FARIA, Daniel - Questões Sobre o Moderno Na Primeira República

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História, São Paulo, v. 26, n. 2, p. 385-405, 2007 385 Realidade e consciência nacional. O sentido político do modernismo Daniel Faria Resumo: Este artigo tem como ponto de partida a crítica a uma temática recorrente na história da cultura da Primeira República: a da elite intelectual alienada, superficial. Esta imagem teve como um dos pressupostos o contraponto com o conceito de “modernismo”, primeiramente em intelectuais como Tristão de Athayde e Rosário Fusco, elaborado a partir da crença na retomada da consciência sobre a realidade nacional. O paralelismo deste discurso com argumentos elaborados para dar legitimidade revolucionária ao golpe de 1930, no entanto, revela que os termos elaborados à primeira vista para a criação de um projeto cultural eram simultaneamente expressão de anseios políticos. Palavras-chave: modernismo; realismo; política. 1. Os embaraços da contextualização histórica Este artigo parte da perplexidade diante de um tema recorrente em trabalhos sobre a Primeira República. Tema entendido aqui não como assunto, e nem mesmo como perspectiva teórica, mas sim tessitura narrativa criada por conceitos e imagens. Trata-se aqui, sobretudo no campo da história cultural, da idéia recorrente de que escritores, artistas, engenheiros e mesmo líderes políticos viviam naquela época sob o signo da alienação, num mundo de superficialidade e futilidade. A relação desta memória com a construção da imagem do golpe de 1930 como revolução modernizadora do Brasil já foi suficientemente discutida pelos trabalhos de Edgar DeDecca e Carlos Alberto Vesentini. 1 Seus fundamentos intelectuais e políticos mais abrangentes foram minuciosamente analisados em trabalho recentemente publicado por Maria Stella Bresciani. 2 Mas diante disso o que se destaca é uma bibliografia pautada pela recorrência do tema referido. Imagens de alienação ou leviandade na vida cultural da Primeira República estão presentes em trabalhos tão diversos como os de Marcia Camargos, Antônio Arnoni Prado, Jeffrey Neddell, em textos dedicados à obra de João do Rio, e já estava bem delineada nos estudos clássicos de Antônio Cândido e Brito Broca. 3 Mas também estão

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    Realidade e conscincia nacional. O sentido poltico do modernismo

    Daniel Faria

    Resumo:Este artigo tem como ponto de partida a crtica a uma temtica recorrente na histria da cultura da Primeira Repblica: a da elite intelectual alienada, superficial. Esta imagem teve como um dos pressupostos o contraponto com o conceito de modernismo, primeiramente em intelectuais como Tristo de Athayde e Rosrio Fusco, elaborado a partir da crena na retomada da conscincia sobre a realidade nacional. O paralelismo deste discurso com argumentos elaborados para dar legitimidade revolucionria ao golpe de 1930, no entanto, revela que os termos elaborados primeira vista para a criao de um projeto cultural eram simultaneamente expresso de anseios polticos.

    Palavras-chave: modernismo; realismo; poltica.

    1. Os embaraos da contextualizao histrica

    Este artigo parte da perplexidade diante de um tema recorrente em trabalhos

    sobre a Primeira Repblica. Tema entendido aqui no como assunto, e nem mesmo

    como perspectiva terica, mas sim tessitura narrativa criada por conceitos e imagens.

    Trata-se aqui, sobretudo no campo da histria cultural, da idia recorrente de que

    escritores, artistas, engenheiros e mesmo lderes polticos viviam naquela poca sob o

    signo da alienao, num mundo de superficialidade e futilidade. A relao desta

    memria com a construo da imagem do golpe de 1930 como revoluo

    modernizadora do Brasil j foi suficientemente discutida pelos trabalhos de Edgar

    DeDecca e Carlos Alberto Vesentini.1 Seus fundamentos intelectuais e polticos mais

    abrangentes foram minuciosamente analisados em trabalho recentemente publicado por

    Maria Stella Bresciani.2 Mas diante disso o que se destaca uma bibliografia pautada

    pela recorrncia do tema referido.

    Imagens de alienao ou leviandade na vida cultural da Primeira Repblica esto

    presentes em trabalhos to diversos como os de Marcia Camargos, Antnio Arnoni

    Prado, Jeffrey Neddell, em textos dedicados obra de Joo do Rio, e j estava bem

    delineada nos estudos clssicos de Antnio Cndido e Brito Broca.3 Mas tambm esto

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    implicadas no enigma historiogrfico das nomeaes e dataes: diante de outros

    perodos localizados por designaes bastante definidas, como a fase dita modernista

    aps 1922 ou a prpria revoluo de 1930, a Primeira Repblica pendeu para o

    adjetivo pejorativo Velha e no campo cultural prendeu-se imagem de algo

    inacabado mediante o termo pr-modernista.4 O fato de tais nomeaes terem sido

    majoritariamente abandonadas no significa necessariamente que as questes por elas

    colocadas foram resolvidas. Ao contrrio, a imagem da elite intelectual, artstica e

    politicamente alienada retoma o tema da ausncia de projeto civilizacional, fundamento

    dos marcos histricos cristalizados na tradio moderna.

    Para se pensar a perplexidade indicada, decidiu-se neste artigo pela retomada de

    um conjunto de textos hoje mais ou menos esquecidos que articularam esta temtica

    definio do significado do modernismo para a cultura intelectual brasileira.

    Principalmente trabalhos de Tristo de Athayde e Rosrio Fusco, escritos entre os anos

    1920 e 1940, dois dos pioneiros na articulao entre os lugares-comuns sobre a

    nacionalidade fora de si, a crtica da literatura da Primeira Repblica e a definio de

    uma cronologia que se cristalizou como periodizao cannica. Para alm das questes

    de datao e nomeao aqui apresentadas, o que se pretende discutir a base conceitual

    que fundamentou este modo de historicizao. As idias de alienao, futilidade,

    mundanismo e superficialidade tm como pressuposto o contraste com dois conceitos

    bem presentes nos autores dos anos 1920-1940, mas silenciados pela bibliografia mais

    recente: realidade e conscincia (nacional).

    Mas, antes da incurso nestes conceitos, vale mais uma observao sobre as

    nomeaes e sua relao com a criao de imagens para os perodos da histria. Em

    texto publicado em 1933, Tristo de Athayde dizia:

    Vimos, da ltima vez, a figura de Hermes Fontes como uma das mais tpicas desse perodo potico sem nome, que se estende do fim do simbolismo ao incio do modernismo. Foi uma era de poetas sem escola, sem discpulos, sem imitadores, poetas sem trama poderamos dizer, que urdiram individualmente os fios esparsos da ligao linear entre uma e outra poca. Neles o engenho foi superior criao. Foram habilssimos manejadores de rimas e ritmos. Tiveram abundncia de estro, riqueza de imagens, poder verbal. Mas no marcaram a sua poca com um nome coletivo, tal e qual sucedera, um sculo antes, com os poetas que tambm fizeram uma ligao semelhante entre o classicismo e o romantismo. E o nome, parecendo um acidente sem importncia, quase sempre a expresso de uma realidade marcante e definida. O inominado geralmente, ou mesmo sempre o indefinido.5

    Hermes Fontes, escritor sem estilo prprio, seduzido pela beleza superficial das

    palavras, preso ao nvel mais concreto da linguagem potica, a melodia, estaria em

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    perfeita consonncia com seu contexto histrico. Este seria de incompletude,

    inacabamento, falta de rigor, em sntese: indefinio. Curiosamente, um momento

    histrico como este teria suas figuras tpicas, o que paradoxal. Apesar da falha na

    definio social, cultural e poltica, o perodo histrico estava ento muito bem

    caracterizado na narrativa de Tristo de Athayde, uma vez que o fracasso no se deveria

    a qualquer tipo de indefinio por parte do autor, mas era atribudo prpria situao.

    Lendo este trecho podemos perceber que dar um nome no simplesmente expressar

    alguma coisa j existente, mas delimitar, intervir, localizar. Por outro lado, afirmar de

    um perodo ou estilo que ele no tem nome, no mbito da concepo de histria

    pressuposta pelo autor, forma bem explcita de se estabelecer uma definio. No se

    trata, portanto, de simples negao, mas da atribuio afirmativa de algo que falta.

