Fap pós tgc 10 - separação dos poderes

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1 PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DE PODERES Dimitri Dimoulis 1 2 1 Texto extraído da obra Dicionário de Direito Constitucional . DIMOULIS, Dimitri (Coordenador Geral). São Paulo: Saraiva, 2007, p. 347-350. Texto direcionado aos alunos interessados em aprofundar o tema. 2 O autor é Doutor e Pós-Doutor em Direito (Universidade do Sarre, Alemanha), Professor dos Cursos de Graduação e Mestrado da UNIMEP e Diretor do Instituto Brasileiro de Estudos Constitucionais. Princípio que impõe a divisão do poder estatal entre grupos de autoridades estatais e a especialização de cada um deles em determinado tipo de competência. Objetiva evitar abusos decorrentes da concentração de poder que comprometeria a liberdade individual. A separação dos poderes pretende, ao mesmo tempo, limitar e legitimar o poder estatal. Seu objetivo fundamental é preservar a liberdade individual, combatendo a concentração de poder (tendência absolutista) de duas maneiras: primeiro, impondo a colaboração (e o consenso) de várias autoridades estatais na tomada de decisões e, segundo, criando e prevendo mecanismos de fiscalização recíproca dos poderes estatais (freios e contrapesos). Outro objetivo é a legitimação do poder estatal, isto é, o aumento de seu grau de aceitação junto à população. A especialização de cada autoridade em determinadas atividades melhora seu desempenho e permite sua estruturação de acordo com as respectivas necessidades funcionais. Sobre a origem do princípio há controvérsias. Apontam-se como idealizadores Aristóteles, Locke e, principalmente, Montesquieu. A leitura dos respectivos textos indica que nenhum desses pensadores esboçou um esquema de organização estatal semelhante à separação de poderes orgânica e funcional que conhecemos atualmente. Na verdade, esse esquema foi elaborado gradativamente na experiência institucional das revoluções de finais do século XVIII que levaram à criação das primeiras constituições rígidas e escritas nos EUA e na França. A doutrina alemã de finais do século XIX delineou com clareza o conteúdo jurídico da separação dos poderes, baseando-se em quatro ideias fundamentais: Princípio que impõe a divisão do poder estatal entre grupos de autoridades estatais e a especialização de cada um deles em determinado tipo de competência. Objetiva evitar abusos decorrentes da concentração de poder que comprometeria a liberdade individual. A separação dos poderes pretende, ao mesmo tempo, limitar e legitimar o poder estatal. Seu objetivo fundamental é preservar a liberdade individual, combatendo a concentração de poder (tendência absolutista) de duas maneiras: primeiro, impondo a colaboração (e o consenso) de várias autoridades estatais na tomada de decisões e, segundo, criando e prevendo mecanismos de fiscalização recíproca dos poderes estatais (freios e contrapesos). Outro objetivo é a legitimação do poder estatal, isto é, o aumento de seu grau de aceitação junto à população. A especialização de cada autoridade em determinadas atividades melhora seu desempenho e permite sua estruturação de acordo com as respectivas necessidades funcionais. Sobre a origem do princípio há controvérsias. Apontam-se como idealizadores Aristóteles, Locke e, principalmente, Montesquieu. A leitura dos respectivos textos indica que nenhum desses pensadores esboçou um esquema de organização estatal semelhante à separação de poderes orgânica e funcional que conhecemos atualmente. Na verdade, esse esquema foi elaborado gradativamente na experiência institucional das revoluções de finais do século XVIII que levaram à criação das primeiras constituições rígidas e escritas nos EUA e na França. A doutrina alemã de finais do século XIX delineou com clareza o conteúdo jurídico da separação dos poderes, baseando-se em quatro ideias fundamentais: a) O poder estatal é unitário , pois emana do titular do poder constituinte. Aquilo que se separa (ou se divide) são suas manifestações concretas, as denominadas funções estatais. Isso indica que o terma “separação de poderes” é inadequado, pois não há, no Estado constitucional, poderes autônomos e paralelos. Apesar disso, o termo é amplamente usado na doutrina nacional e estrangeira e na própria CF/88 (art. 60, § 4º, III). b) O poder estatal é dividido em funções que se diferenciam claramente em razão de sua finalidade e forma de atuação. Qualquer ato estatal pode ser classificado em uma dessas funções. A maioria das Constituições se refere a três funções estatais, a legislativa, a executiva e a jurisdicional, mas nada impede que sejam criadas mais funções, como indica o exemplo da Constituição brasileira do Império (existência de quatro poderes, art. 10) e a Constituição venezuelana de 1999 (poder “eleitoral” e poder “cidadão”, além dos três clássicos, art. 199). Temos aqui a separação funcional (material ou objetiva) dos poderes. c) Devem ser instituídos grupos de autoridades estatais (poderes), cujo número deve ser igual ao das funções estatais . A cada poder deve ser atribuída a respectiva função (o Poder Legislativo exerce a função legislativa etc.). Essa é a separação orgânica (formal, subjetiva) dos poderes, que impõe a correspondência entre o órgão e a função.

