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FACULDADE DE SÃO BENTO Sebastião Cippiciani ENTRE FACTICIDADE E VALIDADE DA TEORIA DO DISCURSO DE HABERMAS NO QUE CONCERNE À ÉTICA E AO DIREITO MESTRADO EM FILOSOFIA ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: ÉTICA E POLÍTICA São Paulo 2011

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FACULDADE DE SÃO BENTO

Sebastião Cippiciani

ENTRE FACTICIDADE E VALIDADE DA TEORIA DO DISCURSO

DE HABERMAS NO QUE CONCERNE À ÉTICA E AO DIREITO

MESTRADO EM FILOSOFIA

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: ÉTICA E POLÍTICA

São Paulo 2011

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FACULDADE DE SÃO BENTO

Sebastião Cippiciani

ENTRE FACTICIDADE E VALIDADE DA TEORIA DO DISCURSO

DE HABERMAS NO QUE CONCERNE À ÉTICA E AO DIREITO

MESTRADO EM FILOSOFIA

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: ÉTICA E POLÍTICA

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da

Faculdade de São Bento, do Programa de Estudos de

Pós Graduação, como exigência parcial para

obtenção do título de MESTRE em Filosofia, área de

concentração Ética e Política, sob a orientação do

Professor Doutor Franklin Leopoldo e Silva.

São Paulo 2011

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FACULDADE DE SÃO BENTO

BANCA EXAMINADORA:

Professor Doutor Franklin Leopoldo e Silva

Professsor Doutor José Carlos Bruni

Professor Doutor Sílvio Luís Ferreira da Rocha

São Paulo 2011

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FACULDADE DE SÃO BENTO

Sebastião Cippiciani

ENTRE FACTICIDADE E VALIDADE DA TEORIA DO DISCURSO

DE HABERMAS NO QUE CONCERNE À ÉTICA E AO DIREITO

AGRADECIMENTOS

Neste raro momento, agradeço a todos aqueles que direta ou

indiretamente contribuiram para a realização dessa etapa

acadêmica. Um agradecimento especial ao Professor Doutor

Franklin Leopoldo e Silva, pela humildade, paciência e

sabedoria com que se desincumbiu do penoso encargo de

orientador; ao Professor Doutor José Carlos Bruni que, desde a

graduação, nos agraciou com seus profundos conhecimentos

filosóficos; aos Professores Doutores Franklin Leopoldo e Silva

e Djalma Medeiros, coordenador e vice-coordenador da Pós-

Graduação, pelos eficiente e eficaz desempenho dessa difícil

tarefa; ao Professor Doutor Carlos Eduardo Uchôa Fagundes

Junior - OSB, magnífico Reitor dessa conceituada e pioneira

Faculdade de Filosofia de São Bento. Meus sinceros

agradecimentos ao corpo docente, à equipe da Secretaria da

Faculdade, especialmente à Nancy Oliveira e Aparecida

Bocuzzi, bem como aos colegas, pelo convívio profícuo e

salutar que tivemos durante a graduação e o mestrado.

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FACULDADE DE SÃO BENTO

Sebastião Cippiciani

ENTRE FACTICIDADE E VALIDADE DA TEORIA DO DISCURSO

DE HABERMAS NO QUE CONCERNE À ÉTICA E AO DIREITO

“É por isso que o conceito do direito moderno

— que intensifica e, ao mesmo tempo,

operacionaliza a tensão entre facticidade e

validade na área do comportamento —

absorve o pensamento democrático,

desenvolvido por Kant e Rousseau, segundo o

qual a pretensão de legitimidade de uma

ordem jurídica construída com direitos

subjetivos só pode ser resgatada através da

força socialmente integradora da ‘vontade

unida e coincidente de todos’ os cidadãos livres

e iguais”. Jürgen Habermas. Direito e

Democracia – entre facticidade e validade, v. I.

Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 53.

São Paulo 2011

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CIPPICIANI, Sebastião. ENTRE FATIBILIDADE E VALIDA DE DA

TEORIA DO DISCURSO DE HABERMAS NO QUE CONCERNE À ÉT ICA E

AO DIREITO. São Paulo. Junho de 2011. Dissertação apresentada para o

Programa de Estudos de Pós-Graduação em Filosofia, da Faculdade de São Bento,

como exigência para obtenção do título de Mestre em Ética e Filosofia Política, sob

orientação do Professor Doutor Franklin Leopoldo e Silva.

RESUMO

A condição da possibilidade da “ética discursiva” é a intersubjetividade – a

interação mediatizada pela linguagem. A moralidade habermasiana é dialógica em

contraste com a de Kant, monológica e é negociada no contexto do mundo vivido e

fruto de uma interação comunicativa que visa à autonomia da espécie.

Jürgen Habermas partilha com Karl-Otto Apel da tentativa de fundamentar

a ética em termos de filosofia da linguagem, à qual denominam de ético do discurso.

Tal proposta pretende enfrentar a situação paradoxal de nossa época: por um lado, a

carência de uma ética universal, isto é, vinculadora a toda humanidade, mas, por outro

lado, a fundamentação de uma ética universal jamais parece ter sido tão complexa, e

mesmo sem perspectiva. O ponto de partida para enfrentar esse paradoxo é a retomada

da questão kantiana sobre as condições transcendentais de possibilidade e validade de

fundamentação do conhecimento através do discernimento quanto ao status

transcendental da linguagem e da comunidade linguística. Em nossas práticas

argumentativas cotidianas está sempre já pressuposta uma comunidade ideal de

comunicação como princípio regulativo que orienta as práticas argumentativas da

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comunidade real. Aquela serve também como parâmetro para o progresso da

comunidade real em sua aproximação cada vez maior da comunidade ideal de

comunicação. Tal aproximação visa buscar mediações históricas de superação dos

obstáculos à realização de uma ética universal. Essa mediação histórica envolve a

difícil relação dialética entre utopia e factibilidade, ou seja, se uma mediação histórica

entre ambas é realmente possível ou se seria apenas uma “ilusão transcendental” da

razão utópica. A análise da fundamentação da ética do discurso e o problema de sua

mediação são temas do presente trabalho.

Palavras-chave: linguagem, atos de fala, discurso, subjetividade,

intersubjetividade, reflexividade, consenso, entendimento, universalidade, ética, direito,

facticidade, validade.

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CIPPICIANI, Sebastião. ENTRE FATIBILIDADE E VALIDA DE DA

TEORIA DO DISCURSO DE HABERMAS NO QUE CONCERNE À ÉT ICA E

AO DIREITO. São Paulo. Junho de 2011. Dissertação apresentada para o

Programa de Estudos de Pós-Graduação em Filosofia, da Faculdade de São Bento,

como exigência para obtenção do título de Mestre em Ética e Filosofia Política, sob

orientação do Professor Doutor Franklin Leopoldo e Silva.

ABSTRACT

The possible condition of “discursive ethic” it is the intersubjectivity –

interaction mediated by language. The habermasian moral is dialogical in comparison

with the Kant’s one, monological and negotiated in the living world, a product of the

communicative interaction that seeks the species autonomy.

Jürgen Habermas shares with Karl-Otto Apel the idea that tries to

consubstantiate ethic in terms of the language’s philosophy which is the ethic of speech.

The proposal will have to face the paradoxal situation of our age. On one hand, the

absence of a universal ethic and on the other, the basis of the universal ethic that had

never seemed to be so complex even without perspective. The first way to deal with

this paradox is to reflect the kantian question about transcendental condition of

possibility and the veracity of basic knowledge relative to the transcendental language

status. In our everyday practice of argumentation there is always presupposed ideal

community of communication as a regulative principle which guides the argumentative

practices of real community. That also serves as a parameter for the progress of real

community in its ever-closer relationship of the ideal communication. This approach

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aims to seek a universal ethic. This mediation involves the difficult historical dialectic

relationship between utopia and feasibility, whether a historical mediation between the

two is really possible or it was just an illusion of the possible condition of “discursive

ethic” it is the intersubjectivity – interaction mediated by language. Whether a

historical mediation between the two is really possible or if it was just an illusion of

transcendental utopian reasoning. Analysis of the grounds of discourse ethics and the

problem of mediation are the themes of this work.

Key words: language, speech acts, discourse, subjectivity, intersubjectivity,

reflexivity, agreement, understanding, universality, ethics, law, facts and norms.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .................................................................................. 13

PARTE I – GÊNESE DA ÉTICA DISCURSIVA

CAPÍTULO I – As mudanças de paradigmas até se chegar à ética

discursiva

1.1 – A predominância do “interesse” na modernidade ........................... 19

1.2 – Premissas para a fundamentação de uma ética universal ............... 25

1.3 - A fundamentação filosófica da questão da moralidade .................. 28

1.4 – A questão da moral em Kant ......................................................... 29

CAPÍTULO II – A ética discursiva no contexto da modernidade

2.1 – Teoria da ação comunicativa como uma teoria da modernidade .. 34

2.2 - Da ação teleológica para a ação comunitária ............................... 35

2.3 - A superação da filosofia da consciência ...................................... 38

CAPÍTULO III – A reconstrução de uma razão moral

3.1 - Razão comunicativa e responsabilidade solidária ......................... 41

3.2 - As determinantes da pragmática transcendental ............................ 45

3.3 - Caracterização da ética discursiva ................................................. 50

CAPÍTULO IV – Estrutura e desenvolvimento da ética discursiva

4.1 - A fundamentação da ética discursiva de Habermas ....................... 52

4.2 - Ética discursiva: mediadora entre transcendentalidade e história ... 64

4.3 - O caráter reflexivo da ética do discurso ..................................... ... 66

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4.4 - Atos de linguagem orientados para o entendimento ....................... 67

4.5 - A linguagem como processo de comunicação intersubjetiva ......... 69

4.6 - As pretensões de validade referentes a algo do mundo objetivo,

social e subjetivo ...................................................................................................... 70

4.7 - Os atos de fala e sua capacidade de produzir consenso ................. 73

4.8 - O consenso como via de transição para a ação essencialmente ética 75

4.9 – Premissas do termo “mundo da vida” adotado por Habermas ...... 79

4.10 - A desidealização do mundo vivido ............................................. .. 81

4.11 - Campo de articulação do mundo vivido ...................................... 83

4.12 - Colonização do mundo vivido ..................................................... 85

4.13 - O processo de racionalização como substrato da linguagem ........ 87

4.14 - Patologias da sociedade contemporânea ...................................... 89

4.15 - Contradição entre a ação estratégica e a ação comunicativa ........ 90

PARTE II – O DIREITO COMO UM MEIO PARA A VALIDAÇÃO

DA ÉTICA DO DISCURSO E A VERIFICAÇÃO DA SUA FACTICI DADE

CAPÍTULO V – O Direito e a ética discursiva

5.1 - A ética discursiva e sua relação com outros saberes práticos ........ 92

5.2 - A concepção discursiva do Direito ................................................ 94

5.3 - O raciocínio prático e o Direito ..................................................... 98

5.4 - Distinção entre moral e Direito ........................................................ 99

5.5 - O surgimento da ideia de lei ......................................................... 102

5.6 - O evolver do direito ...................................................................... 103

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5.7 – Do positivismo jurídico ao pós-positivismo habermasiano ......... 104

5.8 - Intersecção entre Direito e moral ................................................ 109

5.9 – A posição habermasiana perante as correntes liberais e

comunitaristas no que tange ao direito e à justiça social ........................................ 112

5.10 - Complementariedade entre Direito, moral e política .................. 119

5.11 - Os fundamentos do Estado democrático de direito e a relação

com a ética, a política e a soberania popular .......................................................... 124

PARTE III – SÍNTESE ACERCA DA VALIDADE, FACTICIDADE E

CRÍTICAS QUE SE FAZEM À ÉTICA DISCURSIVA

CAPÍTULO VI – Validade e facticidade da ética do discurso

6.1 – Pretensões de validade ............................................................ ... 137

6.2 – Retitude ou correção (Richtigkeit) .............................................. 140

6.2.1 – Pretensões de correção ......................................................... 145

6.3 - Facticidade e validade ................................................................ 152

CAPÍTULO VII – Críticas que se fazem à ética discursiva

7.1 - Críticas á ética do discurso de Habermas .................................... 158

7.2 - Considerações de Habermas em relação às objeções feitas

à etica do discurso .................................................................................................. 163

CONCLUSÃO ............................................................................. ...... 166

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................ 171

ÍNDICE DE AUTORES ............................................................. ...... 175

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INTRODUÇÃO

Primeiramente, peço escusas antecipadas a quem compulsar este trabalho,

por não apresentar a teoria habermasiana em toda a sua profundidade, pois, pela sua

abrangência, é impossível de ser tratada no espaço de uma dissertação de mestrado.

Tem-se, portanto, nesta peça acadêmica, apenas um percurso do caminho feito por

Habermas na construção de sua teoria da ética discursiva, as assimilações buscadas em

outros estudiosos do assunto e as correções de rumo feitas ao longo do tempo. O

aprofundamento fica postergado para uma futura ocasião.

Particularmente importante na obra de Habermas é a introdução de um

conceito que tomará uma posição fundamental no seu pensamento: o conceito de

discurso que representa a renúncia a qualquer perspectiva tecnocrática, e que será a

tônica deste trabalho.

Em sua obra “Teoria da ação comunicativa” (1981) Jürgen Habermas

pensa em uma nova totalidade, os três mundos (dos objetos, das normas e das vivências

subjetivas), desmembrados pelas críticas da razão pura de Kant. Concluiu que somente

a ação comunicativa é capaz de abarcar os três mundos, anteriormente isolados em

esferas de ações estanques (instrumental, normativa, reflexiva), em uma nova visão

teórica que os integrassem numa totalidade e que não apresentasse as limitações de

nenhum deles. Para pensar essa nova totalidade, Habermas propõe uma mudança de

paradigma: da filosofia da consciência para a teoria da interação, da razão reflexiva

para a razão comunicativa. Com essa nova “revolução copernicana”, Habermas

procura resgatar a validade da teoria cognitiva da razão sem incorrer nas limitações

impostas por Kant, ou seja, a validade é pensada monologicamente — uma reflexão

subjetiva, de caráter transcendental, decide a priori se a norma é legítima ou não.

A razão comunicativa proposta por Habermas é essencialmente dialógica,

substituindo o conceito monológico da razão pura de Kant. Ela não mais se assenta no

sujeito epistêmico, mas pressupõe o grupo numa situação dialógica ideal. A verdade

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produzida nesse novo contexto é processual e depende dos membros integrantes do

grupo. Nessa nova concepção da razão comunicativa a linguagem torna-se o elemento

constitutivo. A perspectiva linguística introduzida na reflexão da teoria da ação

comunicativa parte do dado pragmático da linguagem como base de todo processo

interativo que abrange as práticas comunicativas dos três mundos: dos objetos, das

regras, do sujeito. Na fala quotidiana as práticas comunicativas que permeiam esses

três mundos permanecem inquestionadas. A mesma linguagem que articula essas

práticas permite, contudo, seu questionamento, suspendendo as aspirações de validade

nelas subentendidas. Torna-se possível, através dessa linguagem, questionar a verdade

dos fatos (do mundo objetivo), a correção ou justeza das normas (do mundo social) e a

veracidade do interlocutor (mundo subjetivo). Habermas chama de “discurso” esse

questionamento das “aspirações de validade” embutidas na comunicação quotidiana. É

um processo argumentativo acompanhado do esforço de restabelecer um uso sui

generis da linguagem, que exige a argumentação e a justificação de cada ato da fala por

parte dos interlocutores participantes da interação.

No discurso teórico são problematizadas e revistas as afirmações feitas

sobre os fatos, é reassegurado verbalmente o nosso saber sobre o mundo dos objetos, é

redefinida a verdade até então vigente e aceita no grupo. No discurso prático são

postas em cheque a validade e a justeza das normas sociais que regulamentam a vida

social. Nesse processo argumentativo, em que cada afirmação precisa ser justificada,

cada julgamento defendido e reafirmada a validade das regras em questão, prevalece

unicamente o critério do melhor argumento, capaz de obter a aprovação dos membros

do grupo. Ambas as formas do discurso pressupõem interlocutores competentes e que

falam a verdade, atuando em situações dialógicas ideais, livres de coação1.

A questão da moralidade em Habermas insere-se, pois, no corpo de sua

teoria da ação comunicativa e é elaborada e repensada no contexto do discurso prático.

Se para Kant o critério último da moralidade se condensava no “imperativo

1 FREITAG, Bárbara. Dialogando com Jürgen Habermas. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2005 – (Biblioteca Colégio do Brasil; 10).

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categórico”, para Habermas ele se radica no “processo argumentativo”, desencadeado

pelo discurso prático. Essa mudança de foco constitui a essência da “ética discursiva”.

A filosofia, de certa forma, consiste sempre em uma atitude reflexiva a

partir de questões, problemas e do conhecimento científico de seu tempo. Exatamente

por consistir em uma reflexão, a tarefa que se coloca nesse âmbito do saber está muito

mais em levantar questões e problematizá-las do que propriamente oferecer soluções

prontas e acabadas. Nesse sentido, o que caracteriza a filosofia é essa atitude de voltar-

se para si mesma, de refletir criticamente sobre suas práticas, métodos e problemas. A

filosofia contemporânea, cada vez mais se mostra como uma reflexão do homem sobre

si mesmo e, mais especificamente, como uma reflexão sobre a liberdade.

Desse modo, centrando a investigação filosófica na preocupação com a

liberdade, não é difícil de se defender a necessidade e a relevância de um estudo sobre a

eticidade como reflexão sobre a possibilidade da liberdade no convívio intersubjetivo

dos homens no seio da sociedade. A ética, nesse caso, circunscrita à esfera da filosofia

prática, busca a realização da liberdade, que é uma preocupação comum do homem.

Nesta dissertação não é nossa pretensão dar uma resposta cabal a respeito de

todas as dúvidas e problemas relativos à facticidade e à validade da ética do discurso,

pois fugiria da proposta de um trabalho de mestrado, que se apresenta ainda como um

trabalho de formação. Contudo, a partir da bibliografia de apoio e de algumas

discussões travadas com e entre os pares de Habermas, procuraremos apresentar um

panorama que reflita o espírito e a intenção, bem como a operacionalidade da ética

discursiva, atentando para a distinção entre facticidade e validade desta teoria.

As dificuldades intrínsecas da obra de Habermas também se demonstram

como um grande obstáculo a ser transposto. Os textos nem sempre nos permitem uma

exata compreensão do alcance que o autor quer dar a cada construção de sua tese, haja

vista a grande discussão que tem ocorrido entre os que analisam sua obra.

A estrutrura desta dissertação subdivide-se em três partes, como segue:

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Para examinar a facticidade e à validade da ética discursiva, é preciso antes

dizer o que é essa ética discursiva, situá-la em seu contexto histórico e apresentá-la em

suas características intrínsecas e extrínsecas, assim como suas principais relações. Essa

é a razão da Parte I do trabalho. Configura-se como um trabalho preliminar de

apresentação e desenvolvimento de conceitos que a caracterizam.

Por outro lado, também não se pode concluir sobre factibilidade e validade

sem que se tenha uma concepção sobre o Direito e uma análise sobre suas interrelações

com a ética, a moral, a política, o Estado democrático de direito, e uma noção de

sociedade civil. Esse é o escopo da Parte II.

Nesse contexto, parece possível formular algumas considerações

concernentes à facticidade e a validade da ética do discurso de Habermas e apresentar

uma breve referência a algumas críticas a essa teoria, com considerações de seu

instituidor a respeito de objeções feitas. Esse é, portanto, o objetivo da Parte III.

Por derradeiro, tem-se a conclusão e as referências bibliográficas.

Cada uma dessas três Partes é subdividida em capítulos e estes em sub-

capítulos, em relação aos quais se procurou estruturá-los de forma que não ficassem

muito extensos, que possibilitassem uma leitura aprazível, menos cansativa.

No primeiro capítulo da Parte I, procurou-se apresentar as premissas para a

fundamentação de uma ética universal, uma fundamentação filosófica da questão da

moralidade, culminando com uma síntese da razão prática de Immanuel Kant, bem

como algumas considerações sobre a filosofia prática em geral, como suporte preliminar

para os capítulos subsequentes.

O objetivo do segundo capítulo é o de apresentar as bases de que se valeu

Habermas para fundamentar e caracterizar sua ética discursiva, passando pela mediação

entre transcendentalidade e história, pelas determinantes da pragmática transcendental,

pelo caráter reflexivo da ética do discurso, e ainda, relacionando-se a razão

comunicativa com uma responsabilidade solidária.

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No terceiro capítulo dessa primeira parte, completa-se o capítulo anterior

através de um panorama acerca da racionalidade comunicativa e a modernidade, a

passagem da ação teleológica para a ação comunicativa e a conclusão de Habermas

acerca da superação da filosofia da consciência.

O quarto capítulo da primeira parte cuida do núcleo da teoria da ética

discursiva. São objetos de exame: a linguagem orientada para o entendimento e como

processo de comunicação intersubjetiva e, ainda, como processo de racionalização. Os

atos de fala como via de transição para a ação essencialmente ética e sua capacidade de

produzir consenso. A idealização e colonização do mundo da vida e seu campo de

articulação. Esclareça-se, desde logo, que “vida”, para Habermas, não é adotada no

sentido nietzschiano, de esplendor, transbordamento, enunciada como “vontade de

potência”, mas assumida como “realidade”, o “mundo em que vivemos”, ou seja, o

mundo vivido. Assim, com o intuito de evitar confusões de sentidos, o termo alemão

“Lebenswelt”, usado por Habermas, nas transcrições traduziremos por “mundo da vida”

e nas demais situações por “mundo vivido”. Também fazem parte deste capítulo, as

patologias da sociedade contemporânea. A contradição entre a ação estratégica e a ação

comunicativa. E, por fim, as pretensões de validade referentes a algo do mundo

objetivo, social e subjetivo.

No quinto capítulo, que corresponde à Parte II, são discorridos temas

relacionados à ética, ao Direito, à política, à soberania popular, ou seja, a interrelação

entre eles, tais como o positivismo jurídico e o pós-positivismo habermasiano, a ética

discursiva e sua relação com outros saberes práticos, a concepção discursiva do Direito,

o raciocínio prático e o Direito, a distinção entre moral e Direito, o surgimento da ideia

de lei, o evolver do Direito, o projeto comunitarista de Habermas e o Direito,

complementariedade entre Direito, moral e política, os fundamentos do Estado

democrático de direito e a relação com a ética, a política e a soberania popular.

No capítulo seis, referente à Parte III, faz-se um resumo acerca da

facticidade e validade. São examinadas as pretensões de validade – verdade,

veracidade, inteligibilidade e retitude ou correção. Em virtude das conexões no campo

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do direito entre Habermas e Robert Alexy, para uma melhor compreensão, essas

pretensões, especialmente a de correção, foram examinadas em maior profundidade.

Indo além quanto à validade, procuramos, ainda, verificar se se, de fato, fundou-se

intersubjetivamente uma ética universal, ou seja, se é válida para toda a humanidade e

se uma ética do discurso apresenta reais possibilidades de oferecer respostas aos

problemas de nossa época. A questão da facticidade implica em examinar as condições

de possibilidade real de efetivação de projetos históricos como limite para realização da

ética do discurso. Há normas que são válidas e factíveis, pois o meio é adequado para

aplicá-las, mas também podemos ter normas que apesar de válidas não são factíveis, o

meio não é adequado.

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PARTE I – GÊNESE DA ÉTICA DISCURSIVA

CAPÍTULO I – AS MUDANÇAS DE PARADIGMAS ATÉ SE

CHEGAR À ÉTICA DISCURSIVA

1.1 - A PREDOMINÂNCIA DO “INTERESSE” NA MODERNIDADE

No texto que o Professor Doutor Franklin Leopoldo e Silva elaborou para o

ciclo de conferências “O esquecimento da política”2, concebido pelo Centro de Estudos

Artepensamento em 2006, organizado por Adauto Novaes, sob o título “Política como

moralidade: a banalização da ética”, verificamos uma estreita aproximação com o que

vamos tratar neste trabalho, notadamente com relação às condições que levaram a uma

mudança de paradigma, por estar a ética encantoada a procura de novos caminhos.

Dentre aqueles que procuram teorizar uma nova vertente encontra-se Habermas3 com a

teoria do agir comunicativo que desagua na sua ética discursiva. Assim, com o

objetivo de buscar um liame entre os ensinamentos do Professor Franklin e a teoria da

2 SILVA, Franklin Leopoldo e. Política como moralidade: a banalização da ética. in NOVAES, Adauto (org.). O esquecimento da política. São Paulo: Agir, 2007, p. 127-137 3 BIOGRAFIA SUCINTA DE JÜRGEN HABERMAS: Trata-se de um dos mais influentes filósofos vivos, alemão, 1929-, 81 anos, expoente da segunda geração da Escola de Frankfurt. Nascido em Düsseldorf, colaborou com o Instituto de Pesquisa Social em Frankfurt, antes de assumir a cátedra de filosofia e sociologia na Universidade de Frankfurt, onde ficou até 1994. Dentre suas obras, em torno de quarenta, destacam-se a “Teoria da Ação Comunicativa” (1981), na qual defende o universalismo e a vocação de transparência do discurso para articular consensos a partir do choque de argumentos e “Direito e Democracia – entre factibilidade e validade” (1992), em que procura abordar o impasse do Estado diante da globalização. Em sua vasta obra, na mesma linha das mencionadas acima, busca dar respostas às questões acerca dos desafios, projetos e contradições de nossa época, percorre o campo da filosofia, da sociologia, das ciências humanas, em particular a psicanálise freudiana e a teoria piagentina, a política e o direito. Em cada um desses campos, nos quais introduziu inovações profundas, Habermas defende especificamente a famosa “mudança de paradigma” que situa sempre como princípio de seus trabalhos. A primeira fase do seu pensamento, influenciada por Heidegger, é marcada por uma idéia à qual Habermas nunca renunciou e que pode ser chamada de kantiana: a idéia de uma emancipação dos indivíduos enquanto seres autônomos. Em seus primeiros trabalhos sobre temas ligados à atualidade, por um lado, ele toma uma atitude de crítica à tecnologia que ecoa posições heideggerianas e, por outro lado, serve-se de conceitos como o lukacsiano de “reificação”, o weberiano de “racionalização” e o marxiano de “alienação”.

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ética do discurso de Habermas, o que facilita sobremaneira o entendimento dessa ainda

nascente teoria, tomamos a liberdade de extrair excertos de seu trabalho no sentido de

mostrar, como nos informa o Prof. Franklin, essa marca Ocidental consistente na

renúncia à dimensão pública do sujeito moral, do pensar comunitário, diferentemente

do modelo grego de democracia, não obstante suas características que nos parecem

restritivas, mas que é visto por Hannah Arendt como a vida política na sua maior

autenticidade, e que somente teria retornado à cena histórica por curtos períodos, o

qual, agora, Habermas, com as necessárias adequações e acrescido de novas ideias,

procura resgatar com a sua proposta de ética discursiva.

Os trechos deste capítulo foram extraídos do mencionado trabalho com o

único propósito de mostrar um panorama justificador da pretensão de Habermas em

fundar uma ética discursiva que, com as devidas cautelas, teria a aparência de uma

nova Ágora:

“O modelo grego de democracia” em que os juízos

ocorrem coletivamente, dialogicamente, acerca do

melhor para si mesmos, quando os homens se reúnem

na ágora para tratar de seu próprio destino, os

quais não detém qualquer saber específico acerca

daquilo que irão desempenhar. “A política não

necessita, para o grego da polis , de qualquer

episteme ou techné , ou seja, nada do que ele

precisasse aprender e vir a saber. O único

requísito é a disposição para o confronto das

opiniões subjetivas, num procedimento que visa ao

interesse da cidade. Isso significa que o

sujeito político é aquele cuja opinião subjetiva

não está vinculada à defesa do interesse

particular : é esse despojamento que permite que a

discussão das opiniões singulares se encaminhe

para o estabelecimento de um resultado público

desse confronto. A dimensão pública,

verdadeiramente política, já é, desde o início do

processo, o critério orientador. Por isso, o

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cidadão ateniense não pode estar sujeito aos

interesses particulares (...) quando vai discutir

o destino da cidade em regime público e em

condições de total isonomia”. 4

Nessas circunstâncias, afirma o Professor Franklin, cada um pode realizar o

que Hannah Arendt denomina deslocamento: a consideração da opinião do outro em

igualdade de condições com a sua própria opinião, sem que isso signifique adotar o

ponto de vista do outro, mas simplesmente compreendê-lo a partir de sua própria

autonomia deliberativa. Essa é a condição da experiência política da relação entre

subjetividade e alteridade. E, como todas as opiniões são consideradas dessa mesma

maneira, o que resulta do processo é uma generalização que não se fundamenta em

princípio lógico, mas no procedimento concreto da intersubjetividade. Nessas

condições, cada um pode reconhecer-se no geral a partir de sua singularidade.

A individualidade se define pelo seu lastro comunitário e pela isonomia da

palavra compartilhada, que afasta a possibilidade da violência como componente do

espaço público. Isso significa que a universalidade do juízo político ocorre a partir da

relação dialógica entre os juízos singulares e a vida política fica assim dotada de uma

generalidade construída pela reunião de homens livres. Trata-se de uma universalidade

de consenso, especificamente política, que só pode ocorrer devido aos laços intrínsecos

que vinculam indivíduos em comunidade no espaço público. Para Hannah Arendt, a

política não é uma qualidade dos indivíduos, essencial ou acidental, mas algo que

ocorre entre os indivíduos, no espaço comum da vida pública. “Entre” subentende-se

pela possibilidade de o indivíduo projetar-se na direção dos outros sem abandonar a si

mesmo, o que quer dizer que a isonomia e a autonomia estão reciprocamente

implicadas.

Habermas não destoa desse posicionamento.

4 SILVA, Franklin Leopoldo e. Política como moralidade: a banalização da ética. in NOVAES, Adauto (org.). O esquecimento da política. São Paulo: Agir, 2007, p. 129-130.

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“Apenas a descrição dessa vida política [de

Atenas] já indica suficientemente a sua

impossibilidade no contexto do individualismo

moderno e da hegemonia do Estado como

configuração do poder. Marx já observava que o

indivíduo sob o Estado burguês é um ente

abstrato, exatamente por não estar enraizado numa

vida comunitária autêntica. A opção moderna pelo

indivíduo faz da comunidade um agregado de

elementos extrinsecamente relacionados por uma

instância a quem o poder foi delegado ou

transferido ”. 5 (sublinhei)

Uma das grandes preocupações de Habermas é justamente essa delegação

ou transferência de poder que deixa o homem sem referencial para com a vida pública.

No que segue, o Prof. Franklin observa o momento em que, do ponto de

vista ético, na modernidade, passa a predominar o “interesse” sobre as paixões, ou seja,

o momento em que se passa da subjetividade heróica à individualidade empreendedora.

“Não se pode negar, entretanto, que a política e

a ética permanecem como preocupações relevantes

no mundo moderno e na nossa contemporaneidade.

Devemos, porém, observar as diferenças na nova

configuração dessas preocupações. Do ponto de

vista ético podemos dizer, de modo simples e

resumido, que a passagem à modernidade traz

entre outras características morais, a

predominância dos interesses sobre as paixões.

O herói homérico, o conquistador romano, o

cavaleiro medieval têm como marca característica

viver as paixões, tanto quando se submetem a

5 ibidem, p. 130-131.

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elas como quando as dominam. O homem moderno

tem seu centro de gravidade moral no interesse,

seja ele exacerbado ou regulado pela razão. O

advento do capitalismo como modo de vida, no

sentido weberiano, explica a mudança, ou essa

passagem da subjetividade heróica à

individualidade empreendedora. Por interesse

não se entende mais, na modernidade, a simples

satisfação de necessidades, mas o cultivo de

valores, algo que tem a ver com as grandes

transformações econômicas. Se na antiguidade e

no período medieval a moralidade estava

vinculada às paixões, na modernidade ela esta

ligada, sobretudo, aos interesses. Isso traz,

naturalmente, consequências no que concerne à

questão do significado da ética e do alcance da

regulação das condutas como expansão das

potencialidades humanas”. 6

Observe-se que o estatuto moral do interesse passa a defini-lo como valor,

fundamentando assim sua legitimidade moral no plano da vida individual e,

consequentemente, garantindo também a valorização social e política dos

compromissos morais assumidos individualmente.

Conclui o Prof. Franklin que se definimos o indivíduo como social, não em

termos de essência, mas como condição histórica efetiva, então a separação entre ética

e política configura a ruptura entre indivíduo e sociedade, o que no limite significa a

ruptura do indivíduo com ele mesmo. Essa divisão ou fragmentação, como perda da

integridade, pode ser considerada a primeira causa da heteronomia, entendida como

impossibilidade de o indivíduo reconhecer-se na sua identidade social e, assim, poder

atuar como sujeito político. Nessas condições, a ética ganha uma autonomia de caráter

ideológico na medida em que aparece como a ilusão da preservação de uma

subjetividade que já não encontra no plano social as possibilidades de realização, uma

6 ibidem, p. 131.

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vez que a instância do social, precisamente por ter-se tornado apenas o lugar de

manifestação do interesse privado, mostra-se despida de qualquer caráter político-

comunitário. Acontece que, nas sociedades massificadas, esse reconhecimento de cada

um à sua individualidade restrita, se permite ao indivíduo manter-se alheio à sociedade,

não impede que cada indivíduo permaneça rigidamente submetido a um controle social

exercido pelos múltiplos instrumentos que o poder tem à sua disposição. Por isso não é

surpreendente que o individualismo exacerbado conviva perfeitamente com a

massificação e a uniformização dos comportamentos. Dessa forma, o cultivo da

individualidade coincide com a alienação — e a liberdade se torna cada vez mais

abstrata. O grande trunfo da democracia formal e a condição de preservação do sistema

consistem exatamente em induzir os indivíduos a praticarem a indiferença política

como realização da liberdade individual. No entanto, o recolhimento do indivíduo à

sua individualidade coincide, no mundo moderno, com a preservação do interesse

privado e a manutenção das suas garantias. É nesse sentido que a moralidade privada

aparece como único critério de julgamento de qualquer conduta, inclusive daquelas

que, em princípio, deveriam ser definidas como públicas. Instala-se então o seguinte

círculo: nas suas ações, os indivíduos não distinguem o interesse privado do interesse

público; no julgamento dessas ações, também não se separa a esfera pública da vida

privada. Como consequência, não se tem propriamente conduta política nem se faz

qualquer juízo político sobre as condutas. Aqueles que agem e aqueles que

eventualmente julgam essas ações estão igualmente comprometidos como o mesmo

critério, ou com o mesmo “valor”.

É justamente para contrapor a esse alheamento do indivíduo para com a

sociedade, esse cultivo da individualidade, essa alienação do homem que torna a

liberdade cada vez mais abstrata e que o afasta da ética tradicional, que Habermas

porpõe a sua ética discursiva, com o objetivo de recolocar o homem no seio da

sociedade, que entende possível pela efetiva participação argumentativa

intersubjetivamente entre os concernidos, por meio da linguagem, na busca de um

consenso sobre algo no mundo vivido.

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1.2 – PREMISSAS PARA A FUNDAMENTAÇÃO DE UMA ÉTICA

UNIVERSAL

Josué Cândido da Silva, em sua tese de doutorado em Filosofia, sob

orientação do Professor Doutor Ivo Assad Ibri, apresentada à Banca examinadora da

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob o título “A ética do discurso entre a

validade e a factibilidade, em 2007, concluiu que pensar os problemas de nossa época

na perspectiva de responsabilidades individuais é hoje completamente ilusório. Faz

considerações que justificam sua inferência. Para tanto, vale-se do seguinte exemplo:

quando alguém se dirige de carro para o trabalho, contribui, sem dúvida, para o

aquecimento global, ainda que não está, moralmente falando, fazendo nada de errado

(embora assim o seja em termos globais). Esse exemplo apenas ilustra a insuficiência

em termos de uma moral individual, para responder a problemas de ordem global.

Igualmente insuficientes são as éticas que postulam que o comportamento moral é, em

si, algo singular e subjetivo, como no caso da filosofia analítica e do existencialismo.

Embora aparentemente opostas, ambas as correntes filosóficas chegam a conclusões

semelhantes sobre a impossibilidade de uma ética de validade intersubjetiva. A

coincidência entre as conclusões da filosofia analítica e do existencialismo reflete no

plano ideológico a moderna separação liberal entre a esfera pública e privada, que se

formou com a separação entre Igreja e Estado. “Pois, em nome dessa separação, e isso

quer dizer: com a ajuda de um poder estatal secularizado, mais e mais o liberalismo

ocidental restringiu a obrigatoriedade da fé religiosa, e logo a seguir a das normas

morais, à esfera das decisões particulares de consciência moral”7. Assim, os sujeitos

são responsáveis apenas por suas decisões individuais cabendo aos meios sistêmicos

tomar as decisões na esfera pública. Nesse caso, a quem cabe a responsabilidade sobre

os fins ou pelos resultados das ações sistêmicas? Sequer se discute sobre os fins no

7 APEL, Karl-Otto. O a priori da comunidade de comunicação e os fundamentos da ética: o problema de uma fundamentação racional na era da ciência. In: _________. Transformação da Filosofia 2: O a priori da comunidade de comunicação. São Paulo: Loyola, 2000, p. 419.

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âmbito da ciência objetiva, já que essa se considera isenta de valoração. Uma vez que

os valores são considerados no campo da irracionalidade ou de decisões humanas não

acessíveis à discussão racional, a ciência se isenta de se pronunciar sobre eles tratando

apenas das questões relativas à racionalidade meio-fim que é calculável e previsível.

