Fascículo 02 - Educação para as Relações Etnicorraciais

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Educação para as Relações Etnicorraciais Equipe de pesquisa e produção de texto: Luís Cláudio de Oliveira Roseane Ramos Silva dos Santos Janira Sodré Miranda Coordenação: Iêda Leal de Souza

Transcript of Fascículo 02 - Educação para as Relações Etnicorraciais

  • Educao para as Relaes

    Etnicorraciais

    Equipe de pesquisa e produo de texto:Lus Cludio de Oliveira Roseane Ramos Silva dos Santos Janira Sodr Miranda

    Coordenao:Ida Leal de Souza

  • Direo Executiva da CNTE (Gesto 2014/2017)

    Endereo CNTE SDS Ed. Venncio III, salas 101/106, Asa Sul, CEP 70393-900, Braslia-DF, Brasil.

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    PresidenteRoberto Franklin de Leo (SP)

    Vice-PresidenteMilton Canuto de Almeida (AL)

    Secretrio de FinanasAntonio de Lisboa Amancio Vale (DF)

    Secretria GeralMarta Vanelli (SC)

    Secretria de Relaes InternacionaisFtima Aparecida da Silva (MS)

    Secretrio de Assuntos EducacionaisHeleno Manoel Gomes de Arajo Filho (PE)

    Secretrio de Imprensa e DivulgaoJoel de Almeida Santos (SE)

    Secretrio de Poltica Sindical (licenciado)Rui Oliveira (BA)

    Secretrio de Formao (licenciado)Gilmar Soares Ferreira (MT)

    Secretria de OrganizaoMarilda de Abreu Arajo (MG)

    Secretrio de Polticas SociaisAntonio Marcos Rodrigues Gonalves (PR)

    Secretria de Relaes de GneroIsis Tavares Neves (AM)

    Secretrio de Aposentados e Assuntos PrevidenciriosJoaquim Juscelino Linhares Cunha (CE)

    Secretrio de Assuntos Jurdicos e LegislativosFrancisco de Assis Silva (RN)

    Secretria de Sade dos(as) Trabalhadores(as) em EducaoFrancisca Pereira da Rocha Seixas (SP)

    Secretria de Assuntos MunicipaisSelene Barboza Michielin Rodrigues (RS)

    Secretrio de Direitos HumanosJos Carlos Bueno do Prado - Zezinho (SP)

    Secretrio de FuncionriosEdmilson Ramos Camargos (DF)

    Secretria de Combate ao RacismoIda Leal de Souza (GO)

    Secretria ExecutivaClaudir Mata Magalhes de Sales (RO)

    Secretrio ExecutivoMarco Antonio Soares (SP)

    Secretrio ExecutivoCleiton Gomes da Silva (SP)

    Secretria ExecutivaMaria Madalena Alexandre Alcntara (ES)

    Secretria ExecutivaPaulina Pereira Silva de Almeida (PI)

    Secretrio ExecutivoAlvisio Jac Ely (SC)

    Secretria ExecutivaRosana Souza do Nascimento (AC)

    Secretria ExecutivaCandida Beatriz Rossetto (RS)

    Secretrio ExecutivoJos Valdivino de Moraes (PR)

    Secretria ExecutivaLirani Maria Franco (PR)

    Secretria ExecutivaBerenice DArc Jacinto (DF)

    Secretrio ExecutivoAntonio Jlio Gomes Pinheiro (MA)

    Coordenador do DespeMrio Srgio Ferreira de Souza (PR)

    Suplentes Beatriz da Silva Cerqueira (MG)Carlos Lima Furtado (TO)Elson Simes de Paiva (RJ)Joo Alexandrino de Oliveira (PE)Maria da Penha Arajo (Joo Pessoa/PB)Marilene dos Santos Betros (BA)Miguel Salustiano de Lima (RN)Nelson Luis Gimenes Galvo (So Paulo/SP)Rosilene Correa Lima (DF) Ruth Oliveira Tavares Brochado (DF)Suzane Barros Acosta (Rio Grande/RS)Veroni Salete DelRe (PR)

    Conselho Fiscal - TitularesJos Teixeira da Silva (RN)Ana Cristina Fonseca Guilherme da Silva (CE)Flvio Bezerra da Silva (RR)Antonia Benedita Pereira Costa (MA)Gilberto Cruz Araujo (PB)

    Conselho Fiscal - SuplentesRosimar do Prado Carvalho (MG)Joo Correia da Silva (PI)Joo Marcos de Lima (SP)

  • Entidades Filiadas CNTE

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  • 2016 CNTEQualquer parte deste caderno pode ser reproduzida, desde que citada a fonte.

    Disponvel tambm em:

    Secretrio de FormaoGilmar Soares Ferreira (licenciado)

    CoordenaoIda Leal de SouzaSecretaria de Combate ao Racismo

    Secretria AdministrativaCristina Souza de Almeida

    Equipe de pesquisa e produo de textoLus Cludio de Oliveira, Roseane Ramos Silva dos Santos e Janira Sodr Miranda

    Projeto grfico e editorialNoel Fernndez Martnez

    EditoraoFrisson Comunicao

    1 Edio 2016

    Esta publicao obedece s regras do Novo Acordo Ortogrfico de Lngua Portuguesa.

    Foi feito depsito legal.

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)

    Bibliotecria: Cristina S. de Almeida CRB 1/1817

    Oliveira, Lus Cludio de.

    Educao para as relaes etnicorraciais / Lus Cludio de Oliveira, Roseane

    Ramos Silva dos Santos, Janira Sodr Miranda; coordenao de Ida Leal de Souza.

    -- Braslia/DF: Confederao Nacional dos Trabalhadores em Educao, 2016.

    68 p. (Formao de dirigentes sindicais, Temas Transversais - Eixo 4, Fasc-

    culo 2).

    1. Relaes Raciais. 2. Discriminao Racial. 3. Racismo, Brasil. 4. Antirracismo.

    5. Aes Afirmativas. I. Ttulo. II. Srie. III. Confederao Nacional dos Trabalha-

    dores em Educao.

    CDU: 37.014.53(=96)

  • Sumrio1. APRESENTAO 7

    2. EDUCAO PARA AS RELAES ETNICORRACIAIS: FORMAO PARA O QUE E PARA QUEM? 8

    3. RESSIGNIFICAR PRECISO: O COMEO DE UMA LONGA CONVERSA 9

    4. MOVIMENTO NEGRO E ANTIRRACISMO: HISTRIAS DE RESISTNCIA E CONSTRUO POLTICA 17

    4.1 Marcos Polticos e Legais: avanos fundamentais da luta 18

    4.1.1 Cumpra-se! Lei n 10.639/2003 Ensino da Histria e Cultura Africana e Afro-Brasileira 22

    4.1.2 O Estatuto da Igualdade Racial: uma questo de direitos 24

    5. TRADIO AFRICANA E SEUS VALORES CIVILIZATRIOS: CONHECENDO E APRENDENDO A RESPEITAR 26

    6. JUVENTUDE NEGRA: SOBREVIVNCIA, EDUCAO E FUTURO 34

    7. NEGRAS MULHERES, TRAJETRIAS DE LUTA E RESISTNCIA: NOSSOS PASSOS VM DE LONGE 38

    8. SUGESTES DE PROJETOS A SEREM DESENVOLVIDOS 41

    8.1 Dicas de livros, filmes, msicas e atividades 41

    9. CONCLUSO 62

  • Educao para as Relaes Etnicorraciais 7

    1. APRESENTAO

    Por meio da Secretaria de Combate ao Racismo, entregamos a lderes sindicais e trabalhadores/as em educao mais um fascculo, o de nmero 2, Educao para as Relaes Etnicorraciais, refe-rente ao eixo 4, destinado formao e capacitao em servio desses sujeitos sociais da escola.

    Este novo programa de formao da Confederao Nacional dos Trabalhadores em Educao - CNTE reflete o compromisso com uma prtica poltica apoiada em um novo conceito de atua-o sindical, que rompe com os dogmatismos instalados na origem e no traado histrico deste movimento. Introduz, assim, outros temas que sempre estiveram presentes nas vivn-cias polticas dos/as trabalhadores/as, embora tenham sido ofuscados at o contexto mais atual das grandes transformaes processadas na relao entre o capital e o trabalho. Na base reflexiva dessa nova forma de atuao se encontram fenmenos sociais como a violncia con-tra a mulher, o racismo e a discriminao racial contra o negro, a marginalizao sociocultu-ral dos povos indgenas, as novas demandas inerentes preservao ambiental, o combate a homofobia, as especificidades da juventude brasileira, as afetaes do sistema capitalista em relao aos idosos etc. Estes so todos grandes temas da contemporaneidade que precisam ser objetivados nos planos de lutas das classes trabalhadoras.

    Particularmente, no que concerne otimizao das aes dos/as trabalhadores/as da educa-o para o combate e a eliminao do racismo, estruturalmente presente na formao curri-cular e nas prticas pedaggicas, o fascculo aqui apresentado se constitui em subsdio ino-vador. Num total de 68 pginas, o fascculo enseja temas considerados capitulares para uma discusso atualizada a partir dos principais pontos que tecem as preocupaes do movimento negro no Brasil.

    Nas primeiras pginas, fazemos uma abordagem conceitual elucidativa de termos usuais no di-logo do movimento negro especialmente com educadores e demais profissionais da educao, a comear pela caracterizao histrica e poltica desse prprio movimento social. Enfatizamos as razes pelas quais o estudo de histria e cultura da frica e dos afro-brasileiros essen-cial para desmontar a arquitetura ideolgica do colonialismo na frica e no conjunto dos pa-ses por onde foram distribudos os povos negros, diasporizados e escravizados no Ocidente.

    Em seguida, descrevemos os principais marcos do antirracismo no Brasil, procurando indicar valores civilizatrios da tradio africana cujo conhecimento pode conduzir a uma reinterpreta-o do que se tem chamado de intolerncia religiosa. Trazemos reflexes amadurecidas sobre a ameaa ao futuro da juventude negra, enunciada nos dados estatsticos sobre mortes violen-tas praticadas contra a populao de 15 a 29 anos, bem como sobre as singularidades das lutas histricas das mulheres negras contra o racismo combinado como o machismo e o sexismo.

    Enfim, procuramos oferecer aos/s colegas e estudantes um material conceitualmente subs-tantivo e repleto de sugestes de recursos pedaggicos. Mas oferecemos, sobretudo, nas pr-ximas linhas, a nossa concepo de que instrumentos formativos produzidos a partir de nossa experincia amide na construo de processos de lutas dos/as trabalhadores/as fazem real-mente sentido quando estimulam a sua crtica e complementao. Longe de um material aca-bado, pretendemos que este fascculo abra novos debates que, ao tempo em que o atualizam, tambm nos empoderam.

    Ida Leal de SouzaSecretria de Combate ao Racismo - CNTE

  • 8 Formao de Dirigentes Sindicais

    2. EDUCAO PARA AS RELAES ETNICORRACIAIS: FORMAO PARA O QUE E PARA QUEM?

    Este fascculo foi elaborado pensando em voc, que est no cotidiano escolar e observa que a escola, alm de ser lugar de ensinar e aprender contedos formais, que so lidos nos livros e escritos no quadro, um espao onde se aprende a encontrar e a conviver com pessoas diferentes. So diferenas de raa, gnero, sexo e orien-tao sexual, religio, hbitos, costumes, tradies culturais e familiares que tam-bm so muito importantes na construo do currculo escolar, mesmo que na maior parte das vezes esses outros contedos no formais paream invisveis.