    Neste horizonte, dizer de um heri que ele no tem carter era um modo bem preciso de

    caracterizao.

    Outro destes heris supostamente tpicos na sua indefinio, o poeta Raul de

    Leoni, seduzido pela tradio greco-latina em pleno ano de 1922, teve parte de sua obra

    reeditada em 1961.6 Nesta edio, os poemas do autor vieram acompanhados de uma

    fortuna crtica. Em texto nela includo, o mesmo Tristo de Athayde o situara como a

    voz talvez mais autorizada de todo um estado de esprito coletivo, quando a nossa

    literatura parecia isolar-se inteiramente, tornar-se incomunicvel grande massa e

    grande realidade brasileira7. A indefinio era ento explicitamente relacionada a uma

    forma especfica de alienao, a separao entre conscincia e realidade nacional. Mas

    esta edio veio aqui tona por uma questo ainda mais relevante. Dirigida a

    estudantes, ela trazia um daqueles questionrios que, lidos superficialmente, vinham de

    antemo com as respostas j dadas pelos professores. Algumas de suas perguntas, no

    entanto, podem nos conduzir ao embarao historiogrfico discutido, desde que nos

    esqueamos das primeiras e automticas respostas:

    1. Viveu realmente Raul de Leoni, considerado poeta de fim-de-sculo, em poca de absoluta disponibilidade de esprito? Ou a chamada Belle poque no foi o laboratrio de um dos lustros de sculos mais rudes e trgicos da histria da civilizao ocidental?

    4. A que escola, movimento ou grupo de poetas se poderia enquadrar a obra potica de Raul de Leoni ou fili-la? Teria sido o poeta de Luz Mediterrnea de todo diferente dos demais poetas de seu tempo, a ponto de no haver essa possibilidade, por mais remota, de enquadramento?

    5. Antecipou Raul de Leoni de fato o movimento modernista, como h quem o diga? No teria sido ao contrrio apenas um poeta passadista?

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    10. Foi acaso Raul de Leoni um pensador pago? Ou um cristo, mas inconsciente de sua filiao crist?

    evidente que os parmetros estabelecidos levam a um estado de tenso o texto,

    movido pela necessidade de enquadramento histrico. Por outro lado, alm dos

    possveis estudantes, uma das vozes silenciadas pela armadura da edio a da

    personagem chamada Raul de Leoni. Em texto sem data definida, Marinetti. O homem

    do sculo XX, o autor teria dito que em essncia, o homem no passadista, nem

    futurista, um triste eternista, sempre adaptado ao presente, no seu destino de grande

    trgico da dor universal, a passar pela ironia das eternas esfinges. Ao questionrio que

    impunha o dilema, ou passadista ou modernista, o autor poderia ter respondido com um

    desconcertante nem modernista nem passadista. Mas para que seu ponto de vista seja

    considerado, ao invs de desqualificado como sintoma de descompasso com a realidade

    histrica, preciso primeiro desfazer a trama que uniu de maneira to densa realidade e

    conscincia (nacional).

    2. Realidade e conscincia (nacional). O sentido do modernismo.

    Em 1940, Rosrio Fusco publicou a verso mais prxima do que seria ento o

    discurso oficial sobre a literatura, o livro Poltica e Letras. Em pleno Estado Novo, o

    escritor que estreara anos antes como poeta nas trilhas do modernismo em Minas

    Gerais, seria ainda responsvel pela seo de histria literria da revista Cultura

    Poltica,8 ali participando por vezes tambm como porta-voz de Getlio Vargas, na

    seo O Pensamento do Chefe de Governo.

    Poltica e Letras era uma reviso da histria da literatura no Brasil, abrangendo

    do romantismo aos anos 1930. No livro, Rosrio Fusco retomava um tema que j se

    tornara lugar-comum no pensamento sobre o Brasil, o de que, ao menos at 1930, as

    idias produzidas no pas no tinham qualquer relao com a sua realidade. Segundo o

    autor, at a suposta revoluo liderada por Vargas, os intelectuais do pas viviam

    encantados com a mera aparncia dos discursos europeus, em estado de permanente

    iluso. Do ponto de vista poltico, isso surgia como um pendor para as utopias e para o

    liberalismo, para o desejo de construir a civilizao, mas num pas em que a populao

    seria incivilizada, degradada moral e etnicamente.

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    Segundo Rosrio Fusco, a literatura passava pelo mesmo tipo de defasagem. Os

    escritores, apenas percebendo a beleza superficial das palavras, atrados pela forma sem

    fundamento, sem perceber que a literatura deveria dizer algo sobre a realidade que a

    cercava. Ambas, literatura e poltica, no constituindo um enfrentamento com o real,

    mas sim uma sublimao.9 Ou seja: o autor atribua a um tipo de falha o carter ilusrio

    do texto literrio (quando, se pensarmos mais propriamente no conceito freudiano por

    ele usado, a sublimao seria o processo, por assim dizer, normal da criao artstica).

    De fato, aqui Rosrio Fusco no dizia qualquer novidade. Tristo de Athayde,

    por exemplo, j vinha afirmando desde a dcada de 1920 que a literatura brasileira era,

    ou tinha sido, incapaz de dar um sentido realidade nacional. Mas o prprio Rosrio

    Fusco estava entre aqueles que consideraram Tristo10 o crtico literrio por excelncia

    do Brasil de ento, aquele que definira o sentido essencial da literatura brasileira e

    estabelecera o norte para a interpretao do modernismo (entendido pelos dois autores

    como sntese e sintoma maior do que seria a prpria literatura brasileira moderna).

    Em texto fundamental, publicado na j citada coletnea Margem da histria

    da Repblica, Tristo de Athayde11 apresentou a seguinte tese: O erro da bomia

    literria depois de 1889, fugindo ao social e poltica; o sacrifcio de Raul Pompia;

    artificialismo de nossas correntes literrias; a reao de Euclides da Cunha. Seu

    pressuposto era o de que a situao literria da Amrica tinha como pano de fundo uma

    originalidade mal conquistada. O que se devia ao desencontro entre as expectativas

    europias com relao ao Novo Mundo e as necessidades deste. A Europa, em seu ponto

    de vista civilizao cansada e decadente (para este tema Tristo de Athayde sugeria a

    leitura de Spengler), procurava a vitalidade americana, fosse na rude natureza do sul ou

    na ingenuidade do norte. Mas as Amricas, afirmava o autor, precisavam de

    inteligncia. Da que o equvoco que ele dizia encontrar na nsia por imitao se

    revelasse numa nova forma: os americanos, ao se enxergarem com as lentes

    estabelecidas pela combalida civilizao europia, exaltavam seu primitivismo como

    fator cultural prprio. No ponto de vista de Tristo de Athayde, as Amricas precisavam

    tomar posse de si mesmas a partir de uma orientao consciente.

    O Brasil, no contexto americano, seria uma nacionalidade mal formada aliada ao

    acmulo de equvocos interpretativos. A realidade seria ento confusa, e a conscincia

    mera projeo fantasiosa. Depois de estabelecer tais parmetros, Tristo de Athayde

    passava para a sntese histrica, discutindo a Colnia e o transplante da Metrpole, o

    Imprio, como era de suposta consolidao nacional, mas marcada pelo artificialismo

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    social e pela Repblica, momento de desencontro fatal entre inteligncia e realidade.

    Alm do fato de esta sntese histrica no ser nada original naquele momento, interessa

    notar como a narrativa histrica de Tristo de Athayde criava um campo do possvel no

    qual a literatura iria depois ser encaixada. A escrita da histria no apenas era a

    descrio de um ambiente, mas normatizava a leitura dos textos literrios, ao propor

    como horizonte de interpretao um contexto que se propunha anterior a toda leitura.12

    Ainda segundo o autor, a gerao republicana teria percebido os males do

    artificialismo social (principalmente a partir de Canudos), mas teria proposto como

    soluo um novo artificialismo jurdico. Sintetizando, os intelectuais republicanos

    pretenderiam curar com fices os males que as fices tinham provocado. Em

    contraste com a verso histrica apresentada como a prpria realidade, ou profunda

    evoluo vital indicada pelos fatos e pela cronologia, teramos ento uma tradio

    intelectual apegada mentira. Mas, notava o autor, o esprito dos indivduos seria

    reflexo do esprito de seu povo. Sendo a nao mal delineada, suas artes apenas

    poderiam ser mero jogo e artificialismo. Assim, em oposio idia de realidade, o

    autor manejava conceitos como fico no seu sentido mais comum, de mentira,

    invencionice.

