Fannon e Argelia

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_______________________________________________________________________________________ Monographia, Porto Alegre, n. 1, 2005 1 Disponível em:<http://www.fapa.com.br/monographia > O pensamento anticolonial de Frantz Fanon e a Guerra de Independência da Argélia Walter Günther Rodrigues Lippold * Resumo Este artigo trata sobre o pensamento anticolonial na África e das conjunturas das quais estas teorias surgem, ou seja, refere-se ao processo de descolonização africana, mais precisamente ao argelino. Ao contrário das teses eurocêntricas que afirmam não haver reflexão interna sobre os problemas africanos, existiram vários pensadores que se dedicaram à análise do seu continente, entre eles Frantz Fanon e Albert Memmi. Palavras-chave: descolonização africana, alienação colonial, terceiro-mundismo. Introdução Este artigo visa suscitar um maior interesse sobre a história e o pensamento africano contemporâneo, pois, apesar de sua profunda relação histórica com a África, no Brasil, ainda são escassos os estudos sobre este continente. Assim, busquei compreender o pensamento anticolonial africano, com ênfase na obra de Frantz Fanon, mas adentrando, em alguns aspectos, nas teorias de outros pensadores como Albert Memmi. A teoria de Fanon traz à tona questões pertinentes à realidade brasileira, daí a importância de resgatar sua obra. O racismo assimilativo brasileiro – com seus estereótipos de “beleza branca” e “feiúra negra”, reproduzidos principalmente na TV – muitas vezes leva o afro-brasileiro à despersonalização, ao embranquecimento estético e cultural. Fanon analisa esta despersonalização em sua obra, conforme constata-se em seu conceito de alienação o qual pode ser comparado com a visão de Albert Memmi. A questão da violência, tanto a do colonizador como a do colonizado, também é analisada por Fanon. Ele justifica a utilização de meios violentos para derrubar o colonialismo e vê na violência anticolonial uma práxis totalizante que liberta o colonizado de suas alienações. * Graduado em História e Especialista em História do Mundo Afro-Asiático pela FAPA. Esse artigo constitui uma síntese da monografia de especialização, orientada pelo Prof. André Reis da Silva.

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Sobre o psiquiatra Frantz Fannon e seu engajamento na luta pela independência da Argélia.

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    Monographia, Porto Alegre, n. 1, 2005 1 Disponvel em:

    O pensamento anticolonial de Frantz Fanon e a Guerra de Independncia da Arglia

    Walter Gnther Rodrigues Lippold*

    Resumo

    Este artigo trata sobre o pensamento anticolonial na frica e das conjunturas das quais estas teorias surgem, ou seja, refere-se ao processo de descolonizao africana, mais precisamente ao argelino. Ao contrrio das teses eurocntricas que afirmam no haver reflexo interna sobre os problemas africanos, existiram vrios pensadores que se dedicaram anlise do seu continente, entre eles Frantz Fanon e Albert Memmi.

    Palavras-chave: descolonizao africana, alienao colonial, terceiro-mundismo.

    Introduo

    Este artigo visa suscitar um maior interesse sobre a histria e o pensamento africano contemporneo, pois, apesar de sua profunda relao histrica com a frica, no Brasil, ainda so escassos os estudos sobre este continente. Assim, busquei compreender o pensamento anticolonial africano, com nfase na obra de Frantz Fanon, mas adentrando, em alguns aspectos, nas teorias de outros pensadores como Albert Memmi. A teoria de Fanon traz tona questes pertinentes realidade brasileira, da a importncia de resgatar sua obra. O racismo assimilativo brasileiro com seus esteretipos de beleza branca e feira negra, reproduzidos principalmente na TV muitas vezes leva o afro-brasileiro despersonalizao, ao embranquecimento esttico e cultural. Fanon analisa esta despersonalizao em sua obra, conforme constata-se em seu conceito de alienao o qual pode ser comparado com a viso de Albert Memmi. A questo da violncia, tanto a do colonizador como a do colonizado, tambm analisada por Fanon. Ele justifica a utilizao de meios violentos para derrubar o colonialismo e v na violncia anticolonial uma prxis totalizante que liberta o colonizado de suas alienaes.

    * Graduado em Histria e Especialista em Histria do Mundo Afro-Asitico pela FAPA. Esse artigo constitui

    uma sntese da monografia de especializao, orientada pelo Prof. Andr Reis da Silva.

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    Monographia, Porto Alegre, n. 1, 2005 2 Disponvel em:

    Adentrarei na Histria da Arglia, principalmente na fase de luta anticolonial, j que Fanon forjou grande parte de seu pensamento neste contexto violento no qual o povo argelino combatia o poderoso estado colonialista francs. Com a exposio destes aspectos, poderemos averiguar as relaes do pensamento de Fanon com o contexto da luta anticolonial africana e do chamado terceiro-mundismo, em que os povos outrora colonizados puderam afirmar seu papel de protagonistas no devir histrico mundial e descartar as vises eurocntricas que ditam ser a frica um continente sem pensamento autnomo que reflita sobre sua prpria realidade.

    Arglia: colonizao e resistncia

    A colonizao francesa na Arglia foi de povoamento, os pied-noirs1 ganhavam ou compravam as terras expropriadas dos nativos, processo esse regulamentado pela Lei Warnier de 1873. Segundo Sartre2 , em 1850, o domnio dos colonos era de 11500 hectares. Em 1900, de 1 600 000; em 1950, de 2 703 000. Assim os nativos foram sendo empurrados para as reas mais improdutivas e desrticas. Os franceses desestruturaram a economia argelina: nas terras onde antes eram plantados cereais para comer, os colonizadores plantaram videiras para a produo e exportao de vinhos para a Europa. Sartre3 afirma que: [...] o Estado francs entrega a terra rabe aos colonos para criar-lhes um poder de compra que permite aos industriais metropolitanos vender-lhes seus produtos; os colonos vendem aos mercados da metrpole os frutos dessa terra roubada.