    O currculo escolar contm as disciplinas e os seus contedos mnimos a serem vis-tos em sala de aula em cada etapa escolar do/a estudante. Alm disso, o resultado prtico de tudo o que se faz na escola com a finalidade de formar a mentalidade dos/as estudantes. Isto quer dizer que tudo o que eles e elas experimentam desde o in-cio da vida escolar, dentro e fora da sala de aula, vai pouco a pouco se solidificando como conhecimento a orientar a vida em todos os sentidos.

    A escola, por meio do currculo adotado, alfabetiza e ensina tanto os saberes con-vencionados quanto fundamentais para o futuro desenvolvimento profissional, como tambm ensina os valores que sero assimilados como referncia para as futu-ras escolhas dos/as estudantes na sua vida adulta. Assim, a funo social da educao formal a cargo da escola dar a forma e o acabamento final ao indivduo que nela se instrui, criticando (ora reforando, ora negando) os valores trazidos com ele, que foram apreendidos na sua tradio familiar e em outros espaos de sua convivncia.

    Nosso objetivo atuar nessa mentali-dade em construo, incluindo ensina-mentos sobre como adotar uma postura

    antirracista, compreendendo que o com-bate ao racismo e discriminao racial existentes na sociedade brasileira no tarefa apenas dos negros/as, mas de todos os que acreditam na dignidade humana.

    Vamos ento conversar sobre alguns assuntos cuja reflexo certamente aju-dar a nossa ao na escola.

    Conversaremos sobre as prticas de homens negros e mulheres negras que, individualmente ou em grupos, sempre reagiram no passado (e continuam a rea-gir no presente) s tentativas da men-talidade colonialista de lhes impor, pela fora, uma vida completamente estranha a que tinham em seus lares no continente africano. Chamaremos a essas prticas de antirracismo1, e mostraremos que elas tm continuidade nos dias atuais.

    Refletiremos sobre o que motiva certas pessoas a desrespeitar, e at mesmo a agredir, praticantes de cultos afro-brasi-leiros, muitas vezes no espao escolar.

    Um outro assunto ao qual dedicaremos a nossa ateno a situao de risco de vida a que esto submetidos os jovens negros, no Brasil, principais vtimas das mortes violentas praticadas contra os nos-sos jovens.

    1 Destacaremos que existem diferentes maneiras de praticar o antirracismo, que vo alm de denunciar o racismo, crime considerado hediondo no Brasil, sem direito a fiana. Outros tipos de antirracismo so as aes do movimento negro que buscam levar sociedade o conhecimento sobre a histria de lutas dos homens e mulheres negros pela liberdade, durante a escravatura, e pelo reconhecimento das suas singularidades culturais e civilizatrias. Tambm representam outro tipo de antirracismo as iniciativas dos governos, sob a presso do movimento negro, de fazerem valer leis que foram criadas para garantir direitos iguais para homens negros e mulheres negras na educao, na sade, na segurana, no desenvolvimento cultural e no mercado de trabalho.

  • Educao para as Relaes Etnicorraciais 9

    Ainda, falaremos das lutas de ontem e de hoje das negras mulheres pelo reconhecimento das suas especificidades.

    Ao final da conversa, apresentaremos sugestes de recursos pedaggicos para auxiliar a nossa interveno, lembrando que a escola age em rede com a famlia e suas tradies, os meios de comunicao, as comunidades e outros lugares de convivncia e socializao.

    Todas as temticas que sero aprofundadas a seguir compem a base da nossa conversa.

    DISPORA AFRICANA SIGNIFICA A LONGA DISPERSO DE DIFERENTES POVOS DO CONTINENTE AFRICANO, ARRANCADOS DOS SEUS LARES E SUBMETIDOS PELA IMPOSIO DO COLONIALISMO AO TRABALHO FORADO EM VRIAS PARTES DO MUNDO.

    3. RESSIGNIFICAR PRECISO: O COMEO DE UMA LONGA CONVERSA

    Quando falamos em movimento negro nos refe-rimos a coletivos de pessoas que se sentem comprometidos e se organizam, nas vrias par-tes do mundo onde se deu a dispora africana: nas Amricas, na sia, na Europa, na Oceania e na prpria frica (na dispora interna), para lutar e criar uma nova situao de poder em que os/as negros/as sejam reconhecidos/as e respeitados/as como portadores de uma tradi-o prpria, com seus prprios valores civiliza-trios, herdados dos seus antepassados. E que sejam includos no somente na base produ-tiva dessas sociedades, mas tambm na condi-o de dirigentes do desenvolvimento social, poltico, econmico e cultural em seus pases.

    No Brasil, para alcanar essa outra situao de poder, o movimento negro vem produzindo lutas antirracistas desde muito antes da abolio da escravatura, que quase nunca so estu-dadas na escola. E mesmo quando so abordadas no currculo escolar, como o caso das revoltas dos quilombos em praticamente todo o territrio nacional, da Revolta dos Mals, no atual estado da Bahia, ou da Revolta da Chibata, promovida pelos marujos da Armada, na antiga provncia do Rio de Janeiro, em geral isso feito sem a devida importncia para que o/a estudante possa reconhecer a dimenso da presena do negro africano e do afro-brasileiro na histria do Brasil.

    Muito dessa falta de interesse em conhecer o negro e suas particularidades na histria nacio-nal tem a ver com o desconhecimento sobre as suas origens na frica. Mesmo quando se estuda a histria do Egito faranico (do tempo dos faras), civilizao que se desenvolveu ao norte da frica a partir do ano 3.000 a.C, ainda assim pouco ou nada se menciona sobre outras civilizaes africanas da antiguidade, como os reinos de Cush e Axum, com apogeu entre 700 e 100 a.C. No perodo posterior Era Crist, os Estados Imperiais do Gana, Mali, Songai, Kanen-Bornu, Yorub e outros que vigoraram entre os anos 700 e 1200 d.C, so igual-mente ignorados.

  • 10 Formao de Dirigentes Sindicais

    AS DIRETRIZES CURRICULARES NACIONAIS PARA O ENSINO DE HISTRIA E CULTURA AFRO-BRASILEIRA E AFRICANA, NOS TERMOS DO PARECER CNE/CP 3/2004 E DA RESPECTIVA RESOLUO CNE/CP1/2004, ESTABELECEM A EDUCAO DAS RELAES ETNICORRACIAIS COMO UM NCLEO DOS PROJETOS POLTICO-PEDAGGICOS DAS ESCOLAS, DEVENDO ESTE NCLEO, ASSIM COMO OS DEMAIS, SOFRER AVALIAO E SUPERVISO. IMPORTANTE MENCIONAR A LEI N 11.645/2004, QUE REPRESENTA UM DOS MARCOS LEGAIS DA LUTA DAS COMUNIDADES INDGENAS.

    EM 13 DE MAIO DE 1888, A PRINCESA ISABEL ASSINAVA A LEI UREA. UMA DATA PARA COMEMORAR? MAS O QUE SUCEDEU AO DIA 14 DE MAIO? EM QUAIS CONDIES PASSOU A VIVER A POPULAO AT ENTO ESCRAVIZADA, QUE FOI LIBERTADA? ORA, SEM ACESSO TERRA, AO MERCADO DE TRABALHO E EDUCAO FORMAL, RESTOU A VIDA ERRANTE NAS REAS RURAIS E O ABANDONO NAS FAVELAS, NOS CENTROS URBANOS. DESDE O INCIO DOS ANOS 1980, O MOVIMENTO NEGRO BRASILEIRO RESSIGNIFICOU A DATA, PASSANDO A CONSIDERAR O 13 DE MAIO COMO DIA NACIONAL DE LUTA CONTRA O RACISMO. A ABOLIO LEGAL DA ESCRAVIDO NUNCA GARANTIU AS CONDIES DE IGUALDADE DE PARTICIPAO NA SOCIEDADE PARA A POPULAO NEGRA DESTE PAS.

    Em geral, identificamos a frica como um pas populoso e miservel. Ignoramos que se trata de um continente rico em diversidades do ponto de vista geogrfico, que inclui, portanto, dife-renas climticas e populacionais, e do ponto de vista cultural, que abriga mais de 1 milho de habitantes distribudos em 54 pases e nove territrios.

    Um dos avanos da luta antirracista empreendida pelo movimento negro no Brasil a conquista da Lei n 10.639/2003 que introduziu, na Lei n 9.394/1996 das Diretrizes e Bases da Educao Nacional - LDBEN, a obrigatoriedade do ensino de histria e cultura afro-brasileira e africana. A apli-cao da lei tem requerido que professores/as se qualifiquem para transformar o currculo escolar em um meio de produzir conhecimento com os/as estudantes sobre a histria dos povos africa-nos e das vrias culturas que se desenvolvem h milnios na frica e tambm no Brasil.

  • Educao para as Relaes Etnicorraciais 11

    frica do Sul - PretriaAngola - LuandaArglia - ArgelBenim - PortoBotswana - Gaborone Burkina Faso - OuagadougouBurundi - BujumburaCabo Verde - PraiaCamares - YaoundChade - N'DjamenaComores - MoroniCosta do Marfim - Abidjan Djibouti - DjiboutiEgito - CairoEritreia - AsmaraEtipia - Adis-AbebaGabo - LibrevilleGana - AcraGuin - ConacriGuin Equatorial - MalaboGuin-Bissau - BissauGmbia - BanjulLesoto - MaseruLibria - MonrviaLbia - TrpoliMadagscar - AntananarivoMalawi - LilongweMali - BamakoMarrocos - RabatMauritnia - NouakchottMaurcia - Port LouisMoambique - MaputoNambia - WindhoekNigria - AbujaNger - NiameyQunia - NairobiRepblica Centro-Africana - BanguiRepblica Democrtica do Congo - KinshasaRepblica do Congo - BrazzavilleRuanda - KigaliSenegal - DakarSerra Leoa - FreetownSeychelles - VictoriaSomlia - MogadscioSuazilndia - LobambaSudo - CartumSudo do Sul - JubaSo Tom e Prncipe - So TomTanznia - Dar es SalaamTogo - LomTunsia - TunisUganda - KampalaZmbia - LusakaZimbabwe - Harare

    Arglia

    Marrocos

    SenegalCaboVerde

    GmbiaGuin-Bissau

    GuinSerra Leoa

    LibriaGana Togo

    NigriaBenin

    MaliBurkinaFaso

    Nger

    Tunsia

    Lbia

    Chade

    Egito

    Sudo

    Etipia

    Uganda

    Ruanda

    BurundiR. D. do Congo

    Eritreia

    Djibouti

    Somlia

    Madagscar

    Qunia

    Tanznia Seychelles

    Comores

    SuazilndiaMoambique

    Zimbabwe

    Lesoto

    Botsuana

    Zmbia

    Angola

    R. do Congo

    Guin Equatorial

    Gabo

    CamaresR. Centro-Africana

    So Tome Prncipe

    Nambia

    frica do Sul

    FRICA DO SUL ANGOLA ARGLIA BENIM BOTSWANA BURKINA FASO

    BURUNDI CABO VERDE CAMARES CHADE COMORES COSTA DO MARFIM

    DJIBOUTI EGITO ERITREIA ETIPIA GABO GANA

    GUIN GUIN-BISSAUGUIN-EQUATORIAL GMBIA LESOTO LIBRIA

    LBIA MADAGSCAR MALAWI MALI MARROCOS MAURITNIA

    MAURCIA MOAMBIQUE NAMBIA NIGRIA NGER QUNIA

    R. C.-AFRICANA R. D. DO CONGO R. DO CONGO RUANDA SENEGAL SERRA LEOA

    SEYCHELLES SOMLIA SUAZILNDIA SUDO SUDO DO SUL S. T. E PRNCIPE

    TANZNIA TOGO TUNSIA UGANDA ZMBIA ZIMBABWE

    Costa doMarfim

    Mauritnia

  • 12 Formao de Dirigentes Sindicais

    O interesse pelo conhecimento sobre a criao e a ocupao de cidades e reinos, o desenvol-vimento de tecnologias empregadas na agricultura e pecuria, as prticas comerciais, a mito-logia e a importncia dos cultos ancestralidade etc., o que nos permite conhecer melhor, na verdade, os afro-brasileiros. a partir desse interesse que podemos nos oferecer a oportu-nidade de compreender como complexa e grandiosa a tradio africana, tanto quanto pode ser qualquer outra tradio. Esse um caminho necessrio para que as futuras geraes, inde-pendentemente de identidade etnicorracial, possam se envolver na construo de uma nova sociedade, sem racismo.