Com isso, ela corre o risco de reduzir a racionalidade à sua dimensão puramente

instrumental que pode se tornar igualmente irracional quando vista de modo mais

abrangente. Como tentativa de solução para esse problema pode-se pensar na formação

de uma “vontade pública” através de eleições e votações na esfera política, capazes de

produzir normas intersubjetivamente vinculatórias. Essas normas poderiam regular

exteriormente os fins e os efeitos das ações das várias esferas da sociedade.

“Parece ser essa a resposta que se pode derivar

dos pressupostos filosóficos do sistema de

complementariedade ocidental; e tal resposta

parece tornar supérfua à fundamentação

filosófica de uma ética universalmente válida” 8.

O problema de uma solução como essa é que a convenção fundada por

meio de um acordo coletivo, não funda uma ética, pois não garante a vinculação entre

os participantes. Deveras, a convenção não gera em cada indivíduo o dever de, em

todas as questões práticas, ater-se ao espírito do acordo. Sem um princípio ético

intersubjetivo qualquer tentativa de constituir uma normatividade vinculatória não

conseguirá transcender a esfera privada.

É por isso que seria mais apropriado falar em co-responsabilidade para

destacar o esvaziamento da noção de responsabilidade individual. O reconhecimento

da co-responsabilidade de todos os habitantes do planeta pelo destino comum é algo

importante para forjarmos uma nova ética capaz de responder à nossa situação atual,

mas não suficiente. Como já vimos, é preciso fundamentá-la em novas bases que sejam

válidas intersubjetivamente. Do mesmo modo, é preciso pensar as mediações históricas

8 ibidem, p. 423.

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que tornem a ação apregoada como eticamente factível, ou seja, trata-se de superar a

ética meramente deontológica por uma ética que seja também teleológica e desta para a

ação comunicativa, como preconiza Habermas.

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1.3 - A FUNDAMENTAÇÃO FILOSÓFICA DA QUESTÃO DA

MORALIDADE

Bárbara Freitag9 informa em sua obra Dialogando com Jürgen Habermas10

que, por volta de 1780, Kant lança a obra Crítica da razão prática, na qual reassenta

em novas bases a questão da moralidade. Reinterpretando a filosofia da ilustração

(Rousseau, Bentham, Kant), a sociologia clássica (Marx, Durkheim, Weber) debateu

essa questão sob o ângulo da normatividade e regularidade do comportamento social,

enquanto a sociologia moderna (Parsons, Luhmann, Habermas) focalizou-a de duas

óticas distintas: a sistêmica e a de mundo vivido. A questão da moralidade encontra,

porém, uma nova expressão na ética discursiva (Apel, Wellmer, Habermas) que

procura, calcada nas pesquisas do estruturalismo genético (Piaget, Kohlberg11), reatar o

elo perdido com a filosofia moral de Kant. Esta dissertação busca, a partir desse

contexto, demonstrar as bases nas quais Habermas estruturou sua teoria do agir

comunicativo que converge para a ética do discurso, para, a final, concluir acerca de

sua factibilidade e validade, não obstante sejam elas destacadas ao longo do texto.

9 FREITAG, Bárbara: Professora titular (aposentada) do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB). Coordenou e apresentou trabalhos nos dois números monográficos sobre Jürgen Habermas: Revista Tempo Brasileiro nºs. 98 e 138, comemorativos dos 60 e 70 anos do autor. 10 FREITAG, Bárbara. Dialogando com Jürgen Habermas. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2005. – (Biblioteca Colégio do Brasil: 10) 11 KOHLBERG, Lawrence (1927-1987): foi professor na Universidade de Chicago, bem como a Universidade de Havard. Especializou-se na investigação sobre educação e argumentação moral, sendo mais conhecido pela sua teoria dos níveis de desenvolvimento moral. Muito influenciado pela teoria do desenvolvimento cognitivo de Jean Piaget. Psicólogo estadunidense, nascido em Bronsville, Nova Iorque.

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1.4 – A QUESTÃO DA MORAL EM KANT

A questão da moralidade em Kant resume-se, pois, em três postulados:

existe um sujeito moral; dotado de vontade e de razão; e é capaz de legislar para o

mundo dos costumes (sociedade) em defesa da dignidade do homem. Kant forneceu,

assim, todos os conceitos necessários para pensar em termos contemporâneos a questão

da moralidade. Ao distinguir entre razão prática e razão teórica, deixou claro que a

razão prática age no livre mundo do fazer – a sociedade – e que a razão teórica

reconhece um mundo determinado – a natureza. O sujeito epistêmico complementa o

sujeito moral; a ciência é necessária para sobreviver na natureza, a moralidade é

necessária para constituir a sociedade. Cidadão dos dois mundos (o natural e o social),

o homem precisa defender-se no primeiro e afirmar-se no segundo.

Na obra “Metafísica dos costumes” (1797), Kant estabelece uma sensível

distinção no significado das duas espécies de moralidade. O termo moral, para ele,

corresponderá à totalidade da doutrina dos costumes, ao prático em geral, ou seja, a

tudo aquilo que é possível por liberdade, da qual se deduzirão basicamente duas

espécies da moralidade: a) a moralidade como ética (a doutrina da virtude) e b) a

moralidade como direito (a doutrina no direito). Mas a originalidade de sua filosofia

prática consiste em ela se estruturar a partir de uma nova fundamentação da moral. Ao

contrário de outras éticas, que buscavam sua origem na ordem da natureza, ou da

comunidade humana, na aspiração à felicidade (Aristóteles), na vontade de Deus (éticas

cristãs), ou no sentido moral (utilitaristas ingleses), a moral kantiana busca a sua

origem e fundamento no próprio sujeito. Assim, como a ciência da natureza no plano

teórico, a moral no plano prático encontrará sua validade universal e objetiva

unicamente por intermédio do sujeito. Para Kant, a condição da possibilidade da

moralidade é o sujeito. Trata-se de um sujeito livre, disposto a agir segundo certos

princípios (máximas), concretizando fins autodeterminados. Este sujeito é dotado de

vontade e razão. É o sujeito moral do “imperativo categórico”.

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Contudo, é na obra Crítica da razão prática que Kant reassenta as bases da

questão da moralidade, que, em última instância, resume-se na questão do “imperativo

categórico” que orienta a ação da razão prática e é o complemento necessário da razão

teórica. Enquanto esta permite ao sujeito epistêmico conhecer as leis que regem o

mundo da natureza, a razão prática pura desvenda as leis do mundo social, regido pela

vontade e liberdade dos homens. O mundo da natureza representa para Kant, o reino da

necessidade, contingência, determinação. O mundo social, o reino da liberdade, do

possível, da indeterminação. Cidadão dos dois mundos, o homem tem a faculdade de

conhecer o primeiro (reconstruindo e desvendando as suas leis) e de agir no segundo

(formulando as leis sociais que devem regê-lo). O mundo da natureza escapa à vontade

humana. O mundo social, cuja finalidade é definida pela vontade humana, motivo pelo

qual ele constitui o sistema dos fins. No primeiro, o ser, valem os julgamentos

científicos; no mundo do dever-ser ou dos fins, valem os julgamentos morais. Por isso,

nesse mundo do dever-ser a ação dos homens pode ser julgada segundo os critérios do

bem e do mal, do certo e do errado, do justo e do injusto. Neste ponto, abro um

parêntese para um melhor aclaramento no que se refere a essas categorias “ser” e

“dever-ser”, tratadas por Kant na Fundamentação da metafísica dos costumes, pela

importância adquirida na filosofia e pela influência na obra de Habermas. Assim, para

Kant, “ser” compreende fatos e relações de causalidade, em forma de juízos de

realidade, isto é, leis físico-sociais e bio-sociológicas, encadeamentos objetivos da

história, relações concretas individuais submetidas a um determinismo inflexível.

Enquanto “dever-ser” compreende regras e imperativos categóricos, normas de conduta

humana, o ideal ético dessa conduta derivado de tipos concretos e vitais da existência

sob a forma de juízos de valores, de proposições jurídicas (na sua dimensão normativa)

e morais. Há a coisa em si e há o mundo dos fenômenos; há uma ordem na natureza,

subordinada à causalidade mecânica, e uma ordem da liberdade das ações humanas

livres. Em Kant “ser” e “dever-ser” se integram numa categoria mais ampla: a da

realidade. Essa posição de Kant colocando o “ser” como inatingível pelo pensamento

humano trouxe influência ao pensamento jurídico, já que aquele permanece prisioneiro

de suas próprias formas subjetivas de pensar, enquanto que o “dever-ser” impõe-se à

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vontade humana. Influenciado por esse posicionamento, Hans Kelsen, na obra Teoria

pura do direito, reduziu o Direito a um mero “dever-ser”, sem relação com o “ser”,

confira-se no seguinte excerto:

“Do fato de algo ser não pode seguir-se que algo

deve ser , assim como do fato de algo dever ser

não pode seguir que algo é. O fundamento de

validade de uma norma apenas pode ser a validade

de uma outra norma” 12.

Quanto a Habermas, completaremos sua posição no que se refere a esse

dualismo entre “ser” e “dever-ser” no sub-capítulo 5.7. Agora, voltemos, pois, a Kant.

A extensão e a profundidade do “imperativo categórico” sustentam-se nos

conceitos de vontade, liberdade, autonomia, meios e fins, dignidade, universalidade,

dever, máxima, imperativo, entre outros. A “vontade” é pensada por Kant como a

faculdade de autodeterminação das próprias ações, segundo certas leis preconcebidas.

O exercício da vontade pressupõe por sua vez a “liberdade”, ou seja, a existência de um

espaço indeterminado dentro do qual a vontade consegue exprimir-se agindo,

perseguindo fins pré-fixados, com meio livremente selecionados. Para Kant a liberdade

não existe senão sob a forma de uma ideia, produzida pela razão. Ela não tem

“realidade” fora da razão, mas sem ela não haveria vontade. A razão é “prática” porque

se torna a causa determinante da vontade. Neste sentido a própria moralidade reside no

conceito da liberdade que se expressa na vontade. O conceito de “autonomia” está

inseparavelmente ligado à ideia da liberdade; e nele o princípio geral da ética encontra

sua forma de expressão mais adequada. A autonomia é definida no contexto da

liberdade e em contraposição à heteronomia. O mundo social ou dos costumes

representa o espaço indeterminado, a autonomia. A autonomia do sujeito se expressa

na sua capacidade de autodeterminação, na sua vontade legisladora de estabelecer e

concretizar fins no mundo social. Faz parte do imperativo categórico a exigência de

12 KENSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução João Batista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 215.

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que um ser humano jamais deve ser visto e usado como um meio, mas sim,

exclusivamente, como um fim em si. Isso significa que toda a legislação decorrente da

vontade legisladora dos homens precisa ter como finalidade o homem, a espécie

humana enquanto tal. Mais especificamente, a vida e a dignidade do homem. O

imperativo categórico orienta-se, pois, segundo um valor básico, inquestionável e

universal: a dignidade da vida humana. O “dever” é compreendido por Kant como

sendo a necessidade de uma ação por respeito à lei. Seguir uma lei por dever significa

seguir a instrução racional do imperativo categórico, que em outra formulação diz:

“Age segundo a máxima que possa simultaneamente transformar-se na lei geral”.

Os imperativos categóricos têm valor moral, enquanto que os imperativos

hipotéticos, nos quais se formulam as regras de ação para lidar com as coisas

(imperativos técnicos) e com o bem estar (imperativos pragmáticos), encontram-se fora

do âmbito da questão da moralidade.

Em suma, na filosofia kantiana, para agir moralmente devo pautar-me pelo

imperativo categórico e agir por respeito a uma regra que eu queria ver adotada numa

legislação universal. E, quando nos questionamos sobre as características particulares

dessa regra, a resposta será: a máxima universal. Ao aplicar o imperativo categórico de

Kant, cada qual se esforçará, salvo nos casos excepcionais em que semelhante

empreitada se mostra impossível, em propor como regras universalizáveis aquelas que

se respeita em seu próprio meio. De sorte que o imperativo categórico, e isso é

geralmente admitido, é compatível com variadas regras da moral prática.

Para Karl-Otto Apel, a história da ciência do ético encontra em Kant uma

reviravolta fundamental, posto que, pela primeira vez na história do pensamento

ocidental, se explicitou o princípio pós-convencional de universalização como princípio

que mudou pelas raízes o sentido da ciência do ético: Kant articula filosoficamente o

que caracteriza a fase evolucionária que gerou eticamente a modernidade, ou seja, a

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passagem de uma “vinculação piedosa” às ordens vitais tradicionais para uma

orientação livre em princípios universais13.

Manfredo A. de Oliveira14, em sua obra “Ética e racionalidade moderna”,

esclarece que, sob muitos aspectos, a ética comunicativa é uma tentativa de

reconstrução da ética kantiana através do espaço aberto pela teoria pragmática da

linguagem. A mudança básica em relação a Kant é a passagem do quadro categorial da

consciência moral solitária para a comunidade discursiva de sujeitos. Com isso, supera

a concepção kantiana da vontade autônoma, que abstrai da relação ética dos sujeitos em

comunicação. Pode-se dizer, a partir daqui, que em Kant as leis morais são universais

abstratamente, pois, se elas valem para mim universalmente, valem para qualquer

sujeito racional. Conclui o comentarista, “Ora, a mudança se revela precisamente no

fato de que não se pode decidir monologicamente sobre a racionalidade e a

universalidade das máximas em ação, mas só através do discurso, em que a única força

deve ser a do argumento. Assim, o modelo do discurso efetua uma ‘reinterpretação

procedurística’ do imperativo categórico: todas as máximas devem ser submetidas à

prova discursiva a respeito de sua pretensão de universalidade.” Na ética comunicativa

de Habermas e Apel, a questão é saber que interesses são universalizáveis, e isso só se

decide pela mediação do processo discursivo.

Habermas vai se valer, sobretudo desse contexto kantiano, na elaboração de

sua ética discursiva, como veremos adiante, contudo, é preciso esclarecer em que

condições se dá essa apropriação. É o que faremos a seguir.

13 OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Ética e racionalidade moderna. 3ª edição. São Paulo: Loyola, 2002, p. 35 - (Coleção Filosofia: 28). 14 ibidem, p. 65-66.

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CAPÍTULO II – A ÉTICA DISCURSIVA NO CONTEXTO DA

MODERNIDADE

2.1 – TEORIA DA AÇÃO COMUNICATIVA COMO UMA TEORIA

DA MODERNIDADE

A sociedade moderna, e agora a chamada pós-modernidade, avança a passos

largos. Desde que a máquina foi introduzida como esfera intermediária entre os homens

e a natureza, a humanidade passou a conhecer não uma, mas sucessivas revoluções

industriais. A produção industrial e a racionalização do trabalho avançam num processo

cada vez maior de abstração que vai desde o trabalho de homens transformados em

objetos técnicos até a possibilidade pós-industrial do sistema tecnológico controlar o

homem. Entramos na era da informática, ou da terceira revolução industrial que estende

a inovação tecnológica aos campos da robótica, telemática, cibernética, ...

É neste contexto que, mais uma vez, se coloca para a filosofia a tarefa de

pensar “o que é?”, não com uma finalidade puramente teórica, mas também como

compreensão das possibilidades que a realidade contém na perspectiva de uma

libertação.

É neste sentido que se situa a grande obra de Habermas “Teoria da ação

comunicativa”, na qual projeta uma teoria da modernidade em grande escala, na forma

de uma teoria da ação comunicativa, ou seja, Habermas empreende uma análise das

estruturas racionais da ação capaz de explicar, ao mesmo tempo, as deformações

patológicas que caracterizam a modernidade. Nesse sentido, apresentaremos a seguir,

como Habermas, a partir da racionalidade comunicativa, oferece um instrumento

conceptual capaz de compreender a sociedade atual, de criticá-la e de abrir novos

caminhos para a sua práxis transformadora.

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2.2 – DA AÇÃO TELEOLÓGICA PARA A AÇÃO COMUNITÁRIA

Antes de adentrar nesse tema, é importante aclarar, sinteticamente, a ideia

positivista e as posições éticas de Karl Marx e Max Weber, uma vez que são fontes

primordiais para Habermas e Apel na formulação de suas éticas discursivas. Suas teses

são acolhidas em diversas oportunidades, mas, em outras, veementemente refutadas. O

positivismo pensa em um mundo objetivo externo a nós, ou seja, pensa somente naquilo

que aparece, nos fenômenos. Na concepção marxista a realidade direciona-se para o

econômico, traz a ideia da práxis em que tudo é primordialmente determinado pelo

econômico. Para Weber não é assim. Para ele, o mundo está em constante

transformação. As realidades são múltiplas. Há infinitos sentidos. Não é possível dizer

qual o melhor sentido e menos ainda a verdade. Em Weber, a realidade é relativa,

caótica, não dá para absolutizar. Valem as representações, os valores, nunca a própria

coisa e tampouco existe uma única realidade, como queria Marx. As realidades são

tantas, quantas culturas houverem. É nesse contexto de contradições que Habermas

extrai elementos para a sua teoria comunicativa.

Max Weber é o primeiro autor clássico a que Habermas se refere que tratou

de “conceber a modernidade da sociedade da antiga Europa como o resultado de um

processo de racionalização histórico-universal”15. Ele funda a sua teoria da sociedade

sobre uma teoria das atividades racionais. O tema central é a modernização como

racionalização progressiva da sociedade a partir de sistemas de atividades socialmente

organizadas como a economia e a burocracia modernas. Mas ele estudou “os processos

de racionalização da sociedade só sob o ponto de vista da racionalidade teleológica”16,

isto é, a modernização é para ele a extensão progressiva ao conjunto da sociedade de um

tipo determinado de racionalidade que ele chamou de racionalidade teleológica

15 HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa. v. I. Madri/Espanha: Taurus, p. 197 – “a entender la modernización de la sociedad viejoeuropea como resultado de un proceso histórico-universal de racionalización.” 16 ibidem, v. I, p. 361 – “Weber sólo puede considerar como aspectos susceptibles de racionalización los que se siguen del modelo de la actividad teleológica.”

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(atividade racional com relação a um fim). A sociedade se moderniza na medida em

que submete as atividades, as relações e instituições sociais aos critérios de uma

racionalidade formal essencialmente orientada à eficácia estratégia e ao sucesso técnico

das empresas econômicas e políticas.

Habermas vê a origem desse reducionismo na identificação que ele fez de

fato entre racionalização como tal e a modalidade concreta realizada historicamente na

sociedade europeia. “Weber não hesitou em equiparar esta forma histórica de

racionalização como uma racionalização simplista”17, apesar de que na sua análise dos

processos históricos de desmitologização das religiões dispunha de um conceito mais

amplo de racionalidade, como esclarecido no início do capítulo. De fato, ele reconstroi

este processo como uma progressiva “diferenciação de três esferas de valor, obedecendo

cada uma delas a uma lógica própria”18: a cognitiva, a moral e a estética. Esta

reconstrução lhe permite chegar a um amplo conceito de racionalidade cultural que

inclui tanto a dimensão instrumental da ciência e da técnica como as dimensões práticas

da moral e da arte. Mas ao passar da análise cultural à sociológica, Weber reduz esse

conceito amplo à sua versão instrumental e teleológica.

Em consequência, Habermas entende que M. Weber não dispõe de um

instrumento adequado para explicar satisfatoriamente as patologias da sociedade

moderna. Os excessos da racionalidade instrumental não podem ser dominados

teoricamente com um conceito de racionalidade reduzida à sua forma teleológica. Para

tanto, seria necessário contrastar a nova forma de racionalidade desenvolvida no

capitalismo nascente com as possibilidades estruturalmente abertas por aquele amplo

processo de racionalização das religiões que Weber reconstruiu na sua análise cultural19,

mesmo assim ele prevê, como conseqüência da burocratização, uma reificação das

relações sociais que sufoca os impulsos motivacionais da conduta racional da vida.

17 ibidem, v. I, p. 291 – “Weber no vacila en identificar esta forma histórica de racionalización con racionalización social simpliciter.” 18 ibidem, v. I, p. 222 – “diferenciación de tres esferas de valor, cada una de las cuales obedece a su propia lógica.” 19 ibidem, v. II, 1987, p. 448.

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Habermas tentará tornar frutífero sociologicamente esse conceito amplo de

racionalidade do Weber culturalista, não, porém, transpondo-o sem mais para a sua

análise da sociedade, mas redescobrindo-o através da mudança de paradigma da ação

teleológica para o modelo de ação comunitária.

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2.3 - A SUPERAÇÃO DA FILOSOFIA DA CONSCIÊNCIA

Com Descartes, a metafísica realizou uma mudança de paradigma, do

pensamento do ser (ontologia) para a filosofia da consciência. Algo parecido é válido,

desde o século XVIII, para a teoria da moral e para a teoria do direito. Pergunta-se não

mais pelo “bom”, mas por formalismos que garantam o tratamento igualitário. No lugar

de uma filosofia normativa da moral e do direito, aparecem aqui as regras de

procedimento.

Para além disso, originam-se no século XIX as ciências histórico-

hermenêuticas, sobretudo a filologia, mas também a ciência histórica do direito e da

historicização da filosofia através de Hegel e seus discípulos. Os conceitos básicos de

validade aparentemente eternos são reconhecidos enquanto tal. Essa é a “irrupção da

consciência histórica”, que torna a metafísica algo temporal e com isso ultrapassável.

Um outro momento que levou à liberação da metafísica é a mudança de paradigma da

filosofia da consciência para a filosofia da linguagem20.

Por outro prisma, esclarece Xavier Herrero21, Adorno e Horkheimer

abandonam a teoria da consciência de classe e elaboram a sua teoria crítica da sociedade

na forma de uma crítica da razão instrumental, que retoma a ideia de reificação, mas

entendendo-a agora, não como alienação ligada à forma capitalista de produção, mas

como uma categoria histórico-universal, isto é, como a propriedade essencial e universal

do projeto de domínio do homem sobre a natureza, da razão sobre a realidade, que na

Dialética da Ilustração é identificado com o processo de civilização e de racionalização

ocidental. A racionalidade que dirige e anima esse processo equivale a uma instância

intrínseca e essencialmente instrumental que, por toda parte onde ela é atuada, engendra

reificação, tanto nas sociedades capitalistas como socialistas. A razão instrumental une

20 REESE-SCHÄFER, Walter. Compreender Habermas. Tradução Vilmar Schneider. Petrópolis/RJ: Vozes, 2008 (série Compreender). 21 HERRERO, Xavier. Racionalidade comunicativa e modernidade. in Revista Síntese nº 37 (1986), p. 13-32.

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e amalgama a racionalidade teleológica e a domina de tal modo que o resultado não

pode ser outro senão um mundo administrado, totalmente reificado. Ela não pode, pois,

orientar um processo de libertação.

Habermas vê a fraqueza desta teoria “em que ela reconduz a erosão do

mundo da vida ao encanto de uma racionalidade teleológica demonizada em razão

instrumental”22. Com isso, a crítica da razão instrumental cai na mesma senda da teoria

da racionalização de Weber, que é a própria irracionalidade, e, além disso, se priva dos

frutos positivos do processo de racionalização sistêmica. Habermas atribui essa redução

da razão “ao esgotamento do paradigma da filosofia da consciência”23. No horizonte da

filosofia da consciência, no qual a teoria crítica concebe a reificação, a referência do

sujeito ao objeto é concebida ou nos modos cognitivos do conhecer ou naqueles técnico-

práticos de produzir. Mas tanto o conhecimento como a produção são considerados

como processos instrumentais ou operações funcionais para o domínio do sujeito sobre

o objeto, da razão sobre a realidade. Assim, em princípio são excluídos da razão

precisamente aqueles aspectos de racionalidade que estariam em condições de

contrapor-se à mera instrumentalidade inerente aos processos de reificação.

Habermas abandona, pois, a teoria da reificação concebida em termos de

uma filosofia da consciência e substitui a referência ao horizonte da consciência pela

referência à linguagem como horizonte universal e intransponível. Através da análise

da linguagem ele introduz o paradigma da racionalidade comunicativa, com a qual

mostra que a racionalidade não se esgota em seus momentos instrumentais mas, ao

contrário, estes aparecem como formas particulares e casos limites da ideia de

racionalidade mais ampla que é a comunicativa. Essa mudança de paradigma

possibilitou a Habermas entrar em diálogo com as duas grandes correntes filosóficas do

século XX, quais sejam, a fenomenológica-existencial-hermenêutica e a empírica-

lógico-analítica, e apropriar-se dos seus resultados mais significativos. Ambas as

22 HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa. v. II. Madri/Espanha: Taurus, 1987, p. 471 – “... en que tiene que hacer derivar la erosión del mundo de la vida del embrujo de una racionalización con arreglo a fines demonizada en razón instrumental.” 23 ibidem, vol. I, p. 493 – “... por el agotamiento del paradigma de la filosofia de la conciencia.”

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correntes convergem na superação da filosofia da consciência pela descoberta da

linguagem, que passa a ser igualmente o novo paradigma, dentro do qual são

reformulados os problemas filosóficos. E a linguagem é vista, sobretudo na filosofia

analítica, na sua ligação com a práxis. Habermas se apropria destes dois elementos:

lingüísticos e pragmáticos, e mostra, ao mesmo tempo, as insuficiências das duas

correntes, e as reintegra numa nova estrutura, ou seja, na comunicação.

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CAPÍTULO III – A RECONSTRUÇÃO DE UMA RAZÃO MORAL

3.1 - RAZÃO COMUNICATIVA E RESPONSABILIDADE

SOLIDÁRIA

Adela Cortina24 esclarece que existe atualmente um grande esforço por uma

renovação da razão prática. Depois de ter sido silenciada, em nome da racionalidade

científica, erigida em critério absoluto, ela emerge novamente como uma necessidade

imperiosa. Uma das tentativas atuais mais promissoras de renovação da razão prática

encontra-se na forma de uma racionalidade comunicativa, em que se dá uma mudança

de paradigma, conforme esclarece Habermas, neste trecho da obra Direito e

Democracia:

“... após a implosão da figura da razão prática

pela filosofia do sujeito, não temos mais

condições de fundamentar os seus conteúdos na

teleologia da história, na constituição do homem

ou no fundo casual de tradições bem-sucedidas...

Por essa razão, eu resolvi encetar um caminho

diferente, lançando mão da teoria do agir

comunicativo: substituo a razão prática pela

comunicativa. E tal vai muito além de uma

simples troca de etiqueta” 25.

Sobre essa substituição da razão prática pela racionalidade comunicativa,

voltaremos a tratar adiante. Retornemos, pois, ao foco da questão proposta.

O predomínio moderno do cálculo e da eficiência provocou uma situação

24 CORTINA, Adela. Razón comunicativa y responsabilidade solidaria. Ética y Política en K.-O. Apel. Salamanca: Ed. Sígueme, 1985 (coleção: Hermeneia, 25). 25 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Vol. I. 2ª edição. Tradução Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 19.

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global inédita. As consequências da razão técnica, movida por uma ideia de progresso,

ameaçam a humanidade como um todo: ameaça de destruição por guerras, até mesmo

nuclear, ameaça de destruição do equilíbrio ecológico, ameaça de fome que se alastra

pelo mundo. O que está em jogo nesta nova situação é que nós nos encontramos

colocados diante da tarefa de assumir a responsabilidade solidária pelas consequências

de nossas ações a nível mundial. Isso significa que é a razão prática, e não a razão

técnica, que deve responsabilizar-se por esse desafio universal lançado pela ciência e

pela técnica. E a resposta para esse desafio é uma ética universalmente válida, ou seja,

os problemas morais de nosso tempo tornaram-se cada vez mais universais, exigindo

um posicionamento da filosofia sobre as possibilidades de fundamentação de uma ética

universal.

O fio condutor dessa tarefa coube a Jürgen Habermas, que juntamente com

Karl-Otto Apel, desenvolveram uma “ética dialógica” que se apresenta como uma das

éticas contemporâneas mais profundas do ponto de vista especulativo e mais próximas

das motivações e da consciência da vida quotidiana, e que se mostra capaz de alimentar

uma “política responsável e solidária”. Para enfrentar esse desafio é preciso encontrar

uma fundamentação filosófica de uma ética da responsabilidade, isto é, capaz de dar

razão das opções e valorações morais que os homens vivem já no seu mundo vital.

Reconhecem assim o “primado substancial” das normas do mundo vivido, mas atribui

ao discurso filosófico “o primado na ordem da fundamentação”. Em concreto, através

de uma reflexão transcendental sobre as condições de possibilidade de nossas ações com

sentido, será possível descobrir um princípio moral normativo, que todos os homens

compartilham implicitamente, e desenhar, a partir dele, os traços de uma ética

responsável e solidária que dará uma resposta ao grande desafio universal, uma ética

comunicativa e transsubjetiva, única capaz de superar as discriminações dos

estrategistas do “contrato” e dar respostas solidárias às ameaças universais. Assim a

ética proposta por Habermas e Apel se situa no cruzamento de duas tradições éticas: a

ética weberiana da responsabilidade e a ética da solidariedade socialista (Karl Marx).

É evidente a necessidade e a urgência de uma ética da responsabilidade

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solidária. Mas o grande desafio a enfrentar é o paradoxo que resulta da situação atual

que consiste, por um lado, na necessidade e, por outro, na impossibilidade de

fundamentar uma ética universalmente válida. A necessidade resulta das consequências

da razão técnica que ameaçam destruir a humanidade. Só uma razão prática

comunicativa poderá responsabilizar-se por esse desafio universal lançado pelas

ciências. A impossibilidade provém essencialmente de três correntes filosóficas atuais

que tratam exatamente de impedir a responsabilidade da razão prática: o cientificismo

positivista, o racionalismo crítico e o solipsismo metódico (a convicção liberal de que o

indivíduo é anterior à formação da sociedade). De maneira diferente, todas três tratam

de mostrar a impossibilidade de uma fundamentação de uma ética universal. A

conjugação das três correntes nos conduz ao sistema “ético”-político de

complementariedade da democracia liberal, que relega as decisões morais ao âmbito da

vida privada, e assim, não só não há razão prática pública que assuma as consequências

da técnica, mas essa mesma situação é legitimada de direito.

É indubitável que a fundamentação da ética da solidariedade tem que passar

por um debate com essas correntes com o intuito de mostrar como no interior delas já

está presente o que será o núcleo da ética. Na raiz da fundamentação da ética visada

encontramos Kant como pano de fundo na tentativa de reconstruir o “fato da razão” no

fato lingüístico da argumentação que, por ser inquestionável e intranscendível, constitui

o ponto de partida da ética da solidariedade. Assim, a pergunta kantiana pelas

condições de possibilidade do conhecimento se transforma na pergunta pelas condições

do sentido da argumentação. A exigência de universalização procederá agora não na

razão monológica, mas sim na razão dialógica. E o ponto supremo da reflexão

transcendental será agora a unidade de interpretação intersubjetiva (e não da

consciência). É justamente esse “nós” transcendental, do qual depende toda

racionalidade, que justifica a existência de um princípio moral que prescreve

categoricamente o reconhecimento recíproco dos interlocutores de toda argumentação

teórica ou prática. A lógica transcendental da consciência se transforma em pragmática

transcendental da linguagem. E o individualismo metódico se transforma em socialismo

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lógico que implica uma ética socialista.

Em que consiste essa fundamentação pragmático-transcendental da ética

argumentativa? Partindo da ciência e refletindo sobre ela, será necessário reconhecer

nela, para que a sua práxis tenha sentido, a presença de outros dois tipos de

racionalidade: a hermenêutica e a ética, como condição de possibilidade de toda

pretensão científica. Pela racionalidade hermenêutica, os sujeitos não se consideram

reciprocamente como objeto, mas como sujeitos que visam um entendimento sobre

algo. Pela racionalidade ética, os sujeitos se veem obrigados a assumir um modo de ser

de reconhecimento mútuo e de compromisso com a verdade. O passo seguinte é

descobrir que, para além da argumentação científica, existe o fato último e

intranscendível da argumentação que se desenvolve na linguagem ordinária e que

constitui o plano intransponível das linguagens e metalinguagens. Ora a argumentação

racional, pressuposta não só em toda ciência mas em toda discussão de problemas,

pressupõe a validade de normas éticas universais. Entre elas está a norma fundamental

de que todos os seres capazes de comunicação têm os mesmos direitos de intervir num

processo argumentativo e de defender com razões suas propostas. Com isso passamos

da ética da ciência para a ética da argumentação, e do socialismo lógico-científico ao

socialismo pragmático-universal, pois essa norma é universal e constitui o princípio de

uma ética solidária. O fato da argumentação nos revela que a razão é dialógica e que a

solidariedade lhe é conatural.

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3.2 - AS DETERMINANTES DA PRAGMÁTICA

TRANSCENDENTAL

Pela importância que a pragmática transcendental assume na ética

discursiva é interessante aprofundarmos um pouco mais no exame de algumas de suas

características tratadas por Apel e pelo próprio Habermas em suas obras. Para Apel a

pragmática transcendental realiza-se por via indireta e a prova indireta se dá através da

autocontradição performativa que difere da fundamentação pressuposta na metafísica

tradicional como algo derivado de algo. A autocontradição performativa ocorre quando

tentamos argumentar, por exemplo, que a argumentação é impossível; quando fazemos

isso já estamos argumentando e, dessa forma, provando justamente o que queríamos

refutar. Esse método de prova indireta já é encontrado em Platão e Aristóteles, embora

não tenham dado um papel muito importante a ele dentro de suas filosofias. O

argumento que nega a possibilidade do evento mostra, exatamente, a inevitabilidade da

situação de argumentação, como quando Aristóteles argumenta sobre a impossibilidade

de fundamentar o princípio de não contradição (cf. Metafísica IV 4 1006 a 5-27). Da

mesma forma, a única maneira de evitar a contradição performativa26 é reconhecer as

regras que regem o discurso argumentativo e agir de acordo com elas. Dessa forma,

aquele que aceita argumentar racionalmente ao questionar a validade do discurso ou

entra em contradição performativa ou cai em uma petição de princípio. Uma petição de

princípio ocorre quando se recorre à validade do que se pretende fundamentar na

própria demonstração para fundamentar sua validade. As premissas das quais recorre à

prova da validade dependem elas próprias da conclusão. Apel não cai em petição de

26 A contradição performativa foi introduzida na filosofia analítica para caracterizar um tipo especial de contradição que aparece em sentenças como “Chove, mas eu não acredito.” Se esta proposição for pronunciada por uma determinada pessoa, expressa efetivamente uma contradição: a pessoa afirma algo, mas retira na segunda parte da proposição sua afirmação. No entanto, isto naturalmente está articulado com o uso da palavra “eu”. Se supusermos, por exemplo, que é João da Silva que formula a frase, então ela é contraditória, mas se formuladas dintintamente por duas pessoas não há contradição: “Chove, mas João da Silva não acredita.” A tese propriamente dita de Apel e Habermas é que as condições da situação ideal de fala, portanto, do modo como já eram denominados em “Teorias da verdade”, possuem a dignidade de regras que, quando feridas dão como resultado uma contradição performativa.

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princípio porque sua demonstração não é dedutiva, ou seja, a pressuposição não precisa

ser tomada como premissa, já que se trata de uma demonstração indireta. O

reconhecimento das normas do discurso argumentativo pressupõe, portanto,

consequências práticas como a participação no diálogo crítico:

“... no qual cada participante do discurso, desde

o princípio, renunciou ao uso de métodos

estratégicos – por exemplo, retórico-manipulador

– de imposição ou imunização (ou dogmatização) de

opiniões próprias para a dimensão da razão

prática – ético-política – isto significa que

saibamos que todas as normas obrigatórias da

moral e do direito, em última análise, somente

podem ser legitimadas pela sua capacidade de

consenso entre todos os envolvidos num discurso

livre de violência. 27

Tal princípio é inevitável para toda pessoa que argumenta e para toda

pessoa que pensa. Aliás, a incontornabilidade da situação de argumentação é uma das

particularidades essenciais da pragmática transcendental. Essa condição permite a

fundamentação pragmático-transcendental da filosofia sem cair em contradição.

Assim, como aponta Manfredo A. de Oliveira, Apel constituiu com a pragmática

transcendental uma distinção entre dois tipos de fundamentação: a tradicional do

conhecimento por derivação e a fundamentação reflexiva.

“A alternativa apresentada pela pragmática

transcendental é substituir a derivação pela

reflexão (explicitação, tematização do

implícito): trata-se de, pela mediação da

27 APEL, Karl-Otto. Fundamentação última não-metafísica? In: STEIN, Ernildo e BONI, Luís A. de. (Orgs.). Dialética e liberdade. Petropólis: Vozes, 1993, p. 319.

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reflexão crítica sobre a estrutura e os limites

da dúvida sensata, buscar algo que, em princípio

não pode ser alcançado pela dúvida sensata e pela

argumentação crítica, porque é sua condição

necessária, que, portanto, não pode ser negado

sem que a própria dúvida se destrua a si mesma.

Trata-se, assim, de explicar os próprios

pressupostos da argumentação, suas regras, que

alguém, que argumenta, já sempre reconheceu para

poder argumentar.” 28

O argumento pelo método da prova indireta de Aristóteles e de Apel

apresenta o problema de uma refutação universalmente válida, já que é dependente de

uma situação fática de um discurso concreto. Ou seja, um cético real ou possível que

queira refutar o argumento. Dessa forma, na fundamentação reflexiva está pressuposta

uma situação pragmática, e não ideal. Pois, em uma situação ideal de fala orientada

para o consenso, já não está mais em questão a validade da situação de argumentação,

tampouco há espaço para o uso estratégico da linguagem. Assim, a universalidade da

fundamentação reflexiva deriva justamente da impossibilidade prática de refutá-la, de

uma transcendentalidade ao interior da linguagem contingente. A situação ideal de fala

surge como uma projeção dessa transcendentalidade eliminando o seu caráter fático.

