso pensar, segundo Nietzsche, um tipo de artista que

desenvolveu essas manifestações da natureza, a apolínea e a dionisíaca, no campo das

artes. Nesse caminho ele encontra dois modelos de artista. Um é Homero, artista

objetivo, outro é Arquíloco, artista subjetivo. Mas para Nietzsche de O Nascimento da

Tragédia um bom artista deve ser objetivo. Propõe, então, um novo olhar sobre a idéia

que se tem de artista subjetivo. Para FINK, Nietzsche dá saltos do âmbito psicológico

26

Cf. JAEGUER, W. Paidéia: A formação do homem grego. Trad. Artur M. Pereira. São Paulo: Martins

Fontes, 1986, 966 p. Consultamos, na obra, o Livro Segundo, intitulado: Apogeu e Crise do Espírito

Ático, dedicado ao estudo da tragédia e da comédia. 27

NT , 1992, p. 42.

17

para a construção mesma da natureza, do real e desse modo diz que a realidade é

vontade e aparência. Em um outro momento ele faz o contrário, salta dessas condições

cósmicas para saber como elas se dão no âmbito artístico e é isso que ele procura em

Homero e Arquíloco. Assim, então, Nietzsche caracteriza o artista capaz de dar o salto

da natureza para arte:

“[...] pois só conhecemos o artista subjetivo como mau artista e exigimos em

cada gênero e nível da arte, primeiro e acima de tudo, a submissão do

subjetivo,a libertação das malhas do “eu” e o emudecimento de toda a

apetência e vontade individuais, sim, uma vez que sem objetividade, sem

pura contemplação desinteressada, jamais podemos crer na mais ligeira

produção verdadeiramente artística.” (NT, 2001, p. 43)

Ora, o artista lírico é caracterizado por relacionar-se com uma certa

subjetividade. Mas, considerando o princípio acima, como ele, então se faz artista

agora?

“Ele se fez primeiro, enquanto artista dionisíaco, totalmente um só com o

Uno-primordial, com sua dor e contradição, e produz a réplica desse Uno-

primordial em forma de música, ainda que esta seja, de outro modo,

denominada com justiça de repetição do mundo e de segunda moldagem

deste: agora porém esta música se lhe torna visível, como numa imagem

similiforme do sonho, sob a influência apolínea do sonho. Aquele reflexo

afigural e aconceitual da dor primordial na música, com sua redenção na

aparência, gera agora um segundo espelhamento, como símile ou exemplo

isolado. (...) O „eu‟ do lírico soa portanto a partir do abismo do ser: sua

„subjetividade‟, no sentido dos estetas modernos, é um ilusão.” (NT, 1992, p.

44)

A solução apresentada, então, é de que a experiência subjetiva é um

participar de uma natureza, de um princípio originário de tudo. E desse modo ele não

está fazendo experiência de sua subjetividade, de sua individualidade, mas de um fluxo,

de um rio, do devir. Esse nosso rumo interpretativo encontra alento: “O gênio lírico

sente brotar, da mística auto-alienação e estado de unidade, um mundo de imagens e de

símiles, que tem coloração, causalidade e velocidade completamente diversas do mundo

do artista plástico e do épico.”28

Esse modo de pensar o artista lírico procura administrar

28

NT, 1992, p. 45.

18

a idéia parcial que comporia o artista. Ele, nesse olhar de Nietzsche, não pode ser

apenas uma das partes do real. Deve conter na sua criação aquelas duas forças. Sua

atividade de criação é também aquela força criadora universal. Nesse sentido, segundo

DIAS, Nietzsche rejeita a distinção entre subjetivo e objetivo. “Rejeita-a integralmente.

O artista subjetivo é um mau artista, um não artista. Um verdadeiro artista deverá ser

necessariamente objetivo, isto é, ser capaz de conter e calar o querer individual. O

triunfo sobre a subjetividade é a condição de toda arte e de todo o poetar”.29

Mas então como considerar Arquíloco artista? Segundo DIAS, “Nietzsche

encontra para essa questão uma resposta: a música. Para ele, „o som é o meio mais

importante para se desembaraçar da individualidade.‟ O poeta lírico é antes de tudo

compositor, artista dionisíaco que renuncia à sua subjetividade para indentificar à

verdadeira realidade e refleti-la na música”.30

Acompanhando as reflexões de DIAS,

podemos notar que Nietzsche caminha para compreender de um modo diferente o poeta

lírico, pois ele é dionisíaco e apolíneo; ele deve conter as duas pulsões que compõe o

real que: “sob a influência de Apolo, em estado de sonho, transfigura essa música em

palavras, simboliza-a na forma específica da linguagem poética [...]”.31

É assim, então, que se pode pensar o poeta da música, da percussão, embalando

o artista que se entrega em êxtase místico e que com isso participa da eterna verdade, ou

da vontade que é a que faz as coisas acontecerem. Essa questão da criação artística, que

deve, no entender de Nietzsche, romper com individualidade, não pode ser reflexo

disso, e até mesmo essas artes, o mito, o herói se justificam no entendimento de

Nietzsche quando tem com fonte de sua existência o vir-a-ser, Dionísio. E ele insiste:

“Nós, de nossa parte, afirmamos antes que toda essa contraposição do

subjetivo e do objetivo, segundo a qual, como se fora uma medida de valor,

29

DIAS, Rosa M. Nietzsche e a música. São Paulo: Discurso Editorial; Ijuí-RS: Editora Unijuí, 2005, p.

42 (Col. Sendas e Veredas. Coord. Scarlet Marton). 30

DIAS, 2005, p. 43. 31

DIAS, 2005, p. 46.

19

mesmo Schopenhauer ainda divide as artes, é em geral inadequado em

estética, uma vez que o sujeito, o indivíduo que quer e que promove os seus

escopos egoísticos, só pode ser pensado como adversário e não como origem

da arte”. (NT, 1992, p. 43)

Enfim, não é possível criar arte da individualidade ou da idéia de que existe uma

individualidade independente do todo, “mas na medida em que sujeito é um artista, ele

já está liberto de sua vontade individual e tornou-se, por assim dizer, um médium

através do qual o único Sujeito verdadeiramente existente celebra a sua redenção na

aparência.”32

E aqui nós é apresentado a idéia de que só existimos como fenômenos

estéticos. De que o verdadeiro existente, o Ser é o único que existe por detrás das

aparências. Que a própria aparência é uma criação desse, e nesse sentido toda nossa

„aparente‟ individualidade é uma criação estética.“(...) que nós já somos, para o

verdadeiro criador desse mundo, imagens e projeções artísticas.33

” E a na seqüência,

uma das observações clássicas dessa obra: “pois só como fenômeno estético podem a

existência e o mundo justificar-se eternamente.” Consideração fundamental para

podermos lançar um novo olhar sobre a verdade. Só há movimento e por isso é

necessário considerar que os fenômenos são criados. Não são algo extático.

Consideração que julgamos relevantes em nossa investigação, pois considerando esse

processo de criação podemos estendê-lo a processos educacionais, perspectiva que

estamos perscrutando em O Nascimento da Trágedia.

1.2. O CORO

Posto essa observação, de como o artista lírico cria, fundamental no pensamento

de Nietzsche nessa obra, passemos, então, a compreender um outro processo. Como o

coro entra e passa a fazer parte desse processo de criação. Para Anna Hartmann

32

NT, 1992, p. 47. 33

NT, 1992, p. 47.

20

Cavalcanti, “após analisar o processo de criação do poeta lírico [...] Nietzsche dispõe

dos principais elementos para desenvolver [...] a tese central de sua primeira obra, a

saber, o nascimento e gênese da tragédia grega a partir do coro ditirâmbico.”34

No

encalço dessa senda investigativa vale, antes, fazer uma digressão que demonstrará em

que especificamente nosso olhar está atento. Temos observado no ensino de Filosofia o

seguinte fato: é da música, da sonoridade que surge o verbo, o conceito, a ação. O

jovem aluno está profundamente marcado por isso. A porta de aprendizado deles, para

nos remeter ao que Nietzsche procura nos primórdios de cada cultura, encontra-se na

música e a canção popular ou, com um termo mais abrangente, a musicalização é o

terreno mais fértil para tal. A música, desse modo, parece-nos ter capacidades peculiares

na expressão de uma cultura. Aprofundando nossa constatação, podemos trazer aqui o

próprio conceito de lúdico que é pensamento em movimento. A criança é marcada por

pensar em movimento, suas brincadeiras, seu jeito de dizer as coisas se dão sempre

ligadas ao movimento.35

Nesse sentido de que o movimento e pensamento são modos de expressão não só

da criança, mas das culturas em geral e que a música é uma fiel expressão dessa

dimensão é que Nietzsche procura compreender o coro e seu papel na composição

daquela manifestação cultural, a tragédia, que muito bem administra, no seu olhar, as

pulsões constitutivas do real.

Na época de Nietzsche tinha-se uma definição para o coro a qual era política,

porém lhe interessava uma outra. “Bem mais celebre do que essa explicação política do

coro é o pensamento de A.W. Schelegel, o qual nos aconselha a encarar o coro, em certa

34

CAVALCANTI, Anna Hartmann. Símbolo e Alegoria: a gênese da concepção de linguagem em

Nietzsche. São Paulo: Annablume/FAPESP/DAAD, 2005. p. 214 35

Cf. WALLON, Henri. Psicologia e Educação da criança. Lisboa: Vega/Universidade, 1979. Essa idéia

de que o lúdico é pensamento em movimento foi nos apresentada, também, pela professora Drª Maria

Celia Moraes Dias [FEUSP] por ocasião em que éramos aluno de pós-graduação, latu sensu, em arte-

educação, da PUC MINAS.

21

medida, como a suma e o extrato da multidão de expectadores, como o „espectador

ideal.”36

Nietzsche discorda desse conceito, mas salienta que essa asserção de que “o coro

trágico dos gregos é obrigado a reconhecer nas figuras do palco existência vivas”, algo

de positivo. Porém, é na concepção de Schiller: “onde o coro é visto como muralha

viva que a tragédia estende à sua volta a fim de isolar-se do mundo real e de

salvaguardar para si o seu chão ideal e a sua liberdade poética”, que o autor ancora seu

barco reflexivo e denota que é essa a asserção mais apropriada para se pensar o coro e

sua relação com o surgimento da tragédia grega. Será nessa capacidade do coro de

auxiliar o clima da tragédia que Nietzsche irá vê sua importância.

Aqui vale insistir no texto de O nascimento da tragédia: “enquanto o próprio dia

é no teatro apenas artificial, a arquitetura somente simbólica e a linguagem métrica

apresenta um caráter ideal, continua reinando o engano no todo [...].37

A arte entra,

assim, de vez no terreno da criação e não vale a pergunta pelo que é real, no sentido de

opor realidade e fantasia, pois real é aqui é o fantasioso. A realidade na arte trágica é

aquilo que está acontecendo no palco. A criação artística é considerada como realidade

e não se pode dizer que exista uma outra realidade mais importante do que ela. Aqui o

jogo de criação já é real e o coro é, nesse contexto quem endossa esse jogo.

Nessa senda, o surgimento da tragédia grega tem como base o coro e na sua

qualidade: “O grego construiu para esse coro a armação suspensa de um fingido estado

natural e colocou nela fingidos seres naturais”.38

O que fez com que a tragédia não fosse

cobrada em termos de realidade e com isso ela “cresceu muito e, na verdade, por causa

disso, ficou desde o começo desobrigada de efetuar uma penosa retratação servil da

36

NT, 1992, p. 52. 37

NT, 1992, p. 54. 38

NT, 1992, p. 54.

22

realidade.”39

O que na verdade podemos notar é uma criação de uma égregora, de uma

involucro mística, no qual a tragédia encontrou terreno fértil para existir, e produzir

sentido. As observações de HARTMANN CAVALCANTI nos auxiliam a melhor

compreender e situar essa percepção que Nietzsche tem do coro. Para ela “o coro

trágico concentra e reúne em si, segundo Nietzsche, o papel que a música e o canto

tinham nos antigos cultos, a saber, o de possibilitar, através da metamorfose, a vivência

de um dóminio da experiência inacessível à imagem e ao conceito.”40

É dentro dessa

dimensão para-real, portanto, que, ironicamente, Nietzsche observa como sendo o

centro, o fulcro, da produção daquela outra realidade. Vale precisar ainda: o coro gera

condições para a fantasia criadora operar, sem peia, sem amarras. Esse local não é só

físico, mas é também cultural. Aqui o espaço não é só aquele do teatro, mas o espaço

mais sutil e na verdade mais necessário, surge: é nas mentes daquela cultura que se

permite uma realidade teatral; palco para a criação e promissor, no olhar de Nietzsche,

na construção daquela outra realidade, daquela realidade que depois será tomada

parcialmente como uma realidade pelos socráticos.

O teatro ainda é susceptível de mais uma digressão nesse contexto. A

participação do indivíduo no êxtase dionisíaco proporcionado pelo teatro trágico, que

para Nietzsche é o indivíduo se entregando a fantasia de Dionísio, tem uma volta. E ela

é amarga, o deixar se lançar nos braços da fantasia tem um preço que pode ser um certo

pessimismo de Hamlet que ao perceber o rio da vontade não tem mais ânimo para

continuar a viver. Desse momento a arte é a salvadora. É ela que aplaina esse jogo. Se

por um lado somos atraídos pelo cerne da vida, pois ela é a única existente na

concepção de Nietzsche de O Nascimento da Tragédia, somos obrigados a encarar a

39

NT, 1992, p. 54. 40

HARTMANN CAVALCANT, A. Arte como experiência: a tragédia antiga segundo a interpretação

de Nietzsche. In: Barrenechea, M., Pinheiro, P., Feitosa, C.. (Org.). Nietzsche e os gregos. V Simposio

Internacional de Filosofia Assim Falou Nietzsche. Rio de Janeiro: DP&A, 2006, p. 54

23

vida particular e individual. Apesar da vida particular ser fruta da vontade como fundo

único e verdadeiro da realidade, essa particularidade é posta em cheque e perde o

sentido de ser. Para resolver essa falta de sentido que a vontade gera na vida individual

só a arte pode salvar. “Só ela [a arte] tem o poder de transformar aqueles pensamentos

enojados sobre o horror e o absurdo da existência em representações com as quais é

possível viver”.41

Aqui se faz a presença daquela outra pulsão que também existe: a de

criar fantasias, o poder de Apolo, pois sem esse não haveria o que chamamos mundo

fenomênico de realidade. Não se teria apego à própria individualidade. Assim, para

Nietzsche se justifica a individualidade. É o impulso natural de Apolo que instiga o

artista a criar o particular como dotado de sentido e razão de ser.

O poeta, esse nobre trabalhador, faz seu labor envolto em uma não-realidade,

reflete ele, também, esse modo de produzir a verdade. E como ele faz isso: “o poeta só é

poeta porque se vê cercado de figuras que vivem e atuam diante dele e em cujo ser mais

íntimo seu olhar penetra”.42

Sem as complicações modernas, dirá Nietzsche, “a metáfora

é para o autêntico poeta não uma figura de retórica, porém uma imagem substitutiva,

que paira à sua frente em lugar realmente de um conceito.”43

Apesar de a vontade em

seu incessante jogo de criação parecer a única a existir. Nietzsche pensa ao contrário.

Ele considera que também há o impulso apolíneo que também atua e cria os sonhos, os

fantasmas, como atuação imediata de seus impulsos.

Ao definir a vontade como sendo aquilo que existe por detrás dos fenômenos,

identificado ela a Dionísio, Nietzsche passa a explicar como se dá o processo de criação

do artista. A questão que o autor procura resolver é: como algo que não se expressa em

palavras, não tem forma, pode se tornar em arte? A explicação dele é a seguinte: “No

fundo, o fenômeno estético é simples; tem-se apenas a faculdade de ver incessantemente

41

NT, 1992, p. 56. 42

NT, 1992, p. 59. 43

NT, 1992, p. 59.

24

um jogo vivo e de viver continuamente rodeado de hostes de espíritos, é-se poeta; Esse

feito é fruto de Apolo, é ele que cria essas imagens que ficam pairando na imaginação

do poeta. Imaginação que se bem excitada pela música, ganha força e contornos mais

nítidos, ao ponto, diríamos nós nos dias de hoje, de ter alucinações visuais, de fazer

confusão entre o sonho e o que chamamos de real. E continua no que toca a ser

dramaturgo, que também é uma explicação de como o drama surge: “[...] se a gente

sente apenas o impulso de metamorfosear-se e passar a falar de dentro de outros corpos,

é-se dramaturgo.”44

Nesse caso não se vê, mas transforma-se ou deixa-se possuir por

outra força que atua sobre o indivíduo que esta criando. Desprende-se dessas

observações duas idéias que procuram relacionar ação teatral e o papel teatral. Um

dionisíaco, a atuação, e outra apolínea, o papel a ser desenvolvido. Amarrando assim o

pensamento de Nietzsche em demonstrar como se dá a criação artística que é uma

transposição, sempre problemática, de algo sem forma, a vontade, para a linguagem

artística.

Consolida-se e com isso e vai autorizando nosso olhar de que a arte é a que

constrói uma verdade, mas essa verdade é um jogo estético de criação, e sua lei é a da

arte e não de qualquer outra coisa. O coro nessa empresa é o transfigurador e que

auxilia a romper as barreiras da individualidade. E a “tragédia grega como sendo o coro

dionisíaco a descarregar-se sempre de novo em um mundo de imagens apolíneo”,45

funciona como esse local privilegiado de formação, transformação. O teatro Grego é o

local privilegiado no qual as condições são as mais favoráveis para se produzir a arte;

arte entendida como sendo essa relação de dois impulsos naturais, que se transforma em

arte; Apolo e Dionísio.

44

NT, 1992, p. 59. 45

NT, 1992, p. 60.

25

Nessa nova definição ou demarcação do que seria propriamente coro Nietzsche

considera que “[...] o drama é a encarnação apolínea de cognições e efeitos dionisíacos,

estando dessa maneira separado do epos por um enorme abismo.”46

O coro, portanto,

não é um espectador ideal, mas é ele o motor da cena, é ele o representante da vontade e

por isso mais digno do que um mero espectador ideal. É nesse “plus” que Nietzsche

pensa observar a particularidade dessa manifestação cultural entre os gregos trágicos. “É

aí precisamente o coro, o qual gera a partir de si mesmo a visão e fala dela com todo o

simbolismo da dança, da música e da palavra.”47

Mas nem sempre o coro era

propriamente drama, outrora ele contituia nuna festa dionisíaca, o ditirambo dionsíaco,

mas será na tragédia propriamente que ele vai cumprir esse papel e em uma dada altura

ele “recebe a incumbência de excitar o ânimo dos ouvintes até o grau dionisíaco, para

que eles, quando o herói trágico aparecer no palco, não vejam algum informe homem

mascarado, porém uma figura como que nascida da visão extasiada deles próprios”48

.

Recorrendo a HARTMANN CAVALCANTI, para compreender melhor o processo de

criação envolvido no drama e que Nietzsche vê já acontecer no ditirambo, mas que

agora acontece como arte e não como ritual religioso, ela nós diz:

“Na interpretação de Nietzsche, acontecia com o dramaturgo algo semelhante

ao coreuta do ditirambo. Ele expressava em seus dramas tudo o que

vivenciava nos cultos dionisíacos – a intensidade e alternância dos afetos, os

estados de transformação de si característicos destes rituais – traduzindo este

plano das forças e emoções primeiramente para uma melodia e, em seguida,

esta era transposta para imagens, figuras e acontecimentos”. (HARTIMANN

CAVALCANTI, 2006. p. 54)

Essa seria uma fase na qual estamos falando do ditirambo e como ele se cria. No

olhar de HARTMANN CAVALCANTI, Nietzsche então conceberia que a dramaturgia

passaria por processo semelhante. Sua observação, então, elucida nossa última citação

de Nietzssche, pois explica como o drama se constitue: “Nietzsche compreende,

46

NT, 1992, p. 61. 47

NT, 1992, p. 61. 48

NT, 1992, p. 62.

26

portanto, a criação dramática como um duplo movimento de transposição: um primeiro

movimento, no qual o plano não figurativo das pulsões e emoções dionisíacas recebe

expressão na música. E um segundo, no qual a música suscita imagens que são a

expressão alegórica do estado dionisíaco.”49

A tragédia, como aquele modelo de arte que é fruto da proximidade tensa de

Apolo e Dionísio, carrega em si contradições, de um lado: “linguagem, cor, mobilidade,

dinâmica do discurso entram, [...] na lírica dionisíaca do coro e, de outro, no onírico

mundo apolíneo da cena, como esferas completamente distintas de expressão.”50

Mas

será assim que aquelas forças naturais irão se expressar; agora o herói será a expressão

da vontade, da pulsão dionisíaca. O herói será aquela imagem apolínea das pulsões

dionisíacas. Será nessa relação que essência se expressará na aparência.

A força da aparência, e aqui Nietzsche recorre às produções de Sófocles, nesse

contexto é de uma aparente desvelamento total do ser. No efeito da tragédia é isso que

ocorre. Mas aqui uma metáfora que envolve o mito é pertinente: “surgem diante dos

olhos, como uma espécie de remédio, manchas escuras [...]” que protege o “olhar no

que há de mais íntimo e horroroso na natureza.”51

O mito, portanto, cumpre esse papel

de revelar o Ser, que para Nietzsche é a própria vontade. É desse processo que surge a

chamada “serenojovialidade grega”. Apesar do absurdo da existência, o grego da época

das tragédias constrói nesse processo uma estabilidade. Mas essa conquista dos gregos

não pode ser confundida, salienta Nietzsche. Sua vitória não foi fruto de uma razão, mas

desse jogo, desse fitar o cerne da vida e ser ao mesmo tempo protegido. Processo que

logra êxito, como no foi apresentado por HARTMANN CAVALCANTI, dado aquele

49

HARTMANN CAVALCANTI, 2006. p. 54. 50

NT, 1992, p. 62. 51

NT, 1992, p. 63.

27

processo de criação do drama que parte da vontade, que se expressa em melodia, que, de

melodia, transforma-se em “expressão alegórica do estado dionisíaco.”52

No fundo o mito quer dizer algo. Ele funciona como protetor, ele joga, pois ora

mostra o ser, ora esconde-o para nos proteger. O mito representa, apesar de sua

aparência, algo mais e Édipo, enquanto mito, nos quer dizer:

“Sim, o mito parece querer murmurar-nos ao ouvido que a sabedoria, e

precisamente a sabedoria dionisíaca, é um horror antinatural, que aquele que

por seu saber precipita a natureza no abismo da destruição há de

experimentar também em si próprio a desintegração da natureza. „O aguilhão

da sabedoria se volta contra o sábio; a sabedoria é um crime contra a

natureza”. (NT, 1992, p. 65)

Surge, então, uma questão, que mais adiante caracterizaremos melhor, que é a

contradição, a dor, na composição do real. Se o mito, a tragédia, permite estabelecer um

jogo entre as duas pulsões do real, que é a pulsão apolínea e a dionisíaca, já

transformadas em arte, é preciso agora administrar essa contradição e, após analisar as

contradições em torno do mito de Prometeu, Nietzsche a esse respeito chega ao seguinte

termo, citando o Fausto de Goethe: “Tudo o que existe é justo e injusto e em ambos os

casos é igualmente justificado.” Demonstrando, mais uma vez, que a “serenojovialidade

grega” administra essa contradição da culpa ou “a necessidade de sacrilégio imposta ao

indivíduo que aspira o titânico.”53

Ter desejos titânicos é ter sede de conhecer, de

participar do fluxo eterno, o que implica essas contradições, mas que acomoda a esse

ambíguo: “justo e injusto”. O todo é assim: sem sentido, pode-se dizer isso, também, do

ser, ou seja, o ente, o indivíduo, perde seu sentido diante do todo. O todo nesse aspecto

aterroriza o indivíduo por sua falta de propósito, não que o todo não tenha propósito, ao

contrário ele tem todos e por isso não tem nenhum em particular, ele engloba todos os

propósitos.

52

HARTMANN CAVALCANTI, 2006. p. 54. 53

NT, 1992, p. 69.

28

A tragédia, no entender de Nietzsche, tinha como pano de fundo único Dionísio,

a dor, ou a própria vontade que ali se apresentava de formas “aparentemente”

diversificada, mas no fundo era uma única coisa. Por apresentar a contradição, o mito

corre o risco de acabar. Porém, para Nietzsche, a tragédia salva o mito de sua possível

decadência.

Se nesse ponto a tragédia, dita mais uma vez de um modo diferente, é: “[...] o

conhecimento básico da unidade de tudo o que existe, a consideração da individuação

como causa primeira do mal, a arte como esperança jubilosa de que possa ser rompido o

feitiço da individuação, como pressentimento de uma unidade restabelecida.”54

Dessa consideração é que a tragédia vai se posicionar como salvadora. Se o mito

fala, revela algo do ser, algo da vontade e por fitar o fluxo eterno se despedaça, ele é

revivido, pois a tragédia é arte; é aquela pulsão que mesmo diante da atração do todo

insiste em individuar-se. Arte de criar realidades. Só com essa capacidade ela vai dar

vida, injetar ânimo nos mitos homéricos, segundo Nietzsche. Pois o contrário, no que

toca ao mito, é sua corrosão, sua decadência, pois ao se argúi-las, com a razão, causa-se

a sucumbência dos mesmos. Talvez o que está nessa dinâmica é o interesse em resolver

o dilema que o mito apresenta, as contradições que ele põe, incita uma solução, um fim,

um resolver a peleja. Porém, o mito morre quando se procura historicizá-lo:

„Pois é o destino de todo mito arrastar-se pouco a pouco na estreiteza de uma

suposta realidade histórica e ser tratado por alguma época ulterior como um

fato único com pretensões históricas: e os gregos já estavam inteiramente em

vias de reestampar com perspicácia e arbítrio todo o seu sonho mítico de

juventude em uma estória de juventude histórico-pragmática.” (NT, 1992, p.

71)

Sistematizar é de certo modo resolver algo que não se deixa solucionar

aparentemente. O mito revela uma contradição, mas que deve permanecer sempre sem

uma solução. O movimento que o mito representa deve ser administrado sem substituir

54

NT, 1992, p. 70.

29

ou esquecer esse jogo que é ele representa. Quando se sistematiza os primórdios míticos

de uma cultura/religião é o atestado de morte. A questão do mistério, do véu, vem à

baila. Não é possível atuar sem uma boa dose de ilusão, a dor da contradição ou da falta

mesmo de sentido deve ser sempre aplainada por essa ilusão. Para Nietzsche a Tragédia

Grega soube em um primeiro momento de sua história fazer esse jogo. Ao permitir a

existência do drama sem uma resolução racional de suas questões. Ainda nas tragédias

de Ésquilo e Sófocles permaneceu o fundo misterioso e místico desses problemas

trágicos. A tragédia não permitiu que os fundamentos míticos dessa cultura fosse

suplantados pela necessidade racional de história.

“Esse mito moribundo é agora capturado pelo gênio recém-nascido da música

dionisíaca: e em suas mãos floresce ele mais uma vez, em cores como jamais

apresentara, com um aroma que excita o pressentimento nostálgico de um

mundo metafísico.(...) Através da tragédia o mito chega ao seu mais profundo

conteúdo, à sua forma mais expressiva. Uma vez mais ele se ergue, como um

herói ferido, e em seus olhos, com derradeiro e poderoso brilho, arde todo o

excesso de força, junto com a calma cheia de sabedoria do moribundo.” (NT,

1992, p. 72)

O que está em questão é exatamente o poder do mito em continuar a propiciar o

jogo entre Ser e Ente. Com a tragédia é revivido esse poder, essa função do mito em

falar daquilo que Nietzsche chama de vontade. Como aquela força cósmica e metafísica

que se encontra por detrás de toda realidade. A tragédia permite que o mito funcione

com plenitude. Sua principal estratégia, segundo Nietzsche, encontra-se no coro. Para

HARTMANN CAVALCANTI, “o coro trágico torna possível lançar um olhar ao que

Nietzsche chama de abismo mais íntimo das coisas, o jogo gratuito de construção e

destruição, no qual todas as convicções se dissolvem em sempre novas interrogações.”55

Mas só será nesse jogo que se recupera o sentido da vida e é desse jogo que a arte

trágica, segundo HARTMANN CAVALCANTI, “vivenciava os mistérios, como era

55

HARTMANN CAVALCANTI, 2006. p. 59.

30

capa de enriquecer sua compreensão de si e da existência.”56

Mexer no o coro é colocar

em riscos o mito e a própria tragédia. A tragédia é um campo “energético”, estético, de

criação. Sua força, sua origem é Dionísio que representa a pulsão dionisíaca. Substituí-

lo é como tirar o combustível de uma lâmpada: ela vai apagando, depois queima o

próprio pavio e, por fim, apaga. Após decrescer sua origem, sua composição, como cada

composição de dá, Nietzsche aponta como se deu o ocaso. Infelizmente esse momento

peculiar de lide com a vontade e fenômeno não conseguiu perdurar. O conhecimento

trágico, porém, não foi muito longe. Do embalo produzido pela música o espectador

conseguia forças para dotar de sentido a própria vida. A música, então faria a transição

do estado dionisíaco para o apolíneo. HARTMANN CAVALCANTI nos diz:

“Assim como dramaturgo dá expressão total a seus afetos e emoções, a partir

dos quais engendra imagens e símbolos poéticos, o espectador antigo

encontra na música uma forma de transpor o que foi vivenciado no estado

dionisíaco, formando a partir dela imagens e associações. Quando estas

energias se convertem em representações, o espectador tem uma experiência

pessoal, capaz de iluminar e orientar sua existência”.(HARTMANN

CAVALCANTI. 2006. p. 60)

Reafirma-se, então, a ideia de que o coro é o motor da tragédia. Porém, seguindo

o percurso de Nietzsche em O Nascimento da Tragédia, esse núcleo está prestes a ser

substituido. Fazendo uso da literatura grega que lhe era familiar por ofício de professor

de filologia, arregimentando provas nesse campo, ele chega a Eurípides, primeiro, e,

depois, a Sócrates como expoentes, arquétipos, de uma coisa que não poderá ser

chamada de instinto, pois o pensar não seria propriamente instinto,57

mas de pathos da

racionalidade e que enseja se colocar no lugar do coro e de sua música.

A racionalidade, portanto, substitui o combustível da tragédia. Substitui o cerne

das criações que era a música; a arte que mais se aproxima da vontade. Com essa

56

HARTMANN CAVALCANTI, 2006. p. 60. 57

Cf. NIETZSCHE, F. Verdade e Mentira no Sentido Extramoral. Tradução e prefácio de Noeli Correia

de Melo Sobrinho. Comum - Rio de Janeiro - v.6 - nº 17 - p. 05 a 23 - jul./dez. 2001. Texto em que

Nietzsche, segundo Roberto Machado em “Nietzache e Verdade”, desenvolve com mais consciência a

idéia da verdade mais ligada a um instinto de verdade, algo mais já ligado a moral do que propriamente

epistemológico.

31

operação de substituição, que veremos em mais detalhes na seção seguinte, é que

observaremos algo: não mais se cria, função própria da arte, mas se argüi, examina,

disseca, jeito próprio da razão nascente. O conhecimento racional é oposto ao

conhecimento trágico. Para o conhecimento racional o que importa é apenas a

dissecação lógica da realidade. Sua pretensão é dizer sobre a pulsão da vida; até

pretende participar do rio “caudalosa” da existência, mas se mantém longe dele, e

pretende, como que apartado, falar de algo e para tal usa a metáfora, uma pura

conjectura, uma projeção. Se ela, a razão, sempre fosse honesta revelaria essa sua

condição, mas ela não o faz, arroga-se no direito inclusive de achar que sua “pretensão à

verdade” é a única digna de respeito.

Para Nietzsche, como podemos observar na seção em que estamos concluindo,

na tragédia grega a coisa se dá de modo diferente. Há a participação das faculdades

sensoriais no “rio caudaloso” da existência e por isso nela, na tragédia, existe o

“símile”. Aqui a dimensão apolínea quando fala, o faz por símile. A razão, que é a

dimensão apolínea, é autorizada a falar da coisa-em-si, pois participa dela através do

êxtase do teatro da tragédia; dizendo de outro modo: ao se expressar por símile ela se

expressa acerca de algo no qual ela se mistura e sua construção é mais pura emergência

da coisa-em-si, e não mera inferência racional sobre um mundo alheio. Pode-se dizer

que o sujeito racional faz a experiência da coisa-em-si no caso do conhecimento trágico.

Quando fala ou cria é daí que se faz. Suas criações é arte e expressam a própria

existência.

1.3. DECADÊNCIA DA TRAGÉDIA E DO CONHECIMENTO TRÁGICO

Se até aqui percorremos o surgimento, a composição, suas implicações, agora,

no percurso feito por Nietzsche, vamos acompanhar o fim da tragédia como

32

manifestação artística entre os gregos antigos. MACHADO, nesse ponto, nos dá um

importante aviso acerca da morte da tragédia: “A segunda idéia importante de O

Nascimento da Tragédia é a denúncia da morte da arte trágica perpetrada por

Eurípedes”.58

A tragédia enquanto manifestação artística suicidou, a morte das demais

artes foi algo lento e logo surgira suas substituas, mas na tragédia não, a coisa foi

rápida, para Nietzsche a “nova comedia ática pretendeu substituir a tragédia - nela

continuou a viver a figura degenerada da tragédia, um movimento a seu penoso e

violento passamento.”59

O nome que está ligado, que marcou esse episódio foi

Eurípides e a racionalidade emergente. No próprio texto assim Nietzsche passa tecer

suas considerações sobre esse fim: “Se se quiser, porém, com toda a brevidade, e sem a

pretensão de dizer algo exaustivo, caracterizar aquilo que Eurípides tinha em comum

com Menandro e Filemon [...] bastar dizer que o espectador foi levado por Eurípides à

cena.”60

Sob a acusação de que Eurípides trouxe para a cena o espectador, com

preocupações racionais de explicar para o público a cena, a ocorrência cênica da

tragédia, está não só a questão do esquecimento de que há metáforas que chamamos de

real, como também, a perda, ou o início dessa perda, do que é próprio da tragédia.

Perde-se também, a referência da tragédia que é a de administrar, matendo sempre a

tensão dos dois impulsos artísticos da natureza. Nessa mesma citação Nietzsche já

assinala que esse feito é começo do fim da tragédia. Quando o espectador é posto em

cena o que está fazendo é esquecer desse jogo. E dar início ao cultivo de um modelo que

toma efetivamente o encenado como sendo algo garantidor de que há conexão entre o

58

MACHADO, R. C. M. (Org.). Nietzsche e a polêmica sobre O nascimento da tragédia. Rio de Janeiro:

Jorge Zahar, 2005. p. 9. - Nesse mesmo texto MACHADO nos fala de dois outros pontos capitais da obra

em questão de Nitzsche. A primeira é a explicação da origem, da composição e finalidade da arte trágica

grega. A terceira idéia “é a tentativa de encontrar o renascimento da tragédia ou da concepção trágica do

mundo, em algumas manisfestações culturais da modernidade”. Que iremos abordar no tópico 1.5 desse

capítulo. 59

NT, 1992, p. 73. 60

NT, 1992, p. 73.

33

jogo de linguagem, as metáforas e o cerne do ser, daquilo que existe. E depois, em um

segundo momento, o esquecimento mesmo de que o que deve ser encenado não é os

desejos egoístas do indivíduo, mas aquele jogo da vontade. “Quem tiver compreendido

de que matéria os tragediógrafos prometeicos anteriores a Eurípides formavam os seus

heróis e quão longe deles estava o propósito de trazer à cena a máscara fiel da realidade

[...]”.61

Ou seja, os mitos eram feitos de fantasia, pura criação artística e cumpria o papel

de dizer sobre as contradições que encerra a vida, mas sem nos desanimar da vida, ao

contrário, produzia um prazer em viver.

Eurípides, dentro do movimento de decadência do conhecimento trágico, ao

racionalizar a tragédia acaba com todo o efeito do conhecimento trágico que requer uma

dose de mistério. Para Nietzsche, Eurípides ao racionalizar os processos trágicos acaba

por esquecer que o mais importante é o êxtase dionisíaco. Ele chega mesmo a esquecer

que o mais importante não são as figuras, a aparência, mas seu fundo dionisíaco.

Nietzsche vai dizer que esse desejo pela verdade, ainda mais explicita em Sócrates,

acaba acossando a idéia de que o mundo fenomênico é uma criação artística. A razão

assume o lugar da arte e declara a criadora da realidade.

No texto de Nietzsche, sempre com seu jogo, com seu recurso de linguagem, ele

demarca, mais uma vez, na minúcia do fato, como Eurípides fez isso. “No essencial, o

espectador via e ouvia agora o seu duplo no palco euripidiano e alegrava-se com o fato

de que soubesse falar tão bem.”62

Ora, como isso é possível? Onde fica o cerne da vida?

Onde fica, e isso é mais relevante nessa mudança de perspectiva, a consciência de que

tudo não passa de um jogo estético de criação que tem como referente o dionisíaco.

Começa, então, uma caminhada para o “esquecimento do ser”, sem aqui nos

comprometermos com a clássica leitura de Heidegger sobre a metafísica, pode-se dizer,

61

NT, 1992, p. 73. 62

NT, 1992, p. 73.

34

no texto em análise, que ao fazer com o espectador fosse levado para o palco é isso que

estava acontecendo entre os gregos clássicos. Passaram a entreter com a superfície e

esqueceram do que constituía o núcleo gerador da cena. Vale seguir ainda um pouco

mais esse detalhe que Nietzsche denota como ruim: “A mediocridade burguesa, sobre a

qual Eurípides edificou todas as suas esperanças políticas, tomou agora a palavra63

” e

foi isso que passou a ser cultuado. Ora, no modo anterior não era assim, “quando até ali

o semi-deus na tragédia e o sátiro bêbado ou o semi-home na comédia haviam

determinado o caráter da linguagem.”64

Esse movimento de levar as coisas, o jeito, o palavreado “burguês” para a cena

fez com que empobrecesse a tragédia e transformasse em nova comédia. O jeito iniciado

por Eurípides, segundo Nietzsche, fez surgir no lugar daquele indivíduo que participava

da tragédia a figura do espectador. O espectador se caracteriza por não participara do

jogo estético proposto pela tragédia, mas ele é alguém que observa a cena e procura

absorver racionalmente o que acontece no palco. Surge assim a idéia do espectador,

diferente do participante da tragédia, pois esse não participa propriamente. Ele fica

apartado da cena e é pelo intelecto que se relaciona com a cena. Desse modo, segundo

Nietzsche, Eurípides cria um novo tipo, o espectador.

Essa observação de que Eurípides criou o espectador, ao dizer que o participante

da tragédia poderia entender racionalmente a cena e ser capaz de fazer avaliações acerca

do que era encenado, não se dá por completo. Para Nietzsche ainda resta um mistério:

“Diante dessa ponderação, [a de que Eurípides levou o público ao palco]

vemos que a nossa afirmação, segundo a qual Eurípides levou o espectador

ao palco, a fim de torná-lo verdadeiramente apto ao ajuizamento, era apenas

uma afirmação provisória, e que devemos procurar uma compreensão mais

profunda de sua tendência.” (NT, 1992, p. 76)

63

NT, 1992, p. 74. 64

NT, 1992, p. 74.

35

Nietzsche, então, indaga, “o que foi então que impeliu o artista ricamente dotado

e incessantemente movido à criação a desviar-se de maneira tão violenta do caminho

sobre o qual brilhavam o sol dos maiores nomes poéticos[...]”.65

A suspeita de

Nietzsche é a de que o pensamento ou o modo no qual é a partir da consciência, do

pensar que se vive, está próximo de se tornar modelo de vida, ainda que para Eurípides

isso não fosse claro. Pairava para ele um fundo misterioso que não deixava ser

totalmente dominado pela razão.

A racionalidade que movia Eurípides o fez se deparar com algo. Na ânsia por

metrificar, Eurípides fez mais uma coisa, ou melhor, ele descobre algo:

“E aí encontrou algo que não deve ser surpresa para o iniciado nos

arcanos mais profundos da tragédia esquiliana: percebeu alguma coisa de

incomensurável em cada traço e em cada linha, uma certa precisão

enganadora e ao mesmo tempo uma profundidade enigmática, sim, uma

infinitude do fundo. A mais clara figura ainda assim trazia consigo uma

cabeleira de cometa, que parecia apontar para o incerto; o inclarificável. O

mesmo lusco-fusco estendia-se sobre a estrutura do drama, particularmente

sobre o significado do coro. E quão duvidosa permanecia para ele a solução

dos problemas éticos!” (NT, 1992, p. 77)

Eurípides parece ter notado que seus esforços de racionalização da tragédia não

contribuíram para que ela se manifestasse com mais força. Todo o seu trabalho de

metrificar a tragédia não conseguiu dar força a ela, ao contrário, quando prevalecia o

êxtase dionisíaco sua força era revelada com mais vivacidade. Ele tentou por ordem,

falar racionalmente, mas mesmo assim ele se viu obrigado a aceitar que o elemento

dionisíaco era mais forte e era daí que brotava o seu movimento e não da explicação

racional, muito menos do espectador. Inconformado com essa falta de racionalidade

Eurípides e o espectador ficava “assim, cismado, intranqüilo, ficava sentado no teatro, e

ele, o espectador, confessava a si mesmo que não entendia seus grandes

predecessores”,66

pois faltava neles, segundo o olhar desse, algo de racional. Então seu

65

NT, 1992, p. 76. 66

NT, 1992, p. 77.

36

propósito era: “Exciar da tragédia aquele elemento dionisíaco originário e onipotente e

voltar a construí-lo de novo puramente sobre uma arte, uma moral e uma visão do

mundo não-dionisíaco tal é a tendência de Eurípides que agora se nos revela em luz

meridiana.”67

A questão é, ele logrou êxito? Não. E ironicamente Nietzsche se dispõe,

agora, a apresentar esse elemento que fez do próprio uma máscara. Ou seja, o que o

movia, seu manipulador, era Sócrates e será com essa nova categoria que a tragédia veio

a baixo. Para MACHADO:

“[...] a segunda causa, ou melhor ainda, a razão principal, do chamado

suicídio da tragédia é o socratismo de Eurípedes. Pois, para Nietzsche,

Eurípides foi apenas uma máscara, no sentido de que quem falava por ele não

era Apolo nem Dionísio, era Sócrates, o protótipo do homem teórico, aquele

que só encontra satisfação em arrancar o véu da aparência, aquele que

acredita ser possível penetrar no fundo das coisas, separando o conhecimento

verdadeiro da aparência.” (MACHADO, 2005, p. 10)

Sócrates representando um modelo de cultura que vê na razão a única fiadora da

existência. Como sendo ela a que tem a capacidade de dizer, então, o que é verdade,

dizer acerca do Ser.