    Outro avano do movimento negro foi apresentar ao Congresso Nacional, atravs do senador Paulo Paim do Partido dos Trabalhadores (PT/RS), o projeto de criao do Estatuto da Igualdade Racial, um conjunto de leis que corresponde a uma descrio detalhada do que necessrio ao Estado e sociedade para pr fim ao racismo. Sancionado sob a Lei n 12.288, de 20 de julho de 2010, composta por 65 artigos, esse Estatuto trata de polticas deigualdadee afirmao nas reas da educao, cultura, lazer, sade e trabalho, alm da defesa de direitos das comunidades quilombolas e dos vivenciadores das religies de matriz africana. Aqui, procuraremos comentar mais detidamente os artigos do Estatuto dedicados educao para as relaes etnicorraciais.

    Contracapa da tese de Lacerda, disponvel em http://disciplinas.stoa.usp.br/pluginfile.php/247540/mod_resource/content/1/Sobre%20os%20mesti%C3%A7os%20do%20Brasil.pdf (acesso em 26 mai 2016)

    A tese absurda do diretor do Museu Nacional, de branqueamento da populao em um sculo, resumia a cincia da poca e o preconceito racial dominante.

  • PODE-SE CONSIDERAR QUE ESTIGMA TUDO AQUILO QUE SIGNIFICA UMA DESONRA, UMA ESPCIE DE MANCHA A SER APAGADA DA HISTRIA DO NEGRO. OS ESTERETIPOS SERIAM IDEIAS PRECONCEBIDAS QUE TENDEM A DESVALORIZAR OU A EMPOBRECER A VERDADEIRA HISTRIA DE LUTAS DOS NEGROS PELA LIBERDADE.

    Educao para as Relaes Etnicorraciais 13

    DE ACORDO COM O PENSAMENTO DA FILSOFA BRASILEIRA

    MARILENA CHAU, A IDEOLOGIA UM MECANISMO USADO PELA CLASSE DOMINANTE VISANDO A

    EXERCER A DOMINAO SEM QUE ESTA SEJA PERCEBIDA COMO TAL

    PELOS DOMINADOS. CONSISTE NA TRANSFORMAO DAS IDEIAS DA

    CLASSE DOMINANTE EM IDEIAS ACEITAS PARA A SOCIEDADE COMO UM TODO,

    DE MODO QUE A CLASSE QUE DOMINA NO PLANO MATERIAL (ECONMICO,

    SOCIAL E POLTICO) TAMBM DOMINA NO PLANO DAS IDEIAS.

    Mas, para que todos os/as trabalha-dores/as que atuam na escola desen-volvam um comportamento antirra-cista, preciso reconhecer, antes de tudo, que o racismo se desenvolveu e se transformou em uma ideologia de dominao social.

    Vrios brasileiros simpatizantes de ideias racistas contriburam para for-mar opinio contrria aos valores civili-zatrios dos descendentes de africanos. Entre esses, Joo Baptista de Lacerda, ento diretor do Museu Nacional, representando o Brasil no I Congresso Internacional das Raas, realizado em Londres, em julho de 1911, apresentou a tese Os mestios do Brasil. Garantia que em 100 anos, precisamente em 2012, os negros desapareceriam da populao brasileira e os mestios esta-riam reduzidos a 3%. A elite racista, entre os quais intelectuais e cientistas da poca, atribua o atraso do pas ao fato de ter uma maioria de populao negra. A tese de Lacerda chegou a pro-vocar revolta nessa elite, que conside-rava um sculo um tempo muito longo para o Brasil tornar-se branco. Teses racialistas, de modo geral, s foram desacreditadas, de fato, aps a Segunda Guerra Mundial, sobretudo por meio de congressos fomentados por organismos internacionais, como aOrganizao das Naes Unidas (ONU).

    Como desmonte das (falsas) teorias racistas que vigoraram at as primeiras dcadas do sculo XX, restou o racismo como ideologia: um conjunto de ideias destinadas a manter os negros na condio de subalternidade em nossa sociedade.

    A ideologia racial to cruel que, muitas vezes, os prprios negros e negras so induzidos a negar os valores civilizatrios herdados dos seus ances-trais, como as tradies religiosas resguardadas, ao custo de muito sofrimento, por sacerdotes e sacerdotisas que resistiram e resistem ainda hoje s perseguies e agresses racistas. Este com-portamento fruto da assimilao de estigmas e esteretipos racistas impostos, ao longo de pelo menos duzentos e cinquenta geraes, a homens e mulheres negros/as, desde o incio da escravi-zao ainda na frica at a atualidade.

  • 14 Formao de Dirigentes Sindicais

    EVERARDO ROCHA, NA PUBLICAO O QUE ETNOCENTRISMO (1985),

    EXPLICA QUE NA TRADIO DA ANTROPOLOGIA, O

    ETNOCENTRISMO UMA VISO DE MUNDO QUE COLOCA NOSSO GRUPO HUMANO

    COMO O CENTRO DO MUNDO E OS DEMAIS GRUPOS SO PENSADOS E PERCEBIDOS

    SEGUNDO NOSSOS VALORES, LEIS E HBITOS. PORTANTO

    O EUROCNTRICO AQUELE QUE ADOTA OS VALORES

    CULTURAIS E A VISO DE MUNDO PREVALECENTES

    NO CONTINENTE EUROPEU COMO O PONTO DE PARTIDA

    PARA INTERPRETAR OS VALORES CIVILIZATRIOS QUE

    CARACTERIZAM OUTROS POVOS.

    Ao longo de quase quatrocentos anos na condio de escravizado, o negro foi forado a cons-truir a base de toda a riqueza material do Brasil, durante as fases da Colnia e do Imprio. Desde a fundao da Repblica a maioria da populao negra vive como subempregada na rea rural e nas cidades. Significa dizer que apesar de toda a explorao o negro vem sendo colocado margem do mercado de trabalho, rotulado como improdutivo, feio, boal. Assim, mesmo sendo elemento fundamental da histria nacional na sua formao econmica, social, poltica e cultural, o negro continua sendo visto e tratado como inferior, inclusive no espao escolar. Mas, nesse ambiente, como ocorre na sociedade brasileira em geral, as pessoas no so identificadas e nem se identificam como racistas, eurocntricas e submissas aos valores de uma nica tradio cultural, a tradio judaico-crist.

    Assim, aprendemos a compreender que o outro igual a ns quando tem consigo as mesmas caractersticas que aprendemos a ver em ns como padro, o que sempre reforado por expresses recorrentes nos meios de comunicao, na ocupao dos postos de destaque no mercado de traba-lho, na escola, em tudo. Se a criana no negra aprende desde pequena que cabelo bom cabelo liso e cabelo bonito loiro, a pele saudvel levemente rosada, olhos bonitos so azuis ou verdes, nariz bonito arrebitado... e por a vai; se aprende tam-bm desde de pequena que Jesus o filho de Deus e que Deus um s, por isso existe uma orao universal (serve para todo mundo), dificilmente se tornar um adulto em condies de compreender que o mundo constitudo por sociedades e civilizaes diversas e diferentes, com suas prprias tra-dies. Por outro lado, a criana no branca que aprende, igualmente desde pequena, que suas caractersticas fsicas e culturais no so valorizadas, ao contrrio, so invi-sibilizadas ou ento so alvo do preconceito e da discriminao, dificilmente se tornar um adulto em condies de valorizar o que possui como autntico.

    No por acaso que ao se perguntar se existe racismo no Brasil, em geral todo mundo concorda. Mas se a pergunta for voc racista, raramente algum assume que discrimina racialmente.

  • Educao para as Relaes Etnicorraciais 15

    No Brasil, quando os negros denunciam a violncia fsica, psicolgica ou simblica2 do racismo, h pessoas que interferem para negar o bvio. Estudiosos e ativistas do movimento negro, como Luiza Bairros, Togo Iorub, Azoilda Loretto da Trindade, Maria Beatriz Nascimento, Llia Gonzles, Abdias do Nascimento e tantos outros que cons-truram a histria do antirracismo no Brasil, explicavam que isso se deve ainda ao mito de que vivemos numa democracia racial. O historiador Joel Rufino dos Santos analisava que esse o preconceito de ter preconceito.

    O mito da democracia racial seria a crena difundida na sociedade brasileira de que ape-sar do longo perodo escravista, depois da abolio, brancos e negros teriam encontrado uma forma de viver na mais autntica har-monia, deixando no passado as diferenas de toda ordem. Evidncias disto, de acordo com esse mito, seriam a crescente miscigenao de raas/etnias, visveis nos casamentos mul-tirraciais, e na incorporao das culturas de matriz africana ao jeito de ser do brasileiro ou identidade nacional.

    No entanto, a partir dos anos 1950 pes-quisas sobre desigualdades entre brancos e negros vieram pouco a pouco corroendo essa viso. Na atualidade, organismos internacio-nais vm demonstrando o que para muitos ainda a face oculta do racismo. Por exem-plo, segundo a Anistia Internacional, o Brasil o pas onde mais se mata no mundo, supe-rando muitos pases em situao de guerra. Em 2012, 56.000 pessoas foram assassina-das. A maioria dos homicdios foi praticada por armas de fogo, e menos de 8% dos casos chegaram a ser julgados. Destes homicdios, 30.000 foram praticados contra jovens entre

    2 A violncia fsica o uso da fora com o objetivo de ferir, deixando ou no marcas evidentes. A violncia psicolgica ou agresso emocional, to ou mais prejudicial que a violncia fsica, caracterizada pela rejeio, depreciao, discriminao, humilhao, desrespeito, punies exage-radas e intolerncia. Violncia simblica um conceito elaborado pelo socilogo Pierre Bourdieu. Significa forma de coao que se apoia no reconhecimento, e submisso das pessoas, de uma imposio determinada pela forma como est organizada a sociedade ou o grupo social.

    15 a 29 anos, a maioria de negros, como dia-logaremos neste fascculo na parte destinada a conhecer a situao de violncia que atinge sobretudo esses jovens. Muito se tem dito que se trata de um extermnio progressivo da juventude negra, que ocorre sob o silncio de autoridades, da grande mdia e dos indiv-duos que se recusam a discutir essa peculia-ridade dos assassinatos e propor aes para impedir a sua continuidade.

    O Plano Juventude Viva, de iniciativa do governo federal, traduz o reconhecimento do Estado quanto necessidade de atuar para prevenir jovens negros entre 15 e 29 anos da vulnerabilidade constatada, com vistas a reduzir as taxas de homicdios alarmantes.

    Outro exemplo, tambm dramtico, da domi-nao racial que se tenta impor ao povo negro a desqualificao da mulher negra quanto ao seu papel central na histria da resistncia escravizao e ao racismo nos dias atuais, na sua esttica corporal, nas relaes inter-pessoais com homens e com mulheres bran-cas no acesso ao mercado de trabalho, edu-cao formal e Justia.