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PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DE PODERES

Dimitri Dimoulis1 2

1 Texto extraído da obra Dicionário de Direito Constitucional. DIMOULIS, Dimitri (Coordenador Geral). São Paulo: Saraiva, 2007, p. 347-350. Texto direcionado aos alunos interessados em aprofundar o tema.

2 O autor é Doutor e Pós-Doutor em Direito (Universidade do Sarre, Alemanha), Professor dos Cursos de Graduação e Mestrado da UNIMEP e Diretor do Instituto Brasileiro de Estudos Constitucionais.

Princípio que impõe a divisão do poder estatal

entre grupos de autoridades estatais e a especialização de cada um deles em determinado tipo de competência. Objetiva evitar abusos decorrentes da concentração de poder que comprometeria a liberdade individual.

A separação dos poderes pretende, ao mesmo tempo, limitar e legitimar o poder estatal. Seu objetivo fundamental é preservar a liberdade individual, combatendo a concentração de poder (tendência absolutista) de duas maneiras: primeiro, impondo a colaboração (e o consenso) de várias autoridades estatais na tomada de decisões e, segundo, criando e prevendo mecanismos de fiscalização recíproca dos poderes estatais (freios e contrapesos).

Outro objetivo é a legitimação do poder estatal, isto é, o aumento de seu grau de aceitação junto à população. A especialização de cada autoridade em determinadas atividades melhora seu desempenho e permite sua estruturação de acordo com as respectivas necessidades funcionais.

Sobre a origem do princípio há controvérsias. Apontam-se como idealizadores Aristóteles, Locke e, principalmente, Montesquieu. A leitura dos respectivos textos indica que nenhum desses pensadores esboçou um esquema de organização estatal semelhante à separação de poderes orgânica e funcional que conhecemos atualmente. Na verdade, esse esquema foi elaborado gradativamente na experiência institucional das revoluções de finais do século XVIII que levaram à criação das primeiras constituições rígidas e escritas nos EUA e na França.

A doutrina alemã de finais do século XIX delineou com clareza o conteúdo jurídico da

separação dos poderes, baseando-se em quatro ideias fundamentais:

Princípio que impõe a divisão do poder estatal

entre grupos de autoridades estatais e a especialização de cada um deles em determinado tipo de competência. Objetiva evitar abusos decorrentes da concentração de poder que comprometeria a liberdade individual.

A separação dos poderes pretende, ao mesmo tempo, limitar e legitimar o poder estatal. Seu objetivo fundamental é preservar a liberdade individual, combatendo a concentração de poder (tendência absolutista) de duas maneiras: primeiro, impondo a colaboração (e o consenso) de várias autoridades estatais na tomada de decisões e, segundo, criando e prevendo mecanismos de fiscalização recíproca dos poderes estatais (freios e contrapesos).

Outro objetivo é a legitimação do poder estatal, isto é, o aumento de seu grau de aceitação junto à população. A especialização de cada autoridade em determinadas atividades melhora seu desempenho e permite sua estruturação de acordo com as respectivas necessidades funcionais.

Sobre a origem do princípio há controvérsias. Apontam-se como idealizadores Aristóteles, Locke e, principalmente, Montesquieu. A leitura dos respectivos textos indica que nenhum desses pensadores esboçou um esquema de organização estatal semelhante à separação de poderes orgânica e funcional que conhecemos atualmente. Na verdade, esse esquema foi elaborado gradativamente na experiência institucional das revoluções de finais do século XVIII que levaram à criação das primeiras constituições rígidas e escritas nos EUA e na França.

