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    57Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 59, p. 57 a 78, jul./dez. 2011

    * Mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professorasubstituta da Faculdade de Direito da UFMG de 04.08.2008 a 31.07.2010,

    atualmente lecionando voluntariamente na instituio.E-mail: [email protected]

    FAMLIA UNIPESSOAL

    Carla Vasconcelos CARVALHO*

    RESUMO

    O Direito, diante da evoluo social, tende a exibilizaro conceito tradicional de famlia em direo a um conceito

    contemporneo e aberto, aceitando novos modelos familiares,ainda que ausentes elementos antes considerados essenciais. O

    modelo da famlia unipessoal vem, neste ensejo, se incorporando

    s ordens jurdicas nacionais e internacionais, com dispensa do

    requisito da pluralidade subjetiva, reetindo a organizao social eo reconhecimento da existncia de um verdadeiro direito a constituirfamlia, ligado personalidade do sujeito. Seu reconhecimento

    pelo Direito acompanhado de importantes conseqncias no que

    concerne proteo do bem de famlia e incluso de sujeitos comobenecirios de polticas pblicas como o Programa Bolsa Famlia,e Programa Universidade para Todos.

    PALAVRAS-CHAVE: Entidades familiares. Famlia unipessoal.Bem de famlia. Polticas pblicas.

    Introduo exposio de casos:

    A idia tradicional de famlia como agrupamento familiar questionada quando contraposta a situaes peculiares, mas no

    raras, encontradas no cotidiano social. Identiquem-se alguns casosemblemticos.

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    Em primeiro lugar, a situao de uma lha nica de paisestrangeiros que por estes trazida ao Brasil, fugindo do contextode guerra. Instalados no novo pas, a a famlia adapta-se, perdendo

    contato com as origens. Na seqncia, a lha se casa, e da unio nasceuma criana. O marido brasileiro da lha ento falece, cando estacom a criana e seus pais estrangeiros, at a morte do av. A crianacresce, passa no vestibular e logo aps descobre um cncer, vindotambm a falecer. A lha ca s com sua me, que tambm vem afalecer. Como caracterizar esta pessoa?

    Uma segunda situao traz a lha de uma me que perdeutodos os seus ascendentes em virtude da gripe espanhola. Sua me,ainda pequena, fora encaminhada para internato de rfos, local onde criada e permanece at completar 18 anos. Nesta idade, jogada nomundo, indo trabalhar em casa de famlia. A jovem ca grvida, maso progenitor no assume o lho e desaparece. Nasce ento a lha, quecresce dedicando-se me, passando a trabalhar, de modo a permitir aaposentadoria desta. A me morre e a lha decide buscar por seu pai,num rduo processo de investigao. Chegam a marcar encontro, mas

    antes o pai falece. Certamente h outros parentes, contudo, espalhadose desconhecidos. Como caracterizar esta pessoa?Por m, a terceira situao apresenta duas pessoas casadas

    com suas respectivas famlias. O marido falece, deixando a esposasem lhos, e esta passa a representar a famlia dele, optando por noconstituir novos vnculos. Esta esposa, sozinha, continuidade deuma famlia, apesar de no ter dado continuao com produo de

    descendncia. Como caracterizar esta pessoa?

    So expostas, nos casos acima, diferentes situaes em quepessoas cam sozinhas, perdendo relao com um grupo familiar.Por razes diversas, estas pessoas constituem famlias de acordocom o modelo tradicional, pelo matrimnio ou liao, mas perdemseus parentes. Constituem famlias, portanto, e se vem privadas desuas famlias, cando sozinhas com sua histria, com seu sentimentofamiliar, com seus laos historicamente construdos.

    Pensando-se a famlia no sentido tradicional de um agrupa-mento familiar, no haveria dvida de que estas pessoas perderam

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    as suas famlias. Deixaram de constituir uma famlia por no maispreencher um requisito supostamente essencial na estrutura desta:

    uma pluralidade subjetiva.

    Este tipo de formao social hoje, contudo, cada vez maiscomum e freqente, chegando a 10,7% das famlias brasileiras em2006, nos dados mais recentes apresentados pelo IBGE1. Situaoincorporada realidade social do pas, passa a exigir reconhecimentoe tutela pelo direito.

    1. Famlia, uma noo em evoluo

    No h denio do conceito de famlia no Cdigo CivilBrasileiro, em harmonia com diversos diplomas como os CdigosCivis Francs, Espanhol e Italiano. A famlia , contudo, onipresente.

    Tradicionalmente denida como um grupo de pessoas unidasentre si por laos fundados sobre o casamento ou a liao2, h hojeuma vasta gama de situaes que caracterizam a famlia, e a noomostra-se em constante mutao:

    Au l des annes, la famille na cesse de changer daspect. Em droit

    romain prdominait une conception patriarcale de la famille, appelela gens: les pouvois du pre taient exorbitants, tant sur lpouse quesur les enfants. Le pater famlias faisant lobjet dun vritable culte.Lancien droit connaissait une conception quasi similaire de la famille.Lautorit du mari et du pre en qualit de chef de la famille y tait trsforte. Le droit intermdiaire, celui de la Rvolution, rompit avec cette

    conception. Au nom des idaux de libert et dgalit, lautorit du pretait affaiblie, dautant plus que, pour la premire fois, le divorce futlgalement autoris. Em 1804, le code civil vint raliser un compromis

    entre la conception ancestrale de la famille et celle issue de la Rvolution.