    Em 1865, a Arglia foi anexada oficialmente pela Frana , a qual decretou que todos os que renegassem o estatuto civil muulmano receberiam a cidadania francesa. Em 1880, foi criado o Cdigo dos Indgenas que previa duras penas aos que contrariassem as leis coloniais4. Sartre5 ressalta que, em 1884, houve [...]o estabelecimento da Unio Aduaneira. Esta Unio permanece [1954]: ela assegura o monoplio do mercado argelino a

    1 Colonos franceses principalmente, mas podiam ser de outras nacionalidades europias.

    2 SARTRE, Jean Paul. O colonialismo um sistema. Les Temps Moderns, n 123, maro-abril de 1956. IN:

    Colonialismo e Neocolonialismo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1968, p.27. 3 Ibdem, p.27.

    4 YAZBEK, Mustaf. Arglia: a guerra e a independncia. So Paulo: Brasiliense, 1983, p. 18.

    5 SARTRE, op. cit., p. 25.

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    Monographia, Porto Alegre, n. 1, 2005 3 Disponvel em:

    uma indstria francesa em situao desvantajosa no mercado internacional por seus preos muito elevados.

    Neste trabalho, quando trato de colonialismo, estou falando do sistema que se valorizou a partir do sculo XIX, com a necessidade de o capitalismo industrial europeu buscar fontes de matrias-primas e novos mercados para seus produtos industrializados. Assim, as potncias colonialistas, como Inglaterra e Frana,, anexaram territrios,

    exercendo o controle poltico direto sobre eles. A troca desigual, reforada pela monopolizao da economia colonial pela metrpole, aumentou os lucros dos colonizadores. O colonialismo, na poca imperialista, continua a ter um papel fundamental. Agora, porm, as potncias coloniais buscam inverter capital na colnia, devido s baixas taxas de inverso de capital na metrpole, ao advento da 2 Revoluo Industrial e, principalmente, ao baixo preo da fora de trabalho e proximidade dos recursos naturais a serem explorados. Assim constri-se uma infra-estrutura bsica que possibilite o aumento dos lucros da metrpole. As ferrovias so o maior exemplo dessa infra-estrutura bsica. A indstria desenvolvida ligada somente s etapas iniciais da transformao da matria-prima. Assim o imperialismo pode agir tanto em colnias, semicolnias como em territrios independentes politicamente.

    Mesmo sob o jugo colonial, a sociedade argelina diversificou-se bastante nas primeiras dcadas do sculo XX, em que houve crescimento industrial devido criao de empresas mineradoras e agricultura. A malha rodoviria e ferroviria tambm foi desenvolvida. Com isso ocorreu o crescimento demogrfico urbano que ocasionou o desenvolvimento - dentro dos limites da condio colonial das possibilidades econmicas de muitos argelinos6. Neste contexto, surgiram as primeiras organizaes nacionalistas ou proto-nacionalistas argelinas: Messali Hadj funda a Estrela Norte Africana, que arregimenta os trabalhadores do Maghreb. Com a dissoluo da E.N.A., pela represso francesa, Messali ajudou a criar, em 1937, o Partido do Povo Argelino (PPA), que gerou a [...]O.S. (Organization de Scurit), um tipo de entidade paramilitar, organizada em clulas, que

    6 YAZBEK, Mustaf. Arglia: a guerra e a independncia. So Paulo: Brasiliense, 1983, p.18.

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    teria atuao importantssima no desencadeamento da luta armada, quando j escasseavam os liames que a uniam ao P.P.A7.

    Em 1945, aps o fim da II Guerra Mundial, ocorreram os conflitos em Stif e em Ghelma, por causa da promessa quebrada por De Gaulle de libertar a Arglia aps a Guerra. As foras francesas massacraram aldeias inteiras, o que ajudou, em grande parte, a abrir o caminho para a luta armada. Apesar de terem mandado argelinos em grande quantidade para lutar na Europa e no prprio norte africano, tendo em vista a perspectiva de uma independncia, apesar de terem perdido 65 mil homens e de terem ajudado na libertao da Frana ocupada pelo nazismo, a metrpole no cumpriu sua promessa de libertar a Arglia do jugo colonial.

    Ento, os argelianos saram s ruas para comemorar o Dia da Vitria, a 8 de maio de 1945. A demonstrao a princpio pacfica foi interrompida pela interveno inesperada do exrcito francs, auxiliado pelos soldados senegaleses. A permisso de abater muulmanos nas ruas foi estendida aos colonos, que se emularam com a Legio Estrangeira no saque e no assassinato. O dio, misto de medo, dos colonos tornou incontrolvel a sublevao armada em Stif e Ghelma, onde o povo revidou o massacre, atacando alguns centros de colonizao.8

    Nas eleies de 1948, os franceses utilizaram-se de tticas nada democrticas para impedir que candidatos pr-independncia chegassem ao poder. Por trs do discurso democrtico, escondia-se a face real da opresso colonial: no momento em que emergiram os candidatos do M.T.L.D., os franceses, sem hesitar, prenderam a maioria deles. Alm disso:

    [...]confiscaram jornais, proibiram reunies pblicas, incumbiram a polcia de presidir as eleies em algumas localidades, no fizeram a distribuio de ttulos eleitorais em muitas regies e, em outras ainda, violaram as urnas antecipadamente. Tudo isso sob os auspcios da Fora Area que efetuava vos rasantes sobre as aldeias, para assustar e advertir a populao, e do Exrcito, que se valeu das metralhadoras como instrumentos de propaganda eleitoral, inclusive fazendo vtimas entre o eleitorado.9

    O nacionalismo argelino estava cada vez mais convencido que a via legal de emancipao estava esgotada, ou melhor, nunca tivera espao para desenvolver-se por

    7 POERNER, Arthur Jos. Arglia: O Caminho da Independncia. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira,

    1966, p.29. 8 Ibidem, p.24.

    9 Ibidem, p.31.

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    causa da violenta represso francesa. A Frana, to propalada por sua defesa dos ideais de 1789, mostrou que, quando se trata de colonialismo, a democracia torna-se somente um discurso vago, um encobrimento dos mecanismos reais das relaes entre colonizados e colonizadores. A Arglia pertencia Frana, mas no podia partilhar do sistema democrtico-liberal francs.

