Fanzine 54
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elefantebujulho de 2015
edito
rial
exp
edie
nte
uxa, como faz tempo! A última edição do zine Elefante Bu tem pouco mais de três
anos. Lembro que foi uma edição bonita, com boas matérias, e tinha o formato Pquadrado, como se fosse a capa de um LP. Alí terminaria também mais de dez
anos de produção. O que aconteceu? A vida aconteceu! Empregos que não davam
chance do ócio necessário para a realização de um trabalho deste tipo, mudanças de
prioridade, o desgosto pelo cenário musical atual, o próprio cansaço e também o
envelhecimento. Mas no hiato desses três anos, ainda continuei a escrever aqui e ali
como colaboração de outros projetos, para o meu blog no Tumblr: ou seja, coisas
simples sem compromisso.
Noutro dia, depois de muito tempo, precisei organizar um pequeno seminário.
Como não tenho competência para mexer no PowerPoint, precisei abrir o CorelDraw
(ferramenta que costumava montar o Elefante Bu) e fazer um esforço de memória para
lembrar de todas as ferramentas e atalhos. Não foi apenas a função da tecla F2 que me
lembrei: ao entrar em contato com os velhos arquivos do Elefante Bu me dei conta do
quanto o zine era legal. Tinha defeito pra caramba, ainda assim: como ele era legal.
Tinha uma porção de entrevistas arrumadas sem a ajuda de veículo grande algum (era
só um zine minúsculo e desconhecido), colaborações de gente muito bacana, e umas
experiências malucas.
Como tinha um material interessante acumulado neste hiato, fiquei tentada:
por que não? Atualizei os textos, modifiquei outros, escrevi um inédito e ainda solicitei
a colaboração de um dos mais antigos e queridos amigos: Marcelo Mendes. Um diálogo
mais ou menos assim: “Marcelo, to fazendo um novo Elebu. Pode mandar um daqueles
textos seus?” O bacana dessas velhas amizades é que com poucas palavras e uma alta
informalidade a gente se resolve. Férias e duas semanas de trabalho não-contínuo e
olha aí o menino.
Ele abre tradicionalmente com o Pato Fu, só que de um jeito diferente: nas
horas vagas, entre uma leitura e outra sobre a pesquisa que desenvolvo, faço a redação
de um artigo acadêmico sobre a banda. Aqui está adaptado, numa linguagem mais
coloquial, um pedaço desse artigo. Depois vem algumas entrevistas que fiz para o meu
blog e como colaboração de uma revista daqui de Brasília produzida por alguns colegas.
Gosto muito da entrevista com o Pedro Mariano, com quem conversei por telefone no
ano passado. É um artista muito pé no chão, que sabe muito bem como conduzir o
próprio trabalho. A colaboração do Mendes é um texto antigo sobre quadrinhos. Ele é
um leitor interessado em quadrinhos, assim como eu. Interessante é que hoje minha
pesquisa passa por esse universo, o que nos aproxima mais. O Mendes tem uma
informalidade na escrita que se aproxima muito com a minha, e que me agrada. Nossas
ironias e pequenas piadas são postas ali, e está tudo bem com o universo.
Não sei se haverão outras edições do Elebu neste ano. Pode ser que sim. Pode
ser que não. É impossível fazer promessas. A única certeza que tenho, além da morte, é
que enquanto estiver respirando, sempre haverá chance de um novo número.
Produção: Djenane Arraes
Textos: Djenane Arraes e Marcelo Mendes
Trilha sonora: Não teve uma em específico, mas eu ouvi a música nova das Garotas
Suecas, “Me Erra”, e pensei comigo mesma: sim, é por aí. Quando soube que o
Guilherme Saldanha havia pedido as contas, pensei que para a banda conseguir ir
adiante a Irina Bertolucci precisava assumir os vocais. Os irmãos Nico e Thomaz
Paoliello se esforçam, mas não devem assumir os vocais em mais de uma faixa por disco.
Comentei isso no meu blog, o Pops and Indies. Agora a banda está de volta justamente
com Irina à frente. É só ela não cantar como a Mallu Magalhães que estará tudo certo.
pato fu acadêmico
ellen once again
pedro mariano
sérgio pi
divas nacionais
elis regina
cânone dos quadrinhos
resenhas
pato
fu a
cadêm
ico deus e o diabo e o
pato fu
por Djenane Arraes
al como Roberto Carlos, o Pato Fu tem a sua canção “Jesus
Cristo”. Ou quase. A última faixa do disco Rotomusic de
Liquidificapum (1993) chama-se “O Amor em Carne Osso”, que Té uma referência a amor encarnado: como Jesus também é chamado
na cultura popular. Diferente da “Jesus Cristo” do Roberto, a canção do
Pato Fu não evoca corais, não dá vontade de bater palmas e duvido
muito que ela seria adotada no repertório de qualquer igreja que
fosse. Ela não e muito empolgante, para dizer a verdade: trata-se de
uma guitarra distorcida com a vocalista Fernanda Takai praticamente
lendo pausadamente os versos. Os sentidos e discursos contidos em
“O Amor Em Carne e Osso” não são tão claros quanto a exaltação a
Jesus Cristo feita pelo Roberto, mas essas músicas estão inseridas em
um eixo comum: falam da religião dentro do contexto da cultura pop.
Verdade que cultura pop é algo complicado de se definir. É
como a arte: é simplesmente aquilo que cada um entende como arte.
Ou a Música Popular Brasileira (MPB), que ninguém consegue explicar,
mas todo mundo identifica quando escuta. De um jeito ou de outro, há
pesquisadores que tentaram definir o que seja cultura pop. Para o
pesquisador Thiago Soares (2015), por exemplo, pop “são produtos
populares, no sentido de orientados para o que
podemos chamar vagamente de massa,
grande público, e que são produzidos dentro
de premissas das indústrias da cultura
(televisão, cinema, música, etc.). Seria o que, no
Brasil, costuma-se chamar de popular midiático ou
popular massivo.” Como pode perceber, é uma definição
calcada na Escola de Frankfurt, o que trás alguns poréns.
Veja bem: no início do século passado, quando a televisão,
o rádio e os jornais surgiram e ajudaram a modificar tanto a sociedade
quanto às artes (criando novas formas de arte, inclusive), os
intelectuais da Escola de Frankfurt acharam que era o fim dos tempos
que as relações e a cultura passassem a ser moldadas dentro de uma
lógica industrial. O conceito de cultura de massa surgiu nesse sentido:
como uma única antena de um senhor do mal fazendo multidões se
tornarem zumbis só por ouvirem jazz – Theodor Adorno abominava o
jazz –, ou assistirem a um filme bobo de comédia.
Hoje em dia, a gente entende que zumbi real é o sujeito que
fuma crack: e isso não tem nada a ver com a novela. O sociólogo
canadense John Thompson (2013), por exemplo, esclarece que massa
não se trata de quantidade, mas de pluralidade. Mas é verdade que
esta mesma pluralidade só é possível por meio de um meio tecnológico
(midiático) que leve a mensagem de um para muitos. Ou seja, Billie
Holiday é tão “massa” quanto o Pato Fu, e eles são passageiros no
mesmo transatlântico da cultura pop, mas que são separados por
setores e alojados em cabines diferentes. Tudo que se faz hoje em dia
tem o potencial de tornar-se cultura pop: até mesmo a obra daqueles
que nasceram há mais de 100 anos, mas que hoje são inseridas nela.
Alguns autores colocam o pop como uma arte efêmera inspirados na
ideia dos críticos do rock'n'roll nos anos 1950, que tentavam colocar o
ritmo e todas as outras expressões juvenis que tomavam a mídia como
algo passageiro. Mas é preciso lembrar que o pop também foi a
expressão usada para definir trabalhos como o do artista plástico Andy
Wharol, e a música dos Beatles. Eu não me arriscaria a definir o que é o
pop, mas penso em algumas características fundamentais que lhe é
atribuído: ser um produto, ter apelo midiático e grande circulação, ter
espírito jovem (sem necessariamente ser juvenil ou ser produto de um
jovem), ser cosmopolita – e não, o que entendemos no Brasil por
cultura popular não é pop, a não ser que se faça uma reformulação para
esse sentido.
E a religião?