    1 IBGE. Tipos de famlia - famlia unipessoal.Disponvel em: .Acessado em 15.06.2009.

    2 GRANET, Frdrique; HILT, Patrice. Droit de la famille. 2e dition, PUG, 2006,p. 7. Ainda, discorrendo sobre a designao de famlia, Marc Auge: Este termo,utilizado sem qualquer outra qualificao, designa habitualmente um grupo social quecompreende, no mnimo, um homem e uma mulher unidos pelos laos socialmentereconhecidos e mais ou menos duradouros do casamento, e um ou vrios filhos nascidos

    desta unio ou adoptados.(AUG, Marc. Os domnios do parentesco. Trad. AnaMaria Bessa. Lisboa: Edies 70, 1978, p. 44)

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    Dun cote, le code rafrma lautorit du mari et du pre. Ainsi, le marifut nouveau le seigneur et matre de la communaut, lpouse tant

    place dans une situation dincapacit. Dun autre cote, le code admitle divorce.3

    O Cdigo Civil Brasileiro de 1916 trazia o modelo clssicode famlia, dotada de carter unitrio, indissolvel, transpessoal,matrimonializado, patriarcal e hierarquizado. Outras relaes afetivasno constitudas pelo casamento, apesar de que possuam existnciareal e produziam efeitos pessoais e patrimoniais, no se encaixavamneste modelo, na categoria jurdica da relao de famlia.4

    O modelo clssico foi sendo gradativamente abandonado,

    evoluindo rumo consagrao da igualdade de direitos e deveres doscnjuges quanto sua capacidade civil e poltica e manuteno eeducao dos lhos5, alm da urgncia do reconhecimento de novastipologias de formao familiares.

    O sculo XX cenrio de mudanas expressivas no direitocivil, destacando-se um processo de revalorizao da pessoa, no emseu aspecto individualista, mas como cidad6. No mbito do direito de

    famlia, assiste-se ao ingresso de novos sujeitos e ao reconhecimentode outras relaes, abandonando-se o sistema da unicidade de modelopelo casamento. A Constituio da Repblica de 1988 consolida esteprocesso ao dotar a famlia de uma funo social, na lio de SumayaSaady Morhy Pereira:

    A famlia passa a ter papel funcional: servir de instrumento de

    promoo da dignidade da pessoa humana. No mais protegida comoinstituio, titular de interesse transpessoal, superior ao interesse de seus

    membros, mas passa a ser tutelada por ser instrumento de estruturao edesenvolvimento da personalidade dos sujeitos que a integram. Merecea tutela constitucional, como lugar em que se desenvolve a pessoa, emfuno da realizao das exigncias humanas.

    3 GRANET. Droit de..., op. cit., p. 8.4 PEREIRA, Sumaya Saady Morhy. Direitos Fundamentais e Relaes Familiares.

    Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2007, p. 86.5 CAMPOS, Diogo Leite de. Lies de direitos da personalidade. 2.ed. Coimbra:

    [s.n.], 1992, p. 90-91.6 PEREIRA. Direitos Fundamentais..., op. cit., p. 87.

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    Por outro lado, a prpria noo de unidade familiar assumiu novadimenso. Abandonou o conceito formal para adotar conceito exvele instrumental que reconhece como famlia outras comunidades no

    constitudas pelo casamento e mesmo comunidades materialmente

    separadas, desde que mantenham como objetivo a funo social qualse destinam.7

    No h, pois, uma determinao de quais tipos de comunidade,ou agrupamentos, podem constituir uma unidade familiar. O conceitode famlia contemporneo aberto, nele se encaixando qualquersujeito ou sujeitos que preservem a sua funo social, como ensina

    Frdrique Granet:

    Aujourd`hui, diffrents modeles familiaux coexistent, fortement marquspar les ides de libert, d`egalit et de solidarit. Il n`existe plus unefamille, mas des familles fondes sur un marriage ou hors marriage,des familles monoparentales ou encore des familles recomposes. (...)