Será a categoria Sócrates com a qual Eurípides combateu e venceu a tragédia de

Ésquilo. No conjunto de estranhezas e substituição Nietzsche, ardoroso amante da

música, começa por notar que lugar da música se põe o intelecto como motor, motivo,

do drama, algo, para ele, totalmente estranho.

“Assim, o drama euripidiano é ao mesmo tempo uma coisa fria e ígnea, capaz

de gelar e de queimar; é lhe impossível atingir o efeito apolíneo do epos, ao

passo que, de outro lado, libertou-se o mais possível do elemento dionisíaco e

agora, para produzir efeito em geral, precisa de novos meios de excitação, os

quais já não podem encontrar-se dentro dos dois únicos impulsos artísticos, o

apolíneo e o dionisíaco. Tais excitantes são frios pensamentos paradoxais

[grifo nosso] – em vez das introvisões apolíneas – e afetos ardentes – em

lugar dos êxtase dionisíacos[...]”. (NT, 1992, p. 80)

Enfim, substitui o cerne da tragédia que é a música pelo intelecto. O

racionalismo de Eurípides no trato do teatro é algo estranho e Nietzsche assim denota:

“Nada pode haver de mais contrário à nossa técnica cênica do que o prólogo

no drama de Eurípides. Que uma personagem individual se apresente no

67

NT, 1992, p. 78.

37

início da peça contando quem ela é, o que precedeu à ação, o que aconteceu

até então, sim, o que no decurso da peça há de acontecer – isso um autor

teatral moderno tacharia de renúncia propositada é imperdoável ao efeito da

tensão. Quem vai querer esperar que ocorra realmente? – Mesmo porque, no

caso, não se verifica absolutamente a excitante relação de um sonho

vaticinador com uma realidade que se apresentará mais tarde”. (NT, 1992, p.

81)

O modo de criação da arte trágica de Ésquilo e Sófocles era intuitivo e não

estava preocupado com questão lógica, com causa e efeito. Não eram racionalistas. Eles

conseguiram criar uma atmosfera tal, embalada pela música e pelo coro, que a

participação do Ser se dava com efeitos fantásticos. Ao contrário, Eurípides, em termos

de conhecimento, podemos dizer que esse modelo que pretende ser racional acaba por

desmotivar. É um estilo que mata a pulsão, o querer se envolver com a trama e, como

efeito, fazer parte de fato do cerne da natureza. Podemos notar essa insistência de

Nietzsche em denotar esse argumento:

“Completamente diverso era o modo de Eurípides de refletir. O efeito da

tragédia jamais repousava sobre a tensão épica, sobre a estimulante incerteza

acerca do que agora e depois iria suceder, mas antes sobre aquelas grandes

retórico-lírica em que a paixão e a dialética do protagonista se acaudalavam

em largo e poderoso rio. Tudo predispunha para o pathos e não para a ação”.

(NT, 1992, p. 81)

É o exemplo da razão substituindo o pathos trágico. Os recursos da tragédia, sua

emotividade, que fazia com que o mito, a saga do herói, ganhasse força e fizesse o

objetivo de criar uma realidade estética, é substituído pela pura racionalidade que torna

o cerne do drama. Algo, no olhar de Nietzsche, totalmente estranho, e desprezível. Seu

modelo, por outro lado, é a tragédia de Ésquilo e Sófocles:

“A tragedia sofocliana-esquiliana empregava os mais engenhosos meios

artísticos para pôr em mãos do espectador, nas primeiras cenas, em certa

medida de um modo acidental, todo aqueles fios necessários ao

entendimento: um traço em que se comprova essa nobre mestria artística que

mascara o necessariamente formal e, ao mesmo tempo, o deixa aparecer

como acidental”. (NT, 1992, p. 82)

Nessa perspectiva pode-se notar que o cerne da tragédia é a pulsão dionisíaca e

não a razão. A razão e o espírito racional atuam como falsários quando pretendem ser o

38

cerne da tragédia. A razão, que deveria apenas ser serviçal, agora, com Eurípides, se

arvora no direito de ser ala a fonte do real. Não assume seu papel de dissimuladora, no

sentido de que cria. Essa razão quer ser duas coisas, sendo que lhe compete apenas

sorver do Ser e representá-lo, mas ela quer ser também a fonte. O modo racional de

Eurípides chega à conclusão de que se Ésquilo cria sem saber racionalmente o que está

fazendo sua arte é menor e não pode ser considerada como arte. “Eurípides se

encarregou, como também Platão o fizera, de mostrar a contraparte do poeta

„irracional‟; o seu princípio estético, „tudo deve ser consciente para ser belo”68

esse

movimento que nega a natureza dionisíaca também encontra correlato em Sócrates, que

no texto de Nietzsche assim é: “ tudo deve ser consciente para ser bom”69

.

Se Eurípides é o iniciador dessa racionalidade, será em Sócrates o arquétipo

dela. A tendência da racionalidade, do primado da razão encontra, para Nietzsche, em

Sócrates larga guarida: “Com espanto, reconheceu que todas aquelas celebridades não

possuíam uma compreensão certa e segura nem sequer sobre suas profissões e seguiam-

nas apenas por instinto”.70

Com essa surpresa é que o Sócrates se sente bem, e será com

essa arrogância que ele irá argüir a todos.

O socratismo, então, seria culpado por apagar o instinto e por no seu lugar a

razão. O pathos racional, nesse sentido, é uma operação que mata a pulsão da vida. Ora,

mas é essa pulsão que gera vida, é daí que surgem as coisas, em termos culturais, é

desse pulsar a fonte que gera as manifestações, colocar no seu lugar um “impulso-

racional” é no mínimo praticar um crime. É propor algo que irá necrosar. Segundo

MACHADO a crítica de Nietzsche a “estética racionalista‟ socrática ou o „socratismo

68

NT, 1992, p. 83. 69

NT, 1992, p. 83. 70

NT, 1992, p. 85.

39

estético‟ como o princípio mortal que destruiu a tragédia, é por ter introduzido na arte a

lógica, a teoria, o conceito, subordinando o poeta ao teorico, a beleza à razão.”71

Opera-se, em Sócrates algo estranho: “enquanto, em todas as pessoas produtivas,

o instinto é justamente a força afirmativa-criativa, e a consciência se conduz de maneira

crítica e dissuasora, em Sócrates é o instinto que se converte em crítico, a consciência

em criadora [...]”,72

algo profundamente estranho. Se consideramos que é da coisa-em-si

ou da Vontade a fonte donde, através da experiência subjetiva desse universal, se cria,

se faz metáforas, observa-se que em Sócrates é a consciência que se coloca no lugar da

Vontade. Ela se posta como se fosse dionisíaca, mas mais parece, inicialmente, com

apolínea. Mas uma apolínea peculiar, não é aquele instinto estabeleceu um jogo

profícuo no teatro da tragédia, ele é anacrônico, pois reina sozinho. Assim é essa

consciência que toma para si o papel de criadora e é ela que aflora com o Sócrates

argüidor.

Mas o mais cômico é que esse espírito lógico tem uma contradição básica: “[...]

de outro lado, porém, aquele impulso lógico que aparece em Sócrates estava

inteiramente proibido de voltar-se contra si próprio.”73

Esse olhar crítico e que se aprazia em desbancar os saberes erigidos sob os

instintos, agora acossa a tragédia. Certamente a arte trágica era o prato predileto para as

críticas de Sócrates. Ainda nos efeitos de Sócrates, para ele “parecia que a arte trágica

nunca „diz a verdade‟: sem considerar o fato de que se dirigia àquele que „não tem

muito entendimento”, portanto aos não filósofos [...]. ” 74

A solução para esse problema,

a saber, para a falta de razão da tragédia, fato que a desqualificava, inscrevendo-a entre

as arte aduladoras, deveria ser a seguinte:

71

MACHADO, 2005. p. 10. 72

NT, 1992, p. 86. 73

NT, 1992, p. 86. 74

NT, 1992, p. 87.

40

“[...] agora o herói virtuoso tem de ser dialético; agora tem de haver entre

virtude e saber, crença e moral, uma ligação obrigatoriamente visível. agora a

solução transcendental da justiça de Ésquilo é rebaixada ao nível do raso e

insolente princípio da “justiça poética [...].” (NT, 1992, p. 89)

Passo a passo de como acabar com a tragédia. Se anteriormente era através do

êxtase o momento em que o indivíduo se reconcilia com o uno primordial, agora, como

o advento do homem socrático, é a dialética que se propõe a resolver esse problema.

Mas terá a dialética tal poder? Segundo o pensamento de Nietzsche não. Essa

substituição ou essa imposição da dialética, como prática do homem teórico, deve ser

considerada não apenas como um detalhe simples no interior de uma dada manifestação

cultural. Aliás, tomemos cuidados, pois com olhos modernos deixamos de ver o quanto

isso é grave, o que está em questão é algo viçoso ceder lugar para um razão cinza, de

concreto. O estilo racional emergente vai, pouco a pouco, “concertando” os problemas

da tragédia. Até trocar, retirar aquilo que Nietzsche compreende como fulcro dessa

manifestação, que é a música e as particularidades da tragédia em lidar com o

movimento do real.

Uma tentativa de renegar algo, mas que também produz, segundo o olhar de

Nietzsche, mais uma contradição. Se Platão, discípulo singular de Sócrates, desqualifica

a arte por ser ela representação da representação ele, nesse olhar, produz algo que é uma

tentativa de acomodar a tragédia, já que essa não se classificava meramente como

representação. Para cumprir um compromisso Platão, nessa perspectiva, acaba por criar

os diálogos. O que são seus diálogos? “Nascido, por mistura, de todos os estilos e

formas precedentes, paira no meio, entre narrativa, lírica e drama, entre prosa e poesia, e

com isso infringe igualmente a severa lei antiga da unidade da forma lingüística.”75

Esse

novo modelo de escrever falar, “protótipo do romance”, opera a substituição da poesia

75

NT, 1992, p. 88.

41

para o pensar, pensar filosófico. E nesse novo texto, gera-se, também um novo contexto,

no qual:

“A dialética otimista, com o chicote de seus silogismos, expulsa a música da

tragédia: quer dizer, destrói a essência da tragédia, essência que cabe

interpretar unicamente como manifestação e configuração de estados

dionisíacos, como simbolização visível da música, como o mundo onírico de

uma embriaguez dionisíaca”. (NT, 1992, p. 90)

Sem a música na tragédia, agravo relevante para Nietzsche, perde-se um terreno

propício para a expressão e construção estética. Não se trata apenas de um deleite, mas a

música, não como a que se compreende popularmente nos dias de hoje, mas como

aquela mais “abençoada” na expressão da Vontade, como aquele tipo de linguagem

mais fiel aos desígnios da Vontade. Com isso, no texto de O Nascimento da Tragédia,

Nietzsche se dedica a falar do modelo racional como projeto de uma cultura e de como

esse foi o início de algo decadente.

1.4. O ADVENTO DA TEORIA COMO CENTRO GRAVITACIONAL DA VIDA

Segundo Nietzsche é mais plausível que o ser humano viva movido pelo instinto

e não pela razão. Para ele é mais plausível dizer que é a pulsão dionisíaca o que move a

vida e não o razão. E o autor concentra na figura de Dionísio esse princípio original

como sendo o que fato move a vida. Porém surge algo novo, o homem teórico. Esse

modelo propõe, advoga, um modelo de vida muito estranho: a vida é erigida sob a

razão. Para esse o homem teórico há seguinte substituição: no lugar da intuição, do

desejo de viver, instala-se uma razão que, naquele impulso criador, a tudo põe em

suspenso, e procura pensar a coisa, ou seja, não cria. Vive-se assim, dissecando, para

esse tipo é mais importante a forma, a regra, a inteligibilidade... E aí alguém pergunta,

mas vamos criar a coisa, já podemos começar! Mas o ser “raciocinante” está, como um

sujeito apegado excessivamente a Lei, querendo saber se já foi feito o estatuto. A

respeito desse homem teórico e de seu modelo de cultura o que está em questão para

42

Nietzsche é a imposição da lógica, da consciência como forma de viver. Segundo

Rüdiger SAFRANSKI:

“Nietzsche critica a alta valorização da consciência, considera funesta a

carreira do pensamento socrático [...]. Primeiro, isso destrói a Tragédia, e

depois limita o inconsciente criativo, e o inibe. Sócrates quebra o poder da

música, e em seu lugar coloca a Dialética. Sócrates foi funesto, com ele

começa o racionalismo que nada mais quer saber das profundezas do Ser.

Sócrates é o começo de um saber sem sabedoria.” (SAFRANSKI, 2001. p.

55)

Não quer dizer que o homem teórico não tenha, inicialmente, um ligação com a

vida e Nietzche pensa:

“Também o homem teórico tem um deleite infinito com o existente, qual o

artista, e, como ele, é protegido, por esse contentamento, da ética prática do

pessimismo e de seus olhos de Liceu, que só brilham na escuridão. Se com

efeito o artista, a cada desvelamento da verdade, permanece sempre preso,

com olhares extáticos, tão-somente ao que agora, após a revelação,

permanece velado, o homem teórico se compraz e se satisfaz com o véu

desprendido e tem o seu mais alto alvo de prazer no processo de um

desvelamento cada vez mais feliz [...] (NT, 1992, p. 92)

Talvez, vale dizer, em um primeiro momento, artista e homem teórico tem

estreitos laços, mas nesse momento fundamental ocorre algo inovador e põe artista para

um lado e o homem teórico para outro. O teórico começa a deixar prevalecer seu gosto

pelo analítico, pelo dissecar e pensa que aí está a questão fundamental.

O homem teórico, também, é movido pelo cerne da vida. Mas seu jeito, suas

opções, é que vão dá em outro resultado, assevera Nietzsche. Vejamos no texto:

“Agora, junto a esse conhecimento isolado ergue-se por certo, com excesso

de honradez, se não de petulância, uma profunda representação ilusória, que

veio ao mundo pela primeira vez na pessoa de Sócrates – aquela inabalável fé

de que o pensar, pelo fio condutor da causalidade, atinge até os abismos mais

profundos do ser e que o pensar está em condições, não só de conhecê-lo,

mas inclusive de corrigi-lo.”(NT, 1992, p. 93)

Essa crença inabalável é que propicia a substituição do saber trágico pelo

teórico. Essa razão irá resolver a contradição que jaz no princípio de fundamentação do

que chamamos de realidade. Mas, não se pode esquecer que se trata de uma

representação ilusória e que essa ciência tem limites, mesmo que goze entre nós,

43

modernos, sobretudo com o advento da cultura de massa televisiva, de uma posição

natural. Nietzsche, mais adiante, irá felicitar, para registrar que a tragédia está em vias

de nascer em solo germânico, a demarcação feita por Kant, isto é, ele verá que a

demarcação feita pelo filósofo da Crítica da Razão Pura registra os limites daquela

razão socrática. Precisamente, delimita aquele otimismo, aquela petulância de achar que

suas representações tinham o poder de perscrutar o próprio ser, a coisa-em-si.

Nietzsche registra aqui algo peculiar, que essa razão, como descrita na citação

acima, produz em determinado momento de sua trajetória uma espécie de arte. Isso se

dá porque esse espírito perscrutativo sempre leva a um limite, é como que a

investigação sempre chega em um fim e, nesse momento, ela precisa se libertar. Precisa,

então, se recriar ou criar-se. Ela precisa continuar a perscrutar, “onde ela tem de

transmutar-se em arte, que é o objetivo propriamente visado por esse mecanismo.”76

Arte sempre considerada como criação.

Mas esse modo de conhecimento, que tem no homem teórico seu criador, antes

de entrar em declínio, ou mesmo sendo ele em si decadente teve êxito e foi capaz, desde

Sócrates, de consolidar-se a ponto de cobrir todo o orbe terrestre com suas proposições,

com seu véu. Véu no sentido de ilusão prazerosa, aquela gerada pelo coro. Aqui, no

caso de Sócrates, se trata mesmo de engano, engodo, mentira. Esse espírito nascente

com Sócrates, “conduziu a ciência ao alto-mar de onde nunca mais, desde então, ela

pôde ser inteiramente afugentada”,77

fato, aliás, que faz com que qualquer impetulante

que ouse propor algo novo, dizer que ela está em alto-mar e precisa voltar para a terra, é

logo reprimido e classificado como portador de uma chaga das mais bravas. Esse

mesmo navegante do alto mar “produz uma rede conjunta de pensamentos é estendida

pela primeira vez sobre o conjunto do globo terráqueo, com vistas mesmo de estabelecer

76

NT, 1992, p. 93. 77

NT, 1992, p. 94.

44

leis para todo sistema solar.”78

Por essa maioria, por ter conseguido se impor a todo

orbe terrestre essa ciência advoga ser a única capaz de dizer sobre o ser. Mas é apenas

por isso.

Esse modelo de conhecimento e de sociedade que emerge desse núcleo tem

pretensões, mas deixa rastro e contradições. Para esse modelo, no qual o erro é

abominável, o que vale são seus “mecanismos dos conceitos, juízos e deduções [...]

considerado, desde Sócrates, como a atividade suprema e o admirável dom da natureza,

superior a todas as outras aptidões.”79

Esse fazer foi preterido aos morais e qualquer

outro, o que inclui, certamente, o fazer artístico. Porém, e esse é sempre o pano de

fundo que Nietzsche está arrolando aqui, tal postura encontra com contradições no seu

próprio interior. E na proposta sobre um novo olhar para a verdade, projeto maior de O

Nascimento da Tragédia, a lógica também é acossada. No texto:

“Quando divisa aí, para seu susto, como nesses limites, a lógica passa a girar

em redor de si mesma e acaba por morder a própria cauda – então irrompe a

nova forma de conhecimento, o conhecimento trágico, que, mesmo para ser

apenas suportado, precisa da arte como meio de proteção e remédio”. (NT,

1992, p. 95)

Nietzsche nos demonstrou, com suas argumentações sobre o homem teórico, que

o modelo de racionalidade oriunda de Sócrates derrubou a tragédia, mas ele

demonstrou, por outro lado, que esse vencedor tem pontos frágeis. Aliás, ele denomina

esse modelo como decadente, por ter negado a força dionisíaca que constitui o real e se

constituindo apenas de uma perspectiva. Em termos ontológicos podemos dizer que a

hegemonia do pensamento lógico que considera apenas o Ser; o principio de identidade,

em relação ao não-ser, ao movimento, ao vir-a-ser, contitui-se em um movimento

fadado a não dar certo. Para SAFRASKI, comentando Nietzsche, “a vontade de saber

domina as forças vitais de mito, religião e arte. A vida humana se aparta do escuro

78

NT, 1992, p. 94. 79

NT, 1992, p. 95

45

fundo de raízes de seus instintos e paixões. É como se o Ser devesse justificar-se

perante a consciência. A vida anseia pela luz, a dialética vence a música trevosa do

destino.”80

Ao demonstrar que a vida sem o conhecimento trágico é um projeto fadado ao

fracasso, pois a razão não consegue dar resposta satisfatória para as contradições da

vida, Nietzsche prepara seus argumentos para demonstrar que o conhecimento trágico

pode voltar. Certamente não será ele quem vai fazer esse retorno, mas será a música de

Wagner sua grande esperança.

1.5. O RENASCIMENTO DA TRAGÉDIA E DO CONHECIMENTO TRÁGICO

O projeto de Nietzsche em pensar um modelo de cultura baseado no

conhecimento trágico é para confrontar com os limites do conhecimento racional de seu

tempo. Para fazer esse confronto ele procura descrever a origem e como se caracteriza o

conhecimento trágico. Nesse movimento ele demonstra, por comparação, o limite do

conhecimento racional que denomina como conhecimento socrático. Certamente, para

seus leitores de hoje, sabemos que não se pode concordar com tudo o que foi escrito

nessa obra. O próprio Nietzsche, por exemplo, vai romper com Wagner que nesse

momento se apresenta como o artista capaz de fazer surgir a arte trágica. Se ele, nessa

fase de sua vida, ao pensar o surgimento da tragédia em solo alemão tinha em vista

Wagner e seus projetos, logo mais, com o andamento dos fatos, irá perceber que

Wagner não consegue fugir de alguns equívocos burgueses, como o culto ao egoísta.

Porém, no momento de redação de O Nascimento da Tragédia, Nietzsche vislumbra

Wagner como o artista capaz desse ressurgimento do conhecimento trágico. Nietzsche

enquanto um professor engajado em projetos culturais, certamente vislumbrava um

80

SAFRANSKI, Rüdiger. Nietzsche: biografia de uma tragédia. Trad. Lya Luft. São Paulo: Geração

Editorial, 2001. p. 55

46

modelo de formação do homem de seu tempo. E é esse movimento que nos leva a tomar

as linhas de O Nascimento da Tragédia como um arcabouço relevante na compreensão

do pensamento de Nietzsche. Se ele fantasiou, quem não o faz quando cheio de vontade,

de esperança, devemos ponderar tais licenças e observar o que há de novo e pertinente

em meio a isso.

Nossas ressalvas, também, não podem levar a uma idéia de que a obra é toda um

engano, como um belo motivo de base. Como estamos acompanhando suas linhas,

podemos notar que sua crítica ao conhecimento vigente, suscita questões relevantes no

âmbito do conhecimento. Sua análise sobre o conhecimento trágico nos apresenta que é

enquanto criação que a vida pode fazer mais sentido, também, não pode ser furtado de

pertinência. Não só em nome da pulsão da vida, em nome de um cerne cheio de vontade

de vida, é que devemos dar continuidade em nosso labor dissertativo, seguidos e

inspirados pelo estilo trágico da vida, como vem sendo arrolado em O Nascimento da

Tragédia, mas a oferta, proposta de um modelo peculiar na produção de conhecimento e

do próprio conhecimento trágico são motivos que nos incitam a continuar nossa

investigação.

Para um Nietzsche que está de olho no seu tempo, leitor da cena cultural, o

ressurgimento do trágico é a esperança, é seu projeto. Nesse contexto, segundo

MACHADO, aparece:

“A terceira idéia importante do livro é a tentativa de encontrar o nascimento

da tragédia, ou da concepção trágica do mundo, em algumas manifestações

culturais da modernidade. Por um lado, a música de Wagner, grande

motivador e inspirador de suas análises, a quem o livro é dedicado, e em que

Nietzsche vê a volta da arte da Antiguidade, ou, mais precisamente, o retorno

do sentimento trágico do mundo; por outro lado, a filosofia de Schopenhauer,

que teria brotado da mesma fonte dionisíaca que a música e aniquilando o

otimismo socrático”. (MACHADO, 2005. p.11)

Sendo assim, voltemos para assistir Nietzsche a registrar como a arte trágica

pode renascer em solo alemão, e ele já avisa: “[...] de que modo a tragédia, assim como

perece com o esvanecer do espírito da música, só pode nascer desse espírito

47

unicamente.”81

Ou seja, a música certamente é a capaz de fazer esse ressuscitar. Mas

para o artista, no caso Wagner, fazer ressurgir a tragédia, Nietzsche demonstra que há

um contexto para tal. Demonstra que o conhecimento vigente, o conhecimento

científico, não goza mais de todo o poder e soberania. E começa por enfrentar as

ciências:

“Quero falar apenas da oposição mais ilustre à consideração trágica do

mundo, e com isso me refiro à ciência, otimista em sua essência mais

profunda, com o seu progenitor Sócrates à testa. Será mister também,

imediatamente, mencionar pelo nome os poderes que me parecem garantir

um renascimento da tragédia [...]”. (NT, 1992, p. 97)

Quais poderes? Certamente o trabalho de Wagner. Mas antes, como um recurso

no estilo das tragédias de Ésquilo e Sófocles, Nietzsche faz uma revisão sobre donde

deriva a arte, contrário, vale dizer, segundo o próprio texto, dos demais historiadores

desse campo do saber:

“Vejo Apolo diante de mim como o gênio transfigurador do principium

individuationis, único através do qual se pode alcançar de verdade a redenção

na aparência, ao passo que, sob o grito de júbilo místico de Dionísio, é

rompido o feitiço da individuação e fica franqueado o cominho para as Mães

do Ser, para o cerne mais íntimo das coisas”.(NT, 1992, p. 97)

É sob esse olhar que Nietzsche examina os gregos antigos. Ele procura, no

exame de um dado cenário, de uma dada arquitetura, analisar ou divisar os dois

impulsos aí subjacentes. Do cenário, dos figurinos ele extrai suas ações: a saber, Apolo,

o poder de individualizar, e Dionísio, o poder de dissolver as barreiras do indivíduo e

fazer com que tudo volte ao cerne do Ser. Para Nietzsche é essencial a idéia oriunda de

Dionísio como fonte do conhecimento trágico. Ter acesso a esse deus e ao que ele

representa conceitualmente só se faz possível através do êxtase proporcionado pela

música dionisíaca.

É demarcado na citação acima, para que se compreenda bem o ressurgimento da

tragédia, algo de suma importância na leitura de Nietzsche. Pode parecer que Nietzsche

81

NT, 1992, p. 96.

48

tenha dileção por Dionísio, pois ele é a fonte da vida, mas ele sabe que a existência

isolada de apenas um desses impulsos não permitiria a existência da vida. Só com a

existência dos dois impulsos a vida é possível. Não se trata de alguém meramente

dionisíaco, e, desse modo, sem contribuições para o campo do conhecimento conceitual,

regido pela forma. Em O Nascimento da Tragédia a grandeza está exatamente em notar

que os dois impulsos da natureza só existem quando transformado em uma arte que não

suprime uma das partes. Aí é que há a grandeza, onde a tensão permanece, a dor e

contradição da vida não são escondidas, mas assumidas como condição da vida que

mesmo assim vale ser vivida. Certamente Nietzsche pode ser considerado um defensor

de Dionísio na medida que essa pulsão foi suplantada pelo conhecimento teórico. Nesse

sentido é que podemos ver Nietzsche defendendo Dionísio, mas não para dizer que ele é

o único. Sua preocupação é que essa pulsão foi suplantada desde Sócrates e sua

ausência só pode produzir o desgosto pela vida ou o niilismo, um conceito que irá

aparecer mais adiante em sua produção filosófica.

E nesse retorno da tragédia, a música é passagem obrigatória. Ela é a parte

fundamental da tragédia, que Nietzsche toma como sendo uma fiel servidora do deus

Dionísio. Capaz de ser a mais fiel representante a Vontade.

Na construção de seu argumentar sobre o renascimento do trágico, Nietzsche

apresenta o seu conceito de música. Ela é uma parte relevante na trama da tragédia,

pois é uma manifestação artística capaz expressar a Vontade. Sobre a essência da

música, conceito relevante no encadeamento discursivo arrolado em O Nascimento da

Tragédia, Nietzsche toma de Schopenhauer o seguinte dizer: “[...] porque ela não é,

como todas as demais, reflexo do fenômeno, porém reflexo imediato da Vontade mesma

49

e, portanto, representa, para tudo o que é físico no mundo, o metafísico, e para todo o

fenômeno, a coisa em si.”82

Não se pode, considerando a definição de música, cobrar dela o que se fazia

comumente no tocante às artes visuais, ou não é justo impor as regras do socratismo a

um modelo de arte distinta. Não se pode cobrar da música “[...] um efeito parecido ao

das obras da arte figurativa, a saber, a excitação do agrado pelas formas. Após tomar

conhecimento dessa enorme contraposição,”83

isto é, de que o cânone para pensar a

música é distinto do que pensa as artes plásticas, Nietzsche diz: “senti uma forte

necessidade de me aproximar da essência da tragédia grega e com isso da mais profunda

revelação do gênio helênico[...]” E sua questão, então, é: “como se comporta a música

para com a imagem e o conceito?”84

O importante notar é que para o renascimento da

tragédia Nietzsche formula um conceito distinto para a música. Para advogar esse

renascimento é preciso ter outras considerações sobre a música que é peça fundamental

naquilo que a tragédia tem de melhor.

O autor aqui nos aponta para uma questão: como se relaciona à música com o

conceito. Parece-nos inusitado, mas em partes tal ponto em muito responde nossas

indagações sobre estética e educação. Pensando a educação como um processo que se

caracteriza como construção de conhecimento, nada mais pertinente do que essa

consideração no âmbito da tragédia. A tragédia seria esse local por excelência de

educação, local de formação cultural do povo. E nesse sentido nos felicita muito a

pergunta de Nietzsche pela relação entre música e conceito e como Nietzsche pensa essa

relação. Seu entendimento é:

“[...] segundo a doutrina de Schopenhauer, a música como linguagem

imediata da vontade, e sentimos a nossa fantasia incitada a enformar aquele

mundo de espíritos que nos fala, mundo invisível e no entanto tão vivamente

82

NT, 1992, p. 97. 83

NT, 1992, p. 98. 84

NT, 1992, p. 98.

50

movimentado [...]. Duas são as classes de efeitos que a música dionisíaca

costuma, por conseguinte, exercer sobre a faculdade artística apolínea: a

música estimula à introvisão similiforme da universalidade dionisíaca e deixa

então que a imagem similiforme emerja com suprema significavidade.” (NT,

1992, p. 101)

Essa é a marca do conhecimento que emerge da tragédia. A música permite a

participação da coisa-em-si ou Vontade. O conhecimento que se beneficia dessa relação

da música é produzido não pela especulação ou projeção, mas com a “introvisão

similiforme” por participação. Perspectiva a qual estamos pesquisando, isto é, saber

qual relação é possível de se fazer entre os textos aqui demarcados para nossos estudos.

Vamos, no próximo capítulo, fazer uma investigação do que o próprio Nietzsche,

enquanto professor, pensava em termos de métodos e concepções educacionais, mas

aqui já podemos pensar que a música é como aquela capaz de propiciar o lugar mais

adequado para se cultivar o conhecimento escolar. O conceito de musicalização, como

um vetor fundamental no trato da educação, da formação da juventude, é o que se

sobressai desse pensamento. Nos propondo um olhar para a idéia de que uma educação

de qualidade não pode negar a pulsão dionisíaca. Não será, como observamos nos

tópicos anteriores, daquele estilo socrático, do prazer em argüir, investigar as causas e

efeitos dos fenômenos, que encontraremos o terreno fértil para a formação da juventude.

A outra perspectiva de se considerar a música na formação do conceito é de implicações

cognitivas: nesse modelo as criações conceituais são por participação, são criações; e o

que garante uma rede de causa e efeito entre representação e representado é o jogo da

música, é a experiência interior do Ser. Ressurgir a tragédia implica também retomar

uma relação antiga com o conhecimento. Deve-se considerá-lo como criação.

Ainda no mesmo raciocínio, e o que corrobora o que estamos arrolando, isto é,

de que a música dionisíaca é peça fundamental na transposição da Vontade para a

linguagem artística, temos o mito como fruto desse jogo.

51

“Desses fatos [de que é da introvisão similiforme que emerge a

significatividade], em si compreensíveis e de modo algum inacessíveis a

qualquer observação mais profunda, deduzo eu a capacidade da música para

dar nascimento ao mito, isto é, o exemplo significativo, e precisamente o

mito trágico: o mito que fala em símiles acerca do conhecimento dionisíaco.”

(NT, 1992, p. 101)

Essa página do texto do filósofo é rica e nos interessa muito para o projeto aqui

empreendido. Dizendo mais uma vez: demarcar no pensamento de Nietzsche, na obra

em questão, a possibilidade de que é por vias diversas, sobretudo e especialmente, pela

estética, que se produz o autêntico conhecimento e não por ele mesmo, ou pela via da

mera argüição lógica. Qualquer outra via, sobretudo a socrática, é uma empresa falida.

O curioso é que o arcabouço, o contexto, o canteiro do conhecimento não é ele próprio.

O conhecimento racional é uma empresa que na perspectiva da arte trágica só pode ser

não por si, mas depende do êxtase dionisíaco.

No contexto da obra de Nietzsche, essa relação de base para fomentar o

conhecimento formal tem sua origem na música. Ele assim pensa: “deduzo eu a

capacidade da música para dar nascimento ao mito, isto é, o exemplo significativo, e

precisamente o mito trágico: o mito que fala em símiles acerca do conhecimento

dionisíaco.”85

Por um lado o autor lírico, como foi apresentado, nessa nova visão, é o que se

esforça para transformar sua participação na coisa-em-si em imagens, em versos, em

métrica, assevera Nietzsche, por outro lado temos, agora, de pensar a música com uma

particularidade de expressão. Ela, como dionisíaca, não pode se contentar em metrificar,

isso é o lírico nessa nova proposta de Nietzsche, “e onde mais havemos de buscar tal

expressão senão na tragédia e, em geral, no conceito do trágico?”86

85

NT, 1992, p. 101. 86

NT, 1992, p. 101.

52

Há, então, uma nova forma de medir a arte e não se pode pensá-la, o que

Nietzsche denuncia, “segundo a exclusiva categoria da aparência e da beleza.”87

A arte

trágica, o conhecimento trágico, requer um novo parâmetro para ser avaliado. O

ressurgimento da tragédia se dá pela música. Modalidade de expressão que requer uma

nova forma de percepção da arte, que não é mais o modelo das artes da aparência. É

condição para o ressurgimento da tragédia essa nova mentalidade. Temos que romper

com um olhar viciado, pois, caso contrário, vai-se cobrar do conhecimento, de um

modelo educacional, uma categoria que não comporta pensar o novo, radicalmente

novo. “Somente a partir do espírito da música é que compreendemos a alegria pelo

aniquilamento do indivíduo”. Ou seja:

“Pois só nos exemplos individuais de tal aniquilamento é que fica claro para

nós o eterno fenômeno da arte dionisíaca, a qual leva à expressão a vontade

em sua onipotência, por assim dizer, por trás do principium individuationis, a

vida eterna para além de toda a aparência e apesar de todo o aniquilamento. A

alegria metafísica com o trágico é uma transposição da sabedoria dionisíaca

instintivamente inconsciente para a linguagem das imagens: o herói, a mais

elevada aparição da vontade, é, para o nosso prazer, negado, porque é apenas

aparência, e a vida eterna da vontade não é tocada de modo nenhum por seu

aniquilamento.”(NT, 1992, p. 102)

Esse sem dúvidas é o nexo nesse renascimento da tragédia, ou seja, Nietzsche

procura acomodar, mais uma vez, Dionísio e Apolo. A aparente mudança das coisas é

uma máxima da arte apolínea, o que em termos de conhecimento pode nos dizer que as

mil possibilidades, que até paralisa o sujeito conhecedor, não passa de uma aparência e

que por detrás está o eterno, a Vontade. Nesse aspecto é que apagar a consciência

individual, esse transe, pode ser benéfico, pois resolve a angústia do individual diante

do todo, o qual, enquanto indivíduo, se sente esmagado. “Nós acreditamos na vida

eterna‟. Assim exclama a tragédia. [...] Sob a troca incessante das aparências, a mãe

87

NT, 1992, p. 101.

53

primordial eternamente criativa, eternamente a obrigar à existência, eternamente a

satisfazer-se com essa mudança das aparências!”88

O conhecimento trágico não se deixa levar pelas soluções aparentes. Ao

apresentar o caráter passageiro da aparência ele mostra que há algo eterno por detrás e

que é esse “algo” que pulsa em todo existir. No que toca a processos educacionais e

culturais, a Vontade, que sempre se faz representar, é peça fundamental. Educar, assim,

é trabalhar essa vontade, pois é ela que é motora do aprendizado, do querer ler esse

livro, do querer resolver essa equação. Ter essa vontade mal trabalhada ou até mesmo

contingenciada em nome da aparência é se vincular a um projeto falido.

É preciso, portanto, uma acurada compreensão do que é a Vontade e de como,

nos processos de formação cultural e educacional, torná-la viável, cultivá-la. O erro

mais perigoso é quando tomamos a representação como sendo a coisa, o próprio.

“Também a arte dionisíaca quer nos convencer do eterno prazer da existência: só que

não devemos procurar esse prazer nas aparências, mas por trás delas.”89

Nietzsche,

então, quer nos dizer que o renascimento do conhecimento trágico passa por essa nova

perspectiva no que toca o conhecimento apolíneo. É preciso nesse renascimento do

trágico ter em mente essa proposta da Vontade como subjacente ao aparente. E será

assim que se enfrentara alegremente, como os gregos antigos, os temores da vida.

“Apesar do medo e da compaixão, somos os ditosos viventes, não como indivíduos,

porém como o uno vivente, com cujo gozo procriador estamos fundidos.”90

Mais um aspecto que Nietzsche levanta, nesse momento de demarcar o

renascimento da tragédia, é que a música que embalava a criação do mito não permitia

ao mesmo tempo dá uma clareza conceitual, uma explicitação verbal, de todas a forças

contidas no mito. Esse movimento, dizendo de nosso jeito, mais parece com o percurso

88

NT, 1992, p. 102. 89

NT, 1992, p. 102. 90

NT, 1992, p. 103.

54

que se faz no estudo de Filosofia. Por se tratar de uma leitura formativa e que exige

maturação, ao ler um texto temos uma compreensão geral, sobressai, por assim dizer,

uma figura do todo. Em uma nova aproximação, com mais maturidade, observa-se saltar

do texto mais detalhes antes não percebidos. Ora! Nos perguntamos, como isso passou

sem ter notado? Mas no que toca a tragédia isso não é problema, pois a força embalada

pela musicalização sempre lhe faz presente à totalidade da cena, mesmo que na

consciência do indivíduo só apareça uma parte. O mito, desse modo, revela sua força.

Ele é sempre dotado de totalidade, mesmo que naquele momento o indivíduo só perceba

uma parte. Esse aparente esquecimento é mais profícuo do que a razão pode imaginar.

Segundo Nietzsche, “[...] aquilo que o poeta da palavra não alcançava, a suprema

espiritualização e idealidade do mito, ele, como músico criador, podia conseguir a todo

instante.”91

O que prova que a participação do Ser propicia encher-se de sentido que irá

municiar a criação do poeta.

Interessante notar que os motivos e propósitos do aparente não subjaz nele

próprio. A lógica por assim dizer, o que dá sentido, encontra-se não na métrica

conceitual, mas na música enquanto expressão “mais” genuína da vontade. A música é

que move a cena.

1.6. COMO SOBREVIVEU O TRÁGICO: DOIS TIPOS DE SERENOJOVIALIDADSE

Em recapitulação, e, vale dizer, como nas tragédias, Nietzsche, nesse percurso

de dizer como a tragédia está preste a renascer, fala novamente sobre a música e de seu

poder de pulsão, de produção e de como ela se vincula daquela época aos seus dias.

Nietzsche nota que a música foi substituída pela razão lá entre os Gregos. Mas em seus

argumentos em torno do renascimento da tragédia ele diz que nem tudo ficou perdido.

91

NT, 1992, p. 103.

55

Sua sutileza é demonstrar que a pulsão trágica da vida persistiu meio que às escondidas.

No seu texto assim é expresso:

“Essa luta do espírito da música por revelação figurativa e mítica, que se

intensifica desde os primórdios da lírica até a tragédia ática, interrompe-se de

súbito, depois de apenas atingido um viçoso desenvolvimento, e como que

desaparece da superfície da arte helênica: enquanto a consideração dionísica

do mundo, nascida desta luta, sobrevive nos mistérios e, nas mais

maravilhosas metamorfoses e degenerações, não cessa de atrair para si as

naturezas mais sérias. Será que ela não voltará a elevar-se um dia, como arte

para fora de sua profundeza mística?” (NT, 1992, p. 104)

Os argumentos de renascimento do trágico se constituem ora na idéia de que o

trágico não morreu por completo, mas sobreviveu na clandestinidade, ora na idéia de

que Wagner através de sua arte o faz renascer. O texto do próprio filósofo não deixa

dúvida. Seu movimento de ir aos gregos manifesta a intenção de ver nos seus dias qual

fenômeno cultural é herdeiro daquilo que foi esplendoroso entre os gregos pré-clássicos.

Mas sua análise é estética, sua nomeação é estética, procura pelos traços da tragédia, da

manifestação trágica, e encontra alento em algo que lhe dê dileção: a música. É na

música que ele formula seu pensamento sobre o trágico e Wagner é alguém que tem na

música sua arma revolucionária. Pensa que através das tragédias, como momento

cultural comum de seu tempo, é que vai formar o novo alemão, precisamente, formar o

espírito alemão. Mas algo ainda lhe preocupa. As forças contrárias ao conhecimento

trágico.

“Aqui nos ocupa a questão de saber se a potência por cuja atuação contrária a

tragédia se rompe, encontará em todos os tempos com força suficiente para

impedir o despertar artístico da tragédia e da consideração trágica do mundo.

Se a tragédia antiga foi obrigada a sair dos trilhos pelo impulso dialético para

o saber otimista da ciência, é mister deduzir desse fato uma luta externa entre

a consideração teórica e a consideração trágica do mundo”. (NT, 1992, p.

104)

Ao acompanhar a decadência da música, podemos notar que as condições

trágicas do conhecimento, o que envolve uma plêiade de condições estéticas na

produção do conhecimento, deu lugar ao conhecimento teórico. Essa luta da música

56

também teve no olhar de Nietzsche uma mudança precisa. Ou seja, em um momento a

música também sofreu a pressão da razão. “Isso ocorre no desenvolvimento do novo

ditirambo ático, cuja música não mais exprimia o ser interno, a vontade mesma, mas só

reproduzia a aparência de modo insuficiente, em uma imitação mediada por conceitos

[...]”.92

Essa ressalva de Nietzsche certamente tem em vista algo: o que se entende por

música? Para, então, falar que a música é o renascimento da tragédia. Em seu tempo

certamente prevalecia na ópera um tipo de música, mas ele pontua bem que existem

conceitos e conceitos. A música, lá entre Aristófanes e Eurípides, na Grécia clássica, já

sofria dessa racionalização. “Por meio desse novo ditirambo a música foi convertida, de

forma hedionda, em retrato imitativo da aparência, por exemplo, de uma batalha, de

uma tempestade do mar [...]”.93

Que horror, expressão que caberia bem no estilo vivo do texto de Nietzsche, a

música não é mais a expressão da Vontade, é agora algo de terceira, ou seja, representa

o representado. Representa o fenômeno água, o fenômeno batalha, isso não é música

naquele sentido de representante genuína, de primeira mão, da vontade.

“A música verdadeiramente dionisíaca se nos apresenta como um tal espelho

geral da vontade do mundo: o evento intuitivo que se refrata nesse espelho

amplia-se desde logo para o nosso sentimento, até tornar-se imagem reflexa

de uma verdade eterna. Ao contrário, tal evento, é imediatamente despido de

todo caráter mítico pela pintura sonora do novo ditirambo.” (NT, 1992, p.