Nem tudo é cultura pop, mas virtualmente tudo pode ser
enquadrado dentro dela. A religião, por exemplo. A indústria cultural
abraçou a religião no momento em que o primeiro padre ou pastor foi à
rádio para falar com seus fiéis, e a cultura pop a engoliu quando Jesus
foi parar nos salões de dança. O pesquisador Luis Mauro Martino
(2015), citando LS Clark, disse que “a religião é sempre sentida e
praticada dentro de um contexto cultural específico, articula-se com o
ambiente contemporâneo saturado pela cultura pop. Por seu turno,
essa mesma cultura pop, em suas diversas modalidades, se apropria
continuamente de temáticas, símbolos e práticas religiosas como fios
na trama de suas produções e significações.”
Isso quer dizer que é possível ver a religiosidade em qualquer
coisa: na propaganda da Nike, nos gritos guturais do metal, em Matrix,
Star Wars e Harry Potter, no clipe da Madonna. E a razão por se ver tanta
religião até onde supostamente não deveria, explica Clark, é porque as
pessoas, especialmente o jovem, quando cansadas das formas
tradicionais de religião procuram estabelecer vínculos com a própria
religiosidade de outras maneiras: e a cultura pop representa um campo
fértil para tais expressões. Assim, para Martino (2015), “se por um lado
o senso comum pode apresentar uma tendência em posicionar religião
e cultura pop como esferas separadas da experiência humana, a
observação atenta dessas práticas sugere muito mais um
entrelaçamento permeado de tensões e articulações do que uma
divisão estanque.”
A música sempre foi um campo vasto para expressão da
religiosidade, da não-religiosidade e das críticas a ela. Comentar sobre
tal repertório certamente daria um livro, uma tese de doutorado,
mesmo se excluísse afoxés, sambas de roda, maracatu e todos
os demais ritmos que nasceram como celebrações de
fundo religioso, além dos grupos religiosos que
alimentam o mercado gospel – e esse mercado não me
interessa de forma alguma. A religião no cancioneiro pop
nacional está na prece de Gilberto Gil (“Se Eu Quiser Falar
Com Deus”), nas aclamações de Roberto Carlos, na influência
do oriente presente da obra de Raul Seixas, em especial nas
parcerias com Paulo Coelho, está na seita Racional de Tim Maia,
nos orixás de Clara Nunes e de Criolo, nas Quatro Estações da
Legião Urbana. Além de tudo mais: não é o diabo o pai do rock?
A religiosidade se faz presente também na obra do Pato Fu,
mas vinculado a um discurso mais crítico, irônico e ácido. São pelo
menos dez músicas com discursos ligados diretamente a
religiosidade, sem mencionar o trabalho gráfico e videoclipes da
banda que trazem referências mesmo quando a letra da canção
aparentemente não diz nada a respeito, como as imagens cristãs no
clipe de “Sorte e Azar”. A capa do disco Gol de Quem é uma reprodução
dOs Anjos, de Rafael, e o disco Toda Cura Para Todo Mal traz um diabo
com asas lendo jornal em meio a chamas.
Dentro do repertório do Pato Fu, deus e o diabo são
personagens usados como metáforas para críticas sociais (“Deus” e
“Ninguém Mexe com o Diabo”); a religião é criticada como se fosse
uma muleta condicional para se fazer qualquer ação (“Uh, uh uh, lá lá
lá, ié ié”); o purgatório é o lugar para expiação e julgamento (“Morto”,
“Tribunal de Causas Realmente Pequenas” e “Crédito ou Débito”); há
espaço para pequenas sacanagens provocativas (“Capetão”); ainda
assim, o Pato Fu expressa respeito ao se referir diretamente a
personagens na construção de um interessante exercício de
imaginação (“Maria e Gabriel”).
“O Amor Em Carne e Osso” foi apenas uma pequena e discreta
abordagem inicial dentro de um tema que é inerente ao ser humano,
mesmo que este seja um ateu.
referênciasMARTINO, Luís Mauro Sá. Like a Prayer: articulações da cultura pop na midiatização da religião. In: CARREIRO, Rodrigo.
FERRARAZ, Rogério. SÁ, Simone Pereira de. Cultura Pop. Brasília: Compós, 2015.
SOARES, Thiago. Percursos para Estudos sobre música pop. In: CARREIRO, Rodrigo. FERRARAZ, Rogério. SÁ, Simone Pereira
de. Cultura Pop. Brasília: Compós, 2015.
THOMPSON, John B. A Mídia e a Modernidade: Uma teoria social da mídia. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.
zinia
ndo
mais uma vez, ellen
á momentos em que a gente se depara com
aquele som deliciosamente pop e se surpreende Hque não foi a rádio quem apresentou, ou os
veículos de maior audiência. Essa música vem quase ao
acaso, do nada, e te conquista com a mesma velocidade
que aparece. Não sei quais foram as razões para que Ellen
Hilton escolheu como sobrenome artístico “Once Again”,
mas a premissa é verdadeira: ouça o pop bom,
radiofônico e com mais qualidade do que as atrocidades
campeãs de downloads, streaming ou seja lá o que for. A
vontade que dá é ouvir a voz e o som de Ellen de novo e de
novo e de novo.
A moça é americana, natural do Texas. Cresceu
numa família que a música corre nas veias. “Minha mãe
canta, meu pai e minha irmã tocam guitarra. Eu me
lembro cantando com eles. Havia sempre pianos,
guitarras e instrumentos pela casa. Desde criança que
amo música e sempre estive com ela”, explicou Ellen. O
som dentro de casa era o soul, mas a garota Ellen gostava
muito de ver musicais. Daí é possível entender como essas
influências convergiram na produção de canções pop com
um toque de soul.
Ellen tem um EP em sua discografia com três
canções. O carro chefe é “I Do” (do vídeo), aquela canção
de casamento irresistivelmente otimista e divertida, com
direito a lá lá lás, metais e solos de teclado. Interessante é
que essa canção foi usada num vídeo-homenagem-oficial
editado pela produção do seriado Glee ao casamento
GLBT das personagens Santana e Brittany – um dos vários
eventos midiáticos que contribuíram para a aceitação do
público (e das novas gerações) ao casamento
homossexual, direito assegurado em todo território
norte-americano. A música também o pano de fundo a
um pedido de casamento (com direito a flash mob) no
seriado Manhattan Love Story, que durou apenas uma
temporada.
No ainda pequeno, mas interessante repertório
próprio de Ellen, “Call the Doctor” é outra pequena gema
pop e otimista que fala sobre enlouquecer e chutar o pau
da barraca para ser feliz. “I'm Feeling Lucky”, outra canção
assoviável do repertório, dá nome ao EP de Ellen, fecha o
bloco ensolarado que caracteriza o lançamento. O
otimismo talvez seja uma característica inerente a
cantora, ou talvez o reflexo de uma fase muito boa da vida
dela. Em outras canções, como é “Chasing Rainbows”,
Ellen faz uma valsinha parisiense, e esta talvez seja a
canção que mais se aproxime da estética de musicais que
tanto a influenciou. Diz, na letra, que não pode evitar em
seguir arco-íris porque estes também a seguem. Essa
talvez seja a canção menos límpida, afinal, o arco-íris é um
fenômeno que só acontece com a chuva.
Há disponíveis mais canções para audição no site
oficial. Uma delas Como ainda não há um disco cheio na
discografia desta texana, pergunto se esse tipo de
trabalho que envolve toda uma concepção a interessa.
“Eu acredito em discos”, disse. “Ainda tenho grandes
discos na minha coleção. Penso que os melhores discos
contam uma história. Entendo a opção pelo EP e pelo
single porque esses formatos permitem que a música saia
mais depressa, e no meu caso, penso que cada EP tem a
sua própria personalidade.”
cantora e compositoranorte-americana se inspira
no soul e em musicais parafazer música pop-chiclete
surpreendente
por Djenane Arraes
discursocoerente
Pedro Mariano dá a receita de comosobreviver a um mercado cada vez
mais complicado para quem faz músicade qualidade: ser artista de verdade
oi-se o tempo em que ao apresentar Pedro Mariano,
era praxe colocar o nome dos pais na mesma frase. FSim, ele sempre será o filho da cantora Elis Regina e do
músico e arranjador César Camargo Mariano, mas Pedro,
quase 20 anos após o lançamento do primeiro trabalho, goza
de uma carreira sólida e com identidade própria. São nove
discos desde 1997, sendo que o mais recente, Pedro
Mariano e Orquestra, é um perfeito exemplo da
complexidade e também da acessibilidade.