    Enfim, nossa inteno neste fascculo cola-borar para que voc passe a relacionar, com autonomia e liberdade, a sua histria pes-soal e familiar com as diversas situaes em que o racismo e a discriminao racial se manifestam.

    Vamos, a partir daqui, procurar entender, com mais profundidade, os assuntos que fazem parte da conversa iniciada acima, ou seja, as experincias antirracistas do movi-mento negro, considerando: (1) a efetivao dos marcos legais do antirracismo: a lei do ensino da histria e cultura afro-brasileira e africana, atualizada em 2008 com a Lei n 11.645, que igualmente obriga o ensino da histria e culturas indgenas, e o Estatuto da Igualdade Racial; (2) o conhecimento sobre os valores civilizatrios das tradies africa-nas resguardados nos espaos de cultos ao sagrado; (3) a situao da juventude negra brasileira; e (4) as lutas, realizaes e olha-res das negras mulheres.

  • Milton Santos Manuel Raimundo Querino Laudelina de Campos Melo

    Carolina Maria de Jesus

    Jnatas Conceio SilvaAntonieta de Barros

    Joel Rufino

    Alberto Guerreiro Ramos Zzimo Bulbul

    Luiza Bairros

    Azoilda Loretto da Trindade

    Maria Beatriz Nascimento

    Llia Gonzles

    Abdias do Nascimento

    ESTUDIOSOS/AS QUE CONTRIBURAM NA LUTA CONTRA O RACISMO

  • Educao para as Relaes Etnicorraciais 17

    4. MOVIMENTO NEGRO E ANTIRRACISMO: HISTRIAS DE RESISTNCIA E CONSTRUO POLTICA

    STUART HALL, NO LIVRO A IDENTIDADE CULTURAL NA PS-MODERNIDADE, AFIRMA QUE O CARTER NO CIENTFICO DO TERMO RAA NO AFETA O MODO COMO A LGICA RACIAL E OS QUADROS DE REFERNCIAS RACIAIS SO ARTICULADOS E ACIONADOS, ASSIM COMO NO ANULA SUAS CONSEQUNCIAS (1999, P. 63). O QUE ESSE SOCILOGO JAMAICANO APONTA QUE POUCO IMPORTA QUE AS CINCIAS BIOLGICAS TENHAM COMPROVADO QUE O TERMO RAA NO SEJA REPRESENTATIVO DAS DIFERENAS ENTRE BRANCOS E NEGROS, PORQUE OS FENTIPOS QUE CARACTERIZAM UM E OUTRO CONTINUAM SERVINDO DE REFERNCIA PELAS PESSOAS PARA JUSTIFICAR AS SUAS PREFERNCIAS.

    Como j dissemos, as prticas antirracis-tas englobam todas as aes por meio das quais indivduos ou grupos enfrentam a ideologia do racismo. Especialmente quando essas prticas so desenvolvi-das por grupos organizados na sociedade em defesa dos interesses da raa negra, tendo como ponto de partida o combate ao racismo e discriminao racial, cha-mamos a esse movimento social de movi-mento negro.

    A escravizao dos negros no Brasil remonta s primeiras ocupaes dos por-tugueses, no sculo XVI. Essa tambm a histria da resistncia negra, ou seja, a reao individual e coletiva nega-o fsica e cultural da humanidade de homens negros e mulheres negras, que se estende para alm da Abolio da escravatura.

    A resistncia foi desenvolvida de vrias maneiras. Entre algumas dessas, pode-mos destacar o banzo uma espcie de greve de fome devido a desolao e pro-funda depresso ante a vida no cativeiro o assassinato individual do senhor pelo escravizado, a fuga isolada ou em bandos, o aborto praticado pela mulher negra, o suicdio, a organizao de con-frarias religiosas, a manuteno clandes-tina dos cultos aos ancestrais, as guer-rilhas e insurreies urbanas.

    Clvis Moura Togo Iorub

  • 18 Formao de Dirigentes Sindicais

    O SOCILOGO CLVIS MOURA

    UM DOS ESTUDIOSOS QUE DEFENDE, NO

    LIVRO REBELIES DA SENZALA (1981), QUE

    VRIOS LEVANTES COMO A REVOLTA DOS

    ALFAIATES, DOS BZIOS, DA CHIBATA, A BALAIADA,

    O FARROUPILHA, A CABANAGEM E TANTOS

    OUTROS FORAM EXPRESSES DE TENSES

    E CONFLITOS RACIAIS.

    Podemos dizer que as lutas pela liberdade, por mais de trs sculos, tm continuidade nas lutas antir-racistas. O antirracismo exige a igualdade de opor-tunidades, traduzida na conquista da igualdade em todos os setores da vida social: no acesso quali-dade na Justia, sade, educao, segurana, no lazer, nas condies de moradia, no mercado de trabalho e na ascenso na carreira profissional; no fim dos estigmas e esteretipos racistas, que sig-nifica o respeito s tradies herdadas pelos des-cendentes de povos africanos, expressas em uma filosofia e em um padro cultural prprio, como veremos mais adiante.

    4.1 Marcos Polticos e Legais: avanos fundamentais da luta

    Desde os anos que precederam o fim legal da escra-vizao, o movimento negro organiza vrias formas de luta contra o racismo e a discriminao racial. Uma forma de tornar visveis para a sociedade as pautas de luta era a chamada imprensa negra. No perodo ps-abolio, que aqui compreendido entre a assinatura da Lei urea e a instalao da Nova Repblica, com a ascenso de Getlio Vargas ao poder, em 1932, essa prtica cresce ainda mais.

    De acordo o historiador Clvis Moura, no livro A Histria do Negro Brasileiro (1989), o movimento negro fundou em So Paulo a Frente Negra Brasileira (FNB) em 1931, mas que seria perseguida e desfeita seis anos depois, no governo Getlio Vargas. Essa interrupo abrupta no processo de organizao dos negros, que se expandiu principalmente pelas regies Sul e Sudeste, custaria um longo perodo de desarticulao do movimento. Entretanto, alguns anos mais tarde as memrias da FNB levaram fundao do Teatro Experimental do Negro (TEN), a partir de 1944, que, na sequn-cia, influenciaria a criao da Associao Cultural do Negro (ACN), igualmente em So Paulo, na dcada de 1950.

    Revolta dos Bzios Revolta da ChibataRevolta A Balaiada

  • Educao para as Relaes Etnicorraciais 19

    OS PERIDICOS MAIS CONHECIDOS DESDE AS CONJURAES PELA ABOLIO DA ESCRAVATURA, CONFORME O HISTORIADOR CLVIS MOURA, SO OS BOLETINS O MULATO, HOMEM DE COR, BRASILEIRO PARDO, O CABRITO E O LAFUENTE , TODOS DO MESMO ANO DE 1833, E O JORNAL O MESTIO, DE 1834. DAS DIVERSAS PUBLICAES PRODUZIDAS PELO MOVIMENTO NEGRO QUE DO CONTINUIDADE A ESSAS INICIATIVAS AT A ERA VARGAS, DESTACAM-SE O EXEMPLO (1892), O MENELICK (1915), A RUA (1916), A LIBERDADE (1919), A SENTINELA (1920), O ALFINETE (1921), O CLARIM DA ALVORADA (1928) E A VOZ DA RAA (1933).

    Na dcada seguinte, sob o terror do Estado arbi-trrio implantado com o golpe militar que insti-tuiu o regime de exceo e uma ditadura mili-tar, que duraria at o incio dos anos 1980, o movimento negro, assim como os demais movi-mentos sociais democrticos, se encolheu.

    Porm, durante os anos 1970, o movimento negro brasileiro encontrou na divulgao das expresses das culturas negras uma espcie de biombo, como traduz a historiadora Hlne Monteiro, na dissertao de mestrado pela UFRJ (1991), que funcionava como uma pro-teo dos seus lderes polticos contra o terro-rismo do Estado militarizado. Posteriormente, os grupos de conscincia negra e outros movi-mentos relacionados Igreja catlica, como Comunidades Eclesiais de Base e pastorais do negro, passam a dar maior consistncia luta contra o preconceito e pela defesa de uma iden-tidade afro-brasileira.

  • 20 Formao de Dirigentes Sindicais

    A conquista da restaurao da ordem democrtica, cujo principal evento foi a promulgao da Constituio Federal de 1988, abriria as comportas da sociedade brasileira para o avano dos movimen-tos sociais.

    Durante aquele ano, o do Centenrio da Abolio, o movimento negro reali-zou inmeras manifestaes de denn-cia do racismo e da discriminao racial, que criaram visibilidade para essa luta em sua dimenso poltica e institucional.

    Na dcada seguinte entra definitivamente como prioridade na agenda de lutas do movimento negro a implantao de pol-ticas pblicas de ao afirmativa, como veremos em detalhes quando dialogar-mos sobre a Lei no 10.639/2003.

    Na primeira metade dos anos 2000, este processo culmina na poltica de Estado que altera a Lei das Diretrizes da Educao Nacional, e cria a obrigatoriedade do ensino na Educao Bsica do papel pol-tico, econmico e cultural de negros e ndios na formao da identidade nacio-nal e no desenvolvimento da nao.

    11 de maio de 1988 - Centro do Rio de Janeiro. Manifestao do movimento negro contra a farsa da abolio

    20 de novembro de 1995, Braslia. Marcha Zumbi 300 anos

    NAS PRINCIPAIS CAPITAIS DO PAS, AS ORGANIZAES DO MOVIMENTO NEGRO REUNIRAM MILHARES DE PESSOAS EM PROTESTOS CONTRA O QUE SE CHAMOU DE FARSA DA ABOLIO, NUMA EVIDENTE DEMONSTRAO DE FORA POLTICA. DO PONTO DE VISTA NUMRICO E DO ALCANCE GEOGRFICO, FORAM OS PROTESTOS MAIS SIGNIFICATIVOS DA HISTRIA DESSE MOVIMENTO.

  • Educao para as Relaes Etnicorraciais 21

    VEJA O QUE J AVANOU:

    CRIADO O SISTEMA DE COTAS NA UNIVERSIDADE

    DE BRASLIA (UNB), A PARTIR DO CASO ARI:

    ALUNO DO DOUTORADO EM ANTROPOLOGIA NA UNIVERSIDADE

    DE BRASLIA.

    A UERJ A PRIMEIRA UNIVERSIDADE A TER

    COTAS RACIAIS. DEZ ANOS DEPOIS, O STF JULGA A

    POLTICA CONSTITUCIONAL, E ELAS VIRAM LEI EM

    INSTITUIES FEDERAIS.

    A PROMULGAO DA LEI N 10.639, DE 9 DE JANEIRO DE 2003, TORNA OBRIGATRIO O ENSINO DE HISTRIA E

    CULTURA AFRO-BRASILEIRA NOS ESTABELECIMENTOS DE ENSINO FUNDAMENTAL - UM

    DOS PRIMEIROS ATOS DO ENTO PRESIDENTE DA REPBLICA LUIZ INCIO LULA DA SILVA.

    A LEI CA REGULAMENTA A CONSTITUIO E DETERMINA

    A PENA DE RECLUSO A QUEM TENHA COMETIDO ATOS DE DISCRIMINAO

    OU PRECONCEITO DE RAA, COR, ETNIA, RELIGIO OU PROCEDNCIA NACIONAL.

    1998 2002 20031989

    A LEI N 11.645 INCLUI NO CURRCULO OFICIAL DA

    REDE DE ENSINO A TEMTICA HISTRIA E CULTURA AFRO-

    BRASILEIRA E INDGENA.

    APROVADO O ESTATUTO DA IGUALDADE RACIAL, QUE PREV O ESTABELECIMENTO DE POLTICAS PBLICAS DE VALORIZAO DA CULTURA NEGRA PARA A CORREO

    DAS DESIGUALDADES PROVOCADAS PELO SISTEMA

    ESCRAVISTA NO PAS.