    Com o amadurecimento do movimento anticolonial argelino, surgiram antagonismos e divises nas fileiras nacionalistas. O MTLD acabou por rachar em uma faco messalista e em outra anti-messalista, enfraquecendo a organizao da luta pela independncia. Isto

    [...]leva os veteranos da O.S. Ben Boulad, Didouche Mourad, Ben Mhidi Larbi, Boudiaf, Bitat e Belkacem, na Arglia, Mohamed Khider, At Ahmed e Ben Bella, no Cairo conhecidos na Histria da Arglia como os nove chefes histricos[...] a firmar um acordo onde se renunciava s rivalidades anteriores.10

    Estes chefes histricos criaram, em 1954, o Comit Revolucionrio de Unidade e Ao (CRUA) e este formou a Frente de Libertao Nacional (FLN) e o seu brao armado o Exrcito de Libertao Nacional (ELN). O ELN estava dividido em trs tipos de tropas com tticas diferentes: os moudjahidines eram os soldados convencionais, uniformizados e integrados nas unidades do ELN; os moussebilines eram os sabotadores de linhas de comunicao e estradas e os responsveis pelo transporte de armas e de feridos e pelo servio de informao; os fidaiyines eram os responsveis pelos atentados pessoais e pelas sabotagens urbanas, exploses e incndios. O termo fida em rabe quer dizer terrorista.

    Com as aes do ELN, incluindo terrorismo e sabotagem, a represso aumentou. Chegaram tropas de elite francesas, os pra-quedistas, que tambm se utilizavam do terrorismo, alm da tortura e dos massacres. Lembremos que 1954 foi tambm o ano da derrota francesa em Dien Bien Phun na Indochina, um golpe poderoso no colonialismo francs. Em 1955, a FLN participou da Conferncia de Bandung em que os povos afro-asiticos defenderam sua autodeterminao e o fim do colonialismo.

    O feto da luta armada tinha crescido na exata proporo em que o regime colonial manifestava sua incapacidade de renunciar pacificamente a seu sistema de

    10 Ibidem, p.35, grifo do autor.

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    Monographia, Porto Alegre, n. 1, 2005 6 Disponvel em:

    explorao do povo da Arglia. Durante aqueles nove anos, as reivindicaes abertas dos partidos legais tinham esbarrado no silncio francs.11

    Com a insero da FLN nos meios urbanos, cresceu a heterogeneidade no seu movimento: cristos e muulmanos, progressistas, intelectuais liberais e comunistas12. A solidariedade de pases como o Egito, Marrocos e Tunsia com a FLN crescia. Enquanto Nasser apoiava diretamente a independncia argelina, o Partido Comunista Argelino, seguindo as diretrizes do Partido Comunista Francs, criticava as aes da FLN, principalmente o terrorismo, o nacionalismo e os aspectos religiosos do movimento. Mas Yazbek13 defendeu estes dois ltimos aspectos, pois eles ajudaram a trazer a coeso e uma identidade comum para a luta contra o invasor francs.

    Entre janeiro e setembro de 1957 a FLN recebia um duro golpe no episdio conhecido como a batalha de Argel, uma sucesso alucinante de choques armados e atentados que sacudiram a capital. Nesse episdio, a base de apoio dos rebeldes era a Casbah, o bairro rabe. Aps usar todos os recursos de combate guerrilha urbana, os pra-quedistas anunciavam a liquidao da rede montada pelos rebeldes em Argel, coordenada por Yacef Saadi.14

    O filme de 1965 - A Batalha de Argel - uma produo talo-argelina, dirigida pelo diretor italiano Gillo Pontecorvo, que procura reconstituir os acontecimentos deste episdio. Ele mostra tambm aspectos da luta anticolonial urbana na Arglia, suas tticas e idias. O filme importante, pois foi feito com a ajuda do povo argelino e de figuras significativas da FLN, como Yacef Saadi, que inclusive nele atua e seu produtor associado. Podemos, atravs desta produo, conhecer alguns comunicados da FLN que nela so citados, como o que determina pena de morte para traficantes, cafetes e viciados da Casbah. Esta obra ganhou prmios como o Leo de Ouro do Festival de Veneza e considerada um dos filmes polticos mais importantes dos anos 60 do sculo XX. Ela tambm apresenta alguns aspectos da crise poltica ps-independncia, pois como foi

    11 Ibidem, p.36.

    12 YAZBEK, Mustaf. Arglia: a guerra e a independncia. So Paulo: Brasiliense, 1983, p.38.

    13 Ibidem, p.40.

    14 Ibidem, p.45-46.

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    Monographia, Porto Alegre, n. 1, 2005 7 Disponvel em:

    rodado na poca do governo Boumedienne, nenhuma referncia feita a Ben Bella, sendo este um contedo latente15 do filme.

    O filme traz tona vrios elementos importantes que fizeram parte do contexto de luta pela independncia argelina: o dio racial do francs para com o rabe, as diferenas gritantes entre a cidade europia e a Casbah, a tortura aplicada pelos franceses e os atentados terroristas da FLN. O que no fica explcito no filme so as ligaes da FLN urbana com o campo, j que a luta originou-se na zona rural e depois atingiu a cidade. Em alguns momentos, fica claro que o filme de 1965, mesmo ano da queda do primeiro presidente argelino, Ben Bella, e de sua substituio pelo Coronel Boummedienne, tambm da FLN. Em um determinado momento, Ali La Pointe, protagonista do filme, conversa com o lder Ben MHidi que diz algumas palavras sobre como mais difcil continuar uma revoluo do que come-la. Ele completa sua fala dizendo que, quando acabar a guerra, a sim comearo realmente, os tempos difceis, numa aluso clara s dificuldades da ps-independncia argelino. A riqueza do filme to grande que, alm de comunicados oficiais da FLN, em alguns momentos so expostas as tticas e as estruturas de funcionamento dos setores urbanos da FLN. A ao repressiva e humilhante dos pra-quedistas com seus mtodos pouco convencionais , como explodir militantes dentro de seus esconderijos, tambm ressaltada no filme. Lembremos que estes militares estavam com bastante raiva dos povos inferiores, j que haviam sido derrotados em Dien Bien Phu, precisavam agarrar-se Arglia, se a Frana quer continuar na Arglia, que se aceitem as

    conseqncias! diz o coronel Mathieu imprensa no filme. Em setembro de 1958, foi proclamado, no Cairo, o Governo Provisrio da Repblica