Lançado neste ano pela Nau – selo próprio de Pedro
Mariano –, com distribuição da Lab 344, Pedro Mariano e
Orquestra apresenta 16 faixas entre canções que já faziam
parte do repertório e outras extraídas da discoteca particular
do cantor e mais duas inéditas. “Eu tinha, num primeiro
momento, uma lista das canções do meu repertório e outra
de músicas de cabeceira: do meu repertório particular que eu
não canto para ninguém”, disse Pedro. “Pensava em tirar
alguma dessa lista e pontualmente colocar num disco e em
outro para incrementar repertórios de projetos especiais. E
esse é um projeto especial. Algumas já estavam na minha
lista e outras foram aparecendo conforme procurava uma e
encontrava outra. Todas valorizam a canção e a
interpretação. Eu peguei músicas que conseguisse tirar força
e intensidade.”
Há também duas canções inéditas. A primeira é
“Sem Você Não Vou”, de Jair Oliveira (o Jairzinho para a
galera que cresceu com o Balão Mágico). Essa foi um pedido
de Pedro para Jair através de um telefonema. A segunda
inédita, “Um Pouco Mais Perto”, de Ana Carolina, Chiara
Civello e Edu Krieger, teve uma história mais casual. Pedro fez
uma participação no show de Chiara em que também estava
Ana Carolina. “A gente ficou no camarim batendo altos
papos. Eu contei para ela [Ana Carolina] sobre o meu projeto
e no quanto achava que as composições dela eram próximas
a linha de raciocínio que queria para esse disco: letras fortes,
melodias intensas. Queria músicas para se jogar dentro, que
são exorcizastes. As de Ana Carolina tem essa característica
de lavar a alma. Daí, brinquei com ela: disse que tinha
algumas músicas dela que gostava muito, mas se ela tivesse
alguma perdida por aí...” Ana Carolina tinha mesmo uma na
manga. Duas semanas depois, Pedro recebeu um e-mail da
cantora e compositora com a seguinte mensagem: “vê se é
esse aí o caminho.”
Fio condutor
Na entrevista, comentei com Pedro Mariano a
respeito das minhas impressões sobre o projeto com a
orquestra. O disco conseguia navegar entre o mundo do jazz
e das big bands, mas com o delicioso pop de um Sgt. Peppers
Lonely Hearts Club Band – o clássico dos Beatles eternizado
também por conseguir agregar de forma quase perfeita a
eletricidade do rock com arranjos de orquestra. Foi a melhor
definição que consegui expressar para definir a complexa
sonoridade que conseguia descer tão bem aos ouvidos. São
impressões que foram ao encontro dos objetivos do cantor ao
pensar no projeto.
“Isso era muito importante. Você tem que tirar
proveito da orquestra para fazer alto que seja tão complexo
quanto inteligível. Isso pode ser fácil de fazer quando se coloca
no papel todo os choques harmônicos possíveis que a teoria
musical permite. Mas não era essa a ideia”, explicou Pedro
Mariano. “A música não pode ser distorcida. Ela não pode
receber um arranjo que o cara que está sentado na plateia não
identifique, ou que ele só faça lá no meio da música. Esse
sujeito vai pensar que tem uma coisa errada. Por que essa
música não está descendo? Ele vai se sentir preterido dentro
daquele contexto. Então eu fiz questão de valorizar as coisas
que as pessoas já conhecem, mas também criar uma
identidade nova.”
Para isso, Pedro contou com a ajuda de um grupo de
velhos amigos: pessoas que conhecem e trabalho junto com
ele há anos. A direção musical do disco ficou a cargo de Otávio
de Moraes, que também teve a função de criar uma linha
coesa para as sugestões de arranjos feitas por músicos como
Marcelo Elias e Conrado Goys, que fazem parte da banda.
“Dizia para eles: me surpreendam. Eu quero que vocês me
apresentem um arranjo que eu diga 'meu deus do céu, o que
vocês fizeram aqui?' Eu quero ser surpreendido positivamente
o tempo todo. Como sei da capacidade deles, isso casou muito
bem. O Otávio trabalhou o tempo todo no sentido de criar
uma linha coesa entre eles. São canetas completamente
diferentes, com características muito claras e distintas. Como
eu sou o fio condutor e é a minha história que vou contar,
coube a mim e ao Otávio achar a química entre as canções,
os arranjos e a orquestra.”
O show deste projeto passou por várias cidades,
inclusive em Brasília, e exige que Pedro Mariano organize um
esquema engenhoso. Como não é possível transportar toda
uma orquestra de cidade em cidade, a produção é montada
em cima de uma base enxuta. Além de Pedro e a banda,
viajam com a equipe o maestro, que é o próprio Otávio de
Moares, mais o primeiro trompete e o primeiro violino. O
resto da orquestra é contratado no local.
Pedro explicou que o processo é realizado por meio
de arregimentadores, que montam o time de
instrumentistas solicitado, repassam as partituras e
organizam a estrutura. Ensaio? Somente um é necessário
com a presença do maestro e da orquestra. “É o ensaio que
chamamos de primeira leitura. Eles lêem, entendem como é
o arranjo e, no dia seguinte, show. Tudo sem o menor
problema. O músico erudito está acostumado com essa
dinâmica. Isso é muito comum de acontecer e é um grande
facilitador. Isso também traz um intercâmbio muito legal:
conhecemos grandes músicos nesses sete shows e
provavelmente será dessa forma que vamos operacionalizar
a futura turnê”, disse.
Sou o que sou
Pedro Mariano é artista que não se acomoda. O
projeto com orquestra é só um dos inúmeros especiais que
ele elaborou e produziu. Em nove discos lançados, cantou
canções que foram sucessos na voz de Elis Regina, mas tudo
com o jeito dele. Na função de intérprete, procura não apenas
investir em canções consagradas, como também dar voz a
gente nova. Jair de Oliveira, Max de Castro e Wilson
Simoninha – todos filhos de grandes artistas que formaram,
inclusive, parcerias importantes com Elis Regina –, são
presenças habituais no repertório. Mas Pedro também abre
frente e lança canções até então inéditas de vários outros
compositores. Já fez disco ao vivo, um projeto em parceira
com o pai em Piano e Voz, e ainda organizou uma espécie de
tributo de vozes masculinas à mãe em Elis Por Eles. Isso sem
falar nas inúmeras participações em projetos como a trilha da
Ilha Rá-Tim-Bum. É uma carreira rica e expressiva que já lhe
rendeu, inclusive, indicações ao Grammy Latino. Na
contramão de um cenário cultural cada vez mais
empobrecido nas grandes mídias de comunicação, Pedro está
na turma daqueles que resistem e sobrevivem fazendo arte
sem conceições.
“A minha proposta de trabalho passa pela verdade.
Eu não sou um artista inventado. Eu sou o que sou. O que você
ouve nos meus discos é a mais absoluta verdade daquilo que
me proponho a fazer. Em função disso, você vai encontrar
pessoas dispostas a ouvir esse trabalho”, disparou Pedro, que
faz fortes críticas ao monopólio cultural em função do
consumo. Mas afirma que há espaços e eles estão aí para
serem preenchidos. Se a televisão e as rádios são meio cada
vez mais estrangulados, Pedro acredita que a democratização
da internet revelou uma efervescência cultural muito rica que
faz o trabalho do artista crescer. Claro que a ocupação de
espaços e maior possibilidade de exposição não é
necessariamente sinônimo de popularidade em redes
sociais, algo, aliás, que não é o objetivo.