Para Habermas a pragmática transcendental deve ser livrada de seus

próprios mal-entendidos transcendentalistas fundamentalistas e trasladada para uma

pragmática formal (universal) de pós-construção da base da validade da fala para uma

teoria abrangente da ação comunicativa.

De uma pragmática transcendental da linguagem passemos agora à teoria

dos atos de fala com a pragmática universal de Habermas. É necessário falar de uma

pragmática transcendental porque a linguagem se mostra como a metainstituição de

todas as instituições humanas. As suas regras são, pois, transcendentais. Enquanto tais

elas são já sempre aceitas pelos falantes ao menos implicitamente e, por isso, possuem

28 OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Sobre a fundamentação. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997, p. 71.

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uma força normativa e podem exercer uma função crítica. Trata-se, pois, de explicitar,

através da reflexão transcendental, as regras e elementos e de reconstruí-los num

sistema. A esses meios transcendentais do discurso argumentativo pertence uma norma

moral fundamental que constituirá a base da ética dialógica da responsabilidade

solidária: quem argumenta, esclarece Habermas, “atestou no ato e, portanto, aceitou que

a razão é prática, isto é, responsável pelo agir humano, o qual significa que as

pretensões éticas de validade da razão, do mesmo modo que suas pretensões de verdade,

podem e devem resolver-se mediante argumentos” e quem é capaz de argumentar pelo

só fato de argumentar demonstra-se capaz de responder por suas ações de um modo

dialógico na forma de argumentação. Assim, quem argumenta compartilha com uma

comunidade o sentido dos termos que emprega, segue as regras linguísticas da

comunidade e tem que recorrer a ela para discernir o verdadeiro e o correto. Temos,

pois, que a validade de qualquer proposição é determinada pela argumentação, que

busca estabelecer consenso fundado. Quanto aos discursos teóricos, é o princípio da

indução que liga as observações às hipóteses universais. A validação de normas

necessita de algo análogo, que Habermas vai buscar na “exigência de universalização”,

proposta por Kant. Assim, em sua teoria da ação comunicativa as normas só terão

validade quando exprimirem uma vontade universal, ou seja, tiverem o reconhecimento

de todos os implicados. É nessa perspectiva que Habermas interpreta o imperativo

categórico. Aqui se encontra a diferença entre Kant e a ética do discurso. Para Kant, a

validação é pensada monologicamente, à medida que uma reflexão puramente subjetiva

pode decidir a priori se a norma é legítima ou não. Para Habermas, o princípio de

validação depende de argumentações entre participantes de uma ação interativa. A

argumentação é tarefa comunitária e não solipsista. Portanto, a fundamentação aqui é

de ordem pragmático-linguística, isto é, as normas são justificadas num discurso público

a posteriori, conduzido de acordo com o princípio de validação normativa, dialógico,

apto a resolver as pretensões de validade da razão argumentativa. E para isso as regras

ideais de argumentação de uma comunidade ilimitada de pessoas que se reconhecem

com os mesmos direitos, constituem as condições normativas de possibilidade de toda

decisão correta. Isso significa que, em princípio, é possível um consenso sobre todas as

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questões éticas relevantes da práxis.

Mas uma norma que prescreve resolver mediante o diálogo argumentativo

as necessidades de todos os afetados pela decisão, não é só uma norma fundamental da

ética comunicativa, mas também o princípio moral-político de uma democracia integral,

enfatiza Habermas.

Esse é o quadro no qual se desenvolve a razão comunicativa.

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3.3 - CARACTERIZAÇÃO DA ÉTICA DISCURSIVA

O fato de a razão instrumental ter se tornado relevante, e de seu triunfo ter

como consequências o emotivismo e o niilismo, não significa tanto o fracasso, mas sim

o desvio com relação a ideais de liberdade, igualdade e fraternidade. Trata-se, então,

de reconstruir uma razão moral, que tem sua matriz na modernidade, a partir da ideia de

racionalidade, universalidade e exigibilidade. Nessa perspectiva se insere a ética

discursiva, com suas características cognitivista, universalista, instrumental,

deontológica e de princípios. Situada no nível pós-convencional do desenvolvimento

da consciência moral, sabe-se que não lhe cabe prescrever formas concretas de vida,

ideais de felicidade, modelos comunitários de virtude, e sim proporcionar os

procedimentos que nos permitam legitimar normas e, portanto, prescrevê-las com uma

validade universal. São, definitivamente, a pragmática universal (Habermas) ou

transcendental (Apel) e a teoria da ação comunicativa que hão de desentranhar o

mínimo de racionalidade necessário para exigir um mínimo universalmente normativo.

Porque ambas desvelam nos atos de fala as pretensões formais de validade — verdade,

correção, veracidade, inteligibilidade — que, mesmo sendo pragmaticamente

pressupostas em atos de fala imanentes a determinadas formas de vida, transcendem em

sua pretensão as formas concretas de vida, alcançando a universalidade. Quem quiser

questionar tais pretensões, com base no mundo concreto da vida, já as aceitou no

próprio momento em que as questionou. Na condição de hermeneutas críticos,

sabemos que as pretensões de validade, que configuram pragmaticamente nossos atos

de fala, possuem uma força crítico-normativa de alcance universal, que confere à

racionalidade comunicativa seu aspecto peculiar, que se transforma paulatinamente na

chave da fundamentação racional do direito positivo e na chave da ética. Quanto ao

direito positivo, surgido evolutivamente do direito sagrado, do direito burocrático e do

direito consuetudinário, que inspiraram mais tarde o direito natural e o direito racional,

Habermas lhe atribui um momento de intocabilidade, necessário para sua legitimação,

assim como um momento de instrumentalidade, próprio das funções que lhe competem.

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Outro tanto poderíamos dizer de uma ética discursiva que, buscando o amparo da

lógica do discurso prático, descobre as regras necessárias de reconhecimento recíproco

entre os interlocutores e, inclusive, a configuração contrafaticamente pressuposta de

uma situação ideal de fala, que desenha as condições ideais da racionalidade. Por fim,

o princípio da ética discursiva faz a validade de toda norma depender do consenso

racional entre os envolvidos por ela, um consenso no qual se demonstra a coincidência

entre os interesses individuais e os universais.29

29 CORTINA, Adela. Ética sem moral. Tradução Marcos Marcionilo. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 164-166.

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CAPÍTULO IV – ESTRUTURA E DESENVOLVIMENTO DA ÉTICA

DISCURSIVA

4.1 - A FUNDAMENTAÇÃO DA ÉTICA DISCURSIVA DE

HABERMAS

Vejamos a seguir, os principais traços da ética discursiva de Habermas e

suas origens.

Na sua obra Consciência moral e agir comunicativo (1983), Habermas

incluiu o ensaio “Notas programáticas para a fundamentação de uma Ética do

Discurso” (p. 61/141), no qual procura sintetizar os principais traços da ética

discursiva, delimitando sua teoria em face das contribuições de Apel, Tugendhat,

Wellmer, Rawls30, Hare e outros.

Em sua essência, a ética discursiva é uma tentativa de reconstrução da ética

kantiana em que a consciência moral do sujeito isolado e reflexivo desloca-se para a

comunidade linguístico-dialogal de sujeitos. Dessa forma, a argumentação, em uma

situação dialógica ideal na busca de um consenso, deve merecer o reconhecimento de

todos os implicados e, portanto, é tarefa comunitária e não solipsista. A ética

discursiva sugere que somente podem aspirar à validade aquelas normas que tiverem o

consentimento e a aceitação de todos os integrantes do discurso prático. Para que uma

norma tenha condições de tranformar-se em norma geral, aspirando validade universal

enquanto máxima de conduta de todos os participantes do discurso prático, os

resultados e efeitos colaterais decorrentes da sua observância precisam ser antecipados,

pesados em suas consequências e aceitos por todos. Isto ocorre através de um

procedimento argumentativo em que prevalece o melhor argumento, respeitados todos

os demais, à luz de sua maior coerência, justeza e adequação. O caráter universal de

30 RAWLS, John (1922-2002): Filósofo político do século XX. Professor em Havard. A sua teoria da justiça constitui, em grande parte, uma reação ao utilitarismo clássico.

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uma norma ou princípio moral qualquer só se evidencia se tal princípio ou norma não

exprimir meramente a intuição moral de uma cultura ou época específica, mas sim um

conteúdo que possa ter validade geral, fugindo a toda e qualquer forma de

etnocentrismo. Há críticos que discordam de Habermas. Afirmam que se corre o risco

de cair em um relativismo, pois cada comunidade linguística disporia da sua própria

verdade, ou seja, o que em uma cultura é considerado uma boa razão, pode ser

inaceitável para uma outra.

Apesar da ênfase dada ao caráter processual, ao procedimento dialógico,

argumentativo, a ética discursiva não é – na versão habermasiana – uma teoria

puramente formal. Ao contrário, Habermas sublinha que a ética discursiva parte da

extrema vulnerabilidade da pessoa, tendo como conteúdo a defesa da integridade e

dignidade dessa pessoa. No conteúdo, a ética discursiva permanece, pois, fiel às suas

raízes kantianas, quanto à forma, ela se reorienta pelo enfoque processual mediante o

qual esse conteúdo é buscado, reafirmado e consolidado pelo grupo. A ética discursiva

articula-se nos dois princípios que sempre constituíram o corpo da questão da

moralidade: a justiça e a solidariedade. A justiça se obtém buscando através dos

processos argumentativos, conduzidos pelos integrantes do discurso prático a norma

que defenda a integridade e invulnerabilidade da pessoa humana. Esse objetivo ou

valor, buscado processualmente, só se efetiva no grupo social, que através da

solidariedade recíproca assegura o bem estar de todos. A dignidade da pessoa só pode

ser realizada no grupo que concretizar o respeito mútuo e o bem estar de cada um,

assim como a autonomia do sujeito depende da realização da liberdade e da

solidariedade de todos.

Não é mais o sujeito moral kantiano que, seguindo seu dever, define

monologicamente o que possa ser considerado um princípio generalizável, mas sim o

grupo integrante de um discurso prático que dialogicamente elabora, à base do

argumento mais justo, correto, racional, o que possa ser considerado um princípio

universalizável. No procedimento argumentativo, todos os integrantes do discurso

participam, todas as vontades subjetivas são expressas, todas as críticas e ponderações

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são consideradas, todas as consequências práticas são antecipadas e todos os efeitos

colaterais de uma possível ação, pesados. O novo princípio regulador, a norma

universal que também será a máxima moral de cada um, não é um dado a priori, mas o

resultado último de um longo processo argumentativo, viabilizado pelo discurso

pratico.

A ética discursiva de Habermas pressupõe pelo menos três dados, ainda não

suficientemente explicitados: a competência comunicativa dos integrantes do grupo;

situações dialógicas ideais, livres de coerção e violência; e, finalmente, um sistema

linguístico elaborado que permita por em prática o discurso teórico e prático. Estes

pressupostos contrastam com os “dados” observados na realidade histórica. Habermas

enumera quatro: a fome no terceiro mundo, a tortura institucionalizada, o desemprego

crescente, mesmo nas economias mais avançadas do mundo ocidental, e as ameaças do

desequilíbrio ecológico que implicam na possível autodestruição da humanidade.

A solução desses problemas nem sempre se pode dar no contexto da ética

discursiva. Habermas, por isso mesmo, havia destacado outras formas de ação,

distintas da comunicativa, como a ação instrumental, que permitiria resolver

parcialmente os problemas da fome, do desemprego e do equilíbrio ecológico, naquilo

que esses problemas têm de técnico. Quando a ação instrumental e a comunicativa não

conseguem pacificamente resolver tais problemas, Habermas admite a ação estratégica,

cuja função primordial consistiria em estabelecer as condições materiais e políticas para

que a ação comunicativa e, no contexto dela, o discurso prático possa entrar em ação.

Além de Kant, onde mais Habermas se baseia para a teorização da sua ética

do discurso? O estruturalismo genético de Piaget e Kohlberg possibilita a Habermas

fundamentar parte dos pressupostos da ética discursiva acima mencionados: a

competência comunicativa, a situação dialógica ideal e a existência de um sistema

linguístico.

Como se dá essa subsunção? O pressuposto habermasiano, de

interlocutores competentes integrantes de um discurso prático encontra desse modo sua

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fundamentação teórica e empírica no estruturalismo genético, deixando de ser

pressuposto e transformando-se em conhecimento assegurado pela experiência. A

situação dialógica ideal é realizada e praticada na situação de jogo concreto e é

reconstruída mentalmente em cada nova ação ou situação de conflito. Piaget e

Kohlberg descreveram na prática e em situações experimentais a realidade e o

funcionamento da ética discursiva, sem lhe dar esse nome. Em sua releitura, Habermas

retoma esse assunto com a terminologia que criara em trabalhos anteriores e

consolidara na obra denominada Teoria da ação comunicativa.

O radicalismo democrático de Habermas, que se exprime em sua teoria

consensual da verdade e em sua teoria moral, encontra, pois, sua fundamentação

epistemológica e experimental no estruturalismo genético de Piaget e Kohlberg.

Mas, para o último pressuposto, a verdadeira base na qual todas as

atividades societárias se assentam, e sem o qual a sociedade contemporânea perderia

sua base real, que é a linguagem, Habermas não se vale do estruturalismo genético. Ela

assume na teorização habermasiana a função que Deus tinha nas éticas religiosas e que

a sociedade tem na teoria sociológica positivista. A linguagem é o ponto de partida e

de chegada de toda a reflexão da sociedade sobre si mesma, incluindo aqui o

conhecimento do mundo dos objetos e o conhecimento do mundo das normas. Como já

dito, Habermas não busca a origem da linguagem e a sua constituição dentro das

sociedades no estruturalismo genético de Piaget e Kohlberg, mas recorre a outros

autores como Apel, Wellmer, Gadamer, Bühler, Dilthey, Wittgenstein e a novas

orientações de pesquisa: pragmática universal, hermenêutica, filosofia da linguagem,

psico e sociolinguistica, entre outros, para melhor formular sua teoria.

Ao fundamentar dois dos pressupostos da ética discursiva, a saber, a

competência linguistica e a situação dialógica, o estruturalismo genético de Piaget não

esgotou suas possibilidades como grade interpretativa para a teorização de Habermas.

Em sua Teoria da ação comunicativa o autor parte de um quarto pressuposto,

estabelecendo uma analogia entre os processos evolutivos das sociedades históricas e a

psicogênese. Isso lhe permite interpretar os processos societários como processos de

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aprendizagem coletiva, tal como ocorre na psicogênese em que o conhecimento do

mundo pela criança caminha a patamares cada vez mais elevados e sofisticados, assim

também as sociedades históricas adquirem uma competência crescente para lidar com

seus problemas de sobrevivência e para controlar e equilibrar os conflitos e as

contradições internas. A teoria da ação comunicativa pode ser interpretada como uma

tentantiva de repensar e reordenar em termos piagetianos, o pensamento sociológico

produzido no decorrer do tempo. As teorias sociológicas clássicas e contemporâneas

representam para Habermas a gênese do conhecimento das sociedades sobre si mesmas.

Ao reorganizar esse saber, o autor identifica áreas de racionalidade comunicativa

embutida em nichos do sistema. Apesar da predominância, nas modernas sociedades

industriais, da razão instrumental, necessária para assegurar a reprodução material do

sistema, mas presente ilicitamente também nas áreas da organização política e cultural

da sociedade (mundo vivido), a razão comunicativa sobrevive hoje, institucionalmente,

na ciência organizada, nos parlamentos, tribunais, etc.

À psicogênese correspondem, pois, a sociogênese (processos evolutivos da

sociedade) e a gênese do conhecimento científico e crítico organizado (história da

ciência institucionalizada). Nestes processos o denominador comum é o aprendizado,

isto é, a capacidade crescente do sujeito, da sociedade e dos cientistas em lidar com os

problemas que enfrentam na realidade.

Este último pressuposto é fundamental para elucidar a teoria da

modernidade de Habermas. Sem incorrer no erro de Durkheim, confundindo as

sociedades reais com o ideal de sociedade, mas evitando também o pessimismo pós-

moderno à la Lyotard31, Habermas defende a sobrevivência da razão comunicativa no

contexto societário de hoje, exigindo a institucionalização do discurso teórico e prático

em todos os níveis e em todas as áreas da sociedade, ou seja, a renegociação

permanente, por parte de todos os membros da sociedade, da verdade do saber

31 LYOTARD, Jean François (1924-1998): Filósofo francês. Utiliza o conceito de “jogos de linguagem”, originalmente desenvolvido por Wittgenstein.

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acumulado e da validade das normas estabelecidas, assim como da veracidade de todos

os participantes do discurso.

A ética discursiva de Habermas é uma das peças-chave desse projeto de

radicalização democrática. A questão da moralidade confunde-se aqui com a questão

da democracia em sua versão original: o debate público de todos os cidadãos da pólis

na Ágora.

A moralidade, enquanto princípio que orienta a ação permite várias

abordagens, sugerindo um tratamento interdisciplinar. Aqui nos limitaremos à

abordagem discursiva. A delimitação do tema, como demonstrado anteriormente, está

centrado no estruturalismo genético de Piaget, que fornece os elementos para se pensar

adequadamente a questão, pois se calca na razão, inclui a sociedade na reflexão,

reconstroi a gênese do julgamento e considera fundamental o discurso. Por isso, Piaget

repousa em Kant, debate-se com Durkheim, prepara o terreno para Kohlberg e antecipa

a teorização de Habermas.

A condição da possibilidade da moralidade para o estruturalismo genético é

a autonomia moral, isto é, a faculdade do sujeito de autonomizar-se das leis e normas

que orientam a ação do grupo e de agir e julgar segundo um princípio interior ideal.

Este princípio não é dado a priori, fora da experiência, mas é o resultado de um longo

processo genético. A formação da consciência moral autônoma em Piaget não é o

reflexo, no sujeito, de leis sociais, mas um padrão moral construído e reconstruído

ativamente pela criança em sua interação permanente com o grupo. A autonomia moral

é o resultado de uma psicogênese bem sucedida do sujeito. Para alcançá-la, são

mobilizados processos internos de maturação e equilibração e processos externos de

transmissão cultural e educativa. A autonomia moral resulta da experiência vivida e

reorganizada permanentemente no interior da estrutura mental. Ao mesmo tempo que

se forjam os instrumentos de julgamento, são construídos os princípios ideais,

destilados das regras sociais que regulamentam a vida quotidiana no grupo.

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É ainda na obra Consciência moral e agir comunicativo que Habermas

esclarece que a filosofia moral não depende apenas de confirmações indiretas da parte

de uma psicologia do desenvolvimento da consciência moral, mas está assentada em

fundamentos filosóficos básicos, que passa a ilustrar com base no exemplo de Kohlberg.

Informa Habermas que Lawrence Kohlberg se situa na tradição do pragmatismo norte-

americano e tem clara consciência dos fundamentos filosóficos de sua teoria. A partir

da publicação de “A Theory of Justice”, de John Rawls32, Kohlberg utiliza-se sobretudo

dessa ética, que se liga a Kant e ao direito natural racional, na formulação de suas

concepções filosóficas, inspiradas inicialmente em Mead, sobre a “natureza do juízo

moral”:

“Essas análises remetem às características de um

‘ponto de vista moral’, sugerindo que o

raciocínio verdadeiramente moral envolve aspectos

tais como imparcialidade, universalizabilidade,

reversibilidade e prescriptibilidade” 33

São três os principais pontos de vista a partir dos quais Kohlberg introduz as

premissas tomadas de empréstimo à filosofia: a) cognitivismo, b) universalismo e c)

formalismo. Habermas se propõe a explicar, em primeiro lugar, por que a ética do

discurso é a que melhor se presta a explicar o ‘ponto de vista moral’ sob os pontos de

vista do cognitivismo e do formalismo e, em segundo lugar, mostrar em que medida a

ética do discurso requer o mesmo conceito do aprendizado construtivo com que operam

Piaget e Kohlberg e, com isso, ela se recomenda para a descrição de estruturas

cognitivas que resultam de processo de aprendizagem e, por último, a ética do discurso

32 RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. Tradução de Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2000. 33 apud HABERMAS, Jürgen.. Consciência moral e agir comunicativo. Tradução Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 146 – “These analyses point to the features of a ‘moral point of view’, suggesting truly moral reasoning involves features such as impartiality, universalizability, reversibility and prescriptivity”.

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também pode complementar a teoria de Kohlberg na medida em que remete, de sua

parte, para uma teoria do agir comunicativo34.

A partir desta síntese, Habermas35 minudencia a base em que se assenta a

ética do discurso. Inicia esclarecendo que “os três aspectos sob os quais Kohlberg tenta

aclarar o conceito do que é ‘moral’ são levados em consideração por todas as éticas

cognitivistas, desenvolvidas na tradição kantiana. A posição defendida por Apel e por

mim – diz ele - tem, porém, a vantagem de que as suposições básicas de ordem

cognitivista, universalista e formalista se deixam levar do princípio moral fundamentado

pela “ética do discurso”. Para esse princípio — afirma —, ofereci a seguinte

formulação:

(U) Toda norma válida tem que preencher a

condição de que as consequências e efeitos

colaterais que previsivelmente resultem de sua

observância universal , para que a satisfação dos

interesses de todo indivíduo possa ser aceita sem

coação por todos os concernidos.

(a) Cognitivismo – Visto que o princípio de universalização

possibilita enquanto regra da argumentação um consenso sobre máximas

passíveis de universalização, com a fundamentação de ‘U’ fica

demonstrado ao mesmo tempo que as questões prático-morais podem ser

decididas com base em razões. Os juízos morais têm um conteúdo

cognitivo; eles não se limitam a dar expressão às atitudes afetivas,

preferências ou decisões contingentes de cada falante ou ator. A ética do

Discurso refuta o cepticismo ético, explicando como os juízos morais

podem ser fundamentados. Com efeito, toda teoria do desenvolvimento

34 HABERMAS, Jürgen.. Consciência moral e agir comunicativo. Tradução Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 146-147 35 ibidem, p. 147-149.

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da capacidade de juízo moral tem que pressupor como dada a

possibilidade de distinguir entre juízos morais corretos e errados.

(b) Universalismo – De ‘U’ resulta imediatamente que quem

quer que participe da argumentação pode, em princípio, chegar aos

mesmos juízos sobre a aceitabilidade de normas de ação. Com a

fundamentação de ‘U’, a ética do Discurso contesta a suposição básica do

relativismo ético, segundo a qual a validez dos juízos morais só se mede

pelos padrões de racionalidade ou de valor da cultura ou forma de vida à

qual pertença em cada caso o sujeito que julga. Se os juízos morais não

pudessem erguer uma pretensão de validade universal, uma teoria do

desenvolvimento moral que pretendesse comprovar a existência de vias

de desenvolvimento universais estaria condenada de antemão ao fracasso.

(c) Formalismo – ‘U’ funciona no sentido de uma regra que

elimina, a título de conteúdos não passíveis de universalização, todas as

orientações axiológicas concretas, entrelaçadas ao todo de uma forma de

vida particular ou da história de uma vida individual e, assim, dentre as

questões valorativas do “bem viver”, só retém como argumentativamente

decisórias as questões de justiça estritamente normativas. Com a

fundamentação de ‘U’, a ética do Discurso volta-se contra suposições

básicas das éticas materiais, que se orientam pelas questões da felicidade

e privilegiam ontologicamente um tipo determinado, em cada caso, da

vida ética. Ao destacar a esfera da validez deôntica das normas de ação,

a ética do Discurso demarca o domínio do moralmente válido em face do

domínio dos conteúdos de valor culturais. É só a partir desse ponto de

vista estritamente deontológico da correção normativa ou da justiça que

se podem filtrar, na massa de questões práticas, as que são acessíveis a

uma decisão racional. É em vista dessa decisão racional que os dilemas

morais de Khlolberg estão formulados.”

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Essas três premissas básicas, tomadas de empréstimo à filosofia, não

esgotam, todavia, o conteúdo da ética do discurso. Enquanto que o princípio da

universalização fornece uma regra de argumentação, a ideia fundamental da teoria

moral de Kholberg, tomada à teoria comunicacional de G. H. Mead, exprime-se no

princípio da ética do Discurso (D), segundo o qual:

“Toda norma válida encontraria o assentimento de

todos os concernidos, se eles pudessem participar

de um Discurso prático”.

Assim, a ética do Discurso não dá nenhuma orientação conteudística, mas

sim, um procedimento rico de pressupostos, que deve garantir a imparcialidade da

formação do juízo. O Discurso prático é um processo, não para a produção de normas

justificadas, mas para o exame da validade de normas consideradas hipoteticamente. É

só com esse proceduralismo que a ética do Discurso se distingue de outras éticas

cognitivistas, universalistas e formalistas, tais como a teoria da justiça de Rawls. ‘D’

serve para nos tornar conscientes de que ‘U’ exprime tão somente o conteúdo normativo

de um processo de formação discursiva da vontade e, por isso, deve ser cuidadosamente

distinguido dos conteúdos da argumentação. Todos os conteúdos, mesmo os

concernentes a normas de ação, não importa quão fundamentais estas sejam, têm que ser

colocados na dependência dos Discursos reais. O princípio da ética do Discurso proíbe

que, em nome de uma autoridade filosófica, se privilegiem e se fixem de uma vez por

todas numa teoria moral determinados conteúdos normativos (por exemplo,

determinados princípios de justiça distributiva). No momento em que uma teoria

normativa, como a teoria da justiça de Rawls, se estende ao domínio dos conteúdos, ela

passa a valer tão somente como uma contribuição, quiçá particularmente competente,

para um Discurso prático, mas ela não pertence à fundamentação filosófica do ‘moral

point of view’ (‘ponto de vista moral’), que caracterizam os Discursos práticos em

geral.

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E, prossegue Habermas:

A determinação procedimental do que é moral já contém as suposições

básicas, que acabamos de examinar, do cognitivismo, do universalismo e do formalismo

e permite uma separação suficientemente precisa das estruturas cognitivas e dos

conteúdos dos juízos morais. Pois é possível depreender do processo discursivo as

operações que Kohlberg exige para juízos morais no plano pós-convencional: a

completa reversibilidade dos pontos de vista a partir dos quais os participantes

apresentam seus argumentos: a universalidade, no sentido de uma inclusão de todos os

concernidos; finalmente, a reciprocidade do reconhecimento igual das pretensões de

cada participante por todos os demais.

O reconhecimento é uma relação de reciprocidade, é ele quem permite a

aceitação mútua dos indivíduos num mesmo plano de universalidade, que os permite

apresentarem como “portadores ex aequo dos mesmos direitos e correspondentes

deveres (é o caso, por exemplo, do elenco dos direitos humanos na sua atual

enumeração), sendo ambos, como indivíduos pretensamente universais, proclamados

como fonte primeira de valor”.36

O ato de reconhecer é em essência ético, porque nos permite diferenciar

nossos semelhantes das coisas que nos rodeiam. Esse momento do reconhecimento é o

que permite a passagem da nossa subjetividade moral (ou do agir ético subjetivamente

considerado) para o momento do agir ético intersubjetivo. É na relação de

intersubjetividade como reconhecimento que “temos a identidade na diferença do Eu,

fazendo face à identidade na diferença do outro Eu, vale dizer, temos a afirmação

recíproca do outro como Eu”.37

Esses esclarecimentos acerca das bases da ética do discurso de Jürgen

Habermas nos permitem verificar como se processa a universalização e o consenso.

Sabemos que com ‘U’ e ‘D’ a ética do discurso privilegia características de juízos

36 VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Escritos de filosofia III. Filosofia e cultura. São Paulo: Edições Loyola, 1997, p. 149. 37 VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Antropologia filosófica II. São Paulo: Edições Loyola, 1992, p. 66.

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morais válidos que possam servir como pontos de referência normativos da via de

desenvolvimento da capacidade de juízo moral. Além de todo este suporte assentado

em Piaget-Kohlberg, podemos afirmar que Habermas, na sua ética do discurso se

propõe a uma dupla tarefa: primeiro deve ser fundamentado como obrigatório, válido

em bases pragmáticas aquilo que ele denomina princípio da universalização (U). O que

ele denomina como princípio de universalização é muito próximo ao imperativo

categórico de Kant, a não ser no fato de que este assenta-se no a priori (solipsismo),

enquanto que aquele no a posteriori (pluralidade). Em segundo lugar, quer mostar que

também vale um princípio “D” com caráter específico de ética do discurso, de acordo

com o qual todas as questões morais de conteúdo devem ser resolvidas na base de um

consenso que deve realizar-se num discurso real dos envolvidos. Como primeiro passo

Habermas quer mostrar que “nas regras do discurso não se tratam de convenções, mas

de pressupostos inevitáveis” da argumentação como tal.

Em suma, a moralidade kantiana começa com a liberdade mas termina com

a sujeição do sujeito ao imperativo do dever, o dever de subordinação da própria

vontade à vontade da lei (universal). A moralidade (autônoma) de Piaget começa com

a sujeição inquestionada e inconsciente da criança à lei heterônoma e termina com um

grito de independência em relação às leis que não decorrem de um processo

argumentativo fundado na cooperação e no consenso de todos. Se em Kant a máxima

que orienta a ação (o princípio subjetivo) se objetiva na lei universal, em Piaget a lei

externa se subjetiviza e se transforma em um princípio ideal e subjetivo que passa a

orientar a ação moral do sujeito. Essa é a ponte para a futura teorização de Habermas.

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4.2 – ÉTICA DISCURSIVA: MEDIADORA ENTRE

TRANSCENDENTALIDADE E HISTÓRIA

É possível acreditar que a ética discursiva possa possibilitar uma mediação

entre transcendentalidade e história, já que se apresenta como uma ética procedimental,

compatível com o pluralismo das crenças, que pode mediar condições transcendentais e

acordos fáticos, condições ideais e decisões reais. A lógica do discurso prático, no

sentido de Habermas, conduz-nos a certas regras, referidas por Alexy (Teoria da

argumentação jurídica, p. 194/195): 1) de uma lógica mínima ou exigências de

consistência, que se encontram no nível lógico-semântico; 2) pressupostos pragmáticos,

que descobrimos ao contemplar as argumentações como processos de acordo, que

consistem na busca cooperativa da verdade: aqui já aparecem regras de conteúdo ético,

que supõem relações de reconhecimento recíproco; 3) regras que configuram a

estrutura de uma situação ideal de fala, isenta da repressão e da desigualdade, na

medida em que a argumentação se nos apresenta como um processo de comunicação,

que há de satisfazer certas condições para alcançar um acordo racionalmente motivado.

Nesse âmbito, Habermas propõe as seguintes regras, em ligação com Alexy:

1. Todo sujeito capaz de falar pode participar dos discursos.

2. a) Toda pessoa pode problematizar qualquer asserção;

b) Toda pessoa pode introduzir qualquer argumento no discurso;

c) Toda pessoa pode expressar suas posições, seus desejos e suas

necessidades.

3. Não se pode impedir falante algum, mediante coação interna ou externa

ao discurso, de exercer seus direitos, expressos nas regras acima.

A partir dessas regras, entende-se que uma norma só pode ser acordada em

um discurso prático quando vale o princípio de universalização. Mas a ética discursiva

pode também recuar a um princípio — o princípio da ética discursiva: “Só podem

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pretender validade as normas que consigam (ou que poderiam conseguir) a aprovação

de todos os envolvidos, como participantes de um discurso prático”38. No entanto, o

próprio Habermas adianta que o discurso de legitimação comporta sempre algum grau

de falibilismo, por isso é preciso estar sempre aberto a novos questionamentos e,

portanto, a ulteriores justificações. Por outro lado, é necessário complementar o

discurso de legitimação por discursos de aplicação cuja principal função é atentar para

a relevância de circunstâncias concretas não previstas pelo procedimento discursivo de

legitimação responsável pela validação das normas. Habermas menciona na obra

Verdade e justificação: ensaios filosóficos39 uma “dupla reserva falibilista” da teoria do

discurso: “o acordo realizado ‘em dois níveis’ nos discursos morais de fundamentação

e aplicação está até mesmo sob uma dupla reserva falibilista. Retrospectivamente,

podemos nos dar conta tanto de que nos enganamos a respeito dos pressupostos da

argumentação como de que não prevemos certas circunstâncias relevantes”.

38 apud HABERMAS, Jürgen.. Consciência moral e agir comunicativo. Tradução Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 110-115. 39 Habermas, Jürgen. Verdade e justificação – ensaios filosóficos. Tradução Milton Camargo Mota. São Paulo: Edições Loyola, 2004, p. 292.

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4.3 - O CARÁTER REFLEXIVO DA ÉTICA DO DISCURSO

A ética do discurso é construída de forma reflexiva. Ela não fixa como

modelo uma ética considerada correta por Habermas, mas tenta, inversamente, detectar

na interpretação subseqüente, portanto, reflexiva do que nós já sempre fazemos em

processos comunicativos de entendimento, as precondições e os requisitos de um

entendimento bem-sucedido. A ética do discurso não precisa apregoar certos valores de

conteúdo, passíveis sempre de discussão como, por exemplo, os direitos humanos,

porém, ao invés disso, ela pode descrever numa perspectiva exterior caracterizável

como objetiva, quase jurídicas, os procedimentos do entendimento entre iguais. Quando

esses procedimentos efetivamente são executados, o resultado também teria que ser

considerado justo, ao passo que se poderia discutir interminavelmente sobre justiça

quanto ao conteúdo. Habermas apoia-se aqui estritamente no modelo jurídico: quando

ocorrer um procedimento legal, no qual ambas as partes forem ouvidas e as leis

observadas, também a sentença poderá ser considerada justa. Ela não precisará mais ser

determinada a partir de uma idéia substancialista de justiça, que cada um inferiu, de

acordo com sua própria concepção de justiça, a partir de suas interpretações individuais

do que ele ou ela considera direito.

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4.4 – ATOS DA LINGUAGEM ORIENTADOS PARA O

ENTENDIMENTO

Na Teoria da ação comunicativa, Habermas dedica expressivo espaço a

demonstrar que o uso linguístico orientado para o acordo é o modo originário de usar a

linguagem, e para tanto recorre à distinção introduzida por Austin40 entre atos

locucionários, ilocucionários e perlocucionários41. Depois de dialogar com diferentes

posições, ele chega à conclusão de que os efeitos perlocucionários só podem ser

alcançados com a ajuda de ações linguísticas quando estas são consideradas como

meios dentro do contexto de ações teleológicas que buscam o êxito. Constituem,

portanto, um sintoma de que as ações linguísticas se integral no contexto de ações

estratégicas. O objetivo do ato ilocucionário (o entendimento) é aqui utilizado para

alcançar objetivos não ilocucionários. O uso da linguagem orientado pelas

consequências não é, portanto, um uso linguístico originário, e sim o resultado de

inserir ações linguísticas, que perseguem metas ilocucionárias, no contexto de ações

que buscam o êxito. Objeções posteriores forçaram Habermas a rever sua teoria do

significado e a distinguir entre dois tipos de efeitos perlocucionários: aqueles que

surgem do conteúdo semântico daquilo que é dito e os que se produzem

contingentemente, de forma independente dos contextos regulados de modo gramatical.

Nessa perspectiva, todas as perlocuções deixam de poder ser coordenadas com a classe

de ações latentemente estratégicas. Estrategicamente pretendidos seriam unicamente os

efeitos que só são produzidos quando não se declaram ou quando se produzem

mediante ações linguísticas enganosas. Nesse caso, o uso linguístico orientado para o

entendimento põe-se a serviço de interações estratégicas. Estamos em face de um uso

40 O linguista alemão Wilhelm Von Humboldt (1767-1835) distingue três funções da linguagem: a cognitiva (representação de fatos), a expressiva (expressão e suscitação de sentimentos) e a comunicativa (comunicação de algo, levantamento de objetos etc) — uma distinção que antecipa em parte a teoria dos atos linguísticos de Austin — e foi talvez o primeiro a conceber a língua como um sistema de regras e, precisamente, como um sistema capaz de produzir a partir de um número de signos um número infinito de conceitos (apud PINZANI, Alessandro. Habermas. Porto Alegre: Artmed, 2009, p. 82). 41 HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa. Vol. I.Madri/Espanha: Taurus, 1987, p. 370.

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da linguagem orientado pelas consequências. As ações linguísticas podem, portanto,

ser estrategicamente utilizadas, mas o uso linguístico voltado para o acordo é o modo

de usar a linguagem, já que ela está essencialmente dirigida a provocar um acordo entre

os interlocutores. Entender-se de modo indireto — dar a entender ou deixar entender

— é, portanto, parasitário. Por isso, Habermas chega a afirmar:

“O acordo é inerente como telos à linguagem

humana. Linguagem e acordo não se comportam

reciprocamente como meio e fim, mas só podemos

esclarecer o conceito de acordo quando definimos

o que significa utilizar proposições com sentido

comunicativo. Os conceitos de fala e de acordo

se interpretam reciprocamente.” 42.

Segundo o próprio Habermas, isso não significa que falar seja uma ação

autossuficiente, que tem seu fim em si mesma, e que por isso há de se distinguir das

ações que pretendem um fim externo a si. Definitivamente, os interlocutores

pretendem suas próprias metas, que se coordenam por meio da linguagem. A

linguagem é originariamente encaminhada a alcançar um fim moral – a conjunção de

interesses, a união entre a vontade particular e a universal.

42 ibidem, v. I, p. 369 – “El entendimiento es inmanente como telos al lenguaje humano. Ciertamente que lenguaje y entendimiento no se comportan entre sí como medio y fin. Pero sólo podemos explicar el concepto de entendimiento si somos capaces de precisar qué significa emplear acciones con intención comunicativa. Los conceptos de hablar y entenderse se interpretan el uno al otro.”