    L`tude de ces diffrents modles familiaux relve du droit de la famille.8

    Discorrendo ainda sobre a evoluo da instituio familiar,Fanny Vasseur-Lambry:

    La famille lgitime a subi de plein fouet la pntration des libertsindividuelles. De la famille holiste fonde sur le mariage et organisesuivant um prncipe hirarchique, on est passe une conception

    individualiste de la famille. La famille, soumise au libre choix desindividus et aux circonstances de la vie, est aujourdhui constitue dumfaisceau de relations interindividuelles dont lEtat et les instances deStrasbourg doivent sauvegarder lquilibre et la cohsion au nom durespect de la vie prive et de la vie familiale, dune part, et des intrtsde la socit, dautre part.9

    A famlia contempornea no pode ser considerada, sejaquanto a sua estrutura, ou ainda quanto a sua dinmica, produto nicoe acabado, revelando-se uma noo de famlia incerta.10

    7 PEREIRA. Direitos Fundamentais..., op. cit., p. 88.8 GRANET. Droit de..., op. cit., p. 9.9 VASSEUR-LAMBRY, Fanny. La famille et la convention europenie des droits de

    lhomme.LHarmattan, 2000, p. 245.10 ESTEVES, Antnio Joaquim.A famlia numa sociedade em mudana. Disponvelem: . Acesso em

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    2. Direito a constituir uma famlia

    A famlia passa a constituir, nesse processo de evoluo

    coincidente com o fenmeno de personalizao das relaes privadas,um instrumento de desenvolvimento da personalidade, passando a servista sob a tica dos direitos da personalidade.

    Walter Moraes, em sua obraAdoo e Verdade, apresenta umestudo sobre o estado de famlia como componente da personalidade,

    buscando suas razes na histria e no tratamento doutrinrio.No direito romano, considerava-se ser pessoa composta de

    um trplice status:status civitatis, status libertatis, status familiae. O

    conceito de estado reetia, pois, a condio de quem livre, cidado,membro do grupo familiar. Para o autor,

    conditio, no apenas no sentido de situao ou posio jurdica, mas

    no de causa condicionante da personalidade jurdica, j que a carnciados trs estados signica capitis deminutio mxima, isto , negao da

    personalidade, e a carncia de qualquer deles importa em restrio deintegridade personativa.11

    O estado visto hoje no como pressuposto de vida jurdica,situao, posio do indivduo, mas como condio pessoal de

    juridicidade. Walter Moraes considerava notria a sobrevivncia dedois estados no direito moderno, ostatus civitatise ostatus familiae,

    referindo-se o ltimo comunidade familiar.12

    As relaes de estado de famlia sempre existem, querpositiva, quer negativamente. Dizemos positivas as relaes emque ambos os sujeitos ou partes operam [relaes intersubjetivas

    propriamente ditas]. Dizemos negativas as relaes em que um ssujeito opera.13

    Na lio de Walter Moraes, o estado de famlia trata, pois, deuma condio jurdica constante da pessoa, resultante do conjunto das

    15.07.2011, p. 79-80.11 MORAES, Walter. Adoo e Verdade. So Paulo: Ed. Revista dos Tribunais,

    1974, p. 83.12 MORAES.Adoo..., op. cit., p. 87-88.13 MORAES.Adoo..., op. cit., p. 92.

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    relaes que ela mantm no grupo familiar.14Questiona-se, porm,se a considerao da famlia como componente da personalidade trazmesmo assim a necessidade do estabelecimento de uma relao de

    grupo para a sua constituio e manuteno.A personalidade, segundo Capelo de Sousa,

    uma unidade fsico-psico-ambiental que coordena e assume as suasfunes e que composta por uma grande multiplicidade e diversidadede elementos, internos e ambientais, que integradamente se fundem emum conjunto que os ultrapassa, os referencia e os projecta e que em si

    mesmo tem uma dinmica prpria.15

    A personalidade se refere qualidade de ser pessoa. Emsentido formal, dene-se como capacidade de ser sujeito de direitose obrigaes, sendo a pessoa o centro de imputao de situaes

    jurdicas ativas ou passivas. Trata-se de dado extrajurdico, a qualidadede ser pessoa, qual o Direito, instituio humana por excelncia,se limita a reconhecer. Na doutrina de Pedro Paes de Vasconcelos:

    A personalidade jurdica , assim, a qualidade de ser pessoa, que o Direito

    reconhece a todas as pessoas pelo simples facto de o serem, que se traduzno necessrio tratamento jurdico das pessoas como pessoas, isto , comosujeito e no como objecto de direitos e deveres, como originariamentedotadas de dignidade inviolvel de pessoas humanas, que o Direito no

    pode deixar de respeitar e que constitui um dado extralegal, de DireitoNatural.16

    Os direitos da personalidade so, assim, os direitos atribudosa toda e qualquer pessoa enquanto tal e em suas projees na

    sociedade, exercendo a tutela de valores inerentes ao homem, taiscomo sua vida, integridade fsica, psquica e moral. So, em ltimaanlise, direitos inerentes prpria pessoa humana, caracterizados

    por oponibilidade erga omnes ou direitos no relativos, em Oliveira

    14 MORAES.Adoo..., op. cit., p. 91.15 CAPELO DE SOUSA, Rabindranath V. A. O Direito Geral de Personalidade.

    Coimbra: Coimbra Editora, 1995, p. 199.16 VASCONCELOS, Pedro Pais de. Teoria Geral do Direito Civil.4 ed. Coimbra:Almedina, 2005, p. 37.