Outro segredo de Pedro Mariano para continuar a se
manter da música com sucesso? Continue fazendo coisas
interessantes: “A relação que você cria com o seu público é o
que você vai ter de volta. Se eu começar a fazer releituras dos
meus sucessos e a renegar o meu ideal artístico, que é sempre
lançar material novo e procurar gente nova, provavelmente o
meu show só vai ter mais do mesmo. É ação e reação. Aquele
que espera isso de mim vai se frustrar e não vai continuar ao
meu lado. Em compensação, aquele que quer ouvir coisa
nova, sabe que no Pedro Mariano ele pode buscar isso.” (D.A)
«A minha proposta de trabalho passa pela
verdade. Eu não sou um artista inventado. Eu sou
o que sou.»
o sucessopor Pedro Mariano
Na entrevista que fiz com Pedro Mariano, perguntei como é o sucesso para um artista que não tem a massificação midiática em torno do nome dele e que, mesmo assim, consegue estruturar uma carreira sólida a ponto de poder viver da própria música. Embora pedaços da resposta estejam inseridos no corpo da m a t é r i a , a r e s p o s t a n a í n t e g r a é interessantíssima e vale a leitura. (D.A)
ucesso é uma coisa muito relativa. Ser um estouro no
Brasi l inteiro ou no mundo não signif ica Snecessariamente a mesma coisa de ser bem sucedido.
Sucesso é você alcançar com êxito aquilo que se propôs a
fazer. A minha proposta de trabalho passa pela verdade. Eu
não sou um artista inventado, não sou um cantor inventado.
Eu sou o que sou. O que você ouve nos meus discos é a mais
absoluta verdade daquilo que me proponho a fazer. Em
função disso, você vai encontrar pessoas dispostas a ouvir
esse trabalho.
Acho que há muita pluralidade no povo brasileiro. A
nossa formação cultural, de forma geral, é misturada, não é
uma coisa uníssona. Quando se tem isso, você parte do pré-
suposto de que há espaço para todo mundo na contramão do
monopólio cultural. O monopólio cultural é algo que impera
em função do consumismo. É quando se foca em dois ou três
estilos musicais porque, naquele momento, são o que dá
retorno econômico aos supostos investimentos da indústria.
É uma discussão idealista, filosófica, mas é um fato.
Isso não vem de hoje. Tenho entrevistas de 1980 da
minha mãe [Elis Regina] falando a respeito. A diferença é que
hoje você tem uma amplificação muito maior de
determinados seguimentos em função das características do
mercado em forma geral. Isso passa, por exemplo, pela TV
desesperada por audiência, e que apela cada vez mais. As
rádios, que em vez de olhar para o seu editorial e buscar o
espaço junto ao seu público, preferem olhar para o cara ao
lado que está crescendo, e tentam copiar o projeto para
roubar o público. Essa visão exploratória que vem desde
1500 no Brasil corre contra a cultura, contra a criação
cultural.
Mas com a democratização da internet e o
crescimento da acessibilidade, criou-se uma efervescência
cultural tão grande no Brasil, que, de certa forma, é nessa
pluralidade que você consegue fazer o seu trabalho crescer
independente dos resultados comerciais que ele possa trazer
frente a uma gravadora. Só nesse mês de setembro [de
2014], estou indo para o nono show em duas semanas. Estou
trabalhando bastante. É uma constante? Não. Mas eu fiz
shows lotados, com ingressos esgotados, com o público
cantando as músicas e querendo saber do DVD. Quer dizer
que a carreira está deslanchando? Não. Mas isso quer dizer
que estou conseguindo atender ao meu público, ele está
satisfeito e reage às minhas investidas. É isso que me
interessa.
Eu não estou preocupado se vou aumentar em três
ou em 3 mil o número de likes no meu post. Eu quero é
atender à demanda. Se o meu público quer música, eu vou
entregar música. Se o meu público é de cem pessoas, ou de
um milhão, ou de 300 milhões, eu não posso ficar
preocupado com isso, não sou eu a pessoa a ficar preocupada
com isso. É assim que toco a minha vida. Eu não vivo de
reciclagem de sucessos. Você não vai me ver fazendo
milhares de pot-pourri. Não faço e não quero fazer.
E tem outra coisa, o público é o espelho do seu imput.
A relação que você cria com o seu público é o que você vai ter
de volta. Se eu começar a fazer releituras dos meus sucessos
e a renegar o meu ideal artístico, que é sempre lançar
material novo e procurar gente neva, se eu renegar isso e
passar a fazer do mesmo jeito, provavelmente o meu show só
vai ter mais do mesmo. É ação e reação. Como eu não faço
isso, aquele que espera isso de mim vai se frustrar e não vai
continuar ao meu lado. Em compensação, aquele que quer
ouvir coisa nova, sabe que no Pedro Mariano ele pode buscar
isso. É uma relação que você constrói como em qualquer
outra.
Elefante Bu - A escola de Rita Lee é muito forte nesse seu
disco. A gente percebe isso não só numa citação direta à
cantora, mas também em certas expressões. Mas o som
não é tão Rita Lee assim. Parece bem inspirando em Tim
Maia. É isso mesmo? Pode-se dizer que o Tião Marmita é
outro pilar da sua música?
Sérgio Pi - O som de Rita e Roberto é uma referência na
minhas composições, principalmente pelas harmonias e
estruturas métricas. Todas as minhas músicas são
separadas em blocos, e a maioria delas traz uma
introdução. E gosto também de brincar de ser
Machado de Assis, confirmando ideias e
pensamentos através de alusões..hahaha!
"Pelo Mundo" é cheia disso. Rola até umas
Noites Brancas ali! Isso de começar uma música
para chegar logo no refrão nunca me agradou
muito, mas é esse o padrão atual na música pop.
Uma pena. Mas você está certa, tem
alguma coisa do Tim anos 1970 no meu
som também, quando ele era mais
econômico nos vocais! Cheguei a
cogitar de gravar “Over Again” e
“Risos”, mas preferi segurar. No show
de lançamento, dia 24 de abril, faremos
Canário do Reino.
Elebu - Você regravou uma canção da
certo encanto
popOcupação é que não falta na vida de Sérgio Pi. Além de cuidar da gravadora Lab 344, ele ainda se aventura da própria carreira artística com forte inspiração na boa sacanagem de Rita Lee. Sérgio Pi trocou algumas palavras com o zine para falar sobre o disco Meu Pop é Black Power e pistas de projetos que estãopor vir.
Rita de 1982 acredito não apenas para fazer uma
releitura, mas também para dar o seu recado da
situação. Não é péssimo que uma música com mais de
30 anos ainda seja tão atual?
Sérgio Pi - Foi intencional. Essa deveria ser a primeira
faixa do disco, e não a última, se o Brasil não estivesse
andando pra trás! Essa é a minha maneira de manifestar
uma constante insatisfação com esse governo, com a
cultura do país, com essa banalização da canção popular.
É o mesmo que dizer "Para o mundo que eu quero
descer". Tento ser otimista, mas a minha leitura é que
estamos regredindo como nação. Na década de 1980 a
Rita cantava "Pega Rapaz" com aquela malícia pin-up.
Existia duplo sentido sim, mas tinha poesia ali, era a
maneira dela de celebrar o amor pelo Roberto. Algo
genuíno e rico musicalmente. Hoje em dia é esse império
da mediocridade que ouvimos nas rádios e na TVs. É um
tal de mete ali e mete aqui que dá vontade
cortar os pulsos! É o cúmulo do absurdo
ouvir de uma Fernanda Montenegro em
horário nobre que Valeska Popozuda é
pensadora contemporânea!!! WTF?!
Elebu - Quando foi que o dono do selo
entendeu que também poderia se
expressar de forma artística?
Sérgio Pi - Como todo bom geminiano,
ntes de tudo, vou ser mais sincera possível a respeito
do que penso sobre Sérgio Pi, o artista: ele canta Anada! Vejo até o seu olho arregalar. Deve está
pensando nas inúmeras políticas de boa-vizinhança que
foram rompidas agora. Espera aí, mas não é esperado que o
crítico só fale mal quando é óbvio que se fale mal? Ou daquilo
que é fácil produzir alguns insultos engraçadinhos? Bom,
dizer que canta nada não é necessariamente falar mal. É só
uma constatação que o próprio artista, que tem sua auto-
crítica apurada, deve reconhecer em si.
Mas aí vem outra questão: e daí?
Sérgio Pi canta mal, mas o Bob Dylan também. E o
Herbert Vianna, e o Chico Buarque, e o Erasmo Carlos, e o
Tom Zé, e o Fagner, e até o Paul McCartney. Isso não impede
que a música desses caras chegue a milhares por uma razão
bem simples: eles têm propostas musicais que superam esse
detalhe. Alguns são geniais, como é o caso do Dylan,
McCartney e Chico; outros são extremamente competentes
nas propostas que colocam à mesa. Sérgio Pi está no meio
deste pessoal que sabe o que quer fazer e como fazer. Mesmo
tendo a voz chinfrim, ele é um artista com a própria
identidade e que desenvolve uma proposta interessante.