    Argeliana (GPRA), logo reconhecido por Marrocos, Repblica rabe Unida, Tunsia, Lbia, Imen e Iraque. As atitudes dos franceses, com sua represso violenta, somente

    15 Baseamo-nos, para a anlise do filme A Batalha de Argel, na metodologia de Ferro (1992, p.93), pela qual,

    a partir do contedo aparente do filme, devemos buscar o contedo latente que pode mostrar-nos uma zona de realidade (social) no visvel. necessrio conhecer aspectos externos do filme, por exemplo, o histrico do diretor, alm de tambm averiguar seu impacto nas platias. Outro aspecto importante da metodologia para a pesquisa em filmes histricos a clareza quanto relao passado-presente na produo cinematogrfica, ou seja, todo filme que retrata uma determinada poca passada, traz traos do seu prprio tempo. Mesmo no caso de um filme como A Batalha de Argel, que foi lanado poucos anos aps os acontecimentos que se props retratar, podemos observar contedos latentes que denotam aspectos da poca em que o filme foi rodado.

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    Monographia, Porto Alegre, n. 1, 2005 8 Disponvel em:

    traziam mais militantes para a FLN. As torturas, as humilhaes dirias e os infames reagrupamentos mostravam o colonialismo desnudo, sem nenhuma maquiagem ou vu ideolgico encobridor. Em 1960, ocorrem manifestaes gigantescas pela Independncia e confrontos violentos nas ruas de Argel, em que os soldados franceses atiravam nos civis desarmados. De Gaulle ,em janeiro de 1961, convoca um referendum de consulta ao povo francs a respeito dos destinos das relaes entre Frana e Arglia. O resultado mostrou que 75% do eleitorado era favorvel autodeterminao argelina16. Mesmo com as tentativas de golpes de setores descontentes com o fim do colonialismo, os acordos de Evian foram assinados em 18 de maro de 1962. A guerra sangrenta chegava ao fim com um saldo de um milho de mortos, na maioria argelinos.

    A alienao colonial O racismo a ideologia mais arraigada no colonialismo. Consiste em uma

    justificao do devir colonial a superioridade tcnica, proveniente de processos histricos diferenciados acaba por tornar-se ideologicamente superioridade biolgica. O preconceito racial , no entanto, anterior ao processo colonial. Na Idade Mdia europia, j se criavam imagens negativas do continente africano e do negro que era associado ora ao exotismo, ora ao mal e ao pecado. Para Santos,17 o racismo uma ideologia e, como tal, tambm foi concebido como uma estratgia de poder em acordo com as expectativas de parte de uma determinada sociedade. J que as potncias coloniais defendem o iderio burgus de que todos os homens nascem iguais e, portanto, todos tm direitos naturais em comum, fabrica-se o sub-homem que no partilha desses direitos inalienveis.

    A inferiorizao do outro a condio bsica da ideologia racista, sub-humanos merecem a escravido j que no so parte da cultura e sim da natureza. O racismo um pr-conceito que, geralmente, se pretende cientfico, o racista acredita piamente que superior ao outro. Ele coloca o biolgico como determinante do desenvolvimento humano. Acredito, porm, que no h essncia humana que preceda a existncia; a essncia se faz, se constri na prxis humana, portanto o racismo metafsico porque visa eternizar diferenas

    16 Ibidem, p.50.

    17 SANTOS, Gislene Aparecida dos. Selvagens, Exticos, Demonacos. Idias e Imagens sobre uma Gente de

    Cor Preta. Estudos Afro-Asiticos, Ano 24, n 2 , p.275-289, 2002, p.277.

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    Monographia, Porto Alegre, n. 1, 2005 9 Disponvel em:

    culturais provenientes de processos histricos diferenciados. Se h uma essncia humana de ser o ser-da-prxis, assim ela uma vir-a-ser constante.

    O racismo dos negros e rabes contra os brancos-europeus no pode ser analisado da mesma forma que o dos brancos contra os no-brancos. O primeiro uma resposta a posteriori suposta superioridade branca. O racismo do oprimido fruto do racismo do opressor, dele descende diretamente. Muitas vezes, o racismo anti-racista configura-se num aspecto positivo, na luta contra a negao de si mesmo empreendida pelos europeus. O racismo e a xenofobia do colonizado so para Memmi18 resultados da mistificao geral que construda pelo colonialismo. uma necessidade. A princpio, uma negatividade, um ressentimento contra o colonizador, mas pode vir a ser um preldio de uma positividade, ou seja, o colonizado recupera sua identidade por si mesmo. uma contramitologia, combatendo o mito negativo, criado e imposto pelo colonizador, surge um mito positivo de si mesmo, criado pelo colonizado. A exaltao do negro e de suas qualidades intrnsecas (emoo, ritmo, musicalidade, feita pela Negritude uma tentativa de autovalorizao, aps sculos de inferiorizao, mesmo que esta exaltao, muitas vezes, considere o ethos africano como essncia a-histrica.

    Atualmente, o racismo reproduzido cotidianamente atravs de novelas, como a recente da Rede Globo, Cor do Pecado, em que a negra vista com exotismo e sensualidade, trazendo tona um dos esteretipos construdos para as afro-descendentes: ora so empregadas, ora amantes sensuais, s vezes as duas coisas. O nome da protagonista era simplesmente... Preta, nada mais. As revistas tambm ajudam na propagao da ideologia racista, assim como as propagandas de TV que sempre utilizam modelos brancos, fixando uma noo esttica em que o branco representa o belo e o negro a feira.

    No processo colonial, a escola demonstrava-se como um dos principais irradiadores do racismo. Havia nela dois nveis de formao, um para a minoria que devia ser ensinada para o papel de colonizador, portador da civilizao, e outro para a maioria colonizada que deveria aprender sobre sua prpria condio inferior para obedecer aos ditames coloniais.

    18 MEMMI, Albert. Retrato do Colonizado Precedido do Retrato do Colonizador. 2 Ed. Rio de Janeiro: Paz e

    Terra, 1977, p.114-119.