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    Ascenso, intransmissibilidade, perenidade e imprescritibilidade,extrapatrimonialidade e indisponibilidade com limitaes.

    Walter Moraes classica os direitos da personalidade quanto

    sua dimenso fsica, intelectual e familial. Encontra-se na primeira odireito ao fsico, que compreende o direito vida, ao corpo, integridadefsica, sade, integridade psquica. A dimenso intelectual apresentaos direitos do esprito, categoria constituda do direito do intelecto,expresso do direito autoral, e direito da subjetividade, em que seincluem a liberdade, honra, imagem, intimidade e nome. Por m, adimenso familial constituda por direitos de natureza questionvel,abrangendo elementos da famlia ligados personalidade e a verdadecomo objeto de direitos da personalidade.17

    Para o autor, ainda, todo homem titular de um estado defamlia, de modo que esta condio apresenta uma relao estreita

    com a personalidade humana, sendo indagado se no constitui mesmoum bem componente da personalidade jurdica do indivduo:18

    Condio pessoal inerente natureza humana, assumida, comoassinalou Betti, por uma necessidade superior ao prprio interesse e

    independentemente do prprio querer, composto, embora, de relaesnegativas, o estado de famlia existe sempre para o indivduo. (...) Noh pessoa que possa viver margem desta ordem tutelar, o que vale dizer,no h quem possa privar-se de um estado de famlia.19

    Tem-se, pois, um direito a constituir famlia como direito dapersonalidade20. Em que pesem as vises de eminentes juristas no

    sentido de que a dimenso familial seria realizada pelo relacionamentocom o outro no interior do grupo familiar, restando queles que nose inserem em grupo familiar apenas um estado de famlia negativo,vislumbra-se a existncia de um estado de famlia em sentido posi-tivo em todo ser dotado de personalidade. A dimenso familial um

    17 MORAES, Walter apud BERTI, Silma Mendes. Fragilizao dos Direitos daPersonalidade. Revista da Faculdade Mineira de Direito. Belo Horizonte, v. 3, n.5 e 6, 1 e 2 sem. 2000., p. 241.

    18 MORAES.Adoo..., op. cit., p. 93.19 MORAES.Adoo..., op. cit., p. 96-97.20 CAMPOS, Lies de..., op. cit., p. 91.

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    componente da prpria personalidade e sua negao importa negaoda prpria pessoa.

    Da que todos tm um direito inerente a fazer parte de uma

    famlia, variando os modelos familiares em que se inserem. Se no serelaciona com um grupo para a formao de uma famlia, no perde a

    pessoa este direito, podendo constituir uma famlia unipessoal, sendo

    esta composta daquela nica pessoa que, sozinha, representa a me-mria de uma famlia, sem para isso se associar com outros indivduos.

    3. O sentimento de famlia

    As concluses acima se reforam quando se analisa a prpriaformao da famlia e sua funo de representao de uma histria,de valores prprios, de um sentimento familiar, que coincidem comum esprito de famlia, nas palavras de Jean-Philippe Pierron. Para oautor, a famlia um asilo, um refgio, um habitat certo para o ser,assegurando a identidade de seus membros. Sua noo composta pelasua histria, sua trajetria, um percurso pelo qual e no qual o sujeitoaprende a se reconhecer como sendo daquela famlia. No se deve,

    pois, pensar meramente no ser da famlia, e sim no ser em famlia.21

    A condio humana uma condio familiar, de maneira que

    ser no mundo signica ser de uma famlia.

    Grande ou petite, notre famille a lvidence durable de la maisonesise dans lespace, agrippe aux rives du temps o elle sassure deses foundations et do elle lance ses esprances. () Rythimiquegnrationnelle, battement du temps, la famille que nous porte, onlemporte avec soi.22

    Diante de uma grande variao de construes familiares notempo e no espao, todos nascem num clima familiar, no qual encon-tram suas origens, sua identidade, seus valores, locusda realizao edesenvolvimento da personalidade.

    21PIERROM, Jean-Philippe. Le climat familial.Paris: Les ditions du Cerf, 2009,

    p. 10-11.22 PIERROM. Le climat, op. cit., p. 13.

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    La famille est ainsi devenue lespace-temps possible dune realizationde soi et de dpanouissement personnel. Elle est envisageable commece cadre hermneutique dans lequel les identities personnelles se

    construisent et se gurant, se mettent en travail, et non plus sont reues et

    codies par des traditions. tre en famille est devenu sinterprter, et ltrefamilial se construit comme une interpretation dans laquelle on a tent

    de vivre des essentials dans linvention dun style existential propre.23

    Ao dar suporte para a construo da identidade da pessoa, a

    famlia lhe fornece os elementos para viver no mundo, sendo tambmuma identicadora das pessoas a ela ligadas. Tanto que os dadosmais singelos buscados quando se deseja conhecer uma pessoa soencontrados na famlia de onde esta pessoa vem, como, por exemplo,o nome de famlia que a pessoa carrega. A histria individual , assim,coordenada com a histria de uma famlia.24

    A famlia transcende o prprio sentido fsico da pessoa, sendopara alm um lugar de memria, guardi viva das experincias, dosprojetos e dos valores que a constituem. Ela tem, portanto, um sentido

    fsico, biolgico, simultaneamente a um sentido simblico, espiritual,que marca cada um que a compe.