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4.5 – A LINGUAGEM COMO PROCESSO DE COMUNICAÇÃO

INTERSUBJETIVA

A linguagem torna-se um processo de comunicação intersubjetiva, cuja

unidade elementar não é a proposição, mas o proferimento, isto é, a proposição inserida

numa normal interação lingüística. Com isso, o foco da investigação se desloca da

racionalidade cognitivo-instrumental para a racionalidade comunicativa. Paradigma

desta racionalidade não é a relação do sujeito isolado a algo no mundo, que pode ser

representado e manipulado, mas a relação intersubjetiva que assumem sujeitos capazes

de linguagem e de ação quando eles se entendem entre si sobre algo43. Com isso,

desloca-se também a problemática do conhecimento, própria da filosofia do sujeito,

para a problemática do entendimento mútuo em torno do qual se desenvolve o conceito

de racionalidade comunicativa. O entendimento é aquele processo de convicção

intersubjetiva que coordena as ações dos participantes de uma interação sobre a base de

uma motivação por razões44. Significa, pois, a comunicação que visa a uma

compreensão comum válida. A linguagem, enquanto meio de entendimento, apresenta

uma componente ilocutiva45, que cria uma relação intersubjetiva e uma componente

proposicional, objeto do entendimento. Porém todo entendimento supõe um sistema

comum de referência, no qual os participantes delimitam sobre o que é possível em

geral entender-se. Esse sistema de referência é composto por um tríplice conceito de

mundo: objetivo, social e subjetivo, que corresponde à tríplice função da linguagem de

apresentação, de interpelação e de expressão. É nesse sistema de referência que o

falante se refere em seus proferimentos a algo objetivo, normativo ou subjetivo46.

43 ibidem, v. I, p. 499. 44 ibidem, v. I, p. 114 e 499. 45 verbetes locutório: o conteúdo das orações enunciativas (‘p’) ou das orações enunciativas nominalizadas (‘que p’); ilocutório : o agente realiza uma ação dizendo algo, ou seja, fixa o modo como se emprega uma oração (‘M p’): afirmação, promessa, confissão, etc; perlocutório: o falante busca causar um efeito sobre o ouvinte, ou seja, mediante a execução de um ato de fala causa algo no mundo – ibidem, v. I, p. 370). 46 ibidem, v. I, p. 136-143 e vol II, p. 171.

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4.6 - AS PRETENSÕES DE VALIDADE REFERENTES A ALGO NO

MUNDO OBJETIVO, SOCIAL OU SUBJETIVO

O núcleo da teoria do agir comunicativo de Habermas e da correspondente

teoria da verdade pode ser resumido da seguinte forma: usar a linguagem significa,

essencialmente, avançar pretensões de validade que devem poder ser justificadas

discursivamente. Habermas esclarece que as afirmações pertencem à classe dos atos de

fala constatativos, são elas a forma tomada por uma proposição e não podem ser nem

verdadeiras nem falsas, mas sim legítimas ou ilegítimas. Verdadeira ou falsa é a

proposição que afirmamos, isto é, o conteúdo da afirmação. Por exemplo, cada vez que

afirmarmos que “O sol surge todos os dias”, avançamos implicitamente uma pretensão

de verdade da forma: “É verdadeiro que o sol surge todos os dias”. Esta afirmação pode

ser legítima, mas não verdadeira. O que é verdadeiro é que o sol surge todos os dias.

Portanto, a afirmação “O sol surge somente em alguns dias” é falsa, enquanto a

afirmação “É falso que o sol surge todos os dias”, é legítima. Neste encadeamento, ao

lado de uma teoria discursiva da verdade, Habermas elabora uma pragmática universal

cujo papel é expor as condições da comunicação. Nessa fase, o interesse de Habermas

volta-se inteiramente a questões de teoria da linguagem. Ao fazer isso, Habermas se

associa, em questões epistêmicas, a um realismo de cunho pragmatista. A esse realismo

pragmatista correspondem o seu cognitivismo e o seu construtivismo em questões

morais: assim como pretensões de verdade podem ser fundamentadas discursivamente,

tal fundamentação discursiva é possível também para pretensões relativas à validade de

normas. Cabe aclarar que, para Habermas, a teoria discursiva da verdade pressupõe

uma teoria da constituição da experiência, portanto, trata-se de uma verdade construída,

ou seja, o que existe é uma verossimilhança. Feita a ressalva, continuaremos a adotar

simplesmente a palavra “verdade”, como Habermas a usa, ou seja, sem adjetivação. Em

sua obra Teoria da ação comunicativa: complementos e estudos prévios, afirma: “minha

tese é que as relações pragmáticas do uso cognitivo da linguagem estabelece entre os

enunciados e a realidade dependem de uma constituição prévia dos objetos da

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experiência”. Neste sentido, conclui Delamar José Volpato Dutra, o problema da

verdade diz respeito à pragmática universal e o da objetividade à teoria do

conhecimento.

Na medida em que o entendimento se refere a algo no mundo objetivo,

social ou subjetivo, os participantes da interação reivindicam para seus proferimentos

quatro pretensões de validade, a saber, que o enunciado feito é verdadeiro; que a

interação é correta em relação a um contexto normativo em vigor; que a expressão

proferida é veraz, isto é, corresponde à intenção pretendida; e que o sistema simbólico

usado é compreensível. Falante e ouvinte (também este é participante da discussão)

procuram um consenso coordenador da ação, e este é avaliado criticamente pela sua

verdade, correção e veracidade, isto é, pela relação bem sucedida entre o ato de fala e os

três mundos, com os quais o agente entra em relação com seu proferimento, a saber,

com algo no mundo objetivo, como a totalidade das entidades sobre as quais são

possíveis verdadeiros enunciados; com algo no mundo social, como a totalidade das

relações intersubjetivas legitimamente reguladas; e com algo no mundo subjetivo, como

a totalidade das vivências acessíveis de modo privilegiado ao sujeito que pode proferir

verazmente para os outros47.

Seguindo Apel, Habermas introduz algumas condições que ele caracteriza

como “base de validade do discurso” e que cada um deve inevitavelmente preencher se

quiser participar de um processo de entendimento recíproco. Trata-se de quatro

condições:

1. O falante deve escolher uma expressão compreensível, para que falante e

ouvinte possam entender-se um com o outro;

2. o falante deve ter a intenção de comunicar um conteúdo proposicional

verdadeiro, para que o ouvinte possa compartilhar o saber do falante;

3. o falante deve querer enunciar sua intenção com veracidade, para que o

ouvinte possa [...] crer no enunciado do falante;

47 ibidem, v. I, p. 143-146 e vol. II, 169-172.

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4. finalmente, o falante deve escolher um enunciado correto em relação a

norma e valores existentes, para que o ouvinte possa aceitar seu enunciado e os dois

possam chegar a um consenso na moldura de um fundo normativo reconhecido como

válido.48

Isso deixa claro que o fim do entendimento é a criação de um acordo que

deve ser alcançado em um contexto intersubjetivo e por meio da satisfação das

condições anteriormente mencionadas. Estas últimas remetem, portanto, às quatro

pretensões de validade introduzidas:

1. compreensibilidade;

2. verdade;

3. veracidade; e

4. justeza.

48 apud, PINZANI, Alessandro. Habermas. Porto Alegre: Artmed, 2009, p. 86.

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4.7 – OS ATOS DE FALA E SUA CAPACIDADE DE PRODUZIR

CONSENSO

A capacidade dos atos de fala de produzir consenso ou de tornar aceitável ao

ouvinte a oferta de uma determinada relação interpessoal e, portanto, de uma

determinada coordenação da ação, reside no reconhecimento recíproco da pretensão de

validade levantada pela componente ilocutiva. Tal reconhecimento pode ser assegurado

na práxis quotidiana ao nível da normal interação linguística pelo conjunto de

convicções difusas e de esquemas cognitivos que constituem o mundo vivido partilhado

pelos agentes ou, no caso de dissenso irremovível, ao nível do discurso, onde é avaliada

e fundamentada a pretensão de validade controvertida. Habermas distingue então entre

discursos teórico, prático e explicativo, aos quais cabem a tarefa de fundamentar

respectivamente as pretensões universais de eficiência das ações instrumentais ou de

verdade dos proferimentos constatativos; de correção dos proferimentos regulativos; e

de compreensibilidade das expressões simbólicas proferidas. Ele distingue ainda entre

estética e terapêutica, referindo-se a primeira à preferibilidade dos valores culturais ou à

autenticidade de uma obra de arte, e possibilitando a segunda um processo de auto-

reflexão sobre a veracidade dos proferimentos expressivos49.

A racionalidade da ação comunicativa se baseia assim em atos de fala que

levantam pretensões de validade que podem ser criticadas e fundamentadas sobre a

força do melhor argumento. Na medida em que as pretensões de validade se referem

aos três conceitos de mundo, a sua criticabilidade e fundamentabilidade não se atribui só

a um saber de tipo cognitívo-instrumental, mas igualmente a um saber de tipo prático-

moral e prático-estético.

Habermas chega assim a uma racionalidade diferenciada, por um lado, em

esferas irredutíveis entre si na medida em que são distintas as pretensões de validade

49 HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa. Vol. I. Madri/Espanha: Taurus, 1987, p. 33-43.

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levantadas, as formas de argumentação e, consequentemente, os processos de

aprendizado requeridos para a justificação daquelas; mas, ao mesmo tempo, a uma

racionalidade unitária, não em sentido substancial, mas unicamente formal e processual,

enquanto “argumentos ou motivos têm ao menos isto em comum, que eles e só eles

podem desenvolver a força da motivação racional sobre os pressupostos comunicativos

de um exame cooperativo das pretensões hipotéticas de validade”50. A unidade da

racionalidade consiste, pois, em que o predicado racional só pode ser atribuído àquilo

para cuja justificação possam ser apresentados argumentos capazes de produzir

consenso entre os participantes da comunicação em virtude unicamente de sua

intrínseca plausibilidade.

Trata-se, portanto, de uma racionalidade comunicativo-consensual, que

inclui todo o potencial de racionalidade implícito nas três referências ao mundo, que

aparecem tematizadas por separado nas diversas teorias da sociedade51. Enquanto o

mecanismo da ação comunicativa funciona sobre a base do reconhecimento

intersubjetivo das pretensões de validade, as três referências ao mundo são assumidas

reflexivamente pelos mesmos agentes, na forma de pretensões de validade implícitas

nos seus proferimentos e, assim, estes “mobilizam expressamente o potencial de

racionalidade que, de acordo com as análises realizadas, encerram as três relações do

ator com o mundo, com o propósito, cooperativamente seguido, de chegarem a um

entendimento”52.

50 ibidem, v. I, p. 324 – “Y los argumentos o razones tienen al menos esto en común: que son ellos los únicos que bajo los supuestos comunicativos de un examen cooperativo de pretensiones de validez consideradas como hipotéticas pueden desarrollar la fuerza de motivación racional.” 51 ibidem, v. I, p. 499-500. 52 ibidem, v. I, p. 143 – “movilizan expresamente el potencial de racionalidad que, de acuerdo con los análisis que hemos realizado hasta aquí, encierram las tres relaciones del actor com el mondo, com el propósito, cooperativamente seguido, de llegar a entender-se.”

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4.8 - O CONSENSO COMO VIA DE TRANSIÇÃO PARA A AÇÃO

ESSENCIALMENTE ÉTICA

Como já vimos, a razão humana é conduzida por dois fins básicos, conhecer

e agir, expressos nas formas, razão teórica e razão prática. Esta última, que nos

interessa como guia da práxis humana acompanhada da razão, a qual em seu uso, seja

para guiar as ações no sentido em que ela aponta, seja para afastar do indicado por ela

como insensato, o ser humano torna-se ser moral e indivíduo ético. É ela a responsável

pela inserção do indivíduo na tradição ética à qual está necessariamente vinculado,

sendo que a primeira premissa aponta pela razão prática é justamente a impossibilidade

de uma vida ética construída e atualizada por um indivíduo solitário, o que nos impõe a

necessidade da comunhão expressa na tradição cultural53

Por ser imanente ao indivíduo, apontando para a necessária relação com o

outro, e decorrendo dessa relação, a objetividade (transcendente) da tradição, a estrutura

da razão prática se movimenta em três dimensões nas quais o indivíduo se manifesta

agindo eticamente, que se constituem como momentos da sua experiência ética: o

momento subjetivo, o intersubjetivo e o objetivo. Ou seja, a experiência ética do ser

humano passa por três momentos dialeticamente relacionados, referidos

necessariamente um ao outro.

O momento subjetivo é experimentado pelo indivíduo consigo mesmo,

refletindo sobre seus propósitos, o que quer para si, independentemente da inserção na

relação com o outro; o momento intersubjetivo é a experiência do outro “invadindo” a

nossa individualidade, negada como absoluta num primeiro momento e afirmada em

seguida, ao se confirmar que o eu só o é diante de outro eu. Os indivíduos na sociedade

não se chocam, mas se encontram, estabelecem propósitos recíprocos, valores, ou seja,

realizam encontros pessoais. Desses encontros passamos a experimentar o momento

53 LIMA VAZ, Henrique Cláudio de. Escritos de filosofia V. Introdução à ética filosófica 2. São Paulo: Edições Loyola, 2000, p. 141.

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objetivo que é a realidade objetiva que se impõe diante do indivíduo, comum ao seu

semelhante, que no dizer de Lima Vaz é “formada por leis, princípios, regras, expressos

no ethos e que não se modificam (ou não podem ser modificados) pelo arbítrio de cada

um”.

Para Habermas, a vida ética se forma no movimento de um no outro,

dialeticamente, de modo que o indivíduo só se realiza a partir de si mesmo, com seus

próprios critérios e condições subjetivas, mas que só se desenvolvem na vivência com o

outro (que é também condição essencial para que ele próprio exista como sujeito moral).

Nesse encontro de sujeitos morais forma-se o consenso sobre o que deve ser

considerado o melhor, que transposto para o plano da objetividade situa-se a lei

jurídica, como ponto de chegada da lei moral posta em diálogo, e que encontra seu

termo não apenas como universal concreto ou singularidade da ação individual, mas

como uma nova forma de universalização sob a forma de Direito.

Ao colocarmos o consenso como ponto de chegada do reconhecimento e

ponto de partida da colocação do direito como ordem objetiva central na realização ética

da sociedade, cabe referenciar o projeto filosófico comunitarista (que trataremos

adiante) arquitetado especialmente por Jürgen Habermas. Opõe-se fundamentalmente

às concepções universalistas da filosofia clássica e moderna, por supor que a grande

falha desses sistemas de pensamento é a não inclusão da variável comunicação, ou

diálogo, produtor do consenso, em suas doutrinas éticas, o que leva à

pseudocompreensão de que tal consenso dá-se como transcendência, e não como

imanência construída.

Essa nova vertente filosófica aposta no consenso ou numa concepção de

sociedade consensual como paradigma de construção de uma nova reflexão ética: que

tem por objeto um ethos discursivo ou que procede e se desenvolve por argumentações

e contra-argumentações, na formação de convicções e expectativas éticas (consenso

comunitário sobre o que é ou não válido moralmente). Para tanto, começa por substituir

o antigo conceito de razão prática pela razão comunicativa, incluindo no conceito de

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racionalidade o meio lingüístico. Para distingui-las, em primeiro lugar, temos que a

razão prática é normativa, vinculante da ação, comando dirigido à vontade, enquanto

que a razão comunicativa expressa a gênese ou o momento de formação do comando,

antes mesmo de submeter à vontade, encontrando as suas razões. A normatividade

pressupõe a racionalidade do imperativo, sob pena de ele não se efetivar.

“Normatividade e racionalidade cruzam-se no campo da fundamentação de

intelecções morais, obtidas num enfoque hipotético, as quais detêm uma certa força de

motivação racional, não sendo capazes, no entanto, de garantir por si mesmas a

transposição das ideias para um agir motivado”.54

As intelecções morais racionalmente motivadas pelo indivíduo devem ser

superadas num plano coletivo, no qual cada singularidade é dialetizada na outra,

formando uma nova intelecção compartilhada linguisticamente.

Tem-se que a razão prática é compreendida a partir do padrão interpretativo

da singularidade. Ainda quando se tem em mira a pluralidade, o modelo continua

sendo o sujeito individual em dimensões ampliadas. Como faculdade subjetiva, a razão

prática (individual) perpassa as interações sociais, visto que o sujeito é a verdadeira sede

de toda e qualquer conceptualização, tornando a sociedade uma mera união desses

sujeitos. Já a razão comunicativa toma o sujeito interagindo num meio formado

linguisticamente, pois é no ato da fala que buscamos o entendimento com alguém sobre

algo no mundo.

Ao contrário da razão prática, a razão comunicativa não está limitada a

atores singulares da ação, nem como indivíduos, nem como macroindivíduos

sociopolíticos. Ela é possibilitada pelo “medium lingüístico, através do qual as

interações se interligam e as formas de vida se estruturam”. O entendimento humano é

em si mesmo lingüístico e é nessa concepção de “linguisticidade” do intelecto que se

insere o conceito de razão comunicativa, que forma as condições que possibilitam e

54 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Vol. I. 2ª edição. Tradução Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 21.

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limitam ao mesmo tempo a compreensão e a ação dos indivíduos no tempo.55

Para que a interação entre os sujeitos capazes de falar e agir e de se

entenderem mutuamente sobre algo no mundo alcance o consenso, os sujeitos em

relação aceitam alguns pressupostos universais sobre os quais construirão a gama de

argumentos e contra-argumentos que formarão a comunhão de opiniões, São eles:

- o falante deve-se expressar de modo a se fazer compreender;

- sua comunicação deve buscar verdadeiramente o entendimento de algo por

alguém;

- deve expressar verdadeiramente suas reais intenções;

- deve manifestar-se de maneira correta (sintática e semanticamente) para

que torne possível o entendimento;

- não se deve simular uma discussão sobre preferências, pois que sobre elas

não há possibilidade satisfatória de crítica ou convencimento.

Resumidamente, são três as condições ideais estabelecidas pela ética da

discussão, para que um discurso possa ser validado racionalmente: que sejam

estabelecidas regras de consistência semântica necessárias para cada tipo de

argumentação; que se estabeleçam normas que organizem a conversação; e,

principalmente, que existam regras que assegurem a participação livre e igual de todos

sendo que está última representa a esperança de um consenso sem coação e

racionalmente motivado.56

55 ibidem, v. I, p. 20. 56 HABERMAS, Jürgen. apud GÜNTHER, Klaus. Uma concepção normativa de coerência para uma teoria discursiva da argumentação jurídica. Cadernos de filosofia alemã. Nº 6. São Paulo: Publicação do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo, 2000, p. 86-87.

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4.9 – PREMISSAS DO TERMO “MUNDO DA VIDA” ADOTADO

POR HABERMAS

Primeiramente, cabe um esclarecimento acerca do que Habermas entende

por “mundo da vida” (Lebenswelt). O termo “mundo da vida” foi introduzido por

Edmund Husserl, na obra A crise das ciências europeias, com o objetivo de contrapô-lo

ao pensamento científico predominante desde meados do século XIX e início do século

XX, em que a metodologia das ciências da natureza era a única forma possível de

conhecimento. Assim, o “mundo da vida”, pela posição fenomenológica de Husserl,

não se trata do mundo na atitude natural, mas é o mundo histórico-cultural concreto, das

vivências cotidianas com seus usos e costumes, saberes e valores, e que se contrapõe à

universalidade almejada pelas ciências positivistas. Habermas, ao formular sua teoria

do agir comunicativo, resgata o termo “mundo da vida” husserliana, mas, de certa

forma, afasta-se dele, como se nota no seguinte excerto:

“Não vou me deter aqui no método de Husserl, nem

no contexto que cerca a introdução de seu

conceito “mundo da vida”; eu me aproprio do

conteúdo material dessas pesquisas, estribando-me

na ideia de que também o agir comunicativo está

embutido num mundo da vida, responsável pela

absorção dos riscos e pela proteção da retaguarda de um consenso de fundo” 57.

Com relação a Heidegger, sua crítica à filosofia da consciência é

considerada positivamente por Habermas, pois “a consciência transcendental deve ser

submetida às condições de faticidade histórica e da existência intramundana, sem que

haja prejuízo de sua originalidade fundadora do mundo”58. Assim, ao colocar o Dasein

57 Habermas, Jürgen. Pensamento pós-metafísico. Estudos filosóficos. 2ª edição. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002, p. 86. 58 ibidem, p. 50-51.

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como constituinte do mundo, dissolve-se o conceito de subjetividade transcendental no

processo do ser-no-mundo. Por outro lado, Habermas censura em Heidegger o modo

como ele encara a própria constituição do mundo vivido. Segundo ele, isto acontece a

partir do ser-aí em seu operar prático para com o mundo. Em suma, para Habermas,

Heidegger depara-se com o mesmo problema enfrentado por Husserl, ou seja, como

construir, a partir da perspectiva de cada ser-aí, um ser-com, um mundo intersubjetivo.

Quanto a Wittgenstein, Habermas o critica por não ter construído uma teoria

geral dos jogos de linguagem, tarefa que, no entanto, diz ter cumprido com sua

pragmática universal. Por seu turno, Wittgenstein afirma que não há uma teoria comum

aos vários jogos, às várias formas de vida e nem é possível construir uma tal teoria.

Admite apenas semelhanças de família entre os jogos59.

Feito esse ligeiro preâmbulo, no livro Direito e democracia, Habermas volta

a afirmar que “o mundo da vida, do qual as instituições são uma parte, manifesta-se

como um complexo de tradições entrelaçadas, de ordens legítimas e de identidades

pessoais — tudo reproduzido pelo agir comunicativo.”60

59 WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. Tradução. 2ª edição. São Paulo: Abril Cultural, 1979, § 65-67 (Coleção: Os Pensadores). 60 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Vol. I. 2ª edição. Tradução Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 42.

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4.10 – A DESIDEALIZAÇÃO DO MUNDO VIVIDO

A partir de um conceito mais amplo de racionalidade, no qual a linguagem

com suas estruturas é condição de possibilidade da racionalidade comunicativa,

Habermas desenvolve o conceito complementar de mundo vivido que será

absolutamente determinante para a análise da sociedade contemporânea.

Enquanto na “teoria da competência comunicativa” Habermas mostrava os

atos de fala, as estruturas e a situação discursiva ideal da linguagem em seu estado puro,

agora, com a introdução do conceito do mundo vivido, ele de certo modo desidealiza

essa teoria. Com efeito, o mundo vivido é introduzido como correlato dos processos de

entendimento, pois os sujeitos que agem comunicativamente entendem-se sempre no

horizonte linguístico de um mundo vital partilhado por eles61. Este mundo forma o

horizonte contextual em que os sujeitos sempre se movem no seu agir. É nesse

horizonte que os agentes ordenam os contextos situacionais que se tornam

problemáticos através do “andaime formal” armado pelo tríplice conceito de mundo —

objetivo, social e subjetivo — e suas correspondentes pretensões de validade. Em

síntese, a linguagem e a cultura são os elementos que constituem o mundo vivido

(Habermas, Teoria da ação comunicativa, II, p. 170).

Assim, além da linguagem, o mundo vivido exerce também a função de

reservatório cultural, no qual são conservados os resultados das elaborações históricas

realizadas pelos processos de ação. Neste sentido, o mundo vivido armazena o trabalho

de interpretação feito previamente pelas gerações anteriores. Esta provisão de saber

fornece a seus membros convicções de fundo admitidas e compartilhadas sem

problemas. O mundo vivido “é o contrapeso conservador contra o risco de dissenso que

surge com todo processo atual de entendimento”62. A cultura é, pois, também

61 HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa. Vol. I. Madri/Espanha: Taurus, 1987, p. 104 e vol. II, p. 169-180. 62 ibidem, vol. I, p. 104 – “...es el contrapeso conservador contra el riesgo de disentimiento que comporta todo proceso de entendimiento que esté en curso”.

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constitutiva do mundo vital. Assim o mundo vivido é como que o lugar transcendental

em que falante e ouvinte se movem, onde eles podem levantar reciprocamente a

pretensão de que seus proferimentos se ajustam ao mundo objetivo, social e subjetivo,

onde eles criticam e confirmam essas pretensões de validade, suportam seus dissensos e

podem obter um acordo – “O mundo da vida é como tal constitutivo para o

entendimento, enquanto os conceitos formais de mundo formam um sistema de

referência para aquilo sobre o qual é possível entender-se: falante e ouvinte se entendem

a partir de seu mundo comum de vida sobre algo no mundo objetivo, social ou

subjetivo”63.

63 ibidem, v. II, p. 179 – “... el mundo de la vida le es constitutivo al entendimiento como tal, mientras que los conceptos formales de mundo forman un sistema de referencia para aquello sobre que el entendimiento es posible: hablante y oyente se entienden desde, y a partir de, el mundo de la vida que les es común, sobre algo em el mundo objetivo, en el mundo social y en el mundo subjetivo.”

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4.11 – CAMPO DE ARTICULAÇÃO DO MUNDO VIVIDO

Mas se o mundo vivido se refere à ação como o horizonte à situação, existe

também a relação inversa, a incidência da ação sobre o mundo vivido para a sua

reprodução, seja nas estruturas simbólicas, seja no seu substrato material. Em relação à

função de reservatório para a ação, o mundo vital se articula em três componentes

estruturais: cultura, sociedade e pessoa. Cultura entendida como “a provisão do saber

do qual os participantes da comunicação se abastecem com interpretações, enquanto

eles se entendem sobre algo do mundo”. Sociedade, como “ordenamentos legítimos

sobre os quais os participantes da comunicação regulam sua pertença a grupos sociais e,

assim, asseguram a solidariedade”. Personalidade, como “as competências que tornam

um sujeito capaz de linguagem e de ação, portanto, que o capacitam para participar em

processos de entendimento e para afirmar neles a própria identidade”64.

A cultura se renova através da reprodução cultural que permite a

continuidade e o crescimento do saber. A sociedade se reproduz através da integração

social, isto é, a coordenação da ação segundo regras reconhecidas intersubjetivamente, e

da produção de solidariedade dos grupos pela aquisição de capacidades generalizadas de

ação. A pessoa se reproduz na socialização, isto é, mediante o processo de formação da

identidade pessoal e da responsabilidade social. Assim, as estruturas simbólicas do

mundo vivido se reproduzem pela ação comunicativa que se estende na dimensão

semântica dos significados simbólicos pela continuidade da tradição e da coerência do

saber válido (racionalidade do saber); na dimensão do espaço social pela estabilização

da solidariedade dos grupos, e na dimensão do tempo histórico pela formação de

sujeitos capazes de responsabilidade.

Quando a cultura oferece suficiente saber válido para satisfazer a

necessidade de entendimento, o processo de reprodução cultural contribui para a

conservação das outras duas componentes com legitimações para as instituições

64 ibidem, v. II, p. 196.

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existentes e com modelos de comportamento eficazes para a formação da

responsabilidade. Quando a sociedade mostra uma solidariedade dos grupos capaz de

satisfazer a necessidade de coordenação da ação, o processo de integração social oferece

aos indivíduos atribuições sociais reguladas legitimamente e obrigações morais no plano

da cultura.

A partir do conceito amplo de racionalidade comunicativa, conseguida não a

nível ontológico nem a nível transcendental, mas como teoria da reconstrução das

competências universais comunicativas do gênero humano, Habermas está em

condições de conceituar a sociedade ligando os dois conceitos complementares de

“mundo vivido” e “sistema”, e de elaborar uma teoria da modernidade que explique o

tipo de patologias sociais com as quais nos defrontamos de modo mais visível. O

desdobramento desta teoria aparece na sua tese central da colonização do mundo vivido.

Um dos conceitos, o mundo vivido, constitui o espaço social em que a ação

comunicativa permite a realização da razão comunicativa calcada no diálogo e na força

do melhor argumento em contextos interativos, livres de coação. O outro conceito, o de

sistema, adota a perspectiva do observador externo à sociedade. É um conceito que não

se opõe ao de mundo vivido, mas o complementa. Com o seu auxílio é possível

descrever aquelas estruturas societárias que asseguram a reprodução material e

institucional da sociedade: a economia e o Estado. No interior do “sistema”, a

linguagem é secundária, predomina a ação instrumental ou estratégica.

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4.12 - COLONIZAÇÃO DO MUNDO VIVIDO

Uma teoria crítica da sociedade não pode deixar-se determinar pelas

correntes atuais de investigação nas ciências sociais que supõem ingenuamente como

seus objetos, âmbitos que são resultado do processo de modernização da sociedade e

que surgiram como consequência do afastamento do mundo vivido. As três correntes

principais que Habermas analisa — o cientificismo positivista, o racionalismo crítico e

o solipsismo metódico —, orientadas pela história da sociedade, pela teoria sistêmica e

pela teoria da ação na vida quotidiana65, ou não separam suficientemente os aspectos

sistêmicos dos do mundo vivido como a primeira, e então não aparecem as patologias

da modernidade como tais ou, como no caso da segunda e da terceira, isolam e

generalizam um dos aspectos, seja o do sistema e então a teoria se torna insensível às

patologias sociais, seja o do mundo vivido e então a teoria ignora a dinâmica própria

sistêmica do desenvolvimento econômico e da formação do Estado. A teoria da

modernidade de Habermas parte de um marco teórico mais amplo que resulta, por um

lado, da ampliação das bases da teoria da ação em direção a uma teoria da ação

comunicativa orientada para o conceito de mundo vivido da sociedade e para a

perspectiva evolutiva da diferenciação das estruturas do mundo vivido e, por outro lado,

do desenvolvimento da teoria da sociedade em direção a um conceito bipolar de

sociedade que sugere a perspectiva evolutiva de autonomização dos contextos de ação

integrados sistemicamente frente a um mundo vivido integrado socialmente66.

Tomando a sociedade a partir deste duplo conceito, Habermas pode captar tanto a lógica

dos agentes dentro do mundo vivido quanto à lógica funcionalística dos sistemas de

ação, pois ele pode distinguir a racionalização do mundo vivido, que resulta de sua

diferenciação estrutural, e a racionalização dos componentes da sociedade, que resulta

da intensificação da complexidade dos sistemas de ação. Assim, teoria sistêmica e

teoria da ação recompõem para Habermas a totalidade dialética analisada por Hegel e

65 ibidem, v. II, p. 544-546. 66 ibidem, v. II, p. 441.

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Marx sob os conceitos de sistema e eticidade, forças produtivas e relações de produção.

Na obra Direito e democracia, Habermas ao reconhecer a complexidade e

diversidade de contextos culturais, de ordens legítimas e de identidades pessoais, que

levam a mundos da vida plurais, tal que impossibilitam o papel estabilizador de

expectativas e de comportamentos, reformula seu conceito de direito e, nesses casos,

substitui a figura do mundo da vida (Lebenswelt), como estabilizador social, pelo

sistema jurídico legitimamente construído a partir de uma política deliberativa que

observe as garantias de participação dos afetados pelas normas na sua construção, pois o

direito, numa sociedade democrática e plural, permite o dissenso, a discordância, a

problematização, e admite regular os riscos advindos — tem-se, portanto, a tensão entre

facticidade e validade. Conclui Habermas, “no sistema jurídico, o processo da

legislação constitui, pois, o lugar propriamente dito da integração social.”67

67 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Vol. I. 2ª edição. Tradução Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 52.

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4.13 – O PROCESSO DE RACIONALIZAÇÃO COMO SUBSTRATO

DA LINGUAGEM

Enquanto a linguagem é portadora de uma instância de universalidade e de

racionalidade, o mundo vivido é perfeitamente maleável aos processos de

racionalização. Por isso, Habermas mostra que o desenvolvimento dessa racionalidade

se dá, em primeiro lugar, no âmbito da ação comunicativa. Esse processo configura-se

como um longo percurso marcado por etapas ligadas entre si por uma lógica interna

(que Habermas descobre com ajuda de G. H. Mead e D. Durkheim)68, através da qual a

linguagem assume cada vez mais a função de comando e libera o potencial de

racionalidade nela contido. O “telos” dessa racionalização do mundo vivido aparece

quando o consenso é conseguido unicamente através da linguagem, o qual não é apenas

meio de comunicação mas, ao mesmo tempo, sua norma imanente por causa dos

pressupostos implicados. Para Habermas, o que nos distingue da natureza é a

linguagem. O verdadeiro substrato do processo de racionalização são as estruturas da

racionalidade implicadas e pressupostas pela linguagem. Daí que o processo de

racionalidade do mundo vivido aparece então como um desenvolvimento através do

qual a linguagem desenvolve a sua lógica interna e chega a exercer a sua função

específica de produzir consenso sobre a base de pretensões de validade diferenciadas e

fundamentáveis racionalmente.

O uso da linguagem como meio do consenso provoca uma diferenciação das

estruturas do mundo vivido, entre sociedade e cultura, isto é, entre os sistemas de

instituições sociais e as visões do mundo; entre personalidade e sociedade no sentido de

que as relações intersubjetivas vão se independizando da regulamentação social; entre

cultura e personalidade na medida em que a tradição cultural vai sendo submetida à

crítica inovadora dos indivíduos, afirma Habermas.

Essa diferenciação estrutural é acompanhada de uma ulterior diferenciação

68 HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa. Vol. I. Madri/Espanha: Taurus, 1987, vol. II,

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entre forma e conteúdo. No plano cultural, destacam-se os elementos formais (como

conceitos de mundo, processos de argumentação, valores abstratos, ...) das imagens

míticas do mundo. No plano da sociedade, princípios universais são abstraídos dos

contextos particulares. No plano da personalidade, as estruturas cognitivas adquiridas

nos processos de socialização separam-se dos conteúdos culturais.

À diferenciação estrutural corresponde, finalmente, uma especificação

funcional dos processos de reprodução que assumem tarefas especializadas. São

significativos no âmbito da tradição cultural os sistemas de ação para a ciência, direito e

arte; no âmbito da integração social as modalidades de formação discursiva da vontade;

no âmbito da socialização e profissionalização nos processos de educação. Esta última

especificação leva consigo um desdobramento reflexivo da reprodução simbólica do

mundo vivido69.

Essa racionalização do mundo vivido, posta em movimento pelo potencial

implícito de racionalidade da linguagem e que origina uma diferenciação estrutural,

possibilita cada vez mais uma integração social baseada no mecanismo de uma

comunicação orientada para o entendimento como princípio coordenador da ação, isto é,

de uma comunicação orientada pelas pretensões de validade.

p. 7 e 154. 69 ibidem, v. II, p. 208.

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4.14 – PATOLOGIAS DA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA

A mesma racionalização do mundo vivido, na medida em que libera a ação

comunicativa do peso das prescrições normativas da tradição, permite a introdução de

novos mecanismos de coordenação da ação. Com efeito, a base material do mundo

vivido encontra o caminho livre para organizar-se de um modo novo. Ela desliga a ação

social dos processos de entendimento e passa a coordená-la através dos valores

instrumentais generalizados: dinheiro e poder, compreendendo Mercado e Estado, que

operam funcionalmente sobre as conseqüências dos atos e provocam uma substituição

do meio da linguagem por novos mecanismos sistêmicos de coordenação da ação. Pela

linguagem, a coordenação era assegurada pela possível satisfação argumentativa das

pretensões racionais de validade. Pelos novos meios, a coordenação remete a

recompensas ou desvantagens de tipo empírico, dando origem ao princípio sistêmico de

integração. A racionalidade comunicativa, orientada pela linguagem, é substituída pelas

racionalidades teleológica e cognitivo-instrumental dirigidas e controladas pelos novos

meios. Assim, dinheiro e poder, compreendidos como novos meios de comunicação,

possibilitam a coordenação das ações reduzindo-as ao âmbito estratégico.

Com o surgimento das sociedades capitalistas, Mercado e Estado não só se

consolidam como caminham para uma independência do mundo vivido e para um

processo de racionalização moderna, possibilitando a passagem da sociedade feudal à

sociedade burguesa, mas que, apesar da integração inicial, deu lugar às patologias da

sociedade contemporânea. A partir dessa conexão é que Habermas pode reinterpretar as

patologias modernas como deformações provocadas pela penetração da economia e da

administração no mundo vivido.

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4.15 – CONTRADIÇÃO ENTRE A AÇÃO ESTRATÉGICA E A

AÇÃO COMUNICATIVA

Habermas não aceita a explicação das patologias da modernidade em termos

de crítica da reificação, feita por Lukács nem de uma crítica da razão instrumental,

apresentada por Adorno e Horkheimer. A contradição aparece então “entre a

racionalização da comunicação quotidiana, ligada às estruturas intersubjetivas do

mundo da vida, para a qual a linguagem representa o meio genuíno e insubstituível de

entendimento, e a crescente complexidade dos subsistemas de ação racional teleológica,

nos quais dinheiro e poder, como meio de controle, coordenam as ações”70. A

contradição surge não entre dois tipos de ação comunicativa e ação estratégica, mas

entre dois princípios de integração na sociedade. O paradoxo weberiano da

racionalização pode ser concebido agora da seguinte maneira: “a racionalização do

mundo da vida possibilita um tipo de integração sistêmica que entra em concorrência

com o princípio de integração do entendimento e que, sob determinadas condições pode

retroagir com efeitos desintegradores sobre o mundo da vida”71. Quando o princípio

sistêmico de integração na sociedade chega a desintegrar o mundo vivido, temos o que

Habermas chama a colonização do mundo vivido pelo sistema, que é o traço

característico do processo histórico de racionalização ocidental. Em que condições se

dá essa colonização do mundo vivido?