    2008 2010

    A LEI N 12.711 GARANTE A RESERVA DE 50% DAS MATRCULAS

    POR CURSO E TURNO NAS 59 UNIVERSIDADES FEDERAIS E 38 INSTITUTOS FEDERAIS DE EDUCAO, CINCIA E

    TECNOLOGIA A ALUNOS ORIUNDOS INTEGRALMENTE DO ENSINO MDIO PBLICO, EM CURSOS

    REGULARES OU DA EDUCAO DE JOVENS E ADULTOS. OS DEMAIS 50% DAS VAGAS PERMANECEM PARA AMPLA CONCORRNCIA.

    CRIADA A SECRETARIA DE COMBATE AO RACISMO DA CNTE DURANTE O 32

    CONGRESSO NACIONAL DA ENTIDADE E A LEI N 12.990 RESERVA AOS NEGROS 20%

    DAS VAGAS OFERECIDAS NOS CONCURSOS PBLICOS.

    2012 2014

    A LEI AFONSO ARINOS ESTABELECE UM ANO DE PRISO OU MULTA

    POR RACISMO.

    UM GRUPO DE QUILOMBOLAS NO RIO GRANDE DO SUL CRIA O DIA

    20 DE NOVEMBRO COMO O DIA DA CONSCINCIA NEGRA EM CELEBRAO

    MEMRIA DO HERI ZUMBI DOS PALMARES. 7 ANOS DEPOIS, O MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO (MNU) INSTITUI O DIA NACIONAL.

    O QUESITO COR INCLUDO NO RECENSEAMENTO DO INSTITUTO BRASILEIRO

    DE GEOGRAFIA E ESTATSTICAS (IBGE), POR PRESSO DE ESTUDIOSOS

    E DE ORGANIZAES DA SOCIEDADE CIVIL

    ORGANIZADA.

    A CONSTITUIO FEDERAL PROMULGADA E GARANTE S

    COMUNIDADES QUILOMBOLAS A PROPRIEDADE DAS TERRAS

    OCUPADAS POR ELAS. O ARTIGO 5 DEFINE O DIREITO IGUALDADE E TORNA RACISMO

    CRIME INAFIANVEL E IMPRESCRITVEL.

    1951 1970 1979 1988

  • 22 Formao de Dirigentes Sindicais

    RECONHECENDO O PAPEL DA ESCOLA NA ERRADICAO DOS PRECONCEITOS, A CNTE PRODUZ DESDE 2003 SEU JORNAL MURAL, COM O OBJETIVO DE DIFUNDIR, NAS ESCOLAS PBLICAS DE TODO O PAS, INFORMAES SOBRE DIVERSOS TEMAS, DE INTERESSE NO SOMENTE DOS EDUCADORES E ESTUDANTES, MAS DE TODA A SOCIEDADE. ALM DE SER UMA FERRAMENTA DE APOIO PEDAGGICO PARA OS PROFISSIONAIS DA EDUCAO EM SALA DE AULA. ENTRE OS DIVERSOS ASSUNTOS J PROPOSTOS NO JORNAL MURAL EST O DIA DA CONSCINCIA NEGRA, QUE CELEBRADO NO BRASIL, NO DIA 20 DE NOVEMBRO. FORAM ABORDADOS TEMAS COMO A LUTA DOS NEGROS NO BRASIL, CULTURA NEGRA BRASILEIRA, INSERO DO NEGRO NO MERCADO DE TRABALHO, DISCRIMINAO, IDENTIFICAO DE ETNIAS ETC., COM A FINALIDADE DE PROPOR UMA REFLEXO SOBRE A INTRODUO DOS NEGROS NA SOCIEDADE BRASILEIRA.

    4.1.1 Cumpra-se! Lei n 10.639/2003 Ensino da Histria e Cultura Africana e Afro-Brasileira

    A Lei de Diretrizes e Bases da Educao n 9.394 de 1996 foi alterada por meio da insero dos artigos 26-A e 79-B, referidos na Lei n 10.639 de 9 de janeiro de 2003, tornando obriga-trio o ensino de Histria e Cultura Afro-Brasileira e Africana no Currculo Oficial da Educao Bsica. Esta foi uma importante conquista do Movimento Negro que, ao longo de dcadas, vem apresentando propostas e reivindicando aes pontuais no mbito educacional, con-siderando sempre um espao importantssimo para a ressignificao das relaes raciais no Brasil. Porm sabemos que somos um pas de muitas leis, mas de direitos limitados. Diante desta realidade, necessrio o empenho coletivo para propor e executar novas metodologias para uma educao antirracista, superando o mito da democracia racial.

    Esta lei um instrumento que possibilita aos sistemas de ensino em mbito nacional res-ponder s determinaes da Constituio Brasileira, da Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional LDB - n 9.394/1996, ao Plano Nacional de Educao, ao Estatuto da Criana e do Adolescente e ao Estatuto da Igualdade Racial. Esses textos legais asseguram o princpio da igualdade de direitos e deveres, a formao integral da criana, o dever do estado de garantir, sem distino, por meio da educao, iguais direitos para o pleno desenvolvimento de todos/as e de cada um. Tambm refere ao respeito s contribuies das diferentes cul-turas e etnias para a formao do povo brasileiro, entre outros princpios democrticos que tm sido historicamente negados aos afro-brasileiros.

  • Educao para as Relaes Etnicorraciais 23

    ART. 26-A. NOS ESTABELECIMENTOS DE ENSINO FUNDAMENTAL E MDIO, OFICIAIS E PARTICULARES, TORNA-SE OBRIGATRIO O ENSINO SOBRE HISTRIA E CULTURA AFRO-BRASILEIRA.

    1O O CONTEDO PROGRAMTICO A QUE SE REFERE O CAPUT DESTE ARTIGO INCLUIR O ESTUDO DA HISTRIA DA FRICA E DOS AFRICANOS, A LUTA DOS NEGROS NO BRASIL, A CULTURA NEGRA BRASILEIRA E O NEGRO NA FORMAO DA SOCIEDADE NACIONAL, RESGATANDO A CONTRIBUIO DO POVO NEGRO NAS REAS SOCIAL, ECONMICA E POLTICA PERTINENTES HISTRIA DO BRASIL.

    2O OS CONTEDOS REFERENTES HISTRIA E CULTURA AFRO-BRASILEIRA SERO MINISTRADOS NO MBITO DE TODO O CURRCULO ESCOLAR, EM ESPECIAL NAS REAS DE EDUCAO ARTSTICA E DE LITERATURA E HISTRIA BRASILEIRAS.

    Esses direitos negados, muitas vezes pelo silncio e pela ausncia, outras vezes pela presena estereotipada nos mate-riais didticos e nas prticas pedaggi-cas, reproduzem modelos fundados ape-nas nos valores civilizatrios europeus. Ignoram-se os valores civilizatrios ine-rentes tradio africana, at hoje subal-ternizados pela mentalidade colonialista que ainda predomina entre ns.

    Para favorecer a ressignificao de valores da tradio africana e fortalecer a cons-truo do pertencimento racial, promo-vendo o desejvel ambiente educativo que contribui, de fato, ao desenvolvi-mento integral dos/as estudantes, deve-mos considerar as seguintes orientaes:

    Utilizar materiais que no reforcem este-retipos. Cuidar para que imagens, livros, msicas, brinquedos e todos os recursos didticos utilizados em sala e demais espaos da escola (como os murais e pai-nis festivos) promovam nas crianas o sentimento de pertencimento e a com-preenso de que as pessoas so diferen-tes em gnero, raa/etnia, idade, habili-dades, religio;

  • 24 Formao de Dirigentes Sindicais

    Apresentar pessoas das diversas socieda-des e culturas, em atividades variadas, utilizando-se imagens que identifiquem os grupos socioeconmicos nos quais esto inseridas;

    Ao mostrar realidades e valores culturais de sociedades ou comunidades diferen-tes, eximir-se de emitir opinies a partir dos seus prprios valores;

    No desenvolvimento de atividades cultu-rais, valorizar as contribuies das cul-turas e tradio africana cultura bra-sileira, identificando-as em contextos e no como adereo;

    Identificar e registrar as manifestaes de racismo, para dialogar com toda a comu-nidade escolar (estudantes, mes, pais, trabalhadores(as) em educao e demais profissionais), induzindo a reflexo con-junta sobre as motivaes e consequn-cias dessas manifestaes para o apren-dizado e para sociedade;

    Observar se os materiais pedaggicos dis-ponveis reforam a discriminao racial, visando a criar aes para modific-los, oportunizando aos(s) educandos(as) e educadores(as) despertar o olhar crtico quanto presena do negro nas obras lite-rrias e nos livros didticos;

    Incentivar, por meio de obras liter-rias e material audiovisual, a valoriza-o da esttica negra, com a finalidade de desconstruir os esteretipos impostos pela hegemonia dos padres de beleza vigentes.

    4.1.2 O Estatuto da Igualdade Racial: uma questo de direitos

    Este instrumento legal visa a igualar as condi-es de oportunidades e representatividade do segmento negro na sociedade, e instruir a defesa dos direitos tnicos individuais. Apresenta os direitos fundamentais de toda a populao, mas particulariza a populao negra cujos indicadores

    REFERIMOS COLONIALISMO COMO O IDENTIFICA O

    PSIQUIATRA E FILSOFO MARTINICANO FRANZ FANON

    NO LIVRO OS CONDENADOS DA TERRA. TRATA-SE DO SISTEMA

    INSTITUDO PELO OCIDENTE PARA AS CONQUISTAS DE POVOS E

    TERRITRIOS FORA DA EUROPA, FREQUENTEMENTE JUSTIFICADO

    NA VISO ETNOCNTRICA QUE QUALIFICA O OUTRO,

    DIFERENTE, COMO PORTADOR OU NO DE ELEMENTOS QUE O CARACTERIZARIAM COMO

    HUMANO, CIVILIZADO. NO CONTEXTO DO COLONIALISMO DESTACA-SE A MENTALIDADE

    COLONIAL, CONSTRUDA CULTURALMENTE NO INTERIOR DA

    RELAO ENTRE COLONIZADOR E COLONIZADO, COM BASE

    NA VIOLNCIA FSICA E PSICOLGICA IMPRIMIDA PELO

    COLONIZADOR. PRESSUPE QUE AO EMPREENDEDOR DO SISTEMA COLONIAL SE ARVORA O DIREITO, POR ELE COMPREENDIDO COMO

    LEGTIMO, DE SUBJUGAR O COLONIZADO. E ESTE, UMA VEZ

    CONVENCIDO PELO COLONIZADOR DE UMA SUPOSTA INFERIORIDADE

    NATURALMENTE DADA DA SUA CONDIO HUMANA, ASSIMILA,

    PROGRESSIVAMENTE, ESSA NOVA CONDIO IMPOSTA. AO LONGO DE GERAES, O COLONIZADO VAI SE DESTITUINDO DAS SUAS

    TRADIES CULTURAIS E PASSA A ORIENTAR A VIDA, EM TODA A SUA EXTENSO, PELOS VALORES CIVILIZATRIOS DO

    COLONIZADOR.

  • Educao para as Relaes Etnicorraciais 25

    sociais mostram que a mais afetada pelas desi-gualdades sociais, como vimos acima. Na educa-o, captulo que trouxemos como foco princi-pal, regulamenta e institucionaliza nas Unidades Escolares e no Sistema de Ensino Brasileiro o que a Lei n 12.288/2010 prev, e implementa polti-cas pblicas com o propsito de reduzir, de forma progressiva, as desigualdades raciais.