    La famille est une institution qui articule, de faon inedited, le fait

    biologique de lengendrement et la reprise symbolique qui lui donneun sens. () la famille est un univers symbolique, irrductible la

    biologisation faisant de la famille un instrument de reproduction delespce. Comme univers symbolique, lidentit familiale est une identittravaille, relevant dun processus dinformations. Ainsi, la famillehabite-t-elle la brche du pass et du future, de la mmoire et de la

    promesse, de lidologie et de lutopie.25

    Neste sentido que se diz que cada famlia possui um espritoque lhe prprio e carrega os hbitos, liturgias domsticas e valoresque, frutos de uma histria imperceptvel, incorporados naturalmente,aproximam cada um dos seus componentes, no passado, presente efuturo, e os diferenciam de outras famlias.26

    23 PIERROM. Le climat, op. cit., p. 26.24 PIERROM. Le climat, op. cit., p. 33.25 PIERROM. Le climat, op. cit., p. 34.26 PIERROM. Le climat, op. cit., p. 144.

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    Lesprit de famille est lesprit de la transmission familiale:une orchestration, maintenue vibrante tout au long de la rptition des

    jours, de ce qui a t reconnu pour essentiel. () Il est la mmoire

    vive de ce qui est valeur pour une famille.27Importa, assim, para queuma pessoa possa ser considerada parte de uma famlia, especialmente

    se ela carrega em si este esprito de uma famlia, este conjunto devalores, de hbitos, de liturgias que identicam uma famlia e adiferenciam de outra, independentemente de como se d a constituiodesta famlia, se nela se podem apontar um pai, uma me e seus lhosou se, diferentemente, ela o que restou de uma grupo, uma nica

    pessoa que guarda em si sozinha a essncia de sua famlia. O espritode famlia se refere a uma continuidade de histria que se estabelecesobre a aparente descontinuidade em razo das metamorfoses daestrutura familiar.

    4. A proteo da famlia no direito

    Recorrendo-se s normas nacionais e internacionais que tra-tam da proteo da famlia e da vida familiar, encontra-se em geral aformulao de noes abertas de famlia, que indicam a recepo dosmais diversos tipos familiares formados no seio social. Os diplomas

    reetem o abandono da unicidade de um modelo matrimonializadoe patriarcal, que passa a dividir espao com outras formas de consti-tuio de famlia, desde que cumpridoras da sua funo social, tica

    e espiritual.

    Assim que a Conveno Europia de Direitos Humanos,

    norma superior e orientadora dos ordenamentos nacionais europeus28,

    estabelece em seus artigos 8 e 12, respectivamente, que qualquerpessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu

    domiclio e da sua correspondncia e o homem e a mulher tm odireito de se casar e de constituir famlia.

    O artigo 8 reete a evoluo da noo de famlia, cumprindoa exigncia de adaptao da norma em direo ao reconhecimento

    27 PIERROM. Le climat, op. cit., p. 146.28 DEKEUWER-DFOSSEZ, Franoise. La famille et la convention europeniedes droits de lhomme. Prefcio de VASSEUR-LAMBRY. La famille..., op. cit.

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    do impacto dos direitos e liberdades individuais sobre a instituiofamiliar, ou da livre escolha do individuo que se sobrepe ao modelo defamlia tradicional formada pelo matrimnio e regida por um princpio

    hierrquico. A famlia de hoje caracterizada por uma pluralidadede relaes interindividuais, cabendo ao Estado salvaguardar seuequilbrio e coeso, em nome do respeito vida privada e da vida emfamlia, de um lado, e dos interesses da sociedade, de outro.29

    Ao assegurar o respeito vida familiar, o dispositivo pressupe,pois, a existncia de uma famlia, mas no dene como deve ser suanatureza e composio. O conceito resta aberto, sendo deixado paraa interpretao dos rgos de controle, luz das condies sociaisdo momento e tendo em conta a evoluo dos costumes nos Estados

    membros do conselho europeu. La notion de famille gure galement larticle 8 de la Conv. EDH qui assure toute personne le respectde sa vie familiale. Sil apparat vident que la mise en vre de cetarticle prsuppose lexistence dune famille, ses auteurs sont pourtantrests muets quant la nature, ainsi qu la composition de celle-ci.30

    O artigo 12 da Conv. EDH aborda o direito ao casamento e

    a constituir famlia, conjuntamente. Interpretando-o em consonnciacom o artigo 8, as instances de Strasbourg conferem proteo jurdicaa todo tipo de famlia, que tem igual direito de respeito a sua vidafamiliar. Le droit au respect de la vie familiale est donc indissociablede la vie prive et il participe, ce titre, la garantie de lautonomie

    personnele.31

    Deve o direito reconhecer e respeitar todos os modelos

    diferentes existentes numa sociedade, no s o modelo dominante,

    sendo papel do Estado proteger contra qualquer forma de discriminao,indivduos que se encontrem em situaes anlogas.32