    O republicanismo poltico, na tese de Tristo de Athayde, veio acompanhado

    pelo naturalismo nas letras. Mais uma vez, propondo-se o jogo especular que o ttulo do

    artigo propunha, entre poltica e letras. Segundo o autor, o naturalismo fora apenas uma

    pretensa abolio do lirismo, em nome de uma verdade mentirosa. Em poesia, o

    equivalente do movimento republicano teria sido o parnasianismo, uma opo esttica,

    nesta perspectiva, ainda mais alienada, uma vez que nem sequer movida pela vontade de

    se encontrar a realidade. Mas, prosseguia o autor, a Repblica proclamada teria trazido

    grande mpeto libertador para as letras nacionais, da uma exploso de diversos projetos

    literrios individuais. Mas essa variedade no indicaria opulncia, e sim apatia e

    debilidade. O Brasil teria escritores pertencentes a todas as geraes, num indcio da

    inexistncia de um problema nacional que os conciliasse.

    Comparando a literatura republicana com a imperial, Tristo observava que o

    romantismo fora a primeira aspirao consciente de nossa unidade. Esta, a vantagem

    cultural do Imprio, num texto marcado pela idia de que a formao da conscincia

    nacional deveria ser a medida da esttica. A literatura republicana oscilaria entre a

    verdade local, provincial e o cosmopolitismo, sendo ainda sem Deus. Tristo de

    Athayde arrematava, expondo uma tese que faria poca na crtica literria brasileira do

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    sculo XX (sobretudo devido sua reformulao por Antonio Candido): se no se

    resolvesse a partir de um projeto nacional, a literatura republicana iria ficar presa no

    dilema entre regionalismo e cosmopolitismo. O primeiro, entendido como emanao do

    telurismo local, raiz, separava-se do segundo, a ideologia ou o esforo intelectual

    civilizado.

    Citando ainda como exemplo o caso de Machado de Assis e seu suposto

    absentesmo poltico, Tristo apresentava a imagem de uma defasagem antes de tudo

    poltica para a literatura feita no Brasil. A gerao seguinte a Machado teria se

    preocupado com temas sociais e polticos, mas se perdera na bomia. A dualidade

    apresentada como regionalismo e cosmopolitismo, ou realidade e conscincia, recebia

    assim outra configurao como trajetria de vida dos escritores. Alm do caso j citado

    da alienao, suposta, de Machado de Assis, Tristo de Athayde apresentava ainda,

    como figuras antagnicas, Eduardo Prado e Raul Pompia. Este, com todo seu esforo

    de compreenso da realidade, mal saa dos cenculos e dos cafs, por isso ignorado pela

    elite poltica. Raul Pompia, dizia o autor, sentia os erros da formao nacional, mas

    no sabia propor um diagnstico. Eduardo Prado, por sua vez, entendera o problema da

    iluso republicana, mas propusera solues idealistas. De um lado, uma encarnao de

    uma realidade cega para si mesma, de outro a lucidez paga com a moeda da alienao.

    Neste quadro, Canudos emergia como aviso tremendo, de uma realidade desgarrada

    ameaando a unidade nacional.

    Poltica e Letras foi publicado em 1924, e no incorporava os acontecimentos

    literrios dos anos 1920. Anos mais tarde, porm, Tristo de Athayde manteria o mesmo

    tipo de enquadramento para a avaliao crtica daquela dcada. Assim, em texto

    publicado em 1930, em que o crtico analisava as poesias de Augusto Frederico Schmidt

    e Augusto Meyer,13 ele propunha uma nova sntese histrica, apresentando a imagem de

    um marasmo cultural que teria perdurado at 1918, seguido pela libertao de 1923,

    propiciada pela Semana de Arte Moderna, e concludo em 1928 como ano de definio

    de um novo esprito no modernismo.

    As idias gerais voltam a interessar. O universal preocupa mais do que local. O social mais do que o esttico. A procura pela procura comea a fatigar. E o fruto dos abridores de picadas tende a amadurecer. Ter passado o instante dos vanguardistas? Conquistadas as primeiras posies, no ter chegado o momento da consolidao? Quebrados os preconceitos no se iniciar agora a justificao de novos conceitos? Passadas as pesquisas, as intenes, as teorias, as demolies, no ir comear agora o trabalho da seleo entre as palavras e as obras? O inconsciente criador s se pe em movimento, depois de longo esforo de conscincia.14

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    A Semana de Arte Moderna era ento descrita como momento propcio

    retomada da procura consciente pela realidade nacional. Depois da franca alienao, do

    tatear errtico de escritores presos aos seus projetos individuais, a expresso de um

    querer coletivo rumo apropriao da totalidade da nao. O resultado teria sido ainda

    uma srie de projetos diferentes, mas todos unidos pela necessidade de pesquisa

    consciente da realidade. Mais do queles projetos, o termo modernismo no significado

    estabelecido por Tristo de Athayde correspondia dita necessidade. Este passo

    importante, porque como se tornaria comum na historiografia do modernismo o termo

    era usado para domar a pluralidade de projetos esttico-polticos dos anos 1920. Mas,

    prosseguia Tristo, em 1928 a procura consciente se tornara to vital a ponto de se

    confundir com as dimenses inconscientes do corpo da nao. O modernismo tomava

    um novo rumo, ao ser pensado como o prprio instinto nacional expresso esteticamente.

    Aqui, era como se a inteligncia e a realidade tivessem se tornado to ntimas a ponto de

    se tornarem uma coisa nica.15

    Se um livro em particular foi apresentado por Tristo de Athayde como

    concretizao desta realidade incorporada pelo discurso ficcional, este foi A Bagaceira,

    de Jos Amrico de Almeida16 que mais tarde seria canonizado como marco histrico

    de ecloso do novo regionalismo consolidado aps a Revoluo de 1930.

    Quanto possvel exprimir o horror da realidade, esse romance o exprimiu de uma maneira impressionante. H, portanto, nesse livro a sntese em que eu vejo o que j pode haver de realmente nosso, de realmente novo em nossa arte literria: a inteligncia e o instinto, a natureza brbara da terra e dos homens do interior da terra, e a natureza civilizada requintada do esprito que vai transformando essa terra, que se vai fundindo com ela e transfigurando-a para uma unidade futura.17

    A sntese histrica aqui apresentada surgiu de vrias formas nas crticas de

    Tristo. Mas a mais impressionante, por jogar com imagens que expressaram de modo

    inequvoco que a conscincia esttica delineada pelo autor era mais uma arma na

    estratgia de interveno no campo do poder propriamente dito do que a projeo de um

    desejo de conhecimento, a que ele inventou para tratar das obras de Mrio de Andrade

    e Antnio de Alcntara Machado.18 No texto, o crtico falou que a realidade tinha sido

    apropriada pela nao, recorrendo imagem de um movimento em forma de grandes

    crculos concntricos.

    Os trs crculos desta tomada de posse seriam o americanismo, o brasileirismo e

    o regionalismo. O primeiro teria emergido com a simples noo do continente

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    americano, do novo hemisfrio, sua flora, sua fauna, seus indgenas. O brasileirismo,

    por sua vez, surgira como a conscincia da nao incipiente, querendo (a nao)

    emancipar-se intelectualmente, como o fizera politicamente, e criando com isso o

    romance brasileiro, o poema brasileiro. E teramos finalmente a insero na realidade

    local e, portanto, no realismo regional, na expresso da fala provinciana, do tipo

    sertanejo, do meio acanhado em sua originalidade delimitada geograficamente.