Vimos antes que um mundo vivido amplamente racionalizado é condição

inicial para o deslanchamento do processo de modernização. Dinheiro e poder,

ancorados no mundo vivido através do direito, possibilitam a diferenciação dos aspectos

econômico e administrativo. Sobre essa diferenciação sistêmica surgiram as sociedades

70 ibidem, v. I, p. 437 – “... entre la racionalización de la comunicación cotidiana, ligada a las estructuras intersubjetivas del mundo de la vida, para la que el lenguaje representa el medio genuino e insustituible de entendimiento, y la creciente complejidad de los subsistemas de acción racional con arreglo a fines en donde coordinan la acción medios de control como el dinero y el poder.” 71 ibidem, v. I, p. 437 – “... la racionalización del mundo de la vida hace posible un tipo de integración sistémica que entra en competencia con el principio de integración que es el entendimiento y que, bajo determinadas condiciones, puede incluso reobrar con efectos desintegradores, sobre el mundo de la vida.”

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modernas, primeiro capitalistas e, em oposição a elas, as socialistas. A modernização

capitalista avança na medida em que o sistema econômico se independiza e se torna

princípio de organização da sociedade. No processo de modernização socialista, ao

contrário, o sistema administrativo adquire uma autonomia semelhante em face do

sistema econômico, baseado na estatização dos meios de produção e do domínio de um

único partido. Na medida em que se consolidam esses dois princípios de organização

da sociedade, surgem as relações de troca entre ambos os sistemas — capitalista e

socialista — e as correspondentes esferas privada e pública do mundo vivido.

Ora, nas sociedades assim modernizadas, as perturbações da reprodução

material do mundo vivido assumem a figura de desequilíbrios sistêmicos que agem

imediatamente provocando crises ou patologias no mundo vivido72.

Passemos a uma reflexão sobre a ética do discurso no contexto do Direito.

72 ibidem, v. II, p. 545.

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PARTE II – O DIREITO COMO UM MEIO PARA A VALIDAÇÃO

DA ÉTICA DISCURSIVA E A VERIFICAÇÃO DE SUA FACTICID ADE

CAPÍTULO V – O DIREITO E A ÉTICA DISCURSIVA

5.1 - A ÉTICA DISCURSIVA E SUA RELAÇÃO COM OUTROS

SABERES PRÁTICOS

Como já vimos, a ética discursiva foi se configurando a partir dos anos

1970 como um dos raios do denso núcleo filosófico constituído pela pragmática formal

(transcendental ou universal), a teoria da ação comunicativa, uma nova teoria da

racionalidade, uma teoria consensual da verdade e da correção e uma teoria da

evolução social. A partir desse núcleo teórico-prático, a ética discursiva mantém

excelentes relações com outros saberes práticos, tais como o direito, a política e a

religião, a ponto de, nos últimos tempos, ela vir trabalhando inclusive em uma filosofia

do direito, em uma teoria dos direitos humanos e inspirando a ideia de um Estado de

direito. Quanto a suas relações com a religião, elas são, na superfície, de convivência

pacífica, mas em profundidade a ética discursiva se viu acusada de constituir até

mesmo uma “religião civil”.73

A práxis linguística mostra que é impossível as pessoas subsistirem sem

uma trama de relações intersubjetivas, sem um mínimo de reconhecimento recíproco

entre os participantes em uma linguagem, que os habilite a se considerarem

mutuamente como pessoas. A justiça é, então, necessária para proteger os sujeitos

autônomos, mas igualmente indispensável é a solidariedade, porque a primeira postula

igual respeito e direitos iguais para cada sujeito autônomo, enquanto a segunda exige

empatia e preocupação com o bem-estar do próximo: os sujeitos autônomos são

73 CORTINA, Adela. Ética sem moral. Tradução Marcos Marcionilo. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p.

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insubstituíveis, mas também o é a atitude solidária de quem reconhece sua inserção em

uma forma de vida compartilhada. Assim, uma ética política que faz justiça à realidade

social é aquela que colabora na formação de homens autônomos e solidários,

distanciados tanto de um coletivismo homogeneizador quando de um individualismo

sem identidade.

164.

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5.2 - A CONCEPÇÃO DISCURSIVA DO DIREITO

Habermas pretende dar conta da legitimidade do direito a partir de uma

perspectiva discursiva, o que remete ao conceito de racionalidade comunicativa. Tal

conceito é reconstruído na obra Teoria da ação comunicativa, a partir dos

desdobramentos da própria filosofia da linguagem, perpassando vertentes como a do

segundo Wittgenstein, bem como a filosofia da linguagem ordinária de Austin e

Searle74. Na base dessa adoção Habermas se valeu do linguista norte-americano Noam

Chomsky (1928- ) cuja teoria gramatical representa o fundo da pragmática universal da

ética discursiva. Chomsky, na obra Linguística cartesiana desenvolve a ideia de que “a

gramática universal” significa uma única gramática que é subjacente a toda língua

humana, enquanto Foucault, ao contrário, em As palavras e as coisas, nos lembra que

prevalece uma “gramática universal” de cada linguagem particular, não necessariamente

pertinente a qualquer outra linguagem. Por outras palavras, para Foucault, a linguagem

é um campo de batalha, o que impossibilita acordos universais. Nesse contexto,

linguagem para Habermas é uma coisa, para Foucault outra. Feito esse esclarecimento,

vejamos como se dá a concepção discursiva do direito.

Para John Rawls, o direito deve proporcionar justiça, isto é, ser capaz de

promover uma sociedade justa e bem ordenada, mesmo sob os imperativos da

modernidade. Cidadãos racionalmente motivados acatam princípios imparcialmente

avaliados, aderem a eles, de modo que a vida sob instituições justas produz disposição

para a justiça. O problema é como chegar a esse nível, através de que instituições o

direito passa a ter função integradora. Pela proposta contextualista de Rawls, os meios

de obter justiça são a prática jurídica, o consenso político, o pluralismo de opiniões e

modos de vida.

74 apud DUTRA, Delamar José Volpato. Razão e consenso em Habermas: a teoria discursiva da verdade, da moral, do direito e da biotecnologia. 2ª edição revista e ampliada. Florianópolis: Editora da UFSC, 2005, p. 190.

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Nessa linha, Habermas dá ao direito a função de introduzir a ação

comunicativa, cujo solo é o mundo vivido, no sistema que se subsume em poder político

do estado e poder econômico. A ordem legítima leva a internalizar valores que

orientam o comportamento não pela coação externa, e sim por decisões em que pesam

os valores considerados em si mesmos. Essa validade ideal, segundo Weber, recebe o

assentimento de todos, porém, para realizá-la requer-se uma autoridade reconhecida por

todos, portanto, legítima. Assim, o direito tem função administrativa, estabelece as

regras. Habermas considera que o direito, na modernidade, exerce não só essa função

reguladora, mas também uma função integradora.

O pressuposto é o de que a sociedade civil assegura os direitos a todos os

sujeitos livres e iguais. A integração social se dá pela ordem jurídica que regula o

sistema. Essa ordem institucionaliza-se no mundo vivido. A organização social

democrática moderna possui um sistema jurídico que protege a vida, a liberdade e a

propriedade, dá direito de participação política pela formação da vontade e da opinião.

Todavia, há grandes dificuldades para implementar essas exigências e exercê-las.

Geralmente prevalecem os interesses privados, dirigidos pelo mercado, pela burocracia,

pelo clientelismo.

Sobre isso, afirma Habermas:

“Os sistemas da economia e da administração têm a

tendência de fechar-se contra seus mundos

circundantes e de obedecer unicamente aos

próprios imperativos do dinheiro e do poder

administrativo. Eles rompem o modelo de uma

comunidade de direito que se determina a si

própria, passando pela prática dos cidadãos. A

tensão entre um alargamento da autonomia privada

e cidadã, de um lado, e a normalização

foucaultiana do gozo passivo de direitos

concedidos paternalisticamente, de outro lado,

está introduzida no status de cidadão das

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democracias de massa do Estado social” 75.

Essa situação representa uma dificuldade a mais, um outro tipo de tensão

entre facticidade e validade, quer dizer entre o que de fato ocorre e o que se espera

como ideal social. O direito se forma através de um saber cultural e é componente

indispensável da sociedade; enquanto conjunto de proposições e interpretações

normativas o direito se alimenta de um tipo de saber bem fundamentado e articulado

com princípios morais, e desse modo favorece a ação comunicativa. O mundo vivido

como rede de ações comunicativas, que se forma em correlação com a tradição cultural,

com as ordens legítimas e indivíduos socializados, dá conta de uma perspectiva não

desoladora da modernidade. Segundo a teoria habermasiana da ação comunicativa, o

direito pertence à rede do mundo vivido, notadamente à da ordem social, mas tem

relação com a cultura e a personalidade, faz parte da comunicação cotidiana,

integradora, e serve como uma “linguagem” para levar os anseios do mundo vivido,

especialmente justiça e solidariedade, para o sistema econômico e para a administração

pública.

Habermas sustenta até mesmo que “a linguagem do direito pode funcionar

como um transformador na circulação da comunicação entre sistema e mundo da vida, o

que não é o caso da comunicação moral, limitada à esfera do mundo da vida”76.

Diante das regras econômicas, o direito assume uma função integradora,

garante os direitos e a autonomia do cidadão. Com isso, estabelece-se um fluxo entre a

liberdade pessoal, subjetiva e a autonomia, isto é, entre o privado e o público. A

autonomia não é autêntica se estiver sob os pressupostos da filosofia da consciência,

como em Kant ou em Rousseau. A autonomia não pode se basear na pessoa do cidadão

privado, singular, protegido por leis, nem no povo ao qual cabe realizar a história

75 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Vol. I. 2ª edição. Tradução Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 109-110. 76 ibidem, v. I, p. 112.

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(Hegel), mas em pessoas formadas discursivamente, com opinião e vontade expostas no

uso da linguagem voltada para o entendimento.

A razão e a vontade, formam as convicções acerca das quais há acordo

obtido pela discussão entre todos, e nunca pela posição externa ao discurso. Este

embasa a vontade racional, principalmente a da opinião pública; é pelo discurso que

passa toda situação problemática. O direito é o meio de que se vale o discurso para, a

cada vez que surgem problemas, servir como meio para a aplicação apropriada de

normas e regulamentos. Os direitos humanos (autonomia privada) e a soberania

(autoridade política) se articulam em forma de comunicação que legitimam leis e sua

institucionalização.

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5.3 - O RACIOCÍNIO PRÁTICO E O DIREITO

Chäim Perelman77 78, em sua obra Ética e direito, esclarece que o raciocínio

prático se insere numa ordem que comporta valores e normas aceitas, assim como

situações de fato que, por sua duração e graças à prescrição, se transformam em

situações de direito, em precedentes que se têm de levar em conta, situações e

precedentes que impõem o ônus da prova e da justificação àqueles que quiserem

modificá-los. Para essa área tão diferente da lógica e da teoria do conhecimento

tradicionais, existe uma disciplina, cuja análise permitiria tornar evidentes as

características do raciocínio prático, a saber: o direito79, desprezado pelos filósofos,

tanto empiristas quanto racionalistas, que não quiseram reconhecer senão um modelo de

raciocínio digno do interesse do lógico, o raciocínio teórico ou científico. Mas, se

reconhecermos a especificidade do raciocínio prático, admitiremos sem dificuldade a

insuficiência dos modelos extraídos do raciocínio teórico. Situaremos então o

raciocínio prático na perspectiva que lhe convém, a de um pensamento intimamente

vinculado à ação, que visa à coexistência pacífica de uma pluralidade de seres livres.

Vejamos porque isso é importante para a ética discursiva de Habermas.

77 PERELMAN, Chäim (1912-1984): filósofo da área do direito e da retórica. Foi um dos mais importantes teóricos da retórica do século XX. Sua principal obra “Tratado da argumentação (1958), escrito em conjunto com Lucie Olbrechts-Tyteca 78 PERELMAN, Chäim. Ética e direito. Tradução Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. 2ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2005. 79 ibidem, p. 62.

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5.4 - DISTINÇÃO ENTRE MORAL E DIREITO

Tradicionalmente, os estudos consagrados às relações entre o direito e a

moral insistem, dentro de um espírito kantiano, naquilo que os distinguem: o direito

rege o comportamento exterior, a moral enfatiza a intenção, o direito estabelece uma

correlação entre os direitos e as obrigações, a moral prescreve deveres que não dão

origem a direitos subjetivos, o direito estabelece obrigações sancionadas pelo poder, a

moral escapa às sanções organizadas. Mas, onde entraria a ética? Os princípios

fundamentais da moral, sejam eles deontológicos ou teleológicos, sejam eles formalistas

ou utilitaristas não são contestados in abstrato. Porém, tão logo se trata de aplicá-los a

circunstâncias concretas, dão azo a infinitas controvérsias. Neste trabalho, não se

apresenta relevante a distinção entre ética e moral. Usamos-as indistintamente, ainda

que, em determinadas situações, possam soar com conotações distintas.

O acréscimo fundamentalmente jurídico do direito à vida ética é a coerção, e

aí reside sua condição de realidade ética: suprir a moral em sua carência coerciva

objetiva, não obstante a coerção subjetiva inerente à moral, seja pelo temor seja pelo

remorso.

Normalmente a consciência moral individual já se posiciona perante o

direito como se essa ordem normativa fosse um coator que lhe priva de satisfações das

mais variadas. Geralmente, os indivíduos se alienam da ordem jurídica como se ela não

fosse uma instituição social; isso ocorre, em verdade, por uma dificuldade imanente ao

ser humano de se privar ou se limitar em nome do outro ou de um dever

consensualmente estabelecido: dar adesão universal não implica na particularização da

práxis. Imperativos categóricos só são encontrados numa espontaneidade sinceramente

racional, o que temos dificuldade em buscar, como sempre admitira Kant. Quando,

entretanto, buscamos imperativos estáveis (pelo menos num determinado tempo

histórico satisfatório), racionalmente consentidos, passamos ao domínio da ordenação

social racional objetiva, que é o direito.

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No estágio de desenvolvimento pós-convencional, típico da modernidade,

direito e moral são esferas distintas. O direito não se confunde com uma hierarquia de

normas. A liberdade moral, por sua vez, instaura-se nas condições proporcionadas pela

argumentação discursiva, que demanda simetria de interesses, justificação quanto à

aceitação ou rejeição de normas, e julgamento imparcial. Ficará pendente na ética do

discurso a questão da relação entre o princípio moral e o princípio do discurso. Em sua

obra “Direito e Democracia”, Habermas afirma que o princípio do discurso pode

fundamentar as normas de ação valendo para todos; para aplicar regras o direito

considera sua adequação. A normatização discursiva do direito passa pelo

reconhecimento de membros iguais, livremente associados. Esse princípio da

democracia se refere a questões legais embutidas nos discursos, que possibilitam

negociações, liberdade de pensamento, formação de opinião e vontade, todos garantidos

pelo direito; apenas em democracias essas exigências são cumpridas.

O direito pode favorecer a implementação da moral, visto que os limites

para a imputabilidade, a fraqueza de vontade, enfim, os empecilhos à moral racional de

caráter universalista, podem ser contornados pelo direito. Quanto mais organizadas

forem as sociedades modernas, maior é a demanda por códigos e regulamentação

jurídicos, através dos quais se implementam exigências morais e se aliviam as pressões

sobre a ação comunicativa.

Por isso mesmo, afirma Habermas, o direito precisa ser fundamentado numa

teoria do discurso. A ação livre de cada um orientada pelo sucesso, a desobrigação de

agir orientado pelo entendimento, é um lado da moeda. O outro lado é o da ação

coordenada por leis que coagem e limitam. O agir comunicativo, com suas pretensões

de validez criticáveis, reciprocidade, capacidade de optar, aderir a argumentos, não

impedem que alguém aja em seu próprio nome, defendendo seu exclusivo interesse. As

normas se tornam legítimas apenas através de processos democráticos. Os princípios do

discurso e a forma jurídica têm como solo as sociedades democráticas, nas quais

pessoas usam do discurso, com pleno direito a esse uso. Sem os princípios das

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democracias, o sistema de direitos não tem como legitimar leis e nem tem como aplicá-

las devidamente.

O princípio do discurso aplicado ao direito permite sua articulação, confere

estatuto jurídico ao discurso, e assegura autonomia política em sua aplicação. O direito

confere liberdade a participantes do discurso jurídico. O direito à liberdade, à

associação e ao próprio uso do direito para sua proteção, à autonomia política requerem

certas condições de vida em termos sociais, técnicos, ecológicos. Sem elas não é

possível o exercício da cidadania, a participação na vida social e política, a

reivindicação de seus direitos. A avaliação da legitimidade passa pelo discurso, assim,

poder participar em processos de formação da opinião e da vontade, que passam pelo

filtro do assentimento de todos os envolvidos, dá condições à liberdade discursiva, ao

uso público do discurso, à simetria na participação. A lei deve assegurar essas formas

comunicativas, e os processos democráticos de consulta e de discussão, implicam em

direitos políticos iguais, através “de uma juridificação simétrica da liberdade

comunicativa de todos os membros do direito; e esta exige, por seu turno, uma formação

discursiva da opinião e da vontade que possibilita um exercício da autonomia política

através da assunção dos direitos dos cidadãos”80, enfatiza Habermas.

O direito é fundamental para que o princípio do discurso seja o princípio da

democracia, pois assegura a participação de todos. A autonomia política, por sua vez,

necessita das democracias que são o lugar por excelência da circulação dos discursos

(opinião, discussão, fóruns, informação fidedigna, imprensa livre, voto, liberdade de

associação e de crença religiosa, participação em movimentos civis).

80 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre factibilidade e validade. Vol. I. 2ª edição. Tradução Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 164.

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5.5 - O SURGIMENTO DA IDEIA DE LEI

Recorremos às lições de Lima Vaz para buscar as bases sobre o surgimento

da ideia de lei. Na Grécia antiga, a aparição da noção de lei como dado divino não

impunha a coesão social e a imposição necessárias à eficácia dos comandos legais, tal

como se concebe em toda a história do direito ocidental, na concepção jurídica de lei.

Aliás, hoje, quando se menciona lei, não se pensa em lei moral; pois lei aponta, em

primeiro lugar, para um comando jurídico dotado de imperatividade heterônoma e

coerção. Nos textos de Homero aparece a palavra themis, que na epopeia significa a

prescrição que fixa os direitos e os deveres de cada um sob a autoridade do chefe da

gens (...)81.

81 Lima Vaz define themis como “ordenação”, no vocabulário homérico remete à aplicação da justiça sob a égide de Zeus:” (LIMA VAZ, Henrique Cláudio de. Ética e direito. Organização e Introdução: Cláudia Toledo e Luiz Moreira. São Paulo: Landy Editora e Edições Loyola, 2003, p. 43). Gens: originariamente grupo de seres humanos unidos por laços de sangue supostamente reais . Posteriormente, grupo, espécie, família.

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5.6 - O EVOLVER DO DIREITO

A partir do Renascimento o direito passa por um processo de

dessacralização, constituindo-se numa moderna versão de reconstrução racional das

regras de convivência. Na dicção de Tércio Sampaio Ferraz, “o direito aparece como

um regulador racional, supranacional, capaz de operar, apesar das divergências

nacionais e religiosas, em todas as circunstâncias. (...) Mas este novo Direito Natural, à

diferença do medieval, substitui o fundamento ético e bíblico pela noção naturalista de

“Estado de Natureza”, uma situação hipotética do homem antes da organização social e

que serve de padrão para analisar e compreender o homem civilizado”82

Em sua obra Direito e ética, Mariá Brochado, esclarece que se chega, enfim

e principalmente com Rousseau, a um direito fundado apenas na razão humana, dentro

do fermento racionalista do Iluminismo em plena exuberância. Para Rousseau, a

expressão direito natural é imprópria, pois não se refere à natureza como physis, mas à

natureza humana. Essa nova modalidade de jusnaturalismo, denominado

contratualista, terá em Rousseau sua maior representação de fundo ideológico, que visa

banir da história do direito uma ideia de lei que não seja expressão do querer

reconhecido, compartilhado, veículo da vontade geral. E aqui temos o ápice do

desenrolar do reconhecimento de Hegel, momento em que a consciência volta para si e

resgata sua essência alienada. Converge, então, política e juridicamente, o momento

que na fenomenologia Hegel denomina o resgate da consciência por si mesma, que se

torna em si e para si após ter sido dilacerada pelo outro. Daí em diante será impossível

pensar no direito senão como produção cultural, apesar de Kant promover a última

tentativa de transcendentalização da experiência jurídica. O direito natural deixa de ter

um fundamento objetivo e exterior para adquirir novas bases alicerçadas na

subjetividade de uma concepção de razão que se torna a sua origem e a sua medida.

82 FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do Direito. Técnica, decisão, dominação, p. 71-73.

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5.7 – DO POSITIVISMO JURÍDICO AO PÓS-POSITIVISMO

HABERMASIANO

O positivismo apresenta inumeras variantes, resultantes de distintas

interpretações e ponderações, no entanto, todas elas baseiam-se em dois elementos de

definição: o da legalidade conforme o ordenamento ou dotado de autoridade e o da

eficácia social. Portanto, neste trabalho, não faremos distinção entre as diversas

variantes.

Segundo Norberto Bobbio, o positivismo é entendido como “modo de

aproximação ao estudo do direito” (método, num sentido amplo), “teoria geral do

direito” e “ideologia”. Na primeira acepção, ele o caracteriza por uma oposição entre

direito ideal e direito realmente vigente (positivo), isto é, entre o direito como valor e o

direito como fato, com prevalência deste, ou seja, o jurista deve ocupar-se do direito

como fato histórico, abstraindo-se de quaisquer considerações sobre a sua legitimação

ética.”83. Enquanto teoria geral do direito, o positivismo significaria a “monopolização

do poder de produção de normas jurídicas pelo Estado”, observados os seguintes

princípios fundamentais: a) toda decisão judicial pressupõe uma regra preexistente; b)

esta regra é sempre criada pelo Estado; e c) o conjunto de regras criadas constitui uma

unidade. E como ideologia, o positivismo se reduziria a “afirmar que as leis válidas

devem ser obedecidas incondicionalmente, ou seja, independentemente do seu

conteúdo. Nessa condição, o positivismo significaria uma “obrigação moral de

obedecer às leis válidas.”84.

A neutralidade e a autonomia absoluta da ciência jurídica, ao longo de

décadas, produzia uma espécie de esterilidade do direito, o qual perdia também sua

força social integradora. Assim, um direito garantido unicamente pela força, definido

de forma absolutamente independente de um conteúdo moral e incapaz de prover

83 BOBBIO, Norberto. Jusnaturalismo e positivismo jurídico. p. 44 84 ibidem, p. 44.

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qualquer critério para as valorações jurídicas, incapaz de dar conta das expectativas

sociais, nem reverter o quadro de descrença por que passavam as instituições, ensejou o

aparecimento de teses pós-positivistas, que podem ser caracterizadas de duas maneiras:

uma assume uma postura cognitivista em matéria de ética e direito, outra que vai além

das teses positivistas das “fontes sociais do direito” e da separação radical entre Direito,

Moral e Política.

Para o positivismo, o Direito é visto como uma simples “convenção social”,

que passou por processos de institucionalização. Enquanto que, com o advento do

denominado “pós-positivismo”, o centro das atenções se desloca para casos ainda não

resolvidos e a busca de instrumentos adequados para resolvê-los.

Em linhas gerais, pode-se dizer que todas as teorias positivistas têm como

mote a tese da separação entre Direito e Moral. Esclarece Robert Alexy que para os

positivistas só há dois elementos definidores do Direito: a) a decisão de uma autoridade

(acerca do conteúdo de uma prescrição normativa) e b) a efetividade social de uma

norma. Contrapondo-se a isto, as teorias ditas não-positivistas, também chamadas pós-

positivistas, têm por objeto “definir o conceito de Direito de maneira que inclua

elementos da Moral”. Incluir elementos morais não significa, porém, excluir do

conceito de Direito a “decisão de autoridade” e a cogitação acerca da “efetividade”.

Sabemos que a distinção entre direito e moral não é tão clara como ostentam os

positivistas. Observa-se que os pós-positivistas, criaram uma ponte entre Direito e

Moral, mas tendem a subvalorizar a autonomia relativa ao Direito além de correrem o

risco de remarcar excessivamente a pretensão da moral de ser objetiva. Os positivistas,

por sua vez, superdimensionam o caráter controvertido da Moral e acabam não dando

conta de todos os casos, pois possuem poucos critérios para a interpretação e o

desenvolvimento do Direito. Para Habermas, o Direito não pode encontrar

legitimidade em si mesmo.

Diante desse panorama, surge a filosofia de Jürgen Habermas, pós-

positivista, que dá fundamento à teoria da argumentação jurídica de Robert Alexy,

assentada no cognitivismo ético, que, por meio de um discurso democrático pretende

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alcançar um patamar de fundamentação racional de juízos morais. No pensamento de

Habermas e de outros que o acompanham, normas, juízos morais e valorações em

sentido amplo podem ser apreendidos de forma racional, de modo que a distinção entre

juízos de fato e juízos de valor, correlata da separação entre “ser” e “dever-ser”, perde

substancialmente sua relevância prática. É sintomática nas reflexões jusfilosóficas a

crença em novos padrões de justificação de decisões, pois a metodologia jurídica já não

encontra mais os óbices impostos pelo não-cognitivismo positivista. Por outras

palavras, desde o momento em que o pós-positivismo se apresenta como uma

alternativa viável para se compreender o Direito, iluminando a trilha a ser seguida pelo

jurista prático no momento em que ele se depara com juízos de valor, estão presentes as

condições para que se desenvolva uma teoria da justificação jurídica capaz de orientar o

raciocínio jurídico pra além da clausura que o positivismo estabeleceu em decorrência

da absoluta separação entre “ser” e “dever-ser”.

Tanto para Habermas como para Alexy, um enunciado normativo será

correto somente se puder ser o resultado de um procedimento comunicativo capaz de

lhe conferir um grau satisfatório de racionalidade. Nesta medida, Habermas insurge-se

contra as várias vertentes do decisionismo jurídico — consequência de certas

concepções positivistas, que creem ser impossível um controle racional de juízos de

valores —, o qual equipara a legitimidade à legalidade, admitindo qualquer conteúdo

para as normas jurídicas válidas num dado Estado. Habermas elucida que o problema

da legitimidade pode ser tratado a partir de um discurso racional de justificação, e não

deixado ao voluntarismo e ao irracionalismo subjacentes às posições positivistas.

Nesse lineamento pós-positivista, a ideia básica de todo o pensamento

jurídico de Robert Alexy é de que é possível aplicar a teoria do discurso habermasiana

aos processos de formação de enunciados jurídicos. Trata-se de uma concepção de

“racionalidade procedimental universalista”, tipicamente “argumentativa”, não

negociadora como o das teorias contratualistas. Ainda para Alexy, a razão prática é

definida como a faculdade que, seguindo a um sistema de regras, chega-se a intelecções

práticas.

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Especificamente o que se refere ao positivismo jurídico, Habermas

identificou suas contradições e o consequente engessamento que trazia à evolução do

direito. Preocupou-se em destacar o papel do discurso e da argumentação no processo

de realização da justiça, bem como da imprescindibilidade da comunicação

intersubjetiva entre todos os agentes sociais. A relevância dada à argumentação e à

comunicação serviu para realçar não só o papel destas técnicas para a concretização do

aspecto normativo das regras e princípios jurídicos, mas, sobretudo, para que o próprio

Direito encontrasse a sua realização por meio de construções feitas por e para os

homens, coisa que o positivismo jurídico desconsiderou, na medida em que não levou

em conta fatores inerentes à gênese do Direito, como a axiologia e a deontologia,

excluindo-os de seu estudo por considerá-los exógenos à ciência jurídica.

O positivismo jurídico ao tentar criar um sistema puramente lógico e sem

contradições se esqueceu de que não há julgamento feito com exclusão dos valores e

que, sob este prisma valorativo, o que se mostra necessário não é um raciocínio formal

e lógico-dedutivo a ser realizado pelo aplicador da lei, mas, sim, um acordo acerca da

hierarquia dos valores que serão aplicados no caso concreto a ser julgado.

Habermas introduz a comunicação como instrumento de legitimação do

Direito, em nítida oposição ao paradigma positivista. Flerta com o jusnaturalismo.

Mas o que interessa é realçar a importância do processo de comunicação (abrangendo

as teorias do discurso) no processo de legitimação do ordenamento jurídico. Ressalta o

papel fundamental que exercem todos os destinatários das normas (destinatários aqui

entendidos em sentido amplo, abrangendo, pois, tanto os juízes, legisladores,

administradores públicos e privados e cidadãos) para a construção racional e válida do

Direito. Para ele, as ordens jurídicas modernas não podem tirar sua legitimação senão

da ideia de autodeterminação. Com efeito, “é necessário que os cidadãos possam

conceber-se a qualquer momento como autores do direito ao qual estão submetidos

enquanto destinatários”85. A autodeterminação dos sujeitos que irão participar deste

85 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Vol. I, 2ª edição. Tradução Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 479.

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processo discursivo irá determinar os limites e os fins da atuação do Direito. A teoria

do discurso se torna, portanto, elemento inerente à formação da vontade estatal. Assim

se expressa Habermas:

“A teoria do discurso não torna a efetivação de

uma política deliberativa dependente de um

conjunto de cidadãos coletivamente capazes de

agir, mas sim da institucionalização dos

procedimentos que lhe digam respeito [...] ela se

despede de todas as figuras de pensamento que

sugiram atribuir a práxis de autodeterminação dos

cidadãos a um sujeito social totalizante, ou que

sugiram referir o domínio anônimo das leis a

sujeitos individuais concorrentes entre si 86.

Para finalizar, nota-se mais recentemente em Habermas uma certa

mitigação em seu posicionamento contra o positivismo, pois passou a admitir que o

positivismo jurídico seria útil como instrumento de integração social em determinadas

circunstâncias. Revela-se um arauto do governo das leis, as mesmas que sugeriu não

estarem cumprindo a função de garantir a liberdade, pesando como definidora de

deveres, mas ao mesmo tempo sustenta que só o dogmatismo pode garantir a liberdade.

Na obra Direito e democracia absorve-se no estudo mais direto da filosofia do direito e

ali demonstra que “fato” e “norma”, ou seja, “eficácia” e “vigência” são os dois

elementos consideráveis do Direito.

86 ibidem, p. 288.

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5.8 – INTERSECÇÃO ENTRE DIREITO E MORAL

A moral é o campo subjetivo interno (vontade, intenção, consciência), o

direito, o campo subjetivo externo (ação, relações, coexistência). Os limites entre

ambos é de difícil determinação, pois depende principalmente do grau de cultura, do

sentimento religioso e das condições materiais do povo. Esses limites são instáveis e

seguem o progresso da consciência intelectual, moral e jurídica da humanidade. De

qualquer modo, o direito prescreve normas de vida em comum, uniformes nos fins

éticos, nascendo a coação da possibilidade natural de violação desse tipo de normas.

O direito nasce do mesmo espírito do qual nascem os deveres, porque ele,

conservando e desenvolvendo os dados éticos relacionados, deve proteger e adaptar

(para os realizar por meio da força) as condições do todo, que é a ética.

O que separa o direito da moral não é a distinção usualmente proposta entre

deveres morais e deveres jurídicos. A noção de dever, diz Fichte, que nasce da lei

moral, é contraposta na maior parte de suas notas caracterizadoras à noção de direito. A

lei moral impõe categoricamente o dever; a lei jurídica apenas permite, mas não

comanda que se exercite o próprio direito. E ocorre que, muitas vezes, a lei moral acaba

por vetar o exercício de um direito, que na convicção geral não deixa, por isso, de ser

um direito. Por ex., quando se tem o direito de cobrar uma dívida, mas por um dever

moral ela não é cobrada. Como se pode, então, encontrar o direito nessas formas

fundamentais da ética? Começando por distinguir duas significações da palavra direito:

o direito objetivo e o direito subjetivo, sendo o primeiro considerado “a determinação da

lei, pensada na sua unidade”, e o segundo, como “as determinações particulares

derivadas do primeiro, no sentido de que à pessoa são atribuídas certas e determinadas

relações jurídicas”. O direito objetivo deriva da ideia do direito, ou do pensamento do

qual devem nascer as determinações da lei; já o subjetivo necessita ser demonstrado

como derivado do primeiro.

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O direito nasce do mesmo espírito do qual nascem os deveres, para

conservar e desenvolver as relações morais, ou seja, os bens éticos, protegendo as

condições, onde se realiza, através da força, tudo isso que é ético. Para tanto, o direito

ora reprime as ações contrárias à conservação e ao desenvolvimento da ética e ora

impõe determinadas ações necessárias. A lei, determinando os direitos e os deveres dos

homens, tende a concretizar o verdadeiro significado das relações morais e reordena as

condições externas sob as quais elas devem prosperar.

O direito objetivo vige no interesse do todo, e os direitos subjetivos vigem

no interesse das pessoas, mas sobre a base do direito comum. O todo é a coletividade

(todo social) ordenada eticamente (todo ético), e não um amontoado de ações

desordenadas que se chocam. Direitos e deveres se conectam num único tecido vivente

(universal e particular), formando a unidade. O todo ético é o modo de viver do todo

social, que tem seus órgãos manifestos como direito e moral.

As determinações do direito são universais; porque a necessidade interna

dos fins morais caminha (para) e busca a universalidade externa e exige universal

obediência.

Ao indivíduo, o direito determina os limites do seu poder, o que ele pode e o

que ele não pode, o que reforça o seu poder no que é lícito; não há os limites derivados

da ideia ética, na qual está a base de tudo e dos indivíduos; tais limites nascem onde os

indivíduos estão, numa ação recíproca entre eles e com o todo. A força no direito, ou a

coação, é o lado físico da lei, por ser a causa eficiente da qual a lei se vale na sua

atuação. Mas o conteúdo que eleva a mera força ao plano do direito é a conservação do

todo e dos seus escopos internos. Logo, o direito em seu mais íntimo conceito tem

natureza conservativa, sua força conservatriz caminha e progride juntamente com o

desenvolvimento da moralidade.

Sob o prisma do indivíduo (parte no todo), o princípio fundamental é de que

o homem não tem direito só para fluir egoisticamente dos bens propiciados pelo direito,

desinteressado do seu fim racional e do fim racional dos outros homens.

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Tanto quanto a moral, o direito tem por finalidade a conservação social, mas

se diferencia por tutelar, conservar e, dentro de limites estreitos, acrescer bens e

interesses humanos, a partir de ações e abstenções dos indivíduos. Mas, como a

conservação também é visada pela moral, ou por quaisquer regras aplicáveis à atividade

humana, como a religião e os costumes, o que diferencia o direito é a manifestação das

suas normas.

A força no direito não é força física, ou econômica, mas propriamente

jurídica. A essência dessa força reside no fato de que o Direito confere, por meio dela,

uma parte do poder social aos indivíduos do grupo, de modo que ele possa exercer

influência sobre a conduta dos demais. As forças individuais não autorizadas pelo

direito podem limitar de várias maneiras a ordem jurídica, mas não podem servir de

guia para o grupo social. Graças a esta força jurídica é que o Direito desempenha sua

função organizadora das lutas sociais.

Para Habermas, o direito é tido como parte da ética, mas ontologicamente

distinto da moral e é, ainda, uma espécie de formalizador do conteúdo dado pelas

morais individuais em recíproca influência na totalidade social. Sob o ponto de vista da

ética, esse movimento é da consciência moral individual no seu trânsito para o momento

intersubjetivo (possibilitado pelo reconhecimento), na construção do consenso, que

produz o momento da objetividade das instituições sociais, entre as quais está situado o

direito, pressuposto nesse diálogo social, que o legitima como expressão da vontade

popular. A concepção de direito como um resguardador de mínimo ético só procede se

se entender a ordem jurídica como a priori desprovida de eticidade que só aparece

quando o mínimo do que a moral individual pretende se torna jurídico.

Na filosofia habermasiana, o direito pode (e deve) ser relido como

objetividade em si ética, porque produto do consenso de todo o grupo social,

pressuposto para o reconhecimento dos sujeitos morais como sujeitos de direitos.

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5.9 – A POSIÇÃO HABERMASIANA PERANTE AS CORRENTES

LIBERAIS E COMUNITARISTAS NO QUE TANGE AO DIREITO E À

JUSTIÇA SOCIAL

Sobre este tema, amplo e complexo, faremos apenas algumas considerações

acerca dos pontos que resvalam no escopo do presente trabalho.

Esta primeira década do século XXI nos mostra uma sociedade marcada

pelo pluralismo, cuja principal consequência é a convivência obrigatória entre diversas

culturas e religiões, em que cada uma delas expressa diferentes formas de se

compreender o mundo. Nesse contexto, torna-se relevante na filosofia do Direito

comtemporâneo o desenvolvimento de uma teoria de justiça. De modo geral, há três

grandes correntes participando desse debate, em que cada uma delas apresenta visão

diferente quanto ao modo de realização dessa justiça. São elas as teorias liberais, as

comunitaristas e as crítico-deliberativas. Suas divergências situam-se, principalmente,

quanto à definição do que seja pluralismo, na relação entre direitos individuais e

soberania popular, e no papel da constituição como centro da estrutura normativa. No

entanto, independente das divergências entre as três teorias, percebe-se que, no âmbito

de cada corrente, estes pontos estão interligados, já que fazem parte do mesmo

complexo teórico.

A doutrina liberal, cujos principais representantes são John Rawls e Ronald

Dworkin, defende uma teoria da justiça eminentemente individualista, fundamentada na

filosofia kantiana, em que os direitos civis devem ser preservados e respeitados.

Acreditam na necessidade de se estabelecer princípios de justiça social que possam lidar

com o pluralismo contemporâneo, mas entendem que tais princípios devem levar em

consideração o homem universal, despido de qualquer característica cultural. Nesse

caso, o papel principal da estrutura normativa é assegurar que os direitos individuais não

sejam violados nem pela ação do Estado, nem pelo desejo de alguma maioria popular

momentânea.