    Analisando a primeira parte do artigo 36, n. 1, da ConstituioPortuguesa, que, com redao semelhante ao artigo 12 da Conv. EDH,estabelece que todos tm o direito de constituir famlia e de contrair

    29 VASSEUR-LAMBRY. La famille..., op. cit., p. 245.30 VASSEUR-LAMBRY. La famille..., op. cit., p. 245-246.31 VASSEUR-LAMBRY. La famille..., op. cit., p. 247.32 VASSEUR-LAMBRY. La famille..., op. cit., p. 248.

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    casamento em condies de plena igualdade, Diogo Leite de Camposdemonstra que a melhor interpretao do dispositivo deve concluir

    que a separao entre as duas expresses e, sobretudo, a colocao

    da constituio da famlia antes da celebrao do casamento, signicauma independncia entre os dois princpios, em termos de o direito a

    procriar ser reconhecido independentemente de se enquadrar ou no

    no casamento.33 Avanando o raciocnio do autor, considera-se oreconhecimento de um direito a constituir famlia em sentido amplo,

    sem que se delimitem tipos de famlia especcos a serem preenchidos,e mesmo independentemente da funo de procriao.

    Diversos outros dispositivos, como os artigos XII e XVIda Declarao Universal dos Direitos do Homem, e o artigo 17 daDeclarao Americana de Direitos Humanos Pacto de So Jos daCosta Rica, possuem redao semelhante, e indicam a mesma forma

    de interpretao do termo famlia.

    A Constituio da Repblica Federativa do Brasil tambm clara neste sentido, estabelecendo no artigo 226 a especial proteodo Estado famlia, base da sociedade. O dispositivo deixa clara a

    opo do legislador pela aceitao de uma pluralidade de formasfamiliares ao substituir a redao da Constituio de 1967/69, cujoartigo 175 restringia a famlia base da sociedade quela constituda

    pelo casamento. A Constituio de 1988 traz, alm disso, a previsoexpressa de trs entidades familiares (casamento, unio estvel,famlia monoparental), em um modelo que pode ser analisado

    sob uma tica abrangente, passvel de absorver outras espcies deentidades familiares.34Intentando deixar em aberto as possibilidadesde constituio da famlia, o legislador constitucional substitui aclusula de excluso da antiga constituio por uma clusula geralde incluso.35

    33 CAMPOS, Lies de..., op. cit., p. 86.34 MAFRA, Tereza C. M.; MILAGRES, Marcelo de O. (Im)penhorabilidade

    do bem de famlia do fiador na locao residencial: a eficcia horizontal dodireito fundamental morada e a proteo constitucional da famlia. Revista

    da Faculdade de Direito Milton Campos,n. 17. Belo Horizonte, 2008.35 PEREIRA. Direitos Fundamentais..., op. cit., p. 89.

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    Vislumbra-se nas diversas ordens normativas, portanto, agarantia de liberdade de constituir famlia independentemente damodalidade de organizao, como reexo das mudanas valorativas do

    Direito de Famlia em que foram erigidos os princpios da pluralidadede formas familiares e da funo serviente da famlia.36A formao de

    uma famlia unipessoal, deste modo, como uma destas modalidades

    de organizao, reete o exerccio do direito a constituir famlia,conferido pessoa humana.

    Acrescendo-se, ainda, ao signicado de famlia para o Direito,no se pode perder de vista que a constituio da famlia unipessoal

    tem origem em fato jurdico. Ela parte de um grupamento familiar,tal como os previstos nos arts. 1.591 e seguintes do Cdigo Civilde 2002. Transforma-se, no entanto, em razo de um fato jurdico,como a ocorrncia da morte de um ou de mais membros que antesa compunham, em famlia unipessoal, por passar a existir formadaapenas de uma pessoa.

    Na lio de Carbonnier: que se oculte o direito de famlia;falemos antes de um direito do homem (e da mulher) famlia: uma

    forma de direito felicidade implicitamente garantida pelo Estado.37

    5. O reconhecimento da famlia unipessoal na tutela do bem defamlia

    No obstante a relevncia jurdica de se reconhecer a formaode famlias unipessoais pelo reconhecimento do direito de constituir

    famlia como direito da personalidade, apontam-se algumas implica-

    es prticas que reforam o sentido desta relevncia.Na tutela do bem de famlia sobreleva o reconhecimento danecessidade da garantia de um mnimo indispensvel para a existnciahumana, sem o qual a pessoa ca privada de uma condio digna.Constitui-se, neste sentido, um patrimnio especial, apartado do

    patrimnio ordinrio de seu titular, destinado garantia de uma sub-

    36 PEREIRA. Direitos Fundamentais..., op. cit., p. 88.37 CARBONNIER, Jean. A chacun sa famille, chacun son droit. Essais sur les

    lois. 2. ed., 1995, p. 185-186.