    No Captulo II, trata do Direito Educao, Cultura, ao Esporte e ao Lazer, conforme os artigos:

    Art. 19. A populao afro-brasileira tem direito a participar de atividades educacio-nais, culturais, esportivas e de lazer, adequa-das a seus interesses e condies, garantindo sua contribuio para o patrimnio cultural de sua comunidade e da sociedade brasileira.

    1 Os governos federal, estaduais, distrital e municipais devem promover o acesso da popu-lao afro-brasileira ao ensino gratuito, s ati-vidades esportivas e de lazer e apoiar a inicia-tiva de entidades que mantenham espao para promoo social dos afro-brasileiros.

    2 Nas datas comemorativas de carter cvico, as instituies de ensino convidaro representantes da populao afro-brasileira para debater com os estudantes suas vivncias relativas ao tema em comemorao.

    3 facultado aos tradicionais mestres de capoeira, reconhecidos pblica e formal-mente pelo seu trabalho, atuar como instru-tores desta arte-esporte nas instituies de ensino pblicas e privadas.

    Art. 20. Para o perfeito cumprimento do dis-posto no art. 19 desta lei os governos Federal, estaduais, distrital e municipais desenvolve-ro campanhas educativas, inclusive nas esco-las, para que a solidariedade aos membros da populao afro-brasileira faa parte da cultura de toda a sociedade.

    Art. 21. A disciplina Histria Geral da frica e do Negro no Brasil integrar obrigatoria-mente o currculo do ensino fundamental e mdio, pblico e privado, cabendo aos estados,

    aos municpios e s instituies privadas de ensino a responsabilidade de qualificar os pro-fessores para o ensino da disciplina.

    Pargrafo nico. O Ministrio da Educao fica autorizado a elaborar o programa para a disciplina, considerando os diversos nveis escolares, a fim de orientar a classe docente e as escolas para as adaptaes de currculo que se tornarem necessrias.

    Art. 22. Os rgos federais e estaduais de fomento pesquisa e ps-graduao ficam autorizados a criar linhas de pesquisa e pro-gramas de estudo voltados para temas refe-rentes s relaes raciais e questes pertinen-tes populao afro-brasileira.

    Art. 23. O Ministrio da Educao fica auto-rizado a incentivar as instituies de ensino superior pblicas e privadas a:

    I apoiar grupos, ncleos e centros de pesquisa, nos diversos programas de ps-graduao, que desenvolvam temticas de interesse da populao afro-brasileira;

    II incorporar nas matrizes curricula-res dos cursos de formao de professores temas que incluam valores respeitantes pluralidade tnica e cultural da sociedade brasileira;

    III desenvolver programas de extenso universitria destinados a aproximar jovens afro-brasileiros de tecnologias avanadas, assegurado o princpio da proporcionali-dade de gnero entre os beneficirios;

    IV estabelecer programas de cooperao tcnica com as escolas de educao infan-til, ensino fundamental, ensino mdio e ensino tcnico para a formao docente baseada em princpios de equidade, de tole-rncia e de respeito s diferenas raciais.

    Art. 24. O Ministrio da Educao fica autori-zado a incluir o quesito raa/cor, a ser preen-chido de acordo com a autoclassificao, bem como o quesito gnero, em todo instrumento de coleta de dados do censo escolar, para todos os nveis de ensino.

  • 26 Formao de Dirigentes Sindicais

    Sabemos que todas as leis, desde o momento em que so propostas pelos parlamentares, a sua tramitao pelas Comisses e a aprovao e entrada em vigor ou no, dependendo da sua sano pelo Poder Executivo, so objeto de debate, negociaes e alteraes de modo a con-templar os propositores e os aliados. Muitas vezes a Lei que entra em vigor o que se con-vencionou dizer aquilo que foi possvel. Este precisamente o caso da Lei que instituiu o Estatuto da Igualdade Racial, que entrou em vigor no dia 20 de outubro de 2010. Significa dizer que embora esse instituto legal tenha sido tornado realidade, pois que o movimento negro se empenha pela sua criao h muitas dcadas, ele no reflete todo o acmulo de dis-cusses que originaram a sua propositura ainda no mbito desse movimento.

    Durante as negociaes, o texto do Estatuto sofreu inmeras alteraes desfavorveis aos interesses do movimento negro e da populao negra, o que reflete a pouca representao dos negros e negras como fora poltica no Congresso Nacional, hoje menos de 2% do total de parlamentares. O principal ponto negativo o fato de ser o Estatuto uma Lei autoriza-tiva, isto , por no ter carter determinativo certas exigncias descritas, por exemplo, para o mercado de trabalho, so atendidas de acordo com a deciso do empregador. o que acon-tece no que refere aos percentuais de cotas para modelos negros junto s iniciativas do setor de moda, que sempre ficam abaixo da representao da populao negra nos Estados em que se realizam esses empreendimentos.

    De toda forma, mesmo criticando as imperfeies do Estatuto, ele deve ser considerado como referncia indispensvel para compreendermos o alcance da luta antirracista no Brasil, bem como ferramenta a orientar a nossa interveno em nossas escolas.

    VOC ENCONTRAR AO FINAL DESTE FASCCULO, NA SEO DESTINADA A SUGESTES DE MATERIAIS PARA O TRABALHO NA ESCOLA, UMA RELAO DE AUTORES E RESPECTIVAS OBRAS QUE TRATAM DA TEORIA DE DIOP SOBRE A FRICA COMO BERO DA HUMANIDADE E DAS PRIMEIRAS CIVILIZAES.

    5. TRADIO AFRICANA E SEUS VALORES CIVILIZATRIOS: CONHECENDO E APRENDENDO A RESPEITAR

    Pesquisando sobre a anterioridade das civilizaes negras africanas em relao s demais civilizaes do planeta, o historiador e antroplogo senegals Cheikh Anta Diop foi o primeiro autor a afirmar, no seu consagrado livro Nations ngres et culture: de lantiquit ngre gyptienne aux problmes culturels de lAfrique noire daujourdhui, (Naes Negras e Cultura: da antiguidade negra egpcia aos problemas culturais da frica negra atual) publicado em 1954, que o homem (homo sapiens) surgiu sob as lati-tudes tropicais de frica, na regio dos Grandes Lagos. A cadeia de hominizao africana seria a nica completa, a mais antiga e, igualmente, a mais fecunda. Em outros lugares seriam encontrados fsseis humanos represen-tando elos esparsos de uma sequncia de hominizao imprecisa.A descoberta de Diop se tornou um marco do conhecimento sobre os primrdios da vida humana.

  • Educao para as Relaes Etnicorraciais 27

    Diop acrescenta que os primeiros homo sapiens provavel-mente possuam fentipo negro porque, segundo a regra de Gloger, os pigmentos escuros aumentam nos seres vivos que vivem nas regies quentes e midas, a fim de se protegerem dos raios solares. Para o autor, durante milnios houve na terra somente negros, e somente na frica, onde as mais antigas ossadas de homens moder-nos descobertas tm mais de 150.000 anos, enquanto que, em outros locais, os mais antigos fsseis humanos tm cerca de 100.000 anos. A tcnica de datao de fsseis arqueolgicos por meio do rdio carbono, utilizada pela primeira vez para este fim a partir do laboratrio criado por Diop na universidade de Dakar, em 1966, foi funda-mental para essas afirmaes.

    O ESQUELETO E O MODELO DE RESTAURAO DE LUCY EXIBIDOS NO MUSEU NACIONAL DE CINCIA DO JAPO.

    Se a frica o bero da humanidade3, conclui Diop que os mais antigos fenmenos civiliza-trios devem ter ocorrido necessariamente naquele continente. Ali o homem experimentou as mais antigas tcnicas culturais antes de conquistar o planeta, precisamente devido a elas. Assim, a confeco de utenslios em metais fundidos, a domesticao, a agricultura, o cozi-mento, a cermica, a sedentarizao, as primeiras cidades, etc. existiram na frica antes do que em qualquer outro lugar do mundo.

    Mas, o desenvolvimento dessas primeiras civilizaes humanas no foi possvel s em razo do sucesso dos experimentos tcnicos que permitiram aos homens e s mulheres superar desa-fios da vida material. Foi preciso criar regras de convivncia entre os prprios seres huma-nos e desses com toda a existncia manifesta nos outros seres e fenmenos da natureza.

    Tais regras de convivncia, transmitidas de gerao a gerao, por meio de narrativas pre-servadas pelos mais velhos, fundaram a tica e a filosofia, isto , a tica como os princpios morais que regem a conduta dos indivduos na comunidade e na vida social ampla; a filo-sofia como exerccio permanente de ponderao de todo o conhecimento, de modo a com-preend-lo para s ento assimilar o que ensinado.

    Apesar da violncia do colonialismo nas mltiplas invases que marcam a histria milenar da frica, os valores civilizatrios presentes na filosofia e na tica, implcitas na tradio afri-cana, persistem e continuam a servir de referncia para a organizao da vida.

    3 Em 1974, o paleontlogo Donald Johanson encontrou nas zonas ridas da regio remota de Afar, na Etipia, um pequeno esqueleto feminino de Australopithecus, que remonta a 3,2 milhes de anos atrs e que era capaz de andar ereto sobre duas pernas: apelidado de Lucy, tornou-se o fssil mais famoso do mundo.

  • 28 Formao de Dirigentes Sindicais

    Um exemplo pode ser encontrado no ubuntu, ele-mento da tradio afri cana que reinterpretado ao longo da histria poltica e cultural pelos afri-canos e em suas disporas, como no Brasil. Nos anos que vo de 1910 a 1960, o ubuntu apa rece como inspirao do pan-africanismo e da negri-tude, os dois movimen tos filosficos que ajuda-ram a frica a lutar contra o colonialismo e a obter suas independncias.

    Para os povos de lngua bantu, esse termo signi-fica eu sou porque ns somos. Essa filosofia do Ns pensa a comunidade, em seu sentido mais pleno, como todos os seres do universo, como famlia extensa. Portanto, nos termos dessa filo-sofia, os princpios da partilha, da preocupa o e do cuidado mtuo, assim como da solidariedade, constituem coletiva mente a tica do ubuntu.

    Etimologicamen te, ubuntu tem origem nas ln-guas shosa e zulu, entre povos da nao bantu que habi tam o territrio da Repblica da frica

    FILOSOFIA UM CONCEITO QUE ABRANGE VRIAS COISAS,

    PORTANTO PARA DEFINI-LA NECESSRIO FAZER

    UMA ESCOLHA. PODEMOS TOMAR A DEFINIO DADA

    PORMARILENA CHAUI, NO LIVRO CONVITE FILOSOFIA: A DECISO DE NO ACEITAR

    COMO BVIAS E EVIDENTES AS COISAS, AS IDEIAS, OS FATOS, AS SITUAES, OS VALORES,

    OS COMPORTAMENTOS DE NOSSA EXISTNCIA COTIDIANA;

    JAMAIS ACEIT-LOS SEM ANTES HAV-LOS INVESTIGADO

    E COMPREENDIDO.