105)

Se a música migra para a aparência, ela não poderá auxiliar naquela percepção

trágica da vida. Onde por detrás da aparência há a Vontade. Ainda entre os gregos e na

rota de como a tragédia se foi, “Eurípides [...] é [...] um adepto apaixonado da nova

música ditirâmbica [...]”,94

que é um tipo de música que se impõe parâmetros visuais e

92

NT, 1992, p. 105. 93

NT, 1992, p. 105. 94

NT, 1992, p. 105.

57

racionais. Nesse movimento, nota-se, que o chamado espírito teórico vai se

consolidando e apagando o espírito dionisíaco, como já dissemos.

A música rebaixada: procura ser reflexo da aparência. Perde, assim, seu contato

com a Vontade. E Nietzsche não se contenta com poucos exemplos, sua documentação

na literatura vai demonstrar com veemência essa decadência da música. Sua

preocupação parece-nos justificada, pois seu olhar é inusitado, em sua época reinava

exatamente esse tipo de música, nada mais precavido em suas argumentações construir

provas detalhadas do que ele pretende criticar. Sendo assim ele diz: “Mas é no desfecho

dos novos dramas que se revela mais nitidamente o novo espírito não-dionisíaco. Na

tragédia antiga fazia-se sentir no fim o consolo metafísico, sem o qual não há como

explicar de modo algum o prazer pela tragédia [...]”.95

Só que agora a música não faz

mais “esse consolo metafísico”, pois ela não é expressão da Vontade. Esse modelo de

música acaba por empobrecer a imagem, pois nega sua origem.

A solução para a retirada do cerne propulsor da tragédia, a sua música, foi a

implantação de recompensas terrenas para os heróis. Turvando, com isso a idéia de

tragicidade que é inerente ao aparente. Negando de vez o fundo metafísico, a Vontade

do real. Essa recompensa, esse recurso é que permite a razão uma aparente vitória e

assim, durante um tempo, ela irá garantir serenidade às pessoas; irá construir uma

cultura aparentemente sóbria, como que segura e precavida contra as inseguranças da

vida e, depois, segurança mesma diante o sentido da vida.

Nietzsche utiliza dois recursos para falar das garantia de sentido para vida.

Sentido que ele chama de serenojovialidade e tem por significado a certeza de que a

vida, apesar das contradições e terrores, vale a pena ser vivida. Demonstrando a

fragilidade da serenojovialidade socrática, que é a garantia de sentido para a vida a

95

NT, 1992, p. 107.

58

partir do uso da razão e da lógica, Nietzsche procura justificar, como contrapartida, a

volta do trágico operada pela arte de Wagner. Sua preocupação é fazer essa ligação

entre a arte trágica da Grécia Antiga e o que Wagner estava construindo na Alemanha

tantos séculos depois. Para ele, então, a cultura trágica se escondeu, ficou fora da cena

oficial, sobretudo das histórias oficiais, mas sempre viveu nos porões da história e agora

renasce entre os alemães. Apesar da hegemonia da razão ao longo da história que separa

a Grécia Clássica da Alemanha de seu tempo, Nietzsche pensa que tanto tempo não foi

o suficiente para apagar o trágico. “O deus ex machina tomou lugar do reconforto

metafísico”.96

E com isso acossou o estilo trágico de cena, mas ele não morreu, insiste o

autor: “[...] sabemos apenas que precisou fugir da arte para refugiar-se, por assim dizer,

no mundo ínfero, numa degeneração em culto secreto.”97

O deus ex machina, isto é, a

razão, propõe dar confiança e segurança diante o tormento da vida. Mas sua serenidade,

sua segurança é superficial.

A “serenojovialidade” oriunda da racionalidade socrática pode mais

parecer uma maquiagem de defunto, ou seja, tenta dar belas aparências para uma base

morta. Uma outra forma serenidade é aquela que Nietzsche chamará de autêntica e

preferível, pois sem dúvida brota da concepção trágica da vida. Para ele:

“[...] essa serenojovialidade é o oposto da esplêndida „ingenuidade‟ dos

helenos antigos, que se deve conceber, segundo a característica dada, com a

flor a brotar de um sombrio abismo da cultura apolínea, como triunfo obtido

pela vontade helênica, através de seu espelhamento da beleza, sobre o

sofrimento e a sabedoria do sofrimento.” (NT,1992, p. 107)

Essa tragicidade da vida quando bem equacionada gera uma serenidade, pois é

fruto de uma parceria tensa das duas pulsões da natureza: Dionísio e Apolo, feita na

invenção perfeita: a tragédia grega. Ao contrário dessa forma de serenojovialidade,

96

NT, 1992, p. 107. 97

NT, 1992, p. 107.

59

quando prevalece apenas a razão, observa-se a serenojovialidade proposta pela

socratismo:

“[...] que acredita em uma correção do mundo pelo saber, em uma vida

guiada pela ciência; e que é efetivamente capaz de desterrar o ser humano

individual em um círculo estreitissímo de tarefas solucionáveis, dentro do

qual ele diz sernojovialmente para a vida: „Eu te quero: tu és digna de ser

conhecida”. (NT, 1992, p. 108)

O interessante a notar é que esse dois modelos de levar a vida, no tratamento que

Nietzsche tem dispensado, andam muito próximos, às vezes até chegam em resultados

“aparentemente” iguais. Mas não nos enganemos, adverte Nietzsche, o caso da

serenojovialidade é exemplar: vejamos, no final da citação acima, um detelhe: “tu és

digna de ser conhecida”; repitamos: “conhecida” essa é a diferença do homem teórico e

de sua aparente vitória sobre o fluxo eterno do devir. Ele canta, por assim dizer, vitória

sobre algo que não obteve. Seu propósito é conhecer e não viver. Acha que conhecer é o

suficiente para viver, mas não para Nietzsche não é. A solução tem que ser mais

profunda, passa pelo conhecer, ou por uma criação de metáforas acerca da Vontade,

sobre o eterno devir, mas conhecer racionalmente não garante a apreensão do real.

Um outro detalhe é a pretensão do homem teórico em corrigir, enfeixar, amarrar,

o ser vivente em seus conceitos. A pretensão de apreender através do raciocínio o real é

decadente, segundo as argumentações de Nietzsche, pois nega a pulsão da vida. Aliás,

esse tipo de racionalidade troca o cerne do existir, denominado por Nietzsche como

Dionísio, pelo intelecto. Esse homem teórico não reconhece que a linguagem não passa

de um jogo, de uma criação que procura dar resposta ao principal: a Vontade. Mas não é

ela própria, a coisa em si, sempre é representação disso. A linguagem, aliás, é uma

representação de segunda mão, a música é que seria uma das melhores representações,

pois é reflexo imediato da coisa em si.

60

Na relação da Vontade com a linguagem artística surge a cultura. Seja ela

socrática ou dionisíaca. O fato é que nos dias de Nietzsche é a socrática que venceu e

que canta vitória com uma certa serenidade perante os terrores da vida. Para Nietzsche

a Vontade não é dotada de sentido. Sua ação é imparcial, pois é a natureza agindo e não

se pode falar em questões de valor moral. Seria a natureza cega em questões de certo e

errado. Seu agir, então, por não considerar o certo e errado, produz para a vida humana

muita dor e até mesmo falta de sentido. Mas para Nietzsche é essa mesma natureza que

engendra no humano o sentido para vida, através do impulso apolíneo. A Vontade para

Nietzsche, “é um fenômeno eterno: a vontade ávida sempre encontra um meio, através

de uma ilusão distendida sobre as coisas, de prender à vida as suas criaturas, e de

obrigá-las a prosseguir vivendo”. A vontade, portanto utiliza-se de artimanhas para

compor o que chamamos de real. Segundo Nietzsche ela ora usa os teóricos, com seu

“prazer socrático de conhecer e a ilusão de poder curar por seu intermédio”98

as

contradições do existir. A um outro tipo, a vontade se faz valer das artes e do

conhecimento trágico. Nessa perspectiva trágica o sentido para vida brota da

compreensão de que tudo é criado e deve-se criar a própria vida, dotando-a de sentido.

O homem não precisa procurar um sentido por detrás da aparência. O que ele vai

encontrar é apenas a Vontade, que é, como já dito, sem sentido. O homem trágico,

então, deve compreender que é no jogo da criação onde se encontra o sentido para a

vida. A descoberta que o homem trágico faz é o “consolo metafísico de que sob o

turbilhão dos fenômenos, continua fluindo a vida eterna.”99

Feito essa pontuação dos dois modelos de cultura, uma do homem trágico outra

do homem teórico, o autor insiste em dizer que o modelo vencedor não é o que ele mais

gostaria. Nietzsche até concede ao homem teórico a idéia de que ele também procura

98

NT, 1992, p. 108. 99

NT, 1992, p. 108.

61

dar resposta para a falta de sentido da vida, mas certamente não logra êxito. Observa

que no momento histórico em que ele vive é o homem teórico que está em voga e ele é a

marca da educação. Assim ele no diz:

“Todo o nosso mundo moderno está preso na rede da cultura alexandrina e

reconhece como ideal o homem teórico, equipado com as mais altas forças

cognitivas, que trabalha a serviço da ciência, cujo protótipo e tronco ancestral

é Sócrates. Todos os nossos meios educativos têm originariamente esse ideal

em vista: qualquer outra existência precisa lutar penosamente para pôr-se à

sua altura, como existência permitida e não como existência proposta.” (NT,

1992, p. 109)

Mas no seio desse modelo teórico começa a instalar-se o desconforto. Porém,

antes é preciso reconhecer que a cultura teórica tem uma longa história. Qualquer outra

perspcetiva educacional cultural é sempre vista de lado. O homem teórico ou o

acadêmico da época de Nietzsche ainda é o avaliador da cultura trágica. O homem

teórico, transmutado em homem douto, é que tem o poder até mesmo de falar, sobre

esse outro tipo de cultura: a cultura trágica agora é dita, vista, e aceita, na medida que

passa pelo crivo do homem douto.

“Em um sentido quase aterrador, durante longo tempo, o homem culto era

encontrado aqui unicamente na forma do homem douto; mesmo as nossas

artes poéticas tiveram de desenvolver-se a partir de imitações doutas e, no

efeito capital da rima, reconhecemos ainda a gênese de nossa forma poética a

partir de experimentos artificiais com uma linguagem não familiar,

propriamente erudita.” (NT , 1992, p. 109)

Esse tratamento faz com que o novo não tenha vez. E será nessa aparente solidez

cultura que Nietzsche procura a lacuna para provar o contrário. Aliás, até o novo será

condicionado pelas categorias socráticas, quem não entrar nela simplesmente não existe.

Aqui para Nietzsche o FAUSTO, personagem de GOETHE, representa o

definhamento da cultura teórica, pois a personagem não encontra sentido para vida no

seu labor de cientista. Não encontra consolo para a existência nos conhecimentos

vigentes, e como esse estilo de homem não consegue compreender o “grego autêntico”.

A tranqüilidade proposta pela cultura teórica também chega a seu limite.

62

Um outro argumento que demonstra os limites do conhecimento teórico é a

incapacidade desse em dar ao homem moderno sentido para vida. O otimismo cultural

que teve origem em Sócrates demonstra sinais de fracasso:

“Enquanto o infortúnio que dormitava no sei da cultura teórica começa

paulatinamente a angustiar o homem moderno, e ele, inquieto, recorre,

tirando-os de suas experiências, a certos meios a fim de desviar o perigo, sem

que ele mesmo creia nesse meios; isto é, enquanto esse homem começa a

pressentir as suas próprias consequências, grandes naturezas, com

disposições universais, souberam utilizar com incrível sensatez o instrumento

da própria ciência, a fim de expor os limites e condicionamentos do conhecer

em geral e, com isso, negar definitivamente a pretensão da ciência à validade

universal e metas universais: prova mediate a qual, pela primeira vez, foi

reconhecida como tal aquela idéia ilusória que, pela mão da causalidade, se

arroga o poder de sondar o ser mais íntimo das cosias”. (NT, 1992, p. 110)

Nota-se que Nietzsche constrói seu argumento de que o trágico é uma via

necessária, a partir dos limites da ciência teórica em dar sentido para vida.A demarcação

desses limites da ciência e de que ela não pode tudo é registrado por ele em dois

filósofos. “A enorme bravura e sabedoria de Kant e Schopenhauer conquistaram a

vitória mais difícil, a vitória sobre o otimismo oculto na essência da lógica, que é, por

sua vez, o substrato de nossa cultura.”100

Quando Kant, então, demarca que não é possível, no âmbito do conhecimento

racional, conhecer a coisa-em-si, Nietzsche vê aí uma fundamentação teórica de suma

importância:

“Com esse conhecimento se introduz uma cultura que me atrevo a denominar

trágica: cuja característica mais importante é que, para o lugar da ciência

como alvo supremo, se empurra a sabedoria, a qual, não iludida pelos

sedutores desvios das ciências, volta-se com olhar fixo para a imagem

conjunta do mundo, e com um sentimento simpático de amor procura

apreender nela o eterno sofrimento como sofrimento próprio”.(NT, 1992, p.

111)

Roberto Machado, no seu livro sobre o trágico101

, argumenta que a filosofia

trágica não é apenas falar do trágico, mas trata-se mesmo de uma questão ontológica. E

nesse aspecto Nietzsche assinala acerca do ocaso de um modelo de conhecimento no

100

NT, 1992, p. 110. 101

Cf. MACHADO, R. O Nascimento do Trágico: de Schiller a Nietzsche. Rio de Janeiro: Jorge Zahar

Ed., 2006, 279 p.

63

âmbito ontológico que privilegiou apenas uma dimensão da realidade que é o Ser. O

trágico, por outro lado, se propõe pensar a realidade enquanto dotada de movimento.

Também, com a demarcação dos limites da ciência, Nietzsche demonstra que ela não foi

capaz de produzir um conhecimento de conjunto ou de sentido da totalidade.

No raciocínio de Nietzsche a cultura socrática foi abalada e ela própria percebe

isso. Não mais tem total confiança nos seus propósitos, “o homem teórico se assusta

diante de suas conseqüências e, insatisfeito, não mais se atreve a confiar-se à terrível

corrente de gelo da existência: angustiado, corre pela margem, para cima e para

baixo.”102

Nessa trajetória de declínio moderno do conhecimento socrático temos,

também, um estilo artístico decadente, como nome próprio. “Não se pode caracterizar

de forma mais aguda o conteúdo íntimo dessa cultura socrática do que denominando-a

cultura da ópera.”103

Ela é decadente por um motivo preciso. O que inscreve ela como

rompimento da “serenojovialidade” teórica. Uma das primeiras questões é idéia de

distração presente na ópera, depois a idéia de que é a palavra que tem mais lugar do que

qualquer outra cosia. Sobre esse modo de arte Nietzsche a vê como antinatural, estranho

é seu jeito de ser:

“Esse alternar-se do discurso afetivamente impressivo, mas apenas meio

cantado, e da interjeição inteiramente cantada, que está na essência do stilo

rappresentativo, esse esforço, rapidamente alternante, de agir ora sobre o

conceito e sobre a representação, ora sobre o fundo musical do ouvinte, é

algo tão completamente inatural e tão inteiramente contrário aos impulsos

artísticos tanto do dionisíaco quanto do apolíneo, de igual maneira, que é

preciso inferir uma fonte originária do recitativo situada fora dos instintos

artísticos.” (NT, 1992, p. 113)

Enfrentando aquilo que era muito forte em seu tempo, poderíamos até dizer

como sendo uma novela televisiva nos nossos dias, como menos características de

massa, já que era uma elite econômica que freqüentava a ópera, Nietzsche se dispõe

demonstrar que esse feito cultural está exalando contradição, está cambaleante, dando

102

NT, 1992, p. 112. 103

NT, 1992, p. 112.

64

seus últimos fôlegos e botando abaixo aquela aparente segurança que se propunha a

prevenir o sofrimento do homem. E vai mais adiante na sua tese de que se trata de algo

estranho. Não poupando suas críticas, Nietzsche vai dizer que a ópera não propriamente

arte.

“Basta-os haver reconhecido que o fascínio efetivo e, com ele, a gênese dessa

nova forma de arte residem na satisfação de uma necessidade totalmente

inestética, na glorificação otimista do ser humano em si, na concepção do

homem primitivo como o homem bom e artístico por natureza [...].” (NT,

1992, p. 114)

Enfim, Nietzsche nos apresenta o que é a ópera e o quanto essa arte apresenta

os traços da cultura socrática. “A ópera é fruto do homem teórico, do leigo crítico, não

artista. [...] Entender acima de tudo a palavra foi uma exigência dos ouvintes

propriamente amusicais.”104

Esse mesmo homem “por não perceber a profundeza

dionisíaca da música, transforma fruição musical em retórica intelectual de palavras e

sons da paixão no stilo rappresentativo.”105

Ou seja, o desejo de arte contínua a se

manifestar, só que os meios racionais acabam por perverter todas as nuances da

autêntica arte em coisas estranhas. Tudo isso, pois:

“O pressuposto da ópera é uma falsa crença acerca do processo artístico, a

saber, a crença idílica de que, a bem dizer, todo homem sensitivo é um

artista. No sentido dessa crença, a ópera é a expressão do laicado na arte, que

dita as suas leis com o otimismo serenojovial do homem teórico”. (NT, 1992,

p. 115)

Essa mesma postura, que é a do homem teórico se elegendo capaz de se advogar

em qualquer domínio, é a base das várias negações do conhecimento trágico. É com

essa mesma destreza que o homem teórico arbitra em matérias de ópera, educação e

cultura. “Sobre os traços marcantes da ópera não se estende, portanto, de modo algum,

aquela dor elegíaca de uma perda eterna, mas antes a sernojovialidade do eterno

104

NT, 1992, p. 115. 105

NT, 1992, p. 115.

65

reencontrar, o cômodo prazer de um mundo idílico afetivo, o qual se pode imaginar a

cada momento como efetivamente real [...]”.106

Esse é o modelo de arte que ele pretende combater ou demonstrar suas

contradições. Sua batalha conceitual é contra esse modelo que impera. “Quem quiser

aniquilar a ópera, terá de empreender a luta contra aquela serenojovialidade alexandrina

que nela se expressa tão ingenuamente acerca de sua idéia favorita, sim, cuja autêntica

forma de arte ela é.”107

O que será da tragédia diante desse modelo que faz a música servir a

palavra? “O que será das sempiternas verdades do dionisíaco e do apolíneo numa tal

mistura de estilos, [...] onde a música é considerada como serva, a palavra do texto

como senhor, onde a música é comparada ao corpo e a palavra do texto á alma [...]”.108

Na descrição do que é a ópera Nietzsche registra seus últimos argumentos que

demonstram a viabilidade do renascimento do trágico. Nietzsche acredita que Dionísio

fala novamente e pensar ver em “Bach a Beethoven, de Beethoven a Wagner”,109

esse

ressurgir do espírito da música grega entre os alemães.

Depois de uma longa luta, na descrição da decadência da ciência socrática, da

ópera, Nietzsche acredita profundamente ter fundamentado o que mais lhe alegra, o

renascimento da tragédia.

Sempre enfileirando provas que corroborem suas proposições ele recorre,

novamente, a duas de suas influências nessa época. No campo da filosofia algo parecido

com arte, também, acontece:

“Lembremos-nos em seguida como, por meio de Kant e Schopenhauer, o

espírito da filosofia alemã, [...], viu-se possibilitado a destruir o satisfeito

prazer de existir do socratismo científico, pela demonstração de seus limites,

e como através dessa demonstração se introduziu um modo infinitamente

mais profundo e sério de considerar as questões éticas e a arte, modo que

podemos designar francamente como a sabedoria dionisíaca expressa em

conceitos [...].” (NT, 1992, p. 119)

106

NT, 1992, p. 117. 107

NT, 1992, p. 117. 108

NT, 1992, p. 117. 109

NT, 1992, p. 117.

66

Para ele até mesmo no âmbito da Filosofia se observa o que opera na cultura

alemã de retorno ao conhecimento do trágico. O que representa nesse movimento o

interesse do filósofo em encontra a ligação da Grécia Clássica à Alemanha de seus dias.

E ele diz acerca do povo alemão: “Agora, por fim, após o regresso à fonte primeira de

seu ser, pôde ele ousar apresentar-se, destemido e livre, diante de todos os povos

[...]”.110

Certamente ele vislumbra que aquela “serenojovialidade” grega, produzida pela

tragédia, seja a melhor forma do povo alemão encarar a vida.

1.7. HOMENS QUE LUTARAM POR UMA CULTURA AUTÊNTICA E O DRAMA PERFEITO

O trágico ressurge, como pudemos acompanhar na assídua crítica de Nietzsche a

varias manifestações da cultura socrática, por uma crise da cultura vigente, mas,

sobretudo, pelas mãos de grandes homens criadores de cultura. Agora é vez de exaltar,

como recurso de um filósofo culturalmente engajado, os indivíduos que no seu

entendimento lutaram por uma cultura autêntica, e pelo surgimento, então, da tragédia

nas mãos desses heróis da cultura. Entendido como autêntico aqueles criadores de

cultura que observaram os ditames do conhecimento trágico da vida. As figuras que

Nietzsche toma como referência para esse retorno são Goethe, Shiller e Winckelmam. O

principal desses autores, e que Nietzsche procura identificar, é saber como foi a sua luta

para implementar uma cultura autêntica entre os alemães.

De início Nietzsche lança um olhar de dúvida sobre os heróis, pois há nos meios

culturais uma certa displicência no que toca o conhecimento dos gregos. “Vemos, desde

aquele tempo, (o tempo dos heróis da cultura) degenerar da mais perigosa forma o juízo

sobre o valor dos gregos para a cultura”.111

Aqueles que teriam como função social

promover a cultura não o fazem. Por causa disso teriam os heróis da cultura “em algum

110

NT, 1992, p. 120. 111

NT, 1992, p. 121.

67

ponto capital [...] tampouco aqueles lutadores conseguiram penetrar no âmago do ser

helênico [...]”.112

Essa dúvida que Nietzsche lança sobre os heróis da cultura tem duas

perspectivas. Uma, como estamos vendo no próprio texto de Nietzsche, é fruto do

descaso daqueles que deveriam promover a cultura e não o faz. Por exemplo, a postura

cômoda dos professores universitários. Outra perspectiva, segundo MACHADO, é

“porque [os heróis da cultura] não usaram a boa chave para isso: a música, ou melhor

ainda, a tragédia musical.”113

No encadeamento do pensamento de Nietzsche podemos

fazer a inferência de que se os heróis da cultura tivessem procedido para com os gregos

na sua inteireza, o que incluiria notar toda a riqueza da tragédia grega, sobretudo no que

ela tem de música, não se assistiria o descaso para com os clássicos entre aqueles que

deveriam promover essa cultura na Alemanha de então. Esse descaso aparece onde

menos se deveria esperar:

“é precisamente nos círculos cuja dignidade poderia consistir em tirar água

sem descanso do leito do rio grego para salvação da cultura alemã, no círculo

dos professores das instituições superiores da cultura, é onde melhor se

aprendeu a ajeitar-se rápida e comodamente com os gregos, indo-se não raro

até uma renúncia cética dos ideais helênicos [...] (NT, 1992, p. 121)

Esse descaso no entendimento de Nietzsche não ocorreria se os heróis da cultura

tivessem notado que o elemento chave da cultura trágica grega era a música. Desse

modo não se assistiria a postura de não artista e filósofos dos professores

contemporâneos a Nietzsche. Ao demarcar bem a ausência do elemento musical

Nietzsche certamente está nos levando para Wagner e seu drama musical.

Seus argumentos nos demonstram que é necessário outro tipo de conhecimento.

“Que ninguém tente enfraquecer a nossa fé em um iminente renascimento da

Antiguidade grega”.114

Certamente os universitários acabaram por serem meros

reprodutores, revisores de antiguidades e não tomam para si o projeto de fazer renascer

112

NT, 1992, p. 120. 113

MACHADO, 2005, p. 11. 114

NT, 1992, p. 122.

68

os gregos, e especialmente aquela manifestação cultural genuína que é a tragédia. O que

importa para Nietzsche no renascimento do trágico é que ele consegue resolver a falta

de sentido na sociedade moderna. Mas questões da vida aqui não é a redução da arte e

da vida social, o que comumente os modernos chamam de útil. A coisa é mais profunda.

“O povo dos Mistérios trágicos é o que trava as batalhas contra os persas e, por sua vez,

o povo que conduziu aquela guerra tem a tragédia como necessária beberragem

curativa.”115

É dessa relação entre arte e sociedade, entre o povo que se organiza

enquanto Estado e Povo no entorno de uma manifestação cultural na qual se concilie a

contento as pulsões naturais de Dionísio e Apolo. Nessa perspectiva, de uma dada

manifestação cultural orgânica, vale, mais uma vez ver no seu texto o que ele tem em

mente:

“A tragédia absorve em seu íntimo o mais alto orgiasmo musical, de modo

que é ela que, tanto entre os gregos quanto entre nós, leva diretamente a

música à sua perfeição, mas, logo a seguir, coloca a seu lado o mito trágico, o

qual então, como um poderoso Titã, toma sobre o dorso o mundo dionisíaco

inteiro e nos alivia dele [...]” (NT, 1992, p. 124)

Por um lado temos até aqui aqueles setores universitários que não

compreenderam o que é o trágico. Pois não estão compromissados em fazê-lo surgir; os

trabalhos desses professores não estão à altura daqueles heróis da cultura alemã e de

certo modo o que impera é um tipo de cultura contrária aos gregos.

A música é o ponto principal desse renascimento. Certamente não é qualquer

música, mas é um tipo de “orgiasmo” – dionisíaco é claro, que se transforma em arte.

Em termos de conceituação, de conhecimento, Nietzsche nas vésperas de dar o

nome de uma obra de Wagner, como esse exemplo de renascimento do trágico, retoma

essa relação profícua da tragédia não só na perspectiva da música, de Dionísio. Ele

também pontua o lado apolíneo. E aqui vale dizer, Nietzsche combate o socratismo, mas

isso não quer dizer que toda forma de razão seja socrática. O autor, portanto, não exclui

115

NT, 1992, p. 123.

69

um projeto para a razão. A defesa que Nietzsche faz da música é pelo motivo dela ser

alijado no modelo de cultura teórica. Mas é sempre preciso lembrar que a música

trágica não é algo isolada. A música em Nietzsche deve ser sempre lembrada enquanto

tragédia, pois:

“A tragédia interpõe, entre o valimento universal de sua música e o ouvinte

dionisicamente suscetível, um símile sublime, o mito e desperta naquele a

aparência, como se a música fosse unicamente o mais elevado meio de

representação para vivificar o mundo plástico do mito”. (NT, 1992, p. 125)

Esse conceito já foi apresentado anteriormente na obra, mas sempre é bom dizer

algo: Nietzsche escreve como se tivesse produzindo uma peça de tragédia. Daí esse

recurso da recapitulação parece ser na intenção de criar essa atmosfera trágica.

Ademais, ele faz isso na preparação para dizer algo novo. Que é a apresentação da obra

de Tristão e Isolda, tragédia de Wagner, como o exemplo encarnado de renascimento da

arte trágica; depois de uma longa preparação, em um percurso que descarta, de modo

fundamentado, as ciências, a ópera, os estabelecimentos de ensino que não promovem o

nascimento do trágico. Essa obra de Wagner é apresentada como aquela que fala pela

música: “sem o auxilio da palavra e da imagem, apenas como um prodigioso

movimento sinfônico.”116

Esse é, sem dúvida, o modelo do drama ideal que Nietzsche

pensa estar presente em Wagner.

É no entendimento desse drama que podermos compreender o real surgimento

da tragédia. Feito que as universidades não conseguiram. Essa relação da música com a

imagem, dentro de uma perspectiva cultural nos lança a indagação de que para os

processos cognitivos deve-se ater a essas bases. Como caminho que prepara o indivíduo

para os emaranhados teóricos.

A música e, sobretudo, a musicalização, conceito mais amplo do que a música

relaciona-se com a Vontade, aliás, é a expressão mais fiel da Vontade. Será essa

116

NT, 1992, p. 126.

70

vontade que incessantemente se põe, se expressa no apolíneo. Compreendendo a cultura

e os conhecimentos um arcabouço apolíneo, logo se vê a fertilidade dessa senda

interpretativa.

O mito, nessa relação com a música é uma forma de proteção e ao mesmo

tempo, como uma vela de barco, o propulsor de significados. O mito é movido pela

música; o mito seria a expressão mais produtiva da Vontade em termos de palavra. O

mito, por essa relação íntima com a Vontade, nos oferece uma “significatividade

metafísica tão impressiva e convincente que a palavra e a imagem, sem aquela ajuda

única, jamais conseguiria atingir.”117

Nessa relação entre a parte e todo, que é o jogo presente no drama, Nietzsche

ainda disserta mais para esclarecer a arrumação que ele julga perfeita nessa

manifestação:

“Aqui se infiltram, entre a nossa mais alta excitação musical e aquela música,

o mito trágico e o herói trágico, no fundo apenas como símiles do fatos mais

universais, de que só a música pode falar por via direta. Com símile, porém,

apenas o mito, se o nosso modo de sentir fosse o de seres puramente

dionisíacos, permaneceria ao nosso lado, despercebido e ineficaz, e não nos

desviaria por um instante sequer de prestarmos ouvido ao eco das universalia

ant rem [universais anteriores à coisa]”. (NT, 1992, p. 126)

O herói e o mito é o remédio, o que salva o indivíduo da participação do todo.

Mito e herói, também, são fundamentais nesse drama, aliás, essa é parte mais eficaz e

rica da tragédia. São esses elementos que a fazem da tragédia um eficiente instrumento

de formação do povo.

Mais um mote argumentativo que nos autoriza dissertar sobe as implicações

entre estética e educação. Ou seja, a forma como é composta a tragédia, como

explicitados na citação acima, forma aquilo que já dissemos ser uma espécie de

atmosfera estética e aí o indivíduo é levado a fazer experiência do Ser. Efetivando uma

117

NT, 1992, p. 125.

71

formação muito mais eficaz por permitir a participação do Ser e não a uma mera

dialética.

Se o autor elogia a pulsão dionisíaca, ele não deixe de demarcar a função e o

papel relevante do apolíneo. Ele o situa e realça seu papel na arquitetura da vida.

“Assim, o apolíneo nos arranca da universalidade dioniosíaca e nos encanta

para os indivíduos: neles encadeia o nosso sentimento de compaixão, através

deles satisfaz o nosso senso de beleza sedento de grandes e sublimes formas.

Faz desfilar ante nós imagens de vida e nos incita a aprender com o

pensamento o cerne vital e nos incita a apreender com o pensamento o cerne

vital nelas contido. Com a força descomunal da imagem, do conceito, do

ensinamento ético, da excitação simpática, o apolíneo arrasta o homem para

fora de sua auto-aniquilação orgiástica e o engana, passando por sobre a

universidade da ocorrência dionisíaca, a fim de levá-la à ilusão de que ele vê

uma única imagem do mundo, por exemplo, Tristão e Isolda, e que, através

da música, apenas há de vê-la melhor e mais intimante”. (NT, 1992, p. 127)

Ainda nessa senda de como o dionisíaco faz e auxilia o apolíneo. É no drama

perfeito que esse equilíbrio se dá. Sem nunca perdermos de vista que não ocorre uma

síntese ou solução das forças. Apenas coabitam. Nietzsche assim o descreve: “Com essa

harmonia preestabelecida que impera entre o drama perfeito e a sua música, alcança o

drama um grau supremo de visibilidade, de outro modo inacessível ao drama falado.”118

O autor vê no drama uma miríade de possibilidades no que toca a revolução cultural, o

renascimento da tragédia grega e, por conseguinte, o surgimento em solo alemão

daquele fenômeno cultural alcançado pelos gregos pré-clássicos, e, como mais um

detalhe exaltado, nesse drama, com seus recursos, ele permite uma maior claridade

conceitual. Mais adiante ele contínua:

“Assim todos as figuras vivas da cena se simplificam diante de nós nas

linhas melódicas a moverem-se independentemente até atingirem a clareza da

linha ondulada, assim a contigüidade dessas linhas ressoa para nós (...)

através dessa alternância, as relações das coisas se nos tornam imediatamente

perceptíveis, [...] de modo sensível e nunca abstrato [...] E enquanto a música

nos obriga a ver mais, e de um modo mais intrínseco do que em geral, e a

estender diante de nós, qual delicada teia, o evento da cena, para o nosso

olhar espiritualizado a mirar para o íntimo, o mundo do palco se amplia

infinitamente, assim como se ilumina de dentro para fora” (NT, 1992, p. 128)

118

NT, 1992, p. 128.

72

Nessas linhas o autor afirma, então, essa idéia de que a música potencializa a

própria palavra. Para ele “Que coisa análoga poderia oferecer o poeta da palavra, [...]

aquela ampliação interior do mundo visível da cena e sua iluminação interna?”119

Tomando aqui o real como mundo fenomênico e que, portanto, é o mundo de

Apolo, podemos extrair dessa citação um rico escopo para a reflexão sobre a relação dos

processos cognitivos com a Vontade, enquanto subjacente a todo o real.

Aqui aclara para nós o fato de que o sentido, o mais importante do emaranhado

que constitui o conhecimento, a cena que se desenvolve no palco da senda científico-

conceitual, não se encontra nela mesma, apesar de sua beleza, das artimanhas de Apolo,

mas o mais importante é o cerne dessa ação cênica, que é o real, que é o conhecimento

científico. O fenômeno aqui é tomado exatamente naquilo que é, fenômeno,

inteiramente dependente da coisa-em-si, oriunda daí.

O autor, portanto, destaca que fora desse contexto reflexivo parece ser absurdo:

o não-conceitual é mais importante para que o conceitual aconteça, venha à cena,

apareça no palco. O espírito humano é alçado ao pensar não pelas próprias forças do

pensar, mas pela pulsão dionisíaca que aqui é o próprio ser-das-coisas. “No fundo, a

relação da música com o drama é precisamente a inversa: a música é a autêntica Idéia

do mundo, o drama é somente um reflexo, uma silhueta isolada dessa Idéia.” Pode-se

ponderar, pois que tipo de música, na prática é essa fiel representante da coisa-em-si,

mas a idéia do ponto de vista conceitual, de como o Nietzsche vem desenvolvendo, e de

nos alegrar essa possibilidade da música como representante da Vontade e, portanto, no

drama ser ela o conteúdo, o sangue, da cena.

A observação acima coaduna com o nosso propósito dissertativo é averiguar e

relacionar a estética com a educação nas obras de Nietzsche que aqui demarcamos.120

A

119

NT, 1992, p. 128.

73

educação não como Escola, mas como processos cognitivos, o que, então, abre-se uma

cena rica e fértil para a nossa empresa. As imbricações estéticas nessa perspectiva, aliás,

são indispensáveis, pois é pela via estética que se da o processamento do conhecimento,

escopo fundamental da educação. A via estética vale dizer, aqui compreendida como

representação, percepção sensória, enfim, que se inscreve na clássica asserção de Kant e

Schopenhauer. O que nos leva a notar a pertinência do raciocínio arrolado de que,

através da música, pode haver estreita relação do não conceitual com o conceitual.

Os efeitos de uma percepção de que a música enquanto expressão mais fiel da

Vontade contribui para melhor compreender a cena, pois a cena é como um ventríloquo

que tem como manipulador a Vontade, pode levar ao risco de tomar a cena como sendo

independente e apenas ela basta para a ação, enredo. Isso pode ser uma ilusão da ilusão.

Apolo pode ter vencido o jogo, mas, ironicamente, ele vence apenas na “aparência”.

“Se com a nossa análise resultou que o apolíneo na tragédia obteve, mercê de

sua força de ilusão, completa vitória sobre o proto-elemento dionisíaco da

música, e que ele se aproveitou desta para os seus desígnios, a saber, para

uma elucidação máxima do drama, haveria que acrescentar dede logo uma

restrição muito importante: no ponto mais essencial de todos, aquele engano

apolíneo é rompido e destruído”. (NT, 1992, p. 129)

Nietzsche logo trata de ponderar, como notamos em citações anteriores sobre o

drama perfeito, diz que a música acentua a cena, dá mais clareza para ela, só que esse

efeito não pode esquecer de sua relação primordial. Os conceitos oriundos do trágico

sempre consideram e superam a dor primordial da existência, e por isso é capaz de dotar

a vida de sentido.

Enfim, chega a um termo a relação de Apolo e Dionísio e que revela o estilo do

conhecimento trágico. “Dionísio fala a linguagem de Apolo, mas Apolo, ao fim, fala a

linguagem de Dionísio: com o que fica alcançada a meta suprema da tragédia e da arte

120

As obras de Nietzche que estamos estudando são: O Nascimento da Tragédia, que abordamos no

primeiro capítulo, e Sobre o Futuro dos Nossos Estabelecimentos de Ensino e III Consideração

Intemnpestiva: Schopenhauer Educador, tratadas no próximo capítulo.

74

em geral.”121

Dessa aliança é que Nietzsche vê a forma mais adequada para formar o

povo. , segundo Nietzsche, para formar o povo. Esse poder de fazer com que se crie a

realidade, como véu que encobre o terrível da existência que é falta de sentido. Por isso

é que a tragédia constitui para Nietzsche nesse momento, o renascer cultural mais

desejado, por todas essas suas qualidades em lidar com o tragicidade inerente ao real.

1.8. A EMOÇÃO TRÁGICA

Nesse contexto de investigar na obra O Nascimento da Tragédia uma estética e

sua implicação com a educação, entendida como cognição, é significativo, agora, a

abordagem que Nietzsche faz da emoção do espectador de seu tempo. Ora, para nós, é,

também, de suma relevância essa análise na medida em que são as emoções do

educando que irão determinar o seu aprendizado. Se até esse momento podemos notar

que o conhecimento não-conceitual é relevante para o conceitual, nada mais pertinente

do que abordar e demarcar sobre as emoções. Mas não de qualquer emoção, trata-se

especificamente das emoções oriundas de um novo modo de pensar a vida; o modo

trágico de conceber a vida.

Aqui é fundamental notar que ele convida “o amigo atento” a analisar “suas

experiências” e nessa perspectiva que vamos nos ater:

“Ele há de lembrar-se, efetivamente, de que, à vista do mito movendo-se à

sua frente, sentia-se elevado a uma espécie de onisciência, como se agora a

força visiva de seus olhos não fosse meramente uma força superficial, porém

capaz de penetrar no interior, e como se, agora, as ebulições da vontade, a

luta dos motivos e a corrente engrossante das paixões ele as exergasse diante

de si, com a ajuda da música, tangivelmente visíveis, por assim dizer, qual

uma profusão de linhas e figuras vivamente movidas, e com isso pudesse

mergulhar até o mais delicados mistérios das emoções inconscientes”. (NT,

1992, p.130)

Nitidamente dá seqüência, ou reafirma a idéia de que o dionisíaco, o não-

conceitual, é que reforça e faz vir à luz o conceitual. Aqui, vale uma obsrvação, não se

121

NT, 1992, p. 130.

75

trata de uma relação de subordinação. Dionísio não é a condição de Apolo; esse não está

contido naquele. Mas o que está em e questão, mais uma vez, é aquele relação tensa, na

qual as diferênças permanecem, sem nunca criar uma síntese. Então, de um lado

Dionísio se lança, dá a força, o vetor; mas tudo isso seria inaudito, então entra Apolo,

que metrifica, faz com que essa algo informe ganhe forma e torne palpável aos

humanos, ao entendimento. Sempre aplicando suas metáforas no campo da arte trágica,

do drama, ele fala que esse movimento permite o espectador ir o mais profundo possível

das emoções, “pudesse mergulhar até o mais delicado mistérios das emoções

inconscientes”. Inconsciente como sendo, certamente, aquela parte do dionisíaco em

cada indivíduo. Para Nietzsche, como um exemplo desse fundo que atua na cena:

“O mito trágico só deve ser entendido como uma afiguração da sabedoria

dionisíaca através de meios artísticos apolíneos; ele leva o mundo da

aparência ao limite em que este se nega a si mesmo e procura refugiar-se de

novo no regaço das verdadeiras e únicas realidades [...].” (NT , 1992, p. 131)

Nietzsche faz um confronto do seu conceito de arte trágica com o que era

comum em seu tempo e tinha sua origem em Aristóteles. “Por certo, os nossos estetas

nada têm a nos informar acerca desse retorno à pátria primogênita, da aliança fraterna

das duas deidades artísticas da tragédia, (...)122

Na construção teórica acerca do trágico

Nietzsche discorda da definição e até redução da tragédia a algo moralizante. Para

MACHADO, “é nesse momento que ele critica as interpretações do efeito trágico de

Aristóteles e de Schiller, que, segundo ele, em vez de reconhecerem o jogo estético da

tragédia, são moralizantes.”123

Nietzsche, por outro lado, preconiza a tragédia com o

sendo um feito cheio rico de muitas outras coisas no âmbito da criação artística. Para ele

os estetas de então “não se cansam de caracterizar como propriamente trágica a luta do

herói com o destino, o triunfo da ordem moral do mundo, ou uma descarga os afetos

122

NT, 1992, p. 131. 123

MACHADO, R. C. M. O nascimento do trágico: de Schiller a Nietzsche. 1ª. ed. Rio de Janeiro: Jorge

Zahar Editor, 2006. p. 235.

76

efetuadas através da tragédia[...]”,124

ou seja, não vêm nada além disso. E mais a frente

nessa mesma citação Nietzsche assevera: “Nunca, desde Aristóteles, foi dada, a

propósito do efeito trágico, uma explicação da qual se pudessem inferir estados

artísticos, uma atividade estética do ouvinte.”125

Nietzsche nos apresenta um rico arcabouço analítico. Nesse caso, mais uma vez,

observamos ele nos apresentar uma miríade de possibilidades. Se sua pontuação de que

a arte trágica é algo mais e não se reduz a uma questão moral, ou como “descarga

patológica”, é mais um indicativo de que estamos em um caminho proveitoso quando

pretendemos relacionar a arte trágica com os processos de formação educacional e

cultural. Sua compreensão acerca do trágico preconiza uma participação afetiva e não

meramente racional do cerne da vida, que ele denomina de Vontade. A tragédia no seu

entendimento não é apenas uma atividade que produz lição de moral, mas vai além,

produz condições estéticas capazes de motivar o participante a ir mais a fundo nas

questões da vida e notar que essa arte é um rico jogo de dar sentido para as contradições

da existência.

Nietzsche aposta em um nascimento de “ouvinte estético” e não um tipo que

estava acostumado a ver a ópera, um tipo que era um filho de douto, mas não muito.

Um crítico que não era muito bem crítico, como Nietzsche denomina-o “um estranho

quidproquo com pretensões meio morais e meio doutas, o „crítico”.126

Certamente esse registro de um expectador que se eleva a critico, municiado por

opiniões jornalescas, era algo presente não só na postura do público das óperas, mas,

também, dos alunos para os quais Nietzsche lecionava. E essa disposição de espírito cria

situações que impediam o bom desenvolvimento da arte. “O artista desempenhante já

não sabia de fato por onde começar com um ouvinte assim, que se dava ares de crítico, e

124

NT, 1992, p. 131. 125

NT, 1992, p. 132. 126

NT, 1992, p. 133.