    O movimento circular era ento movido por uma finalidade, e no mero

    conjunto de acidentes histricos. A circularidade implicava ainda a idia de um

    movimento racional, ordenado, no catico. Em meio a esta rede metafrica, um lugar-

    comum, que hoje causa perplexidade, aparecia de modo quase natural. A nao recebia

    atributos de um sujeito, com todas as dimenses implicadas na psicologia aqui

    pressuposta por Tristo de Athayde. Um corpo, movido por desejos e marcado por seu

    desenho fisiolgico, habitado por um dom espiritual, capaz de escolher seu destino,

    dotado de vontade. A conscincia como resultante de um processo em que o sujeito-

    nao tomava posse de si mesmo, ou seja, passava a viver e pensar com uma

    personalidade.

    Mas no ficava nisso a metfora apresentada por Tristo. O autor mesmo

    indicaria que o movimento circular era feito por um ser ativo, vivo, recorrendo figura

    de um grande pssaro que procurava ou a sua presa ou o seu pouso, e que vinha

    descendo em crculos cada vez mais estreitos, numa espiral que acabava tocando a terra.

    Mas nada como as palavras do autor para explicitar os significados aqui discutidos.

    Pois bem, o que a nova gerao est criando, na mais original talvez de suas correntes, mais um passo adiante. como se o pssaro, depois de feito o ninho, comeasse a explorar a terra, a se alimentar dela, a beber de suas guas, a viver nela e no mais sobre ela. Depois da insero a apropriao: e, portanto, mais um passo adiante do regionalismo. Depois da necessidade consciente de uma alma nova, a prpria inconscincia da nova alma: e, portanto, duas etapas mais, para alm do brasileirismo. E nisso est, a meu ver, a grande fora do novo movimento. O que realmente lhe prprio. E representa um elo de evoluo irresistvel. Cada um segue a sua frmula individual, naturalmente. No creio, de modo nenhum, que seja o meio que faa o artista. Mas h um elemento de vitalidade subconsciente, aquilo que Butler chamava a memria da raa, e que cria as razes do esprito na terra e que distingue justamente o que simples arbtrio subjetivo do que necessidade orgnica tambm. E o que se nota nestes dois livros, como em toda essa face do movimento moderno, que o que era desejado e local, est passando a ser instintivo e nacional.

    O que importa, no mbito deste artigo, perceber que a noo de realidade

    aplicada literatura por crticos como Rosrio Fusco e Tristo de Atahyde tinha

    ressonncia num vocabulrio mais abrangente, uma vez que a noo de real,

    necessariamente, tinha conotaes sociais e polticas. A literatura seria ento apenas

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    uma faceta de uma sociedade incapaz de dizer o seu real, ao menos at 1922, 1928 ou

    1930. Incapacidade tratada numa leitura de cunho tambm psicologizante e ao mesmo

    tempo metafsico, no sentido de que a realidade no seria percebida devido suposta

    ausncia de conscincia nacional. O termo conscincia duplamente carregado,

    oscilando entre a filosofia da histria de tipo hegeliano em que a conscincia

    corresponderia marcha do esprito humano rumo ao autoconhecimento, e psicologia

    que se apresentava como cincia capaz de descobrir os modos como um corpo tomava

    posse de sua prpria existncia. Da o recurso a termos como sublimao, alienao etc.

    O que ainda indica que a concepo de realidade destes autores no passava ao largo de

    discusses sobre o estatuto da subjetividade. Os dois escritores afirmavam-se como no

    materialistas, contrrios reproduo mecnica e artificial dos dados do real,

    inscrevendo a esttica no ponto de encontro entre espiritualidade e mundo concreto.

    Rosrio Fusco, porm, traria mais uma contribuio ao debate, aps dizer mais

    uma vez que em 1922 um movimento iniciara a tarefa da desalienao nacional,

    embora, em seu ponto de vista, em atitude excessivamente iconoclasta. O fato que, de

    acordo com Rosrio Fusco, a revoluo modernista trouxera baila a necessidade de

    que a literatura brasileira se abrisse para as demandas do real. Ainda segundo o autor,

    tais demandas ganhariam contornos ntidos, num processo de conscientizao nacional,

    a partir da revoluo poltica de 1930. Isso se deveria principalmente monstruosa

    genialidade Vargas, que teria dado voz plena aos desejos populares antes apenas

    instintivos, dispersos, inconscientes. Com a ao de Vargas, o primeiro modernismo

    libertador fora substitudo por outro.

    A revoluo poltica assinalou, portanto, uma trgua na revoluo literria. Normalizada a situao do pas, verificou-se nas letras uma espcie de balano correspondente quele que a revoluo impusera sociedade e s instituies nacionais. E a depurao se fez, nas letras como na poltica, corrigindo os erros cometidos nos primeiros momentos em nome do entusiasmo da vitria obtida. Verificou-se que era preciso moderar a fria inicial, durante tanto tempo sustentada contra tudo e contra todos. De outra, constatou-se que o caminho a percorrer era diverso e no aquele que vnhamos trilhando, com tanta pressa, sem atentarmos, convenientemente, para as pedras que havia no caminho. E comeamos um segundo modernismo, mais espontneo do que o primeiro, valendo-nos das lies que a experincia dele nos deixara.19

    Efeito da ao estatal, que criara condies materiais para a viso adequada da

    realidade nacional, o modernismo em sua segunda fase se tornara menos destruidor,

    mais construtivo. A idia antes esboada por Tristo de Athayde de um modernismo

    instintivo depois de 1928, tornado corpo e conscincia da nao, era diretamente

  • DANIEL FARIA

    Histria, So Paulo, v. 26, n. 2, p. 385-405, 2007 395

    associada ao Estado em Rosrio Fusco. Da, segundo o autor, o fato de a potica dos

    anos 1930 no se pautar por escolas ou movimentos, sendo a prpria expresso da

    realidade, como o j citado romance de Jos Amrico de Almeida. Ainda segundo

    Rosrio Fusco, o Estado garantia a cada autor, individualmente, a livre expresso de sua

    sensibilidade, alm de sustentar a possibilidade da observao direta da realidade, sem

    as iluses que teriam marcado o romantismo, as utopias e o liberalismo. Mas a inflexo

    entre a verso estadonovista de Rosrio Fusco e a de Tristo de Athayde, no deve ser

    pensada como politizao. E isso porque o mesmo Tristo estabelecera os pilares para

    a leitura do modernismo como sntese esttico-poltica da nao.

    De acordo com Rosrio Fusco, os escritores dos anos 1930 no teriam opes

    literrio-partidrias porque sua escola era a prpria realidade. Aliado a isso, o condutor

    das massas Getlio Vargas, futuro membro da Academia Brasileira de Letras, dava aos

    intelectuais o mais efetivo apoio no sentido profissional. Prova disso, ainda segundo

    Fusco, era a exploso do mercado editorial, com a emergncia das grandes editoras.20

    Dado que ele confirmaria ao apresentar uma imensa lista dos escritores dos anos 1930,

    todos unidos sob a gide do real nacional tornado consciente pela ao estatal: Jorge

    Amado, Graciliano Ramos, Jos Lins do Rego, Afonso Arinos, Hlio Viana, Cassiano

    Ricardo, Mrio de Andrade, Josu de Castro, o prprio Getlio Vargas, entre outros.

    Mais do que qualquer outro exemplo, esta lista de autores com projetos heterogneos, e

    mesmo incompatveis, deixa claro o potencial reducionismo contido no termo

    modernismo, visto sob o prisma das relaes entre realidade e conscincia nacional.

    A evidncia da maturidade definitiva da dita conscincia nacional era, segundo

    Fusco, a proliferao de livros, de discursos, enfim: a produtividade cultural do Estado

    liderado por Vargas. Produtividade inegvel, a histria da poltica cultural varguista j

    bastante estudada pela historiografia. Mas se pensarmos que o que se produzia era a

    verso avassaladora de uma realidade poltica a partir da juno de propostas de cunho

    pedaggico com a propaganda estatal, alm do recurso ao terror como instrumento de

    negao da pluralidade,21 concluiremos que os termos apresentados por Fusco tm sua

    razo de ser. Mas devem ser lidos ao avesso. No que o Estado fosse a encarnao da

    conscincia que tomava posse da realidade nacional, mas, ao contrrio, que as aes

    estatais visassem ao controle da realidade a partir do estabelecimento da conscincia

    nacional como horizonte ltimo do que podia ser considerado razovel nos discursos.