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    sistncia digna da entidade familiar qual pertence, no importandoa sua modalidade de organizao.

    Estes bens cam excludos da garantia genrica constituda

    pelo patrimnio de seu titular em relao ao cumprimento de seusdbitos, satisfazendo funo de resguardo dos valores existenciais daentidade familiar, de acordo com a Lei n. 8.009 de 29 de marco de1990, e os artigos 1711 a 1722 do Cdigo Civil Brasileiro. Tutela-sedesta forma o espao digno de subsistncia da pessoa humana.

    O legislador, ao realar a proteo de determinados bens,importantes para a sobrevivncia digna em famlia, almeja atutela do valor moradia, posicionado entre os direitos sociais

    constitucionalmente garantidos, conforme o disposto no artigo 6da Constituio da Repblica. Este valor encontra tutela ainda emtratados internacionais, dentre os quais se destacam a Declarao

    Universal dos Direitos Humanos e o Pacto Internacional de DireitosEconmicos, Sociais e Culturais.

    O bem de famlia , pois, indisponvel, absoluto, em razoda sua funo existencial para a entidade familiar, e com isso para a

    tutela da pessoa humana, como explicita o Ministro Carlos Brito nosautos do Recurso Extraordinrio 407.688-8/SP:

    A partir dessas qualicaes constitucionais, sobretudo aquela que fazda moradia uma necessidade essencial, vital bsica do trabalhador e desua famlia, entendo que esse direito moradia se torna indisponvel,

    no-potestativo, no pode sofrer penhora por efeito de um contrato deao (sic). Ele no pode, mediante um contrato de ao, decair.

    De acordo com Tereza Mafra e Marcelo Milagres:

    No se tutela a moradia como valor autnomo, mas como valor essencial dignidade da entidade familiar, como espao de sua integral realizao.Sublinhe-se que no se restringe a moradia propriedade, o bem jurdicoobjeto de tutela existencial, que extrapola os limites dos direitos reaise obrigacionais.38

    Quando, na proteo do bem de famlia, se trata da promooda dignidade da entidade familiar, no se restringe ao modelo de or-

    38 MAFRA; MILAGRES. (Im)penhorabilidade..., op. cit.

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    ganizao tradicional da famlia. O legislador protege a subsistnciada famlia com o intuito de promover a existncia digna daqueles quea compem e encontram nela o local para o desenvolvimento de sua

    personalidade. Da que a entidade familiar, detentora do bem a serprotegido especialmente, deve ser entendida em sentido amplo e aber-to, incluindo em sua tutela a famlia monoparental e at a unipessoal.

    Neste sentido o entendimento da Corte Especial do SuperiorTribunal de Justia, estabelecido no julgamento dos Embargos deDivergncia no Recurso Especial n. 182.223/SP, considerando quea ocupao do imvel exclusivamente pelo executado deve serconsiderada entidade familiar para efeito de impenhorabilidade doimvel, nos termos da Lei 8.009/90. Tal interpretao ampliativaconferida pelo STJ noo de entidade familiar, admitindo aimpenhorabilidade mesmo quando resida somente uma pessoa noimvel, encontra ressonncia na jurisprudncia do Supremo TribunalFederal.39

    Ainda que de forma tmida, as decises reetem a consideraode que a pessoa encontra seu locusde desenvolvimento e manuteno

    de sua dignidade na famlia, fazendo jus ao reconhecimento do seudireito a constituir e ter tutelada a sua entidade familiar, mesmo em

    carter unipessoal.

    6. O conceito de famlia nas polticas pblicas

    O conceito de famlia e a identicao de suas modalida-des de organizao so tambm importantes em matrias de direito

    pblico, como a implementao de polticas pblicas. So estas umconjunto de aes e decises do governo, voltadas para a soluo de

    problemas da sociedade, visando alcanar o bem-estar da sociedadee o interesse pblico.40

    Observando alguns dos programas sociais atualmente exe-cutados pelo governo federal, verica-se ser o conceito de famlia

    39 MAFRA; MILAGRES. (Im)penhorabilidade..., op. cit.40 CALDAS, Ricardo Wahrendorff (coord.). Polticas Pblicas: conceitos e prticas.Belo Horizonte: Sebrae/MG, 2008, p. 5.

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    determinante da abrangncia e aplicao destas polticas pblicas,dentre as quais se destacam Bolsa Famlia e Prouni.