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A doutrina comunitarista, liderada por Michael Walzer, Charles Taylor e

Alasdair MacIntyre, acredita que os princípios de justiça social só podem ser definidos

em estreita relação com os valores da comunidade, o que na prática significa que, para

esta corrente, os valores culturais devem influenciar a decisão quanto o que é justo ou

injusto perante a comunidade. Ou seja, defende a ideia de que o pluralismo

contemporâneo está ligado à diversidade de identidades sociais e culturais, sendo

necessário, em função disso, que a teoria da justiça reconheça essa diversidade, por

meio de uma ação governamental voltada para este fim ou mesmo através da prioridade

da vontade comunitária em relação ao rol de direitos fundamentais, quando isso for

necessário para a preservação de algum grupo social ou cultural. Nesse sentido, para os

comunitaristas, a Constituição deve primordialmente representar um efetivo

compromisso com certos ideais compartilhados pela comunidade como um todo, deve

ser um autêntico projeto social daquela comunidade. Para essa corrente do pensamento,

o direito de autodeterminação da comunidade será sempre prioritário a qualquer

liberdade individual do cidadão. O comunitarismo está contextualizado no momento

material da ética, que se dedica à verdade prática. Os seres humanos são essencialmente

comunitários e seus momentos de reação refletem isso.

Por seu turno, a doutrina crítico-deliberativa, cujo principal representante é

Jürgen Habermas, acredita na necessidade da justiça social, mas entende que as

democracias contemporâneas, as quais se baseiam nos direitos individuais assim como

no pluralismo social, o que significa que os princípios de justiça não podem usar um

desses aspectos em detrimento do outro. Para os partidários dessa corrente, tais

princípios de justiça serão definidos por meio de uma razão comunicativa,

intersubjetiva, cujos critérios de escolha serão definidos através do discurso. Assim,

defendem uma teoria da justiça que resulta a coesão interna entre direito e democracia,

que ocorre quando o indivíduo percebe que não é apenas destinatário, mas que também

faz parte do processo de elaboração das normas, através de uma política deliberativa

que, portanto, conecta os direitos fundamentais e a soberania popular. Resulta disso que

a estrutura normativa deve assegurar a participação de todos os cidadãos no processo

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político. A interpretação constitucional, assim, não deve apenas assegurar garantias

individuais ou projetar valores comunitários, mas garantir que o processo de formação

dos direitos esteja ligado à política deliberativa, conectando a autonomia privada liberal

com a autonomia pública comunitarista. Para esses crítico-deliberativos, a principal

consequência do pluralismo contemporâneo é o surgimento de um mundo fragmentado,

onde os indivíduos estabelecem uma convivência obrigatória, ainda que permaneçam

completamente estranhos uns aos outros. Entretanto, estranhos ou não, esses

indivíduos, segundo Habermas, precisam alcançar um entendimento sobre a melhor

forma de regulamentar essas relações, função de qualquer sistema jurídico.

Conclui-se que, não obstante as diferenças teóricas entre essas correntes,

todas acreditam que a democracia é a única forma possível de se viver em sociedade.

Feito este preâmbulo apenas a título de situar o leitor, passaremos a seguir a

uma análise mais detalhada da teoria habermasiana do agir comunicativo com relação

ao comunitarismo.

Em complemento ao anteriormente explicitado, o comunitarismo surge no

contexto da dominação hegemônica norte-americana no século XX, com o objetivo de

proceder, a partir da ideia de eticidade concreta, à reconstrução histórica da noção de

“tradição cultural”. Manifesta-se em contraposição ao liberalismo da filosofia política,

do racionalismo universalista, da filosofia analítica, do emotivismo ético e, por fim,

como crítica da modernidade. Seus principais representantes centram sua autuação nos

seguintes aspectos: Alasdair MacIntyre com análise a partir da reinterpretação do ethos

histórico cultural de Aristóteles e considerando o momento material das “virtudes”;

Charles Taylor, a partir da localização da eticidade de Hegel e focando nos momentos

“valores e autenticidade de cada identidade”; e Michael Walzer, a partir dos princípios

materiais inerentes às diferentes esferas institucionais para tratar da questão da justiça, e

da tolerância.87

87 CITTADINO, Gisele. Pluralismo, Direito e Justiça Distributiva. Elementos da Filosofia Constitucional Contemporânea. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004, p. 1-2.

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No projeto comunitarista habermasiano, ou seja, na tentativa de Habermas

de aproximar tanto quanto possível o comunitarismo à teoria do agir comunicativo,

torna-se possível introduzir um novo paradigma procedimentalista do direito. Para

tratar dessa temática recorremos a Mariá Brochado88, na obra “Direito e democracia: a

eticidade do fenômeno jurídico”. Ela nos esclarece que já em Cícero tivemos uma

versão simplificada do comunitarismo quando elege entre os vários graus de sociedade,

incluídos aqui a família, a sociedade da amizade entre os homens, e a pátria, a sociedade

do gênero humano, definida como “o comércio da razão e da palavra. Com efeito,

instruindo uns aos outros, comunicando seus pensamentos, discutindo, apresentando

juízos, os homens se aproximam, formando natural sociedade. Isso nos diferencia dos

animais. Reconhecemos a força nos cavalos e leões; mas nunca lhes atribuímos a

igualdade, a justiça, a bondade, porque eles não têm razão, nem palavra”89.

Situado o consenso como ponto de chegada do reconhecimento e também

como ponto de partida da colocação do direito como ordem objetiva central na

realização ética da sociedade, nos remete ao projeto filosófico comunitarista,

arquitetado especialmente por Habermas. O filósofo alemão opõe-se fundamentalmente

às concepções universalistas da filosofia clássica e moderna, por supor que a grande

falha desses sistemas de pensamento é a não inclusão da variável comunicação, ou o

diálogo, produtor do consenso, em suas doutrinas éticas, o que leva à

pseudocompreensão de que esse consenso dá-se como transcendência, e não como

imanência construída, enfatiza Mariá Brochado.

Essa nova vertente filosófica aposta no consenso ou numa concepção de

sociedade consensual como paradigma de construção de uma nova reflexão ética: que

tem por objeto um ethos discursivo ou que procede e se desenvolve por argumentações

e contra-argumentações, na formação de convicções e expectativas éticas (consenso

comunitário sobre o que é ou não válido moralmente). Para tanto, começa por substituir

88 BROCHADO, Mariá. Direito e democracia: a eticidade do fenômeno jurídico. São Paulo: Landy Editora, 2006, p. 81-97. 89 CÍCERO, Marco Túlio. Dos deveres. Tradução de Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 46, apud BROCHADO, Mariá. Direito e democracia: a eticidade do fenômeno jurídico. São Paulo: Landy

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o antigo conceito de razão prática pela razão comunicativa, incluíndo no conceito de

racionalidade o medium linguístico. As intelecções morais racionalmente motivadas

pelo indivíduo devem ser superadas num plano coletivo, no qual cada singularidade é

dialetizada na outra, formando uma nova intelecção compartilhada linguisticamente. A

razão prática é compreendida a partir da singularidade, mesmo quando se tem em mira

a pluralidade. Nesse caso, o modelo continua sendo o sujeito individual em dimensões

ampliadas. Já a razão comunicativa toma o sujeito interagindo num meio formado

linguisticamente, pois é no ato da fala que buscamos o entendimento com alguém sobre

algo no mundo.

Indaga-se, então, no plano específico do direito, quais as conseqüências do

comunitarismo como nova proposta de percepção do fenômeno jurídico?

Sob o ponto de vista da práxis dos atores sociais, o ideário comunitarista

chega à conclusão essencial de que os sujeitos de uma relação considerada jurídica só

têm possibilidades de fruição sobre seus direitos se “tiverem clareza sobre interesses e

padrões justificados e chegarem a um consenso sobre aspectos relevantes sobre os

quais” se desenvolverá o caminho da autonomia política.90

Informa-nos, ainda, a autora da obra que, sob o ponto de vista da ciência do

Direito, uma teoria contemporânea do direito busca sua base ou ponto de partida não

mais na força abstrata das normas jurídicas (ou na coerção), mas num outro tipo de

força que fundamenta a sua própria institucionalização: uma “força social integradora

de processos de entendimentos não violentos, racionalmente motivadores, capazes de

salvaguardar distâncias e diferenças reconhecidas, na base da manutenção de uma

comunhão de convicções”.91 Esta, por sua vez, só será alcançada se compreendermos o

que é dito pelo outro, o que implica uma verdadeira participação e não a mera

observação, pois que é a possibilidade de se oporem críticas às pretensões de validade

suscitadas que nos permite compreender suas razões.

Editora, 2006, p. 82. 90 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Vol. I, 2ª edição. Tradução Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 13. 91 ibidem, v. I, 2ª edição, p. 22.

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Observe que, na perspectiva comunitarista, o convencimento dos

participantes do discurso é obtido por uma espécie de “coação do melhor argumento”,

não é, pois, direcionado à vontade, mas ao intelecto, submetendo-o por sua força

persuasiva, o que leva o próprio participante a se obrigar (obrigar-se livremente). Para

os comunitaristas é fundamental a espontaneidade do consenso, pois que ele não pode

se fundar no arbítrio, uma vez que, se ocorrer, os participantes do discurso certamente

não se sentirão vinculados e, consequentemente, o encontro carecerá de espontaneidade.

A legitimidade de regras se mede pela resgatabilidade discursiva de sua

pretensão de validade normativa. O que conta, em última instância, é o fato de elas

terem surgido num processo legislativo racional — ou o fato de que elas poderiam ter

sido justificadas sob ponto de vista pragmáticos, éticos e morais. No sistema jurídico, o

processo da legislação constitui, pois, o lugar propriamente dito da integração social, em

que os cidadãos devem poder participar na condição de sujeitos de direito, de cidadãos

dotados de direitos políticos de participação, que agem também orientados ao

entendimento mútuo, que se encontram numa prática intersubjetiva. Segundo

Habermas, “é por isso que o conceito de direito moderno — que intensifica e, ao mesmo

tempo, operacionaliza a tensão entre facticidade e validade na área do comportamento

— absorve o pensamento democrático, desenvolvido por Kant e Rousseau, segundo o

qual a pretensão de legitimidade de uma ordem jurídica construída com direitos

subjetivos só pode ser resgatada através da força socialmente integradora da ‘vontade

unida e coincidente de todos’ os cidadãos livres e iguais”92

Aqui não nos interessam tanto os detalhes da reconstrução do sistema de

direitos, mas apenas alguns pontos principais que nos levam ao pensamento

habermasiano. Como primeira reflexão, vejamos o fato de que a origem comum do

sistema de direitos e do princípio da democracia é reflexo de uma mútua pressuposição

de autonomia pública e de autonomia privada, a qual é derivada da interpenetração entre

a forma legal e o princípio do discurso. Esta é a decorrência fundamental da regulação

da vida social pelo direito positivo. É este caráter originário de autonomia pública e

92 ibidem, v. I, 2ª edição, p. 53.

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privada que nos interessa na investigação dos pressupostos do conceito procedimental

de democracia deliberativa, o qual nos remete Habermas à discussão conhecida como

debate entre “comunitaristas e liberais”. Para Habermas, no estado democrático de

direito há uma transformação de poder comunicativo em poder administrativo.

Entretanto, o poder comunicativo não pressupõe uma autocompreensão ético-política

partilhada, como no comunitarismo, mas é identificado com a realização de uma

formação racional da opinião pública e constituição democrática da vontade nos

processos legislativos.

Esta compreensão bastante específica do poder comunicativo em Habermas

se torna ainda mais evidente quando ele explicita seu modelo procedimental de

democracia participativa através da mediação entre os modelos liberal e comunitarista

de estado democrático. No primeiro, a política é compreendida como esforço de

agregação de interesses privados conflitantes. Para o segundo, a política é vista como

processo deliberativo em vista de um acordo no que diz respeito ao bem comum, no

qual o direito é visto não como elemento protetor dos direitos individuais, mas como

expressão da vivacidade da comunidade ético-política.

Em suma, o modelo procedimental habermasiano rejeita a compreensão do

processo político como aglutinação de preferências privadas, ao mesmo tempo em que

considera a compreensão de uma cidadania unificada e ativamente motivada por uma

concepção partilhada do bem comum como um ideal não mais alcançável nas

sociedades pluralistas. Nesse sentido, ainda que mantida a severa inclinação

deliberativa do comunitarismo, Habermas considera que essencial não é o ethos único

partilhado, mas os discursos institucionalizados para a formação da opinião política

racional. Essencial, portanto, não é a participação total, mas a garantia de que a opinião

pública seja formada discursivamente. Há, assim, uma ampliação da política

deliberativa para além do sistema político organizado na direção de uma vasta e

complexa rede de comunicação, que Habermas chama de esfera pública.

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5.10 – COMPLEMENTARIEDADE ENTRE DIREITO, MORAL E

POLÍTICA

Do ponto de vista da fundamentação, a moral e o direito pós-tradicionais

mostram as mesmas características estruturais, às quais foi conferida força jurídica.

Mas o direito, diferentemente da moral, livra os destinatários dos problemas que

acarreta fundamentar, aplicar e obter normas e os transferem para os órgãos estatais. O

discurso político também se relaciona com o discurso moral e o jurídico, dado que as

questões políticas fundamentais são de natureza moral e, por outro lado, o poder

político só pode ser exercido por meio de decisões juridicamente vinculantes. Mas a

política também mantém sua especificidade, que consiste em estabelecer fins coletivos

no âmbito da formação pública da vontade93. Habermas, na obra Direito e

Democracia, defende que a moral pós-convencional, o direito positivo, e o Estado

democrático são certamente três âmbitos diferentes no espectro prático, mas que são, ao

mesmo tempo, inseparáveis, não só porque são complementares, mas também pelo fato

de se acharem inevitavelmente entrelaçados. Uma moral pós-convencional da

responsabilidade precisa de complementação jurídica, porque não pode exigir

responsavelmente o cumprimento de normas válidas se os destinatários não têm

garantia jurídica de que serão universalmente cumpridas; mas, do mesmo modo, o

direito positivo, deficitário do ponto de vista da fundamentação, precisa do concurso de

uma razão moral, que expressa em seu seio a ideia de imparcialidade instrumental. No

que diz respeito à ideia de Estado de direito, e mesmo quando a política for o âmbito

apropriado do pacto e da negociação, não é menos certo que a legitimidade política

afunde suas raízes em uma legalidade que reflete a estrutura da razão prática; mas, por

outro lado, a força legitimadora do direito também tem sua fonte no procedimento

democrático legislador. Valores como a segurança jurídica, a igualdade diante da lei,

assim como a possibilidade de submeter os princípios jurídicos a uma prova discursiva

93 CORTINA, Adela. Ética sem moral. Tradução Marcos Marcionilo. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 169.

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conferem força legitimadora a uma racionalidade formal, que não é, de modo algum,

moralmente neutra94.

Habermas nos mostra que é preciso extrair ensinamentos úteis tanto do

formalismo ético, que permite comprovar a validade das normas morais, como da

figura jurídico-política do contrato social, que propõe um procedimento cuja

racionalidade garante a correção das decisões tomadas com base nele. Essa é a oferta

que deve ser aceita por um direito positivo contemporâneo, consciente do caráter

irreversível do impulso da juridificação e que não pretenda retornar ao jusnaturalismo

ou ao materialismo ético. Efetivamente, a análise que Habermas faz do impulso da

juridificação, próprio do Estado social, leva-o a concluir que tal impulso está ligado a

uma moralização do direito e que é necessário buscar um fundamento moral do direito

que não reviva as propostas do direito natural. Em princípio, é preciso reconhecer com

Habermas que tanto as teorias da justiça que encarnam o ponto de vista moral como as

que encarnam o procedimento jurídico repousam na ideia de que a racionalidade do

procedimento há de garantir a validade dos resultados a que se chega com ele. Porém,

nem tudo é convergência. Há diferenças.

Uma primeira diferença consiste em reconhecer a superioridade do direito

sobre a moral, na medida em que tomamos como regra a racionalidade instrumental. A

circunstância segundo a qual o direito está ligado a critérios institucionais,

independentes, permite comprovar se a decisão foi tomada segundo as regras

oportunas, mesmo sem participar do procedimento; enquanto a moral exige que se

reconstrua o ponto de vista adotado e se comprove discursivamente se o procedimento

foi corretamente seguido. Uma segunda diferença está relacionada à imperfeição do

procedimento moral, já que determinadas matérias carecem de regulamentação jurídica

e não podem ser deixadas a cargo da regulamentação moral, porque o procedimento

moral demonstra insuficiências cognitivas e motivacionais e, além disso, se nos revela

impotente para apresentar exigências, se não estiver respaldado pela coação externa,

94 HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa. Vol. I. Madri/Espanha: Taurus, 1987, p. 328 e ss.

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própria do direito. Outras diferenças entre moral e direito seriam, em síntese, o fato de

que exista uma analogia entre a pretensão de validade das normas morais e a pretensão

teórica de verdade, enquanto à pretensão de validade do direito positivo se acrescenta a

contingência, no momento de estabelecê-lo, e a faticidade da coação que o acompanha;

a circunstância de que o direito exime os indivíduos da tarefa de fundamentar normas –

coisa que a moral não pode fazer -, visto que elas são institucionalmente fixadas; o fato

de que nos discursos jurídicos a argumentação sobre normas tenha um limite temporal,

porquanto existe um prazo determinado para a decisão; uma limitação quanto ao

método, porque é preciso contar com normas já válidas; uma limitação prática, porque

os temas e as provas hão de ser limitados; e uma limitação social, em relação com a

participação e a divisão de papéis. A argumentação moral, ao contrário, carece desses

tipos de limitações e submete-se apenas a seu próprio controle. A todas essas

diferenças, que assinalam as fronteiras no âmbito prático entre os procedimentos moral

e jurídico, cabe acrescentar uma outra, de que a obediência ao direito é um dever ético

indireto. Na perspectiva habermasiana, a relação existente entre moral e direito é de

complementação, não de identificação, e essa necessidade de complementação, quando

consiste na urgência de absorver, a partir do poder coativo do direito, as inseguranças

que o procedimento moral oferece. Exatamente por razões morais será necessário

apelar ao direito, que conta com a faculdade coativa. O direito não é apenas um

sistema de símbolos, mas também um sistema de ação95.

A questão que se coloca é saber até que ponto o cumprimento das normas

morais é exigível em uma moral universalista responsável? Sabemos que uma ética da

intenção de inspiração kantiana pode exigir incondicionalmente que as normas morais

sejam cumpridas, mesmo que o sujeito que deve obedecer ao preceito não tenha

garantia alguma de que os demais vão cumpri-lo; já uma ética da responsabilidade,

como é o caso da ética discursiva, considera irresponsabilidade exigir obediência a um

preceito nessas condições, já que isso poderia acarretar graves males ao sujeito moral.

Uma coisa é o conselho, outra, a exigência moral. Uma ética da responsabilidade só

95 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Vol. I. 2ª edição. Tradução

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pode exigir moralmente o cumprimento de normas que contam com a obrigatoriedade

jurídica. Moral e direito não apenas se diferenciam, como também se complementam e

se entrelaçam mutuamente96.

Para Apel, uma ética da responsabilidade deve estar atenta às consequências

da ação e inclusive fazer uso da ação estratégica em determinadas circunstâncias em que

se torna legítima a transgressão da norma.

“Isso se aplica, por exemplo, à transgressão da

proibição de matar ou de mentir em uma situação

de legítima defesa; ou, possivelmente, também a

um pai de família que passa por necessidades e

não consegue solitariamente (no sentido de um

desempenho moral isolado modelar), em uma

situação social de corrupção generalizada,

desistir de determinadas práticas, como suborno,

ludíbrio de funcionário público, propina

aliciante e coisas do gênero.” 97

Mas mesmo assim não fica claro quando a transgressão da norma pode ser

considerada legítima e quando não o é. Tal dificuldade está na base da crítica de

Otfried Höfre à ética do discurso. Segundo Höfre, “o princípio da ética do discurso,

devido ao seu postulado da formação de consenso isenta de dominação, estaria a priori

sem condições de providenciar uma legitimação à validade de normas jurídicas como

normas coercitivas.”98 Como sociedades complexas não podem existir sem instituições,

que sempre implicam um certo grau de dominação e alienação, Apel se viu forçado a

reformular uma vez mais a ética do discurso levando em consideração a crítica de Höfre

da necessidade de legitimação das instituições e, consequentemente, ao reconhecimento

tácito da impossibilidade de realização da comunidade ideal de comunicação.

Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 141. 96 ibidem, v. I, p. 151-154. 97 APEL, Karl-Otto. Dissolução da ética do discurso? In: MOREIRA, Luís (org.). Com Habermas contra Habermas – Direito, Discurso e Democracia. São Paulo: Landy Editora, 2004, p. 283. 98 ibidem, p. 233.

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123

Habermas não seguiu esse caminho, ou por outras palavras, evita esse problema em

Direito e democracia. Ele opta em explicar a função da diferenciação distintiva entre

Direito e Moral de modo meramente sociológico-histórico, de modo isento de valor, e

da fundamentação normativo-moral99

99 ibidem, p. 233.

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124

5.11 - OS FUNDAMENTOS DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE

DIREITO E A RELAÇÃO COM A ÉTICA, A POLÍTICA E A SOB ERANIA

POPULAR

O sistema jurídico, a exemplo da moral, desempenha a função de coordenar

a ação e solucionar os conflitos de ação entre os cidadãos, todavia, a moral racional pós-

convencional tornou-se um saber que somente pode obrigar por meio da força frágil da

convicção, enquanto o direito dispõe da capacidade de coagir os arbítrios privados. O

sistema político, por outro lado, permite aos agentes realizar programas coletivos de

ação, pois os cidadãos que interagem não somente divergem sobre a interpretação de

valores e normas morais ou jurídicas, mas também definem metas de ação que

transcendem a capacidade dos cidadãos isolados e precisam ser implementadas por

meio de uma estrutura política que conjugue os esforços do grupo100.

O direito e a política, por conseguinte, distinguem-se, em primeiro lugar,

por suas funções próprias, porém, também por causa do modo com que ocorre, em seu

interior, a tensão entre facticidade e validade. O direito é, antes de mais nada, um

sistema normativo que lança mão da violência, na forma de coerção legalmente

institucionalizada, exclusivamente para desempenhar sua função de coordenar a ação,

mas essa coerção, em princípio, pode ser dispensada, por exemplo, quando os cidadãos

cumprem a lei por respeito ou convicção; a política, por outro lado, é um sistema

baseado no poder que dispõe da violência aprovada institucionalmente, até mesmo

quando deve garantir o exercício da dominação legal101.

O nexo interno entre direito e política pode ser descrito também

empiricamente mediante a reconstrução da origem histórica do estado de direito.

Habermas aceita a interpretação antropológica de Parsons102 sobre a evolução das

100 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Vol. I. 2ª edição. Tradução Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 179. 101 ibidem, v. I, 2ª edição, p. 171. 102 PARSONS, Talcott Edgar Frederick (1902-1979): americano, sociólogo da Universidade de Harvard.

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125

estruturas políticas e jurídicas que começam com as sociedades organizadas por

parentesco. Parsons introduz dois modelos para explicar a solução dos conflitos

interpessoais (função própria do direito), assim como dois tipos de formação da vontade

coletiva (função própria da política), que revelam o surgimento do nexo interno entre

direito e política103. Nas sociedades pré-estatais, as normas morais e jurídicas

constituem um amálgama com os valores religiosos da comunidade, isto permite que se

chegue a um consenso em caso de conflito de ação quando os agentes são orientados

pelo entendimento, ou pode ser invocado por sacerdotes ou outras pessoas de prestígio

com o propósito de realizar a arbitragem quando os agentes somente têm em

consideração seus próprios interesses104.

O direito e a política constituem dois polos dentro do estado de direito, o

que explica um novo sentido de tensão interna entre facticidade e validade, diferente da

tensão que aparece para os destinatários das normas jurídicas e seus autores nos

discursos jurídicos de fundamentação do sistema de direitos. Essa tensão interna entre

facticidade e validade é explicada pela teoria da ação mediante a dupla possibilidade

que tem o agente de agir segundo a razão estratégica ou a razão comunicativa e revela-

se em três níveis: da norma jurídica, do sistema de direitos e do estado democrático de

direito. Os destinatários experimentam a tensão interna entre facticidade e validade das

normas jurídicas porque, por um lado, escolhem segui-las de acordo com a

racionalidade estratégica, em cujo caso obedecem à lei simplesmente porque ela

constitui um fato social que pode ser imposto por coação e exige do agente empreender

uma escolha racional em que reflete sobre os custos e benefícios de cumprir a lei ou

infringi-la, ou, por outro lado, mediante a racionalidade comunicativa, que lhe permite

avaliar a validade da lei, em cuja situação sente-se obrigado a cumpri-la por respeito à

própria lei, essa duplicação da racionalidade inerente à sociedade complexa conduz

também a uma duplicação do conceito de autonomia do direito, desconhecida no âmbito

da moral, pois o destinatário da norma jurídica pode segui-la por meio de sua autonomia

103 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Vol. I. 2ª edição. Tradução Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 173. 104 ibidem, v. I, p. 175-176.

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126

privada, quer dizer, pelo uso de sua liberdade subjetiva de ação, ou por meio de sua

autonomia pública mediante a liberdade comunicativa, que demanda a busca

cooperativa do entendimento; os autores do direito também observam essa tensão

interna entre facticidade e validade, na medida em que percebem a duplicação do

conceito de autonomia do direito e podem produzir as normas jurídicas segundo a

escolha racional ou a busca recíproca do entendimento, o que gera o aparente paradoxo

de explicar o surgimento da legitimidade a partir da legalidade.

A tensão entre facticidade e validade no estado de direito, por sua vez,

revela-se por meio da cisão entre os polos poder, representado pela política e pelo

normativo, constituído pelo direito. Habermas não tem dúvida sobre o caráter

instrumental da política que dispõe do poder para coordenar a ação, enquanto o direito

não pode desfazer-se de seu papel normativo. A política permite ao estado de direito

exercer a violência que subtraiu dos indivíduos privados, enquanto o direito oferece seu

próprio meio para constituir o estado de direito e alimenta-se constantemente das

relações de solidariedade provenientes do mundo vivido ou da fundamentação racional

das questões problematizadas por meio dos discursos105.

A introdução da tensão interna entre factibilidade e validade no nível do

estado de direito, procedente da conexão entre política e direito, permite a Habermas

modificar significativamente seu ponto de vista com respeito ao sistema jurídico e à

teoria do Estado. Na sua obra Teoria da ação comunicativa, Habermas explica o papel

do Estado na sociedade moderna com base em sua teoria da ação comunicativa, a qual

desenvolve uma concepção instrumental da política como um sistema funcional regido

pelo poder106. Seu modelo sociológico divide a sociedade complexa em dois níveis: um

primeiro nível, constituído pelo mundo vivido, em que os agentes sociais orientam-se

pela racionalidade comunicativa por meio da linguagem, usada por falantes que

reivindicam pretensões de validade ilocutoriamente presentes no ato da fala, e um

segundo nível, formado por sistemas sociais especializados em realizar funções que

105 ibidem, v. I, p. 171. 106 HABERMAS, Jürgen. Teoria de la acción comunicativa, vol. II, Madri: Taurus, 1988, p. 389-393.

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127

exigem dos agentes o comportamento estratégico motivado pelo êxito, entre os quais se

destacam o mercado e a política.

O mundo vivido, especializado na integração social, requer que os agentes

coordenem suas ações pela solidariedade imersa na intersubjetividade do

reconhecimento recíproco, enquanto os sistemas sociais, mercado e política, separam-se

do mundo vivido e dispõem cada qual de uma lógica própria que orienta a conduta dos

agentes. Os agentes sociais coordenam suas ações no mercado por intermédio do

dinheiro e, na política, com base no poder. Portanto, para a teoria da ação

comunicativa, a política surge como um sistema social no qual os agentes buscam

estrategicamente exercer influência ou poder reciprocamente e que contribui juntamente

com a economia e o direito para colonizar o mundo vivido e encolher o espaço para a

racionalidade comunicativa.

Para Habermas, na sociedade complexa, a racionalidade estratégica

empregada pelos sistemas sociais, o Estado liberal e o Estado do bem-estar-social, tem

como efeito a colonização do mundo vivido, que ameaça despedaçar a capacidade de

integração social, a qual, dividida em sistemas funcionais, localiza-se na racionalidade

comunicativa, realizada por meio da linguagem e utilizada pelos falantes no mundo

vivido. A intromissão da política no mundo vivido implica, por exemplo, a redução da

cidadania, a transformação dos cidadãos em clientes das burocracias estatais e a

juridicização das relações sociais107.

Habermas coloca como consequência importante, herança da Revolução

Francesa, que necessita ainda ser resolvida, a disputa entre direitos humanos e soberania

popular. Esclarece ele que, desde o século XVII, os pensadores dividiram-se em duas

grandes concepções rivais acerca das questões políticas; de um lado, os liberais

entenderam que a própria pessoa é portadora de determinados direitos relativos à sua

liberdade subjetiva de ação e válidos independentemente da estrutura política. Estes

direitos subjetivos fundamentais, ou direitos humanos, devem ser institucionalizados,

posteriormente, por meio do estado de direito e protegidos contra as intromissões de

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outras pessoas, bem como as do próprio estado de direito. Por conseguinte, ao menos a

parte do ordenamento jurídico concernente aos direitos fundamentais deve ser blindada

contra a vontade, muitas vezes irracional e arbitrária, da maioria, o que constitui a ideia

do império da lei. Por outro lado, os republicanos consideram que qualquer um que

legisle em nome de outro pode cometer uma injustiça contra ele, por isso somente o

povo unido, ao legislar, jamais pode cometer injustiça contra si mesmo, portanto, os

direitos devem decorrer exclusivamente da soberania popular, neles incluídos os direitos

humanos, pois o povo democraticamente reunido jamais legislaria contra os seus

direitos fundamentais. A soberania popular exige, todavia, uma virtude política por

parte dos cidadãos que precisa ser compensada mediante a coerção legal quando os

países são muito grandes ou falta uma unidade de costumes e, portanto, não se cumprem

as condições de uma cidadania ativa.

Essa disputa recorrente entre direitos humanos e soberania popular assenta-

se no legado da filosofia da consciência, porque os liberais fundamentam os direitos

humanos no direito privado (Kant, por exemplo, obtém os direitos subjetivos com base

na autonomia do sujeito moral), enquanto os republicanos interpretam o povo como um

sujeito em grande escala. Habermas considera que somente um conceito procedimental

de soberania popular, sem os pressupostos da filosofia do sujeito, pode por fim a essa

disputa e reconhecer o caráter cooriginário dos direitos humanos e da soberania popular.

O princípio procedimental de soberania popular representa, para o estado de

direito, o mesmo papel que o princípio da democracia representa para o sistema de

direitos. Assim, o princípio da soberania popular permite a mediação entre os direitos

subjetivos fundamentais e o direito objetivo instituído pelo estado de direito, porque a

fundamentação do direito objetivo tem de pressupor a fundamentação simultânea dos

direitos subjetivos, uma vez que somente cidadãos portadores de direitos subjetivos

fundamentais podem participar em discursos de fundamentação dos princípios do estado

de direito108. O princípio procedimental da soberania popular, consequentemente,

107 ibidem, v. II, p. 502-505. 108 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Vol. I. 2ª edição. Tradução

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supera a imagem republicana de autogestão democrática dos cidadãos reunidos em

assembleia e capazes de chegar a uma vontade comum, que é incompatível com as

condições da sociedade complexa dividida em sistemas funcionais. Em lugar de

localizar a soberania popular no povo entendido como um macrosujeito, ele prefere

difundi-la por meio do intercâmbio entre as redes informais de comunicação da esfera

pública e as instituições formais do estado de direito, com o objetivo de produzir uma

figura política anônima ou carente de sujeito109.

A soberania popular, segundo a teoria discursiva, surge inicialmente com

base na liberdade comunicativa dos cidadãos no mundo vivido, que consiste na

capacidade para chegar ao entendimento, implícita na ação comunicativa cotidiana. Os

sujeitos dotados de liberdades subjetivas de ação podem entrar em conflito entre si,

porém, a liberdade comunicativa inerente à ação comunicativa permite que cheguem a

um acordo sobre as questões controvertidas.

Os problemas que podem surgir na ação comunicativa são de dois níveis: no

primeiro nível, pode ser problematizada a interpretação da ação com base em valores ou

normas previamente dados, enquanto, no segundo, os próprios valores ou normas de

ação são postos sob suspeita. No primeiro nível, a reflexividade da linguagem permite

que os sujeitos cheguem a um entendimento sobre a interpretação correta dentro da

própria ação comunicativa, porém, no segundo, exige que se suspenda a ação e eles

entabulem os discursos práticos de fundamentação, nos quais somente são válidos os

melhores argumentos.

Os discursos práticos podem ser pragmáticos, éticos ou morais. Os

discursos pragmáticos avaliam programas coletivos de ação, os discursos éticos

investigam quais valores podem merecer o reconhecimento dos participantes, enquanto

os discursos morais examinam quais normas de ação são corretas na medida em que

podem ser do interesse simétrico de todos os implicados. Existem também as

negociações sobre interesses submetidas a condições equitativas. A liberdade

Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 212-213. 109 ibidem, v. I, p. 212-214.

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comunicativa dos sujeitos produzida na ação comunicativa ou nos discursos práticos,

bem como as negociações sob condições equitativas servem-se das redes de

comunicação da esfera privada, podem permitir a formação da opinião pública dos

cidadãos na esfera pública e chegar a ser institucionalizadas nos discursos jurídicos,

bem como nas instituições do estado de direito.

Habermas reconstroi os conceitos de poder e violência de acordo com sua

teoria da ação comunicativa por meio da figura desprovida de subjetividade de uma

sociedade civil acostumada à liberdade, cujos cidadãos podem formar a opinião e a

vontade na esfera pública fazendo uso de sua liberdade comunicativa mediante a

capacidade de chegar ao entendimento que os cidadãos dispõem no mundo vivido.

Com base nessa perspectiva intersubjetiva surgem três conceitos diferentes

de poder: poder comunicativo, poder administrativo e poder social. O poder

comunicativo constitui-se mediante os meios discursivos dispersos de uma opinião

pública que pode chegar a um consenso sobre metas políticas em discursos pragmáticos,

valores compartilhados em discursos éticos ou normas de ação em discursos morais,

assim como sobre seus interesses em negociações equitativas. Este poder comunicativo,

que surge discursivamente nas instâncias da opinião pública, tem de penetrar nas

estruturas do estado de direito de tal modo que possa orientar as ações do poder

administrativo110.

O poder administrativo consiste na substituição da violência, que os

indivíduos possuem em estado natural, pela violência organizada do estado civil,

permite a constituição das instâncias do estado de direito, a legislação o governo e a

justiça como uma ordem legal e, por fim, estabelece faculdades e competências que

autorizam o estado de direito a tomar decisões vinculantes. Com a subordinação do

poder administrativo do estado de direito ao poder comunicativo dos cidadãos, as

instituições do estado de direito amoldam-se às condições normativas da autolegislação;

isso, porém, somente pode ocorrer porque o direito funciona como meio de

transformação do poder comunicativo em administrativo, uma vez que, do ponto de

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vista do sistema político, o consenso que se gera discursivamente e as razões que se

aduzem a favor das leis continuam sendo interpretados, pela óptica do poder, como

resultado do conflito entre interesses divergentes111.

Por último, na esfera da opinião pública, também pode surgir o poder social,

que mede a possibilidade de um agente impor seus próprios interesses nas relações

sociais, até mesmo contra a resistência dos demais112; este poder nasce pela pressão que

exercem os grupos de interesses para influenciar a legislação, o governo e a justiça.

Habermas entende que o poder social compete com o poder comunicativo pela

influência sobre o poder administrativo, porém, apesar de que o poder social pode tanto

representar os interesses de grandes grupos econômicos, vir manipulado pela

publicidade e pelos meios de comunicação, por um lado, ou dar expressão a interesses

generalizáveis, a exemplo das questões ecológicas ou sociais fomentadas pelas

organizações não governamentais, por outro lado, tem que ser neutralizado quando se

considera a perspectiva normativa da legislação113.

Todo poder político tem de emanar do poder comunicativo que surge da

liberdade comunicativa dos cidadãos, os quais são capazes de chegar ao entendimento

no mundo vivido por meio da reflexividade inerente à ação comunicativa ou dos

discursos práticos de fundamentação de programas coletivos de ação, valores

compartilhados e normas morais, além das negociações sob condições equitativas114.

A tranformação do poder comunicativo em poder administrativo somente

pode ocorrer por causa da tensão interna entre direito e política dentro do estado de

direito. O sistema político é um sistema funcional especializado no uso instrumental do

poder administrativo, enquanto o direito permite a institucionalização do poder

comunicativo gerado pelos cidadãos. Habermas observa, contudo, que esta tensão

interna nem sempre reflete um intercâmbio equilibrado entre direito e política. Nas

110 ibidem, v. I, p. 185-186. 111 ibidem, v. I, p. 189-190. 112 ibidem, v. I, p. 219. 113 ibidem, v. I, p. 219. 114 ibidem, v. I, p. 185 e 213-214.

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sociedades tradicionais, o direito exercido burocraticamente pelo príncipe era

fundamentado metafisicamente na lei eterna de Deus, assim como empiricamente nos

costumes seculares, o que conferia legitimidade ao direito positivo. Com o surgimento

da modernidade, o direito natural racional substituiu a legitimidade proveniente do

direito divino pela razão natural, mas deixou claro que o direito poderia servir tanto para

a institucionalização das liberdades fundamentais do indivíduo ou da vontade soberana

dos cidadãos como para conferir legalidade ao uso instrumental do poder político115.