A doutrina alemã de finais do século XIX delineou com clareza o conteúdo jurídico da

separação dos poderes, baseando-se em quatro ideias fundamentais:

a) O poder estatal é unitário, pois emana do titular do poder constituinte. Aquilo que se separa (ou se divide) são suas manifestações concretas, as denominadas funções estatais. Isso indica que o terma “separação de poderes” é inadequado, pois não há, no Estado constitucional, poderes autônomos e paralelos. Apesar disso, o termo é amplamente usado na doutrina nacional e estrangeira e na própria CF/88 (art. 60, § 4º, III).

b) O poder estatal é dividido em funções que se diferenciam claramente em razão de sua finalidade e forma de atuação. Qualquer ato estatal pode ser classificado em uma dessas funções. A maioria das Constituições se refere a três funções estatais, a legislativa, a executiva e a jurisdicional, mas nada impede que sejam criadas mais funções, como indica o exemplo da Constituição brasileira do Império (existência de quatro poderes, art. 10) e a Constituição venezuelana de 1999 (poder “eleitoral” e poder “cidadão”, além dos três clássicos, art. 199). Temos aqui a separação funcional (material ou objetiva) dos poderes.

c) Devem ser instituídos grupos de autoridades estatais (poderes), cujo número deve ser igual ao das funções estatais. A cada poder deve ser atribuída a respectiva função (o Poder Legislativo exerce a função legislativa etc.). Essa é a separação orgânica (formal, subjetiva) dos poderes, que impõe a correspondência entre o órgão e a função.

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Exceções do imperativo de correspondência são possíveis se forem autorizadas pela Constituição. Nesses casos, temos o fenômeno do “cruzamento” dos poderes, (Gewaltenverschränkung), ao qual a doutrina brasileira costuma se referir com o termo “funções atípicas”. Trata-se de termo impreciso, pois aquilo que é atípico não é a função-competência, mas o fato de um poder exercer função normalmente exercida por outro. Exemplo: em razão da previsão constitucional, o Presidente da República edita medidas provisórias (CF, art. 62), apesar de a medida provisória ser um ato normativo que pertence materialmente à função legislativa. Eventualmente norma infraconstitucional que autorizaria outro órgão estatal a editar medidas provisórias seria inconstitucional porque violaria o imperativo de correspondência entre órgão e função.

Temos uma forma moderada de cruzamento de poderes quando o órgão que é titular de uma função deve atuar junto a órgão de outra função. Isso se verifica no processo legislativo, que impõe a participação do Executivo, incluindo a possibilidade de o Presidente da República vetar a edição de leis (CF, art. 66).

d) Cada poder deve se organizar e atuar de maneira autônoma, evitando-se as interferências dos demais. Esse é o princípio da independência orgânica que também conhece uma série de exceções no intuito de criação de freios e contrapesos. Exemplos: os Ministros do STF são escolhidos por representantes dos dois outros poderes (CF, art. 101) e o Presidente da República é julgado por crimes de responsabilidade pelo Legislativo com participação do Judiciário (CF, arts. 52, 85 e 86).

Essa abordagem da separação dos poderes continua sendo aceita pela jurisprudência e grande parte da doutrina. Seu elemento central é a possibilidade de definir o conteúdo de cada função, permitindo que qualquer ato estatal possa ser classificado em uma (e somente uma) dessas funções. Sabendo, por exemplo, qual é a finalidade e a forma de atuação da função

legislativa, podemos decidir se a competência de editar instruções normativas deve ser classificada na função legislativa. Isso ocorre mediante comparação dessa competência com as características do ato típico da função legislativa. Essa abordagem pode ser denominada funcionalista, porque considera possível definir as funções estatais para, em seguida, distribuí-las em grupos de órgãos estatais.

Estudos das últimas décadas submeteram a uma séria de críticas jurídicas a abordagem funcionalista, considerando impossível definir materialmente as funções (Troper). Podemos denominar essa abordagem organicista, porque não acredita na existência de funções materiais e reduz a separação de poderes em um esquema aleatório de distribuição de competências (de freios e contrapesos). Adotar essa visão significa abdicar da possibilidade de controlar a constitucionalidade de leis que redistribuem competências, pois falta critério para definir em qual função pertence cada competência, logo por qual grupo de órgãos deveria ser exercida.

A abordagem funcionalista parece-nos preferível com duas ressalvas. Primeiro, devemos adotar uma versão moderada do funcionalismo, levando em consideração que os órgãos estatais desempenham um papel determinante na configuração de cada função e que, no decorrer do tempo, se modifica a definição das funções. Isso significa que a definição material da função não é imutável e dependendo parcialmente da atuação dos órgãos estatais.

Segundo, devemos admitir que, no estado de direito, não há classificações logicamente perfeitas e unívocas, mas isso não impede classificar os atos estatais em uma das três funções, apesar da margem de insegurança e dúvida.