77

por isso espreitava inquieto [...]”.127

O espírito do espectador como fenômeno

tipicamente da cultura socrática é aquele que mesmo sem conhecer uma dada matéria

sente no direito de lançar questões a ela. Mas, segundo Nietzsche, esse tipo estava com

os dias contados e “já é contada entre as incríveis antiguidades de uma cultura

superada.”128

E ele contínua:

“Quem queira, com todo o rigor, pôr-se a si mesmo à prova, a fim de saber o

quanto é aparentado ao verdadeiro ouvinte estético ou se pertence à

comunidadse dos homens socráticos-críticos, deve apenas perguntar-se com

que recebe o milagre representado na cena [...]”. (NT, 1992, p. 134)

Será de acordo com nossas emoções que saberemos se somos um espectador

trágico ou socrático. Descobrir-se socrático não é suficiente para, então, virarmos o

jogo, pois ou outro modo não nos é conhecido e não é uma mera outra coisa. O trágico é

também complexo.

O trágico é preferível, segundo o entendimento de Nietzsche, por ele ser a

forma mais apropriada de lidar com as contradições vida. O socratismo, por outro lado,

não seria possível dado as suas várias lacunas. Nietzsche, também, no olhar de

MACHADO “crítica a interpretação patológica da catarse, em nome de uma explicação

estritamente estética da tragédia.”129

Interessante notar que a disposição emotiva do espectador socrático acaba por

acossar o mito. Não o aceita e sempre o coloca na balança da razão, das cadeias causais,

o que, desse modo, sempre acossa a narrativa mitológica. Mas para Nietzsche o mito é

“a imagem concentrada do mundo, a qual, como abreviatura da aparência, não pode

dispensar o milagre.”130

É peculiar a proposta do mito como síntese e com presente ou como necessário

na composição do real e é com esse poder que o mito, não considerado naquela

127

NT, 1992, p. 133. 128

NT, 1992, p. 133. 129

MACHADO, 2006. p. 235 130

NT, 1992, p. 134.

78

disposição do espectador socrático, propicia ao outro tipo de espectador, o dionisíaco, a

rica e proveitosa relação de êxtase, e de que a cena no palco é muito mais rica do que

lições morais. Para poder, então, ver essa “boa nova” devemos nos desvencilhar da idéia

de que o mito é algo “antigo e que só servia aos gregos antigos”. Outra visão de mito

comum entre nós socráticos, é achar que se trata de algo dos índios, povos nativos, que

tem uma “visão mitológica” do mundo. “Sem o mito, porém, toda cultura perde sua

força natural sadia e criadora: só um horizonte cercado de mitos encerra em unidade

todo um movimento cultural.”131

Acompanhando o raciocínio sobre o mito, notamos o quanto nossa disposição,

nossas emoções são socráticas, isto é, como é hábito avaliarmos o mito como algo do

passado, algo de alguma cultura aborígine. Superando esse véu socrático que tem

pretensão de verdade, nos deparamos com o seguinte: opomos à idéia do mito o “mito

da razão”. O modo que comumente nos armamos contra a idéia do mito se arvora em

um conjunto de elementos que e analisados com cautela podemos notar que detém

características exatamente míticas. Aliás, esse são os caracteres do mito da razão,

refutar os demais mitos e se por no seu lugar.

Para melhor entendermos o movimento argumentativo de Nietzsche esse trecho

não deixa dúvidas:

“Coloque-se agora ao lado desse homem abstrato, guiado sem mitos, a

educação abstrata, os costumes abstratos, o direito abstrato, o Estado

abstrato: represente-se o vaguear desregrado, não refreado por nenhum mito

nativo, da fantasia artística; imagine-se uma cultura que não possua nenhuma

sede originária, fixa e sagrada, senão que esteja condenada a esgotar todas as

possibilidades e a nutrir-se pobremente de todas as culturas – esse é o

presente, como resultado daquele socratismo dirigido à aniquilação do

mito.(NT, 1992, p. 135)

O filósofo reitera a idéia de que o suporte da cultura é o trágico e não a

racionalidade fundada por Sócrates. O sentido da cultura não está apenas na razão. Essa

131

NT, 1992, p. 135.

79

base é a cultura trágica que entre outros expedientes, faz uso do mito, do herói e da

tragédia e a composição das emoções do espectador deve se deixar compor pelo mito.

Deve notar que a tragédia propicia muito mais coisas do que lição de vida. Propícia a

experiência de criação, de significação para a vida. Tipo de saber, amplamente acossado

pela razão, mas extremamente necessário e que precisa ser administrado de modo que

não se suprima o seu jogo estético. A atitude de interpretação racional acaba por

descartar esse tipo de conhecimento “bonitinho”, mas que não serve para nada. O que

Nietzsche demonstra contrário: diz que a razão já é um mito, e como tal tem as mesmas

posturas e trejeitos do outro “mito” que ela procura descartar. No texto do autor:

“Deles [Gregos] tomamos por empréstimos até agora, para a purificação de

nosso conhecimento estético, aquelas duas imagens de deuses, das quais cada

um rege por si um reino estético separado e acerca de cujo contato e

intensificação recíprocas chegamos a ter uma idéia graças à tragédia grega.

Era forçoso que o acaso desta nos parecesse originado por uma dissociação

notável dos dois impulsos artísticos primordiais: ocorrência com a qual

estava em consonância uma degeneração e uma transformação do caráter do

povo grego, e que nos convida a uma séria reflexão sobre quão necessária e

estreitamente entrelaçados estão, em seus fundamentos, a arte e o povo, o

mito e o costume, a tragédia e o Estado”. (NT, 1992, p. 136)

O que de fato está em questão quando um povo ri dos mitos ou racionaliza ele

perde o contato com a Vontade. O indivíduo em sua singularidade, como conseqüência,

se perde nas aparências e perde o sentido para a vida. Um povo vivo e que tem vigor,

“vale precisamente tanto quanto é capaz de imprimir em suas vivências o selo do eterno:

pois com isso fica como que desmundanizado e mostra a sua convicção íntima e

inconsciente acerca da realidade do tempo e do significado verdadeiro, isto é,

metafísico, da vida.”132

Essa capacidade de que fala o texto de Nietzsche é o mito. Sem o qual a cultura

perde seu fundamento, seu vigor, seu viço. E aqui, certamente, o autor procura ver isso

no seu povo alemão. Em que medida ele está importando modas e modismo de outras

132

NT,1992, p. 137.

80

culturas, e pensando que isso é cultura, ou está produzindo em lavra própria essa

condições de surgimento de uma autêntica cultura. Nessa fase certamente Wagner com

sua música é o representante de originalidade, inteligência capaz de fazer nas suas obras

de tragédia surgir o mito, surgir às condições de toda autêntica cultura. Wagner não só

faz, através da música, surgir o mito, mas surgir o grego trágico entre os alemães, assim

é, nessa fase de sua vida, a percepção de Nietzsche.

O movimento de ressurgimento do trágico não se dá só em fatos externos, mas

também no espírito do povo. Nesse sentido ele tem no povo alemão, pressente que aí, na

consciência também algo acontece: “Temos em tão grande conta o núcleo puro e

vigoroso do ser alemão, que nos atrevemos a esperar precisamente dele essa expulsão de

elementos estranhos implantados à força e consideramos possível que o espírito alemão

retorne a si mesmo [...]”.133

Uma cultura, portanto, é feito desse artesanato, feito por

cada indivíduo, no qual o mito, o cultivo do mito é esse contato consigo mesmo, com a

natureza que há em cada um de nós, e nesse movimento é que se ergue uma cultura

original. Aqui não se tem aversão ao românico ou ao francês, a questão é que não se

deve importar cultura, não se compra cultura, não se pode comprar conhecimento, é da

condição do humano ter que produzir isso e ninguém mais pode fazer em seu lugar.

“Miramos o drama e penetramos com o olhar perfurante em seu

movimentado mundo interno dos motivos – e, no entanto, nos sentíamos

como se junto a nós passasse unicamente uma imagem similiforme, cujo

sentido mais profundo críamos quase adivinhar, e que desejávamos puxar,

qual uma cortina, para divisar por trás dela a proto imagens”. (NT, 1992, p.

139)

Desses efeitos descritos nas citações acima é que o verdadeiro espectador

estético participa. Entre os espectadores verdadeiramente estéticos “há de me confirmar

que, entre os efeitos peculiares da tragédia, o que há de mais notável é essa co-

133

NT, 1992, p. 138.

81

presença”.134

O conteúdo aí desenvolvido girava em torno do herói, do mito. E nesse

aspecto: “O conteúdo do mito trágico é um acontecimento épico, com a glorificação do

herói lutador [...]”.135

Aqui a idéia de que é através dessa batalha que a vida se justifica,

ou seja, ter uma vida ganha entre os gregos era sinal de que se consegui isso através de

uma árdua trajetória, e as lutas do herói representavam isso, vencer a vida, ganhar a

vida. Subjaz a esse raciocínio, também, a contraposição que Nietzsche faz da tragédia

como fenômeno estético e não moral. Segundo MACHADO, “contrapondo-se a uma

interpretação moral da tragédia, o que ele faz é propor uma interpretação metafísica, que

vê na tragédia musical, na tragédia em que o mito trágico é expressão da música, uma

metafísica de artista.”136

Essa cena na consciência ou na emoção do espectador é de

fundamental importância; o que ele chama a consciência do trágico.

A arte não é uma resposta à vida dionisíaca, não é resposta às questões que

desesperam a vida, vai além, acerca da arte, então, Nietzsche diz:

“[...] suplemento metafísico dessa realidade natural, colocada junto dela a fim

de superá-a. O mito trágico, na medida em que pertence de algum modo à

arte, também participa plenamente do intento metafísico de transfiguração

inerente à arte como tal” (NT, 1992, p. 140)

O que o autor caminha para demonstrar é que se trata da Vontade, e é essa que a

arte, então, procura ser suplemento metafísico. Ou seja, a Vontade não tem propósito,

ela é cruel, mas ela contínua querendo, se lançando, se fazendo ex-pressar no real, ela

não para, não cessa, e por isso a criação apolínea a envolve com um véu, dá para a sua

falta de finalidade um propósito e com isso faz a vida humana ser algo suportável. Ao

espectador dionisíaco é dado no drama esse direito. O que é distante daquele outro

modo “raciocinante” que esta ali não para participar desse jogo com a Vontade, mas

134

NT, 1992, p. 140. 135

NT, 1992, p. 140. 136

MACHADO, 2006, p. 240.

82

para apenas procurar relações causais entre um amontoado de metáforas que só fazem

sentido quando tomadas como jogo de criação.

A prova de que a arte é suplemento metafísico, segundo Nietzsche, é que

justifica a presença no mito trágico do feio, do desarmônico. Se formos por uma via

moral no trato dessa manifestação artística, a tragédia musical, não teremos êxito, se

procurarmos “defluir o efeito trágico unicamente dessas fontes morais [...] não poderá

crer que haja feito com isso algo pela arte.”137

Nietzsche insiste nessa perspectiva de

criação artística como sendo uma administração dos embates na consciência do

espectador, do indivíduo: “Para aclarar o mito trágico, o primeiro reclamo é justamente

o de procurar o prazer a ele peculiar na esfera esteticamente pura, sem qualquer intrusão

no terreno da compaixão, do medo, do moralmente sublime.”138

Só assim poderemos

notar o que o autor traz de novo nesse âmbito, quando tomamos o teatro trágico como

fonte moral, o que está em jogo é um aceitar o que chamamos de real com sendo real e

não um mero jogo de algo mais profundo. Já nessa perspectiva ele assevera: “o primeiro

reclamo é justamente o de procurar o prazer a ele peculiar na esfera esteticamente pura”,

sem as imbricações morais que impõe a tomada de um mundo fenomênico como dotado

de um estatuto que na percepção de um mundo dotado de pulsões dionisíacas e

apolíneas não comportam. Corrobora isso quando ele afirma:

“[...] de que a existência e o mundo aparecem justificados somente como

fenômeno estético: nesse sentido precisamente o mito trágico nos deve

convencer de que mesmo o feio e o desarmônico são um jogo artístico que a

vontade, na perene plenitude de seu prazer, joga consigo própria”. (NT, 1992,

p. 141)

Para finalizar sua empresa Nietzsche, coerente com suas teses sobre a criação

estética, assevera que: “Música e mito trágico são de igual maneira expressão da aptidão

137

NT, 1992, p. 141. 138

NT, 1992, p. 141.

83

dionisíaca de um povo e inseparáveis uma da outro.”139

Sempre considerando que

Dionísio e Apolo são duas categorias conceituais ricas, que Nietzsche emprega para

fazer sua obra filosófica, essa afirmação, mais uma vez, nos chama a atenção para o fato

de que a cultura, e todo invento dela, toda sua criação no âmbito do conhecimento é

uma criação. Criação entendida não como mera reprodução, vale ressaltar, mas por

aquilo que é próprio da arte humana. Essa criação na dimensão interior do indivíduo é

que permite superar certas faltas de sentido que é próprio do todo ou da vontade. É

pensando nisso, que a criação é que dá sentido, que as emoções do trágico se justificam.

Corroboram nosso raciocínio as afirmações de MACHADO:

“Se, para O Nascimento da Tragédia, a arte é um remédio, [...] ela é um

remédio metafísico. Não um purgante, como Nietzsche interpretava a posição

de Aristóteles, nem um calmante, como pensava Schopenhauer, mas um

tônico, um estimulante capaz de fazer o espectador alegrar-se como o

sofrimento e até mesmo com a morte porque a destruição da individualidade

não é o aniquilamento do mundo, da vida, da vontade. Foi isso que Nietzsche

chamou nessa época de „consolação metafísica‟ proporcionada pela tragédia”.

(MACHADO. 2006. p. 240)

Enfim, foi possível notar nessa seção as implicações das emoções trágicas e com

o renascimento da tragédia. A inovação acerca da emoção do espectador parece-nos

coerente com uma nova forma de pensar a arte trágica. Não seria possível assentar sobre

velhas concepções de tragédia uma nova perspectiva proposta por Nietzsche. No que

toca ao conjunto da obra e sobre a emoção trágica certamente observamos aí muitas

chaves que entrelaçam estética e educação. A concepção do trágico certamente será o

fio condutor desse pensamento. No próximo capítulo vamos observar em dois escritos

de Nietzsche como ele pensou a educação de modo mais institucionalizado. Ou seja,

como ele, enquanto professor, teceu suas considerações sobre esses estabelecimentos e

depois, no mesmo capítulo, como ele aponta com mais precisão no texto da III

Intempestiva, sua concepção de educação.

139

NT, 1992, p. 143.

84

CAPÍTULO II

ESCRITOS SOBRE EDUCAÇÃO

2.1. EXTENSÃO E REDUÇÃO DA CULTURA

Acerca das orientações que irão balizar o seu trabalho em Sobre o Futuro dos

Nossos Estabelecimentos de Ensino140

Nietzsche, já no prefácio, adverte:

“Duas correntes aparentemente opostas, ambas nefastas nos seus efeitos e

finalmente unidas nos seus resultados, dominam hoje os nossos

estabelecimentos de ensino, originariamente fundadas em bases totalmente

diferentes: por um lado, a tendência de estender tanto quanto possível à

cultura, por outro lado, a tendência de reduzi-la e enfraquecê-la”. (EE, 2004,

p. 44)

Quer dizer: para estender a cultura deve-se simplificá-la, reduzir; “ser mais

objetivo” seria o bordão mais evocado pelos burocratas da educação.

Só que esse espírito dito prático é um veneno para a cultura, pois ele

“enfraquece”, simplifica, em um primeiro momento, depois ele toma gosto pelo

superficial é que assume o lugar de cultura, de algo como sendo elevado.

“De acordo com a primeira tendência, a cultura deve ser levada a círculos

cada vez mais amplos; de acordo com a segunda, se exige da cultura que ela

abandone suas mais elevadas pretensões de soberania e se submeta como

uma serva a uma outra forma de vida, especialmente aquela do Estado”.( EE,

2004, p. 44)

Aqui subjaz uma perspectiva interpretativa elitista da cultura. Essa postura é

para nós desconcertante na medida em que somos abarcados por visões ora marxistas ou

liberais acerca do que é educação. Scarlet Marton expresa muito bem essa questão

quando nos adverte que o projeto de Nietzsche é distinto de dois modos de concepção

educacional que nós é comum nos dias de hoje. Segundo Marton:

“Distante do projeto pedagógico do Iluminismo, considera que a cultura não

é dada a todos. Mais afastado ainda do ideário marxista, acredita que ela cabe

140

Adotamos, para a citação da obra Sobre o Futuro de Nossos Estabelecimentos de Ensino, a convenção

proposta pelos Cadernos Nietzsche segundo a qual a referência à obra pode ser através de suas iniciais

BA/EE. (BA/EE trata-se de Über die Zukunft unserer Bildungsanstalten/Sobre o Futuro de Nossos

Estabelecimentos de Ensino.) Como adotamos para consulta apenas o texto em português vamos utilizar

apenas EE, seguida pelo ano da edição, em português, e pelo número da página correspondente à idéia

e/ou citação da obra.

85

a uns poucos. Tornar os homens felizes não faz parte de seu desiderato;

melhorar a humanidade não constitui um próposito seu. Partidário da

aristocracia do espírito [...] defende a tese de que todo esforço cultural deve

visar a engendrar homens excepcionais” (MARTON. In: AZEREDO, 2008,

p. 18)

Resta-nos fazer uma exegese que procure administrar o fato de que realmente os

argumentos arrolados pelo autor têm alguma pertinência, ademais, certamente sua tese

de cultura para formar os grandes homens é uma constante não só em sua obra, mas

entre outros pensadores de seu tempo de século XIX. MARTON141

nesse ponto não nos

deixa dúvida em sua leitura. Dizer ao contrário seria impor ao filósofo pensamento

estranho a ele. Contudo, dessa sua crítica, procede alguns frutos que julgamos

fundamentais à critica da idéia de cultura para as massas. Quando se pretende planificar

a cultura, produzindo uma cultura não autêntica, que não brote do próprio povo, o

resultado é esse que ele critica. A extensão e massificação cultural, que tem um orgão

central como promotor. Aliás, o desejo de cultura para todos parte exatamente daí e a

redução de que ele fala decorre, entre outros pontos, desse fato: partir da cabeça de

alguns, algo para todos. Outro aspecto é que para massificar faz-se necessário

simplificar por questões funcionais e ideológicas.

“Ao examinar estas duas tendências fatais à extensão e à redução, nos

desesperaríamos totalmente, se não fosse em determinado momento possível

ajudar a vencer estas duas tendências opostas, realmente alemães e de uma

maneira geral ricas de futuro, quer dizer, a tendência ao estreitamento e à

concentração da cultura, como réplica à extensão, e a tendência ao

fortalecimento e à soberania da cultura, como réplica á redução. [...]”. (EE,

2004, p. 45)

Já na abertura, é posto algo que parece muito contrário às idéias contemporâneas

de educação para todos. Na citação acima, podemos registrar no própro texto do filósofo

o que Marton nos adverte, ou seja, o caráter aristocrático nas concepções de cultura do

filósofo. A idéia de que a educação deve ser um serviço para todos é tão consolidada

que um pensamento contrário é uma blasfema. O autor certamente pensa em algo

141

Cf. MARTON, S. Claustros vão se Fazer Outra Vez Necessários. In: AZEREDO, V. D. Nietzsche:

Filosofia e Educação. (org) Ijuí: Ed. Unijuí, 2008, p. 17

86

reduzido, mas isso não invalida sua crítica. Resta-nos pensar em algo peculiar. Sim,

suas teses sobre a expansão da educação e cultura são pertinentes, esse movimento, o da

expansão, como já dissemos, tende a esvaziar a cultura e subordiná-la a outros fins, isso

não podemos negar. Aqui nos vemos, já de início, embaraçados com a idéia de redução

da cultura e os estabelecimentos de ensino. Certamente, como viventes do século XXI,

temos muito arraigado os ideais burgueses ou comunistas no que tocam a cultura e a

educação e o confronto com a idéia de Nietzsche é inevitável. Nessa encruzilhada

conceitual José Fernandes Weber nos serviu como seta, indicador de qual caminho

seguir. Para ele, quando se apresenta as teses do início das Conferências e que também

serão mantidas na III Consideração Intempestiva: Schopenhauer Educador, logo se

ouve o seguinte: “E já é possível ouvir o coro dos acusadores: “antidemocrático”!,

“tirano”!, “nazista”!.142

Na seqüência ele explica os motivos dessas respostas que

chegam mesmo a impedir a pensar no assunto, pois quem o fizer já é logo considerado

com um dos adjetivos acima. Então ele nos diz:

“Tornou-se habitual entre os democratas comprometidos com a

argumentação e a organização do melhor dos mundos em vias de se tornar

possível um procedimento quase fisiológico, em que o uso de determinados

termos gera conclusões automáticas. Usado o termo X – que aqui é “cultura”

e “pequeno número” –, já não há mais por que buscar compreender. Ou

melhor, a compreensão se processa por curto-circuito. Tentar entender,

justificar, encontrar uma razão mais profunda já é sinal de compromisso com

a opressão. E a despeito de ser politicamente incorreta, a opção aqui

sustentada será buscar entender tanto a argumentação quanto os problemas a

que ela faz frente. (WEBER, 2008, p.522)

Weber, então, nos auxilia a pensar no risco das conclusões apressadas. Em seu

artigo ele também assinala que os reclamantes dessa idéia de restrição são aqueles que,

movidos por egoísmo, estão é preocupados em ter mais um produto. Esse não querem

saber de ser um gênio, mas de ter mais um produto na prateleira do supermercado. Um

estudante movido por essa incultura já se sente em seus primeiros trabalhos digno de

142

WEBER, José Fernandes. Autoridade, singularidade e criação: sobre o problema da formação

(Bildung) em Sobre o futuro dos Nossos Estabelecimentos de Ensino, de Nietzsche. Educação e

Sociedade, v. 29, 2008, p. 522.

87

um Schiller, de um Guimarães Rosa, sem é claro fazer o esforço desses heróis da

cultura. Ainda vamos abordar melhor esse falsos interesses pela cultura, mas agora

nossa atenção ainda é a pressa na elaboração do juízo acerca das teses que Nietzsche

abre suas Conferencias.

Ele próprio já nos indica na abertura algo que em muito sinaliza como lidar

com as idéias da obra em análise: “O leitor de quem espero algo deve ter três

qualidades: ele deve ser calmo e ler sem pressa, não deve sempre privilegiar a si e à sua

“cultura”, não deve, enfim, esperar por encerrar um quadro de resultados.”143

Um balde d‟água nos viciados em sistema, que logo querem saber qual o sistema

a ser proposto pelo autor e, com isso, acaba por sempre trocar um vício por outro. Na

pressa, entra-se em um ciclo vicioso que não opera mundança; pela pressa de mudar.

“[...] leitores calmos, aos homens que não foram ainda arrastados pela pressa vertiginosa

da nossa época precipitada e que não experimentaram um prazer idólatra de se deixar

esmagar por duas rodas [...].”144

O artigo do Professor José Carlos Bruni nos auxília a

formular essa questão da pressa. “A calma e o devagar [...] são antes exigências

essênciais da formação e da cultura, pressupostos que dizem respeito à própria

cultura.”145

Exige-se, para que a autêntica cultura se faça, que “[...] ele [o indivíduo] não

coloque, a si e a sua cultura, como medida e critério seguro de todas as coisas.

Desejamos antes que seja bastante culto para não ter da sua cultura senão uma opinião

modesta [...].” 146

Modéstia, diríamos nós.

As três posturas de leitores, junto com as idéias de redução e extensão, nos

parecem já uma indicação do conteúdo das reflexões do livro. Denotam, também, a

143

EE, 2004, p. 46. 144

EE, 2004, p. 46. 145

BRUNI, José Carlos. O Tempo da cultura em Nietzsche. Cienc. Cult. vol.54 no.2 São Paulo Out./Dez.

2002, p. 33-35 146

EE, 2004, p. 46.

88

dificuldade e peculiaridade do assunto. Consonante com o projeto dos textos aqui

demarcados é inovadora a sua crítica na medida que rompe com a idéia de que educação

deve ser para todos, depois, que educação cultural é a mesma coisa que educação

industrial, técnica. Segundo Noéli Correia de Melo Sobrinho Nietzsche aponta nas

Conferências “[...] os objetivos, os métodos, os conteúdos e as formas da educação dos

jovens, considerando especificamente as relações didáticas entre professor e aluno

[...]”.147

Não propõe um projeto no sentido de reformar o que já existe. Fazendo com

que a base continue a mesma, só fazendo alguns ajustes na educação vigente de seu

tempo. Essas e outras propostas parecem ser inexplicáveis, sensação que certamente

leva o leitor apressado a ficar angustiado, que lê rápido – prefere até jornal por ser já

algo ligeiro. Antes, Nietzsche pressupõe o leitor calmo e sem pressa para poder entender

o que vai dizer sobre educação. Quão irritante deve ser isso para a sua época, e o quanto

é entre nós. Chega parecer inconcebível, mesmo entre pessoas que não são do mundo

acadêmico dizer a ela que você não poder ter pressa, ser calmo soa como uma

contradição demasiada. Mesmo para um público que não lê, caso de alunos e

professores de escolas estaduais, salvo, claro, raras exceções. Tese, a da pressa como

óbvia, que BRUNI nos apresenta ser fadada ao fracasso, pois o tempo da cultura é mais

lento. Aliás, nesse mesmo artigo, temos a idéia de que sob a pressa não se produz

cultura autêntica. Não se desce aos confins do ser. O apressando passa por cima das

sutilezas da existência.148

2.2. O DESINTERESSE COMO FULCRO DA CULTURA

Lançados seus propósitos e tese acerca do conjunto das Conferências, como

apresentamos no tópico anterior, Nietzsche dá abertura em suas exposições

147

MELO SOBRINHO, Noéli Correia de. A Pedagogia de Nietzsche. In: Noéli Correia de Melo

Sobrinho. (Org.). Friedrich Nietzsche: Escritos sobre Educação. 2ª ed. Rio de Janeiro: Loyola - PUC-RJ,

2004, p. 8. 148

BRUNI, 2002, p. 34.

89

demonstrando um trato distinto tanto no jeito de comunicar, quanto na forma de instigar

seu ouvinte. No início de suas conferências Nietzsche exalta seus interlocutores.

Procura contextualizá-los como exceção, como pessoas pensantes. Tudo isso demonstra

duas coisas: primeiro que o professor Nietzsche era alguém amável e que seus alunos

gostavam dele, segundo que se tratava de alguém comprometido com o que fazia,

ensinava. No que toca ao professor, percepção necessária para se compreender bem as

suas críticas à educação, segundo Rosa Maria Dias, “poucos professores foram tão

estimados pelos alunos quanto Nietzsche. Seu temperamento, suas maneiras, o charme

de sua personalidade afável fascinava-os.” 149

Ao dar seqüência na leitura da primeira conferência vem a pergunta: o que é

fantasia e o que seria fato? Ora, um certo exagero nas cenas descritas, para adornar uma

associação literária nos chama a atenção e nos faz olhar o início da conferência com

mais atenção onde o autor demarca bem o que irá fazer e qual o propósito dessa opção.

A esse propósito, Giorgio Colli endossa a idéia de que Nietzsche, para criticar a cultura

vigente, faz uso, como o fez em O Nascimento da Tragédia, de um novo estilo

lingüístico. “Com uma ruptura análoga [a do N.T.], Nietzsche tenta nestas conferências

– que aparecem na esfera mais ortodoxa da comunicação acadêmica – despertar a

fantasia e a memória do auditor, obrigá-lo a considerar os problemas da cultura como

experiências íntimas, pessoais, cujas vibrações todos os que pertencem ao mundo

acadêmico devem ter sentido, pelo menos por um momento.”150

Aqui há implicações, também, com o Nietzsche de O Nascimento da Tragédia,

que se utiliza uma criação poética em que se pode pensar, também, a realidade dita

verdadeira. Nessa criação literária pode-se pensar as forças fundamentais que compõe

149

DIAS, R. M. O professor Nietzsche. In: Vânia Dutra de Azeredo. (Org.). Nietzsche Filosofia e

Educação. Ijuí: Editora Unijuí, 2008, p. 169. 150

COLLI, Giorgio. Escritos sobre Nietzsche. Tradução e prefácio de Maria Filomena Molder. Lisboa:

Relogio D‟Água Editores, 2000, p. 45.

90

uma dada realidade. Sendo assim, ele põe sua fantasia em andamento: “[...] ser

testemunha de uma conversa que homens admiráveis tiveram exatamente sobre esse

assunto, e tenho profundamente gravado na minha memória os pontos mais importantes

de suas reflexões.”151

Propositadamente ele, então, passa a falar de um diálogo, como se

tivesse ouvido uma prosa, fato que mais adiante ele próprio irá dizer que se trata de uma

rememoração vinculada a uma boa dose de fantasia. “Assim, me pareceu cada vez mais

útil descrever enfim com boa fé um semelhante diálogo [...]”.152

Demonstrando, mais

uma vez sua preocupação em criar uma atmosfera mais eficiente na comunicação,

como, também, reforçando a tese de DIAS de que o professor Nietzsche “insistia no

desenvolvimento do senso crítico e da atividade criadora de cada um.”153

A forma como Nietzsche conduz o texto de sua palestra nos revela sua

preocupação em não fazer desse momento acadêmico algo enfadonho. Nietzsche rompe

com o tipo comum de se fazer essas palestras, que se caracterizava por um professor

convidado a versar sobre algum tema. Devia-se apresentar vestido formalmente, quando

fazia a leitura de sua preleção e aos ouvintes não era permitido interromper.154

Mas ele

propõe outro ritmo e espera do ouvinte outra postura. “Ouvintes que advinham

imediatamente o que somente pode ser indicado, que completem o que foi preciso calar

e que, de uma maneira geral, somente precisem que se lhes lembre o que já sabem, e

não que lhes seja ensinado uma coisa nova.”155

Essa exigência em muito se coaduna

com a crítica que Nietzsche vai fazer, mais adiante, acerca da falsa autonomia nos

cursos Universitários. A idéia de que aluno era vinculado a seus mestres apenas pelo

ouvido.

151

EE, 2004, p. 48. 152

EE, 2004, p. 48. 153

DIAS, 2008, p. 169. 154

Cf. CHAVES, E. Nas origens do Nascimento da Tragédia. Introdução à Tragédia de Sófocles. Rio de

Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006, p. 12. 155

EE, 2004, p. 49.

91

O texto de Nietzsche, então, nos leva pensar que ele espera que o ouvinte não apenas

ouça, mas que vá completando e construindo um pensamento enquanto escuta a leitura

que está fazendo. Nietzsche, desse modo, propõe uma atitude de ouvir que é

participativa e não meramente passiva. Preparando desse modo uma condição estética

mais favorável à compreensão do que ele vai comunicar de novo.

“Coloquemos-nos no estado de espírito de um jovem estudante, quer dizer,

num estado de espírito que, na época tumultuada e agitada em que vivemos, é

algo totalmente incrível: é preciso tê-la experimentado para que pudesse

parecer simplesmente possível esta ilusão despreocupada, esta tranqüilidade,

conquistada no momento e, por assim dizer, estranha ao tempo”.(EE, 2004, p.

49)

O desinteresse, atmosfera a que o ouvinte é convidado, no sentido de falta de

utilidade de ser algo para ser usado no mercado, se faz presente nesse vestíbulo das

reflexões das conferências de Sobre o Futuro de Nossos Estabelecimentos de Ensino.

Certamente suas reflexões sobre a tragédia o marcaram, pois naquele contexto sua

denúncia era exatamente da imposição da racionalidade, nas figuras de Eurípides e

Sócrates, sobre a pulsão dionisíaca que é o cerne da Tragédia Grega. A utilidade a que

Nietzsche refuta ao apresentar em seu texto a figura de jovens desinteressados parece-

nos que é uma ressalva contra a postura corrente de fazer a leitura de um texto novo já

imbuído de idéias pré-estabelecidas. A idéia de utilidade, tão constantes nos modernos,

certamente não fazia parte do contexto trágico, pois naquela cultura dos gregos o mais

importante era a própria cultura. Ao invés de impor a tragédia uma necessidade, o que o

grego fazia era vivenciar aí a contradição subjacente à vida e daí glorificá-la. No texto

assim esse desinteresse é apresentado:

“[...] um ano no qual a ausência de qualquer plano e de qualquer objetivo, o

desinteresse quanto a qualquer projeto de futuro têm diante de minha

consciência de hoje o jeito de um sonho, ainda que de ambos os lados, antes e

depois, ele se cercasse de períodos de vigília”. (EE, 2004, p. 49)

92

Nesse espírito de juventude, e fazendo uso de uma narrativa rica em imagens,

Nietzsche propõe, para expor seu pensamento, um exercício de tiro que causa uma

interessante cena. O que parece dá mais vida aos seus argumentos.

A interrupção do velho é enigmática, como o autor evoca seu público ouvinte a

concluir, enfim, pensamos que é estratégico um velho que interpreta logo algo

desinteressado como sendo um duelo. Algo com propósito, algo corriqueiro ou mais

provável. A presença do lugar comum da época, das teorias educacionais que apregoava

a expansão da educação e a redução da cultura para que todos pudessem alcançar,

revelando no fundo as idéias do trabalho útil.

Após descobrir que o velho ia ocupar o mesmo lugar que eles: “Para que serve

toda a filosofia, pensávamos, se ela nos impede de estarmos sós e de gozarmos da

amizade na solidão, se ela nos impede mesmo que nos tornemos filósofos?”156

“[...] como tinha ele [o amigo] temido que hoje, pela primeira vez, o filósofo

o impedisse de filosofar. O velho se pôs a rir „como‟? vocês temem que o

filósofo os impeça de filosofar? Eis que isto pode mesmo ocorrer, e vocês

não experimentaram ainda? Não tiveram a experiência disso na sua

Universidade? Não ouviram, enfim, aulas de filosofia? (EE, 2004, p. 57)

Crítica que nos reporta ao texto de O Nascimento da Tragédia quando ele

constata que os professores universitários não conseguem fazer o trágico por falta de

filosofia. Aqui o jogo entre o interesse pela filosofia, aposta de que os estabelecimentos

de ensino seria o lugar para cultivá-la realça a idéia que nesses estabelecimentos não se

consegue filosofar e o filósofo que aí se encontra não promove a filosofia. “Além disso,

naquela época acreditávamos ainda ingenuamente que aquele que, numa universidade,

tem o nível e a dignidade de filósofo deve ser também filósofo: sim, tínhamos pouca

experiência e estávamos mal informados.”157

156

EE, 2004, p. 55. 157

EE, 2004, p. 57.

93

Imbuídos de propósito elevados os jovens do diálogo pretendem, através da

filosofia, “refletir sobre a melhor maneira de nos tornar homens cultos.”158

Sempre no

jogo do diálogo, Nietzsche põe o velho a dizer aquilo que iremos notar ao longo de seu

pensamento sobre educação: “imitem pelo menos hoje os pitagóricos, que tinham de se

calar durante cinco anos, porque serviam a uma filosofia autêntica [...] para servir à sua

futura formação, com a qual vocês se preocupam de maneira tão urgente.”159

Um jogo de raciocínio que diz muito. Silêncio, paciência e a deixa do velho

filósofo em convidá-los a ficarem quietos, menos ruidosos. Propósitos que revelam que

para se educar é preciso de uma dura disciplina. Submeter-se a princípios rígidos,

dentre ele o silêncio como um princípio cultivado lá entre os filósofos pré-socráticos. A

chamada de atenção por parte do velho para que os jovens se eduquem segundo os

princípios pitagórico, prepara no texto a exposição em que Nietzsche esboça a questão

que acossa a formação, os interesses a idéia e utilidade:

“Não esqueçamos que, graças a esta associação, jamais pensamos naquilo

que se chama comumente de profissão. A exploração quase sistemática que o

Estado fez destes anos, na medida em que quis o mais cedo possível atrair

para si funcionários utilizáveis e se assegurar, através de exames

excessivamente rigorosos, da sua docilidade incondicional, tudo isso estava

muito distante da nossa formação; não éramos determinado por qualquer

espírito utilitário, qualquer desejo de progredir rapidamente e fazer

rapidamente uma carreira; [...] Já disse que esta maneira de se satisfazer com

o momento sem imaginar um objetivo, de se embalar numa cadeira de

balanço ao ritmo do momento, deve parecer quase incrível [inacreditável], em todo caso, censurável na época atual, que se desvia de tudo o que é

inútil”. (EE, 2004, p. 58)

E propor uma educação que tenha por finalidade ela própria parece ser uma

aberração em épocas modernas. Mas Nietzsche questiona que a imposição ainda muito

cedo, de objetivos entra em contraste com uma outra educação sem essa interferência.

Modelo que permite o apreciar o momento, o presente, “o momento sem imaginar o

objetivo”. Aqui temos que caminhar, no que toca a educação desinteressada, sob um

muro. Onde de um lado temos o humanismo da época e que pode ser, também,

158

EE, 2004, p. 57. 159

EE, 2004, p. 57.

94

considerado a cultura desinteressada da burguesia, que no fundo remete a cultura

ilustrada das elites. Sociedade na qual o poder é tiranamente imposto sobre a maioria

que financia o desinteresse dos ilustrados. De outro temos o interesse Liberal, o do

trabalho como fulcro sagrado da vida humana. Trabalho vale dizer, como forma de,

também, exercer o poder. Como cultivar, então, esse desinteresse da associação cultural

de que fala Nietzsche? Certamente a ebulição cultural por que passava o Nietzsche do

ginásio, necessitava de um canteiro para florescer e uma das coisas, ervas daninhas que

se deve arrancar desse canteiro é a utilidade. Blasfêmia que nos exigiria um homérico

esforço para acomodar em nosso seio essa verdade, a da supremacia da cultura sem

interferências.

Nietzsche propõe um olhar que procura fugir as duas possibilidades. Ele já lança

aqui no início de suas conferências em Sobre o Futuro de Nossos Estabelecimentos de

Ensino algo que irá dizer de vários modos ao longo delas e na III Consideração

Intempestiva: Schopenhauer Educador. A saber:

“Ninguém aspiraria a cultura se soubesse a que ponto o número de homens

verdadeiramente cultos é, enfim, e não poderia deixar de ser, incrivelmente

pequeno; e que, no entanto, nem seque este pequeno número de homens

realmente cultos seria possível, a não ser que uma grande massa [...] se

dedicasse à cultura.” (EE, 2004, p. 60)

Por enquanto as linhas seguintes demonstram uma idéia de que a cultura e o

gênio, seu arauto por excelência, é coisa rara.160

Coisa para poucos. E que a pretensa

democratização é uma farsa, pois, os duros caminhos a que gênio tem de percorrer para

se formar são para poucos e querer logo ser gênio é mais uma expertise da vida

moderna, que sempre quer as coisas de modo fácil. Essa excepcionalidade do homem

de cultura, como nos auxilia a compreender MARTON,161

é também formulado nas

anotações do próprio Nietzsche da seguinte forma:

160

Cf. DIAS, R. Maria. Nietzsche Educador. 3ª ed, São Paulo: Scipione, 2003, p. 81 (Col. Pensamento e

Ação no Magistério). 161

MARTON. In: AZEREDO, 2008, p. 18.

95

“Fala-se muito da república dos eruditos, mas não da república dos gênios.

Esta funciona da seguinte maneira: um gigante grita a outro através do

deserto espaço intermediário dos séculos, sem que o mundo dos anões, que se

arrasta aos seus pés, perceba mais do que um murmúrio e entenda mais do

que se passa no geral. E, por outro lado, os anões ali embaixo ocupam-se com

incessantes farsas e fazem muito barulho, arrastam-se com aquilo que

deixaram cair, proclamam heróis, que também são anões, pelos quais os

espíritos gigantes não se deixam perturbar, mas prosseguem com sua elevada

conversa espiritual” (26[14] NIETZSCHE, Inverno de 1872-73)162

Essa anotação do filósofo consolida o que também MARTON nos indica. A

crença nos grandes homens e cultura. Nietzsche, então, questiona a tentativa de se fazer

o contrário. “Democratizam-se os direitos do gênio para suavizar o trabalho que exige

uma formação, para arrefecer a carência pessoal de cultura.”163

As pretensões

burguesas que tudo reduz segundo lógica da compra, do capital. E que: “Acreditas

alcançar com um só golpe o que eu pude finalmente conquistar, depois de um combate

longo e obstinado, com o objetivo exclusivo de viver como filósofo?”164

A cultura é algo de difícil produção, para poucos. No seu tempo parece que se

procura sistematizar a produção de cultura, e de modos diversificados, Nietzsche vai

falar dessa cena, ou seja, ele vai insistir sobre essas teses que foram lançadas já no início

de sua conferência: o dilema de maior número de cultura, o que implica diminuição de

sua qualidade,

No prefácio, o autor apresenta a tese de redução da cultura como sua. Agora,

como recurso lingüístico ele põe o discípulo do filósofo a falar a mesma tese de

extensão e simplificação da cultura como problema capital para o estabelecimento de

ensino.

“[...] a tendência à extensão, à ampliação máxima da cultura, e a tendência à

redução, ao enfraquecimento da própria cultura. A cultura, por diversas

razões, deve ser estendida a círculos cada vez mais amplos, eis o que exige

uma tendência. A outra, ao contrário, exige que a cultura abandone as suas

ambições mais elevadas, mais nobres, mais sublimes, e que se ponha

162

Para essa citação dos fragmentos de Nietzsche fizemos uso da edição em português: NIETZSCHE, F.

Sabedoria para depois de amanhã. Seleção dos fragmentos póstumos por Heinz Friedrich; tradução

Karina Jannini. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 28. (Col. Tópicos). 163

EE, 2004, p. 60. 164

EE, 2004, p. 60.

96

humildemente a serviço não importa de que outra forma de vida, do Estado,

exemplo”. (EE, 2004, p. 61)

Na seqüência do texto, a questão da extensão se resolve ou responde nossas

indagações, que não se comprazia muito com a idéia de restrição. Mas, então, vejamos a

razão do autor. Ora subjaz ao interesse pela extensão os três motivos. Que são:

econômico, religioso ou de Estado. Não é o nobre interesse pelo ato de cultivar-se, mas

aliena-se o que é cultural. Oras! Consideramos que é essa a coisa que mais é humano, o

que se faz, portanto, é deixar de ser humano. O que explica a “barbárie” civilizada.