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    Monographia, Porto Alegre, n. 1, 2005 10 Disponvel em:

    Fanon e Memmi debruam-se sobre o racismo o visualizando como a ideologia mais comum no processo de alienao gerado pela condio colonial.

    O pensador e revolucionrio Frantz Fanon (1925-1961) nasceu na Martinica e depois de servir o exrcito francs na luta contra o nazismo, estudou medicina em Lyon, formando-se em psiquiatria. Alm da medicina, Fanon estudou filosofia, freqentou cursos de Jean Lacroix e Merlau-Ponty, debruou-se principalmente sobre as obras de Hegel, Marx, Lnin, Kierkegaard, Husserl, Heidegger e Sartre e aprofundou-se no conceito de alienao desenvolvido por Hegel e Marx. Em 1952, ele escreveu Pele Negra, Mscaras Brancas [Black Skin, White Masks], um de seus trabalhos mais famosos.

    Logo aps seus estudos, Fanon foi trabalhar na Arglia como mdico-chefe da Clnica de Blida-Joinville.A partir do seu contato com a realidade da colnia, engajou-se na luta pela independncia argelina, tornando-se argelino. Aps sua entrada na Frente de Libertao Nacional argelina, ele tornou-se representante do Governo Provisrio em vrios encontros entre pases africanos e do Terceiro-Mundo em geral. Em 1961, Fanon descobriu que estava com leucemia e escreveu, em 10 meses, Os Condenados da Terra, vindo a morrer no mesmo ano. A obra de Fanon insere-se no contexto das independncias africanas e no chamado terceiro-mundismo e exerceu bastante influncia em movimentos negros radicais dos Estados Unidos, como os Panteras Negras,19 e principalmente em movimentos anticoloniais.

    Albert Memmi nasceu na Tunsia e era de origem judaica. Sua lngua era o rabe e ele foi educado nas escolas francesas, estudou na Universidade de Argel e na Sorbonne. Albert Memmi vivenciava trs culturas diferentes, como judeu que falava rabe e que fora educado pelos franceses. Alm de ser escritor renomado da literatura tunisiana, foi professor em da Carnot High School em Tunis. Memmi, judeu criado no interior de uma cultura magrebina, conforme o modo ocidental, postulou um modo de ser que permitisse a negao do aniquilamento scio-econmico e cultural do colonizado. Memmi e Fanon so os representantes do pensamento anticolonial africano que aprofundaram-se nas alienaes geradas pelo colonialismo e como elas servem ao modus operandi colonial. Fanon escreveu

    19 SOARES, Orson. Defendam-se: A Histria dos Panteras Negras. So Leopoldo: Unisinos, Trabalho de

    Concluso do Curso de Histria, 2003, passim.

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    Monographia, Porto Alegre, n. 1, 2005 11 Disponvel em:

    em sua obra Pele Negra, Mscaras Brancas sobre a situao do negro antilhano e dos africanos. Memmi abordou o colonizado em termos gerais. O pensamento de ambos encontra, porm, similaridades em diversos pontos essenciais. Em primeiro lugar est a questo da alienao colonial, desta construo mtica do colonizado e tambm do prprio colonizador. Estes pensadores analisaram os mecanismos da alienao e viram nela um suporte primordial empresa colonial: esta alienao cria a justificao para o colonialismo. Por ser o colonizado retratado como primitivo, preguioso, no limiar entre o homem e o animal, o colonizador tem a misso, ou pelo menos acredita nisso, de civiliz-lo, de levar luz a estas trevas em que consiste a sociedade do colonizado. Quanto a esta ideologia do colonizador, Memmi20 diz:

    Portador de valores da civilizao e da histria, cumpre uma misso: tem o grande mrito de iluminar as trevas infamantes do colonizado. Que esse papel lhe traga vantagens e respeito nada mais justo: a colonizao legtima, em todos os seus aspectos e conseqncias.

    A alienao colonial inferioriza o colonizado/negro/rabe, o obriga a vestir uma mscara branca, ele sofre inclusive de transtornos psicolgicos como o sentimento de inferioridade perante o colonizador branco. Conforme Fanon, o racismo cumpre com eficcia o seu papel: faz com que o colonizador possa dormir com a conscincia serena - j que est explorando sub-raas - e faz com que o colonizado sinta-se fraco e inferior, possibilitando o aumento da dominao cultural. Fanon afirma que, apesar de utilizar-se de uma anlise psicolgica em Black Skin, White Masks :

    [...] aparente para mim que a desalienao efetiva do homem preto vincula-se ao reconhecimento imediato das realidades sociais e econmicas. Se existe um complexo de inferioridade, ele o resultado de um processo duplo: - Primeiramente, econmico ; - Subseqentemente, a internalizao ou, melhor, o epidermalizao desta inferioridade21. (traduo minha)

    20 Ibidem, p.72.

    21FANON, Frantz. Black Skin, White Masks. New York: Grove Press, 1967, p.11-12. [...]it is apparent to me that the effective disalienation of the black man entails an immediate recognition of social and economic realities. If there is an inferiority complex, it is the outcome of a double process: primarly, economic; subsequently, the internalization or, better, the epidermalization of this inferiority.

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    Monographia, Porto Alegre, n. 1, 2005 12 Disponvel em:

    Para Fanon,22 o negro sofre de um desvio existencial implementado pela cultura branca. Uma verdadeira neurose toma conta da psiqu do negro, ele tenta de todo modo fugir de sua prpria identidade, ele tenta a todo custo aniquilar a sua prpria presena. Os valores brancos parecem-lhe os mais verdadeiros, os mais evoludos: [...]eu comeo a sofrer por no ser branco no mesmo grau que o homem branco impe a discriminao em mim, faz de mim um nativo colonizado, rouba-me todo valor, toda individualidade, diz-me que sou um parasita no mundo[...]23(traduo minha).