Para mostrar como o poder comunicativo pode transformar-se em poder

administrativo e evitar a autoprogramação do sistema político, Habermas fundamenta os

princípios do estado de direito com base no princípio da soberania popular reconstruído

intersubjetivamente de acordo com a teoria do discurso116. Habermas confia, não na

sociedade burguesa, como faz o liberalismo, mas especialmente na socidade de

cidadãos. A idéia de sociedade civil parece uma tentativa prático-sociológica de

verificação da concepção, em princípio puramente normativo-reflexiva, da ética do

discurso.

Do ponto de vista normativo, o poder comunicativo deve ser gerado pela

totalidade dos cidadãos sobre a base do uso de suas liberdades comunicativas no mundo

vivido. Habermas considera que é indispensável garantir um amplo espaço de

participação para os cidadãos no plano da sociedade civil no que se refere à

apresentação de temas e contribuições com a finalidade de formar a opinião e a vontade

sobre matérias capazes de constituir-se em lei por meio dos discursos práticos que

demandam a livre circulação de informações e razões117. Por outro lado, os cidadãos,

na sociedade civil, podem formar a opinião e a vontade por meio dos discursos práticos

e das negociações sob condições equitativas, porém, não podem organizar-se para

deliberar, o que torna necessário introduzir o princípio parlamentar, que possibilita

instituir corpos legislativos encarregados de tomar decisões118. Uma sociedade civil,

115 ibidem, v. I, p. 184-185. 116 ibidem, v. I, p. 212. 117 ibidem, v. I, p. 213. 118 ibidem, v. I, p. 214-215.

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capaz de organizar-se, permite a fluidificação da soberania popular entre o espaço

informal da opinião pública e as instituições porosas do estado de direito119.

O poder legislativo é o único que dispõe de todo o espectro de razões e

formas de comunicação correspondentes desenvolvidas com base na perspectiva de

fundamentação nas normas de ação. O legislativo elabora discursivamente as questões

pragmáticas, éticas e morais além das negociações sob condições equitativas, com a

finalidade de fundamentar as respectivas normas de ação. A justiça também dispõe de

todas as classes de razão e formas de comunicação, porém com base na perspectiva dos

discursos de aplicação que permitem chegar à sentença consistente, submetida à

coerência do ordenamento jurídico. Por fim, o executivo limita-se às questões e

discursos pragmáticos que definem os programas de ação dentro do marco da lei e opera

segundo a racionalidade estratégica na escolha de tecnologias e processos para a

realização mais eficiente de seus fins120.

De acordo com a lógica da argumentação, portanto, o legislativo, em

sintonia com a comunicação política dos cidadãos na esfera pública, encarrega-se dos

discursos de fundamentação, enquanto o poder judiciário institucionaliza os discursos

de aplicação de normas, segundo o princípio da adequação apresentado por Klaus

Günther. A diferença entre discursos de fundamentação e discursos de aplicação

implica uma estrutura de comunicação distinta nos âmbitos do legislativo e do

judiciário. Nos discursos legislativos de fundamentação, somente há participantes

orientados pela busca cooperativa do entendimento sobre a validade das normas de

ação, enquanto nos discursos jurídicos de aplicação, há uma diferenciação de papéis

entre os representantes das partes litigantes, que oferecem distintas perspectivas sobre

os fatos, assim como sobre sua interpretação, perante o juiz que, por outro lado, assume

a função de representante imparcial da comunidade jurídica e precisa justificar a

sentença ante um espaço público jurídico composto por membros da magistratura,

profissionais do direito e cidadãos em geral, enquanto membros da comunidade aberta

119 ibidem, v. I, p. 213. 120 ibidem, v. I, p. 239.

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dos intérpretes da constituição. A argumentação jurídica não tem o sentido da busca

cooperativa do entendimento, uma vez que cada uma das partes tem o dever de defender

os interesses de seus clientes121.

A ética discursiva, contida na obra de Habermas, caracteriza-se por

negociações sob condições equitativas e os discursos práticos pressupõem uma série de

idealizações, específicas para cada caso. Assim, a teoria da argumentação demanda que

os participantes nos discursos práticos no plano lógico-semântico, por exemplo, não se

contradigam, não atribuam predicados diferentes para um mesmo sujeito da proposição

e não usem uma mesma expressão em sentidos diferentes; no plano procedimental, que

sejam sinceros em suas declarações e somente ponham em dúvida uma norma que

aparentemente não seja suscetível de aprovação, dando razões para isto, assim como, no

plano pragmático, que exige a participação de todo sujeito capaz de comunicar-se,

permitam a problematização de qualquer norma relevante e não impeçam

coercitivamente a expressão de ninguém.

Consequentemente, essas idealizações inerentes aos pressupostos

comunicativos dos discursos práticos somente podem ser realizados de modo

aproximado, porque, por um lado, a argumentação tem de prosseguir até que todos os

implicados pela entrada em vigor da norma possam aceitá-la e, por outro, como não

existe um critério independente do procedimento para determinar a validade do

resultado, isso implica a possibilidade de retomar-se constantemente a avaliação das

normas em função de novas informações e razões. Portanto, os exigentes pressupostos

da argumentação racional envolvem um momento de falibilismo que é incompatível

com a necessidade de tomar decisão das instituições do estado de direito. Por isso,

Habermas observa que a institucionalização das negociações sob condições equitativas e

os discursos práticos nos procedimentos jurídicos implica a introdução de restrições

relativas a aspectos temporais, sociais e de conteúdo aos quais eles não estão

121 ibidem, v. I, p. 215-216.

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inicialmente submetidos; sua inserção, porém, nos discursos jurídicos do estado de

direito tem que deixar intacta a lógica própria dos discursos práticos122.

A ideia procedimental de soberania popular, por um lado, implica que a

forma do mandato e a composição dos parlamentos dependam do tipo de razões e

formas de comunicação correspondentes a cada caso. As negociações sob condições

equitativas determinam que os representantes sejam escolhidos para negociar

compromissos, o que exige que todos os interesses e preferências axiológicas possam

contar com o mesmo peso. Como nas negociações os interesses e valores estão

previamente fixados, não pode haver nenhuma diferença entre a vontade popular

empírica e a vontade popular hipotética, o que define os mandatos como imperativos123.

Os discursos éticos e morais, por outro lado, não pressupõem posições dadas

de antemão, mas um intercâmbio entre os cidadãos que constituem a opinião pública e

seus delegados nos corpos legislativos, pois os interesses e preferências de valores

podem modificar-se discursivamente através do fluxo de informações e razões124. Os

discursos éticos, por exemplo, estão orientados para a busca da autenticidade, e

permitem que os implicados possam chegar ao autoentendimento a respeito de sua

própria forma de vida, o que possibilita tanto a crítica como o fortalecimento da

identidade coletiva. Portanto, nos discursos de autoentendimento não pode haver não-

implicados, pois todos os membros do coletivo devem poder participar do discurso.

Apesar de que motivos técnicos obrigam a que esses discursos realizem-se por meio de

representantes, eles têm de satisfazer à condição de participação de todos os membros

por igual, o que demanda serem os deputados abertos e sensíveis às informações e

razões que brotam da opinião pública dos cidadãos125.

Os discursos morais, por fim, permitem que os participantes cheguem a um

acordo sobre a validade das normas de ação que possam ser do interesse simétrico de

todos. Assim como nos discursos éticos, a forma de escolha dos delegados deve

122 ibidem, v. I, p. 222-223. 123 ibidem, v. I, p. 226. 124 ibidem, v. I, p. 222-223. 125 ibidem, v. I, p. 225-227.

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136

assegurar a inclusão de todas as perspectivas relevantes, a qual também se pode

modificar em função das informações e razões apresentadas discursivamente, que, por

isso, requerem dos representantes sensibilidade para os fluxos de comunicação que

emanam da esfera pública; ao contrário, contudo, dos discursos éticos de

autoentendimento, o conjunto dos implicados não se limita somente aos membros de

uma comunidade particular, mas a todos os seres humanos em geral, o que obriga a uma

composição de delegados capazes de distanciar-se, até mesmo, do etnocentrismo de sua

forma especial de vida126.

126 ibidem, v. I, p. 227-228.

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137

PARTE III – SÍNTESE ACERCA DA VALIDADE, FACTICIDADE E

CRÍTICAS QUE SE FAZEM À ÉTICA DISCURSIVA

CAPÍTULO VI – VALIDADE E FACTICIDADE DA ÉTICA DO

DISCURSO

6.1 – PRETENSÕES DE VALIDADE127

Se fixarmos a atenção no caminho seguido para extrair a pretensão de

validade como elemento constitutivo do ato de fala, veremos que o fio condutor para

descobrir o tipo satisfatório de condições para que o ato seja adequado consistiu em

considerar os aspectos sob os quais uma emissão poderia ser criticada e ou rejeitada por

um ouvinte (entende-se por ouvinte todo aquele que participa de uma discussão e que,

obviamente, não é o falante). Assim, quando estamos nessa situação de ouvinte

devemos confirmar as pretensões de validade do falante ou então negá-las,

justificadamente. O falante não pode negar diante do ouvinte que esteja pretendendo

validade para o que diz, a menos que faça um uso abertamente estratégico da

linguagem. É seguindo este fio condutor que se descobrem os diferentes tipos de

pretensões de validade dos atos de fala e, junto com ele, os diferentes tipos de

referências à realidade. Para Apel a verdadeira prova das pretensões de validade só

pode ser realizada no discurso, mediante a contradição performativa de quem tentar

negá-las: o falante não pode afirmar sem contradição, em um discurso, por exemplo,

que afirma algo mas que não tem qualquer pretensão de verdade para a sua afirmação.

Vejamos o exemplo de Habermas:

127 HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa. Vol. I. Madri/Espanha: Taurus, 1987, p. 391-392.

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O professor de um seminário dirige a um dos participantes a seguinte

ordem:

— Por favor, traga-me um copo d’água.

O aluno pode recusar o pedido no que diz respeito a três aspectos de

validade.

Ou bem ele questiona a correção normativa da emissão:

— Não, você não pode me tratar como se eu fosse um criado.

Ou pode colocar em questão a veracidade subjetiva da emissão:

— Não, o que você pretende é me deixar em má situação diante de meus

companheiros de seminário.

Ou então pode questionar o cumprimento de determinados pressupostos de

existência:

— Não, o bebedouro mais próximo fica muito longe, e não poderei estar de

volta antes do fim da sessão.

No primeiro caso, questiona-se que a ação do falante seja correta dentro de

um contexto normativo dado; no segundo, questiona-se a sinceridade do falante (pois

suspeita-se que ele, na realidade, persiga com sua emissão um efeito perlocucionário);

no terceiro caso, questionam-se enunciados que o falante supõe verdadeiros. Dado que

cada ato da fala pode ser rejeitado sob cada um desses três aspectos, portanto, são três as

pretensões de validade que se associam a eles. Não obstante já tenhamos tratado delas

anteriormente, vale a pena revê-las agora por uma outra característica. As pretensões de

validade são correção, veracidade e verdade. A rigor são quatro. Às mencionadas

deve-se acrescentar a inteligibilidade. Trata-se da pretensão que temos de supor em

cada falante de que sua emissão tenha um sentido compreensível. Ela é a única das

pretensões “imanente à linguagem”, pois as outras põem a emissão do falante em

relação com ordens da realidade extralinguísticas. Voltemos às três pretensões de

validade, as quais, por sua vez, cada uma delas, coloca a emissão em determinadas

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relações com a realidade (ou com o mundo social, ou com o mundo objetivo ou ainda

com a própria realidade interna do falante, o mundo subjetivo). Estas relações com o

mundo se estabelecem de modo reflexivo, e são elas que permitem fazer distinções entre

dever e ser; ser e parecer; e essência e manifestação. É a capacidade de fazer essas

distinções que permite o entendimento e a problematização dos consensos factualmente

estabelecidos.

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140

6.2 – RETITUDE ou CORREÇÃO (Richtigkeit)

A retitude, também entendida como correção (Richtigkeit), componente da

pretensão de validade na ética discursiva de Habermas, tem fundamental importância

para o Direito, razão pela qual faremos mais alguns comentários, não obstante sua

menção em subcapítulos anteriores. Adotaremos indistintamente, neste trabalho,

retitude ou correção.

No dia-a-dia, as pretensões de validade que se ligam a cada ato de fala são,

em geral, aceitas ingenuamente, mas também podem ser problematizadas. Quando o

que se problematiza são as pretensões de verdade ou de correção, tem-se a passagem da

ação comunicativa para o discurso. Um discurso é uma série de ações interligadas

dedicadas a testar a verdade de asserções, caso se trate de um discurso teórico, ou a

correção de afirmações normativas, se se trata de um discurso prático. Por outras

palavras, Habermas aceita apenas a verdade e a retitude como possíveis pretensões

resgatadas discursivamente. Para ele, a verdade deve ser justificada em um discurso

teórico e a retitude em um discurso prático. Nessa linha de entendimento, Alexy não

destoa de Habermas ao afirmar que no discurso teórico a pretensão de validade

problematizada é a verdade, e sua justificação se realiza aduzindo fatos como razões,

assim como no discurso prático a pretensão de validade problematizada é a correção

normativa, e sua defesa é feita mediante a invocação de normas socialmente

compartilhadas. Um discurso racional prático é um procedimento para provar e

fundamentar enunciados normativos e valorativos por meio de argumentos128.

Para que haja o entendimento as condições resumem-se no: a) o

cumprimento das quatro pretensões de validade — verdade, retitude, veracidade e

inteligibilidade, sendo esta última condição de compreensão de qualquer ato de fala, b)

128 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução Zilda Hutchinson Schild Silva. Revisão técnica da tradução e introdução à edição brasileira Cláudia Toledo. São Paulo: Landy Editora, 2005, p. 183.

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141

a resolução discursiva destas pretensões, e c) o primado da racionalidade comunicativa

sobre a estratégia.

Especificamente em relação à retitude ou correção são evocadas pretensões

de retitude no que concerne a valores e normas compartilhadas em nosso mundo social,

ou seja, garantem a interação entre os atores sociais e o mundo social. Portanto, nessas

pretensões, temos que os atos de fala são regulativos, referem-se ao mundo social e

cuja função pragmática tem natureza regulativa. Destarte, ações reguladas por normas

encarnam um saber prático-moral, que podem ser contestados sob o aspecto da

correção. Segundo Habermas, uma pretensão de correção pode ser tematizada e

verificada de modo discursivo, da mesma forma que uma pretensão de verdade. Neste

caso, os participantes podem verificar tanto a correção de uma determinada ação com

referência a uma dada norma como igualmente a correção dessa própria norma.

Por outras palavras, para Habermas, a retitude é a pretensão que eleva a

inteligibilidade, e que admite a comunicabilidade universalizável. Um bom argumento

é aquele que idealmente será não somente compreendido, sendo ele plausível, mas

aceitável por todas as partes interessadas. É sobre este horizonte de consenso universal

que se colocará as regras formais de toda discussão pretensa à retitude. Estas regras

constituem o essencial da pragmática universal do discurso, cujo acento normativo

deve ser fortemente sublinhado, a fim de expungir qualquer argumentação estratégica

consequência de uma retitude fraudulenta. Resulta que, quando se percebe que o

consenso está fora do alcance, ou seja, irrealizável, frente a uma fundamentação

insuficiente ou interesseira por parte de alguns participantes do diálogo, deve-se valer

da argumentação jurídica com o objetivo de completar as regras gerais do discurso

normativo em um campo particular, o do direito. O discurso jurídico caracteriza-se

como uma espécie particular do gênero discursivo prático geral, no dizer de Robert

Alexy.

Com efeito, Alexy, para desenvolver sua teoria da argumentação jurídica,

que é uma teoria procedimental formado por um sistema de regras, propõe,

primeiramente, uma teoria geral do discurso prático, racional, nos moldes como foi

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elaborada por Habermas e, nesse lineamento, desenvolve a tese de que o discurso

jurídico é um caso especial do discurso prático geral, ou seja, uma atividade linguística,

guiada por regras, com a qual se objetiva a correção de enunciados normativos. O

discurso jurídico se distingue, porém, das demais formas de discurso pelo fato de estar

submetido a uma série de condições limitadoras, como, por exemplo, sujeição à lei,

consideração de precedentes etc. Isto conduz, aparentemente, a uma dificuldade, uma

vez que as decisões jurídicas, em geral, não serão justificadas em sentidos absoluto e

universal, mas apenas dentro do marco de determinado sistema jurídico particular, o

que poderia, em princípio, desqualificar a tese do “caso especial”, defendida por Robert

Alexy.

Habermas, inicialmente, concorda com Alexy, no sentido de que a

argumentação jurídica, em todo o seu caráter institucional, deve ser conceituada como

um caso especial do discurso prático, mas, posteriormente, levantou uma série de

objeções, pois, para ele, a tese do caso especial sugere uma falsa subordinação do

direito à moral, porque ainda não está totalmente liberta de conotações do direito

natural129. Alexy repele a crítica esclarecendo que o seu fio condutor é a tensão entre

facticidade e validade ou, mais especificamente, entre o princípio da segurança jurídica

e a pretensão à correção das decisões.

Não obstante a discussão entre Habermas e Alexy sobre a possibilidade de

conceituar ou não a argumentação jurídica como um caso especial do discurso prático,

para Robert Alexy, o direito é um sistema normativo que formula uma pretensão à

correção, que consiste na totalidade das normas estabelecidas em conformidade com a

Constituição e que apresenta um mínimo de eficácia social e não são extremamente

injustas e ao qual pertencem os princípios e outros argumentos, nos quais se apoia o

procedimento de aplicação do direito para satisfazer à pretensão à correção. Esta é uma

definição jurídica do direito a partir da perspectiva do participante, ou seja, daquele

que, num sistema jurídico, participa de uma argumentação sobre o que nele é ordenado,

129 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Vol. I, 2ª edição. Tradução Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 287-291.

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proibido, permitido e autorizado. De modo que o juiz é o participante central, enquanto

que outros, como juristas, advogados ou cidadãos interessados no sistema jurídico,

apresentam argumentos a favor ou contra determinados conteúdos do sistema jurídico,

que, em última instância tem a pretensão de influenciar o juiz na sua decisão. Já o

interesse do mero observador reside em saber como de fato se decide num sistema

jurídico e não o que é uma decisão correta.130.

No que concerne às limitações específicas ao discurso jurídico, é preciso

recordar a diversidade de lugares onde ele se desenrola. Sem dúvida, as cortes, os

tribunais, as varas e seus juízes são alguns desses locais. Paralelamente, temos a

instância legislativa, produtora das leis, assim como a instância dos juristas. Chäim

Perelman acrescenta a opinião pública e, no limite, o auditório universal à discussão do

qual são submissas as teorias dos juristas, as leis emitidas pelos corpos legislativos,

enfim as decisões emitidas pelas instâncias judiciárias. De todas estas instâncias, é a

judiciária que se submete aos constrangimentos mais fortes, suscetíveis de aprofundar

um desvio entre o discurso prático geral e o discurso judiciário.

Como se dão esses constrangimentos ao discurso jurídico? Primeiramente,

a discussão se desenrola dentro de um recinto institucional próprio (tribunais e cortes).

Nesse recinto as questões não são abertas ao debate, mas somente aquelas que se

inserem no quadro codificado do processo. Durante a instrução do próprio processo, os

papéis nem sempre são igualmente distribuídos (há convocados, intimados, supremacia

do ente público etc.). Além disso, a deliberação é submissa à legislação substantiva e

às regras processuais, ambas codificadas. Acrescente-se ainda que à deliberação

judiciária há limitações temporais, diferentemente das deliberações legislativas.

A princípio, a discussão na instância judiciária não visa um acordo. Julgar

consiste em resolver e, portanto, em separar as partes, em instituir uma justa distância

entre elas. Enfim, a obrigação legal do juiz é a de julgar. Mas, então, como fica o

130 ALEXY, Robert. Conceito e validade do direito. Organização Ernesto Garzón Valdés ...[et al.]. Tradução Gercélia Batista de Oliveira Mendes e revisão da tradução Karina Jannini. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 30 e 151.

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“caso especial” do discurso prático defendido por Alexy em relação ao discurso

normativo geral? Alexy e os seguidores dessa teoria insistem que a pretensão à

retitude de um argumento jurídico não difere em nada daquele de todo discurso

normativo. A norma geral é implícita. Idealmente, o perdedor, o condenado, é incluído

no reconhecimento desta pretensão supostamente dividida por todas as partes presentes.

Esta pressuposição implícita se exprime dentro de certos sistemas jurídicos pela

obrigação de motivar a decisão. Mas, mesmo se a decisão não é publicamente

motivada, ela é pelo menos justificada pelos argumentos usados. Isto porque um juiz

não pode ao mesmo tempo decidir em um caso e declarar que a sua sentença é injusta.

Seria uma evidente contradição performativa. Nenhum sentido teria se a argumentação

jurídica não tivesse como horizonte o discurso normativo geral visando a retitude.

Caso ocorresse a hipótese, a correção do discurso normativo poderia dar-se não mais

naquela instância, mas em outra superior e assim por diante até se completar, agora por

uma decisão com a participação não mais de todos os concernidos, mas restrito aos

membros qualificados de um colegiado (decisão última de um tribunal).

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6.2.1 - PRETENSÕES DE CORREÇÃO

Neste subitem do subcapítulo, aprofundaremos um pouco mais acerca de

tese do caso especial e das pretensões de correção levantadas no Direito por Robert

Alexy e suas aproximações com Habermas. Sua teoria lança bases sólidas para uma

teoria não-positivista do direito, que é feita pela conexão necessária entre direito e

moral. Sua posição no campo do direito se amalgama com a ética do discurso

desenvolvida por Habermas, com implicações relevantes para a filosofia do direito,

sobretudo a relação entre direito e moral, entre direito e razão prática e entre

argumentação jurídica e argumentação prática. No entanto, não nos estenderemos na

reflexão, por se tratar de questão marginal a esta dissertação.

Preliminarmente, faremos uma síntese, com o intuito de propiciar o

entendimento sobre em que consiste a chamada pretensão de correção no campo do

Direito, formulada por Robert Alexy, e que se alinha a Habermas, publicada em artigo

na Revista de Direito Administrativo, da Fundação Getúlio Vargas131. Segundo Alexy,

o direito possui uma natureza dupla: há uma dimensão real ou fática e uma dimensão

ideal ou crítica. O lado fático diz respeito à aplicação de normas e à eficácia social, o

que recai em um conceito de direito positivista, mas ao se agregar à dimensão ideal que

se assenta na correção moral, forja-se um conceito de direito não-positivista. Logo, a

tese da dupla natureza do direito implica o não-positivismo e se desdobra em um

sistema, subdividido em correção e discurso, positividade e institucionalização da

razão. Ao escopo desde trabalho, cingiremos à correção.

Para Alexy, a pretensão de correção resume-se necessariamente em

responder às seguintes perguntas: 1) que significa dizer que o direito erige uma

pretensão?, 2) que se entende pelo caráter necessário da pretensão? e 3) em que

consiste o conteúdo da pretensão?

131 ALEXY, Robert. Artigo: Principais elementos de uma teoria da dupla natureza do direito. Revista de Direito Administrativo da Fundação Getúlio Vargas. Tradução Fernando Leal. Rio de Janeiro: Editora Direito Rio, jan./abr. 2010, p. 9-30.

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Erigir uma pretensão é uma ação que pode ser intentada por qualquer

sujeito apto a agir e falar, no entanto, o direito, como um sistema de normas, não pode

erguer nenhuma pretensão, significa apenas que aqueles que a levantam criam,

interpretam, aplicam e implementam, operam no e para o direito. O ato de erigir uma

pretensão de correção demanda que o ato jurídico seja correto quanto ao conteúdo e

procedimento, que assegure fundamentabilidade e que quem se colocar sob o enfoque

do sistema jurídico tenha-o como válido. O caráter necessário da pretensão assenta-se

em uma ausência de contradição, pois, caso contrário, teríamos no direito claúsulas

injustas, simplesmente porque não foram levantadas pretensões de correção, que viriam

corrigir essas injustiças. Por fim, quanto ao conteúdo da pretensão erigida, depende-se

do contexto institucional. Para uma assembleia constituinte, por exemplo, haverá

critérios diversos de correção das que valeriam para as decisões judiciais. De qualquer

forma, a pretensão de correção do direito, em qualquer contexto, compreende sempre

uma pretensão de fundamentabilidade e de correção moral. Ou seja, é asseverado que o

direito posto é eficaz e observado, como também ele mesmo e sua interpretação são

corretos.

Segundo Alexy, a correção depende do discurso, mais precisamente da

teoria do discurso. É em torno dessa teoria procedimental da verdade ou da correção,

consistente em um sistema de regras discursivas que exteriorizam as condições do

argumentar prático racional, como tratado nos capítulos anteriores, que há uma

convergência de ideias entre Alexy e Habermas.

Feita essa rápida excursão, voltemos, pois, para a tese do caso especial de

Alexy, que muito tem a ver com as pretensões de correção apresentadas por Habermas.

A fundamentação da tese do caso especial proposta por Alexy e seu

principal elemento, a pretensão de correção, contém não só um ataque à principal tese

positivista, consistente na separação entre direito e moral, como também desenvolve

uma nova teoria do direito fundada na ideia de que este é a institucionalização da razão

prática e que, por isso não só ele deve ser concebido como um sistema de regras,

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147

princípios e procedimentos, como também a argumentação prática geral deve ser

integrada na argumentação jurídica.

Para Alexy, a tese do caso especial se estrutura não só como uma

sistematização e reinterpretação da teoria do discurso prático habermasiana, mas

também como uma extensão dessa tese para o campo específico do direito132

No prefácio da obra Teoria da argumentação jurídica, Robert Alexy

elucida que, com a resolução de 14 de fevereiro de 1973 da Primeira Turma do

Tribunal Constitucional Federal da Alemanha que exigiu que as decisões dos juízes

devem se basear em “argumentos racionais”, iniciou um trabalho de investigação a fim

de responder à questão sobre o que deve ser entendido como argumentação jurídica

racional, bem como a de se e com que alcance ela é possível. Também nesse caso, não

iremos adentrar no desenvolvimento da obra, por fugir ao escopo deste trabalho, mas

procuraremos destacar a questão das pretensões de correção.

Por seu turno, na introdução à edição brasileira da obra mencionada,

Cláudia Toledo, Doutora em Filosofia do Direito e Teoria do Direito pela Universidade

Federal de Minas Gerais e pós-doutorado em Filosofia do Direito pela Universidade

Federal de Santa Catarina, ilustra que o discurso, se é voltado para o agir humano, é

pratico, e se busca sua orientação, é normativo. A grande dificuldade com que esse

discurso se depara para que seja racional, ultrapassando a simples opinião, não é a

existência de normas técnicas, mas, do ponto de vista procedimental, a sua construção

argumentativa de modo que se encontre o resultado correto. Assim, conclui, o discurso

prático deve obedecer a certas regras que buscam a correção dos argumentos, ou seja, é

correto o que é discursivamente racional. Há, portanto, identidade no discurso entre

racionalidade e correção. Esta é a concepção da teoria consensual da verdade

habermasiana que Alexy adota, após algumas modificações críticas, na formulação de

seu discurso prático racional geral e do discurso jurídico.

132 ATIENZA, Manule. As razões do direito: teorias da argumentação jurídica. Tradução Maria Cristina Guimarães Cupertino. 3ª edição. São Paulo: Landy, 2003, p. 160.

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148

E prossegue a comentadora, a teoria da verdade, nos moldes aristotélicos, é

superada, pois não mais se considera a verdade como a correspondência entre a

asserção e a realidade, mas a algo construído discursivamente. A verdade não está

mais no mundo vivido, na natureza, mas torna-se produção cultural, ou seja, a verdade

é, em primeiro lugar, assumida, ou seja, historicamente construída, mas pode ser

negada ou superada em seguida, frente a uma nova verdade, o que lhe confere caráter

de provisoriedade.

Segundo Alexy, a diferença entre o discurso jurídico e o discurso prático

racional geral está em ser o primeiro vinculado ao direito vigente, apresentando-se por

isso como um caso especial do discurso prático racional geral. Esclarece que o direito

de que trata é o objetivo e não apenas o positivo, pois inclui, além das normas jurídicas

expressas, aquelas presentes na totalidade do ordenamento jurídico, passíveis de

objetivação pelos métodos de integração.

A comentadora Cláudia Toledo sintetiza:

“O discurso jurídico é prático por se constituir

de enunciados normativos . É racional por se

submeter à pretensão de correção discursivamente

obtida. É especial por se subordinar a

condições limitadoras ausentes no discurso

prático racional geral, a saber — a lei , a

dogmática e os precedentes . Essas condições,

que institucionalizam o discurso jurídico,

reduzem consideravelmente seu campo do

discursivamente possível na medida em que

delimitam mais precisamente de quais premissas

devem partir os participantes do discurso,

fixando ainda todas as etapas da argumentação

jurídica mediante as formas e regras dos

argumentos jurídicos” 133

133 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução Zilda Hutchinson Schild Silva. Revisão técnica da tradução e introdução à

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O fundamento da tese do caso especial de Alexy pode ser restreado a partir

de simples perguntas que surgem quando se discute sobre o valor das sentenças e a

legitimidade do juiz em proferi-las, como, por exemplo, se as sentenças são arbitrárias,

subjetivas, ou se refletem apenas emoções do juiz ou do falante; se pode o juiz dar uma

sentença sem afirmar, ainda que implicitamente, que ela é correta; se discussões em

torno de controvérsias jurídicas tivessem algum significado se fossem consideradas

apenas uma opinião subjetiva, sem fundamentos que pudessem ser aceitos por todos.

Em todos estes exemplos, a resposta será negativa para Alexy, pois toda proposição

jurídica levanta necessariamente uma pretensão de correção. E uma proposição que se

pretende correta é aquela que pode ser justificada racionalmente através de uma

argumentação racional, tal como conceitua Habermas: “Correção significa

aceitabilidade racional, apoiada em argumentos.”134

Alexy entende que o juiz não se despoja de toda carga pessoal na

fundamentação de suas decisões. Há nelas uma mescla entre a sua impressão e a

necessidade de justificação, que deve ser feita à luz do ordenamento jurídico vigente e

tida como uma tentativa de dar a resposta mais adequada ao caso. Por outras palavras,

a pretensão de correção que necessariamente todo ato de fala normativo levanta visa

criar um critério ideal de verdade prática que, embora não possa ser alcançado, deve ser

incessantemente buscado a fim de que os atos dos participantes tenham sentido. Uma

decisão judicial sempre é proferida com a convicção de que se está aplicando o direito

corretamente. Quer seja numa norma individual quer seja num sistema jurídico é

levantada pretensão de correção, ainda que com características diferentes. Sistemas

normativos que não formulam explícita ou implicitamente uma pretensão de correção

não podem ser classificados como sistemas jurídicos. Portanto, segundo Alexy, a

pretensão de correção é uma necessidade resultante da própria estrutura dos atos

jurídicos e do raciocínio jurídico.

edição brasileira Cláudia Toledo. São Paulo: Landy Editora, 2005, p. 23. 134 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Vol. I, 2ª edição. Tradução Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 281.

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150

A tese do caso especial de Robert Alexy advoga que o discurso jurídico é

um caso especial do discurso prático geral. Isso porque o discurso jurídico compartilha

de certas semelhanças com o discurso prático geral, não obstante diferencia do mesmo

em alguns aspectos. Ambos lidam com questões práticas e suas proposições erigem

uma pretensão de correção. Uma distinção fundamental é que a pretensão de correção

erigida por uma proposição jurídica é limitada, ou seja, ela deve ser considerada correta

no contexto do ordenamento jurídico vigente e suas condições limitadoras,

essencialmente a lei, a dogmática e os precedentes. Frise-se que Alexy não é claro

sobre o que ele entende por discurso jurídico. Sabemos que há diversos tipos de

discursos jurídicos, os quais diferem em extensão e aos tipos de limitações, há desde

aqueles que se desenrolam na dogmática, como os que se desenvolvem nos tribunais ou

nas salas de aulas. Ainda que se diferenciam em vários pontos, compartilham, no

entanto, em dois pontos essenciais: em todas as formas de argumentação o argumento

é, sobretudo, jurídico, e em todos eles nem todas as questões estão abertas ao debate.

Os discursos acadêmicos são mais livres, enquanto que num processo os limites são

maiores. Embora a diferenciação e o afastamento do discurso jurídico com relação ao

discurso prático geral possam apresentar variações, nunca se rompe o vínculo

estabelecido entre eles pela pretensão de correção que ambos possuem.

A pretensão de correção implícita nas proposições jurídicas é tornada

explícita pela institucionalização do dever dos juízes de justificarem suas decisões.

Nesse sentido, pronuncia-se Alexy: “No discurso jurídico, assim como no discurso

prático geral, não é admissível afirmar algo e depois se negar a fundamentá-lo, sem

indicar razões para isso. Os enunciados jurídicos formulam, portanto, como os

enunciados normativos gerais, uma pretensão de correção.”135. Um juiz deverá em sua

fundamentação demonstrar que sua sentença não se baseia em convicções pessoais,

mas racionalmente justificada no contexto da ordem vigente.

135 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução Zilda Hutchinson Schild Silva. Revisão técnica da tradução e introdução à edição brasileira Cláudia Toledo. São Paulo: Landy Editora, 2005, p. 212.

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151

Embora os críticos da tese de que questões jurídicas não seriam práticas,

pois são tratadas como teóricas pelos agentes do discurso jurídico, além de serem

predeterminadas fortemente pelos precedentes e pela lei, o fato é que sempre que uma

norma jurídica é desafiada, entra-se num discurso prático. As restrições não

conseguem por si só destituir questões jurídicas de seu caráter prático. Não obstante a

parte busque seu interesse em um processo, isso não elimina o caráter objetivo da

pretensão de correção. A subjetividade das partes não tem o condão para eliminar a

pretensão de correção. Os argumentos utilizados pelos contendores contribuem

efetivamente para que o juiz emita um juízo imparcial, sem que isso reduza os

participantes a meras fontes de informação. Pois, se o juiz quer decidir corretamente

deve ouvir todos os argumentos, e se a correção da sua decisão está sujeita a controle,

deverá justificar seu juízo ante os participantes, o sistema jurídico e ao público em

geral.

Em suma, a pretensão de correção levantada pelas decisões judiciais

contém dois aspectos: um se refere ao fato de a decisão ser corretamente justificada,

quando se parte do direito vigente e o outro está relacionado com o fato de o direito

válido ser racional ou justo. Considera-se justa uma decisão quando está de acordo

com o direito, sabendo-se que este tem um caráter autoritário e um ideal. Assim, uma

decisão será considerada justa se cumprir estes dois requisitos, ou seja, a pretensão de

correção é preenchida quando a decisão proferida de acordo com o direito estiver em

harmonia com a lei (aspecto autoritário) e em concordância com a moral (aspecto

ideal).

Habermas com a sua ética do discurso, posteriormente implementada no

campo do direito, notadamente em relação aos direitos fundamentais do homem e

direitos humanos, e Robert Alexy com suas teses no campo do direito, especialmente

difundidas nas obras Conceito e validade do direito e Teoria da argumentação jurídica,

muito se integram e pouco divergem, trazem uma grande contribuição para o direito e

para a democracia, particulamente para a aspirada democracia participativa.

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152

6.3 - FACTICIDADE E VALIDADE

Os verbetes facticidade e validade, recorrentes em grande parte da obra de

Habermas, têm seu ápice na obra Direito e Democracia136, na qual são intensa e

extensamente tratados e, não obstante a linguagem densa e abstrata, sua leitura aguça a

curiosidade e a perseverança pela abrangência e atualidade das questões tratadas.

Como vimos, Habermas aponta que diferentes tipos de racionalidade

reinvindicam diferentes pretensões de validade. São os atos de fala constatativos que

expõem sobre estados de coisas e se referem ao mundo objetivo e tem como critério de

validade a verdade. O caso do agir estratégico ou do uso performativo da linguagem,

em que se pretende influir sobre um oponente, o critério de validade é a eficácia e é

determinada pela relação entre meios e fins. A ação regulada por normas nos contatos

interpessoais do convívio social em que o critério de validade é o de retitude ou de

correção frente a normas éticas. Quanto ao tipo em que há expressão de sentimentos e

emoções subjetivas a exigência de validade refere-se à veracidade, ou seja, à

sinceridade subjetiva. Cada ato de fala dá ensejo, portanto, a mais de um critério de

validade. Isto é, se o indivíduo está falando a verdade, se é sincero, se está agindo

estrategicamente ou se está agindo com retitude ou não. Cada tipo de racionalidade

exige diferentes critérios de validade. Se uma norma tem aplicação efetiva, ou seja, tem

aplicação fática, significa que a pretensão de validade com que se apresenta é

renconhecida por todos os afetados. Este reconhecimento intersubjetivo funda a validez

social (vigência) da norma.137

Bárbara Freitag138 nos esclarece que, nos vários capítulos do livro,

Habermas esmiuça, sob múltiplas óticas, a tensão existente entre facticidade e validade,

136 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Vol. I. 2ª edição. Tradução Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. 137 HABERMAS, Jürgen. Teoria de la acción comunicativa, vol. I, Madri: Taurus, 1988, p. 122-128 e 142-146. 138 FREITAG, Bárbara. Dialogando com Jürgen Habermas. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2005, p. 191 ss. – (Biblioteca Colégio do Brasil: 10).