Acerca de onde surge a necessidade da cultura:

“Em certos países, o temor da opressão religiosa é tão geral e o medo das

conseqüências desta opressão tão marcados, que em todas as classes da

sociedade se encontra um desejo ávido de cultura e se absorve de preferência

os elementos que destroem os instintos religiosos. Em outros lugares, ao

contrário, um Estado [...]”. (EE, 2004, p. 62)

Não se encontra na base necessidade de cultura, mas os motivos são outros. O

que revela a pertinência da crítica de Nietzsche à extensão da cultura. Não se trata de

alguém contrário ao povo, mas aqui de revelar a contradição nesse aparente clamar por

algo que nos faz mais humanos, que é a criação cultural.

Mas é o contrário que soa no grito da massa por cultura:

“Aí portanto, onde o grito de guerra da massa exige uma cultura popular mais

extensa, procuro habitualmente distinguir se este grito foi provocado por uma

tendência exagerada para o ganho e para a posse, ou pelas marcas da

opressão religiosa anterior ou pela clara consciência que um Estado tem do

seu valor.” (EE, 2004, p. 63)

No que toca as ciências também se nota o descompasso. O cientista, o

acadêmico, como já foi aludido anteriormente, também não cumpre papel de promotor

da cultura. Na procura de se tornar um profissional da cultura, ele cai na lógica da

extensão e redução. De que forma: “Se na sua especialidade ele está acima do vulgus,

para tudo mais, quer dizer, para tudo que é importante, não se mostra diferente deste.”165

E também nesse domínio se vê campear a lógica da redução. “A divisão do trabalho nas

165

EE, 2004, p. 64.

97

ciências visa praticamente ao mesmo objetivo que aquele a que visam conscientemente

aqui e ali as religiões: à redução, ou seja, ao aniquilamento da cultura.”166

A praga do “jornalista” ao propor resolver o dilema „aprofundar e estender” ele

resolve, porém de modo mentiroso. Pior, é o bordão jornalístico, quer dizer, o que

pretende facilitar as coisas que assume o lugar do gênio.

O ensino de filosofia em estilo jornal é exatamente isso. “O jornalista é de fato a

confluência das duas tendências: ampliação e redução da cultura dão aqui as mãos.”167

E

Nietzsche não poupa crítica ao jornalista. “O jornalista, o senhor do momento, tomou o

lugar do grande gênio, do guia estabelecido para sempre [...]”.168

O Jornalista é aquele

que reduz, pois tem pressa. Só que com esse movimento não se produz cultura. Como já

observamos, a pressa não é a amiga da cultura, como, também, nos mostrou BRUNI169

quando destaca que a “calma e o devagar” são fundamentais para a cultura. O jornalista,

ao contrário, propõe resumir tudo, adiantar a mensagem. Nesse contexto para que

estudar os gregos, momento cultural de dileção de Nietzsche. “Tudo isso seria inútil,

quando o mesmo estudante, um minuto antes, tenha pego um jornal, um romance da

moda ou um destes livros doutos, cujo estilo já traz consigo os brasões repugnantes da

barbárie cultivada que está em curso hoje em dia.”170

2.3. SITUAÇÃO DO GINÁSIO

Vale registrar certo otimismo, apesar das críticas, no que toca a existência de

estabelecimentos de ensino. Um Nietzsche que vislumbra algo. Apesar de suas

pertinentes e atuais pontuações, que certamente mostra o tamanho monstruoso que é o

estado da educação, dos dilemas em que ela se encontra envolvida, ele, sutilmente injeta

166

EE, 2004, p. 64. 167

EE, 2004, p. 65. 168

EE, 2004, p. 65. 169

BRUNI, 2002, p. 34. 170

EE, 2004, p. 65.

98

no texto ânimo. Isso se revela, por exemplo, no final da primeira conferência. “[...] tu

tens razão em tudo, exceto no teu desânimo.”171

Ou seja, apesar das monstruosidades

não se pode desanimar. E revela seu comprometimento:

“O primeiro que tiver a ousadia de ser totalmente sincero neste domínio

ouviria o eco da sua sinceridade devolvido num milhar de almas corajosas.

Pois, no fundo, existe entre os homens desta época, aqueles cujas disposições

são nobres e calorosos de sentimentos, um acordo tácito: cada um deles sabe

o que precisou sofrer por causa da situação da cultura na escola, cada um

desejará libertar pelo menos seus próprios herdeiros desta opressão, ainda

que ele próprio deva ser sacrificado.” (EE, 2004, p. 67)

O serviço é penoso, mas é possível, pois existem mais pessoas que também

sabem da situação crítica que se encontra o ginásio. Nessa empresa de crítica que

Nietzsche tece sobre o ginásio é preciso, antes, saber o que ele compreende por tal. É

preciso entender em Nietzsche o papel que desenvolveria o ginásio. Segundo Wilson

Antônio Frezzatti Júnior para o Nietzsche das Conferências há dois tipos de escola: “as

profissionalizantes, para a maioria das pessoas, e as clássicas – „superiores‟, „nobres‟ –

adequadas para pessoas escolhidas que estudariam até os 30 anos. Estas últimas seriam

esponsáveis por uma educação independentemente do Estado e por uma renovação da

cultura.”172

Sendo assim, fica mais clara sua afirmação: “todos as outras instituições devem

medir-se pelo objetivo cultural que é visado pelo ginásio [...]. Nem mesmo a

Universidade pode pretender esta importância de centro motriz [...]”.173

Compreendendo

o elevado papel a que reserva ao ginásio Nietzsche procura, agora, tocar em um ponto

que para ele é essencial para avaliar a situação do ginásio. A questão é a língua. “O que

é então, se olharmos com um olho severo, o ensino do alemão no ginásio?”174

E

continua: “Levem sua língua a sério [...] Se vocês não chegarem a experimentar um

desgosto físico por certas palavras e jargões, aos quais os jornalistas nos habituram

171

EE, 2004, p. 65. 172

FREZZATTI JR, W. A. Educação e cultura em Nietzsche: o duro caminho para "tornar-se o que se

é". In: AZEREDO, Vânia Dutra de. (Org.). Nietzsche: Filosofia e educação. Ijuí: Unijuí, 2008, p. 41. 173

EE, 2004, p. 68. 174

EE, 2004, p. 68.

99

[..]”.175

Para DIAS esse é um ponto fundamental para a concepção e bom

funcionamento do ginásio segundo Nietzsche. “Ele vê na aprendizagem conscienciosa

da língua materna e da arte de escrever uma das tarefas essenciais da escola

secundária.”176

No próprio prazer do uso da língua é que se pode notar o apreço ou não pela

cultura ou arte. Esse pensamento também faz lembrar o artista Lírico apresentado em O

Nascimento da Tragédia, como aquele que exprime nas palavras algo oriundo do cerne

da vida, é do transe, da participação dionisíaca, donde ele tira o conteúdo expresso,

coaduna aqui essa idéia que é já a partir da língua materna que se nota o apreço pela

cultura, e sua autenticidade.

A falta de cuidado com a língua expressa o mau funcionamento do ginásio. A

tarefa do ginásio, “a tarefa de uma escola de alta qualidade deve ser, por isso, „adestrar

lingüisticamente‟ o estudante.”177

A importância da dada nas Conferências à língua

muito bem se justifica quando tomamos a língua como aquela pela qual o estudante faz

a experiência do autêntico, de si, como podermos notar mais adiante na III

Consideração Intempestiva: Schopenhauer Educador, na idéia de que deve fazer a

experiência de si, como processo, parte do itinerário rumo a percepção de que há

princípios superiores a esse próprio eu, a própria natureza a qual deve-se subsumir, em

última instância, o eu.

Porém, Nietzsche nota que há mais um problema grave no ginásio. Não bastasse

o jornalismo, com sua pressa, temos uma outra prática, que revela ser cômodo, um

arranjo porco, para com a língua. A saber:

“[...] encontramos em todo lugar a tendência de lidar com a língua materna

através da erudição histórica: quer dizer, se usa dela como se fosse uma

língua morta [...] a forma da história se tornou a tal ponto comum na nossa

175

EE, 2004, p. 68. 176

DIAS, 2003, p. 94. 177

DIAS, 2003, p. 94.

100

época, que o corpo vivo da língua foi [...] sacrificado a seus estudos

anatômicos [...]”. (EE, 2004, p. 70)

A cultura histórica é algo pernicioso. Não se trata aqui de considerar apenas

aquela disciplina que hoje em dia compõe a grade curricular das escolas de Ensino

Médio. O método histórico é que é a questão; é a forma mais cômoda, pois criar as

condições educacionais para que o fato passado viva novamente é o caminho mais lento,

mais caro, menos rendoso e por aí vai.

“É verdade que o método histórico parece ser para o mestre bem mais fácil e

bem mais cômodo. [...] exigir disposições bem mais reduzidas, e geralmente

um ímpeto menos forte na vontade e na aspiração do mestre. [...] é o mais

fácil e o mais cômodo que se esconde sob o manto de pretensões soberbas e

de títulos pomposos: O que e verdadeiramente da ordem do prático, a

atividade que é a essência da formação, porque no fundo é a mais difícil, só

recolhe os olhares do descrédito e da depreciação [...]”. (EE, 2004, p. 70)

Ensinar, portanto, é o caminho mais difícil, é aquele onde se procura criar as

condições para que o educando possa recriar, participar esteticamente de condições

para, então, se apossar dos inventos de outras épocas. Ao contrário, o conhecimento

histórico tende a pôr acabado o achado histórico e desse modo se torna não só

desmotivados, mas difícil de ser apreendido na sua essência e vigor.

As exigências, portanto, para dar o devido tratamento aos clássicos da cultura

alemã, será a criação de uma atmosfera, daquelas condições que a tragédia grega

gerava; por isso uma atuação da educação sobre as condições estéticas, sem a qual as

tentativas de compreender os clássicos se tornam “barbárie civilizada”.

2.4. A LIBERDADE NA ESCRITA: AINDA NO GINÁSIO

O exercício de falar de si, como Nietzsche nos diz ser prática do ginásio, nos

apresenta uma dupla via de análise. A primeira é como ele questiona a autonomia. Essa

autonomia de que fala não pode ser substituída por uma tirania. Se seguirmos o seu

raciocínio, veremos que não se joga a autonomia na mão do jovem e pronto. Aliás, isso

é nefasto, pois pode criar monstrengos que em poucos dias já irão se sentir superiores ao

101

seu mestre. Outro viés é de ordem cognitiva. Corre-se o risco de traumatizar o

aprendizado. No próprio texto de Nietzsche:

“Esta é sua primeira produção original; as forças que ainda não se

desenvolveram tendem pela primeira vez a uma cristalização; o sentimento

embriagador da autonomia reveste estas produções com um encontro,

primitivo, admirável, que jamais retornará. [...] o jovem tem a percepção de

que está daqui por diante realizado, que é um ser capaz de falar, de conversar,

e mesmo que é convidado a fazê-lo.” (EE, 2004, p. 72)

Para DIAS “Nietzsche não gosta da dissertação e da redação sobre temas

específicos, estabelecidos à revelia do aluno. Sofreu na própria pele a imposição de

escrever quando seu pensamento ainda não estava, para isso, suficientemente

maduro.”178

E para agravar ainda mais o quadro o professor tem uma postura de juiz

diante dessa produção juvenil:

“[...] vejamos agora a maneira habitual de agir do mestre diante dessas

primeiras produções originais: O mestre critica o aspecto verdadeiramente

autônomo que, nestas excitações prematuras, não pode justamente exprimir-

se senão como inabilidade, como saliências e como traços grotescos.” (EE,

2004, p. 72)

DIAS nos propõe pensar que a postura do professor diante as produções dos

jovens alunos funciona de forma castradora. Segundo a leitora de Nietzsche, o professor

“exige a originalidade, o enfoque pessoal, mas a originalidade, em última instância, fica

reduzida à escolha numa lista de temas”.179

E na seqüência do raciocínio o professor ao

avaliar o aluno o “reprova, sobretudo, a forma exagerada de se expressar e a autonomia

do pensamento”. Particularidades que é próprio do jovem. Prática que acaba por criar

um aluno submisso aos ideais do professor.

Nestes últimos raciocínios foge-se dos extremos, põe-se a coisa: é preciso fazer

o árduo serviço de educar; não se pode jogar a autonomia no colo do educando; não se

pode liquidar a individualidade do jovem. Ao se optar pelo caminho “mais fácil”, vai-se

gerando sucessivas contradições: não se trabalha direito a autonomia, depois faz

acontecer uma pretensa liberdade literária:

178

DIAS, 2003, p. 97. 179

DIAS, 2003, p. 97.

102

“No ginásio, todos são considerados, sem um exame mais rigoroso, como

seres capazes de fazer literatura, com o direito de ter opiniões pessoais sobre

os fatos e os personagens mais sérios, embora uma educação correta devesse

justamente aspirar, com todos os seus esforços, reprimir as ridículas

pretensões de autonomia de julgamento e apenas habituar o jovem a uma

estrita obediência sob a autoridade do gênio”. (EE, 2004, p. 73)

Compreender o que é a figura do gênio e qual é o fascínio que tal ser exerce na

cultura alemã, em geral e em particular em Nietzsche pode dirimir nosso desconforto

com a idéia do excepcional, ou do pouco, questão que trataremos mais adiante, por ora,

nota-se que Nietzsche propõe que para ser livre é preciso antes se formar para essa

liberdade. Essa prática da falsa liberdade nos evidência, tanto no texto de Nietzsche

como no comentário de DIAS, ser geradora de traumas. Aliás, os frutos da composição

que tem esse contexto só poderão produzir um tipo de literatura desagradável. “Desses

veredictos, feitos às pressas, saem os jornalistas e os maus romancistas, os que se

apropriam dos métodos, dos truques e do tom superior de seus professores”.180

E no

próprio texto de Nietzsche temos essa idéia:

“Enquanto os ginásios alemães, cultivando a composição alemã, trabalharem

para preparar este abominável dilúvio da escrita que não tem consciência,

enquanto eles não considerarem como dever sagrado a disciplina prática mais

minuciosa da palavra e da escrita, enquanto tratarem a língua materna como

se ela fosse um mal necessário ou um corpo morto, eu não poderei incluir

estes estabelecimentos de ensino entre as instituições consagradas à

verdadeira cultura”. (EE, 2004, p. 74)

Ao tratarem a língua de modo inadequado permitindo que ora ela se torne

“superficial”, tratada como objeto histórico, morta ou permitindo que em nome de

liberdade de composição, da produção de texto, se intrometa o jogo do poder, no qual o

professor atuando como juiz e acaba por incutir nos alunos vícios, truques para agraciar

o professor, Nietzsche vai ver que isso revela um outro problema no ginásio. O

Objetivo do ginásio parece ser confuso: “cultura clássica, cultura formal, cultura que

180

DIAS, 2003, p. 97.

103

forma a ciência: três coisas gloriosas que infelizmente são contraditórias entre si

[...]”.181

E sua tese, contrapondo à confusão vigente sobre o caráter de exceção na lide da

cultura, contínua:

“Pois uma verdadeira „cultura clássica‟ é algo tão extraordinariamente difícil

e raro e demanda dons tão complexos, que não é permitido, senão por

ingenuidade ou por insolência, apresentá-la como um objetivo acessível ao

ginásio”. (EE, 2004, p. 75)

Já dissemos o como há em Nietzsche a idéia da excepcionalidade. Postura, aliás,

ser com entre homens de letras de seu tempo. Essa idéia se alarga se tomarmos outros

elementos. Como Nietzsche menciona, Friedrich August Wolf foi o precursor de uma

reforma no ensino. Segundo DIAS, ele foi o idealizador da escola humanista, “que tinha

por objetivo formar homens cultos, capazes de exercer plenamente todas as

potencialidades de seu espírito”.182

Quando, então, Nietzsche põe em revista os

objetivos do ginásio é com essa lente. Daí sua quase irritação:

“[...] ao ginásio falta até agora o primeiro objetivo de estudo, o mais simples

com o qual começa uma verdadeira cultura, a língua materna: e por isso

mesmo lhe falta o solo natural e fecundo necessário a todos os esforços

posteriores no sentido da cultura. Pois é somente sobre o fundo de uma

aprendizagem, de um bom uso da língua, estrito, artístico, cuidadoso, que se

afirma o verdadeiro sentimento da grandeza dos nossos clássicos [...]”.(EE,

2004, p. 76)

A questão da língua e dos cuidados no seu cultivo parece ser um tema que tem

estreitas relações, além das atinentes ao que ele compreendia e esperava do ginásio, com

o que notamos em O Nascimento da Tragédia no que toca ao drama perfeito, no qual a

sob êxtase, o poeta consegue expressar na linguagem o conteúdo dionisíaco. Com essa

consideração, certamente nosso olhar sobre a preocupação constante de Nietzsche para

com a língua se justifique.

181

EE, 2004, p. 75. 182

DIAS, 2003, p. 99.

104

Decorre dessa falta de aptidão com a língua: “conseqüências fatais do nosso

ginásio de hoje: na medida em que ele não está em condições de implantar a cultura

verdadeira e autêntica, que é, sobretudo „obediência e hábito.”183

Para se alcançar a cultura clássica “[...] mas para isto, é raro que alguém seja

conduzido do interior, com suas próprias forças, para o segredo da forma, pelo atalho

conveniente; na maioria dos casos, todos têm necessidade destes grandes guias e

mestres e devem entregar-se à sua proteção.”184

As condições de uma cultura clássica, considerando o conteúdo estético de O

Nascimento da Tragédia, não podem ser tidas como “devaneios”, mas podemos evocar

a idéia de autêntico, ou seja, não algo meramente intelectual, que se dê apenas no plano

da abstração. Estamos pensando em algo que não foge da pulsão da vida, a língua a

cultura, para escapar o da “boca para fora” precisa se “encarnar”. Caso contrário

aprender a própria língua será algo aleatório, que sempre produz monstros, algo sem

referência, inventado aleatoriamente ou segundo os princípios do socratismo da cultura

que acaba por negar a pulsão de vida e substituí-la pelo espírito dialético.

O trato não apropriado para com a língua alemã, porém, segundo Nietzsche,

houve um momento em que a cultura era tratada de modo autêntico:

“Aquela era a época dos nossos grandes poetas, quer dizer, daqueles raros

Alemães verdadeiramente cultos, quando o grande Friedrich August Wolf

introduziu nos ginásios o novo espírito clássico que vinha da Grécia e de

Roma, por intermédio destes homens; sua iniciativa ousada teve sucesso em

impor uma nova imagem do ginásio, que não deveria mais ser unicamente

um viveiro para a ciência, mas, sobretudo o lugar consagrado a toda cultura

nobre e superior”. (EE, 2004, p. 79)

Esse constante evocar os gregos, quase uma fixação, certamente constitui um

projeto de vida dito autêntico, remetia a este estilo de vida. A aparente busca pelo gênio,

pela idéia de que a boa educação era para poucos, consiste nisso: autenticidade, cultura

que tem origem no cerne dá existência, na pulsão dionisíaca; o resto, mesmo que tenta

183

EE, 2004, p. 77. 184

EE, 2004, p. 78.

105

imitar os gregos, não da certo, pois o que os move são outros motivos; são os motivos

modernos e com todas as suas características.

O primeiro desastre após as proposições de Wolf foi exatamente a formação dos

professores, “[...]mas justamente a [medida] mais importante foi a que malogrou, a

iniciação dos próprios mestres neste novo espírito; assim portanto, o objetivo do ginásio

ficava novamente muito distante da cultura humanista que Wolf desejava”.185

E no

mesmo parágrafo Nietzsche insiste nos motivos que levaram a esse fracasso: “estima

absoluta pela erudição e pela cultura acadêmica [...] [que] tomou lugar do princípio de

cultura que ele (Wolf) tinha introduzido.”186

Os motivos desse fracasso na introdução da cultura clássica:

“[...] isso se deveu ao caráter não alemão. [...] à crença de que era possível

eximir-se da base do solo nacional e continuar a ficar de pé, em suma, à

ilusão de que se podia saltar diretamente, sem a utilização de pontes, ao

mundo grego, tendo já negado o espírito alemão e, de uma maneira geral, o

próprio espírito nacional”.(EE, 2004, p. 82)

Talvez os mais apressados, sobretudo os leitores que procuravam e procuram ver

nos escritos de Nietzsche projeções pessoais, podem pensar que a busca do que era

propriamente alemão consiste em qualquer coisa do tipo raça pura. No âmbito desse

texto a busca pelo autêntico passa pelo cultivo daquilo que é originário do próprio

indivíduo. A cultura tem que ser assim para não se tratar de algo alienante, o próprio

indivíduo deve ser sujeito de sua cultura; alienar-se desse processo é não conseguir

retomar os mitos primitivos que cada povo tem. Absorver outras culturas, mesmo que

ela seja a Grega, sem ser pelo processo de construção individual só faz aumentar a

condição de alienado. O que se deve notar é que a cultura nunca pode ser algo

importando, mas sempre algo produzido a partir do próprio indivíduo em sua

comunidade. Segundo DIAS “assim, antes de fazer desfilar aos olhos do estudante toda

a galeria dos gregos, como se ele estivesse diante de um museu, o professor deveria

185

EE, 2004, p. 81. 186

EE, 2004. p. 82.

106

ajudá-lo a „aprender por si mesmo‟, a „pensar por si mesmo‟, a „estetizar por si mesmo

[...]”. 187

Atendo-se ao texto:

“Certamente, é preciso saber primeiro rastrear este espírito alemão nos seus

esconderijos, sob as suas máscaras da moda ou sob um monte de escombros,

é preciso amá-lo muito para não ter mesmo vergonha de suas formas

mirradas, é preciso sobretudo abster-se de confundi-lo com o que se intitula

agora, com um gesto de orgulho, „a cultura alemã de hoje‟.” (EE, 2004, p. 82)

Notamos o final da citação: “a cultura alemã de hoje”, ou seja, nessa citação

pode-se afirmar a idéia do autêntico como o caminho para se produzir a cultura. E

vejamos: não se trata de uma mera afirmação cultural, pois a tal cultura alemã é uma,

mas é um tipo de postura que não prima por aquele principio de auto-produção da

cultura, mas o que diz se alemão na verdade é fragmentos de culturas diversas

sobrepostas ao que é feito pelo próprio indivíduo. A citação acima corrobora nossa idéia

de que é o autêntico, o que é produzido artesanalmente, o que tem origem na pulsão da

vida de cada povo a base de sua cultura. As cópias, a relação colonial, diríamos aqui no

Brasil, não dá o mesmo efeito. “Certamente, esta cópia não alcançara em lugar nenhum

aquele efeito tão artisticamente comum encontrado na França [...]”.188

No olhar de Nietzsche era exatamente a originalidade que dava brilho a cultura

francesa e a italiana. “Uma seriedade artística, ou pelo menos à correção da língua,

muitas vezes à beleza, em todo lugar como eco de uma cultura social

correspondente.”189

No texto em questão não podemos deixar de registrar sua insistência no que toca

ao esquema de produção da cultura e, o que podemos deduzir, suas implicações na

formação cultural nos “estabelecimentos de ensino”. É desse contexto que se pode

notar, na Alemanha de Nietzsche, o não aprendizado adequado da língua. “Com esta

187

DIAS, 2003 p. 96. 188

EE, 2004, p. 82. 189

EE, 2004, p. 83.

107

cultura pretensamente alemã, mas no fundo [cosmopolita e] despida de qualquer

originalidade, os Alemães não podem esperar vitórias em nenhum setor [...]”.190

Essa é

a base, os demais intentos que passam pela necessidade de uma boa cultura ficam logo

comprometidos.

Mas Nietzsche almeja um outro cenário no que toca a cultura:

“[...] devemos nos apegar ao espírito alemão que se revelou na Reforma

alemã e na música alemã [...] na ousadia e no rigor extraordinário da filosofia

alemã e, há pouco, na fidelidade comprovada do soldado alemão, [...].

Arrastar para esta luta uma escola voltada para a verdadeira cultura e

inflamar, particularmente no ginásio, a nova geração para o que é

verdadeiramente alemão”. (EE, 2004, p. 83)

Na citação notamos um Nietzsche que deseja não só fazer análise da cena, mas

que deseja mudança, apesar do mau trato da língua e da conseqüente incompreensão dos

reais propósitos do ginásio ele sonha com algo distinto.

É possível uma reforma:

“[...] Uma renovação e uma purificação verdadeiras do ginásio só virão de

uma renovação e de uma purificação do espírito alemão que sejam profundas

e poderosas. Misterioso e difícil de compreender é o laço que une

verdadeiramente o ser profundo da Alemanha e o gênio grego”. (EE, 2004, p.

84)

Movimento de união entre a cultura de seus dias e a cultura trágica como

tratado pelo autor na sua obra O Nascimento da Tragédia e no qual ele vê ressurgir na

arte de Wagner.

2.5. A FALSA NECESSIDADE DE CULTURA

Cultura clássica: “era agora somente um ideal de cultura que flutuante e

inconsistente que não podia se desenvolver no solo dos nossos meios de educação”.191

“[...] a clara visão do fato de que aquilo que se designava agora pelo

eufemismo corrente e incontestável de „cultura clássica” só tinha o valor de

uma ilusão pretensiosa, cujo efeito mais notável era a circunstância de que a

própria expressão “cultura clássica” ainda continuava subsistindo e não

perdera ainda sua sonoridade patética”. (EE, 2004, p. 85)

190

EE, 2004, p. 83. 191

EE, 2004, p. 85.

108

Para sacramentar o descompasso entre vontade de uma cultura clássica e a

realidade:

“[...] a esclarecer que o ponto de partida justo para uma cultura superior,

apoiado sobre os pilares da Antiguidade, até então não tinha sido encontrado:

o abandono do ensino da língua, a introdução de orientações históricas com

viés científico, em vez de uma construção prática e de um hábito, a ligação de

certos exercícios exigidos nos ginásios com o espírito suspeito do nosso

ambiente jornalístico.” (EE, 2004, p. 85)

Após tratar do desprezo para com o ensino da língua alemã Nietzsche

passa a considerar acerca da necessidade de cultura ou a falsa necessidade. Nessa rota, o

professor é um desses que no fundo não tem necessidade de cultura. Acerca desse

profissional, desse domínio que Nietzsche julga ter verdades escabrosas a dizer, “[...]

pois estamos aí num domínio onde há tantas verdade a dizer, tantas verdade terríveis,

penosas, imperdoáveis, que o ódio mais fraco não nos faltará e somente o furor poderá

motivar aqui e ali um riso embaraçado.”192

Mas esses professores, profissionais da educação, nesse olhar especial sobre a

formação da cultura se descobrirem que não estão aptos para tal profissão: “qual seria,

creia, a reação deles, quando pretenderem falar de planos de que estão excluídos, e de

exigências que ultrapassam grandemente suas capacidades medíocres [...]”.193

Discutir essa idéia da inaptidão de muitos para lidar com a cultura é algo

pertinente e que nos coloca o seguinte: é uma verdade o fato de que necessariamente

nascemos para lidar com o conhecimento teórico. Tese arrolada por Nietzsche já em O

Nascimento da Tragédia, quando surge a idéia de que é a arte nosso impulso mais

verdadeiro; é a criação;194

e que qualquer outra implicação já caminhava para a idéia do

homem socrático, do homem teórico, e soava como antinatural. Por outro lado, nos dias

192

EE, 2004, p. 87. 193

EE, 2004, p. 88. 194

Essa idéia de que temos mais pendor para a arte, enquanto criação, do que para a ciência, enquanto

crítica, terá um desenvolvimento mais intencional no escrito de Nietzsche : Verdade e Mentira no Sentido

Extramoral. Cf. NIETZSCHE, F. Verdade e Mentira no Sentido Extramoral. Tradução e prefacio de

Noeli Correia de Melo Sobrinho. Comum - Rio de Janeiro - v.6 - nº 17 - p. 05 a 23 - jul./dez. 2001

109

de hoje quando a cultura moderna chega no seu apogeu, com toda uma parafernália

tecnológica, pensar alguém inapto para com as letras, para com a educação é o mesmo

que pensar alguém incapaz de ser gente, de ser cidadão. Observa-se nos governos

modernos, sobretudos dos países ricos, o quanto freqüentar uma escola é necessário para

“exercer a cidadania”.

Para compensar essa necessidade moderna de “exercer a cidadania” vemos então

o proliferar de escolas:

“Ocorre então, nestes estabelecimentos um excesso de pessoas que não têm

vocação, mas que pouco a pouco, por causa do seu número esmagador e com

seu instinto do similis simili gaudet195

, determina o espírito destes

estabelecimentos. Estas pessoas estão sem dúvida exageradamente

distanciadas das coisas pedagógicas e acham que a riqueza aparente dos

nossos ginásios e de nossos mestres, que só consiste no número, poderia, não

sei por que leis e regras, ser transformado numa verdadeira riqueza [...]”.

(EE, 2004, p. 88)

Mais uma vez: a moda. Não se procura as letras, o seio da produção da cultura

por se estar imbuído por ela. Mas os propósitos são outros.Quando o fim não é a própria

cultura, iremos observar a proliferação daquilo que Nietzsche já observou como ruim

par ao ginásio que é a cultura jornalística. É o resumo, o falar agradável e estimulante da

platéia; isso se tornou padrão, quem não der uma aula assim não é um bom professor.

Resta saber, também, se os professores medíocres apresentados nos parágrafos

anteriores ao serem “arroxados” revelam que não é bem isso que eles querem. Propalam

a necessidade da cultura, mas de modo superficial, aliás, nem sabem mesmo o que quer

dizer cultura; são movidos mais pela necessidade de ter emprego.

Salvo as exceções, “a imensa maioria dos mestres se encontra, nestes

estabelecimentos, no seu ambiente próprio, porque seus dons se encontram numa certa

relação harmônica com o baixo nível e com a mediocridade dos seus alunos.”196

São

195

Em nota do tradutor, Noeli C. de Melo Sobrinho, o termo significa: “o semelhante se alegra com o

semelhante”. 196

EE, 2004, p. 88.

110

esses que pedem mais cultura, ou seja, pedem mais produtos, e nesse jogo de mercado a

possibilidade de ganhar um pouco mais.

E se espalha a cultura de que é necessário cultura. Fato que mais adiante

Nietzsche vai esboçar o que subjaz a essa falsa necessidade:

“[...] vivemos numa época em que estes gritos [...] dão a impressão de que

uma imensa necessidade de cultura quer ser afanosamente satisfeita. Mas é

aqui justamente que é preciso saber ouvir corretamente, é aqui que é preciso

[...] olhar de frente aqueles que falam tão infatigavelmente da necessidade de

cultura de sua época. Então, experimentar-se-ia um estranha decepção [...]

estes arautos [...] se transformaram de repente, logo que os vemos de perto,

em adversários zelosos, ou seja, fanáticos, da verdadeira cultura, quer dizer,

daquela que defende que seu objetivo é emancipar as massas da soberania

dos grandes indivíduos.” (EE, 2004, p. 89)

Retorna novamente um raciocínio espinhoso. Certamente concebemos a massa

como antro dos mais cabeludos adjetivos, mas a sentença que decreta um certo estágio

fixo dessa massa, sem a possibilidade de escapar dessa sina nos deixa incomodados.

Ademais, reconhecer que ela deve servir ao gênio, parece, também, ser estranho. Essa

lide para com o gênio nesses escritos de Nietzsche, que vão sempre exaltar o gênio, para

nossa dissertação tem seus êxitos e, segundo nosso julgamento, algumas

particularidades que são próprias do autor e não são de nosso interesse.

Poderíamos pensar que ao falar de massa pensarmos como uma instância

cultural, como um conjunto de disposição, um campo determinado, no qual, aí sim,

operasse certas disposições e nesse caso essencialmente podemos notar que a massa é

predadora, esperta, que procura julgar os esforços daqueles que a duras penas galgam os

mais elevados píncaros do conhecimento. Essa massa, por ser massa, não produz. Com

isso não se está pensando em políticas públicas, mas fazendo uma dissecação filosófica

do que subjaz, da estrutura formal da massa.

Essa saída nos alivia, pois ela certamente permite denunciar uma dada estrutura,

mas ela não determina o que é um povo, pois diagnosticar um modus operandi,dizer de

seu cerne, não é também anunciar que os seus atuais „atores‟ assim o são e pronto. A

111

denúncia permite que se viva de outro modo. Claro que os „atores‟ podem estar

acomodados com os seus papéis e se encontra em um dado círculo vicioso que os

aprisionam como se esse papel fosse o único de sua existência.

“Por um caminho direto, por exemplo, por um ensino elementar obrigatório

para todos, com isso não nos aproximamos do que se chama de formação do

povo, senão de uma maneira superficial e grosseira: as regiões autênticas e

mais profundas, nas quais a grande massa pode ter um contato com a cultura,

quer dizer, aquele lugar onde o povo conserva seus instintos religiosos, onde

continua a operar com o sistema poético das suas imagens míticas, onde

continua fiel aos seus costumes, [...] ao solo de sua pátria, à sua língua, todas

essas regiões dificilmente podem ser atingidas por uma via direta [...]”. (EE,

2004, p. 90)

Nietzsche advoga uma inconsciência ou mesmo uma relação mítica para

consolidar a cultura. Sua crítica se dirige à idéia de que a universalização da educação

escolar por si garanta educação de fato para todos. A massa e a necessidade de levar

cultura para toda ela é um fato, mas é possível conceber outra forma de cultura e ela,

como na citação acima, se dá melhor através dos instintos religiosos ou míticos. Será

desse solo que Nietzsche vislumbra o surgimento daquele indivíduo exponencial,

exemplar, raro, mas que se constitui o marco e referencial para o povo. Trata-se do

gênio, como esse indivíduo que serve de referência par todos os outros. O gênio

nasceria daí. Vamos ao texto de Nietzsche:

“Mas que ele venha a aparecer, que ele surja no meio de um povo, que ele

seja por assim dizer a imagem refletida, o jogo completo das cores de todas

as forças particulares deste povo, que ele faça ver o mais alto destino deste

povo no ser matafórico de um indivíduo e numa obra eterna, religando assim

seu povo à eternidade e o libertando da esfera mutante da instantaneidade –

tudo isso o gênio só pode fazer quando se tornar maduro e alimentado no seio

materno da cultura de um povo [...]”. (EE, 2004, p. 91)

Observamos na citação acima que o gênio cumpre um papel entre os seus

compatriotas. Ele é a fonte da qual o povo se alimenta culturalmente. Porém a incultura

da necessidade faz lidar com a cultura de modo bem distinto e propício. Na lide da

singularidade dos gregos, Nietzsche demarca que o uso corriqueiro depõe contra essa

singularidade. A particularidades dos gregos é para poucos:

112

“[...] e muitos consideram um comportamento absurdo e mesmo indigno o

fato de que alguém se relacione com os Gregos, por assim dizer, por razões

profissionais, com o fito de ganhar seu pão, como se tratasse de uma

ferramenta de uso cotidiano, e manipule estes objetos sagrados com mãos de

artesão, sem o menor respeito”.(EE, 2004, p. 92)

No contexto de um Nietzsche que exalta a cultura, que eleva essa dimensão ao

nível quase do sagrado, sua indignação é pertinente no que toca à vulgarização.

Rompendo com o véu ideológico que apregoa a massificação da cultura como discurso

retórico que não tem como meta a própria cultura, mas o mercado, os produtos, pode-se

notar que essa lide tira a aura sagrada necessária para a produção da cultura. A faz

pagar tributos ao não cultural, ao imediato. Postura contrária à idéia de que a cultura

deve estar a serviço do universal, contrário ao que é corriqueiro.

Estamos acompanhando que a pretensa „pedida‟ por cultura não é propriamente

verdadeira. Soma-se a esse movimento a interferência do Estado. Antes, porém, mais

uma vez Nietzsche denúncia que o trato inadequado dado a cultura no âmbito da

universidade, onde professores não lidam com o devido cuidado com os gregos, é

transportado par ao ginásio:

“Os ginásios são exatamente os viveiros para onde é transplantada esta

obesidade acadêmica, quando não degeneram a ponto de se transformarem

em escolas de gladiadores desta elegante barbárie, que agora se pavoneia com

o nome de “cultura alemã atual.” (EE, 2004, p. 96)

Nota-se a relação existente entre a formação do professores e suas imbricação

como o ginásio. E os argumentos, ou falsos argumentos que pedem mais cultura, mais

escolas, vão revelando seus reais fins:

“[...] a exigência deste excesso [escolas e mestres] vem de uma esfera hostil à

cultura e que as conseqüências deste excesso são vantajosas somente à falta

de cultura? Na verdade, não se pode falar de semelhante necessidade

absoluta, senão na medida em que o Estado moderno se intrometa

habitualmente nas conversas sobre estas questões.” (EE, 2004, p. 97)

Ou seja, revela-se o Estado como quem de fato precisa de cultura. Cultura,

então, é uma artimanha do Estado. Essa substituição impõe ao ginásio um dado status:

“Na Prússia, o ginásio é considerado sobretudo como portador de um certo

grau de honra: e quem quer que se sinta empurrado para a esfera do governo

113

deverá seguir a via do ginásio. [...] O Estado aparece como mistagogo da

cultura e, ao mesmo tempo que persegue seus próprios fins, ele obriga a

todos os seus servidores a só se apresentarem diante dele munidos da luz da

cultura universal do Estado: sob esta luz turva, eles devem reconhecer nele o

objetivo supremo, como aquele que recompensa todos os seus esforços na

direção da cultura” (EE, 2004, p. 98)

Se na época de Nietzsche é o Estado quem dita as regras da cultura, nos nossos

dias é o mercado de trabalho. Hoje o Estado, apesar de atuar na educação básica, passa

meio que desapercebido, pois ele é fiel representante do mercado de trabalho. Ao fazer

essa atualização certamente poderemos notar com mais evidência a questão que

Nietzsche coloca sobre a ingerência do Estado na cultura. Nessa mesma senda podemos

ainda, perceber o Estado moderno querendo ser reconhecido como promotor de cultura,

mas qual é seu passado, ou seja, ele não tem demonstrado com sua história que de fato é

promotor de cultura...

“[...] a de uma filosofia lançada em proveito do Estado e visando aos

objetivos do Estado, a tendência da filosofia hegeliana: mais ainda, talvez

não fosse exagerado afirmar que, submetendo todos os esforços da cultura

aos objetivos do Estado, a Prússia se apropriou com sucesso da parte

praticamente válida da herança da filosofia hegeliana: sua apoteose do Estado

atinge sem dúvida seu ápice nesta submissão” (EE, 2004, p. 98)

Se por um lado Nietzsche observa o Estado em seu tempo com pretensões de

encampar a cultura, fundindo-a com a idéia de Estado, ele não deixa de reconhecer o

papel que o Estado tem. Entre os gregos:

“No mais profundo do seu pensamento, os Gregos, justamente por esta razão,

tinham pelo Estado este sentimento poderoso de admiração e de

reconhecimento, quase escandaloso para o homem moderno, porque eles

reconheciam que, sem esta instituição de assistência e proteção, não se

poderia desenvolver um só germe de cultura e que sua cultura absolutamente

inimitável e para sempre única não teria justamente alcançado esta

exuberância, senão sob a guarda atenta e preventiva de suas instituições

políticas de assistência e proteção”. (EE, 2004, p. 99)

O Estado Grego, então, não era o interventor na cultura, mas o protetor, aquele

que dava as condições materiais e sociais para que a cultura pudesse aflorar. Condições

aqui entendidas não como continuação do Estado na cultura, mas referentes às

disposições sociais e materiais necessárias para que a cultura, esse invento singular,

114

próprio do humano, e que, no caso dos gregos, obediência não ao Estado, mas a sim

mesma, como instância humana soberana. Nas linhas seguintes da citação acima

Nietzsche continua com esse conceito:

“O Estado não era para aquela cultura um guarda de fronteiras, um regulador,

um superintendente, mas o companheiro de viagem, e o companheiro de

andar vagaroso, forte, disposto ao combate, que escoltava através das rudes

realidades o seu amigo mais nobre e, por assim dizer, quase divino, pelo qual

se tinha admiração e do qual ele recebia em troca o reconhecimento.” (EE,

2004, p. 99)

Se por um lado ele questiona o Estado como guia da cultura, como aquele que

faz da cultura uma das formas de se exercer sobre as massas, ou ainda, criticando Hegel,

como sendo o Estado um estágio da própria cultura, Nietzsche denuncia que esse

movimento empobrece o que é de fato da ordem do humano, do cultural. Vislumbra, por

outro lado, que o Estado deva cumprir certos papéis, que no seu modo de entender são

nobres. No final da terceira conferência ele diz: “é difícil a tarefa de dirigir os homens

[...] proteger sem descanso, contra vizinhos ávidos [...]”.197

Antes, porém, na seqüência do raciocínio da citação anterior, ele contínua a por

em cheque as pretensões do Estado para com a cultura: “Se agora, ao contrário, o

Estado moderno pretende um reconhecimento exaltado deste tipo, não é certamente

porque ele tenha a consciência de ter ajudado, como cavalheiro, a cultura e a arte

alemães mais elevadas [...]”.198

Ele insiste em demonstra isso através de como se

“celebra nas capitais alemães a memória dos nossos grandes poetas [...] artistas [...]”.199

Ou seja, de modo que não valoriza efetivamente de acordo com as prerrogativas do

gênio. O trato que é dado não revela a grandiosidade dos artistas, mas parece preocupar-

se mais em mostrar o próprio Estado e não os homens excepcionais da nação.

O autor, portanto, destaca que a cultura produzida pelo Estado, os artistas

sustentados por esse, são duvidosas e não podem ser inscritas na esfera do fazer

197

EE, 2004, p. 99. 198

EE, 2004, p. 99. 199

EE, 2004, p. 99.

115

autêntico. Em contrapartida sua indagação é pelo fato do porque se tem receio da

autêntica cultura, produzida a duras penas:

“Porque se odeia a autêntico espírito alemão, porque se tem a natureza

aristocrática da verdadeira cultura, porque se quer incentivar os grandes

indivíduos a buscar um exílio voluntário, propagando e alimentando no

grande número uma pretensão à cultura, porque se busca escapar da elevação

dura e rigorosa pelos grandes mestres, persuadindo a massa de que ela

própria encontrará o caminho guiado pela estrela do Estado.” (EE, 2004, p.