    No importa para o colonizador quem realmente o colonizado. Esta mistificao condiz com as demandas coloniais: nada mais vlido do que colonizar um povo preguioso, que no produz nada em suas terras. A viso do colonizador pioneiro, sempre altivo e com uma p na mo, com o olhar perdido no horizonte, pensando no progresso e no futuro, a anttese da do colonizado. Neste ponto Memmi e Fanon novamente se aproximam, principalmente quando o segundo afirma que o negro escravizado por sua inferioridade, o branco escravizado por sua superioridade24 (traduo minha). A alienao mtua, o colonizador ao criar uma imagem mtica do colonizado, tambm alienado em sua imagem, em seu retrato.

    Estas imagens ideolgicas do negro estimulam uma viso em que h desprezo, mas tambm temor. o que Fanon chama de negrofobia. Aqui est o mito do negro biolgico, pelo qual a alteridade negra vista e temida pelo olho/eu europeu, que considera que os africanos e seus descendentes

    [...] tm poderes sexuais tremendos. O que voc espera, com toda liberdade que eles tm em suas selvas! Eles copulam a toda hora e em qualquer lugar. Eles so realmente genitais. Eles tm tantas crianas que no podem cont-las. Tome cuidado, ou eles iro encher-nos com mulatinhos. As coisas esto indo pro inferno...O governo e o servio civil esto merc dos judeus. Nossas mulheres esto merc dos negros25. (traduo minha)

    22 Ibidem, p.93.

    23 Ibidem, p.98. [...]I begin to suffer from not being a white man to the degree that the white man imposes

    discrimination on me, makes me a colonized native, robs me of all worth, tells me that I am a parasite on the world[...]. 24

    Ibidem, p.60. [...]enslaved by his inferiority, the White man enslaved by his superiority[...]. 25

    Ibidem, p.157. [...]have tremendous sexual powers. What do you expect, with all the freedom they have in their jungles! They copulate at all time and in all places. They are really genital. They have so many children that they cannot count them. Be careful, or they will flood us with little mulattoes. Things are indeed going to hell...The government and the civil service at the mercy of the Jews. Our women at the mercy of the Negroes.

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    Monographia, Porto Alegre, n. 1, 2005 13 Disponvel em:

    Como demonstrou Fanon - adentrando no pensamento do racista estas imagens ideolgicas que tornam possvel o temor pelo negro, tambm esto explcitas na atitude quanto ao: Judeu [que] temido por causa de seu potencial por aquisies. Eles esto em todo lugar. Os bancos, as bolsas de valores, o governo est infestado por eles.Eles controlam tudo.[...]Logo eles estaro fazendo as leis para ns26(traduo minha). Qualquer comportamento que saia dos esteretipos criados, logo causa desconfiana no colonizador:

    [...] naturalmente, assim como um judeu que gasta dinheiro sem pensar suspeito, um homem preto que cita Montesquieu deve ser melhor observado[...]Quando um negro fala de Marx, a primeira reao sempre a mesma: Ns trouxemos voc at o nosso nvel e agora voc voltou-se contra seus benfeitores. Ingratos! Obviamente nada poder ser esperado de voc27. (traduo minha)

    Eis que deste emaranhado de imagens que liga o negro ao mal, feira e preguia, surge no prprio negro a vontade de fugir da analogia imposta pelo eurocentrismo. A ideologia do colonizador acaba por penetrar na conscincia do colonizado que, alienado, identifica-se com as imagens mticas criadas:

    No ter um pouco de razo? murmura ele. No somos, de certo modo, um pouco culpados? Preguiosos, j que temos tantos ociosos? Medrosos, j que nos deixamos oprimir? Desejado, divulgado pelo colonizador, este retrato mtico e degradante acaba, em certa medida, por ser aceito e vivido pelo colonizado.28

    Ele no se aceita mais como negro ou como rabe, quer ser branco/europeu, quer fugir de todos estes esteretipos fortalecidos na condio colonial. Aqui comea a construo da mscara branca. Esta tentativa de ser assimilado analisada tanto por

    26Ibidem, p.157. The Jew is feared because of his potential for acquisitiveness. They are everywhere. The banks, the stock exchanges, the government are infested with them. They control everything.[...] Soon they will be making the laws for us. 27

    Ibidem, p.35. [...]naturally, just as a Jew who spends money without thinking about it is suspect, a black man who quotes Montesquieu had better be watched[...] When a Negro talks of Marx, the first reaction is always the same: We have brought you up to our level and now you turn against your benefactors. Ingrates! Obviously nothing can be expected of you.

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    Monographia, Porto Alegre, n. 1, 2005 14 Disponvel em:

    Memmi quanto por Fanon,. Neste processo de embranquecimento cultural busca-se estar o mais prximo da brancura: o negro para atingir este objetivo muitas vezes procura amantes brancas, pois ele pensa que ao ser amado por ela ele digno do amor branco, ele enfim branco29. O negro que quer ascender socialmente procura apossar-se de smbolos de status social, um deles , com certeza, a mulher loura; isto corriqueiro no Brasil. Muitas mulheres negras buscam embranquecer, no s buscando parceiros brancos, mas tambm fisicamente. Pases como o Senegal possuem alta porcentagem de mulheres que usam produtos - geralmente nocivos sade - para branquear a pele.

    A ideologia colonial procura sempre deslegitimar a histria do colonizado, busca apagar sua memria. A escola um dos centros de reproduo desta ideologia. Os heris so os da metrpole, os sbios e pensadores tambm, a diviso da histria o quadripartismo francs.

    Interroguemos o prprio colonizado: quais so seus heris populares? Seus grandes lderes populares? Seus sbios? Mal pode dar-nos alguns nomes, em completa desordem, e cada vez menos medida em que descemos de geraes. O colonizado parece condenado a perder progressivamente a memria30.

    As festas comemoradas com maior vigor so as da metrpole, inclusive as religiosas. O desfile militar um evento constante, um smbolo da fora do colonizador. Uma cena caricatural, que exemplifica tudo isto, descrita por Ferro31:

    Crianas, amai a Frana, vossa nova ptria, dizia o professor. Em Argel, em 1939, comemoravam-se os 150 anos da Revoluo Francesa: jovens rabes e mourescos desfilavam, os primeiros portando o traje dos sans-culottes, os segundos, com a fronte cingida por uma coroa tricolor. Pois a Frana entende levar, para onde for possvel ,sua lngua, seus costumes, sua bandeira, seu gnio, j dizia Jules Ferry.