Podemos sugerir as seguintes definições das três funções estatais:

- Função legislativa. Criação de normas jurídicas, via de regra, gerais e abstratas no

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intuito de regulamentar determinadas relações ou situações, vinculando os demais órgãos estatais. O ato típico da função legislativa é a lei, que pode ser definida como ato jurídico: escrito; com alto grau de generalidade e abstração; elaborado e promulgado por autoridades competentes em virtude de previsão constitucional e conforme procedimentos constitucionalmente fixados; objetivando regulamentar a organização da sociedade; estabelecendo regras para o futuro (natureza prospectiva). Nenhuma dessas características é absoluta e nem todas se encontram em todas as leis. Mas quanto mais forte for sua presença, mais fácil é classificar um ato como legislativo.

- Função executiva. Atividade de concretização e implementação dos dispositivos constitucionais e legais. Além da submissão hierárquica a esses dispositivos, a função executiva é caracterizada por dois elementos: o impacto concreto-real de suas atividades, já que no âmbito executivo os imperativos jurídicos são literalmente realizados (prestação de serviços, pagamentos, exercício de coação etc.); o caráter não definitivo das decisões do Executivo que são passíveis de controle pelo Judiciário.

- Função jurisdicional. Atividade que, via de regra, resolve conflitos e dúvidas sobre a aplicação do direito e apresenta as seguintes características: neutralidade do julgador garantida institucionalmente, inclusive mediante a observação de ritos processuais; possibilidade de suas decisões revestirem força de coisa julgada.

Dependendo das opções constitucionais, verifica-se a independência dos poderes, garantindo-se o equilíbrio, ou se observa a predominância de um poder, normalmente o Legislativo. Temos clara predominância do Legislativo nos regimes parlamentaristas, assim como em regimes que limitam ou até proíbem o controle judicial da constitucionalidade (respectivamente, França e Holanda). Já em países como o Brasil, que adotam o regime presidencialista que oferece legitimidade popular direta ao Executivo e admitem um

amplo controle judicial de constitucionalidade, há tendência ao equilíbrio entre os três Poderes.

A separação dos poderes é um princípio estruturante do poder estatal em praticamente todas as Constituições modernas. Assim sendo, não foi desmentido até hoje o art. 16 da Declaração francesa de 1789, segundo o qual uma sociedade que não garante a separação dos poderes (e os direitos dos cidadãos) “não possui Constituição”.

A CF garante a separação de poderes de três formas:

- Estabelece que a União possui três Poderes, independentes e harmônicos entre si (art. 2º), valendo o mesmo para os Estados e o Distrito Federal (arts. 25 a 18 e 125). Já nos Municípios, ocorre a bipartição do poder entre Legislativo e Executivo (arts. 29 e 125).

- Especifica o funcionamento, as competências e a forma de escolha dos integrantes de cada poder e suas relações com os demais (Título IV – “Da Organização dos poderes”). Normas semelhantes encontram-se nas Constituições estaduais e nas leis orgânicas dos Municípios.

- Inclui a separação de poderes entre as normas constitucionais insuscetíveis de abolição mediante emenda constitucional (art. 60, § 4º, III). Isso significa que a CF autoriza mudanças no equilíbrio entre os poderes e modificações no rol das respectivas competências, desde que seja mantida a divisão do poder e respeitado o princípio da autonomia e da especialização. Pergunta-se, porém, quais elementos da separação de poderes devem permanecer inalterados. A resposta só pode ser dada em cada caso concreto e depende da intensidade da mudança do equilíbrio entre os poderes que estabeleceu o constituinte originário.

A separação de poderes foi submetida a várias críticas, sendo atualmente vista por parte da doutrina como princípio superado. As principais críticas são três:

- Pluralização. Surgimento de novas funções

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estatais que indicariam a superação da tripartição clássica (função governamental de cunho eminentemente político no âmbito do Executivo; função dos tribunais constitucionais que exercem atividades de fiscalização e estabilização do ordenamento jurídico; funções administrativas e fiscalizadoras dos órgãos dotados de alto grau de autonomia, como as Agências Reguladoras).

- Ineficiência. O sistema de freios e contrapesos se baseia nas relações entre as forças políticas e, particularmente, nos conflitos entre governo e oposição e não na divisão formalista de competências jurídicas.

- Impossibilidade teórica. Todos os atos estatais constituem ao mesmo tempo aplicação (execução) de normas superiores e a criação de nova norma mediante decisão do órgão competente (legislação). Nessa ótica, seria equivocado distinguir entre três ou mais funções já que todos os atos estatais possuem a mesma estrutura.

Independentemente dessas críticas e do posicionamento ideológico pessoal em relação à separação dos poderes, esta última constitui no Brasil e em muitos outros países regra de direito constitucional positivo, protegida como cláusula pétrea. Como tal deve ser estudada pela doutrina e respeitada na prática constitucional.