Sérgio Pi não é vazio ou banal.
Meu Pop é Black Power, o nome do disco de Sérgio Pi,
não poderia ser mais explícito sobre que proposta estamos
falando: é black e pop. Sérgio Pi é influenciado pela Rita Lee. A
mamãe do rock brazuca é sua escola, como costuma dizer.
Isso quer dizer que ele procura dar as canções um toque de
humor e ironia, além do fácil entendimento. O black é a
sonoridade predominante. Sérgio Pi traz de volta o funk e o
soul, aquele dançante e cheio de metais, para pista, pré-
Disco. Assim ele volta a dialogar com uma proposta musical
dos anos 1970 que foi revisitada nos anos 1990 aqui e ali,
além de um revival com os protagonistas do movimento
nacional original, mas que na atualidade anda esquecido,
restringido a canções, não como proposta. E eu não entendo
a razão, porque ouço Meu Pop É Black Power e penso em todo
nicho que poderia ser desenvolvido a respeito do funk e do
soul. Afinal, Mark Ronson e os demais ingleses estão aí para
provar que o funk ainda é um barato.
Penso numa música como “Integrando o Amor”, a
minha favorita de Sérgio Pi: boa para se ouvir e para dançar. E
boa também para estabelecer diálogos como forma musical
que tem harmonia, melodia, textura. É onde penso que o
trabalho de Sérgio Pi é bem-sucedido. [D.A]
Sérgio Pi - Meu Pop é Black Power - Lab 344 - 2014
Crítica:
Meu Pop éBlack Power
sou muitas coisas, haha. Mas respondendo sua pergunta,
acho que quando eu passei a amar e não ser
correspondido! Lembro até hoje do meu primeiro amor,
da garota que me trocou por um cara mais popular. O
piano clássico surgiu na minha vida ali, e logo em seguida
comecei a cantar em corais e a fazer música, mas sempre
como hobby. Era a minha maneira de sublimar. Minha
família sempre foi muito musical (meu avô paterno vivia
cercado de uma galera top), e na década de 90 tive
algumas oportunidades, mas as minhas prioridades eram
outras.
Elebu - Como é administrar o selo e a sua carreira?
Sérgio Pi - Tenho uma equipe pequena que me ajuda com
os lançamentos do selo, e depois de uns dois anos pra cá
passei a trabalhar bem menos do que antes. Sempre fui
um workaholic sem tempo pra nada. Então decidi que eu
merecia uma discografia! haha Assim, no susto! Via tantos
caras lá de fora, e até amigos, abrindo seus selos,
produzindo seus discos e de outros artistas, que então me
toquei que talvez eu pudesse fazer o mesmo, e ser mais
feliz. Uma pena que no Brasil isso ainda não é muito
comum. Depois de dez anos de mercado, e com uma
bagagem bacana, acho que estou entrando em um novo
ciclo. Quero produzir mais, não só meus discos, mas de
outros artistas também.
Elebu - Nesse disco, você colocou no encarte uma
mensagem enigmática: "e enquanto isso, em um
universo paralelo..." significa que num próximo trabalho
você esteja disposto a se aventurar ainda mais em outras
sonoridades e em outros temas?
Sérgio Pi - É mais ou menos isso. Na verdade, quando já
estava finalizando as gravações do disco, montei um
coletivo e começamos a gravar as faixas do próximo, que
já tem até um nome provisório: "Dinastia Black Tie". É a
mesma linguagem, só que ainda mais mergulhado nos
anos 1960.
armen Miranda teve uma vida e tanto. A biografia
escrita por Ruy Castro mostra o quanto a pequena Cnotável trabalhou. E mesmo no auge da fama
continuou a ser a “antidiva”, a mulher boa praça e
profissional que não reclamava mesmo sendo submetida a
jornadas de trabalhos subumanos, e que encarava tudo com
um sorriso no rosto. Mas era sim uma diva no sentido de
brilhar entre multidões por causa do talento genuíno que
teve impacto na época em que atuou, e deixou legado às
gerações posteriores.
Nesse sentido, Carmen Miranda também foi a
primeira grande diva da música brasileira. A maior na
opinião de Ruy Castro. Independente das mulheres de
gerações anteriores que foram importantes na construção
da música brasileira, Carmen foi o ponto zero e deu o
pontapé a uma tradição: o Brasil das cantoras. Intérpretes ou
autoras, instrumentistas ou não, sempre há na história uma
mulher que marcou de maneira importante uma época, que
influenciou gerações seguintes, e que conseguiu levar a
carreira para além do território nacional.
Na tentativa de achar quem são as maiores cantoras
da música nacional, fiz uma pesquisa simples: perguntei a
várias pessoas, de músicos ao ouvinte comum, quem era a
maior diva da música nacional. A resposta era aberta a
escolha de qualquer uma. Confesso que esperava a
indicação de tantos nomes a ponto de não ser capaz de
construir um eixo de argumentação coerente. Mas, para a
minha surpresa, divas com a magnitude de Carmen Miranda
são apontadas com mais facilidade que se pensa.
As pessoas mais velhas consultadas, incluindo o
escritor e pesquisador Ronaldo Conde Aguiar (Almanaque
da Rádio Nacional) apontaram, sem pestanejar, Elizeth
Cardoso. Cantora carioca nascida em 1920 tinha o apelido
de A Divina. O talento dessa morena fazia jus pela
versatilidade como intérprete. Foi descoberta por Jacob o
Bandolim, cantou de samba-canções até as Bachianas de
Villa-Lobos. De quebra, lançou “Canção do Amor Demais”,
disco inaugural da bossa-nova com canções de Tom Jobim,
Vinícius de Moraes e João Gilberto ao Violão nas canções
“Chega de Saudade” e “Outra Vez”. Elizeth é a diva da
excelência técnica.
As pessoas das gerações mais recentes apontaram
com diva Marisa Monte. É fácil de entender porque La
Monte está tão celebrada: dominou a década de 1990 e
influenciou, de um jeito ou de outro, todas que vieram
depois. Elizeth e Carmen tinham o rádio como principal
veículo, mas Marisa Monte teve a MTV e uma divulgação
midiática consolidada no Brasil, que à época foi
extremamente relevante na divulgação de novas bandas e
atualização da garotada num momento em que internet
ainda era um instrumento estranho e incipiente. Em vez de
ir ao Faustão, Marisa Monte fez videoclipes. Se Elizeth
apresentava outros artistas, Marisa resgatava nomes para
as novas gerações. Outra característica em que fez escola
foi no equilíbrio entre o trabalho autoral e o de intérprete.
Marisa Monte é a diva cerebral capaz de transforma o
brega em cool.
Roberto Menescal foi um dos consultados pela
minha pesquisa. Ele disse o seguinte: “Que me desculpem
as muitas divas que adoro, mas Elis Regina é The Top”.
Concordou com ele desde Gerson Conrad (Secos &
Molhados) até Brunno Melo, jornalista da CBN local. Se ela
é a estrela mais brilhante, não sei dizer, mas, com certeza,
é a diva nacional referência em várias gerações. Como se a
cada cantora nova que aparece, ela continuasse a ser a
melhor. Como? Não sei dizer. Talvez as maiores divas
nacional também tenham o atributo da imortalidade.
Assim como Elizeth Cardoso, Elis atuou em uma
época em que ela apresentava novos artistas. Ela foi voz
marcante para canções de diversos compositores, como
Belchior, Gilberto Gil e, em especial, de Milton
Nascimento. Também revolucionou na forma de cantar.
No Brasil, ou se cantava baixinho como João Gilberto e
Nara, ou para fora, como Maysa. Elis não. Podia ir do
suspiro ao urro num mesmo verso e arrancar suspiros e
lágrimas de quem a ouvisse. Era intérprete
apaixonada,que conseguia impor a entonação correta. Era
séria e compenetrada em uma música, para na seguinte
gargalhar. E em todas: sempre tecnicamente perfeita.