    O segundo modernismo era ento descrito como a ecloso da realidade nacional

    na literatura graas permisso governamental, ao ambiente de liberdade e segurana

  • REALIDADE E CONSCINCIA NACIONAL

    Histria, So Paulo, v. 26, n. 2, p. 385-405, 2007 396

    reinante no pas de 1930. Por isso, num momento de reconciliao do pensamento com

    a vida, o realismo teria se tornado lema poltico e literrio. Como complemento

    propalada viso realista de Vargas22 sobre as coisas do Brasil, a realidade se

    descortinava para os discursos literrios. Esta relao foi explicitada pelo prprio

    Rosrio Fusco em outros textos, como A Cultura e a Vida, na seo de Cultura

    Poltica dedicada ao pensamento do chefe de governo.23

    No artigo, o crtico amparou sua proposta numa posio filosfica que

    determinava o real como sendo o histrico, o tempo dos acontecimentos, mas no no

    sentido de eventos que revelassem a espontaneidade da ao humana, mas como

    irrupo de foras instintivas e desejos presentes numa sociedade, como processo. Mas,

    ainda segundo o autor, a cultura no necessariamente daria um sentido a tais aspiraes

    inconscientes o caso do Brasil demonstraria a possibilidade contrria, de um total

    divrcio entre a realidade e o significado dos discursos. Ou seja: a cultura poderia se

    tornar meramente parasitria, no funcionando como conscincia social ou nacional.

    Neste horizonte, a ao revolucionria de Vargas trouxera como novidade a unio entre

    o homem da cultura e o homem real.

    Na tessitura narrativa de Rosrio Fusco teramos ento uma histria de torpor e

    inconscincia, seguida pelo choque liberador do modernismo, complementado no

    sentido da conscientizao da realidade pela obra de Getlio Vargas. No mesmo texto, o

    crtico literrio deixou bem claro qual o fundamento mais concreto da emergncia do

    real: a autntica garantia de nossa segurana. A conscincia, fruto da observao e da

    atribuio correta de significados para a experincia, seria incompatvel com o caos, a

    desordem ou o medo. E aqui se observe que a psicologizao caminhava novamente no

    sentido do postulado da equivalncia entre o indivduo e a coletividade. Os mesmos

    termos aplicados biografia pessoal serviam para a histria da nao. Como uma

    pessoa, uma nao precisaria de tranqilidade para se tornar madura, autoconsciente.

    A maturidade da nao viera com a apario de uma cultura que funcionava

    como sua conscincia, esta elaborada pela coletividade dos intelectuais. De acordo com

    um dos vrios editoriais de Cultura Poltica, demonstrao disso era a colaborao

    espontnea de escritores das mais diversas opinies polticas nas pginas da revista. O

    ambiente de segurana e ordem trazido por Vargas fizera com que os escritores se

    sentissem participantes da aventura de total desvelamento da realidade antes recalcada.

    Nas palavras da revista, a poltica tinha posto o homem da inteligncia no seu devido

    lugar.24

  • DANIEL FARIA

    Histria, So Paulo, v. 26, n. 2, p. 385-405, 2007 397

    Hoje, felizmente, de tal modo o trabalhador intelectual se ajusta s diretrizes da nova ordem poltica do Brasil, que o que faz, o que projeta ou o que, realmente, realiza, sempre um prolongamento da vontade do Estado, porque a vontade do Estado a vontade do povo.25

    A cultura era portanto pensada como conscincia no sentido de

    autoconhecimento da fora social e cincia de suas possibilidades. A exata

    observao da realidade, sem mediaes fictcias, dava nao a posse de si mesma,

    numa expresso comum ao vocabulrio poltico da poca. Ou seja: saber o real tinha o

    efeito de controle sobre o destino, soberania poltica, e neste sentido liberdade ao

    menos num discurso que equacionava liberdade a conhecimento. Mais tarde, Rosrio

    Fusco diria que, dadas tais premissas, o lder poltico era um profeta de realidades,26

    algum que sabia sentir os desejos latentes das massas e lhes dava uma forma visvel

    mediante a determinao da ordem social. Por outro lado, que outra coisa faria um

    escritor, consciente de seu dever? Da que, numa frase talvez crua, mas certamente

    impactante, de outro editorial da revista: Ningum obrigado a escrever, mas todos

    escrevem.27 Assim, a realidade se convertia em tema obrigatrio. Mas claro: tratava-

    se do real apresentado pela conscincia nacional-estatal, e no de uma realidade que

    pudesse fugir ao controle.

    A elaborao do significado da realidade para a conscincia sempre trazia um

    perigo. A prpria dificuldade em se estabelecer uma distino clara entre o que seria ou

    no de acordo com a realidade da nao possibilitava o surgimento de interpretaes

    conflitantes. Nas palavras de Rosrio Fusco:

    O trao fundamental de tudo que existe a particularidade de um destino especial para cada ser. Por isso, a cada modo de existncia corresponde um modo de vida. Mas somente ao homem cabe, no concerto das criaturas, a faculdade de assistir ao seu prprio destino. Eis porque s o homem possui problemas, s o homem reconhece o tempo, s homem trai.28

    O perigo para a conscincia e sua realidade conquistada era a prpria

    espontaneidade do discurso e da ao poltica. Talvez por isso nos textos de Cultura

    Poltica, bem como em outros discursos de uma poca em que o realismo se tornou

    verdadeira obsesso, a palavra realidade raramente vinha sem a companhia de algum

    qualificativo. Fosse social, nacional ou histrica, a realidade no era tratada apenas

    como a presena nua das coisas, ou como os eventos imprevisveis da ao. Social, a

    realidade era aquela que obedecia a uma lgica desvendada pela cincia (alis, num

    lapso bastante sugestivo, Azevedo Amaral, outro idelogo do regime estadonovista,

  • REALIDADE E CONSCINCIA NACIONAL

    Histria, So Paulo, v. 26, n. 2, p. 385-405, 2007 398

    falara em realidade sociolgica). Histrica, estava presa nas teias de uma filosofia

    evolucionista, que acreditava num processo hegeliano de conscientizao. Nacional,

    fundava-se nos lugares-comuns sobre a nao, como sua suposta mistura de raas ou

    sua natureza tropical. Tudo convergindo para uma realidade j construda de antemo

    por algum logos que a literatura se limitaria a mimetizar.

    A realidade no era apenas aquilo que o Estado tornara visvel, era aquilo que o

    Estado deixava ver. O imperativo, implcito nas falas de Fusco: fale qualquer coisa, mas

    fale sobre a realidade, no era o mesmo que simplesmente: fale qualquer coisa. E era

    por meio desse mecanismo que essa mesma realidade, constituda por um logos

    consciente e soberano, fazia o milagre do congraamento entre Graciliano Ramos e

    Plnio Salgado, Jorge Amado e Cassiano Ricardo, Jos Lins do Rego e Oswald de

    Andrade. Afinal, na segunda fase do modernismo teramos apenas diferentes verses

    sobre a mesma realidade, depois que esta foi posta a pblico pela iconoclastia de 1922 e

    pelo bom senso dos anos 1930... Com todas as diferenas e singularidades, todos os

    escritores se encontrariam nesta ltima fonte de sentido: a realidade nacional. queles

    que, por alguma razo, no pudessem ter seu discurso recoberto por esta rede conceitual

    estava reservado o espao da alienao.