100)

Vale registrar uma idéia que o autor destaca. A promoção da cultura de Estado,

que hoje poderíamos chamar também de cultura de massas, serve aos interesses a seus

próprios e de quem ele é representante. Esses promotores certamente terão aversão para

com a cultura de base, cultura produzida sem a intervenção de Estado. Nos dias de hoje

podemos assevera que Nietzsche era um defensor da experiência de base, sem as

importações; e é exatamente isso que incomoda as elites que patrocinam a cultura. No

tempo de Nietsche certamente o Estado ainda fazia muitos papéis de interesse da

burguesia. Ainda não se tinha chegado aos nossos estágios de desenvolvimento das

ideologias Liberais em relação ao Estado como temos hoje, então era o próprio Estado o

garoto de recado e assim é o Estado que Nietzsche observa fazendo esse papel de

promotor de cultura segundo esses ditames. Veja só, na citação acima temos duas coisas

bem demarcadas: “Porque se odeia a autêntico espírito alemão, porque se tem a natureza

aristocrática da verdadeira cultura”. Aqui a idéia de aristocracia não é qualquer coisa

ligada da “raça pura”, mas aristocrático é aquele que toma para si o papel de criar a

cultura, sem as relações mesquinhas de exploração de outros, aristocrático é aquele que

cria, tem por tarefa criar a cultura. Criação aqui entendida como aquilo que ficou

delineado no primeiro capítulo de nossa dissertação no trato do conhecimento trágico. E

podemos notar que aristocrático também é ligado à idéia de “autêntico”, ou seja, não é

algo importando, algo contingenciado a outros fins que não os seus próprios.

116

Podemos, então, encerrar esse tópico no qual Nietzsche nos propõe lançar um

olhar audaz sobre a pretensa necessidade de cultura. O que nos revela outros interesses

por detrás e não pessoas realmente movidas pelos altos ideais de cultura. Aí vemos

professores a procura de emprego e não de cultura. Observamos, com a indução do

Estado, jovens procurando um emprego na burocracia estatal. Observa-se, também, um

Estado querendo dóceis cidadãos, servidores.

2.6. A FORMAÇÃO TÉCNICA E FORMAÇÃO DO JOVEM DE CULTURA

Nesta seção observaremos que Nietzsche não descarta propriamente a

necessidade e estabelecimentos de formação técnica. Sua intenção é questionar o que se

praticava no ginásio de seu tempo. Com essa análise ele pretende esclarecer o que ele

entende por ginásio. A sua crítica pretende dirimir a confusão entre seus

contemporâneos sobre o que é o ginásio e o que são as escolas técnicas. Nesse diálogo,

então, ele assevera a sua crítica. Duas são as posturas: uma é o receio do sentimento

radical de cultura outro é a cultura microscópica das ciências que, como já dissemos no

início desse capítulo, acaba por dissociar ciência e vida. Ou que vale notar é a

insistência de Nietzsche para com a necessidade de estabelecimento de cultura. Mais

uma vez ele reafirma isso:

“Pois tu podes alimentar esperança. De fato, fica cada vez mais claro que não

temos absolutamente estabelecimento de ensino, mas que devemos tê-lo.

Nossos ginásios, predestinados por sua natureza a realizar este sublime

desígnio, ou se transformaram em lugares onde se cultiva uma cultura

duvidosa, que rechaça com ódio profundo a verdadeira cultura, ou seja, a

cultura aristocrática, [...] ou cultivam afincadamente um cultura microscópica

e estéril [...]”. (EE, 2004, p. 102)

Após, na citação acima, relembrar o ódio à cultura aristocrata, entendida como

criação, afirmação, gosto por esse criar cultura e, como seu posto, o trato técnico-

científico que divide o saberá a ponto de fazer com ele perca o vínculo com a vida,

Nietzsche nos propõe pensar o dilema do necessário, das condições materiais em que a

117

produção da cultura se faz presente. Em um movimento de valorização da cultura como

sendo algo ligado à natureza, que a cultura “é uma determinação da natureza”, ao todo,

ao dionisíaco, e que, portanto, foge das necessidades particulares, Nietzsche exalta que é

preciso vencer esse apegar ao imediato. A insistência de Nietzsche por ter que abrir mão

do imediato em vistas culturais nos remete à cena de como se deu a formação cultural

entre os Estados Alemães. Jacques Droz, citado por MARTON, nos diz:

“[...] [a intelligentsia alemã] soube criar essa cultura humanista, de que se

orgulhou a Alemanha do século XVIII. Mas essa cultura desenvolveu-se fora

do Estado territorial, onde ela nada tinha a fazer. E é por isso que se perfez a

disjunção entre cultura e política, que é chave de toda história da Alemanha

moderna. Os espíritos superiores mostraram-se indiferentes à política

nacional, abandonando inteiramente sua direção aos organismos competentes

e consagrando-se à reflexão sobre problemas de ordem universal e

cosmopolita”. (DROZ. In: AZEREDO, 2008, p. 26)

E na seqüência, MARTON diz que se em outros países como Inglaterra, França

os intelectuais estavam no embate de questões que eram de ordem econômica ou

social “na Alemanha eles se interessam pelas questões culturais”. Com essas

considerações é que podemos amplificar nossa percepção e compreender porque

Nietzsche faz insistentes ressalvas no que toca ser necessário desvincular a cultura da

necessidade, do utilitário. E assim podemos compreender que a fonte da cultura não é o

urgente, a utilidade mercadológica. Mas “[...] esta [a cultura] só tem início numa

atmosfera que está muito acima deste mundo das necessidades, da luta pela existência,

da miséria”.200

Outro ponto, que deve ser rompido no trato da produção da cultura, é o

individualismo. Não se pode pensar em cultura, como fica expresso no texto sobre o

futuro dos estabelecimentos de ensino, se apegamos na idéia de indivíduo. Tema que

certamente encontra-se no bojo da cultura moderna e alvo das críticas de Nietzsche. Ao

contrário, ainda que um absurdo para um moderno, Nietzsche propõe:

“Alguns, limitando estoicamente suas necessidades, se elevarão rápida e

facilmente até estas esferas onde pode esquecer e, por assim dizer, rejeitar

sua individualidade, para gozar de uma eterna juventude num sistema solar

de fatos estranhos à época e à sua pessoa” (EE, 2004, p. 103)

200

EE, 2004, p. 103.

118

É preciso negar a sua individualidade para que surja efetivamente uma cultura.

As coisas ligadas ao cotidiano ou corriqueiras devem ser suspensas para que se possa

notar que é a natureza ou a Vontade o que fato existe.

O projeto ou a perspectiva de análise que Nietzsche adota é a da cultura. Seu

comprometimento com esse projeto, esquadrinhado em O Nascimento da Tragédia, é

que o faz indagar e formular problemas ligados à educação de sua época. Sem essa

consciência, e ao entrar nos meandros de suas conferências de Sobre o Futuro de

Nossos Estabelecimentos de Ensino, podemos nos perder e se defrontar com um texto

estranho ou radical no trato da educação. Mas considerando a cultura como engenho do

espírito humano, especialmente o fenômeno da Grécia Antiga e da veneração

dispensada a ela pelo autor, e, depois, retirando de nossos horizontes todas as

proposições modernas e religiosas que se põe como cultura, aí sim iremos notar o

projeto nietzschiano para com a cultura. Ele não desdenha a formação prática, ele não é

um pensador que ignora a cotidiano da vida, propondo um emaranhado lógico que só

seria possível a uma mente débil. Para DIAS, Nietzsche não vê com hostilidade a

implantação e proliferação na Alemanha das escolas técnicas. Pelo contrário: “ali, os

indivíduos aprendem a calcular convenientemente, a dominar a linguagem [...]”.201

Não

é isso, o pensador está a falar é de cultura radicalmente desatrelada das proposições

modernas de utilidade. E ao fazermos esse movimento junto com ele notamos o quanto

é forte esse véu moderno do útil, do empregável no próximo emprego. Os

estabelecimentos de ensino vigentes, que se diziam de finalidade cultural, cumpriam

outro papel. “Trata-se aqui de instituições que se propõem a superar as necessidades da

vida; assim, portanto, podem prometer formar funcionários, comerciantes, oficiais,

201

DIAS, 2003, p. 99.

119

atacadistas, agrônomos, médicos ou técnicos”.202

Nos remetendo ao que DIAS nos

confirma.

O problema vale insistir, não é contra o ensino técnico, mas com a formação do

jovem para a cultura que em sua análise não se efetiva. Aquele que vai criar o

próprio espírito de uma época, como Goethe, Schiller, entre oturos “heróis da cultura”.

Pensando nisso e, após ter denotado que é preciso desvenciliar-se da cadeia das

necessidades, Nietzsche sugere o seguinte caminho para formar o jovem:

“[...] abstenham-se de romper a relação ingênua, confiante e, por

assim dizer, a relação pessoal e imediata que ele tem com a natureza:

[...] então, experimentará inconscientemente a unidade metafísica de

todas as coisas na grande metáfora da natureza, e assim se acalmará

com o espetáculo de sua eterna permanência e de sua necessidade.”

(EE, 2004, p. 105)

Postura que é exatamente contrária do homem moderno de subjugar a natureza.

O jovem inteirado com a formação técnica logo se propõe em como dominar a natureza.

Ao contrário dessa, “os outros devem logo aprender uma outra verdade: como se pode

subjugar a natureza”. Uma educação, portanto, que faça aliança com da relação ingênua

com a natureza. Mas nessa rota de dizer como educar o jovem para cultura, aquele que

seria o gênio, Nietzsche faz uma ressalva sobre o ensino técnico:

“[...] eu honro os lugares onde se aprende a calcular adequadamente [...]

Estou também inclinado a concordar de bom grado com o fato de que os

estudantes que se instruem nas melhores escolas técnicas da nossa época

estão perfeitamente autorizados a ter os mesmos direitos que se tem o

costume de atribuir aos alunos do ginásio [...]” (EE, 2004, p. 106)

É nesse aspecto que o ensino técnico, que não visava o acesso ao ensino

universitário, poderia cumprir, também, o papel que era exclusivo do ginásio, ou seja, o

ginásio ia tão mal que o ensino técnico poderia cumprir seu papel. Mas não parece que é

esse é o raciocínio, um pouco antes da citação acima ele diz: “não vão com isso crer,

meus amigos, que eu quero mitigar os elogios às nossas escolas técnicas”.203

202

EE, 2004, p. 105. 203

EE, 2004, p. 106.

120

O problema não é da escola técnica, mas do ginásio que não cumpre seu papel

de formador do gênio da cultura. Aqui precisamos fazer um alinhavamento de idéias.

Para dizer o quanto é preciso ter cuidado nas instituições de formação de cultura

Nietzsche considera que não é preciso por fim à formação técnica. Mas a formação do

gênio, daquele indivíduo de cultura, requer outros princípios e ele não aceita que os

objetivos das escolas técnicas se imponham cá, na do gênio. Sempre recoloca ao longo

do texto que o ginásio não vai bem.

Essa imposição da necessidade de formação técnica ou de utilidade para o

Estado acaba por suspender a necessidade de instituição de formação do gênio. Nesse

contexto de excesso de estabelecimentos chega-se até mesmo a dizer que o gênio

caminha com suas próprias pernas e não precisa de escola. Nesse embate de qual escola

se deve construir na Alemanha o que está em jogo são dois tipos de público. Para

Nietzsche as massas é que precisam das escolas em grande número, mas para os gênios

deve-se pensar nas poucas e excepcionais escolas. “[...] de um lado, a massa no seu sono

estúpido e torpe, que se reproduz por instinto, e de outro, muito distante dela, os grandes

indivíduos contemplativos, capazes de criação eternas.”204

O gênio não precisa de escola, esse pode ser uma conclusão cômoda e na qual

não se põe o difícil trabalho de criar estabelecimentos para tal. Esse orgulho pode se

notar também em nosso meio; tem-se orgulho de escritores e cientistas nacionais, mas

não se pergunta pelas condições com as quais esses mesmos tiveram que lutar para

chegar onde estão. Condições hostis à cultura e que na ora da glorificação do gênio,

quando ele produz algo de esplendido, não se pretende questionar. As dificéis

condições, os péssimos sistemas de educação, são como deixado de lado, como se fosse

assim mesmo. “E porque não lhes custou nada tê-los entre si, vocês deduzem disso a

204

EE, 2004, p. 111.

121

sedutora teoria de que daqui por diante não terão mais de fazer esforços por eles?”205

E

o autor contínua sua crítica a essa idéia de que o gênio consegue, independente dos

esforços do seu povo para que ele brote e cresça, por si, independentemente das

condições, brilhar, ser o que é, ignorando as condições sociais na qual vive, da cultura

de massa.

Para Nietzsche, não se de pode pensar que o gênio consegue propiciar os meus

necessários para a sua formação como correto. Faz-se necessário, mesmo com os mais

tenebrosos desafios, erigir estabelecimentos de cultura, para proteger os gênios da

nação. Para fornecer a eles as condições materiais necessárias para o seu pleno

desenvolvimento e produção cultural. “É a isto que me refiro, quando reivindico

estabelecimentos para a cultura e quando acho lamentável o estado daqueles aos quais

se dá agora este nome.”206

Na seqüência do texto, Nietzsche não admite que se refugia

na lide de fazer acontecer os estabelecimentos de ensino com o conceito “ideal”, por

assim dizer: essas suas exigências são ideais, para serem miradas e pronto. Não devem

ser postas em ação, o que ele retruca com veemência e diz: “Trata-se aqui de realidades

urgentes, presentes, que se impõem e saltam aos olhos [...]”.207

No trato dessa formação dos estabelecimentos há dois caminhos. Um certamente

corriqueiro e no qual o grande público se acotovela, pois é aí que ele acredita se formar;

é aí que se encontra o grande público de professores e pedagogos, diríamos hoje, a dizer

que isso é que é cultura. E para dizer dessa via Nietzsche é até irônico. O chavão que ele

destaca chega a ser hilário: “falam, por exemplo, de desenvolvimento completo da livre

personalidade no marco de sólidas convicções comuns, nacionais e humanamente

morais.”208

Na seqüência desse raciocínio, um pouco menos abstrato e mais

205

EE, 2004, p. 113. 206

EE, 2004, p. 114. 207

EE, 2004, p. 114. 208

EE, 2004, p. 117.

122

representante do ideal de Estado como promotor da cultura, os objetivos dos

estabelecimentos de cultura continuam a fazer eco à primeira leva do que se entende por

estabelecimento de cultura: “ou antes designam como sendo seu objetivo „a fundação de

um Estado popular baseado na razão, na cultura e na justiça.”209

Mas a esse modelo

Nietzsche põe um outro, mais difícil. “Para o outro grupo, menos numeroso, um

estabelecimento de ensino é uma coisa completamente diferente.”210

Naquilo que ele acredita uma das características é a negação da vontade pessoal

e a percepção de que há algo ao qual a individualidade deve se render, pois esse é o

movimento mais nobre. “Uma obra que deve ser, por assim dizer, depurada dos traços

da subjetividade e elevada acima do jogo cambiante do tempo, como puro reflexo do ser

eterno e imutável das coisas.”211

Só movido por esse espírito é que se poderá trabalhar

na instituição apropriada para o nascimento do gênio. Essa idéia de que há uma vontade

que se põe no jogo incessante do real, argumento peculiar de O Nascimento da

Tragédia, se repete aqui no que toca aos objetivos e os propósitos pessoais do

estabelecimento de ensino e do indivíduo que aí irá trabalhar para fazer nascer o gênio.

Como MELO SOBRINHO destaca,212

para Nietzsche a natureza é a referência e cabe a

nós indivíduo nos entregarmos nos seus braços. Tese que certamente é estranha em uma

modernidade do primado do indivíduo.

Ainda nesse esteira de um pensamento no qual se serve humildemente a

propósitos elevados, temos um grupo de pessoas que tem por papel trabalhar na

produção do gênio, “[...] seus dons sejam de segunda ou terceira ordem, estão

destinados à semelhante colaboração, e só chegam ao sentimento de viver para seu

209

EE, 2004, p. 117. 210

EE, 2004, p. 117. 211

EE, 2004, p. 117. 212

Cf. MELO SOBRINHO, Noéli Correia de. A Pedagogia de Nietzsche. In: Noéli Correia de Melo

Sobrinho. (Org.). Friedrich Nietzsche: Escritos sobre Educação. 2ª ed. Rio de Janeiro: Loyola - PUC-RJ,

2004, p. 7-39.

123

dever servindo a estas autênticas instituições de cultura”.213

Porém, com as promessas

da modernidade, todos se sentem os próprios gênios e não se propõe tal atituide de

altruísmo. Aliás, esses papéis que Nietzsche irá exaltar são tidos como menospresados

pela cultura moderna. “[...] agora são justamente estes dons quese desviaram do seu

caminho por obra das artes de sedução incontestes desta „cultura‟ da moda” e assim

tornados estranhos a seus instintos.”214

Esses indivíduos de dons secundários são

acossados pela moda a ver com não nobre seu serviço de auxílio e diz “[...] vocês serão

somente os servidores, os auxiliares, os instrumentos, eclipsados pelas naturezas

superiores, jamais felizes com sua singularidade [...]”.215

Certamente essas máximas

seduzem e constituem o cerne do que é ser moderno, objeto sempre de crítica de

Nietzsche. Mas o quadro que Nietzsche constata é de que esse modelo vence:

“Agora, os melhores sucumbem vítimas destas seduções: e, no fundo, não é a

qualidade dos dons que decide aqui se alguém é receptivo ou não a estas

vozes, mas sobretudo o grau e o nível de uma certa elevação moral, o instinto

do heroísmo, do sacrifício – enfim, uma necessidade autêntica de cultura, conduzida por uma educação adequada e tornada um hábito: cultura que é,

antes de mais nada, com já disse, uma obediência e um habituação à

disciplina que caracteriza o gênio.” (EE, 2004, p.118)

Nessa citação podemos ter a idéia de que é preciso de hábito, de altruísmo para

se formar culturalmente. E que „as instituições agora chamada de „estabelecimentos de

ensino‟ não sabem, por assim dizer, absolutamente nada”216

pois, certamente, se

acompanhamos o raciocínio do texto, elas estão preocupadas em fazer aquilo que

Nietzsche denúncia em O Nascimento da Tragédia: levar para o palco os desejos do

espectador, ou seja, não se intenta o árduo caminho da educação, do hábito, mas procura

pôr como prática educacional os clichês da moda, os interesses do Estado.

Acerca da necessidade de estabelecimentos de promoção da cultura, daquilo eu

Nietzsche entende por cultura, conseguimos notar que eles se fazem necessário, pois

213

EE, 2004, p. 117. 214

EE, 2004, p. 117. 215

EE, 2004, p. 117. 216

EE, 2004, p. 118.

124

cumprem o elevado papel de auxiliar aqueles indivíduos de espírito elevado a produzir

cultura. Essa produção vale precisar, não é à revelia, mas sempre em relação íntima,

ingênua com a natureza, donde brota um sentimento metafísico de unidade com essa.

2.7. O PROBLEMA DA LIBERDADE NA UNIVERSIDADE

Notamos que Nietzsche já questionou a liberdade ou pretensa liberdade no que

toca o exercício de composição de texto lá no ginásio. No seu balanço aquela prática

acaba por produzir um aluno que mais está preocupado em agradar seu professor do que

com a própria produção. Antes de falar da liberdade como um problema na formação do

jovem, prática adotada pela Universidade de então, Nietzsche nos aponta para uma

percepção do cotidiano, ou das questões que brotam do simples e que a educação por

mais que seus objetivos sejam desanimadores deve-se buscar nessa experiência

cotidiana as questões filosóficas:

“[...] que as experiências mais admiráveis, mais instrutivas, as experiências

decisivas, são exatamente as experiências cotidianas, que estas constituem

exatamente as experiências decisivas, são exatamente as experiências

cotidianas, [...] grande enigma que cada um tem sob os olhos, mas que

poucos compreendem como sendo um enigma, e que, para o pequeno número

de verdadeiros filósofos, são justamente estes os problemas que permanecem

ignorados, abandonados no meio do caminho e, [...] pisoteados pela multidão,

antes que eles os recolham cuidadosamente e a partir desse momento

resplandeçam com pedras preciosas do conhecimento”. (EE, 2004, p. 123)

Sempre, apesar das críticas, Nietzsche recoloca a importância do ginásio, no seu

entendimento “os objetivos de cultura a que ele visa deviam dar a medida para todas as

outras instituições, os desvios de sua tendência deviam afetá-las de alguma maneira.”217

Até mesmo a Universidade é vista em perspectiva do ginásio e não “[...] podia aspirar

agora este papel importante de centro motor [...]”,218

mas como seqüência do ginásio.

Mas na Universidade de então, contrário dos rígidos regulamentos do ginásio, apregoa-

217

EE, 2004, p. 123. 218

EE, 2004, p. 123.

125

se uma cultura da liberdade que Nietzsche irá, também, tecer suas considerações acerca

dessa prática. Assim está em seu texto:

“No entanto, esta preparação deseja nos tornar autônomos o suficiente, em

harmonia com a condição extraordinariamente livre que é aquela de um

estudante universitário. Portanto, me parece que, em nenhuma outra esfera da

vida atual, é permitido ao indivíduo tomar decisões e dispor sobre tantas

coisas como na esfera da vida estudantil. Ele deve poder se guiar por si

mesmo durante um bom punhado de anos, num terreno vasto, no qual se

permite a ele uma liberdade completa: por isso o ginásio deverá tentar torná-

lo autônomo.” (EE, 2004, p. 124)

Não se pode concluir que a crítica de Nietzsche no que toca a liberdade uma

conseqüente defesa de uma educação baseada na tirania do mestre. Nietzsche irá pôr

que se trata de uma falsa liberdade, em um primeiro momento, e depois que a liberdade

em hora errada não educa para a própria liberdade. Em parte ele já parece adiantar uma

temática que irá salientar lá no início da III Consideração Intempestiva: Schopenhauer

Educador, quando diz que procurava um mestre a quem se entregar no percurso de sua

formação. Ou seja, a liberdade forçada pode traumatizar, ademais é uma falsa educação,

pois na vida real não se encontra tanta liberdade assim, como a propalada na educação.

Antes, acreditava-se que na prática dessa autonomia formava-se o aluno capaz

de ser aquele pesquisador autônomo. Que “ele pudesse continuar a viver e a aprender

autonomamente, tal como teve de viver e aprender sob o constrangimento do

regulamento do ginásio.”219

Na voz do velho, Nietzsche diz: “[...] é justamente esta

autonomia que me aterroriza tanto [...]”,220

pois, no seu entendimento isso não

acontecia.

Nietzsche irá utilizar-se de uma metáfora ou de uma situação imaginária para

demonstrar o quanto, no seu entendimento era hilário a liberdade cultivada na

Universidade. Segundo ele: “Quando um estrangeiro vem conhecer o sistema das nossas

219

EE, 2004, p. 125. 220

EE, 2004, p. 125.

126

Universidades, ele pergunta primeiro com insistência: „De que modo o estudante está

ligado à Universidade?‟ Nós respondemos: „Pelo ouvido, como ouvinte‟ [...]”.221

A autonomia não é algo inato. Deve-se construí-la na formação do jovem. Numa

aparente contrariedade, deve-se aí estabelecer duras regras, o mestre deve ser a

referência e por aí vai. A ilusão de uma autonomia ainda em idade muito tenra pode

jogar o jovem que ainda não tem forma, não se formou, em uma situação maléfica para

o resto de sua vida. Aí se cria a pseudoliberdade na qual, nos termos de hoje, o aluno

acaba por atirar no próprio pé, ou seja, de tanta liberdade o educando acaba por

prejudicar a sua própria formação.

No âmbito da Universidade essa liberdade contínua a ser questionado por

Nietzsche, ele acha estranho que o aluno apenas esteja ligado a ela pelo ouvido. Mas

não fica para traz o professor:

“O que ele pensa ou faz está, aliás, separado por um imenso abismo da

percepção dos estudantes. [...] o professor pode dizer praticamente o que quer

e o aluno pode ouvir praticamente o que quer: só que, bem perto e atrás dos

dois grupos, a uma distância conveniente, se põe o Estado, com semblante

atento do vigia, para lembrar de vez em quando que ele é o objetivo, o fim e a

quintessência destes estranhos procedimentos que são o falar e o ouvir”. (EE,

2004, p. 126)

Em tom de ironia e na boca do velho filosofo Nietzsche diz: “Tempos felizes

estes, em que os jovens são sábios e cultos o bastante para se guiarem a si mesmos!” O

que Nietzsche está a dizer com a ironia, que tal proposta não é possível de ser. Será um

fracasso, pois como o educando ainda muito jovem poderá ser guia de si, sem um

mestre. E continua ele registrando que até mesmo no ginásio de então a liberdade já era

uma concessão perniciosa: “Insuperáveis ginásios, que chegam a implantar a autonomia

lá onde, noutras épocas, se acreditava dever implantar a dependência, a disciplina, a

submissão, a obediência, e afastar qualquer presunção de autonomia!”222

Ou seja, até

mesmo o ginásio que se caracterizava por rígida disciplina não é mais tão assim. Claro,

221

EE, 2004, p. 125. 222

EE, 2004, p. 127.

127

vale registrar, que essa entrega do discípulo ao mestre não quer dizer umas relações

doentias, sádicas. O mestre, como vamos ver na III Consideração Intempestiva:

Schopenhauer Educador, não é um professor moderno, caracterizado por Nietzsche

como um egoísta, que irá impor tarefas ao discípulo fazendo dele um serviçal. Mestre e

discípulo aqui estão imbuídos de elevados princípios culturais e sabem que seu trabalho

para com a cultura de seu país deve servir não a questões individuais, mas a questões

universais.

Em que, então consiste o estudante e porque a liberdade pode lhe ser maléfica:

“pois ele é apenas [...] um aluno do ginásio formado pelas mãos dos seus mestres; e com

tal [...] ele fica privado de toda formação ou de toda direção ulterior que o levaria á

cultura [...]”.223

O que ele quer dizer é que o aluno que procura gozar de liberdade na

Universidade saiu de um dado ginásio, já criticado por ter objetivos confusos e não

cumprir papel de promotor da cultura.

Nossa idéia de que Nietzsche vê com olhos suspeitos a proposta de liberdade do

Ginásio e da Universidade encontra alento, através do velho filósofo, quando diz:

“Livre! Meçam esta liberdade [...] Construída sobre os pés de barro da atual cultura dos

ginásios, que dizer, sobre um fundamento que se esfarela, sua fundação fica torta e

insegura [...]”.224

Dar liberdade ao jovem universitário se ele não teve uma base, se sua

base “assenta-se sobre pés de barro”, só poderá dar frutos contrários à boa cultura.

Essa formação é pouco consistente, mais adiante, ele vai dizer e pontuar que se

essa cultura do jovem livre for posta na balança da filosofia, da arte e de sua relação

com a antiguidade grega e romana os resultados não serão aprazíveis. O que comprova

que falar em liberdade como orgulho é algo contraditório, no qual se é livre para não

saber. Mais adiante no texto Nietzsche sustenta que é necessária a presença do mestre,

nessa fase da juventude. Será pela mão do mestre se pode chegar nos lugares fecundos

223

EE, 2004, p. 127. 224

EE, 2004, p. 127.

128

da produção da cultura, “se é levado a estes corretamente, cairá imediatamente neste

espanto filosófico duradouro, sobre o qual unicamente, como sobre um solo fecundo,

pode crescer uma cultura profunda e nobre.”225

A própria vida do jovem é o canteiro para a senda do conhecimento. Contudo,

como andam as condições para o conhecimento? Para aproveitar a pulsão da juventude

na dieração de uma formação artística, filosófica é preciso da intervenção do mestre:

“Nesta idade, em que vê suas experiências, por assim dizer, envolvidas por

um arco-íris metafísico, o homem tem a necessidade suprema de uma mão

que o guie, porque, de repente e quase instintivamente, ele é persuadido da

ambigüidade da existência e porque perdeu já o solo firme das opiniões

tradicionais às quais estava até então ligado” (EE, 2004, p. 128)

O fundamento da crítica de Nietzsche à autonomia é, portanto, pertinente e não

se trata de um autoritarismo. Essa necessidade de tutelar o aprendiz se faz necessário

para não deixá-lo abandonado à sua própria sorte. Nietzsche valoriza o “estado natural

de extrema indigência” do educando, pois com isso ele faz em si a experiência da

natureza. Sua ingenuidade também se faz necessária nessa relação sem pretensões. Mas

essa postura não combinava com a autonomia propalada, sua postura era o “inimigo

mais encarniçado desta autonomia tão querida, para a qual o jovem culto da nossa

época, me parece, devia ser guiado”. Ou seja, a idéia da cultura como retrato da

natureza, como já advertido por MELO SOBRINHO,226

se reafirma no próprio texto de

Nietzsche. A relação feita pelo autor entre natureza e educação faz com surja de suas

análises uma proposta de educação singular, causando até mesmo um certo

estranhamento com os demais projetos educacionais vigentes em seu tempo.

O problema da liberdade ou autonomia do jovem acaba por suplantar esse olhar

para si. “Todos os jovens de „hoje‟ que se refugiaram na „evidência‟ se esforçaram

zelosamente para reprimir e paralisar este estado natural, e o meio favorável [...] é a

225

EE, 2004, p. 127. 226

Cf. MELO SOBRINHO, 2004, p. 7-39

129

cultura histórica.”227

Substituindo o conhecer-se por uma erudição que se compraz em

acumular artefatos, achados.

Essa cultura histórica, que oferta ao jovem uma miríade de possibilidades

investigativas e até paralisante. Uma senda que só irá produzir comentários, “agora se

trata de estabelecer o que pensou ou não pensou este ou aquele filósofo, se é possível

com razão atribuir a ele este ou aquele escrito [...]”.228

A cultura histórica ataca

fulminante a pulsão do filosofar transformando-o em filosofia, ou uma comentologia.

Mas essa falta de arte, leva o jovem „livre‟ a dilemas. Por um lado esse aluno se

vê fora da realidade, pois gozou de uma tal liberdade que no mundo do trabalho não é

permitida, depois, “ele percebe que não pode dar para si mesmo uma direção, nem

prestar socorro a si mesmo: então [...] ele mergulha no mundo do dia-a-dia e do trabalho

cotidiano [...]”.229

O fato de ter furtado de si, e se imbuído da tal liberdade fez com esse

jovem não se encontrasse consigo mesmo, não educou sem si sua vontade, sua relação

consigo e com a natureza. Tais negligências, no entendimento de Nietzsche, o leva para

uma situação impar o jovem estudante:

“Num estado de vazio inconsolável, dele vê seus planos desaparecerem na

fumaça: sua situação é insuportável e indigna; oscila entre uma atividade

frenética e uma lassidão melancólica. Então, fica cansado, preguiçoso,

assustado com o trabalho, aterrorizado com tudo o que é grande e está cheio

de ódio contra si mesmo. Ele disseca suas faculdade e acredita ver aí abismos

fantásticos e cheios de caos. Em seguida, do alto deste conhecimento de si,

que seu sonho inventou, se precipita novamente num ceticismo irônico. [...]

dúvida, ímpetos, carências da vida, esperanças, desesperos, tudo isso o leva

de um lado para outro, o que significa dizer que acima dele todas as estrelas

estão apagadas, estrelas com as quais ele poderia, no entanto, regular o curso

do seu navio”. (EE, 2004, p. 131)

A liberdade propalada na Universidade, como nos foi possível acompanhar no

texto de Nietzsche, pode até ser um bem almejado pelos torpes da cultura, mas para o

jovem de cultura pode ser uma punição desnecessária, pois poder-se-ia tomar as devidas

227

EE, 2004, p. 128. 228

EE, 2004, p. 128. 229

EE, 2004, p. 130.

130

precauções. O resultado, como expresso na citação acima, é que esses jovens entram no

desespero, ficam sem norte. A falsa liberdade o coloca em uma situação de desespero,

um correr para lá e para cá. Tudo isso por culpa de um modelo de educação que propõe

um ser autônomo, o que para Nietzsche não é possível. “Quem o impeliu à autonomia

numa idade em que, habitualmente, as necessidades principais, que dizer, naturais, são

as de buscar grandes guias e seguir entusiasticamente a via que traça o mestre?”230

Esse jovem educado na “incultura” produz um produto desprezível, como

conseqüência da sua má formação, é os excessos de livros, comentários. “Tu és um

homem de cultura degenerada! Nasceste para a cultura, mas foste educado pela

incultura!”231

Essa tese é perseguida no texto de Nietzsche de várias formas e matizes,

ele não cansa de bater nela, de dizer de vários modos que se trata de um problema. E já

no final de suas conferências, ele volta a falar desse jovem que inicialmente até levava

jeito para a produção de cultura, mas que sofre devido à falsa educação. “Oh!

Miseráveis inocentes que viraram culpados! De fato, lhes faltava algo que devia vir de

fora, uma verdadeira Instituição de cultura que pudesse lhes fornecer os objetivos, os

mestres, os métodos, os modelos, os companheiros [...]”.232

E seu pensamento acerca da liberdade ou a autonomia na Universidade e sua

relação com a formação cultural encerra por denunciar que a moda acossa as idéias da

verdadeira cultura. Propor submeter-se a um mestre ou à própria natureza é uma

aberração para o indivíduo moderno. Existe nesse indivíduo, assim fica nos evidente nas

demonstrações de Nietzsche, uma total ojeriza por tudo o que não lhe incute a idéia de

que é livre na sua formação. Tese que Nietzsche demonstra ser falsa, pois o Estado está

sempre por perto para assistir tal liberdade e que na vida prática, no mundo do trabalho,

230

EE, 2004, p. 131. 231

EE, 2004, p. 132. 232

EE, 2004, p. 132.

131

não se tem tanta liberdade assim, deve-se, ao contrário, cumprir os propósitos do

Estado, do patrão.

Nietzsche denúncia que esse padrão de vida procura acossar os verdadeiros

arautos da cultura. Falar de submissão é ultrajado, ridicularizado, por essa moda. Essa

idéia de autonomia é na verdade um engodo que seduz as massas e também aqueles

jovens propensos para a cultura com falsas promessas. A cultura, no seu entendimento,

não se faz desse modo, mas “toda cultura começa, ao contrário de tudo o que se elogia

hoje com o nome de liberdade acadêmica, com a obediência, com a disciplina, com a

instrução.”233

O balanço que se pode fazer, no que toca o tema da liberdade tratado na quinta

conferência, é que a liberdade constitui um problema. Ser livre no trato da formação

cultural é uma postura moderna e que causa e provoca a produção de um tipo

desesperado, que oscila entre muitas coisas e ao mesmo tempo coisa alguma. O

caminho da cultura, ao contrário, requer disciplina, abnegação das vontades pessoais.

Postura, aliás, que nos faz lembrar aquele conceito de O Nascimento da Tragédia no

qual o verdadeiro artista é aquele que se despe das necessidades egoístas, e se deixa

participar, envolver, pela Vontade.

Mas essa postura, como denúncia o texto da conferência, está em confronto

aberto com aquilo que ele chamou de „cultura da moda‟ e que vê com escárnio tais

pensamentos no que toca à cultura. E pensa, como é próprio do pensamento moderno,

que é ultrajante negar-se, alienar-se em prol de propósitos outros ao próprio interesse

individual. E Nietzsche insiste em vários momentos que é preciso se submeter a um

mestre; guia, a objetivos pré-estabelecidos.

233

EE 135

132

2.8. III CONSIDERAÇÃO INTEMPESTIVA: SCHOPENHAUER EDUCADOR234

Na apresentação da edicação em portugues das Conferências e da III

Consideração Intempestiva MELO SOBRINHO faz a seguinte obevação do porquê ele

aglutinou esses dois escritos de Nietzsche em uma mesma edição: “O critério que

utilizamos para juntá-las é que ambas abordam, cada uma à sua maneira, o problema da

educação e da cultura”.235

Um outro testemunho também nos parece ser relevante, antes

de adentrarmos ao conteúdo propriamente dito da III Consideração Intempestiva:

Schopenhauer Educador. Para DIAS Nietzsche recorre, para elaborar a III

Consideração Intempestiva, “as anotações que fizera para a sexta e a sétima

conferência, não proferidas, Sobre o Futuro de Nossos Estabelecimentos de Ensino.”236

Constatado essa imbricação, passemos ao texto e já vamos encontrar um

Nietzsche crítico, mas ao mesmo tempo apontando o quão maravilhoso é ser gente. Não

se pode nessa fase de sue escritos duvidar da aposta pela vida autêntica que faz

Nietzsche. Já na abertura ele comenta que o resultado de um viajante, que conheceu

muitas culturas, é a seguinte: “Eles [os seres humanos] se escondem atrás de costumes e

opiniões.” 237

Mas sua aposta não se reduz a essa constatação, pois ele crê que o homem

é de outra natureza e propósito:

“[...] que ele [o homem] é belo e digno de consideração segundo a estrita

coerência da sua unicidade, que ele é novo e incrível como todos as obras da

natureza e de maneira nenhuma tediosa. Quando o grande pensador despreza

os homens, é a preguiça destes que ele despreza [...]”. (III Co. Int., 2004, p.

139)

234

Para as citações da III Consideração Intempestiva: Schopenhauer Educador vamos aqui adotar

abreviatura: III Co. Int. seguida do ano da tradução da edição em português e da página da obra. A obra

que vamos consultar é a traduzida e comentada por MELO SOBRINHO. Optamos por não seguir a

indicação dos Cadernos Nietzsche por uma questão de tradução do título da obra em questão. Naquele

Caderno faz-se a tradução de Unzeitgemässe Betrachutugen. Drittes Stück: Schopenhauer als Erzieher

por Considerações Extemporâneas III: Schopenhauer como Educador. Contudo, na tradução que fizemos

uso, da lavra de MELO SOBRINHO, a tradução teve uma outra conformação: III Consideração

Intempestiva: Schopenhauer Educador. 235

MELO SOBRINHO, 2004. p.7. 236

DIAS, 2006, p. 43. 237

III Co. Int., 2004, p. 138.

133

Na abertura da III Consideração Intempestiva: Schopenhauer Educador

Nietzsche já põe de volta sua questão com a cultura do momento, diríamos hoje, a

cultura de massa. Sua crítica sempre é nessa direção, que o movimento cultural que ele

observa em seu redor é de certo modo inautêntico, mas isso não quer dizer que o

filósofo reduza a humanidade a apenas esse aspecto. Sua denúncia, que muita das vezes

chega até a assustar, logo é recolocada na perspectiva de que o homem é um ser

esplêndido, como fica patente nessa citação acima. Também aposta em pessoas que não

se reduz, se curva à cultura de massa: “O homem que não quer pertencer à massa só

precisa deixar de ser indulgente para consigo mesmo; que ele siga a sua consciência que

lhe grita: “Sê tu mesmo! Tu não és isto que agora fazes, pensas e desejas.”238

Essa

missiva indica que o homem precisa romper com o comodismo e encarar o papel de se

formar. É uma atividade a alcança de todos, basta sair de trás do hábito, do comodismo.

Na trajetória de pensamento arrolado por Nietzsche nas Conferências Sobre o

futuro de nossos estabelecimentos de ensino, podemos notar aqui seu compromisso com

a elevada nobreza da cultura. Aliás, nas linhas aqui demarcadas para nosso estudo

dissertativo, temos notado que para Nietzsche a cultura é algo nobre, elevado, e que a

modernidade contingenciou a cultura em prol de vários objetivos que não ela própria.

Para esse homem que se imbui da cultura moderna os adjetivos de Nietzsche são vários.

“Não existe na natureza criatura mais sinistra e mais repugnante do que o homem que

foi despojado do seu próprio gênio e que se extravia agora a torto e a direito, em todas

as direções.”239

Esse descaso para com a cultura é sinistro quando passado às épocas. A pergunta

é: o que tal geração legou para o futuro? Como resultado nefasto pode-se ter como

resposta: nada, não legou nada, foi apenas um período sombrio. Seria o fenômeno da

238

III Co. Int., 2004, p. 139. 239

III Co. Int., 2004, p. 139.

134

geração perdida, que não lega nada de positivo. Ao contrário, seu legado deve sempre

ser tratado como estorvo para a humanidade. É esse o fruto do preguiçoso com que

Nietzsche abre a III Consideração Intempestiva: Schopenhauer Educador. Acerca

desses “é preciso apagar este tempo da história da autêntica emancipação da vida”.240

Retomando o caminho para a produção da cultura, mesmo que não se possa

contar com o legado de gerações perdidas, temos a experiência de nós mesmos como

indicação para tal: “a singularidade da nossa existência neste momento preciso é o que

nos encorajaria mais fortemente a viver segunda a nossa própria lei e conforme a nossa

própria medida”. Essa indicação, sem dúvidas, refere-se à idéia que é presente em

Schopenhauer de que é possível fazer em nós a experiência da coisa-em-si kantiana. O

tema dessa individualidade, como caminho do „conhecer a si mesmo, pode ser

observado sob dois aspectos segundo DIAS. Por um lado esse „eu‟ não é aquele

moderno, egoísta. “O „eu‟ a que Nietzsche se refere é algo que se almeja e se supera, e

não uma substância fixa. Assim, não existe para Nietzsche um “verdadeiro eu”, pois

ninguém pode estar certo de ter-se depojado de todas as suas máscaras.”241

Falando quase que de um mistério que marca a nossa singularidade ele

continua: “quer falar sobre este fato inexplicável de vivermos justamente hoje, quando

dispomos da extensão infinita do tempo de um hoje e quando é preciso mostrar nele, por

que razões e para que fins, aparecemos exatamente agora.”242

Nessa citação podemos

notar o viés romântico que pode ser tomado o „eu‟, o indivíduo. Mas para DIAS trata-se

de “outro contra-senso confundir o individualismo nietzschiano com o individualismo

do Romantismo.”243

A procura do indivíduo por encontrar a si, notar a sua singularidade

em Nietzsche tem outra visada. “De fato, nessa tarefa de „chegar a si mesmo‟, o

240

III Co. Int., 2004, p. 139. 241

DIAS, 2006, p. 68. 242

III Co. Int., 2004, p. 140. 243

DIAS, 2006, p. 68.

135

indivíduo deve distanciar-se da cultura artificial, assim como da massa gregária.” E

contínua DIAS: “Mas Nietzsche de modo nenhum afirma que o homem busca um “eu”

perdido no fundo de seu ser como a um ponto fixo, nem que esse “eu” só pode ser

encontrado sem si mesmo e não em qualquer coisa externa a ele.”244

Será dessa experiência, que o preguiçoso pode se privar, que o homem irá se

lançar na construção de si. “Ninguém pode construir no teu lugar a ponte que te seria

preciso tu mesmo transpor no fluxo da vida – ninguém, exceto tu.”245

Não se compra

esse caminho, cultura é construção, e os caminhos já foram indicados nas reflexões de

Nietzsche sobre o papel do ginásio e naquilo que ele crê como sendo instituições de

cultura, isto é, um árduo caminho no qual o indivíduo deve se entregar a um itinerário

oriundo da natureza.