    Quebrando a mscara branca: revolta e violncia

    28 MEMMI, Albert. Retrato do Colonizado Precedido do Retrato do Colonizador. 2 Ed. Rio de Janeiro: Paz

    e Terra, 1977, p.83. 29

    FANON, Frantz. Black Skin, White Masks. New York: Grove Press, 1967, p.63. 30

    MEMMI, Albert. Retrato do Colonizado Precedido do Retrato do Colonizador. 2 Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977, p.94. Grifo do autor. 31

    FERRO, Marc. Histria das Colonizaes: Das Conquistas s Independncias. Sculo XIII a XX. So Paulo: Companhia das Letras, 1996, p.148.

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    Monographia, Porto Alegre, n. 1, 2005 15 Disponvel em:

    Ao vivenciar sua condio alienada, o colonizado/negro busca fugir dos esteretipos construdos na sociedade colonial. A primeira sada a da assimilao, ou seja, mudar de pele, tornar-se europeu; a segunda a revolta aberta contra o colonizador, revolta essa que pode transformar-se em revoluo. Entre estes dois momentos, ocorre, como j afirmei , a criao de uma contramitologia, um racismo s avessas por parte do colonizado, que, apesar de ainda estar inserido dentro do contexto colonial, apesar de ter um movimento de negao, torna-se dialeticamente afirmao da identidade em construo. Na sua tentativa de fugir do esteretipo colonizado, o negro/rabe encontra um modelo que lhe serve de exemplo, um

    [...] modelo tentador e muito prximo a ele[...] precisamente o do colonizador.[...]A primeira ambio do colonizado ser a de igualar-se a esse modelo prestigioso, de parecer-se com ele at nele desaparecer.[...]A mulher loura, seja inspida e de traos banais, parece superior a toda morena. Um produto fabricado pelo colonizador, uma palavra dada por ele, so recebidos com confiana. Seus hbitos, suas roupas, seus alimentos, sua arquitetura, so rigorosamente copiados, mesmo sendo inadequados.32

    A assimilao, porm, no pode ocorrer, pois atenta contra o funcionamento do colonialismo. O colonizador recusa-se a assimilar os colonizados: ele zomba deles, so macacos que imitam, nada mais. Ora, no quadro colonial a assimilao revelou-se impossvel.[...]Para assimilar-se, no suficiente despedir-se de seu grupo, preciso penetrar em outro: ora, ele encontra a recusa do colonizador.

    Tendo em vista a falncia da assimilao, j que ela vai contra o funcionamento do prprio colonialismo, h uma segunda tentativa empreendida pelo colonizado em prol da libertao de sua condio inferior: a revolta. Neste ponto, Memmi como Fanon concordam novamente: a revolta violenta do colonizado a nica tentativa realmente eficiente no caminho da libertao.

    Longe de nos espantarmos com as revoltas nas colnias, deveramos nos surpreender, ao contrrio, que no sejam mais freqentes e mais violentas. [...] A revolta, porm,, para a situao colonial, a nica sada que no miragem, e o colonizado descobre isso cedo ou tarde. Sua condio absoluta e reclama uma soluo absoluta, uma ruptura e no um compromisso.33

    32 MEMMI, Albert. Retrato do Colonizado Precedido do Retrato do Colonizador. 2 Ed. Rio de Janeiro: Paz e

    Terra, 1977, p.106-107. 33

    Ibidem, p.111.

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    Monographia, Porto Alegre, n. 1, 2005 16 Disponvel em:

    Fanon e Memmi concordam que a revolta violenta desmistifica a suposta inferioridade do colonizado, tendo o primeiro adentrado. profundamente nesta verdadeira sociologia da violncia. Eles escreveram suas obras em um contexto que demandava um estudo da violncia e da justificao de sua utilizao como meio para acabar com o colonialismo, contexto em que diversos povos colonizados cada vez mais se revoltavam contra os colonos europeus e no qual Dien Bien Ph e Bandung eram uma realidade inegvel.

    A violncia intrnseca ao colonialismo, pois ele se baseia na expropriao da terra dos nativos, na domesticao da fora de trabalho, no canho, na baioneta. O cotidiano colonial exala violncia a todo o momento. Seja no extremismo do apartheid, seja no racismo paternalista portugus, os poros da colnia esto todos entupidos por ela. A violncia pode ser velada ou explcita, mas sempre est presente no contexto colonial.

    A histria do Mundo Moderno, desde o descobrimento e a conquista do Novo Mundo, compreendendo tambm a colonizao da frica, sia e Oceania, a histria dos mais prosaicos e sofisticados meios e modos de violncia, com as quais se forja e mutila a modernidade. medida que se desenvolvem a cincia e a tcnica, em seus usos crescentemente poltico-econmicos e socioculturais, desenvolvem-se as formas e as tcnicas de violncia.[...]A violncia parece algo intrnseco ao modo pelo qual se organiza e desenvolve a sociedade moderna, seja nacional ou mundial.34

    Os colonos que sempre afirmaram que os nativos s entendem com chicotadas, s a fora ensina-os mostraram o caminho inevitvel que teria que ser seguido em prol da emancipao. O argumento escolhido pelo colonizado foi-lhe indicado pelo colono e, por uma irnica reviravolta das coisas, o colonizado quem agora afirma que o colonialista s entende a fora35. O colonizado desde pequeno convivera com a violncia, ele a conhecia. A situao colonial, por sua fatalidade interior, convoca revolta. Pois a condio colonial no pode ser suportada: qual uma golilha de ferro, deve ser quebrada36. Esta violncia comeou a voltar-se contra o colonizador, ela tornou-se contra-violncia, a qual, segundo Fanon e Memmi, produz a recuperao da dignidade humana do colonizado.

    34IANNI, Octavio. Capitalismo, violncia e terrorismo. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2004, p.170-172. 35

    FANON, Frantz. Os Condenados da Terra. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1968, p.65. 36

    MEMMI, Albert. Retrato do Colonizado Precedido do Retrato do Colonizador. 2 Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977, p.112.