    Leve-se em considerao, ainda, que a crtica de Rosrio Fusco no estabelecia

    parmetros claros para a criao literria, mas visava a formao de um tipo de leitor. A

    questo no era tanto a de se imporem normas para a escrita (em casos extremos, a

    censura estava em ao, mas muitos relatos da poca sugerem que os escritores

    desfrutavam de certa liberdade de criao...), quanto ensinar a ler. Ler, no caso, seria

    procurar em romances ou poesias a parcela de realidade que lhes coubesse. Assim, no

    era preciso proibir a circulao dos livros de um autor como Graciliano Ramos, bastava

    ensinar ao leitor que eles discutiam uma realidade social degradada pelo atraso ou pelas

    intempries naturais. Num horizonte de leitura assim dirigido, falar sobre a misria

    social do serto no constitua uma ameaa, uma vez que teria sido o prprio Estado

    quem comeara a descer aos pores da realidade nacional. Ou, discutindo os desmandos

    de coronis, o mesmo Graciliano Ramos poderia estar apenas descrevendo um

    problema histrico do Brasil, o das oligarquias em fase de superao. Ou Dyonlio

    Machado, em O louco do Cati, tratando romanescamente de um caso j previsto pela

    criminologia.

    A realidade cultural dos anos 1920 a 1940 foi inventada para ocultar os

    conflitos da poltica, seu radical e constitutivo desentendimento. Quanto a ns, leitores

  • DANIEL FARIA

    Histria, So Paulo, v. 26, n. 2, p. 385-405, 2007 399

    educados na idia de que 1922 e 1930 so datas fundadoras da literatura nacional, ou na

    tese de que todos os escritores daqueles anos eram modernistas, de primeira ou segunda

    fase, apenas nos damos conta de que algo ficou fora do real quando nos lembramos de

    que a segurana garantida pela revoluo (ou golpe, a relao entre termos e referentes

    em poltica nunca estvel...) foi obtida pela perpetrao do terror estatal. A ordem

    social, confundida com a prpria realidade a ser representada nos textos literrios, era

    constantemente forjada pelo policiamento da poltica, pelo recurso violncia como

    argumento inescapvel do Estado. Ou, numa via mais pacfica, pelos instrumentos

    pedaggicos eleitos para a consecuo da ordem social (entre os quais, estava a

    literatura...).

    O terror no a tentativa de destruio de tudo aquilo que foge ao controle dos

    profetas da realidade? Uma forma de limitar o real aos imperativos do possvel, este

    decidido pela cincia e pela voz genial do chefe de governo? Por outro lado, o real do

    terror no pode ser mais semelhante ao mundo alucinado que ns encontramos no poro

    do Navio Manaus? Seu narrador no pode aparecer como um tipo de conscincia

    dilacerada, alienada? Pode ser denominado como realidade um mundo que perdeu seu

    logos?

    3. Verses em conflito: idias de conscincia nos anos 1930

    Uma das caractersticas da vida intelectual dos anos 1930 e 1940 a centralidade

    do discurso psicolgico. Mrio de Andrade,29 Tristo de Athayde, Rosrio Fusco,

    Cassiano Ricardo, Francisco Campos, entre outros, definiam a psicologia como chave

    de interpretao para a sociedade, a cultura, a poltica. Tristo de Athayde, por exemplo,

    afirmara em texto analisado na seo anterior deste artigo, que esttica e psicologia

    estavam no mesmo plano de conhecimento, no sentido de que ambas procuravam

    expressar e compreender a verdade constitutiva da subjetividade.

    No foi mera coincidncia, portanto, o fato de o maior sucesso editorial de

    Tristo de Athayde nos anos 1930 ter sido um tratado de psicologia, Idade, Sexo e

    Tempo.30 Livro que apresentava os trs temas indicados no ttulo como se eles

    configurassem, em conjunto, uma tipologia da personalidade normal. Na parte sobre a

    questo da idade, da infncia velhice, cada perodo da vida se delimitaria por suas

    paixes especficas, sua razo de ser, sua funcionalidade na constituio da pessoa. A

    discusso sobre o sexo apresentava-se como a j tradicional distribuio das tarefas de

  • REALIDADE E CONSCINCIA NACIONAL

    Histria, So Paulo, v. 26, n. 2, p. 385-405, 2007 400

    homens e mulheres, supostamente adaptadas s verdades profundas de cada gnero. Na

    parte sobre o tempo, o autor apresentou a personalidade dividida em duas diretrizes, a

    modernidade, no sentido do contingencial e atual, e a eternidade, a dimenso humana de

    criatura em busca da Salvao.

    O autor chamou a ateno para o fato de seu personagem corresponder mais a

    um tipo psicolgico genrico do que a encarnaes singulares de pessoas. Mas o tempo

    todo, este mesmo tipo genrico funcionava em seu discurso como medida de

    normalidade, afastar-se dele seria se distanciar da verdade psicolgica da natureza

    humana. Mais especificamente no que concerne ao tema deste artigo, o sol da

    conscincia31 estaria j plenamente formado na mocidade (fase que duraria entre os 18

    e os 35 anos de idade), mas ainda num embate com as paixes, a fora mxima da

    vitalidade instintiva e jovem. Desse embate, nasceria a maturidade como fase de

    reconhecimento definitivo dos limites do real, de abandono dos delrios romnticos da

    juventude. Maturidade que seria, segundo o autor, perodo realista por excelncia, em

    dois sentidos: no do conhecimento sensato do mundo e no da projeo racional de obras

    (fossem polticas, culturais ou sociais) que se destinariam a fazer do mesmo a morada

    adequada natureza humana. Politicamente, a mocidade se devotaria agitao, aos

    devaneios revolucionrios, afirmao confiante das verdades absolutas, ao passo que a

    maturidade seria o momento de conformao ao real.

    O quadro da normalidade desenhado por Tristo, porm, no vinha sem uma

    crtica ao mundo moderno, e, por conseguinte, ao Brasil contemporneo. Esta se

    consubstanciava na afirmao de que a modernidade elegera o novo como valor

    absoluto, construindo o culto mocidade como expresso de vida no mundanismo ateu

    (uma vez que a juventude seria a idade, por natureza, vitalista). Ou seja: o realismo da

    maturidade perdia seu poder de fecundar o mundo com criaes objetivas no mundo

    moderno, degenerando-se em desiluso cnica, comodismo, aps a fase dos

    desregramentos juvenis. A vida, aqui ocupando o mesmo espao semntico da idia de

    realidade, mais uma vez se divorciava da conscincia, com a deturpao das idades

    naturais do homem na catica vida moderna. Assim, mais que um retrato da psicologia

    humana normal, o livro de Tristo de Athayde visava interveno num mundo cultural

    e poltico que, segundo o autor, perdera os alicerces.

    A verdade psicolgica do realismo, portanto, colidia com a imagem de uma

    poca de crise. Certamente, nos parmetros do discurso do autor, era ento necessria a

    montagem de estratgias de formao adequada da personalidade para a soluo dos

  • DANIEL FARIA

    Histria, So Paulo, v. 26, n. 2, p. 385-405, 2007 401

    dilemas polticos do seu tempo. E, vale lembrar, este seria o territrio da esttica e da

    psicologia, ambas portanto situadas num sentido pedaggico de conscientizao.

    Pedagogia presente na prpria tessitura da narrativa de Tristo de Athayde, resposta aos

    males do mundo que residia num tipo de texto que poderamos indicar, no fosse o

    anacronismo, como de auto-ajuda.32

    Era a partir de um aparato conceitual como o presente em Idade, Sexo e Tempo,

    por exemplo, que Rosrio Fusco e Tristo de Athayde formularam imagens para os

    encontros e desencontros entre realidade e conscincia, visando o estabelecimento de

    um sentido poltico e social para a literatura produzida no Brasil. Mas os autores no

    propuseram os termos como conceitos claramente delimitados, definidos teoricamente.

    Exemplo mais evidente de tentativa de definio foi o glossrio apresentado em obra de

    Almir de Andrade, cuja apresentao aqui se faz necessria,33 porque ali mais

    claramente se estabeleceu o que se esperava que fosse compreendido quando outro

    algum se deparasse com estes termos. Mas, alm disso, por propor uma verso

    sinttica em total consonncia com as concepes presentes nos textos de crtica

    literria e psicologia de Tristo de Athayde e de Rosrio Fusco. Recorde-se que Almir

    de Andrade era diretor da revista Cultura Poltica, e que portanto estamos diante de

    autores que participavam de um dilogo bastante intenso.