    Foto: disponvel em http://www.mundoubuntu.com.br/sobre/curiosidades-do-ubuntu/63-origem-da-palavra-ubuntu (acesso em 25 mai 2016)

  • Educao para as Relaes Etnicorraciais 29

    LOGO NO INCIO DESTE FASCCULO, MOSTRAMOS QUE

    EXISTEM CENTENAS DE LNGUAS NATIVAS (SUAHILE, KIKOYO, SHOSA,

    IORUB E INMERAS OUTRAS), AINDA FALADAS NO CONTINENTE

    AFRICANO, QUE REMETEM A MILHARES DE ANOS ATRS. VOC

    ENCONTRAR AO FINAL DESTE FASCCULO, NA SEO DESTINADA A SUGESTES DE MATERIAIS PARA O TRABALHO NA ESCOLA, MSICAS

    EM ALGUMAS DESSAS LNGUAS.

    do Sul, o pas do lder sul-africano Nelson Mandela. Do ponto de vista filosfico e antropolgico, o ubuntu retrata a cosmo-viso do mun do negro-africano. o ele-mento cen tral da filosofia africana que concebe o mundo como uma teia de rela-es entre o divino (Oludumar/Nzambi Deus; Orixs/Vodus/Inkicies - os Ancestrais), a comuni dade (mundo dos seres humanos) e a natureza (composta dos seres animais, vegetais e minerais).

    Os princpios do ubuntu se tornaram referncia para o estudo de vrios inte-lectuais quando o Bispo Desmond Tutu se referiu a essa filosofia milenar para explicar como foi possvel a transio do Aphartheid para a democracia ampla-mente participativa na refundao da Repblica da frica do Sul.

    Porm, para o filsofo e telogo con-gols BasIlele Malomalo, esse pensa-mento vi venciado por todos os povos da frica negra tradicional e tradu-zido em to das as suas lnguas, porque se encontra na estrutura da cosmoviso do mundo negro-africano. Isso se explica quando consideramos que a frica o bero da humanida de e das civilizaes.

    A) VRIOS ESTUDIOSOS VM SE DEBRUANDO SOBRE ESSE TEMA. NA REVISTA DO INSTITUTO HUMANITAS UNISINOS (HTTP://WWW.IHUONLINE.UNISINOS.BR/INDEX.PHP?OPTION=COM_CONTENT&VIEW=ARTICLE&ID=3689&SECAO=353) ESTO RESUMIDAS, EM ENTREVISTAS, AS PRINCIPAIS IDEIAS DE ALGUNS DESSES PENSADORES. AQUI PROCURAMOS COMENTAR ESSAS IDEIAS. O FILSOFO E PSICLOGO SUL-AFRICANO DIRK LOUW AFIRMA QUE NS SOMOS POR MEIO DE OUTRAS PESSOAS, MAS TAMBM POR MEIO DE TODOS OS SERES DO UNIVERSO; O FILSOFO SUL-AFRICANO MOGOBE RAMOSE EXPE QUE A COMUNIDADE QUE NASCE DO UBUNTU UMA ENTIDADE DINMICA ENTRE OS VIVOS, OS MORTOS-VIVOS E OS AINDA NO NASCIDOS; A EDUCADORA SUL-AFRICANA DALENE SWANSON V O UBUNTU COMO UMA ALTERNATIVA ECOPOLTICA GLOBALIZAO ECONMICA NEOLIBERAL; O TELOGO NORTE-AMERICANO CHARLES HAWS, ANALISA O UBUNTU COMO LIBERDADE INDIVISVEL A PARTIR DAS CONTRIBUIES DO ARCEBISPO DESMOND TUTU; A FILSOFA E ADVOGADA NORTE-AMERICANA DRUCILLA CORNELL REFLETE SOBRE AS CONTRIBUIES DO UBUNTU PARA AS LUTAS FEMINISTAS E DOS GRUPOS DE DIREITOS HUMANOS EM GERAL; E O TELOGO CONGOLS E DOUTOR EM SOCIOLOGIA BASILELE MALOMALO, SITUA O UBUNTU DENTRO DO CONTEXTO SOCIAL BRASILEIRO, RELACIONANDO-O S COMUNIDADES TERREIROS.

    B) O UBUNTU PODE SER COMPREENDIDO COMO UMA ONTOLOGIA, UMA EPISTEMOLOGIA E UMA TICA, POIS SUA NOO MAIS FUNDAMENTAL A FILOSOFIA DO NS, SEGUNDO O FILSOFO SUL-AFRICANO MOGOBE BERNARD RAMOSE. O AUTOR EXPLICA QUE, NA FILOSOFIA UBUNTU, A COMUNIDADE LGICA E HISTORICAMENTE ANTERIOR AO INDIVDUO. COM BASE NISSO, A COMUNIDADE QUE POSSUI PRIORIDADE, E NO O INDIVDUO. EXPLICANDO TAMBM A IMPORTNCIA DE CULTUAR OS ANCESTRAIS, ARGUMENTA QUE ESSA COMUNIDADE DEFINIDA COMO UMA ENTIDADE DINMICA ENTRE TRS ESFERAS: A DOS VIVOS, A DOS MORTOS-VIVOS (ANCESTRAIS) E A DOS AINDA NO NASCIDOS.

  • 30 Formao de Dirigentes Sindicais

    Foto: disponvel em http://www.redeubuntu.com.br/pt-br/blog/colunas?page=11 (acesso em 25 mai 2016)

    NELSON ROLIHLAHLA MANDELA (1918-2013): ADVOGA DO, LDER REBELDE E EX-PRESIDENTE DA FRICA DO SUL DE 1994 A 1999. PRINCIPAL REPRESENTANTE DO MOVIMENTO ANTIAPARTHEID, COMO ATIVISTA, SABO TADOR E GUERRILHEIRO. CONSIDERADO PELA MAIORIA DAS PESSOAS UM GUERREIRO EM LUTA PELA LIBER DADE, ERA TIDO PELO GOVERNO SUL-AFRICANO COMO UM TERRORISTA, TENDO PERMANECIDO PRESO DURANTE 27 ANOS. FOI LIBERTADO EM 1990 DEPOIS DE UMA LONGA CAMPANHA INTERNACIONAL. EM 1990 FOI-LHE ATRIBUDO O PR MIO LNIN DA PAZ, RECEBIDO SOMENTE EM 2002. EM 1993 RECEBEU O PRMIO NOBEL DA PAZ JUNTAMENTE COM O ENTO PRESIDENTE DA FRICA DO SUL FREDERIK W. DE KLERK, A QUEM SUCEDERIA NA CHAMADA REFUNDAO DO PAS. FOI PRESIDENTE POR APENAS UM MANDATO, DE 1994 A 1999. FALECEU AOS 95 ANOS, A 5 DE DEZEMBRO DE 2013 EM HOUGHTON, JOANESBURGO, FRICA DO SUL.

  • Educao para as Relaes Etnicorraciais 31

    A partir tambm dessa considerao que melhor se pode compreender as razes pelas quais o culto aos antepassados fundamental para a organizao da vida na tradio africana.

    Sobre a importncia da religio, Malomalo considera que, para os africanos e seus descen-dentes, toda existncia sagrada. Assim, (...) a religio, como instituio social e sistema sim blico, apresenta-se como o espao privilegiado de alimentao da cons cincia ubuntus-tica . Por meio de seus ritos, seus sacerdotes e adeptos a rea tualizam. Os mitos, as celebra-es, os cantos e encantamentos desempenham essa funo de religar a pessoa com os deu-ses, antepassados, com a comuni dade, consigo mesmo, com o cosmos e a natureza.

    QUANDO OS MISSIONRIOS CHEGARAM, OS AFRICANOS TINHAM A TERRA E OS MISSIONRIOS A BBLIA. ELES NOS ENSINARAM COMO REZAR DE OLHOS FECHADOS. QUANDO ABRIMOS OS OLHOS, ELES TINHAM A TERRA E NS A BBLIA.

    JOMO KENYATTA

    Com as migraes intercontinen tais e a emergncia de outras civili zaes em outros espa-os geogrficos do planeta, essa mesma noo vai se expressar em outros povos que perten-cem s socie dades constitudas antes da era moderna. assim que se pode afirmar que essa forma de conceber o mundo, na sua complexidade, um patrimnio de todos os povos tradi-cionais ou pr-modernos.

    Entretanto, vivemos na atualidade uma grave contradio que se expressa no confronto entre essa viso holstica, contemplativa do coletivo sobre o individual, e o individualismo exigido e estimulado pelo sistema capitalista.

    Mesmo considerando que a filosofia e a tica que aprendemos e ensinamos na educao for-mal estejam impregnadas dos valores impostos pelo colonialismo, os valores civilizatrios da tradio africana permanecem entre ns, na dispora africana. Para vrios estudiosos, e tambm para boa parte dos sacerdotes e sacerdotisas, na sociedade brasileira esses valores civilizatrios no foram totalmente destrudos pelo colonialismo. Encontram-se remanescen-tes nas Comunidades Terreiros. Vendo dessa forma, os rituais religiosos praticados no espao sagrado dessas Comunidades representam apenas parte de um complexo cultural que pode contribuir, em muito, tanto para a educao das relaes etnicorraciais quanto para a busca de novos elementos para o bem-viver.

  • 32 Formao de Dirigentes Sindicais

    No entanto, ns, trabalhadores/as em educao, dada a falta de compreenso acerca dessa viso cosmognica e cosmolgica e, quando muito, com uma viso reducionista dessa filoso-fia e tica aos ritos meramente religiosos, como estes so pensados no Ocidente, inviabiliza-mos o conhecimento e a viso respeitosa dos cultos afro-brasileiros. E bom que se diga que muitas vezes os prprios praticantes da tradio africana tambm ignoram essa viso que aqui apresentamos. No raramente, estes tambm assimilam e realimentam, por convenin-cia, a viso distorcida e preconceituosa que desqualifica todo esse legado.

    Mesmo considerando a intromisso crescente das expedies missionrias do cristianismo catlico e evanglico, no passado e no presente das sociedades africanas, ainda assim, em praticamente todas as culturas daquele continente praticam-se cultos tradicionais ances-tralidade. Nos lugarejos ou nas cidades onde persistem esses cultos, os antepassados so hon-rados como espritos que preservam os padres morais da vida comunitria e social ampla, como tambm so considerados como os intermedirios entre os vivos e os poderes divi-nos. Apesar da truculncia do colonialismo, esses e outros elementos invariveis da viso de mundo negro-africana, como j assinalamos, persistem aqui, nos Terreiros.

    A relao entre uma pessoa e os seus antepassados vista como uma relao de convivn-cia e ligao que vai em ambos os sentidos e influencia em ambas as direes. Ou seja, as pessoas agem em colaborao com os seus antepassados para o fortalecimento do grupo, e o grupo reverencia e invoca os seus antepassados para a constante atualizao e reorgani-zao da vida. Compreende-se que Deus o criador, a fora suprema responsvel por toda a vida no Cosmos. Isto inclui os antepassados, mas Ele est demasiado longe para ouvir as oraes dos mortais comuns, esses dentre os quais so escolhidos, pelos antepassados, como aqueles que interpretaro a vontade de Deus na terra. Assim, se os antepassados mortos se comunicam com Deus, mediando entre Ele e a humanidade, estar conectado com muitas geraes de antepassados sentido como fonte de energia e poder para assegurar o bem-es-tar de todos e de tudo.

    O comrcio de gente, por longos trs sculos, produziu certa desorganiza-o dos referenciais filosficos, teo-lgicos e epistemolgicos do sistema cultural dos povos africanos intro-duzidos nas Amricas pela dispora. Desde as negociaes nos entrepos-tos comerciais travessia forada do Atlntico, foram sendo criadas novas relaes entre escravizados de dife-rentes origens tnicas no continente africano, que se refletiriam na frag-mentao das memrias das formas de dinamizar a vida nos seus lares.

    Especificamente, determinados elementos que compem a cosmoviso implcita na tradio africana, se amalgamaram e se revitalizaram no Caribe e nas Amricas, tendo sido adequa-dos conforme as diferentes formas assumidas nas regies em que se empreendeu o traba-lho escravo. Esses elementos, no entanto, na medida do que foi possvel mediante a violn-cia colonial, permaneceram resguardados exatamente nos lugares clandestinos de culto aos ancestrais. Os elementos invariveis nessa tradio foram ento reorganizados nos Terreiros, de acordo com as especificidades de cada localidade, mas foram mantidos para a posteridade.