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entre realidade e normatividade, entre práticas sociais historicamente criadas e leis

jurídicas politicamente implementadas, entre mundo vivido e sistema, tal que permite a

compreensão da sociedade moderna, dessacralizada e racionalizada. Esclarece ainda

que Habermas situa a tensão entre “facticidade” e “validade”, que os americanos

simplificaram para “fatos” e “normas”, no contexto da linguagem e da ação

comunicativa. Os dois conceitos coexistem, enquanto movimentação no mundo vivido,

ou seja, enquanto as relações sociais e comunicativas que caracterizam nossa vivência

cotidiana não forem problematizadas. As diferentes implicações somente vêm à tona

quando os atores põem em questão “as pretensões de validade” implícitas em qualquer

ato da fala, quais sejam: a veracidade (autenticidade) do locutor, a verdade construída

das afirmações feitas e a correção das normas até agora seguidas. Quando um destes

questionamentos “perturba” a ação comunicativa, suspendendo as relações

comunicativas “habituais”, até então aceitas sem questionamentos, inaugura-se uma

nova forma comunicativa, que Habermas chama de “discurso”. Pelas vias discursivas,

isto é, “à base de um diálogo empenhado na argumentação racional, convincente, à

busca de entendimento e isenta de qualquer forma de violência interna ou externa, a

comunicação pode ser restabelecida no quotidiano, desde que as pretensões de validade,

postas em questão, tenham sido reafirmadas e revalidadas discursivamente. Noutras

palavras: (1) os locutores convencem seus parceiros da veracidade de sua fala, fazendo-

a coincidir com suas ações; (2) os argumentos verdadeiros passam a prevalecer, quando

eles fundamentam, de forma convincente as proposições feitas; e (3) as normas são

revalidadas, quando elas são compreendidas, respeitadas e aceitas por todos os

integrantes de uma situação dialógica como sendo justas e boas.”139

Habermas esclarece que a tensão entre fatos sociais e sua validade

normativa se desenvolve no campo do direito e do poder, incluindo-se suas formas de

institucionalização na sociedade e no Estado de direito.

139 ibidem, p. 191.

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154

Retomando os esclarecimentos de Bárbara Freitag140, sua análise conclui

que a complicada dialética entre “facticidade” e “validade” subverteu a relação

“legitimidade” e “legalidade”, claramente distinguida por Weber, no sentido de que a

“legitimidade” de uma ordem podia alimentar-se de várias fontes (como p. ex., a

efetividade, a tradição, o direito, ...), fornecendo o fundamento indispensável para a

“legalidade”, e esta, por sua vez, dependia da lei escrita e prescrita, bem como de

instituições competentes para implementá-las. Em Weber, há uma sequência natural e

lógica entre os antecedentes (legitimidade) e os consequentes (legalidade). Habermas,

por seu turno, dá um giro de cento e oitenta graus e argumenta que a ordem institucional

legal (legalidade) cria, em sociedades modernas, a legitimidade da ordem, desde que

atendidos certos critérios democráticos e princípios discursivos. Para que essa ordem

tenha “validade” social e seja efetivamente “legítima”, é preciso haver uma legislação

em vigor, a administração pública para aplicá-la e as formas de controle (judiciário),

tudo pelas vias argumentativas, que caracterizam os “discursos” teóricos, éticos e

práticos. Há, em realidade, mais que uma simples inversão na relação entre

“legitimidade” e “legalidade”, pois Habermas substitui esses conceitos por conceitos

mais complexos de “facticidade” e “validade”, de modo que a tensão entre eles tornam-

se mais complicados. A facticidade de uma ordem social pode significar

simultaneamente que ela seja “legítima” no sentido weberiano, por se tratar de uma

ordem em que houve adesão “afetiva” da comunidade, mas também, pode significar

“legalidade” por ter sido estabelecida baseando-se num sistema jurídico vigente num

governo democraticamente eleito. Weber não teria argumentos para derrubar a ordem.

Habermas, no entanto, tem. Para ele, a ordem social pode até mesmo ser “factual” (e,

portanto, legal e legítima), porém jamais seria válida, no sentido em que entende por

“validade”, ou seja, somente pode ser válida uma ordem social, cujas normas e leis

foram elaboradas democraticamente, envolvendo todos os atingidos e interessados.

Para assegurar a “validade” de uma ordem social os critérios discursivos (anteriormente

colocados) precisam ser atendidos. Tem-se que a “facticidade” refere-se a uma

140 ibidem, p. 192-193.

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realidade social, oriunda simultaneamente de duas fontes: (a) de processos históricos e

sociais “espontâneos”, cuja normatividade pode ser atribuída ao sentimento

comunitarista e à tradição; e (b) de práticas normativas, deduzidas da legislação vigente.

Essa facticidade somente teria “validade ética e jurídica”, se as normas e leis que a

regem tivessem sido elaboradas discursivamente.

Para Habermas, as sociedades democráticas vigentes que têm facticidade,

não obstante os progressos alcançados, ainda não atendem a todos os critérios

democráticos, princípios discursivos e racionais, exigidos para constituir uma ordem

normativa, que se alimenta, contudo, de elementos históricos e empíricos, na medida em

que, por um lado, origina-se do “mundo vivido” do qual deduz seus princípios e, por

outro, nele interfere, remodelando-o à base de seus elementos normativos, jurídicos.

Graças a uma institucionalização crescente dos direitos humanos, Habermas

no capítulo IX da obra Direito e Democracia141, na seção que cuida da dialética entre

igualdade de fato e de direito, introduz a questão feminina e afirma que a igualdade e a

justiça entre homens e mulheres nos campos da educação, da profissionalização, no

mercado de trabalho, no exercício da sexualidade, etc., estão longe de serem realidades

factuais, mas, sem dúvida, leis igualitárias para homens e mulheres têm permitido que a

realidade factual da discriminação venha se transformando numa realidade factual da

equiparação em todos os campos sociais. Isso vem sendo implementado, graças à

existência de leis justas e igualitárias, discursivamente construídas, que produzem, dessa

forma, uma facticidade nova que corrige as distorções históricas e sociológicas entre os

gêneros humanos. O mesmo é válido para todo o tipo de minoria, tais como os negros,

os índios, os gays, bem como outros grupos sociais que sofrem discriminações em

relação a outros grupos.

No mundo atual, em que as formas de legitimação anteriores (religiosa,

afetiva, tradicional, heróica, etc) já não têm efetividade, impõe-se o direito discursivo

como única forma aceitável de “gerar” a facticidade e a validade de uma norma.

141 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Vol. II. 2ª edição. Tradução Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 160 ss.

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156

Com relação à teoria dos atos de fala, aponta Habermas, a partir dos estudos

de J. Austin e J. R. Searle, que diferentes tipos de racionalidade reivindicam diferentes

pretensões de validade. O primeiro tipo são os atos de fala constatativos que expoem

sobre estados de coisas e se referem ao mundo objetivo e tem como critério de validade

a verdade. De outra parte, no caso do agir estratégico ou do uso performativo da

linguagem, em que se pretende influir sobre um oponente, o critério de validade é a

eficácia e é determinado em termos de mais ou menos eficaz na relação entre meios e

fins. Já na ação regulada por normas nas relações interpessoais do convívio social o

critério de validade é o de retitude ou de correção frente às normas éticas. Por fim, no

campo da expressão de sentimentos e emoções subjetivas a exigência de validade

refere-se à veracidade ou sinceridade subjetiva142. Um único ato de fala pode ser objeto

de análise de mais de um critério de validade, por exemplo, se o sujeito está falando a

verdade, se está sendo sincero ou se está agindo de maneira estratégica ou ainda se está

agindo com retitude ou não. Portanto, diferentes tipos de racionalidade exigem

diferentes critérios de validade de acordo com o ato de fala a que se refere.

Quanto à hermenêutica e as pretensões de validade, constatamos no discurso

de louvor a Gadamer que Habermas proferiu em 1979, seu evidente interesse por ela:

como se nota no seguinte excerto: “Como a fenomenologia e a análise da linguagem, a

hermenêutica traz para o primeiro plano condições cotidianas da vida e promove o

esclarecimento sobre estruturas profundas do mundo da vida”. Ela acentua a

intersubjetividade linguística, que vincula previamente os indivíduos

comunicativamente socializados. Assim para ele, a tarefa da hermenêutica não é

somente a interpretação de conteúdos dados, mas também a crítica desses conteúdos,

quando eles forem o resultado de processos comunicativos distorcidos. A categoria

central da hermenêutica, a da compreensão, é, então, reinterpretada por Habermas: cada

ato de compreensão representa, ao mesmo tempo, uma tomada de posição em relação à

pretensão de validade. O conceito de compreensão, tão importante para Habermas,

contém um elemento potencialmente crítico, uma vez que nos permite questionar o

142 HABERMAS, Jürgen. Teoria de la acción comunicativa, vol. I, Madri: Taurus, 1988, p. 122-146.

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conteúdo comunicado por um falante ou transmitido pela tradição e verificar sua

validade. Cada ação comunicativa se funda em um ato hermenêutico de compreensão

que pode sempre levar a um questionamento das suas pretensões de validade e,

eventualmente, a um discurso no qual tais pretensões devem ser fundamentadas.

Habermas ao propor a diferenciação entre princípio da moral e princípio da

democracia, em que aquele opera no nível da constituição interna de um determinado

jogo argumentativo e este no nível da institucionalização externa, sobressai novamente

a relação de alívio recíproco entre facticidade e validade, presente em todo a obra

“Direito e Democracia”. A moral da razão sozinha é muito frágil, depende de muita

boa vontade e muito bom caráter. Ela se baseia só em conhecimento, não em crença,

tradição e costume. Por isso, necessita da institucionalização no sistema jurídico. O que

significa, por sua vez, “um alívio para o indivíduo, que não precisa carregar o peso

cognitivo da formação do juízo moral próprio”. Caso se tivesse que confiar somente na

moral, nunca se poderia estar seguro, sobretudo a certeza de que a contraparte, o outro,

também agiria dessa forma. Essa incerteza motivacional é “absorvida pela facticidade

da imposição do direito”. “O direito coercitivo sobrepõe de tal modo as expectativas

normativas com ameaças de sanção, que os destinatários podem limitar-se a

considerações orientadas pelas conseqüências.

Com essas distinções trabalhadas em suas obras, Habermas lapida o

caminho rumo a uma democracia deliberativa.

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CAPÍTULO VII – CRÍTICAS QUE SE FAZEM À ÉTICA

DISCURSIVA

7.1 - CRÍTICAS À ÉTICA DO DISCURSO DE HABERMAS

Desde que proposta, a ética discursiva tem recebido múltiplas críticas.

Críticas essas que apontam em duas direções: ou elas põem em dúvida sua validade

como teoria filosófica, ou lamentam suas limitações. No primeiro caso, as críticas

dizem respeito às objeções às diferentes dimensões do núcleo filosófico que a constitui.

Claro que, segundo a própria confissão de Habermas, nossa ética se apresenta como

uma ética modesta, que deve pagar esse preço por manter os traços de uma filosofia

moral kantiana: formalismo, cognitivismo, universalismo e deontologismo. Também

seria possível replicar que a ética discursiva fez uso, em certas ocasiões, do conceito de

pessoa boa, como se observa na sua obra “Para a reconstrução do materialismo

histórico” e Apel, inclusive, insiste que a moral precisa de uma boa vontade. De

qualquer forma, o que verdadeiramente importa é a disponibilidade para o diálogo.

Uma série de questões marca a consciência contemporânea de tal forma que

parece contrapor-se ao projeto da ética do discurso, que, nesse quadro, surge como

incapaz de dar conta da riqueza dessa problemática nova emergente. Assim, p. ex., a

perspectiva de um discurso universalista parece contrapor-se fundamentalmente ao

sentido renovado da importância das aspirações de todo o mundo dos desejos e das

tendências; numa palavra, da esfera da efetividade e da problemática do

desenvolvimento pleno do ser humano a partir do pequeno mundo de sua cotidianidade,

caracterizada não só por seus sentimentos e emoções, mas pela enorme riqueza de seus

costumes, comunitariamente gestados, o que constitui a enorme diversidade cultural e

social dos povos. O anseio pela liberdade implica, portanto, o mascaramento como

repressivo, de qualquer discurso universalizante.

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Habermas pensa que o discurso deve ser realizado com aqueles que são

atingidos pela decisão moral, quando justamente é o inverso que está em questão. Pois

aqueles que são atingidos pela decisão moral são invencivelmente partidários, enquanto

nós devemos estar interessados num esclarecimento imparcial. Vejamos dois exemplos

apresentados por Ernst Tugendhat143: Suponhamos que entre um casal existe um dever

de fidelidade recíproca e um deles apesar disso se tornou infiel ao outro. Surge então

para aquele que praticou a infidelidade o dilema moral, se por respeito deve dizê-lo ao

outro ou se para poupá-lo deve silenciar sobre o fato. Irá ele agora num “discurso real”

discutir com o outro qual o caminho a seguir? Vê-se que neste caso num discurso real é

até impossível, porque, com a decisão de incluir o outro na reflexão moral, o dilema já

está decidido a favor de uma das duas alternativas.

Para o segundo exemplo pode servir uma situação imaginária que muitas

vezes é utilizada para criticar o utilitarismo. Numa clínica encontram-se cinco pacientes

e todos eles necessitam com urgência do transplante de um órgão para poder sobreviver,

e um paciente, fazendo check up, possui todos os órgãos exigidos; o médico está

impossibilitado de conseguir os órgãos de outro lugar. Será que se deve discutir com os

seis interessados a questão se o paciente sadio deve ser sacrificado em favor dos outros

cinco? Aqui se mostra como é problemática a decisão moral com a participação dos

afetados. Cada um dos seis quer continuar vivendo e se cada um partir de seus

interesses dar-se-á uma decisão de maioria que é evidentemente imoral. Agora é

naturalmente possível que os cinco que necessitam dos transplantes também pensem de

modo tão moral que renunciem à decisão imoral da maioria. Mas, a este resultado

também se poderia chegar de modo muito mais indiscutível sozinho, ou, se ainda

estivesse em dúvida, ele teria preferido convocar outros que não estivessem afetados

para se aconselhar.

Várias objeções são colocadas no sentido de que a fraqueza fundamental do

projeto de Habermas é a falta de concordância entre ideal e realidade, entre as intenções

e sua execução. Esta incongruência permeia tanto o mais geral como os mais concretos

143 TUGENDHAT, Ernst (1930 - ) : Filósofo alemão. Trabalhou com Habermas na Escola de Frankfurt.

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fenômenos da modernidade e está enraizada em uma concepção de poder insuficientes.

Os críticos dessa corrente afirmam que este é o fundamental dilema político no

pensamento de Habermas: ele descreve a utopia da racionalidade comunicativa, tem boa

vontade, mas não diz como chegar lá. Menos radicais que Tugendhat, mas ainda em

contraste com Habermas, encontramos declarações de Nietzsche, Foucault, Derrida,

dentre outros, de que a comunicação em todos os tempos já foi penetrada pelo poder: “o

poder está sempre presente, afirma Foucault. É, portanto, sem sentido, de acordo com

estes pensadores, trabalhar com um conceito de comunicação no qual o poder está

ausente.

Para os estudiosos do poder, a comunicação é mais tipicamente

caracterizada pela retórica não-racional e manutenção de interesses do que pela

liberdade de dominação e busca de consenso. Na retórica, a validade é estabelecida

através do modo de conversação, por exemplo, eloquência, controle oculto, a

racionalidade, o carisma, usando as relações de dependência entre os participantes. A

questão básica a ser levantada é se é possível distinguir significativamente a

racionalidade e o poder um do outro na comunicação e se a racionalidade pode ser vista

isoladamente do poder, como o faz Habermas. Devemos, pois, ser cautelosos, dizem os

críticos, ao usar a teoria da racionalidade comunicativa e agir em relação à sociedade

civil. Habermas peca por parecer esquecer seu próprio axioma de que as questões

filosóficas devem ser objeto de verificação empírica.

Outra crítica relevante em relação à etica do discurso, diz respeito ao

enunciado de Maquiavel em “Os Discursos”, no parágrafo em que recapitula que ao

aplicar a constituição e legislar para uma riqueza comum deve-se tomar por certo que

todos os homens são maus e que eles sempre dão vazão à maldade que está em suas

mentes quando se oferece a oportunidade. Se ele estiver certo, a base para organizar a

sociedade proposta por Habermas, sem a presença de controles e contrapesos para

controlar a maldade de que fala Maquiavel, certamente nos deixaria numa situação

extremamente difícil.

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Outra abstração de Habermas é o que ele chama de “melhor argumento”.

Parece-nos um conceito empiricamente vazio. O que isso significa e o que pressupõe?

Mesmo os analistas mais simpáticos à teoria comunicativa de Habermas

criticam-no por seu formalismo, idealismo e insensibilidade ao contexto. Sugestões

sobre os pontos fracos detectados lhe estão sendo apresentadas. Obviamente, não

podemos olvidar que Habermas em trabalhos recentes tem procurado lidar com o poder

e, ao mesmo tempo, desenvolveu uma profunda análise da sociedade civil. Apesar

disso, a sua abordagem permanece fortemente normativa e processual, com pouca

atenção para as pré-condições do discurso real, aos valores éticos substantivos e para o

problema de como a racionalidade comunicativa pode conseguir um ponto de apoio na

sociedade, ante as poderosas forças não comunicativas. Há de se dizer também da

pouca atenção aos particulares problemas relacionados com a identidade e as divisões

culturais, bem como as formas não-discursivas de salvaguardar a razão que estão sendo

desenvolvidos por assim chamados grupos minoritários e os novos movimentos sociais.

Se nosso objetivo é avançar em direção ao ideal de Habermas — libertação

da dominação, mais democracia, uma sociedade civil forte — então nossa tarefa é

compreender não só a racionalidade comunicativa, mas também, e sobretudo, as

realidades e relacões do poder, e aqui, necessariamente, temos que recorrer ao trabalho

de Michel Foucault, que tratou dessa temática.

Tanto Foucault como Habermas são pensadores políticos. O pensamento de

Habermas é bem desenvolvido no que diz respeito aos ideais políticos, mas fraco em

termos de compreensão do processo político real. O pensamento de Foucault, ao

contrário, é fraco com referência aos ideais generalizados. Ambos concordam que na

política é preciso “ladear com a razão”. Com relação à importância de Kant, Foucault

está de acordo com Habermas: disse em uma entrevista que “se alguém abandona a obra

de Kant, corre-se o risco de cair na irracionalidade”. A principal queixa de Habermas

sobre Foucault, encontrada na obra “O Discurso filosófico da modernidade”, é o que ele

vê como relativismo ao criticá-lo por não dar conta das bases normativas para seu

pensamento, ou seja, se por relativista queremos dizer “sem normas” ou “vale tudo”.

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Mas a obra de Habermas também é relativista, pois não foi capaz de, até agora,

demonstrar que o fundamento racional e universal de sua ética do discurso é possível,

ele apenas postulou tais fundamentos. No entanto, não podemos culpá-los, se até o

presente, nenhum filósofo racionalista foi capaz de fazer jus ao comando de Platão, no

sentido de que para evitar o relativismo nosso pensamento deve ser racional e

universalmente fundamentado. Foucault, na obra “O que é iluminismo?”, rejeita o

relativismo e o fundamentalismo e os substitui pela ética situacional, ou seja, pelo

contexto, assim como na “História da sexualidade”, toma posição clara por uma “ética

da preocupação consigo”, no sentido da auto-realização do indivíduo na beleza de seu

estilo de vida, pretendendo, assim contrapor-se decididamente a qualquer ética que

levante a pretensão de conter princípios dotados de validade universal, ou seja, de uma

ética radicada numa lei universal que se impõe, uniformemente, a todo homem racional.

A ética racionalista se lhe manifesta catastrófica, porque destruidora da verdadeira auto-

realização do homem.

Em suma, Habermas e Foucault evidenciam uma essencial tensão na

modernidade. Tensão entre o consenso e o conflito. Como ponto de partida em Kant,

Habermas é o filósofo da eticidade baseada no consenso. Foucault, seguindo Nietzsche,

é o filósofo da história real, falada em termos do conflito e da força.

Já o filósofo da pós-modernidade, J. F. Lyotard, defende a dissolução de

qualquer pretensão à universalização na ciência, na moral e no direito. Por essa razão a

ética do discurso lhe parece simplesmente ameaçadora do exercício totalitário do poder.

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7.2 – CONSIDERAÇÕES DE HABERMAS EM RELAÇÃO ÀS

OBJEÇÕES FEITAS À ÉTICA DO DISCURSO

A Ética da discussão e a Questão da verdade144, obra composta de

conferências que Jürgen Habermas proferiu em fevereiro de 2001, na Paris IV

(Sorbonne), trata da questão da verdade em que ele responde a algumas das objeções

que se levantaram contra a sua ética da discussão.

Segundo Habermas, o ideal de emancipação característico do projeto da

modernidade e do Iluminismo ainda não se realizou; as promessas de liberdade e

igualdade feitas desde então ainda não se cumpriram. Para que possam cumprir-se o

filósofo e sociólogo alemão propõe que comecemos por lançar sobre novos

fundamentos toda a nossa compreensão da razão, do ser humano, e da sociedade; pede,

antes de mais nada, que deixemos de lado o paradigma da consciência e entendamos

que a racionalidade não depende diretamente do sujeito, mas da intersubjetividade; que

atrelemos, assim, o pensamento a uma lógica da descentralização em relação ao ego. A

sua ética da discussão, elaborada juntamente com Karl-Otto Apel, apresenta-se a nós

como uma das grandes teorias filosóficas de nossos tempos. Numa época em que todos

se questionam sobre as bases possíveis da normatividade, essa ética da discussão

pretende não somente esclarecer quais são as condições da intercompreensão como

também, pela demarcação dos pressupostos pragmáticos da linguagem, identificar os

termos de uma fundamentação intersubjetiva e racional das normas. Nesta obra ele

fornece uma visão geral da concepção da verdade teórica e prática apropriada à ética da

discussão.

Ao ser questionado se é possível abolir toda referência ao paradigma

kantiano da subjetividade, mesmo no contexto de uma filosofia da comunicação baseada

no viés linguistico, tomando por base a distinção dos dois modelos proposto, qual seja,

144 Habermas, Jürgen. A Ética da discussão e a Questão da verdade. Organização e introdução de Patrick Savidan. Tradução Marcelo Brandão Cipolla. 2ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2007. (Coleção Tópicos).

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um modelo monológico, que atribui a John Rawls, e um modelo dialógico que, em sua

opinião, somente uma ética da discussão tem condições de sustentar, Habermas

esclarece que “a interpretação intersubjetiva do imperativo categórico apresenta apenas

uma explicação do seu significado fundamental, e não uma interpretação que dá a esse

significado uma nova direção”145. A transição da reflexão monológica para a diálogo

explica uma característica do procedimento de universalização que permaneceu

implícita até o surgimento de uma nova consciência histórica, na virada do século XVIII

para o XIX. Entende ele que, quando tomamos consciência de que a história e a cultura

são as fontes de uma imensa variedade de formas simbólicas, bem como da

especificidade das identidades individuais e coletivas, percebemos também, que o

mundo se revela e é interpretado de modo diferente segundo as perspectivas dos

diversos indivíduos e grupos. Essa espécie de pluralismo interpretativo afeta a visão de

mundo e a autocompreensão, bem como a percepção dos valores e dos interesses de

pessoas cuja história individual tem suas raízes em determinadas tradições e formas de

vida e é por elas moldada. Essa multiplicidade de perspectivas interpretativas explica

por que o sentido do princípio de universalização não se esgota numa reflexão

monológica segundo a qual determinadas máximas seriam aceitáveis como leis

universais do meu ponto de vista. Somente como participantes de um diálogo

abrangente e voltado para o consenso é que somos chamados a exercer a virtude

cognitiva da empatia em relação às nossas diferenças recíprocas na percepção de uma

mesma situação. Devemos então procurar saber como cada um dos demais

participantes procuraria, a partir de seu próprio ponto de vista, proceder à

universalização de todos os interesses envolvidos. “O discurso prático pode, assim, ser

compreendido como uma nova forma específica de aplicação do imperativo

categórico.”146 Aqueles que participam de um tal discurso não podem chegar a um

acordo que atenda aos interesses de todos, a menos que todos façam o exercício de

‘adotar os pontos de vista uns dos outros’, exercício que leva ao que Piaget chama de

uma progressiva ‘descentralização’ da compreensão egocêntrica e etnocêntrica que cada

145 ibidem, p. 8. 146 ibidem, p 10.

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qual tem de si mesmo e do mundo. Para ilustrar essa estratégia, veja que a noção de

“autonomia” em Kant é essencialmente diferente da noção de liberdade subjetiva que

nos vem da tradição empirista. No caso da liberdade subjetiva, a vontade é determinada

por máximas de prudência, pelas preferências ou motivos racionais, digamos, que uma

pessoa tem. Nesse caso, o ato de liberdade surge como parte da consciência de um

único sujeito. No caso da autonomia, porém, a vontade se deixa determinar por

máximas aprovadas pelo teste da universalização. A vontade de uma pessoa é

determinada por motivos que deveriam igualmente ser levados em conta por todas as

outras pessoas (na medida em que são vistas como membros da comunidade moral).

Essa interpenetração do livre arbítrio e da razão prática nos permite conceber a

comunidade moral como uma comunidade abrangente que faz as suas próprias leis, uma

comunidade formada de indivíduos livres e iguais que se sentem obrigados a tratar uns

aos outros como fins em si mesmos.

As várias críticas que se levantaram e se levantam contra a ética da

discussão quase sempre partem de contextos diversos o que, ainda que proferidas por

luminares, não atingem o cerne da proposta habermasiana, não obstante, permita a

Habermas, que se encontra em plena atividade, quando o questionamento apresenta

fundamento válido, a fazer ajustes marginais, a fim de que possa cada vez mais

apresentar-se praticável e factível a sua proposta.

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166

CONCLUSÃO

Habermas, com base no estruturalismo genético de Piaget e Kohlberg,

defende uma “ética cognitiva”, chamada “ética do discurso”, isto é, uma ética que se

atém ao “potencial de verdade das questões práticas” e com isso, ele se coloca na

tradição de Immanuel Kant e da filosofia moral atual ao lado de teóricos como John

Rawls, Ernst Tugendhat e Karl-Otto Apel, dentre outros.

A ética do discurso não tem pretensões de prometer uma vida feliz para o

sujeito social, ao contrário: o objeto da ética discursiva é a validade da norma,

construída pelo “todo coletivo” por meio do consenso que as partes individuais

decidiram construir. O consenso surge quando são aceitas as quatro pretensões de

validade e que concernem “à compreensibilidade da expressão lingüística, à verdade do

seu elemento proposicional, à legitimidade do seu elemento performativo e à veracidade

da intenção expressa pelo falante”. O consenso fundamentado do qual fala Habermas é

aquele que pode ser alcançado sempre e em todo lugar, quando entramos em um

discurso.

A respeito disso, Olinto Pegoraro afirma: “na ética discursiva, não existe

uma preocupação de ordem existencial de cada pessoa e de cada situação concreta,

visando orientar o sujeito para uma vida boa e feliz; pelo contrário, a ética deontológica

discute as condições nas quais uma norma pode ser aceita como válida; então, o

problema ético se desloca da questão do bem para a questão do justo, da felicidade

pessoal para a validade prescritiva da norma”. Percebe-se que a ética discursiva tem por

objetivo a construção de uma sociedade mais democrática, tendo em vista que aquilo

que foi aprovado com a aquiescência da maioria deve ser validado como escolha mais

justa e pragmática. Como peculiaridade, nota-se que a ética discursiva é procedimental,

isto é, quando todos que estão envolvidos no debate se prestam a cumprir o que foi

acordado por meio de uma norma, tem-se aí a universalização concreta e pragmática do

processo instalado para se chegar ao consenso.

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A ética do discurso enseja sempre que a autenticidade discursiva tenha

apenas uma finalidade, qual seja, a busca pela verdade, em realidade, uma verdade

construída. Por isso, no projeto ético habermasiano, não há espaço para mentiras

políticas e nem coisas afins. Para Habermas, todo discurso deve ter a pretensão de dizer

sempre a verdade, lembrando que esta depende de uma constituição prévia dos objetos

da experiência. “Falar é ipso facto levantar uma pretensão de validade; qualquer pessoa

que realiza um ato de fala é obrigada a exprimir pretensões universais à validade e de se

supor que é possível honrá-las”, diz Habermas. Falar é, portanto, procurar entender-se

um ao outro, é algo imanente à linguagem. Além de ser compreendido, o ato de fala

precisa também ser aceito. Esse reconhecimento intersubjetivo é responsável também

pelo acordo, sem o qual as obrigações decorrentes para o desenrolar da ação não se

criam. Há, para Habermas, um ponto de contato entre linguagem e ética que é

insuperável e insubstituível.

O acordo e o entendimento produzidos pela ação comunicativa, não podem

ser obtidos por coação, não têm pretensão de poder. Este é, no entanto, a crítica

fundamental de Foucault em relação à ética discursiva: é sem sentido trabalhar com um

conceito de comunicação no qual o poder está ausente. Dar e ter razão decorre da ação

comunicativa, suscetível de crítica e revisão quanto a qualquer uma de suas pretensões

de validez: a da verdade, pois um enunciado verdadeiro pressupõe um estado de coisa

que o ouvinte pode reconhecer e compartilhar com o falante; a de retidão normativa

demanda correção com relação ao contexto normativo, que enseja relações baseadas na

legitimidade de normas aceitas e praticadas; a de veracidade de sentimentos, opiniões,

desejos do falante, essenciais para que o ouvinte confie na oferta do ato de fala.

Em resumo, a ação comunicativa implica pretensões de validez conectadas

com razões. Desse modo, um ato de fala tem efeito coordenador com relação à ação.

Com essa pragmática formal, Habermas reconstrói os tipos de competência

que permitem entendimento linguístico pela ação comunitária, isto é, a coordenação

efetiva e consensual dos planos de ação inseridos no mundo vivido. O conceito de

mundo vivido é complementar ao conceito de ação comunitária, de modo que sua teoria

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de ação formula-se no âmbito de uma teoria da sociedade.

Habermas discorda da análise pessimista de que é impossível fundar a moral

devido ao fracasso do projeto iluminista, fracasso este evidenciado pela redução da

razão à racionalidade instrumental. Habermas adere a Kant e à tradição kantiana (Rawls

e Apel), para os quais a razão prática é suscetível de validação em termos de verdade

construída, e não de mera valoração emocional ou fruto de simples decisões

particulares. Adota como pressuposto o cognitivismo, quer dizer, todo juízo moral

aponta para as razões que levam alguém a agir de tal ou tal modo.

A ética filosófica leva em conta uma teoria especial de argumentação. Só há

acordo argumentativo se ele puder ser fundamentado por pretensões universais.

Relativismo e ceticismo não têm vez na ética do discurso, se não houver a participação

de todos, bem entendido, todos os envolvidos, com capacidade plena para argumentar,

não há legitimidade nas resoluções e nas pretensões à normatividade.

A questão moral diz respeito não ao agir instrumental, nem visa efeitos

desejáveis, úteis, mas diz respeito à rede de relações humanas com seus sentimentos

morais. Nesse sentido, a prática comunicativa é um meio para modificar, criticar,

justificar, as atitudes das pessoas. Para haver juízos morais justificáveis é preciso poder

questionar a validade moral das normas, sua correção normativa pode e deve ser alvo de

questionamentos. A pretensão de validez normativa implica em poder investigar as

razões para apoiar ou não o acordo entre partes. Por isso, decidir e aplicar normas não

cabe a um indivíduo isolado.

A modernidade se caracteriza como uma época em que é preciso legitimar

normas a fim de que sejam acatadas. Nos discursos práticos a argumentação toma por

base o imperativo de impessoalidade ou universalidade das normas, de estilo kantiano.

Sem assentimento por parte de todos não há validez normativa. Mas, ao contrário do

imperativo categórico de Kant calcado na forma incondicional das proposições

deônticas universais, Habermas considera que o predicado acerca da correção precisa

ser aplicado a cada caso, antes de formular um juízo.

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Argumentar é dar e contestar razões, mas isso não significa produção

automática de normas fundamentadas eticamente. Isso se deve ao fato de que as normas

de direito e da moral se constituem através de discursos práticos, de forma que cada

época fará valer o que considera como moral, recorrendo a regras com conteúdo

normativo. Essas regras têm caráter pragmático-transcendental, isto é, demandam

discursos práticos nos quais é imprescindível a regra de universalização (U).

Os conteúdos morais variam conforme as diversas culturas, mas há formas

universais do juízo moral, além de estruturas que possibilitam o aprendizado moral, de

acordo com estágios de desenvolvimento da personalidade. Assim, a diversidade

cultural e o aprendizado moral de cada pessoa, caracterizam a ética do discurso como,

ao mesmo tempo, levando em conta peculiaridades do conteúdo ético/moral, e um

aprendizado que dá condições para a imparcialidade, a universalidade, a reversibilidade.

Há um aprendizado moral e o mérito da norma deve ser reconhecido pública e

intersubjetivamente.

A argumentação moral requer esforço, reflexão capaz de restaurar o

consenso que foi perturbado, capaz de resolver conflitos e expressar a vontade e as

convicções comuns. A natureza da ética do discurso reside no exame da pretensão de

que a norma sirva adequadamente a todos, que as interpretações decorrentes de uma

tradição, sejam compartilhadas e possam ser revistas à luz de novas situações. A busca

de uma universalidade significa a possibilidade de compreender o tema ou a situação

em foco, apreender com as argumentações, saber discernir, estar apto a justificar através

de boas razões. Nas sociedades pós-tradicionais, portanto na modernidade, os

pressupostos pragmáticos da argumentação é que conduzem a justificação de modo

reflexivo.

Com relação ao Direito, Habermas pensa que “a substituição da integração

social pela sistêmica toma a forma de processos de juridificação”. Com esse termo ele

indica o processo pelo qual o Direito se estende sobre âmbitos sociais cada vez mais

novos, que até o momento eram regulados de maneira informal, e penetra neles sempre

mais profundamente. Habermas reconstrói, servindo-se de exemplos do direito familiar

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ou escolar, a passagem do Estado burguês ao Estado social, distinguindo quatro estágios

de juridificação: Estado burguês, Estado de direito, Estado democrático de direito e

Estado social e democrático de direito147.

147 HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa. Vol. II. Madri/Espanha: Taurus, 1987, p. 519 ss.

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ÍNDICE DE AUTORES MENCIONADOS NO TEXTO

Adauto Novaes – 19

Adela Cortina – 41

Alasdair MacIntyre - 113, 114

Alexy – 18, 64, 105, 106, 140, 141, 142, 144, 145, 146, 147, 148, 149, 150, 151

Aristóteles – 29, 45, 47, 114

Bárbara Freitag – 28, 152, 154

Bentham – 28

Bobbio - 104

Bühler – 55

Chäim Perelman – 98, 143

Charles Taylor – 113, 114

Cícero - 115

Cláudia Toledo – 147, 148

Delamar José Volpato Dutra - 71

Derrida – 160

Dilthey - 55

Durkheim – 28, 56, 57, 87

Dworkin - 112

Ernst Tugendhat – 52, 159, 160, 166

Fichte - 109

Foucault – 94, 160, 161, 162, 167

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Franklin Leopoldo e Silva – 19, 20, 21, 22, 23

Gadamer – 55, 156

G. H. Mead – 58, 61, 87

Habermas – 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 24, 27, 28, 30, 31, 33, 34, 35, 36, 37,

39, 40, 41, 42, 45, 47, 48, 49, 50, 52, 53, 54, 55, 56, 57, 58, 59, 62, 63, 64, 65, 66, 67,

68, 70, 71, 73, 76, 79, 80, 81, 84, 85, 86, 87, 89, 90, 94, 95, 96, 98, 100, 101, 105, 106,

107, 108, 111, 113, 114, 115, 117, 118, 119, 120, 123, 124, 126, 127, 128, 130, 131,

132, 134, 137, 140, 141, 142, 145, 146, 149, 151, 152, 153, 154, 155, 156, 157, 158,

159, 160, 161, 162, 163, 164, 165, 166, 167, 168, 169

Hannah Arendt – 20, 21

Hare – 52

Hans Kelsen - 31

Hegel – 38, 85, 97, 103, 114

Heidegger – 79, 80

Horkheimer – 38, 90

Husserl – 79, 80

Ivo Assad Ibri – 25

J. Austin – 67, 94, 156

J. F. Lyotard – 56, 162

John Rawls – 52, 58, 61, 94, 112, 164, 166, 168

J. R. Searle – 94, 156

Josué Cândido da Silva – 25

Lima Vaz – 76, 102

Luhmann – 28

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Lukács - 90

Kant – 13, 14, 16, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 43, 48, 54, 57, 58, 63, 96, 99, 103, 117, 128,

161, 162, 165, 166, 168

Karl Marx – 22, 28, 35, 42, 86

Karl-Otto Apel – 28, 32, 33, 35, 42, 45, 46, 47, 50, 52, 55, 59, 71, 122, 137, 158, 163,

166, 168

Klaus Günther - 133

Kohlberg – 28, 54, 55, 57, 58, 59, 62, 63, 166

Maquiavel - 160

Manfredo A. de Oliveira – 33, 46

Mariá Brochado – 103, 115

Max Weber – 28, 35, 36, 37, 39, 95, 154

Michael Walzer - 113, 114

Nietzsche – 160, 162

Noam Chomsky - 94

Olinto Pegoraro – 166

Otfried Höfre - 122

Parsons – 28, 124, 125

Piaget – 28, 54, 55, 57, 58, 63, 164, 166

Platão – 45, 162

Rousseau – 28, 96, 103, 117

Tércio Sampaio Ferraz - 103

T. W. Adorno – 38, 90

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Wellmer – 28, 52, 55

Wittgenstein – 55, 80, 94

Xavier Herrero - 38