    Real Aquilo que o que , independentemente de qualquer conhecimento: precisamente aquilo que todo conhecimento se destina a alcanar. Realidade Qualidade do que real. Conjunto de tudo o que real. Certeza Acomodao natural da inteligncia a uma verdade que j conquistou. Conscincia Forma de atividade psquica que traduz uma faculdade de representar o mundo sensvel nos seus estados e nos seus movimentos. Normal Normal, para ns, sempre um princpio de ordem e equilbrio. Uma coisa ou um fato normal, no por ser comum ou prprio da maioria, mas, tosomente, por ser conforme s leis que o regem, estar perfeitamente adaptado sua prpria natureza.

    Ou seja, o real seria o dado, aquilo que preexistiria a toda formulao. A

    conscincia, conjunto de representaes que teriam a finalidade de tornar esse mesmo

    real passvel de ao e controle humanos. A normalidade no seria o comportamento

    comum, mas sim a adequao verdade inscrita na natureza. A circularidade por

    demais evidente, uma vez que no haveria conhecimento fora da dita conscincia, e, ao

    mesmo tempo, a conformao realidade seria a medida do sucesso ou fracasso de

    determinado aparelho psquico. A eficcia social comprovaria a verdade da conscincia,

    e esta se mediria pelo sucesso na adaptao realidade. Neste caso, esttica e psicologia

    reafirmavam certezas polticas. Menos do que de realidade e conscincia, tratava-se do

  • REALIDADE E CONSCINCIA NACIONAL

    Histria, So Paulo, v. 26, n. 2, p. 385-405, 2007 402

    estabelecimento de significados que recobrissem as incertezas do mundo poltico com a

    solidez aparente de um real submetido lgica discursiva do conhecimento. O

    modernismo, juntamente com o projeto poltico liderado por Getlio Vargas, seria ento

    o momento privilegiado de autoconhecimento nacional. Fora do modernismo,

    estaramos fora da autoconscincia, imersos na alienao. Da que a narrativa

    modernista distendesse o passado e o futuro, homogeneizando-os.

    Dito isso, este artigo poderia ser considerado concludo. Porm, uma ltima

    incurso se faz necessria. Isso porque muito comum em histria das idias o uso da

    imagem do contexto social e poltico como uma fora determinante para a interpretao

    da relao entre os discursos e as experincias de um perodo. Assim, por exemplo,

    dadas as flagrantes coincidncias entre o que os autores at aqui discutidos afirmaram,

    compondo-se uma rede conceitual mais ou menos fechada, poderamos dizer que eles

    ento apenas diziam o que era possvel ser dito na sua poca. O problema que outras

    conceitualizaes para as relaes entre realidade e conscincia estavam disponveis no

    perodo. Portanto, mais do que suposta imposio de um vocabulrio de poca, estamos

    diante de escolhas.

    Um encontro mais ou menos casual com o quase esquecido livro de Flavio de

    Carvalho34 a fonte mais direta deste questionamento final. Mas mais do que

    constatao metodolgica, ou suposta teorizao mais adequada, o texto de Flvio de

    Carvalho sobretudo alegria para aqueles que ainda persistem no desafio de pensar a

    liberdade quando encontram, como Hannah Arendt certa vez sugeriu, uma personagem

    que, em ambiente de marcado conformismo, apresenta a face da singularidade e da

    espontaneidade. Isso por si s desafia aqueles que insistiram em limitar o real

    coerncia pressuposta no possvel mais pela diferena propriamente dita do que por

    um contedo mais afinado com as expectativas tericas do historiador.

    Trata-se de Experincia N. 2. Uma possvel teoria e uma experincia, de 1931,

    livro inusitado sob vrios aspectos. Nele, o autor relata e interpreta uma experincia por

    ele feita num dia de Corpus-Christi, quando desafiou uma procisso ao andar em

    sentido contrrio a ela, munido de seu espalhafatoso bon verde, no intuito de palpar

    psiquicamente a emoo tempestuosa da alma coletiva. Emoo tempestuosa que

    redundou num quase-linchamento, noticiado como pequeno escndalo nas pginas do

    Estado de S. Paulo.

    Essa experincia, por si s inslita, teve ainda complemento numa teoria para as

    relaes entre conscincia e esttica. Seguindo os passos de Freud, mais

  • DANIEL FARIA

    Histria, So Paulo, v. 26, n. 2, p. 385-405, 2007 403

    especificamente de Totem e Tabu, Flvio de Carvalho trataria a conscincia, individual

    e coletiva (esta forjada nos ajuntamentos militares, nas procisses, nas ptrias), sob o

    prisma do parmetro da astcia. Ser astucioso seria uma estratgia de sobrevivncia,

    mas no no sentido passivo de adaptao realidade dada, e sim no da tentativa de

    apropriao do mundo pelo complexo de onipotncia que fundaria toda subjetividade.

    Num sentido bastante preciso, portanto, a conscincia era, segundo Flvio de Carvalho,

    um instrumento de conquista. A realidade, efeito de um conflito que tambm resultava

    na associao de personalidades num corpo poltico autoritrio, movido pelo mesmo

    complexo de onipotncia. Ao enfrentarem suas limitaes e fraquezas inevitveis, as

    pessoas acabariam se acomodando em torno de objetos-fetiche que dariam a elas a

    iluso apaziguadora do real como dado.

    O livro tem ainda muitas questes que no cabem nos objetivos deste artigo. Por

    exemplo, compartilha com os outros autores discutidos uma constante depreciao do

    feminino como trao prprio do engodo, da seduo apenas com o leve desvio no

    sentido de dizer que a virilidade do lder, do santo, do professor, do diplomata, tambm

    recorre aos mesmos artifcios afeminados. E, o que ainda mais relevante, est no

    mesmo terreno psicologizante dos outros livros. Mas sua noo de conscincia tende a

    corroer a imagem do sujeito capaz de dizer o real. Por outro lado, o prprio narrador se

    lanou de corpo e alma na experincia, e o que ele afirmou sobre a procisso tambm

    valia para si mesmo. O rebaixamento da conscincia na hierarquia da economia psquica

    correspondia assim relao de reciprocidade entre escritor e multides, diferentemente

    do modernismo que pressupunha uma relao hierrquica entre escritores e sociedade.

    Ou, como diria Flvio de Carvalho, o processo de totemizao tornaria simtrico aquilo

    que a conscincia pretenderia deixar estabelecido como relao unilateral entre o

    poderoso sujeito consciente de si e a multido de irracionais.

    O contato com o mundo objetivo reaviva no sujeito uma srie de associaes, de ideais; ele se lembra do j vivido que de um certo modo, numa certa ordem, a sua teoria sobre a vida. E ele maneja o mundo objetivo de acordo com essa teoria, perpetuando a rotina. A teoria imposta ao sujeito pelo mundo objetivo, como condio de vida, e as suas associaes so produzidas por autodefesa, para manter a iluso de sua virilidade e evitar uma depreciao que resultaria, caso ele abandonasse a rotina. Repetindo a teoria ele se integra agradavelmente no ambiente estandartizado, acolhido pelo inimigo como um igual pronto a ser devorado, e segue cordialmente o passo de reza da vida. A teoria que ele ostenta em defesa prpria a sua conscincia, em funo de um aglomerado heterogneo de homens. Ela s pode sobreviver pela estandartizao e pela afinidade geral para com ele. A base de toda a conscincia a defesa prpria. Colocar-se em segurana, tem aceitao geral, e todas as vezes que pensamos minha conscincia me diz que devo fazer isto... para nos colocar em segurana com relao rotina, no perder o prestgio de nossa personalidade, num movimento de astcia para nos garantir no futuro.35

  • REALIDADE E CONSCINCIA NACIONAL

    Histria, So Paulo, v. 26, n. 2, p. 385-405, 2007 404

    FARIA, Daniel. Reality and national conscience. The political meaning of modernism. Histria, So Paulo, v. 26, n. 2, p. 384-404, 2007.