Como se conhecer? Certamente o percurso não é simples, pois o homem é um

mistério, e a metáfora utilizada por Nietzsche é a de das sete peles da lebre, a qual o

homem logo supera e ainda encerra mais mistérios. Caberá, então, a seus educadores

propor essa libertação, esse se encontrar. Percurso que faz dois movimentos: um “que a

jovem alma se volte retrospectivamente para sua vida [...] O que vai, depois de um

percurso no qual ele observa um série de objetos venerados, levá-la a outro que não é

propriamente nenhum desses objetos, “pois tua essência verdadeira não está oculta no

fundo de ti, mas colocada infinitamente acima de ti, ou pelo menos daquilo que

tomamos comumente como sendo teu eu”. 246

É nessa dimensão quase mística que se dá

a libertação do indivíduo no caminho de conhecer a si. DIAS assinala que para

Nietzsche, “a formação autêntica não é uma volta ao „eu‟ verdadeiro, nem o

desmascaramento dos obstáculos fictícios que entravam a cultura do „eu‟. O „eu‟ é uma

244

DIAS, 2006, p. 69. 245

III Co. Int., 2004, p. 140. 246

III Co. Int., 2004, p. 141.

136

construção, um „cultivo de si‟ permanente. Para ousar ser um „si mesmo‟, é preciso

antes de mais nada uma tarefa educativa”,247

de libertação.

O modelo de educação que vai, então, propiciar esse processo de encontro

consigo, que revela que há em nós uma dimensão que vai alem de nós mesmo,

revelando a natureza superior que há em nós, tema que é recorrente nas idéias das obras

aqui demarcada, é “[...] aquela outra educação é somente liberação, extirpação de todas

as ervas daninhas [...] ela é efusão de luz e calor, o murmúrio amistoso da chuva

noturna” ;248

Essa educação, tese coerente nos textos em questão, é também “ imitação e

adoração da natureza no que esta tem de material e misericordioso[...]”.249

Essa

educação, também, cumpre aquele papel levantando lá em O Nascimento da Tragédia

de criar um véu que dê sentido para nós humanos aos princípios sem sentido da

natureza. A educação como aquela que „cobre‟ com „véu‟ as intenções de „madrasta‟

natureza, o que podemos pensar em termos de conhecimento trágico como uma

educação que também ensina a criar, ou, já que é impossível ensinar a criar, a eduação

como aquela que cria uma “efusão de luz e calor” e com isso faz brotar o conhecimento,

a criação no sentido de arte. Seria o que chamamos no primeiro capítulo de nosso

trabalho, das condições estéticas para aflorar o indivíduo liberto. Condições, vale mais

uma vez advertir, não no sentido lógico de causa e efeito, mas condições aqui, e lá no

primeiro capítulo, é os artefatos, as disposições de suporte ao educando, para que ele

consiga fazer o percurso, junto com seu mestre, de libertação de si.

Feito o convite, assinalado que é na direção de si, na libertação de si, no cultivo

desse si, que se educa. Nietzsche passa a falar de como tem se procedido nesse

cuidado.Como o educador tem procedido para com o “talento” do educando nesse

manejo do “educar a si”. Analisando a prática corrente da educação duas máximas lhe

247

DIAS, 2006, p. 69. 248

III Co. Int., 2004, p. 142. 249

III Co. Int., 2004, p. 142.

137

saltam aos olhos: “uma exige que o educador deva imediatamente reconhecer o ponto

forte dos seus alunos e dirigir então todas as energias, todas as forças e todo o raio de

sol sobre este ponto, a fim de levar à maturidade e à fecundidade esta única virtude.”250

Postura equivocada, pois “trata-se de uma educação despótica, cujo produto é um ser

distorcido, inepto em todas as outras cosias para as quais não foi preparado e, muitas

das vezes, mesmo naquilo em que foi treinado.”251

A outra opção é a “que o educador

tire partido de todas as forças existentes, as cultive e faça reinar entre elas uma relação

harmoniosa.”252

Postura democrática “cujo produto é o homem burguês, o animal de

rebanho.”253

Esses dois pontos suscitam algumas indagações. Deve-se ter cuidado na

idéia de valorizar o dito talento, ou aquilo que o aluno faz de melhor, pois, na verdade,

existe toda uma relação entre as tais habilidades e as não-habilidades. Ademais, o

próprio talento é uma idéia inventada por uma dada concepção de educação e o

movimento de valorizar esse ou tentar harmonizá-los já revelam que todos estão no

mesmo barco e não faz, no entendimento de Nietzsche, a verdadeira educação. O risco

de tentar potencializar o talento pode ser anacrônico. É preciso, portanto, administrar os

tais talentos com os não talentos.

Seguindo atentamente o pensamento do filósofo até admite o chamado

desenvolvimento harmonioso para o estudante mais comum, medíocres, aquele que não

é o gênio. Porém, aos gênios, como um Celine, ele observa que esse na sua genialiade

acaba por tirar proveito desses desequilíbrios entre talento e não-talento, desse

movimento de tensão entre o que ele tem de melhor e aquilo que não tem, revelando

uma relação produtiva dessa tensão.

Para resolver isso Nietzsche pensa no guia: “Este educador filósofo com quem

eu sonhava poderia, não se duvidar, não somente descobrir a força central, mas também

250

III Co. Int., 2004, p. 143. 251

DIAS, 2006, p. 70. 252

III Co. Int., 2004, p. 143. 253

DIAS, 2006, p. 70.

138

impedir que ela agisse de maneira destrutiva com relação às outras forças [...]”.254

Nos

escritos das Conferências, Nietzsche, propõe que a educação e a instituição educacional

e cultural deveria ser aquela que propõe os objetivos, os métodos, enfim, guie o

estudante, aqui temos essa idéia, mas agora bem ligada ao mestre, ao papel do mestre

para com o discípulo.

Mas quando se pensa a educação nos termos de um guia, deve-se, também,

pensar as questões morais. O comprometimento dos mestres com a vida, com o que eles

fazem. Não podendo ter dissociação do tipo “pense o que eu penso, mas não faça o que

eu faço”. E aqui Nietzsche aponta já para a dissociação entre ciência e humanidade.

Crítica, aliás, que ele já pontua na em O Nascimento da Tragédia, quando nota que os

professores universitários não davam o devido trato aos Gregos Antigos e que com isso

não conseguiriam fazer ressurgir a tragédia grega. No seu entendimento faltava uma

comprometimento de vida desses profissionais para com a cultura, eles, ao contrário,

dava um jeitinho cômodo e com isso perdiam o sentido do que foi realizado pelos

Gregos Antigos. Aqui, na III Consideração Intempestiva: Schopenhauer Educador, ele

diz dessa dissociação do seguinte modo: “Mesmo a maneira tão admirada com a qual os

eruditos alemães se lançam sobre sua ciência, mostra, sobretudo que, agindo assim, eles

pensam mais na ciência do que na humanidade”.255

Dessa relação dissociada, do “comércio com a ciência, quando não é orientada e

delimitado por uma máxima superior de educação, mas sempre mais desencadeado

segundo o princípio „quanto mais, melhor‟, é certamente tão nocivo aos eruditos

[...]”,256

que a idéia de moralidade na educação desapareceu.

Aqui está a questão da moral na concepção de educação de Nietzsche, o que nos

faz assinalar que esse é um tema que orientará o pensamento de Nietzsche, isto é, a

254

III Co. Int., 2004, p. 143. 255

III Co. Int., 2004, p. 144. 256

III Co. Int., 2004, p. 144.

139

relação entre verdade ou ciência e moral, como nos adverte Roberto Machado em

Nietsche e a Verdade. Ainda segundo MACHADO, temos em O Nascimento da

Tragédia uma relação arte e ciência e que depois essa relação muda para ciência e

moral, pois estaria na base da ciência exatamente questões de ordem moral. Mais

importante do que o próprio conhecimento é a intenção que está por detrás dele que é,

portanto, moral. Aqui, no texto da III Consideração Intempestiva: Schopenhauer

Educador, temos Nietzsche chamando a atenção para o fato de que os mestres não

querem saber de moral. “Foi assim que nossas escolas e nossos mestres chegaram a

fazer simplesmente abstração de qualquer educação moral e a se contentar com um puro

formalismo; e a virtude é uma palavra com a qual professores e alunos não querem mais

pensar nada [...]”.257

É interessante observar que a atitude moral é preterida pelo

conhecimento científico. Questão que nós pensamos ser: conhecimento vinculado com a

realidade é o que inclui a moral, pois não vale só pensar, existe um humano nesse jogo.

Porém, “jamais tivemos tanta necessidade de educadores morais e jamais foi tão pouco

provável encontrá-los.”258

Nesse desamparo o filósofo acredita que seu melhor recurso foi tomar seus

„desejos por realidades, “quando imaginava poder encontrar como educador um

verdadeiro filósofo, capaz de elevar alguém acima da insuficiência da atualidade e de

ensinar novamente a ser simples e honesto no pensamento e na vida, e portanto

intempestivo.”259

E Schopenhauer é dotado, no olhar de Nietzsche de muitas qualidades.

Certamente ele consegue aglutinar qualidades morais e acadêmicas, “pois ele pretendia

dizer o que é profundo simplesmente, o que é comovente sem retórica, o que é

257

III Co. Int., 2004, p. 145. 258

III Co. Int., 2004, p. 146. 259

III Co. Int., 2004, p. 146.

140

estritamente científico sem pedantismos.”260

Ele também é, nesse olhar, alguém sereno,

honesto e constante.

Achar um educador, portanto, é outra tese que liga o presente texto com as

palestras sobre o Futuro dos Estabelecimentos de Ensino. Ora, a liberdade, como já

dissertamos, esconde armadilhas nefastas e acaba por não ser desejada na formação da

pessoa. Essa falsa liberdade criticada por Nietzsche é capaz de agir contrariamente a

formação do indivíduo e o seu contrário é exatamente a tutoria de um mestre.

Anteriormente nas duas ocasiões que Nietzsche questiona a liberdade, no trato da língua

e na autonomia Universitária, ele sempre observou exatamente a ausência de um mestre

como referência.

2.9. O MESTRE E SEU PERCURSO SOLITÁRIO

A liberdade ou autonomia foi duramente críticada por Nietzsche, porém, no que

toca ao metre deve se tê-la como mira. Não se pode conceber o mestre, que é também o

gênio da cultura, sem tal liberdade. Na verdade é preciso aqui fazer um esclarecimento.

A liberdade do mestre, que é para ele uma grande responsabilidade, está no que toca em

seu comprometimento com a criação cultural ou não. Quando um mestre compromete-

se com alguma instituição sua produção também é contigenciada. Um mestre nesse

aspecto deve dar exemplo dessa liberdade e consequentemente, de seu

comprometimento cultural.

Uma outra perspectiva que a liberdade do mestre é bem quista nos é dado por

MELO SOBRINHO na apresentação dos Escritos Sobre Política de Nietzsche261

.

Apresentando o pensamento de Nietzsche sobre o gregarismo, ele nos diz que os

indivíduos são marcados pela utilidade em manter o grupo, o quanto ele é útil para o

260

III Co. Int., 2004, p. 148. 261

Cf. MELO SOBRINHO, Noéli Correia de . Apresentação. In: Noéli Correia de Melo Sobrinho. (Org.).

Escritos sobre Política. Friedrich Nietzsche. São Paulo: Loyola, 2007, p. 7-59.

141

grupo, MELO SOBRINHO nos diz que ser livre é romper com esse fim. Não se sujeitar

aos propósitos do rebanho que anula o indivíduo. Até mesmo o „indivíduo moderno‟

seria, nesse entendimento, um dependente do rebanho e não propriamente livre. “Os

indivíduos pensam de si aquilo que os outros pensam dele e é por isso que eles exigem

direitos iguais.”262

Essa liberdade é necessária pra que o gênio possa criar, colocar suas

verdades. Sendo assim Nietzsche diz: “Estimo tanto mais um filósofo quanto mais ele

está em condições de servir de exemplo.”263

Para ele um Kant se comprometeu com a

Universidade, comprometeu-se a criar, criação que não pode ter peias, obrigações

externas. O contrário de Kant é Wagner: “mostra que ao gênio lhe é permitido não

temer entrar nas mais hostil das contradições, com as formas e os regulamentos

existentes, claro ele queria manifestar claramente a verdade e a ordem superior que

carrega no seu interior.”264

Mas como já avisamos o percurso do mestre e gênio não é fácil. Nietzsche

congrega vários elementos que destacam o duro percurso do gênio, sua solidão, sua

dificuldade de se comunicar com os seus contemporâneos. Inicialmente poder-se-ía

pensar que se isolando o mestre e gênio resolveria seus problemas. Mas na visão de

Nietzsche não é simples. Essse isolamento também é visto com ressalvas e mesmo aí

“execrou-se o filósofo solitário, pois a filosofia oferece ao homem um asilo onde

nenhum tirano pode penetrar [...]”.265

No contexto de ser livre aludido por MELO

SOBRINHO, podemos ampliar ainda mais o fato do ser solitário consistir em um

problema. Pois ser livre é não aceitar a ordem posta. Apesar do movimento de rebanho

existir, sempre “indivíduos rebeldes, indivíduos que transitam de uma categoria social

para outra [...] inconformados, rebeldes, que dizer, homens livres, fragmentados e

262

MELO SOBRINHO, 2007, p. 17. 263

III Co. Int., 2004, p. 150. 264

III Co. Int., 2004, p. 151. 265

III Co. Int., 2004, p. 154.

142

dispersos acometidos pela má-consciência provocada pela vigência de uma gregaridade

imposta também a eles; a eles são lançados todos os tipos de hostilidades, e por isso

muitos deles sucumbem.”266

E contínua sua exposição no âmbito da política, mas que

demarca bem a tensão desse indivíduo livre e a gregaridade. Tensão essa que nos

interessa, pois será aí que Nietzsche vislumbra o percurso do mestre. Será nesse bojo de

hostilidade que o mestre terá de se ver.

Esse isolamento dado ao elevado espírito do mestre, por um lado, e seu contato

íntimo com a verdade, por outro lado, acaba por levar ao desespero esse seres sensíveis

em matéria de cultura. Schopenhauer foi obrigado a viver com isso. Outros filósofos,

como Kleist, citado por Nietzsche,267

entraram em desespero e suicidaram. Ao

contrário, Nietzsche observa na filosofia de Schopenhauer uma solução para tais

situações: “[...] de maneira individual, unicamente pelo indivíduo para consigo mesmo

[...] quer dizer, a abnegação do eu, a submissão a fins mais nobres e sobretudo àqueles

da justiça e da piedade.”268

Revelando aqui o que MELO SOBRINHO nos diz ser um

tipo de individualidade distinta do espírito gregário. É o indivíduo não como aquele

cunhado pelo olhar da massa, mas é aquele que é por ele mesmo, aristocrata, que é viril

em determinar-se.

E para se safar da loucura, como no final da citação acima, é preciso se imiscuir

a princípios mais elevados. E esse processo passa pelo conhecimento de si. “No início,

no primeiro instante, certamente, somente par si: mas através de si, no fim, para

todo.”269

Fórmula que certamente nos lembra o conhecimento trágico que é exatamente

essa superação da dor constituinte do real através da arte.

266

MELO SOBRINHO, 2007, p. 17. 267

III Co. Int., 2004, p. 156. 268

III Co. Int., 2004, p. 157. 269

III Co. Int., 2004, p. 158.

143

Ficou patente que a verdade pode enlouquecer, sobretudo se seu cultor, por

natureza do gênio, se isolar. Dessas características mais externas do gênio, passemos

para um olhar mais aproximado dele.

“Todo homem encontra normalmente em si um limite dos seus dons, assim

como do seu querer moral, e este limite o enche de nostalgia e melancolia. E,

assim também, do fundo do sentimento do seu pecado, ele aspira a santidade,

leva consigo, [...] aspiração profunda pela genialidade. (III Co. Int., 158)

Essa é também uma característica que faz de Schopenhauer alguém simples, e

mestre, pois, no entendimento de Nietzsche, “o vemos então como um ser sofredor e

como um companheiro de sofrimento, e não mais somente imerso na elevação

desdenhosa do gênio.”270

O que resolve em partes a idéia de que o gênio ficaria solitário

incomunicável, e nesse caso Schopenhauer apresenta um „plus‟ que o faz não apenas

gênio, mas mestre, referência.

Um terceiro perigo que corre o gênio, depois do isolamento e do desespero, é

seu endurecimento moral e intelectual, que também atua contra a sua genialidade. Que o

faz, se não for precavido, desistir de seu projeto, de sua empreitada na criação cultural.

“O homem destrói o liame que o prendia a seu ideal ele deixa de ser fecundo, de

procriar e, no que se refere a cultura, ele torna nocivo e inútil.”271

Ou seja, diante dos

dissabores encontrado no seu meio, da incultura, da falta de compreensão e de

compreensão equivocada pode ocorrer, fruto da descepção com a humanidade, largar

tudo, desistir de criar, pois os dissabores o levam a ver que não compensa.

Para vencer tudo isso Schopenhauer, segundo Nietzsche, passava por uma olhar

de si. “A nostalgia de uma natureza forte, de uma humanidade simples e são, era

nele uma nostalgia de si mesmo. E já que tinha vencido o tempo em si

próprio, lhe foi preciso também, com um olho admirado, perceber em si o

gênio. O Segredo do seu ser lhe foi daí por diante revelado, e frustrada a

intenção dessa madrasta época que lhe queria dissimular este gênio.” (III Co.

Int., 2004, p. 163)

270

III Co. Int., 2004, p. 159. 271

III Co. Int., 2004, p. 160.

144

A luta do gênio é a vitória contra as marcas do tempo em si. O próprio tempo,

que sempre está ligado a idéia do particular do passageiro, é combatida por Nietzsche

aqui acolá. “[...] explicar como podemos todos, através de Schopenhauer, nos educar

contra o nosso tempo, porque temos, graças a ele, a vantagem de conhecer

verdadeiramente este tempo.”272

O passageiro e, sobretudo, a cultura moderna, que é

criticada por Nietzsche ao longo de toda sua obra, é sempre um perigo a que deve ser

dado o devido trato. Ademais, sua reiterada crítica acerca da insuficiência cultural de

seu tempo. Carência que o mestre, dotado de cultura, supriria ao discípulo ou ao próprio

Nietzsche. Há aqui, também, a idéia de Nietzsche de que não é pela história que essa

insuficiência será resolvida. Aliás, sua observação acerca da história aqui é fulminante:

“Para toda filosofia que acredita que um acontecimento político possa dissipar-se, ou

ainda, resolver-se, o problema da existência é uma brincadeira de filosofia, uma

pseudofilosofia.”273

MELO SOBRINHO amplia ainda mais nosso olhar a esse respeito:

“Assim, o destino da humanidade não pode ser revelado pela história das civilizações,

tal como era apresentado pela doutrina hegeliana, hegemônica da época, mas este

destino a natureza só pode mostrar nos indivíduos superiores, em cujo pensamento ele

estava inscrito e manifesto.”274

Schopenhauer, portanto, era esse que tinha “a nostalgia

de uma natureza forte, de uma humanidade simples e sã.”

Nietzsche sai em defesa do papel do mestre e reprime a idéia de que é o Estado o

promotor da cultura, “[...] que o Estado é o fim supremo da humanidade e que não há

para o homem deveres mais levados do que servir o Estado; reconheço nisso, não uma

recaída no paganismo, mas na estupidez.”275

272

III Co. Int., 2004, p. 163. 273

III Co. Int., 2004, p. 165. 274

MELO SOBRINHO, 2004, p. 17. 275

III Co. Int., 2004, p. 165.

145

O confronto que Nietzsche faz é o do gênio, do mestre, de homens superiores

como promotores da cultura e o do Estado que se propõe a tal. Mas Nietzsche diz que

devem ser os homens de exceção, os gênios da cultura. Assim ele apresenta sua defesa

do mestre: “Esta é a razão por que eu me ocupo aqui com uma espécie de homens cuja

telologia vai um pouco além do bem do Estado, quer dizer os filósofos; e deles não me

ocupo também senão em consideração a um mundo que é ainda mais independente do

bem do Estado, o mundo da cultura.”276

Revela-se também aquele espírito que na

Alemanha se procurou desassociar a cultura dos Estados nacionais como também contra

a filosofia de Hegel que procurava expressar o Estado como estágio da cultura.

Em confronto com o mestre Nietzsche apresenta dois tipos de homens distintos

ao de Schopenhauer e que eram frutos de sua época. Temos, então, o homem de

Rousseau, outro de Goethe e, o que ele lhe é mais dileto, o de Schopenhauer. O homem

de Goethe não é violento, é contemplativo e restrito a uns poucos. Por outro lado, temos

o de Rousseau, que é mais ligado às massas, devoto da revolução violenta para restaurar

a natureza perdida. Como terceira opção temos o de Schopenhauer:

“O homem de Schopenhauer assume para si o sofrimento voluntário da

veracidade e este sofrimento lhe serve para mortificar sua vontade pessoal e

para preparar a subversão, a total transformação do seu ser, alvo que constitui

o objetivo e o sentido verdadeiro da vida”. (III Co. Int., 2004, p. 171)

Aqui o que mais se destaca é que o modelo Schopenhauer e como ele poderá se

tornar fomento para a educação. Esse homem deve, como nos diz MELO SOBRINHO,

nos auxiliar a transpor as dificuldades da solidão, das contradições da vida. Esse homem

“solitário e ao mesmo tempo o mais ativo, corajoso, intrépido, cujos sofrimentos

conscientemente assumidos o leva à subversão de tudo que nele próprio se encontra: ele

é a negação criadora, a afirmação da vida autêntica que é trágica.”277

276

III Co. Int., 165 277

Cf. MELO SOBRINHO.In: NIETZSCHE, 2004, p. 19.

146

E será, como endossa José Thomaz Brum,278

em Schopenhauer que Nietzsche

irá procurar o modelo do mestre que guia o discípulo. Dado o horror que pode ser

acossado o jovem diante da verdade, dado os percalços que a época põe para os gênios.

Como, então, fazer isso? “O mais difícil está por fazer: dizer como se extraí deste ideal

um novo ciclo de deveres e com se pode, com um propósito além do mais

transcendente, colocar-se em contato com uma atividade regular, em suma, mostrar que

este ideal educa”.279

Tomando como referência a apresentação de MELO SOBRINHO

podemos pensar que esse ideal deve cumprir aquela tese de que uma boa educação é

“realizar a natureza em si próprio, aproximando-se do homem superior através do

„amor‟ e afastando-se das leis e das instituições estranhas à cultura autêntica através da

„luta.”280

Temos já o mestre, Schopenhauer, e os propósitos que se pode extrair desse

modelo para uma educação. Mas aqui Nietzsche dá nome a quatro tipos de entrave que

podem atuar contra o mestre e contra os propósitos elevados de cultura. São os quatro

tipos de egoísmos que certamente enquadra o gênio, impede o jovem de se dedicar à

cultura. O primeiro é “o egoísmo dos negociantes que têm necessidade do auxílio da

cultura e, por gratidão, em troca, a auxiliam também, desejando, bem entendido,

prescrever-lhe, fazendo de si o objetivo e a medida”.281

Essa tendência, vai dizer

Nietzsche, em ultima instância vai fundir conhecimento com capital corrente. O valor

do conhecimento vai ser fundido com o de moeda corrente.

A segunda tendência é o “egoísmo do Estado que deseja também a extensão e

generalização maior da cultura e que tem nas mãos os instrumentos mais eficazes para

278

Cf. BRUM, J. T. Nietzsche e Schopenhauer da admiração à decepção. In: Charles Feitosa ...[et al.].

(Org.). Assim falou Nietzsche III : para uma filosofia do futuro. Rio de Janeiro: Editora Sete Letras, 2001,

p. 79-81. 279

III Co. Int., 2004, p. 175. 280

MELO SOBRINHO, 2004, p. 19. 281

III Co. Int., 2004, p. 185.

147

satisfazer os seus desejos”.282

E aqui o estado assume o papel de libertador cultural,

mas que, no olhar de Nietzsche, não passa de uma diminuição da cultura, alienação de

seu fim mais elevado. Esse egoísmo, também, representa a tese que Nietzsche refuta de

que é o Estado a própria cultura. Em terceiro temos o egoísmo dos decadentes e que se

encontra em total tédio diante da existência e “[...] querem mudá-lo por meio de ma

pertença „bela forma.”283

Certamente fruto da cultura moderna que é entediante, pois na

verdade sempre aliena os fins da cultura, donde pode-se supor o tédio. E por fim, “o

egoísmo da ciência e a essência particular dos seus servidores, os eruditos”. Que estão

mais preocupados com o conhecimento a todo custo, com sua especialidade e que

esquecem da humanidade. Classe, essa dos cientistas, professores universitários, que

não estão preocupados com filosofia, muito menos com a arte.

Em conclusão, dos quatro tipos de egoísmos, como nos adverte tanto MELO

SOBRINHO quanto DIAS284

, o que sobressai é a ação da cultura vigente contra um

projeto de cultura autêntico que tem como meta a própria formação humana. Nesses

egoísmos, tema que corrente nos trabalhos aqui em análise, Nietzsche dá nome a mais

uma nuance da sociedade de seu tempo, ao que impede o florescimento da cultura.

Basicamente, todos têm por finalidades outros propósitos e advogam que tais objetivos

são culturais. Confusão dirimida e denunciada por Nietzsche.

282

III Co. Int., 2004, p. 186. 283

III Co. Int., 2004, p. 187. 284

Cf. DIAS, 2003, p. 81.

148

CAPÍTULO III

A EDUCAÇÃO ESTÉTICA DE NIETZSCHE

3.1. A EDUCAÇÃO ARISTOCRÁTICA

O tema da educação em Nietzsche, que não é muito abordado pela crítica

nietzscheana brasileira, ao ser pesquisado desperta muitas temas pertinentes. Por um

lado suas proposta, de início, nos causa certo embaraço. Nos revolta. Nos irrita. E em

uma leitura rápida pode nos parecer apenas um excêntrico literato.

Mas é só a aparência. É claro que o autor não é um marxista. Isso não é mesmo.

Mas ele também não um burguês, um liberal. Ele também não é um

pensador conservador.

Observa-se, assim, o porque ele nos irrita? Pois estamos acostumados com essas

categorias na qual pomos todos os pensadores. E em matéria de educação, não é

diferente, nós logo procuramos enquadrar o pensamento desse ou daquele filósofo em

alguma categoria já conhecida. Aliás, a esse propósito, Olímpio Pimenta nos propõe

algo peculiar. Para ele “se, por um lado, pensar „o que diz‟ Nietzsche é um contra-senso,

pois não há nele doutrina ou convicções”, “pensar com ele”, por outra lado, é sempre

uma estratégia promissora.”285

No artigo de PIMENTA o seu propósito é analisar

implicações entre arte e conhecimento em Nietzsche abordando não apenas a fase dos

textos que aqui demarcamos. Porém, somos levados a também se mover na leitura dos

textos de Nietzsche utilizando dessa mesma proposta. Essa estratégia nos chama atenção

e parece também nos ser produtiva.

Pode-se pensar que em um trabalho dissertativo somos obrigados a compactuar

com tudo que o autor de nossa pesquisa escreve. O que não nos sentimos a vontade,

285

PIMENTA,O. Arte e conhecimento em Nietzsche. In: BARRENECHEA, M.A.; FEITOSA,C.;

PINHEIRO,P.. (Org.). Assim falou Nietzsche: memória, tragédia e cultura. Rio de Janeiro: Relume

Dumará, 2000, p. 77.

149

pois não concordamos com tudo o que Nietzsche pensa nos textos dele em que estamos

trabalhando. Mas logo, abalizado pela observação de PIMENTA, chegamos a um ponto

mais confortável, de que de fato não temos que concordar com todas as linhas. Revela-

nos, então, ser promissor pensar com Nietzsche. O pensar com ele nos permite fazer

uma operação peculiar. Das suas afirmações, daquilo que ele tinha como horizonte

crítico sobre educação em seu tempo, podemos extrair, sem ter que concordar na

inteireza de sua tese, reflexões inusitadas e atuais acerca das ideologias que rondam a

educação no seu tempo e no nosso. Fazendo uso de uma metáfora, podemos dizer que

do golpe de suas idéias saem faíscas, como se fossem algo secundário do seu objetivo

principal, mas são essas faíscas que nos soa inusitadas. E são essas faíscas que

justificam e incentivam o vigor de nosso trabalho.

Um exemplo desse jogo de faíscas é sua fixação com o “individuo” excepcional,

o homem de cultura, esse ser nobre, aristocrata. Defende, fica preocupado com a

ascensão do populacho, pois teme que isso irá por fim a cultura.286

Mas nesse mesmo

instante ele propõe algo novo. Por exemplo: é claro que nem todo mundo nasceu para

fazer letras, ser um grande escritor. A imbricação necessária imposta nos dias de hoje

em que se deve dominar as letras, através de cursos universitários, técnicos, para se ter

status de existente é uma prática que joga no ostracismo profissões como a de pedreiro,

doméstica, entre várias outras tarefas necessárias ao funcionamento da vida social, sem

necessariamente ter que ser um homem de letras. Logo, é fato que a idéia divulgada nas

escolas dos dias de hoje de que se deve estudar para ser alguém, aliando

necessariamente ter que passar por um estabelecimento educacional para, então, lograr

êxito existencial, é uma balela. Pensamento que certamente se desprende de um

Nietzsche defensor da aristocracia da cultura. De que se faz necessário à existência de

286

Cf. SAFRANSKI, R. Nietzsche, Biografia de uma Tragédia. Trad. Lya Lett Luft. São Paulo: Geração

Editorial, 2001. 363 p.

150

escravos, como na Grécia Clássica, para que as obras de artes possam emergir desse

subssolo trágico; enfim de que a cultura é trágica. Segundo SAFRANSKI , “Nietzsche

dirige o problema da ligação entre cultura e justiça social para sua tese de que

precisamos decidir, em relação à cultura, se o sentido da cultura é o bem-estar da

maioria ou a vida bem sucedida em casos isolados”. E em seu fechamento sobre o tema

SAFRANSKI diz que Nietzsche faz a opção pela estética, ou seja, não pelo bem-estar,

mas pelos casos isolados de sucesso.

Como podemos notar a opção de Nietzsche caminha para assumir a cultura para

poucos. E assim, como nos confirma SAFRANSKI, nas linhas seguintes da citação

acima, que existe essa contradição ou essa injustiça social como condição necessária

para que floresça uma grande cultura como a dos Gregos Clássicos.

Nietzsche não se encaixa nas categorias mais comuns em si tratando de teorias –

comunistas, liberais e conservador. Porém, suas idéias, olhadas rapidamente, poderiam

classificá-lo como um Romântico no que toca a educação. Mas como nos adverte DIAS,

“outro contra-senso é confundir o individualismo nietzschiano com o individualismo

Romântico”.287

Para ela se trata de outra coisa, pois Nietzsche não pensa em um

indivíduo ideal ao qual se deve procurar. Mas voltando a Nietzsche, então, ele procura

pensar uma educação capaz de formar um Goethe, um Schiller, um Wagner.

Imaginemos uma escola para forma “Guimarães Rosa”? Seria isso que ele pensa e isso

não é algo simples, massivo; ao contrário é penoso e para poucos; não dá para ter

métodos, fórmulas, pois a cada momento exigem-se condições únicas, pois depende de

cada aluno. Olhado dessa perspectiva, nós modernos que somos, ficamos um pouco

irritados, pois é tão corrente entre nós idéias que massificam os processos pedagógicos.

Chegamos até ficar sem referência quando se rompe com esse procedimento comum.

287

DIAS, 2003. p. 68.

151

Um outro aspecto da concepção aristocrática da educação em Nietzsche, e que

parece esclarecer de vez donde ele se pauta para pensar tais coisas são originárias da

idéia de metafísica da arte e gênio. Para Clademir Luiz Araldi:

“a questão da cultura em Nietzsche torna-se mais complexa devido à

vinculação coma metafísica da arte e com a concepção schopenhaueriana de

gênio. As tendências de restrição e de concentração da cultura, antes de

serem expressão da autonomia humana, seriam “leis necessárias” e

“eternamente iguais” da natureza, cujo fim último estaria no nascimento do

gênio.( ARALDI. 2008, p. 85.)

Podemos, então, considerar que Nietzsche se esquiva das várias classificações

por ter sua referência de educação e estética na natureza. Feita, vale dizer, as ressalvas

de DIAS de que ele não é um Romântico, poderemos notar que suas investidas se

justificam a partir do momento que sua referência é a Vontade. Vontade entendida como

aquilo que é o próprio cerne do real. Vontade que se manifesta enquanto metafísica na

arte. Suas opções em termos de cultura, portanto, estão de olho nessa natureza, que por

si não carrega a balança da justiça humana. Natureza que se faz de modo alheio às essas

condições humanas. Posto desse modo é que podemos então compreender que

Nietzsche não está a talhar um modelo social injusto, mas dentro de suas perspectivas

analíticas ele toma com referência a natureza.

Outra coisa é que ele quase não pensa na educação técnica.288

Em seus escritos

sua preocupação é a formação do homem de cultura, o técnico ele menciona de lado, diz

que ela é importante, pois, no seu tempo, era preciso formar a burocrácia do Estado,

mas não se dedica a falar dela. Então ele pensa a educação humanista? Mais uma vez

está aí sua originalidade, pois o que ele entende por homem de cultura é algo distinto do

humanismo que é uma invenção Liberal, e que se caracteriza, por exemplo, por uma

falsa valorização do trabalho e a crença no progresso das ciências como sinônimo de um

progresso da cultura humana.

288

Cf. FREZZATTI JR, W. A. Educação e cultura em Nietzsche: o duro caminho para "tornar-se o que

se é". In: AZEREDO, Vânia Dutra de. (Org.). Nietzsche: Filosofia e educação. Ijuí: Unijuí, 2008, p. 39-

66.

152

Com não se trata de uma educação humanista, ele advoga algo pautado, como já

aludimos, na natureza e toda a rigidez que emerge daí. Mas rígido para ele não é aquela

relação narcísea, de uns professores sádicos, próprios do animal de rebanho que faz uso

do outro em benefício próprio. Um exemplo de como não se deve ser essa relação de

mestre discípulo, é quando o professor, na composição de textos como atividade do

ginásio, acaba por ser estabelecer uma relação na qual os alunos na produção de seu

texto estão mais preocupados em agradar o mestre do que propriamente produzir

literatura. Como observamos no capítulo anterior de nossa dissertação. Ademais, como

Nietzsche critica essa produção em idade tenra, que acaba por desviar os verdadeiros

talentos. Prática condenada por Nietzsche, porque nesse exercício, com o jovem em

fase de formação, sem referência, o aluno acabava por agradar ao professor juiz. Então,

sua proposta de mestre discípulo é outra, é algo que poderíamos chamar de autêntica.

MELO SOBRINHO diz que Nietzsche concebia uma classe de mestres que se

educariam mutuamente, e eles viveriam longe da plebe, e desses seres raros é que os

discípulos sorviam o saber produzido por eles. “Quanto à formação dos mestres, uma

nova academia deveria ser criada, e exigiria a existência isolada de um grupo de homens

que viveriam comumente e se educariam uns aos outros, como no modelo platônico”.289

Então, ele pensa numa relação de mestre e discípulo quase como as escolas

gregas de filosofia. Depois de muito tempo, quando mestre, é que era possível ser livre.

Liberdade que é uma grande responsabilidade, pois cabe ao mestre e gênio a formação

do espírito alemão. Esse espírito não o que os nazistas pensaram. Pensem em uma

escola capaz de criar o jeito mineiro de ser? É a esse desafio que ele pensa para as

escolas de cultura em solo Alemão. Uma escola capaz de criar o espírito de um povo,

que é formado em geral ao longo do tempo, e fruto dos acontecimentos históricos, seria

289

MELO SOBRINHO, 2004, p. 35.

153

em seu modo de pensar, feito em uma escola. É a esse espírito que ele se refere, é a

identidade de um povo sendo talhada em escolas para tal.

Nessa escola estaria um mestre, um gênio a formar a juventude, mas apenas

aqueles propensos a serem gênios. No seu texto ele não pensa como selecionar esses

gênios, mas ele diz que são poucos. Aí também reside um grande problema, pois quem

seleciona o gênio? Certamente o regime nazista se autoproclamou o baluarte na escola

de que seria a raça ariana. Mas isso é outro assunto e não se aplica a Nietzsche. Como já

dissemos, ele tinha outros horizontes, o da natureza.

3.2. A EDUCAÇÃO ESTÉTICA DE NIETZSCHE

Nesse capítulo nos propomos dar atenção exatamente na articulação que possa

existir entre O nascimento da tragédia, as Conferências Sobre o Futuro de nossos

Estabelecimentos de Ensino e da III Consideração Intempestiva: Schopenhauer

Educador. Um primeiro indicativo dessa possibilidade é nos dado por MELO

SOBRINHO ao dizer que:

“O paradigma mais profundo que se oculta no fundo da abordagem

pedagógica de Nietzsche na época destas conferências é aquela que

estabelece a luta e o amálgama das forças dionisíacas e apolíneas nas

realizações humanas, paradigma já presente no Nascimento da Tragédia

publicado em 1872. Portanto, quando se trata de considerar a formação

intelectual dos indivíduos, se deve sempre levar em conta estes impulsos, um

que vem do abismo inexpugnável do inconsciente e do corpo e outro que

forma as imagens do mundo na consciência, pois eles são primordiais e

indestrutíveis”. (MELO SOBRINHO, 2004, p. 34)

Esse indicativo do leitor de Nietzsche nos abaliza, também, a denotar que há

outras implicações da obra O Nascimento da Tragédia e os escritos sobre educação do

filósofo. Por exemplo, quando Nietzsche se preocupa com o ensino da língua no

ginásio, totalmente mal tratado, podemos notar conexão direta com as considerações do

poeta lírico que Nietzsche descreve no início do nascimento da tragédia. Quando ele

pensa na primeira obra que entre Homero e Arquíloco há pontos comuns, pois

154

Arquíloco, como poeta subjetivo; lírico, também se iguala a Homero, escritor épico,

objetivo. E como se dá essa igualdade? Para Nietzsche o poeta subjetivo participa do

ser, através do êxtase dionisíaco, e quando fala, faz não a partir de sua subjetividade, de

sua individualidade, mas fala a partir do núcleo do real, fala a partir de Dionísio. Mas o

que desprende dessa reflexão e sua conexão com as observações do filósofo sobre

educação é que na produção da língua, no ensino da língua, no seu domínio, deve-se

estar atento que essa permita, quando ensinada de modo adequado, ao educando

participar do cerne da vida.

A constatação de Nietzsche no que toca ao ensino da língua materna nos

ginásios de seu tempo foi exatamente o contrário. E ele prescreve que para se ensinar de

fato a língua deve-se atentar para um rigoroso percurso. A língua deve dispertar no

educando sensações fisiológicas, dado a profundidade da língua segundo suas

concepções que certamente tem origem já em O Nascimento da Tragédia. 290

Uma outra referência da educação estética de Nietzsche certamente é Schiller

que tem, inclusive uma celebre obra dedicada ao tema: A Educação Estética do

Homem.291

Segundo MELO SOBRINHO:

“Ele começa, certamente inspirado por Schiller, advogando uma educação

estética, quer dizer, uma educação que manda cultivar a sensibilidade no

sentido da criação de uma humanidade superior, para além da sensibilidade

animal, uma educação que joga com a exemplaridade do educador e com a

disponibilidade do educando, uma educação enfim na qual os filósofos e os

artistas são os verdadeiros educadores.” (MELHO SOBRINHO, 2004, p. 37)

Esse desejo de ver o artista e o filósofo atuando na educação não se concretiza

na cena educacional de seu tempo. Ao contrário, como é explicito nas Conferências de

290

Rosa M. Dias nos fala de “aversão física” por certas palavras, o que nos parece ser algo de ordem

fisiológico. DIAS, R.M. Nietzsche, educador. Scipione: São Paulo.2003. p. 94; Porém, segunda a mesma

leitora de Nietzsche, em um outro trabalho – DIAS, R. M. . Nietzsche e a fisiologia da arte. In: Miguel

Angel de Barrenechea; Charles Feitosa; Paulo Pinheiro. (Org.). Nietzsche e os gregos: Memória, arte e

educação. Rio de Janeiro: DP&A, 2006, v. , p. 195-204 – , a idéia de uma teória sobre a fisiologia da arte

em Nietzsche teria início em outro momento de seus escritos. Precisamente no aforismo 368 de A gaia

ciência; e que no período em que estamos estudando prevalece em Nietzsche à idéia de metafísica da arte.

Usamos, portanto, a idéia de fisiologia por observar que o estado de ânimo que o filósofo deseja do

educando diante do mau uso da língua é tão radical que ele preconiza um incomôdo físico. 291

SHILLER, Friedrich. A educação estética do homem. São Paulo: Ed. Iluminuras. 1990

155

Sobre o Futuro de Nossos Estabelecimentos de Ensino, no diálogo do velho com os

jovens292

, o último lugar em que se aprende filosofia é nas universidades. Mas isso não

impede que Nietzsche esmoreça, sua aposta, é nessa via. Um exemplo disso é seu

envolvimento com o projeto de Wagner em torno de Bayreuth, demonstrando seu

engajamento no que toca a sua estética educacional, já que nos estabelecimentos de

ensino de então tal projeto não era viável; como ele constata nas Conferências. A IV

Intempestiva293

não é objeto de nosso trabalho, mas serve apenas para indicar, reforçar

traços de um Nietzsche inconformado com a educação na qual atuava como professor.

Nesse sentido podemos notar que Nietzsche não desiste de sua crítica iniciada nas

conferências de Sobre o Futuro de Nossos Estabelecimentos de Ensino e a IV

Consideração Intempestiva: Wagner em Bayreuth é prova disso.294

Um outro aspecto da educação estética de Nietsche é a valorização da música.

Quando ele fala dos heróis da cultura, tratado por nós no Capítulo I – tópico 1.7. – a sua

crítica a eles se dá por eles não terem usado a música a contento. A nobre empresa deles

talvez não tenha logrado êxito por não terem usado a música, no estilo da tragédia

musical. MACHADO295

nos fala de chave, os heróis não teriam usado a chave da

música para efetivar seu projeto de cultura.

Outras sutilezas permeiam o projeto estético de Nietzsche para a formação. “[...]

a educação está longe de ser totalmente instruir e informar, não é uma aprendizagem no

sentido tradicional do termo, mas é, sobretudo fazer despertar os sentidos para a

292

A passagem a que nos referimos é: “O velho se pôs a rir: „Como? Vocês temem que o filósofo os

impeça de filosofar? Eis que isto pode mesmo ocorrer, e vocês não o experimentaram ainda? Não tiveram

a experiência disso na sua Universidade? Não ouviram, enfim, aulas de filosofia?”. (EE, 2004, p. 57). 293

NIETZSCHE, F. Wagner em Bayreuth: quarta consideração extemporânea. Introdução, tradução e

notas Anna Hartmann Cavalcanti. Rio de Janeiro: Jorge Zahar E., 2009 (Estética) 294

No trabalho de Rosa M. Dias, Nietzsche e a Música, na parte II, ela nos auxilia na leitura da quarta

Consideração extemporânea: Richard Wagner em Bayreyth, dando relevo das implicações da música de

Wagner e de seu drama. Concepções que em muito denota o comprometimento de Nietzsche com a

formação cultural, através da tragédia, do povo alemão. Cf. DIAS, R.M. Nietzsche e a música. São

Paulo: Discurso Editorial; Ijuí, RS: Editora UNIJUÍ, 2005. (Sendas e Veredas / coordenadora Scarlett

Marton) 295

MACHADO, 200, p. 11.