Se Elizeth e Carmen foram da geração do rádio, e
Marisa das mídias modernas, Elis marcou a televisão, seja
nos próprios programas que fazia na TV Record, ou nos
as divasde cada um
especiais, ou como mais uma dos muitos ilustres
participantes dos festivais da canção. Seu apelido era doce
pimenta por causa o temperamento forte, mas como diva,
diria que ela foi o sol: quente e radiante.
Claro que há muitas outras divas. Muitas pessoas
citaram outras cantoras brasileiras que foram muito
importantes em certo contexto. Gente como Rita Lee,
fundamental no rock, Zizi Possi, cantora tecnicamente
perfeita, Elza Soares, que continua a ser um furacão. Houve
quem levou para o lado sarcástico e disse que diva é o Lulu
Santos. A verdade é que diva é aquela que nos marca de
alguma forma. Algumas são aceitas por multidões, outras
são mais particulares, mas todas, com certeza, têm a sua
magnitude. Como é bom estar num país que abriga tantas
vozes extraordinárias. (D.A)
mesmo em um país com tantas cantoras influentes, só há lugar
para uma rainha por geração
elis e eue a atemporalidade
por Djenane Arraes
uando Elis Regina Carvalho Costa morreu em 19 de
janeiro de 1982, houve uma comoção nacional. QBom, eu não senti esse momento. Tinha apenas
dois anos, e crianças dessa idade estão mais preocupadas
em começar a explorar o universo de novidades do mundo
ao redor em passos tortos e inseguros, além de comer e
dormir. Não me lembro dos meus irmãos comentarem sobre
tal data. Eles caminhavam para a pré-adolescência à época e
tinham outros gostos e interesses. Meus pais não comentam
sobre Elis, apesar de que a minha mãe gosta bastante das
músicas dela.
Não cresci ouvindo Elis Regina. Não me lembro de
ver um LP dela quando criança. Se fosse eleger uma diva da
música brasileira, diria que Clara Nunes e Beth Carvalho
eram as mais tocadas na vitrola por causa do meu pai, e que
meu irmão mais velho ouvia Marina Lima. Eu? Se fosse falar
da primeira cantora que me lembro gostar, diria que foi a
Simony do Balão Mágico! Óbvio! Música infantil foi um
grande negócio nos anos 1980, e essa foi a minha época.
Simony, Xuxa, as meninas do Trem da Alegria, e a Aretha
(porque tinha inexplicável empatia pela música “Sopa de
Jiló”, de Plunct Plact Zum). Das grandes cantoras da MPB,
posso citar no máximo a Baby Consuelo por causa do
envolvimento que ela tinha com o universo infantil (e tinha
os cabelos punks coloridos, sempre legais aos olhos de uma
criança).
Elis nem mesmo apareceu na minha adolescência.
Esse papel de importância e influência ficou principalmente
com Fernanda Takai, que até então era só a vocalista do Pato
Fu – mas que hoje é cantora, compositora e intérprete
reconhecida além da banda que começou. E também teve a
Marisa Monte e a Rita Lee. Bom, Marisa é a cara dos anos
1990, já a Rita, que ainda fazia uma produção interessante,
veio até a mim pelos Mutantes por causa de referências
vindas de Fernanda e Marisa – a primeira por causa de
comparações, a segunda por causa da versão de “Panis et
Circenses”, que ajudou reapresentar a turma tropicalista
para a minha geração.
Então quando é que a figura e a voz de Elis Regina
apareceram na minha vida? Sinceramente, eu não me
lembro. Dizem que o destino de muitos mitos das artes é se
tornarem senso comum. Mesmo que você não esteja
prestando atenção, eles estão sempre ali, presentes. Talvez
tivesse ouvido Elis na infância, afinal. Ensaiar “Maria Maria”
para uma apresentação em homenagem às mães na escola
era quase o mesmo de cantar “Atirei o Pau No Gato”. Não se
pensa muito a respeito. A presença do artista ou suas obras
estão lá e é tão natural quanto o retrato da Monalisa, ou da
Marilyn Monroe por Andy Warhol, ou o “nanana” de “Hey
Jude”, dos Beatles.
A descoberta de Elis Regina por minha parte, ou
seja, o momento em que tomei consciência e liguei a voz e a
música com a pessoa, foi algo para depois dos meus 20 anos.
Talvez porque começar a ouvir e entender essa cantora é
preciso ter certo amadurecimento. Claro que o processo é
diferente para cada um, depende da história de vida de
cada um. Mas o que quero dizer é que quando se toma
consciência do que é Elis Regina, da sua voz, da sua
perfeição técnica, do repertório, e até mesmo do seu
folclórico gênio que lhe rendeu o apelido de Pimenta, meu
amigo, quando isso acontece, Elis chega arrebentando. É
como uma bomba cuja pólvora queima na pele e deixa a
marca para sempre.
O que é mais interessante é que Elis Regina não
cheira a passado. Por isso mesmo que acredito que as
pessoas descobrem a cantora em algum momento e ficam
impactadas em como alguém consegue soar tão atual
mesmo tendo deixado este mundo há décadas. Muitos
músicos e pesquisadores explicam que esse mérito passa
pelos arranjos modernos de Cesar Camargo Mariano,
rranjador (e ex-marido) que a acompanhou ao longo de
uma década e participou dos melhores discos que Elis
lançou. Mas não é só isso que a faz ser contemporânea. Se
fosse assim, todos que tivessem cantado com Tom Jobim
teriam sido eternizados. Não é por aí. Para alcançar tal
condição, mesmo com o pior ou o melhor arranjador ao
lado, é preciso ser gênio pelos próprios méritos. Não há
dúvidas de que Elis Regina era um gênio que soube fazer da
voz um poderoso e preciso instrumento musical. Há
também algo em sua figura, na postura, no jeito de se
postar que a tornou atemporal.
É por isso mesmo que continua na história, e não
apenas ficou em algum ponto dela. Isso é uma característica
reservadas a poucos grandes, como Billie Holiday, Ella
Fitzgerald, Charlie Parker, Miles Davis, Tom Jobim, Buddy
Holly e Beatles. Não se discute Elis Regina no passado: é
sempre no presente.
Elis não foi a melhor cantora do Brasil: ela ainda é.
No ano em que a Pimenta faria 70 anos de vida, é
interessante observar o quanto essa senhora ainda faz
barulho e nos deixa com aquela estranha expectativa sobre
qual será a próxima novidade.
...
Elis de 1972 é o meu álbum favorito dela. Maior
som! É impressionante observar que mesmo quando Elis
Regina canta contida, ela é phoda.
o cânone
ocidental(em quadrinhos)
por Marcelo Mendes
Cavaleiro das Trevas, Watchman e Piratas do Tietê são alguns
clássicos em quadrinhos que você precisa conhecer
ecentemente li Anatomia da Influência, do prolífico crítico e acadêmico norte-americano Harold Bloom. Neste livro, Bloom revisita um de seus principais Rtemas, a questão da influência em literatura. Na
verdade, isso não é importante para o que quero escrever agora. O que realmente chamou minha atenção foi o fato de que na introdução do livro, Bloom menciona que leu algo como a Odisséia, ou James Joyce, ou qualquer coisa do gênero, quando entrou na adolescência. Não lembro exa t a m e n t e c o m o e l e d i z , m a s m e c i o n a constantemente coisas do tipo: “quando tinha onze anos, eu li Paraíso Perdido pela primeira vez”. Da minha parte, eu fiquei: puta merda. Sim, eu estudo literatura, e, sim, eu também sou um acadêmico. Estou escrevendo sobre Jorge Luis Borges. Estou escrevendo sobre Machado de Assis. Mestres latino-americanos, clássicos. Ou seja, com certeza me interesso por literatura(s) e por autores fortes – este é um dos conceitos de Bloom: autores fortes versus autores fracos (sim, eu sei: soa muito elitista!). De qualquer forma, no começo da minha adolescência, eu não estava exatamente me aprimorando com a leitura de Milton, ou de qualquer mestre da literatura: estava lendo O Cavaleiro das Trevas, de Frank Miller; Love and Rockets, dos irmãos Hernandez; Watchmen, do Allan Moore; Piratas do Tietê, do Laerte; etc., no exato momento em que estas histórias em quadrinhos foram publicadas no Brasil pela primeira vez (estou ficando velho).