    Abstract: This article has as thematic starting point a remark on a recurrent subject in the culture history of the First Republic: the supposed alienation of the intellectual elite. This image has had as counterpoint the concept of modernism, formulated by intellectuals as Tristo de Athayde and Rosrio Fusco, which was based on the idea of a conscience that emerged from national reality. The parallelism of this speech with arguments used to give revolutionary legitimacy to the 1930s blow, however, discloses that the elaborated terms, at first sight aiming at a cultural project creation, were simultaneously an expression of political desires.

    Keywords: modernism; realism; politics.

    Artigo recebido em 07/2007. Aprovado em 08/2007.

    NOTAS:

    Ps-doutorando em Histria, pela Unicamp. Este artigo faz parte de projeto financiado pela Fapesp. 1 DEDECCA, Edgar. 1930: O Silncio dos vencidos. So Paulo: Brasiliense, 1981. VESENTINI, Carlos Alberto. A teia do fato. Uma proposta de estudo sobre a memria histrica. So Paulo: Hucitec, 1997. 2 Destaque-se que a abrangncia do trabalho maior, uma vez que diz respeito aos lugares-comuns encontrados na interpretao da suposta realidade nacional (BRESCIANI, Maria Stella Martins. Ocharme da cincia e a seduo da objetividade: Oliveira Vianna entre intrpretes do Brasil. So Paulo: Editora da Unesp, 2005). Noutra perspectiva, Elizabeth Cancelli fez questionamentos instigantes e incisivos s verses predominantes sobre a relao entre idias e poltica na Primeira Repblica. Cf. Acultura do crime e da lei. Braslia: EdUnB, 2001. 3 Estes autores so citados apenas para indicar a recorrncia do tema, no se faz aqui uma apreciao dos trabalhos, o que no caberia no mbito deste artigo. Cf. CAMARGOS, Mrcia. Villa Kyrial: crnica da Belle poque paulistana. So Paulo: Senac, 2001; PRADO, Antonio Arnoni. Trincheira, palco e letras.So Paulo: Cosac Y Naif, 2004; NEEDELL, Jeffrey. Belle poque Tropical. Sociedade e cultura de elite no Rio de Janeiro da virada do sculo. So Paulo: Companhia das Letras, 1993; CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. Estudo de teoria e histria literria. So Paulo: Compaa Editora Nacional, 1965; BROCA, Brito. A Grcia no Brasil. In A Vida Literria no Brasil 1900. Braslia: INL.4 O nome pr-modernismo foi proposto por Tristo de Athayde, situado ambiguamente entre o quase-modernista e o ainda-no-modernista. O embarao desta nomeao parecido ao de ttulos como pr-histria ou pr-socrticos, pois todos nos remetem ao intricado terreno das origens. Jos Paulo Paes notou esta dificuldade, discutindo o problema no nvel terminolgico-taxonmico, em: O art nouveau naliteratura brasileira. Gregos e baianos. So Paulo: Brasiliense, 1985, p. 64-80. Sua proposta, que inclui a definio de artenovismo em contraponto ao pr-modernismo, sem dvida esclarecedora sob vrios aspectos, sobretudo pelo modo como o autor discute o tema do ornamental (longe do primeira vista elogio do artifcio como superfcie enganadora, de acordo com o autor sua filosofia seria o vitalismo). 5 Vozes de perto. Estudos. 5 srie. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1933. p. 113. 6 LEONI, Raul de. Textos escolhidos. Rio de Janeiro: Agir, 1961. 7 Idem, p. 122. 8 Para uma percepo mais abrangente do projeto intelectual e poltico da publicao: VELLOSO, Mnica Pimenta. Cultura e poder poltico: uma configurao do campo intelectual. In: OLIVEIRA, Lcia Lippi, VELLOSO, Mnica Pimenta e GOMES, ngela Maria Castro. Estado Novo: Ideologia e poder. Rio de Janeiro: Zahar, 1982. p. 71-108.

  • DANIEL FARIA

    Histria, So Paulo, v. 26, n. 2, p. 385-405, 2007 405

    9 Nas palavras do autor. Poltica e letras. Sntese das atividades literrias brasileiras no decnio 1930-1940. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1940. p. 51. 10 Nas palavras de Fusco, Tristo teria sido o sistematizador do movimento modernista. Cf. FUSCO, Rosrio. Letras de 1938. Vida Literria. So Paulo: S. E. Panorama, 1940. 11 Poltica e Letras. In CARDOSO, Vicente Licnio (org.). margem da histria da Repblica. Inqurito por escritores da gerao nascida com a Repblica. 3 ed. Recife: Editora Massangana, 1990. p. 209-256. Recorde-se que a primeira edio data de 1924. 12 A eleio do contexto como fonte ltima de todo significado foi alvo de crtica definitiva (LACAPRA, Dominck. Rethinking intelectual history. Texts, contexts, language. Ithaca/New York: Cornell University Press, 1983). 13 ATHAYDE, Tristo de. Dois poetas inquietos. Estudos. 3 Srie. Rio de Janeiro: A Ordem, 1930. p. 56-71. 14 Idem, p. 60. 15 Note-se ainda que para o autor esttica e psicologia pertenciam a um mesmo territrio de definio da realidade humana, aquele em que o homem se voltava sobre si mesmo. 16 Uma revelao, crnica sobre a obra de Jos Amrico de Almeida, em: Estudos 2 Srie. Rio de Janeiro: Terra de Sol, 1928. p. 139-151. 17 Idem, p. 140. 18 Em: Romancistas ao sul, Estudos 2 Srie. Op. cit., p. 24-36. 19 Poltica e letras. Sntese das atividades literrias brasileiras no decnio 1930-1940. Op. cit., p. 135. 20 Aqui o fundo de verdade era o controle exercido pelo Estado sobre a importao de papel, o que criava uma relao de dependncia e troca de favores com as editoras, como a Jos Olympio que publicara o livro de Rosrio Fusco. 21 ARENDT, Hannah. A condio humana. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2001. 22 O realismo poltico de Vargas era tema recorrente na propaganda do regime, repetido exausto. 23 Cultura Poltica. Ano 1, n. 2, abril de 1941, p. 169-177. 24 A ordem poltica e a evoluo intelectual. In Cultura Poltica. Ano 1, n. 4, junho de 1941, p. 234. 25 Idem, p. 234. 26 Histria e passado. In Cultura Poltica, ano 1, n. 8, outubro de 1941. 27 Influncia da ordem poltica sobre a evoluo intelectual. In: Cultura Poltica, ano 1, n. 10, dezembro de 1941, p. 312. 28 Realismo e bom senso. In Cultura Poltica, ano 2, n. 15, maio de 1942, p. 99. 29 Especialmente no que se refere s concepes estticas de Mrio de Andrade, esta questo foi apresentada por SCHWARZ, Roberto. O psicologismo da potica de Mrio de Andrade. In A sereia e o desconfiado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981. p. 13-23. 30 Este, publicado sem o pseudnimo: LIMA, Alceu Amoroso. Idade, sexo e tempo. Trs aspectos da psicologia humana. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1938. 31 Alceu Amoroso Lima. Idem, p. 103. 32 Este significado se torna mais evidente se lermos, na contracapa do livro, anncios de outras obras includas na mesma temtica. J. Ralph, Conhece-te pela psicanlise, indicado como extremamente til para a construo da vida harmoniosa pelo homem normal; L. E. Gratia, O acanhamento e a timidez, com o seguinte lema: Destrua tua timidez, e a vida ser tua; W. Steckel, A Educao dos pais, que vinha descrito como indicao de como os educadores deveriam se corrigir para poderem melhor educar as crianas, trazendo um verdadeiro panorama da normalidade sitiada por pais alcolatras, anormais, egostas, levianos, mes muito novas, mes quarentonas, mes puritanas e crianas nervosas. 33 ANDRADE, Almir de. Da interpretao na psicologia. Crtica aos fundamentos da psicologia contempornea. Ensaio de reelaborao sistemtica de uma psicologia dinmica, como base de uma teoria do conhecimento. Rio de Janeiro: Livraria Jos Olympio, 1936. 34 Mais ou menos casual, porque o livro teve apenas duas edies, num perodo de 70 anos (CARVALHO, Flavio de. Experincia n. 2. Uma possvel teoria e uma experincia. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2001). 35 Idem, p. 103-105.