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    Monographia, Porto Alegre, n. 1, 2005 17 Disponvel em:

    Fanon37 afirma que: Para o colonizado, essa violncia representa a prxis absoluta. O colonizado, ao agir na realidade, a transforma e transforma a si mesmo. A violncia aproximou os militantes, serviu-lhes como coeso, por isso os militantes argelinos da FLN e tambm os Mau-Mau quenianos tinham que executar um atentado pessoal contra os colonialistas para fazer parte de suas respectivas organizaes. No filme Batalha de Argel, vemos que o batismo de fogo de Ali La Pointe, o protagonista da histria, inscreve-se neste processo, ele tem que matar um policial francs para provar que no espio. A violncia

    , dessa maneira, compreendida como a mediao rgia. O homem colonizado liberta-se na e pela violncia. Esta prxis ilumina o agente porque lhe indica os meios e o fim38.

    No momento em que a violncia tornou-se explcita na sociedade colonial, ela revelou ao colonizado a verdadeira face do modus operandi colonialista e isto desalienou os indivduos, ela desmistificou as iluses fundadas nas superestruturas colonialistas.

    Sob vrios aspectos, a violncia um evento heurstico de excepcional significao. Revela o visvel e o invisvel, o objetivo e o subjetivo, no que se refere ao social, econmico, poltico e cultural, compreendendo o individual e o coletivo, a biografia e a histria. Desdobra-se pervasivamente pelos poros da sociedade e do indivduo.39

    A linguagem que Fanon utiliza torna-se, em alguns momentos, bastante incisiva como quando ele trata do destino do colono no processo de libertao, no h como a nao vindoura nascer de um compromisso entre os invasores colonialistas e os colonizados em luta.

    O aparecimento do colono significou, sincreticamente, morte da sociedade autctone, letargia cultural, petrificao dos indivduos. Para o colonizado, a vida s pode surgir do cadver em decomposio do colono.[...] Essa prxis violenta totalizante, visto que cada um se transforma em elo violento da grande cadeia, do grande organismo surgido como reao violncia primordial do colonialista.40

    Muitos vem em Fanon um pensador sanguinrio que defende a violncia e suas insanidades, mas para ele a violncia anticolonial no um ato insano que s macula a sociedade humana, ela uma ferramenta para a resoluo de conflitos. Os movimentos de libertao no podem negar a violncia, pois ela no algo exgeno sociedade colonial,

    37 FANON, op. cit. P.66.

    38 FANON, loc. Cit.

    39 IANNI, Octavio. Capitalismo, violncia e terrorismo. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2004, p.169.

    40 FANON, op. cit. p.73.

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    Monographia, Porto Alegre, n. 1, 2005 18 Disponvel em:

    algo cotidianamente presente. Mesmo naqueles pases, ex-colnias, que ganharam a independncia de seus ex-senhores de um modo aparentemente pacfico, a libertao poltica foi fruto da revolta violenta de outros povos colonizados41. Em situaes como as da Indochina e da Arglia, as metrpoles colocaram na balana esta situao problemtica e pensaram se realmente valia a pena correr o risco de gerar prejuzos maiores que os lucros que as colnias proporcionavam. Concluram que o melhor era garantir uma independncia controlvel e calma, que assegurasse os interesses econmicos da metrpole e estabelecesse as bases para o neocolonialismo, baseado na submisso das classes dominantes, que se contentam em ser fantoches dos interesses imperialistas em detrimento do desenvolvimento da nao.

    Concluso

    Neste trabalho, busquei compreender o pensamento de Frantz Fanon relacionado com a conjuntura de emergncia dos povos afro-asiticos e sua luta pela libertao nacional. A condio colonial era marcada por duas chagas que se completavam: a alienao e a violncia. Fanon teve uma importncia crucial para os povos colonizados em luta pela libertao nacional: ele analisou como o colonialismo cria a suposta inferioridade do colonizado que, enfraquecido e derrotado, acaba por aceitar esta ideologia. O racismo o pilar ideolgico do colonizador, a justificativa que ele criou para poder efetuar a colonizao, vendo-a no como uma violncia, mas como um benefcio aos colonizados. Fanon e Memmi ajudaram o negro, o rabe e os colonizados em geral a compreenderem que a construo da mscara branca era um sintoma grave da despersonalizao fomentada pelo colonialismo: o processo de embranquecimento que vivencia o colonizado, que no quer ser negro, ou no quer ser rabe, mas tambm no pode ser branco, ser assimilado totalmente, fende o indivduo, aniquilando-o. Nisto est o significado maior de Pele Negra, Mscaras Brancas.

    A Guerra de Independncia na Arglia foi extremamente violenta, devido principalmente ao grande nmero de colonos franceses que viviam na colnia.

    41 Ibidem, p.53.

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    Monographia, Porto Alegre, n. 1, 2005 19 Disponvel em:

    Acompanhamos, neste estudo, aspectos da trajetria do colonialismo francs: expropriaes, massacres, torturas e reagrupamentos. Fanon absorveu muito da realidade argelina, foi na Clnica Psiquitrica de Blinda-Joinville que ele presenciou primeiramente a violncia qual os argelinos eram submetidos. Ele sofreu a influncia da realidade argelina na medida em que defendeu o uso da violncia contra o colonizador, Os nacionalistas argelinos que tentaram com mtodos democrticos emancipar-se foram sempre barrados pela intolerncia francesa, que defendia a Liberdade, Igualdade, Fraternidade somente para a metrpole e nunca para a Arglia, apesar ser ela considerada parte da Frana.

    O estudo sobre o pensamento de Fanon trouxe tona uma srie de questes pertinentes sobre o racismo e sobre a alienao, inclusive nestes tempos ps-coloniais, pois, passados anos da conjuntura em que o pensador escreveu, o preconceito racial continua impregnando a sociedade atual, inclusive a brasileira, que o esconde sob o vu mtico da democracia racial. Estudar Fanon no Brasil imprescindvel para compreendermos melhor o racismo assimilativo que aqui vigora e para buscarmos alternativas para aniquil-lo.

    BIBLIOGRAFIA

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    Monographia, Porto Alegre, n. 1, 2005 20 Disponvel em:

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