Sendo assim, decidi colocar minha expertise no campo literário em prática e escrever sobre histórias em quadrinhos. Bem, com certeza não sou um Harold Bloom, nem quero ser o equivalente na arena das histórias em quadrinhos. Por outro lado, posso com certeza assegurar que vou me esforçar para ser altamente pessoal, e, seguindo o conselho do Dr. Johnson (um dos heróis de Bloom), vou me esforçar para ser “não-dogmático, mas deliberado”. Em outras palavras: não vou seguir nada além do meu próprio instinto. Aliás, essa é uma das coisas também admiráveis em Bloom: sua solidão. Quer dizer, o cara escreve há mais de quarenta anos e não abriu mão de suas idéias, mesmo tendo sido altamente criticado por todo esse tempo. Bem, notei que ele começou a mencionar o feminino e o masculino da palavra escritor nesse livro novo, mas isso não quer dizer que ele está entrando de cabeça nos estudos feministas ou abrindo mão de suas convicções ( m a s c u l i n a s , b r a n c a s ,
ocidentais). Perdi o foco aqui. O quero dizer é: também quero me reservar o direito de ser só. Até mesmo em minha estupidez, se esse for o caso.
Então, proponho o meu cânone pessoal de histórias em quadrinhos, da mesma forma que Harold Bloom fez de maneira arbitrária em outros livros (em O Cânone Ocidental, por exemplo; e não há um exemplo mais claro do que esse). Mas aqui vai um aviso de amigo: não espere que eu inclua nessa minha lista provisória a novidade mais quente sobre a qual você leu em outro lugar, em uma fonte mais antenada. Essa lista é baseada simplesmente na minha experiência como leitor de histórias em quadrinho e, espero, ela vai te dar uma idéia dos meus parâmetros, da minha formação, gostos e desgostos. Não que isso seja importante. Faço isso apenas para revisitar minhas influências. Espero que você goste (ou não, mas por favor reaja!).
Primeiro, tenho que admitir que sou fissurado pelos irmãos Hernandez. Para mim, eles são os melhores autores americanos vivos e produzindo hoje. Eu sei que eles demoraram bastante para encontrar suas vozes, mas se você conseguir passar das, digamos, primeiras cem páginas de Locas ou Palomar, você vai encontrar o que há de melhor em termos de arte e narrativa dos anos 1880 para cá. Eu acho que eles exploram todos os recursos do meio ao máximo, e como poucos. Love and Rockets New Stories (Fantasgraphics Books) é uma série atual fantástica. Para leitores de longa data, esta nova série apresenta resoluções emocionantes e novas perspectivas para o trabalho dos autores. Jaime fez algumas de suas mais belas páginas para essa nova série, especialmente nos números 3 e 4. Se você conhece seus personagens, como Maggie e Ray, vai adorar saber o que aconteceu em suas vidas (e para mim, com certeza, elas parecem vidas de verdade). Leia “Browntown”, leia “The Love Bunglers”. Gilbert, por sua vez, tornou-se um de meus autores de quadrinhos favoritos de todos os tempos (eu diria autor, ponto final), particularmente com os filmes B da Fritz e da Killer. Não me canso de ler e reler “Scarlet by Starlight” (no L&RNS número 3), ou Chance in Hell, The Troublemakers ou Love From The Shadows (todos publicados pela Fantasgraphics Books). A leitura que Gilbert faz dos filmes B está diretamente r e l a c i o n a d a a m i n h a experiência e sensibilidade como espectador.
Também tenho que dizer que o que me atraiu de volta para os quadrinhos nos anos 1980 foi a publicação em português dos trabalhos de Frank Miller. Sim: eu disse me atraiu de volta. Como muitos de nós, nascidos no Brasil dos anos 1970, eu fui criado com as histórias da Turma da Mônica – pra dizer a verdade, eu fui alfabetizado por essas histórias, com a ajuda da minha mãe. De qualquer forma, o que chamou a minha atenção de adolescente foram as versões mais obscuras e, por que não, mais adultas de personagens famosos como Batman, Demolidor, Elektra, que começaram a circular nos anos 1980. Sem mencionar os quadrinhos originais daquele tempo, como Ronin, Tatarugas Ninja, Black Kiss, entre outros (que mais? Eu não lembro bem). Não que eu entendesse tudo o que estes quadrinhos propunham naquela época. Eu apenas podia sentir que havia mais naqueles personagens do que se vestir em roupas ridículas e salvar o mundo. Claro, reli muitas dessas coisas dos anos 1980 mais tarde, e algumas passaram no teste do tempo. Por exemplo, eu ainda gosto bastante do Batman: Ano Um (DC Comics), ou das histórias do Demolidor (Marvel) escritas pelo Frank Miller na época. De qualquer maneira, O Cavaleiro das Trevas (DC Comics) ainda é um dos principais marcos na história dos quadrinhos mainstream. Se hoje parece um pouco datado, por outro lado ainda é uma lembrança do que pode ser feito em termos de quadrinhos comerciais (sem dizer que, de alguma forma, O Cavaleiro das Trevas foi umas das inspirações para os filmes do Batman dirigidos por Christopher Nolan, com apenas algumas décadas de atraso em relação aos quadrinhos). Também agradeço ao Frank Miller por ter me apresentado outros quadrinhos, como Love and Rockets e Lobo Solitário, entre outras coisas. Em entrevistas, ele costumava mencionar suas influências e coisas das quais gostava na época.
Infelizmente, tenho que fechar esse trecho em um tom amargo: o último trabalho de Miller, Holy Terror (Legendary Comics), é surpreendentemente ruim! E não estou falando em termos de política: concorde com Miller ou não, Holy Terror tem uma narrativa fraca e personagens planos. No todo, é vazio demais. É apenas desnecessário para qualquer leitor em qualquer parte do mundo.
O Watchmen (DC Comics) do Alan Moore e do David Gibbons também tem que ser destacado no meu cânone pessoal. Nele você encontra uma história de super-herói que, acho, não perdeu nada com o tempo. É executado de forma perfeita. Não acha concorrente a altura no mesmo campo até hoje. É uma história de super-herói, sim, mas complexa e multifacetada. É também ao mesmo tempo respeitosa e revisionista no que diz respeito à história e às tradições do gênero ao qual pertence. Recentemente, encontrei duas histórias em quadrinhos que, de alguma forma, me lembraram Watchmen, apesar de ambas serem versões completamente diferentes do mesmo gênero e dentro da mesma tradição. A primeira é Flex Mentallo: Man of Muscle Mystery (Titan Publish Company), de Grant Morrisson e Frank Quitely. A segunda é Hicksville (Drawn & Quarterly), de Dylan Horrocks. Acho que Flex Mentallopropõe uma inversão irônica do gênero, jogando com as conexões entre realidade e quadrinhos, mundo e livro, leitor e personagem. Diferente de Watchmen, entretanto, Flex Mentallo brinca com as expectativas dos leitores em relação às histórias de super-herói, e também em relação às diferentes abordagens e eras do gênero, no sentido em que coloca o leitor dentro da narrativa, dando uma nova profundidade para esse tipo de história, digamos, revisionista de super-herói. Hicksville, por sua vez, é uma história mais pessoal sobre a indústria e sobre o amor pelos quadrinhos. Eventualmente, pretendo falar
mais sobre Hicksville nesse mesmo espaço. Hicksville lembra Watchmen no que diz respeito à complexidade e aos vários níveis que apresenta ao contar a história.Também como em Watchmen, Hicksville propõe uma leitura nostálgica e ao mesmo tempo moderna das histórias de super-heróis.