    Nos ltimos tempos, tm vindo a assumir uma importncia crescenteformas a-tpicas de famlia cujo signicado e alcance no mbito socialse ramica que na poltica social, quer na poltica habitacional, querna poltica educativa, quer na poltica do controlo da delinquncia e dacriminalidade.41

    O Programa Bolsa Famlia um programa de transfernciadireta de renda com condicionalidades, que benecia famlias emsituao de pobreza e extrema pobreza, de acordo com a Lei 10.836,

    de 09 de janeiro de 2004. O legislador, para efeito de concesso dobenefcio, estabeleceu o conceito de famlia no artigo 2, 1 como aunidade nuclear, eventualmente ampliada por outros indivduos quecom ela possuam laos de parentesco ou de anidade, que forme umgrupo domstico, vivendo sob o mesmo teto e que se mantm pelacontribuio de seus membros. O conceito presente na lei exige quea entidade familiar seja constituda por um grupo de pessoas, semrestringir o modo de formao deste grupo.

    O Prouni, por sua vez, Programa Universidade para Todos,institudo pela Lei n. 11.096, de 13 de janeiro de 2005, destina-se concesso de bolsas de estudo para estudantes de cursos de graduaoe seqenciais de formao especca, em instituies privadas deensino superior, com ou sem ns lucrativos. O benefcio do programatambm vinculado situao familiar do sujeito, variando o valorda bolsa de estudo concedida conforme a sua renda familiar mensal

    per capita.A famlia entendida, para ns de concesso e clculo dobenefcio, sob um primeiro olhar, como grupo familiar formado pelocandidato e o conjunto de pessoas que reside na mesma moradia deste,

    mantendo com o mesmo relao de parentesco (artigo 6 da PortariaNormativa n. 05, de 25 de maio de 2009, do Ministrio da Educao).Novamente estabelece-se exigncia de que a entidade familiar sejaconstituda por um grupo, com diversas possibilidades de organizao

    41 ESTEVES.A famlia..., op. cit., p. 80.

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    interna. O carter aberto da formao do grupo reforado no 5do referido artigo, que determina a aplicao do programa aos gruposfamiliares formados por unio estvel, inclusive homoafetiva.

    O 3 do artigo 6, contudo, sinaliza a abertura do legisladorpara a considerao e contemplao com o benefcio queles queformam uma famlia unipessoal, ao estabelecer que caso o grupofamiliar informado se restrinja ao prprio candidato, este devercomprovar percepo de renda prpria que suporte seus gastos,condizente com seu padro de vida e de consumo, sob pena dereprovao. O dispositivo permite queles que sozinhos constituemuma entidade familiar, famlia unipessoal, receber bolsas de estudo

    para sua formao.

    Verica-se, pois, que as polticas pblicas, referindo-se instituio familiar, em geral consideram-na como grupo familiar,admitindo-se uma pluralidade de formas e modelos de organizao.Albergam uma variedade enorme de grupos familiares entre seus

    benecirios, dando lugar por vezes a abusos na concesso dosbenefcios, ao mesmo tempo em que excluem as famlias unipessoais,

    cujo reconhecimento importante para que se alcance o bem-estarsocial amplo almejado.

    O reconhecimento da formao da famlia unipessoal

    importaria desta forma a reviso da concesso destes benefcios,promovendo o princpio constitucional da isonomia, o respeito pela

    pessoa e seu direito a constituir uma famlia.

    7. Consideraes fnais

    O conceito de famlia hoje uma noo aberta, comportandodiferentes modalidades de organizao que manifestem umaidentidade e um sentido social de famlia. Os ordenamentos, a doutrina

    e a jurisprudncia abandonaram a restrio noo tradicional defamlia constituda pelos laos de casamento e liao, abraandoeste sentido mais amplo.

    A prpria constituio de famlia um direito da personalidade,de modo que se pode defender que toda pessoa tenha uma famlia, seja

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    ela formada sob qualquer das modalidades admitidas. A famlia nose refere, pois, a um necessrio agrupamento de pessoas, podendo seridenticada tambm numa pessoa que, cando sozinha, representa os

    valores, a memria, o sentimento e a histria de sua famlia, enm, oesprito de sua famlia, que a diferencia das demais.

    Alm da famlia tradicional, baseada no casamento de homeme mulher e liao, admitem-se diversos outros modelos familiares:unio de casais fora do casamento, unies homoafetivas, famlias

    monoparentais, casais sem lhos, famlia unipessoal, etc.Voltando a ateno aos casos inicialmente expostos, conclui-se

    pela formao de ncleos de famlia unipessoal. No primeiro deles,apesar de ter perdido seus pais, seu marido e sua lha, aquela mulherque ao mesmo tempo lha, esposa e me, s que ao nal sozinha,no deixa de constituir uma famlia. O estado de famlia inerente asua prpria personalidade e esta pessoa representa todo o sentimentoe memria de sua famlia. No segundo, a lha no se situa numa idiade famlia tradicional, formada atravs de um lao matrimonial com

    a procriao. Mas tambm carrega em si, sozinha, o sentido de uma

    famlia, como parte de sua personalidade. Por m, no ltimo casotem-se tambm a constituio de famlia unipessoal pela mulher que

    perde seu marido e no tem lhos, decidindo por no constituir novosvnculos, sendo esta mulher representante da tradio, da memria edo esprito de seu ncleo familiar.

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