156

elevação da cultura, quer dizer, afirmar a vida e o mundo na sua tragicidade.”296

Essa

perspectiva da educação estética em Nietzsche nos chama a atenção para mais um

conceito importante que é o da transformação e não o da formação. Se acompanharmos

a idéia de Vontade, com sendo o fulcro do real, e como a única existente de fato, não

podemos conceber a idéia de formação, pois teríamos que conceber princípios; uma

forma que se atualizaria como princípio no processo educativo e isso não se aplica ao

puro devir, que é a concepção de Nietzsche. Acerca desse conceito Silvia Pimenta

Velloso Rocha nos auxiliar sorver mais essa nuance da educação estética de Nietzsche:

Para ela “Sem dúvida, a idéia de formação contém em si mesma um certo aspecto de

transformação, uma vez que se trata de permitir a realização de certas capacidades. Mas

isso só é possível porque há algo que não se transforma – o sujeito – que é posto a priori

como idêntico e que funciona como o substrato imutável desse percurso”.297

Reafirmando a recusa do filósofo daquela idéia socrática da verdade com algo dado.

Essa postura, para ROCHA, se dá pelo fato de que:

“Nietzsche recusa a noção de um Ser subjacente ao devir. Nesse caso, a

noção de transformação ou devir não designa o movimento de um estado de

coisas já constituído nem as mudanças que afetam uma substância em si

mesma imutável, mas um puro devir, ao qual não se pode atribuir qualquer

substrato.” (ROCHA, 2006, p. 269)

Seguindo os argumentos de ROCHA podemos retomar aquela idéia de Nietzsche

que preconiza que a existência só vale enquanto criação estética, que a vida apolínea só

se justifica como criação estética. É dessa mesma lavra que o filósofo afirma que os

gregos eram “superficiais”, ou seja, que aquela cultura encarava essa tarefa da criação

artística a sério, como sendo isso a atividade mais nobre do humano e que a criação

estética não pretendia ser uma investigação dos confins do Ser, mas apenas e tão

somente uma criação, uma invenção. É a essa radical idéia de realidade como criação,

296

MELO SOBRINHO. 2004, p. 37 297

ROCHA, Silvia P. V. Tornar-se quem se é: educação como formação, educação como transformação.

In: BARRENECHEA, M.; PINHEIRO, P.; FEITOSA, C.. (Org.). Nietzsche e os gregos: arte, memória e

educação. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.

157

fruto do deus Apolo, que podemos agora entender como ela se reverbera na concepção

de educação em Nietzsche, ou seja, a idéia de que há princípios, a serem atingidos,

atualizados, revela aquele esquema socrático de que há verdades as quais o “homem

teórico” está à procura, o que, nesse momento do pensamento de Nietzsche, isso não

coaduna com sua crítica feroz ao socratismo. Mas o que expressa melhor o pensamento

de Nietzsche nesse caso é a idéia do movimento, do devir, que é a característica da

Vontade, a qual o homem não consegue perscrutar, dominar. Por isso, acerca dessa

Vontade, o melhor é sempre estar disposto a “jogar”, a criar. Esse mesmo argumento

ganha mais força e tonicidade, coadunando forças, nas observações de MELO

SOBRINHO:

“A nova educação defendida por ele exige, do ponto de vista do processo

didático-pedagógico, valorizar as aparências nas suas diferentes intensidades

e perspectivas, ou seja, ela exige antes de mais nada „ser fiel à terra‟, como

única via de superação dos niilismo e de atingimento da grandeza; esta nova

educação pressupõe que a vida somente está justificada como fenômeno

estético, como formação de si, como cultura, como uma empreitada de

destruição/criação que indica novos modos de pensar inusitados até então.”

(MELO SOBRINHO, 2004. p. 37)

Perspectiva que se casa muito bem com a idéia de tragédia apresentada na obra

O Nascimento da Tragédia. Todas as condições estéticas geradas aí permitem

exatamente prosperar a idéia de transformação, a cada participação do indivíduo ao

cerne da vida ele consegue aquele processo de educar a si.

Nietzsche pensa o educando com o ser ativo e não passivo. Pronto para receber

um conteúdo histórico, no sentido de uma peça de antiquário. Como observamos no

Capítulo II, ele pensa que o educando deva ser ativo diante dos processos e não mero

objeto. Sua luta contra os modelos estabelecidos, humanistas e realistas,298

tem uma

298

Sílvio Gallo faz a oposição humanismo realismo quando analisa a crítica de Stiner, outro pensador

alemão, aos dois modelos de sociedade vigentes na cena “oitocentista” da Alemanha. Para GALLO esse

também é o contexto da crítica de Nietzsche no tocante a educação, ou seja, Nietzsche está procurando se

livrar desses dois modelos de sociedade que contigenciam o indivíduo e o subordina a fins outros que não

ele mesmo. Cf. GALLO, S . Crítica da cultura, educação e superação de si: entre Nietzsche e Stirner. In:

Charles Feitosa; Miguel Angel de Barrenechea; Paulo Pinheiro. (Org.). Nietzsche e os Gregos - arte,

memória e educação. 1 ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006, p. 329-344.

158

visada: formar alguém que seja „sujeito‟ de si e não mero objeto de manobra. Animal de

rebanho. Caberia bem ao filósofo a idéia de que é mais proveitoso, criativo, ensinar a

filosofar e não filosofia, como algo acabado, estanque. Não que o filósofo seja contra a

história, sua questão é contra a idéia que omite do educando o acesso aos processos de

criação e lhe empurre as idéias sem lhe permitir compreender a cena, o jogo, de criação

das mesmas. Nessa fase do pensamento de Nietzsche nos parece muito pertinente essa

perspectiva, pois ela procura propiciar ao educando condições estéticas na qual ele

possa reviver os processos de criação dos achados históricos.

Ser professor nessa atmosfera é ser como um artesão que produz com as mãos a

própria existência. Porém, como a figura do artesão e substituída pela fábrica em série

na industrialização da sociedade moderna, Nietzsche observa que existem obstáculos

nesse estilo de educar e prevaleceu o „jornalismo‟, estilo literário que parece ser o

representante mais fiel do conhecimento da época industrial e moderna no seu entender.

Nesse processo de educação artesanal emerge um indivíduo que não se sujeita,

mas é livre. Nietzsche ainda não fala de “espírito livre”, tema do seu livro Humano,

demasiado humano299

,mas do gênio e mestre que precisa ser liberto, não alienado. Não

é possível ser mestre e ao mesmo tempo subserviente aos egoísmos reinantes. Nessa

rota, segundo Sílvio Gallo: “Nietzsche propõe um trabalho de si sobre si mesmo. Contra

uma educação para formar o cidadão, o profissional, o funcionário do Estado, ou seja, lá

o que for, Nietzsche propõe um processo educativo que possibilite que alguém “torne-

se o que se é” um educar-se contra seu tempo, contra uma cultura instituída. Uma

educação da singularidade”.300

As idéias de Nietzsche, portanto, não consistem em algo exótico. Em O

Nascimento da Tragédia notamos aí que o renascimento do espírito trágico era um

299

NIETZSCHE, F. Humano, demasiado humano. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. das

Letras, 2000, 349 p. 300

GALLO. In: FEITOSA, 2006, p .330.

159

modelo de educação que envolveria todo o povo. O povo seria convidado ao labor mais

nobre: a existência. Não seria enredado na teia de promessas do iluminismo liberal. E

para salientar a importância do existir ele faz suas duras críticas às ideologias vigentes.

3.3. A EDUCAÇÃO DA VONTADE

Pensar com Nietzsche, como nos sinaliza PIMENTA, sempre é promissor. No

nosso caso, que procuramos implicações entre estética e educação em três obras do

autor, isso nos leva a olhares singulares sobre processos na educação. Como pudemos

acompanhar no nosso primeiro Capítulo, há aí uma valorização pela intuição, pelo

êxtase dionisíaco. Sem aqui adentrarmos sobre o intuitivismo em Nietzsche, é seguro

dizermos que na concepção de tragédia preconizado nessa obra do filósofo a música é

promotora do êxtase, daquela participação não racional do rio “caudaloso do ser”,

sinalizando para o papel das condições estética na produção do saber. Em termos de

educação nos perguntamos, como traduzir essa percepção de Nietzsche de que a música

é essencial para a tragédia em termos pedagógicos?

Esse movimento que vamos fazer, de atualização de uma idéia do autor e como

ela poderia ser implementado na cena educacional de nossos dias, tem como referência

uma observação de MARTON. Segundo a leitora de Nietzsche: “Ao percorrer o texto

das Conferências Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino [...] um leitor

desatento poderia supor ter diante dos olhos um livro que acaba de ser escrito. E o

mesmo poderia pensar um leitor atento – com mais razão”.301

Mas esse salto de procurar tomar um conceito da obra de Nietzsche e fazer uma

digressão de análise de nossa cena educacional não é simples e precisamos, antes de

301

MATON. In: DIAS, R. M. Nietzsche educador. 3ª. ed. São Paulo: Scipione, 2003, p. 7.

160

continuar, no deter nele um pouco mais. Como nos adverte José Fernandes Weber, na

sua leitura das Conferências, as observações de Nietzsche se destacam:

“[..] mais pelos males que identifica do que pelos remédios que propõe. Além

disso, possui forte valor relacional, quer dizer, para ser compreendida

adequadamente, deve ser levada em conta aquilo contra o que ele escreve

[...]. Assim, não nos serve como exemplo a ser imitado, pois nossa

destinação, nossa realidade cultural e social é outra. Apesar disso, muitos dos

males que identifica são os nossos”. (WEBER, 2008, p. 529)

Nas observações de WEBER o que nos chama a atenção para uma aplicação do

pensamento de Nietzsche a uma realidade educacional dos dias de hoje é a de que há o

limite de época, mas que isso não impede a extração de críticas pertinentes a nós.

Nietzsche tem à sua frente um contexto educacional dos finais do século XIX. Não

podemos desconsiderar esse fato que lhe põe questões específicas, mas, segundo

WEBER, Nietzsche tem uma dada crítica que transcende seu tempo. “E descartar a

crítica, simplesmente pela diferença de espaço e tempo, é uma evasiva inaceitável”.302

É

nesse contexto de observar o que se inscreve nos limites do autor e o que extrapola que

nos situamos nesse investida.

Retomando nosso itinerário, já aludimos a essa questão, de modo mais breve, no

primeiro Capítulo I, isto é, falamos da musicalização como um conceito que sem dúvida

encontra larga guarida na idéia de música em Nietzsche. Seria afirmar que uma boa

escola, um bom processo de educação, é aquele que se efetiva quando lança mãos de

teorias e práticas educacionais que levam em conta o corpo, a música. O que colaca os

conceitos tratados em O Nascimento da Tragédia em profícua discussão com a

educação.

Certamente o conceito de música que Nietzsche tem aí é passível de discussão e

o próprio autor fez esse movimento. Mas podemos, então, pegar esses conceitos como

iniciados, sem a pretensão de entendê-los como acabados, e um deles é o de música

302

WEBER, José Fernandes. Autoridade, singularidade e criação: sobre o problema da formação

(Bildung) em Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino, de Nietzsche. Educação e Sociedade,

v. 29, p. 529, 2008.

161

enquanto representante da Vontade. Música que se liga ao conceito de drama, pois é na

tragédia musical que Nietzsche entrelaça e exalta a grandeza desse feito da invenção

humana. Ora, em uma concepção de que o trânsito entre a Vontade e aparência seja

efetivada através da tragédia, por que ela traduzir algo não conceitual em algo formal,

conceitual, podemos ousar pensar que isso pode ter implicações com o conhecimento.

Seria, então, mister dizer que se aprende cantando? Talvez não, pois o conceito de

musicalização é mais abrangente. Ele não se refere apenas à música enquanto uma dada

melodia, mas abrange sons que necessariamente não são considerados músicas. Engloba

também a relação do corpo com a música, a dança e, sobretudo, o teatro. Expressões

que muito bem casam com a idéia de tragédia preconizada por Nietzsche. Ou seja,

quando uma criança é estimulada a expressar-se através do teatro ela é convidada a

conhecer o seu próprio corpo e a relação íntima desse com a línguagem. Todo um

conjunto de afetividades, como segurança de si, conhecimento corpóreo de si, serão

bem elaborados pelo educando o que reverbera em real qualidade de apreensão dos

conteúdos ensinados na escola.

As questões relacionadas a possíveis implicações das concepções estéticas de O

Nascimento da Tragédia com os processos cognitivos são longas e demandariam um

trabalho específico. O que em parte não é nosso objetivo, pois nos propomos em

concentrar em determinadas obras do autor e compreender nelas determinado tema.

Mas, a título de sinalização, temos a questão: Se no Jovem Nietzsche há apenas o jogo

da Vontade, não poderíamos fazer uma aproximação de música e conhecimento escolar

sob a ótica do autor. Afinal, ele não pensa em idéias a serem apreendidas. O que seriam

as matemáticas, a história, a geografia? Idéias no velho modelo platônico. Mas há um

indicativo interessante nos “Escritos sobre Educação”, que tratamos no Capítulo II,

162

quando ele preconiza como intinerário de formação do joven educando do Ginásio uma

dura disciplina dos hábitos. Ou seja, ele não concebe uma educação sem hábito.

Esse hábito, que deveria ir contra a prática de seu tempo em dar uma falsa

liberdade para o educando, educaria a Vontade, o querer do educando. Dessa idéia

poderíamso então pensar que a música na edudação estética serviria não para permitir

ao aluno um acesso facilitado ao mundo conceitual. Um truque que muitas escolas

privadas gostariam de encontrar, pois em um passe de mágica, aqueles enfadonhos

conceitos seriam absorvidos pelos adolescentes de maneira cômoda. Mas aqui a música

educaria a Vontade do educando. Estabeleceria um ritmo, sincronizaria o pensar do

educando com aquilo que o motor do pensar: o querer.

Pensamos que essa é uma contribuição da estética de Nietzsche para a educação.

Considerar a música como uma educadora do querer do educando. O que se traduziria

em mais concentração. Problema, a falta de concentração, que aflige certamente

educandos de todos os segmentos sócio-econômicos de nossos dias. A robustez do

querer do educando, como ele acomoda no seu ser a vontade-querer; como ele

administra esse querer, é que será o fator determinante de sua carreira. E aí,

independente de Nietzsche ter pensado uma relação entre conhecimento trágico e os

demais saberes das ciências, teremos um ganho considerado no desempenho do

educando.

A administração da Vontade na formação do educando consiste em algo sutil,

mas de extrema relevância e que é negligenciado com muita frequência. O conceito de

Vontade em Nietzsche de que tanto falamos em nosso texto, consiste, basicamente, em

um impulso da natureza que faz com todo o real seja. Em termos cósmicos poderíamos

dizer que é toda a energia que faz com que a matéria se condense e assim permaneça.

Essa energia não é algo estável e que se encontra em repouso, tem a característica de

163

está sempre se atualizando. Revelando seu caráter de um constante movimento de

tensão, concentração. Desse conceito cósmico passemos a Vontade enquanto uma

manifestação no humano, que também é parte da natureza. A Vontade que se manifesta

no indivíduo é um reflexo da Vontade universal e cósmica. E no contexto das obras que

demarcamos para fazer nosso trabalho essa Vontade pode ser tomada como propósito,

isto é, a Vontade se revela no educando através de sua capacidade em conhecer a si. Se

empenhar no duro percurso de formação de si. A falta de propósito seria o oposto dessa

manifestação da Vontade. Seria um deixar-se ao léu, sem querer. Certamente esse

conceito da Vontade será a Vontade de Potência, um dos conceitos mais relevantes do

pensamento de Nietzsche. Contudo, nesse momento, vamos nos concentrar apenas na

idéia da Vontade como propósito.

Feito a opção, então, de analisar a Vontade sob a ótica de propósito notamos,

enquanto professor de Escola Pública, que o problema de aprendizado do educando se

concentra exatamente aí. Certamente o que provoca esses problemas será conhecido

pelos especialistas da educação com outros nomes ou em outros aspectos. Dito de outro

modo, para nosso olhar de professor de filosofia a questão se encontra “na má vontade”

do aluno. Registramos seus problemas de cognição exatamente aí. Ele, o educando, não

se concentra, não estuda, não vê motivação, não tem o hábito mental de concentrar-se

em um dado objeto e manter-se nele por tempo suficiente para entendê-lo. Essas

mesmas dimensões podem ser provocadas por vários fatores sociais e são esses os

objetos de atenção dos especialistas em educação. Certamente se descrevermos a família

de um aluno com os quais trabalhamos iremos perceber elementos sociais que afetam o

desempenho do educando. Seus pais, que passam o dia todo fora no trabalho, acabam

por não conviver e educar seus filhos naquilo que compete exclusivamente à família.

Por conseqüência essa criança desde cedo já fica em uma Creche e será criado

164

praticamente por um estabelecimento de educação. Fatores econômicos também são as

causas do não sucesso cognitivo do aluno.

Enfim, todos esses elementos que os especialistas dizem são pertinentes e todos

irão atuar exatamente nesse núcleo fundamental da constituição psicopedagógica do

educando: a sua Vontade. Soma-se ao descambo da Vontade, socialmente expresso nos

problemas da família e outros de ordem social, o advento das tecnologias de

processamento de informação, precisamente, o computador e celulares. Outros vilões

que atuam sem peia na consolidação do não-hábito do educando. As miríades de

possibilidades que uma internet oferece, consolida exatamente a falta de propósito no

espírito do educando. Não se trata de por a culpa no instrumento, a questão é de ordem

humana e precisa ser pensada e resolvida nesse plano.

Pensando com Nietzsche podemos notar que o fenômeno internet, juntamente

com o modelo de cultura em que vivemos, eminentemente fundada no excesso de

imagens, todas rápidas, pois é preciso passar para a próxima; é aquele que não incentiva

o hábito de educar-se. O duro caminho de cultivar a vontade, dar força para ela, se perde

com as miríades de possibilidades. Se bem compreendemos Nietzsche, essa questão das

miríades de possibilidades seria resolvida, também, no âmbito da tragédia. Lá o

expectador das tragédias conseguia entender que o mais importante era o fundo

misterioso da vida. O abismo do não-conceitual, que ele contemplava através do êxtase,

que poderia matar, dissolver, mas que em forma de arte na tragédia isso se resolvia: não

que a tensão desaparecesse, mas a tensão era suportada através da arte trágica. Para esse

espectador trágico o que importava, portanto, era esse fundo e não propriamente a cena

que acontecia à sua frente. Aliás, segundo Nietzsche, a prova desse fato era que os

atores se vestiam apenas com mascaras, meio desajeitadas. Ou seja, eles não estavam

preocupados com a aparência, pois sabiam de sua ocorrência cênica, mas com o cerne

165

da vida, com a Vontade. Nessa perspectiva, então, podemos dizer que é uma boa

repercussão do pensamento de Nietzsche contido em O Nascimento da Tragédia em

questões de educação é essa proposta de vencer a sedução do aparente e concentrar-se

no que seria o essencial para uma boa educação: a vontade e o querer do educando.

Palavras sutis, mas que notamos serem fundamentais na vida de estudos do educando.

Certamente para implementar uma educação que fortifique a vontade do

educando não careceríamos apenas de música e musicalização dos processos

educacionais. A questão também reflete uma plêiade de elementos sociais que devem

ser aí modificadas. Mas considerando as possibilidades formativas da tragédia como

Nietzsche a pensa em sua obra, certamente passaríamos por essa concepção na

educação. Essa nossa consideração, de que há um proveitoso laço de música e educação

da vontade, certamente vai ressoar nas observações do autor no que toca a educação, ao

rígido caminho de adestramento da vontade apresentado nas conferências Sobre o

Futuro de Nossos Estabelecimentos de Ensino e na III Consideração Intempestiva:

Schopenhauer Educador.

3.4. O EGOÍSMO DA UTILIDADE

Nietzsche emprega na III Consideração Intempestiva: Schopenhauer Educador

a palavra egoísmo para tratar de certos aspectos da sociedade de seu tempo que

atrapalhava a formação do gênio e das instituições de ensino capaz de formá-lo. A

expressão egoísmo nos parece muito peculiar, com uma capacidade de expressar um

dado traço da sociedade de seu tempo singular. Essa palavra é uma daquelas que entre

várias outras possíveis é ela que revela a totalidade de algo. Os tipos de egoísmo são: O

egoísmo do Estado, do comerciante, dos entediados e fúteis e, por fim, dos cientistas. A

166

marca de todos: interpor propósitos outros que não os culturais no caminho da formação

da autêntica cultura.

Em uma atualização do discurso de Nietzsche sobre essa questão veremos que

pouco mudou. Aliás, MARTON nos diz que a atualidade de Nietzsche nos assusta. A

batalha de Nietzsche nas conferências Sobre o Futuro de Nossos Estabelecimentos de

Ensino como na III Consideração Intempestiva: Schopenhauer Educador é para

denunciar que a formação propriamente humana era sempre contingenciada. Podemos

notar é claro o que é fruto da mentalidade de seu tempo303

, mas excetuando isso,

teremos ainda um saldo relevante na análise de Nietzsche. Sua querela era chamar a

atenção para o que em seu tempo já se assinalava: a redução do horizonte humano ao do

mercado, ao da técnica. Como já assinalamos no capítulo segundo, a Alemanha de

Nietzsche tinha uma realidade educacional de universalização da formação da

juventude. Realidade que nos parece desejável nos dias de hoje no Brasil, porém,

quando olhada de perto vamos ver que por detrás dessa universalização não se promove

a pessoa humana. Há é uma falsa cultura, a idéia de escola para todos tem na sua porta a

placa: aqui se vive com mais amor, com mais humanidade, aqui se é mais ser humano.

Contudo, tais dizeres só ficam na porta de entrada, pois lá dentro o que impera são

aqueles egoísmos.

E essa é a operação que precisamos fazer para melhor compreender a crítica de

Nietzsche. No fundo a briga do autor não é contra o bem estar das pessoas. Sua querela

é em denunciar que é falsa a relação que se vende de educação e bem estar social. Quem

promete tudo isso é um mentiroso, pois no ambiente escolar o que se vê é uma falsa

promessa de felicidade que na prática não é possível ser feliz como prometido. A

303

A esse propósito a leitura do artigo de Gallo nos esclareceu. O autor demonstra que entre o

pensamento de Nietzsche e Stiner, seu contemporâneo, se vê que as teses de Nietzsche sobre educação era

também presentes em Stiner. Revelando que o discurso de Nietzsche tinha um lastro intelectual em seu

tempo. Cf. GALLO. In: FEITOSA, 2006, p. 329- 344.

167

cultura jornalística que impera no jeito de escrever, por exemplo, é uma saída cômoda

para o duro caminho a que deveria passar o educando no aprendizado da língua.

Essa é uma vertente que as denúncias de Nietzsche nos alertam. Não se trata de

ser contrário ao bem estar das pessoas, mas de denunciar que as promessas dos

egoísmos são falsas; são na verdade egoísmos, interesses outros e não a própria

formação da juventude.

Nos dias hoje vemos o egoísmo do mercado de trabalho ditando o que a

juventude tem que estudar. A escola fundamental é toda ela voltada para outros fins que

não a própria juventude. Essa fase da formação não procura desenvolver a autêntica

cultura, mas está toda ela voltada para passar no vestibular, no caso das classes mais

ricas, e ingressar no mercado de trabalho, no caso da grande maioria da juventude pobre

e estudante de escola pública. Observamos, então, prevalecer o egoísmo do mercado de

trabalho nos processos educacionais da escola. Os discursos que essas instituições

propagam em seus projetos pedagógicos no fundo sempre escondem essa verdade que é

a sua determinação segundo o mercado.

Pensando um Nietzsche de O Nascimento da Tragédia podemos dar um passo

seguinte. Para uma escola que se vê em vistas do mercado de trabalho devemos pensar

em uma escola que não seja submissa a essa relação. Certamente parece algo absurdo, já

que a força da moda acaba por condicionar o horizonte de nosso olhar. Mas tomemos a

idéia de Nietzsche de que a vida é uma “criação estética” de que a vida só vale a pena

ser vivida enquanto criação estética. De que os gregos tinham exatamente nesse jogada,

a da criação artística, o seu grande legado para a humanidade. Podemos, então, pensar

uma educação fundamental que se felicitaria em propiciar ao jovem educando essa seara

da criação. A formação básica seria vista como o momento mais privilegiado desse

jogo criativo. Não mais imperaria o decorar fórmulas para passar no vestibular, ou

168

ainda, aprender logo uma coisa útil para o mercado. Mas o jovem seria tragado pela

atividade de criação em toda a parte, mesmo que prevalecesse às matérias conceituais,

afinal Apolo não pode ser banido, ele aí exercitaria a criação, descompromissada, como

naquela associação de literatura que Nietzsche fundou ainda no “ginásio”,304

na qual

Nietzsche descreve no início de suas Conferências e exalta a falta de um propósito

mercadológico e a pura entrega ao ato de criação literária.

Claro que para propor uma educação baseada na criação temos ainda que vencer

os egoísmos reinantes. É preciso nomeá-los, delimitá-los, enfim dizer que eles existem,

falar sobre eles. Fazer com todos se dêem conta de que há uma fissura no horizonte, e

que há mais horizontes além do que comumente vemos como sendo uma única

superfície. É preciso, por exemplo, quebrar o olhar de utilidade que se lança na direção

do fazer da educação. Esse olhar condiciona todo o processo educacional, ou seja, o

desejo do pai, do educador moderno é que o educando chegue logo ao momento de

produzir coisas úteis. Assim, toda a educação não é útil, mas é em vistas do mercado de

trabalho, momento desejado, almejado que ela é condicionada. Um desenho infantil é

sempre visto nesse jogo em vistas de uma impressão mecânica, o ápice da técnica.

Como podemos notar é preciso romper com essa relação, com esse egoísmo, pois ele

sempre condiciona o fazer criativo e despretensioso da educação.

Na escola pública em que atuamos como professor esses condicionantes,

egoísmos, contribuem para esvaziar toda a educação. Notamos, em um primeiro

movimento, a dileção por matérias ditas úteis, como matemática e língua portuguesa.

Mas no final das contas é a própria escola que não tem mais sentido, utilidade.

O processo de esvaziamento de sentido operado na escola pode ser também

compreendido em relação ao que Nietzsche denúncia no espírito do homem teórico,

304

O que seria o oitavo e nono ano do Ensino Fundamental II e o Ensino Médio nos nossos dias.

169

conceito de O Nascimento da Tragédia. Segundo essa asserção nietzscheana o espírito

socrático-teórico procura argüir o Ser a partir do logos. Essa postura gera um otimismo,

um conjunto de certezas que Nietzsche chama de serenojovialidade Alexandrina, para

contrapor a uma outra serenojovialiade que é a trágica, construída sob o alicerce do

conhecimento trágico. No caso da escola a idéia do mercado de trabalho ou os egoísmos

a que Nietzsche alude na III Consideração Intempestiva: Schopenhauer Educador é que

se torna juiz dos processos aí desenvolvidos, fazendo o mesmo que o homem teórico fez

lá na decadência da Tragédia Grega. Entre nós temos o espírito de mercado, esse novo

Sócrates, que é o avaliador; no caso da escola pública ele é implacável.Não permite ao

jovem filho da classe operária ver outro horizonte se não o da utilidade. Mas quem se

deixa guiar por esse juiz, pelo espírito teórico; pelo espírito de mercado, paga o preço

que se pagou na Grécia Clássica quando a tragédia, no olhar de Nietzsche, sucumbiu.

Em O Nascimento da Tragédia observamos o fim da tragédia exatamente quando

Eurípides introduz a racionalidade socrática no seio dessa manifestação cultural. Esse

novo olhar euripidiano negava à tragédia sua música dionisíaca. Mas era exatamente

esse êxtase provocado pela música dionisíaca, esse se relacionar com o não-conceitual,

que a tornava proveitosa, espaço de criação estética. Na escola quando se nega seu seio

materno da criação, quando se alija dela o ato de criar em nome de uma racionalidade

produtiva, está se fazendo o mesmo que aconteceu com a tragédia.

Se olharmos a escola pública nos dias de hoje iremos ver que existe um

pensamento oficial semelhante ao otimismo socrático e que, também, é a fonte do

esvaziamento de sentido da escola. Os mandatários públicos entram em estado de êxtase

quando vão a público falar que a salvação da educação é a educação para o mercado.

Nas escolas privadas, também, vamos ver semelhante discurso. Nesse casso é o

vestibular para poder entrar nas melhores universidades que, por sua vez, irá garantir o

170

melhor emprego, o ganhar mais. O que difere as aspirações do educando nos dois

sistemas educacional é apenas na hierarquia do mercado de trabalho. O da escola

pública os cargos que pagam menos; os da privada a elite do funcionalismo das

empresas ou do próprio Estado. Mas o fato de que o jogo criativo é substituído se dá nos

dois sistemas educacionais.

No seio do otimismo socrático uma boa educação é aquela que acossa por

completo o ato de criar. O criar é visto como improdutivo, ineficiente. Por outro lado a

educação socrática propõe a adestração, é preciso que o jovem seja adestrado, seja dócil,

pronto para ser consumido no mercado de trabalho. Criar aqui na verdade só é aceito

quando for reprodução e não criação. Reproduzir é uma espécie de criar o já criado,

coisa que em termos lógicos não é possível. Mas a idéia de reproduzir é mais

confortável para o espírito socrático porque ela vai se apegar ao que já é sucesso. Ou

outro modelo é um jogo arriscado, pois a criação radical não tem compromisso com a

produção, é um criar que pode não gerar nenhum produto e isso é completamente

banido pelo espírito socrático, pois ele quer a certeza; a escola de hoje não pode e não

quer arriscar, criar é então visto como desperdício de tempo e de dinheiro. Então fazem

de conta que estão criando, mas na verdade estão é reproduzindo, decorando.

Esse mesmo expediente da escola que adestra era familiar a Nietzsche. Ele

observou que esse adestramento criava um tipo de literato: o jornalista. E o que isso

quer dizer? O fato do educando ser forçado a adequar-se a outros interesses e não aos

mais altos píncaros da cultura, gerava um profissional superficial, um letrado, mas sem

“alma”. Suas observações a esse respeito, como tratados nas conferências Sobre o

Futuro de Nossos Estabelecimentos de Ensino, referem-se à produção de textos

literários ainda em idade tenra. Esse exercício do modo que era conduzido não permitia

uma real experiência estética de criação; a condução desse trabalho era permeada pelos

171

interesses do professor, o que acarretava em uma prática improdutiva. O aluno acaba

por aprender a agradar o seu professor.

Uma verdadeira educação certamente precisa retomar o criar como processo que

não pode ser subordinado. O criar deve constituir a peça fundamental da educação. Na

escola pública ou privada o educando não pode ser tolhido desse direito; a necessidade

de “arrumar emprego” ou “passar no vestibular”, como fiéis representantes do espírito

socrático, deve ser combatido e expulso do ambiente escolar. Aliás, o senso de utilidade

deve ser combatido nas mentes mesmo, pois certamente esse é seu reduto e constitui a

esfera da cultura enquanto expressão, substrato de um povo.

Qual o caminho a ser tomado? Certamente ele é longo e cabe ao nosso trabalho

apenas esboçar uma pequena contribuição. Dizer que ele existe, que é possível pensar

um princípio para a educação que não seja estribado na criação; que essa dimensão é

fundamental no processo cognoscitivo do educando.

Nossas estratégias certamente acompanham as de Nietzsche quando preconizou

o renascimento do pensamento trágico e da tragédia musical de Wagner. Nesse

movimento, vale lembrar, Nietzsche critica em O Nascimento da Tragédia a ópera.

Destaca seu caráter de entretenimento e seu sentido não trágico, mas socrático. Seu

registro de renascimento do espírito trágico se dá exatamente na demonstração dos

“pontos fracos” dessa manifestação cultural. Nessa crítica ele constrói uma ponte para a

sua esperança de renascimento do trágico.

Acompanhando esse movimento, pensamos que para vencer o espírito socrático

presente no seio da escola precisamos falar da Indústria do Entretenimento ou, nos

termos de Nietzsche, do jeito jornalístico de lidar com o conhecimento. Mas por que

falar do entretenimento e do jeito jornalístico? Ora o valor que tais produtos gozam

entre alunos, professores e familiares é de uma profundidade que irrita qualquer um

172

preocupado com a autêntica cultura. O interessante a notar é que tais fazeres, como o

jogo de futebol, é algo inútil. A notícia do jornal, também, tende, como crítica Nietzsche

nas Conferências, a simplificar e ser, desse modo, superficial e, também, inútil. Mas

por que tais fazeres gozam de posição privilegiadas entre alunos, professores e

familiares? Um espectador quando procura um jogo de futebol no estádio ele sabe que

tal atividade não tem utilidade.

A Indústria do Entretenimento dá lucro e tem um propósito bem demarcado na

sociedade de mercado. Mas o hilário é que a principal característica de seu produto é ser

sem utilidade, ou seja, o público pagante quanto vai ao estádio de futebol vai à procura

de sensações que fogem àquela batuta que se impõe a escola. Eles não visam com o

“entretenimento” um lugar no mercado de trabalho. Citamos o futebol, mas a nossa

sociedade moderna é recheada de entretenimento. Esse espírito é profundamente

arraigado na sociedade e notamos que a idéia do show também se faz presente no

ambiente escolar quando o aluno gostaria de ter uma aula “legal”.

Não pretendemos em nosso trabalho tratar das imbricações da Indústria do

Entretenimento e suas implicações com a educação. O que nos interessa é apenas dizer

que há nesse produto o germe da não-utilidade e que dado a sua intensa presença na

vida das pessoas ele serve para quebrar o império da utilidade que recai sobre a

educação de nosso tempo. Para combater esse “egoísmo” precisamos demonstrar que o

horizonte da utilidade a que são submetidos os processos educacionais tem uma fissura;

Há outros horizontes, é só pensarmos o quanto de coisas inúteis somos levados a fazer

durante o dia.

Para provar que fazemos coisas inúteis e assim quebrar a imposição de utilidade

que recai sobre os processos da educação formal, podemos tomar como dado o fato de

que um aluno passa o mesmo tempo ou mais assistindo televisão ou jogando

173

videogame. Recentemente pesquisas até revelaram uma curiosidade: crianças mais

pobres passam mais tempo na Internet do que as de melhores condições financeiras.

Ao apresentar argumentos de que há vida além da utilidade certamente se pode

pensar em instituições educacionais voltadas efetivamente para a criação. Esse

movimento não é simples, vale dizer novamente, mas as condições teóricas para se

pensar uma ruptura passam por essa via: existe vida nas atividades que não são voltadas

para o mercado de trabalho, o humano, enquanto ser que se cria no jogo estético, deve

ser a atenção.

Para finalizar, certamente uma educação no âmbito dos textos de Nietzsche que

aqui demarcamos passa pela valorização da criação. Uma educando irá apreender com

muito mais vigor quando ele participar do jogo de criar aqueles achados históricos. Se

esses mesmos achados forem impostos, para serem decorados, certamente estamos

falando de uma educação da adestração e que se preocupa unicamente com o mercado

de trabalho e não com o próprio educando. Educar passa nesse contexto por uma rígida

educação, como já dissemos sobre a Vontade, mas essa rigidez só vai ganhar contornos

vivos quando regada de criação.

174

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O nosso trabalho sobre estética e educação em obras específicas de Nietzsche

teve como propósito um exame temático em obras pontuais do autor. O que nos impôs o

exercício de ficar atentos aos conceitos aí trabalhados e deixar de estudar os seus

desenvolvimentos em obras posteriores. Isso poderia soar como limitador, porém,

pensamos que é proveitoso, pois esse exercício nos permitiu um olhar atento às bases do

pensamento do filósofo. Condição necessária para lançarmos com segurança, em outro

momento, na leitura dos conceitos de maturidade do filósofo.

O conteúdo que abordamos nas três obras certamente nos propiciou profícuas

reflexões. A primeira, um desafio pessoal, foi enfrentar o rigor da produção acadêmica.

Sobretudo quando dissertávamos a temática em que Nietzsche tece duras críticas ao

mau uso da língua materna. O que não era fonte de total desânimo, pois o mesmo autor

salienta, em outro momento de sua obra, a idéia de que o mais importante é o empenho

na formação de si. O seu conceito de formação de si ou uma formação autêntica nos

alegra, pois “[...] é uma construção, um „cultivo de si‟ permanente. Para ousar ser um „si

mesmo.”305

Não se trata, portanto, de algo já dado, pré-estabelecido.

A formação é muito mais uma transformação processual e não um adequar-se a

um modelo ideal. Perspectiva conceitual, presente na III Consideração Intempestiva:

Schopenhauer Educador, que se estrelasse com o conceito de que a vida só se justiça

enquanto criação estética, apresentado em O Nascimento da Tragédia. Pois é na criação

estética, propiciada pela tragédia, que os gregos Antigos se formavam. O processo

formativo da tragédia, então, não se baseava em modelos ideais, mas na pura

contradição da vida manifestada pelo pathos trágico.

305

DIAS, 2003, p. 69.

175

Outro avanço na leitura de Nietzsche que pudemos fazer foi no que toca ao

conceito de redução dos estabelecimentos de ensino e elevação da cultura. Se na

atualidade somos levados a pensar que para resolver todos os problemas sociais é

preciso de mais escolas, a leitura das conferências Sobre o Futuro de Nossos

Estabelecimentos de Ensino nos mostrou uma outra perspectiva. Não adiante ter muitas

escolas se nelas prevalecer uma cultura decadente. Uma cultura na qual são os interesses

do mercado que ditam as regras. Uma educação que relega todo o fazer na esfera da

cultura humana em segundo plano, tomando como mais importante exatamente o jogo

do mercado em produzir bens materiais. Nesse ambiente escolar o que irá prevalecer é o

que Nietzsche chama de cultura de jornalista, que procura sempre reduzir a riqueza da

cultura em vistas de um consumo mais rápido.

Essa mesma cultura da moda, do consumismo, certamente é a que impõe um

modelo de liberdade nos estabelecimentos de ensino. Liberdade questionada por

Nietzsche, que propõe uma nova relação entre educando e mestre. Propõe uma

hierarquia entre mestre e discípulo. Perspectiva que já soava estranha na universidade

que Nietzsche atuava como professor e que continua a ser um absurdo nas escolas de

nossos dias. A imposição da liberdade irrestrita se coaduna com a idéia de extensão

máxima da cultura e com isso sua simplificação. A falsa liberdade, duramente criticada

por Nietzsche, acaba acarretando a preguiça do educando e a evitar os duros caminhos

da formação elevada. Uma cultura simplificada e para todos não precisa de disciplina.

Ao contrário, como propõe Nietzsche, uma cultura elevada, bem elaborada, só pode

existir para pequenos grupos. É para poucos a dura e longa disciplina cultural.

O aprofundamento da cultura e a necessidade de um intenso trabalho para se

produzir algo elevado, requer sempre um trabalho em pequenos grupos. O grande

grupo, como podemos notar na própria experiência de aluno e professor, geralmente não

176

funciona. Se por um lado, como nos adverte MARTON,306

essa idéia de pequeno grupo

em Nietzsche reflete mesmo um pensamento elitista da cultura, por outro lado, temos a

certeza de que é no pequeno grupo, na comunidade, que a vida e a tarefa de formar-se

pode acontecer de modo mais eficiente. A massa certamente não é o lugar da formação

autêntica.

A formação no pequeno grupo por si não garante, também, uma cultura

autêntica. E aí desprende um conceito promissor da obra O Nascimento da Tragédia

que é a idéia do jogo estético. O método utilizado no pequeno grupo deve se estribar na

criação; revelando que sem a participação estética de cada participante corre-se o risco

de fazer no pequeno grupo o processo se tornar cansativo e sem o rigor que Nietzsche

apregoa na formação do homem de cultura.

Um outro tema de O Nascimento da Tragédia que Nietzsche pensa sobre o

drama wagneriano é o conceito de Vontade. Temática em Nietzsche que certamente é de

influência direta de Schopenhauer. Ao pensar a Vontade como sendo o cerne da vida,

Nietzsche propõe que a música é a manifestação artista mais adequada para expressá-la.

Nossa intenção de trabalho não foi o confronto do conceito de Vontade ente

Schopenhauer e Nietzsche. O que chamou nossa atenção foi a riqueza do conceito de

Vontade e do drama wagneriano. Sua complexa teia estética permite o enriquecimento

na capacidade de expressão do conteúdo trágico. Dessa dimensão estética do drama

pensamos ser possível a relação com os processos educacionais. A musicalização como

forma de expressão da Vontade é um importante instrumento de exercício da Vontade.

O chegar a si de que fala Nietzsche é, sobretudo, um exercitar da Vontade que há em

cada indivíduo.

306

Cf. MARTON. In: AZEREDO, 2008, p. 17-37.

177

Sem que o educando tenha Vontade ou propósito qualquer projeto educacional

estará fadado ao fracasso. A relevância e o papel central da Vontade na educação foi

uma descoberta na leitura que fizemos de Nietzsche. O conceito de Vontade em

Nietzsche terá um desenvolvimento para a idéia de Vontade de Potência, mas como já

avisamos, nos concentramos em O Nascimento da Tragédia, onde o conceito, ainda

muito tributário de Schopenhauer, se apresenta como cerne da vida e do real sem outros

detalhes. O que não impediu com fizéssemos relação com Sobre o Futuro de Nossos

Estabelecimentos de Ensino e III Consideração Intempestiva: Schopenhauer Educador.

Denotando dessa relação que a educação elevada e capaz de transformar a si, só pode

ser através uma estética trágica. Pois essa é participação do cerne da vida e de onde a

realidade emana. Tomar um outro caminho para a transformação de si é correr o risco

de praticar apenas uma retórica, mas sem mudanças.

Enfim, tomar os textos de Nietzsche como fonte de pesquisa pode não ser uma

boa opção se estivermos pensando em uma caixa de chaves conceituais para se

interpretar o presente. Contudo, segundo PIMENTA, “pensar com ele‟, por outra lado,

é sempre uma estratégia promissora.”307

E esse pensar junto com o autor é que nos

revela que Nietzsche “é instrumento de trabalho insubstituível”.308

307

PIMENTA. In: BARRENECHEIA, 2000, p. 77. 308

LEBRUN. Apud: DIAS, 2003, p. 115.

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