Finalmente, tenho que falar sobre outras tradições, as tradições brasileiras de quadrinhos. Lembre-se de que estou apenas tocando em minhas leituras formativas. Ou seja, estou deliberadamente deixando coisas fora desse câ n o n e p a rc i a l , p a r t i c u l a r m e nte co i s a s m a i s contemporâneas, porque não quero ser exaustivo, pelo menos não agora. Mas ainda tenho que falar sobre quadrinhos brasileiros! Com certeza. Comprei a primeira edição de Piratas do Tietê, do Laerte, com meu próprio dinheiro, de uma banca de revistas perto da minha escola de primeiro grau. Eu tinha algo entre onze e treze anos. Até hoje me lembro das palavras saindo da boca do Capitão na capa da revista, e toda vez que lembro dessa edição, essas palavras me vêm a mente: “Comi muito a senhora sua mãe”. Belas palavras, tenho que admitir. Não para uma criança, claro. E provavelmente isso foi parte da emoção de ter comprado essa edição de Piratas do Tietê. Antes disso, eu costumava ler as Chiclete com Banana do meu irmão mais velho, e alguns eventuais fanzines aqui e ali – mais tarde, descobri que tinha lido as primeiras tentativas do Lourenço Mutarelli em um desses fanzines dos anos 1980. De qualquer forma, Piratas do Tietê eram meus! Até hoje, eu adoro o trabalho do Laerte, particularmente algumas de suas histórias mais cumpridas (“Vila Madalena”, “Anjos e Bruxas”, “Três negão e um karaokê”, etc.). Sempre quis que ele escrevesse mais coisas dentro desse formato. Em todo caso, eu acho que o que ele está fazendo hoje dentro dos limites das tirinhas é um troço completamente novo. Em termos de gênero, eu não tenho certeza. Mas essa é outra história.
É isso, chega. Só vou deixar mais alguns nomes e referências aqui: meu herói de quadrinhos predileto é o Homem-Aranha. Definitivamente. No que diz respeito aos
quadrinhos europeus, tenho que agradecer a revista Animal por ter me apresentado a vários deles. Lembro de ter comprado um número da Animal com o “Squeak the Mouse” na capa. Quando abri a revista, meu pudor católico do começo da adolescência me vez devolvê-la (eu tinha provavelmente onze anos: toma essa, Bloom!), mas eventualmente eu consegui a edição de volta, e me tornei fã de personagens como Peter Punk, Tank Girl, Squeak, Ranxerox, e autores como Saudelli, Jaime Martín, Magnus, etc., etc. Também comecei a aprender a ler em espanhol com uma versão espanhola da revista Metal Hurlan! Toma mais essa, Bloom! Enfim, vou apenas mencionar a revista Big Bang Bang, do Adão. Ele ainda está mandando ver! Que mais? Putz… Acho que é só.
rese
nhas
ocê conhece a biografia de uma canção? Não conta aqueles
textos simples sobre comentários de como nasceu uma Vdeterminada música e do sucesso que ela fez. Há dezenas de
publicações dessa natureza. Digo, uma biografia real. Um texto
completo sobre a canção, seu maior intérprete, depoimentos de
críticos, repercussão, a historia toda? O jornalista David Margolick fez
essa investigação em Strange Fruit: Billie Holiday e a biografia de
uma canção. E não é qualquer canção. “Strange Fruit” é considerada a
primeira música de protesto norte-americana (houve outras, mas o
protesto era subentendido).
Escrita por Abel Meeropol sob pseudônimo de Lewis Allen,
“Strange Fruit” é um protesto anti-linchamento apresentada ao
grande público pela primeira vez numa apresentação visceral de Billie
Holiday a uma platéia de brancos. Segundo David, quando miss
Holiday cantou a última nota, houve um silêncio sepulcral até que um
sujeito começou a aplaudir com entusiasmo e contaminou todos os
demais. Parece até cena de filme… ou talvez as cenas de filmes fossem
inspiradas em episódios como esse.
Essa história tem curiosidades interessantes. Por exemplo,
Abel Meeropol era um professor branco, militante de esquerda. Ele
escreveu o poema baseado numa foto famosa de um linchamento
que mostra dois negros enforcados numa árvore diante de uma
pequena multidão de brancos sulistas. Alguns até sorriam para a foto.
Desse horror saiu o protesto, e o poema foi apresentado (e explicado)
a miss Holiday em 1939, que tomou a canção para si. O público mais
progressista e liberal adorou a canção. Os mais conservadores
queriam que “Strange Fruit” fosse limada do planeta Terra. E teve
gente, claro, que simplesmente não entendeu. Há ainda os que
defendem a teoria de que Billie Holiday ficou tão vidrada em “Strange
Fruit” que a canção a matou. Bom, não é a primeira vez que surgem
teorias de que uma obra pode matar o autor, ou, no caso, seu principal
intérprete.
David Margolick escreveu um belo pequeno livro. Uma obra
que conta um pouco da história da música, que resgata a relação e
importância social, e que também uma reflexão histórica. Em tempos
que os Estados Unidos vivem um momento de tensão racial, por vezes
é preciso contar a história e parar para pensar. Apesar de que pensar é
muito difícil e a maioria das pessoas não sabe como fazer isso. (D.A)
além da questão
racial
feminismo na personagem fracassada
nna Kendrick é uma atriz que reforça o discurso do
feminismo reformado da atualidade. Aquele que Anão trata homem algum como inimigo, que não é
“coisa de sapatão” e nem de “mulher amargurada”, como o
feminismo foi acusado de ser por muito tempo. Não,
Kendrick, tal como jovens atrizes como Emma Watson e
experientes como Sandra Bullock, está na turma de quem
pede mais respeito e justiça, além do combate a cultura
machista que impera em qualquer sociedade. Mesmo que a
pessoa tenha determinado pensamento político e social,
não quer dizer que todos os trabalhos que fará irão ao
encontro deste. The Last Five Years, por exemplo, coloca a
feminista Kendrick no papel de uma mulher ordinária e
fracassada que sucumbe ao sucesso do marido bonitão e
talentoso.
The Last Five Years é a adaptação de um musical
premiado da Broadway à tela grande. Filmes que falam de
relacionamentos não costumam reinventar a roda, mas
podem ser interessantes dependendo do tratamento que
dão ao enredo. No caso aqui, é mostrado cinco anos em que
um jovem casal existiu. A personagem de Kendrick conta
versão dela da história do final para o início. A outra metade
do casal, vivido por Jeremy Jordan, faz o movimento inverso:
conta a versão dele da história em ordem cronológica. Ela é
uma aspirante a atriz com grande humor e vontade de
vencer. Ele é um jovem e talentoso escritor.
Os dois são apaixonados, formam um casal jovem,
lindíssimo, com gana para vencer. A questão é que ele torna-
se bem-sucedido. Ela não. Ao passo que ela vai ficando mais
e mais amargurada por envelhecer e ver cada vez mais
distante o sonho de se tornar uma atriz e conseguir um papel
numa peça da Broadway, as portas para ele ficam cada vez
mais abertas: é uma vida social interessante, com
bajuladores, dinheiro e fãs que abrem muito mais que
portas. Ela, ressentida, entra numa espiral de auto-piedade,
em especial porque o marido não a olha mais como antes e
nem lhe dá mais atenção. Ele, sufocado pelo ressentimento
dela, procura um afago nos braços de muitas outras. O
rompimento é inevitável.
O que marca a narrativa de um e de outro são as
canções, permeadas por raros diálogos. Esse é o ponto
positivo e, ao mesmo tempo, negativo do filme. Se no teatro
tal fórmula funciona muito bem, na tela não é bem assim.
Filmes musicais com esse formato, a exemplo de Os
Miseráveis ou Mary Poppins, costumam ser irritantes. Então
não é mal usar outros recursos, como uma produção
grandiosa e, especialmente, um elenco particularmente
talentoso e carismático para segurar a onda. Grandiosidade
tinha Os Miseráveis. Elenco carismático tinha Mary Poppins.
Mas no caso de The Last Five Years existem complicadores
mais complexos porque além de ser um musical de cabo a
rabo, é um filme indie que depende do carisma e talento de
seus dois atores (Kendrick e Jordan) para dar certo. A questão
é que ele só dá certo pela metade.
Ironicamente, numa história em que a mulher é
engolida pelo sucesso do homem, é a feminista Kendrick
quem sustenta a produção. O girl power não está na história,
muito menos na personagem, mas no talento da atriz. Jeremy
Jordan, por mais bonito que seja, por melhor que tenha sido
sua formação nos palcos, não fez um bom trabalho em The
Last Five Years: o que ajudou a comprometer a produção que
apresenta por si só imperfeições notáveis – além de
problemas de direção, não há no filme uma canção
memorável que o sustente na posteridade. No mais, The Last
Five Years vale o tempo no sentido de ser uma obra que pode
inaugurar uma nova safra de musicais indies onde se investe
mais no realismo e nos temas cotidianos. [D.A]