  • Educao para as Relaes Etnicorraciais 33

    Quando se persegue, ataca e insulta os vivenciadores desse complexo cul-tural, essas aes revelam mais do que a rejeio a uma religio. Mesmo quando se apela para a defesa des-sas religies, identificando tais aes como intolerncia religiosa, se comete um equvoco. Essa atitude no leva em considerao que o que seria no tolerar ou no aceitar significa a negao, na verdade, desses princ-pios civilizatrios, portanto a negao da humanidade ali representada. Isso racismo. A representao das reli-gies de matriz africana vinculadas ao mal uma das formas que o racismo se apresenta na sociedade brasileira. Neste contexto, uma das perversida-des dessa ideologia de dominao ori-ginada no colonialismo transformar parte dos prprios adeptos dos cul-tos em reprodutores ou estimuladores, por ignorncia, dessa imagem mal-fica socialmente construda.

    Educar para as relaes etnicorraciais significa educar para conhecer e res-peitar as diferentes matrizes filosfi-cas, ticas, culturais, epistemolgicas que compem as diferentes tradies constitudas ao longo da presena humana no planeta. Cada tradio expressa isso por meio de suas ln-guas, mitos, religies, manifesta es artsticas. Essa compreenso deve ser o ponto de partida para refletir sobre o currculo escolar e as prticas peda-ggicas que do vida escola. Mas, para avanar nessa reflexo, todo/a trabalhador/a da educao precisa rever seus conceitos e (pr)concei-tos, oferecendo a si mesmo/a a opor-tunidade de desconstruir a sua viso etnocntrica e se libertar da menta-lidade colonialista.

    VEJAMOS, POR EXEMPLO, O MITO DE CRIAO DOS SERES HUMANOS NA TRADIO YORUB, COMO DESCREVE UM INICIADO NA TRADIO AFRICANA, O ESCRITOR PAULO CESAR PEREIRA DE OLIVEIRA, NO LIVRO CONTOS E CRNICAS DO MESTRE TOLOMI FRICA VIVA NO BRASIL (2011): COM A CRIAO DA TERRA, OLDNMAR PASSOU A SE PREOCUPAR EM COMO POVO-LA. ENTO, CHAMOU OBTL, RIS CUJO NOME SIGNIFICA O SENHOR DO POVO BRANCO, E O ENCARREGOU DE CRIAR OS SERES HUMANOS. OBTL COMEOU A PROCURAR PELA MATRIA-PRIMA MAIS ADEQUADA PARA REALIZAR A SUA MISSO. DEPOIS DE VRIAS TENTATIVAS MAL SUCEDIDAS, DECIDIU PEDIR SUGESTES A VRIAS DIVINDADES [...]. OGN TROUXE IRIN, FERRO, MAS NO SERVIU POR SER MUITO RIJO. SNG TROUXE IGI, MADEIRA, QUE TAMBM NO SERVIU, POIS MESMO NO SENDO TO RIJA QUANTO O FERRO, NO ERA SUFICIENTEMENTE MALEVEL PARA O QUE ELE PRETENDIA. OSUN TROUXE OMI, GUA, MAS NO ERA MOLDVEL. OYA TROUXE EFF LL NI JIGIJIGIO GRANDE VENDAVAL QUE CORTA A COPA DAS RVORES, QUE RAPIDAMENTE SE ESVAIU. OBTL J ESTAVA DESANIMADO QUANDO APARECEU IKU, TRAZENDO UMA PORO DE ALAMON (ARGILA). PERCEBENDO A A MATRIA IDEAL, PEDIU QUE IKU LHE TROUXESSE EM MAIOR QUANTIDADE. MAS IKU SE VIU DIANTE DE UM PROBLEMA. ONIL, SENHORA DA TERRA, PODERIA NO CONCORDAR COM A RETIRADA DE UMA PARTE TO SUBSTANTIVA DE SI PRPRIA. LEMBROU DO QUE OLDNMAR DISSERA: TODAS AS RIQUEZAS E PODERES QUE POSSUEM ADVM DE ONIL, A SENHORA DA TERRA. APS PENSAR MUITO, IKU PROCUROU ONIL PARA PROPOR UM PACTO, QUE ATENDESSE A NECESSIDADE DE OBTL DE ARGILA PARA MOLDAR OS SERES HUMANOS, MAS QUE AO MESMO TEMPO GARANTISSE A INTEGRIDADE VITAL DA SENHORA DA TERRA, SEM A QUAL A EXISTNCIA DE CADA ORIS SE INVIABILIZARIA. PROMETEU A ONIL RESTITUIR TERRA CADA SER HUMANO, QUANDO SUA JORNADA NO AIY FOSSE CONCLUDA. ASSIM, IK, A MORTE, TORNOU-SE RESPONSVEL PELA MORTE FSICA DOS INDIVDUOS, DEVOLVENDO-OS TERRA. FEITO O PACTO, OBTL PDE INICIAR A TAREFA A QUE OLDNMAR LHE CONFERIRA [...]. OCORRE QUE O SENHOR DO PANO BRANCO, SEMPRE GOSTOU DE EM (VINHO DE PALMA). OCASIONALMENTE, DEVIDO AO EXCESSO DE EM, COMETIA ALGUM ERRO NA FORMATAO DOS SERES HUMANOS, DANDO ORIGEM AOS FIN (ALBINOS), ABUKE (CORCUNDAS), AFOJ (CEGOS), ETC. AT HOJE, NAS COMUNIDADES TRADICIONAIS YORUB, AS PESSOAS PORTADORAS DE QUALQUER DEFICINCIA FSICA SO ENCAMINHADAS AO CULTO A OBTL, PARA QUE ELE CORRIJA O SEU ERRO, E SO MUITO RESPEITADAS COMO SACERDOTES E SACERDOTISAS DO SENHOR DO PANO BRANCO.

  • 34 Formao de Dirigentes Sindicais

    6. JUVENTUDE NEGRA: SOBREVIVNCIA, EDUCAO E FUTURO

    O Brasil est diante de uma realidade de matana generalizada da sua populao jovem, notada-mente os jovens negros, que so as principais vtimas da violncia letal. Em 2012, segundo a prvia do Mapa da Violncia publicado em 2014, as mortes juvenis (de indivduos de 15 a 29 anos) provocadas por causas externas repre-sentaram 71,1% do total de mortes, enquanto para a populao no jovem esse ndice foi de 8,8%; os homicdios juvenis tiveram partici-pao de 38,7% na mortalidade total, sendo 93,3%, jovens do sexo masculino; entre os no jovens, 2,4% das mortes por causas externas foram decorrentes de homicdios.

    AS CAUSAS EXTERNAS DE MORTE, SEGUNDO PADRES INTERNACIONAIS DA ORGANIZAO MUNDIAL DE SUDE, SO AQUELAS NO NATURAIS, ENGLOBANDO HOMICDIOS, SUICDIOS E ACIDENTES.

    (IBGE- PNAD 2004-2014)

    2004

    2014

    13,50%

    21,50%

    17,10%

    10%

    17,70%14%

    brancas negras total

    Proporo de trabalhadoras domsticas entre as mulheresocupadas de 10 anos ou mais de idade, segundo cor e raa

  • Educao para as Relaes Etnicorraciais 35

    Esse quadro ainda mais aterrador para a juven-tude negra: no perodo de 2002 a 2011, a participa-o de jovens negros no total de homicdios no pas se eleva de 63% para 76,9%, enquanto que a parti-cipao de jovens brancos decresce de 36,7% para 22,8%. Os nmeros mostram ainda que a vitimiza-o dos jovens negros, no mesmo perodo, subiu de 79,9 para 168,6; isso quer dizer que para cada jovem branco assassinado, h 2,7 jovens negros vtimas de homicdio. Esse cenrio to alarmante que ativistas e especialistas tm denominado o fenmeno degeno-cdio da juventude negra.

    MAS, O QUE H POR TRS DE TAMANHA

    DESIGUALDADE NOS PADRES DE MORTALIDADE ENTRE NEGROS E BRANCOS

    EM NOSSO PAS? A) SEGUNDO O SITE DA CAMPANHARACISMO MATA, O TERMOGENOCDIOREFERE-SE A CRIMES QUE TEM COMO OBJETIVO A ELIMINAO DA EXISTNCIA FSICA E SIMBLICA DE DETERMINADOS GRUPOS, EM RAZO DA ORIGEM TNICA, RACIAL E/OU RELIGIOSA. DISPONVEL EM . ACESSADO EM 27 DE JULHO DE 2014.

    B) NO PRIMEIRO SEMESTRE DE 2016 ENCONTRAVA-SE EM TRAMITAO NA CMARA DOS DEPUTADOS EM BRASLIA LEI SOBRE AUTOS DE RESISTNCIA. ESTA LEI CRIA REGRAS RIGOROSAS PARA A APURAO DE MORTES E LESES CORPORAIS DECORRENTES DAS AES DE AGENTES DO ESTADO, COMO POLICIAIS, ESSES CASOS DEVERO TER RITO DE INVESTIGAO SEMELHANTE AO PREVISTO PARA OS CRIMES PRATICADOS POR CIDADOS COMUNS, ALTERANDO ARTIGOS 161, 162, 164, 165, 169 E 292 DO CDIGO PENAL BRASILEIRO.

    O genocdio4 muitas vezes iniciado devido a sentimentos de xenofobia e consiste na inteno de eliminar total-mente, ou em parte, um grupo ou comunidade com a mesma caracters-tica tnica, racial, religiosa ou social. Tambm podem ser consideradas como genocdio prticas como o ataque inte-gridade fsica ou psquica; a imposio a viver em condies desumanas que podem levar morte; a transferncia, por coao, de crianas de um determi-nado grupo tnico para outro.

    A Comisso Parlamentar de Inqurito (CPI/2015) que investigou casos de violncia contra jovens negros e pobres no Brasil concluiu que essa parcela da populao vem sendo vtima de uma espcie de genocdio simblico.

    4 Genocdiosignifica aexterminao sistemticade pessoas, tendo como principal motivao as diferenas de nacionalidade, raa, religio e, principal-mente,diferenas tnicas. uma prtica que visa a eliminar minorias tnicas em determinada regio.

  • 36 Formao de Dirigentes Sindicais

    Estatsticas e fatos apurados pela CPI ao longo de quatro meses colocam o homicdio como a principal causa de morte de brasileiros entre 15 e 29 anos e definem o perfil predominante das vtimas: negros do sexo masculino, com baixa escolaridade e moradores das periferias.

    A grande desigualdade confirmada pela chance 3,7 vezes maior de um adolescente negro ser vtima de homicdio, se comparado a um adolescente branco. A ausncia ou insuficin-cia de servios pblicos bsicos, tais como educao e lazer, nos lugares onde a maior parte da populao negra so apontadas como fatores principais. Por isto indicamos aqui a edu-cao pblica como corresponsvel por esse fenmeno, ao no ter sido capaz ainda de atrair e manter esses jovens no ambiente escolar. A vulnerabilidade em que se encontram pode ser explicada, em boa parte, pela falta de identificao desses jovens com a escola. O currculo escolar e as prticas pedaggicas desenvolvidos em geral no cumprem essa finalidade, pois permanecem longe de reconhecer e valorizar a sua histria, cultura e tradies como requer a aplicao da Lei n 10.639/2003.

    Assassinato de jovens no Brasil(Taxas por grupos de 100 mil habitantes)

    jovens negros

    jovens brancos

    81,6 25,1

    105,2 21,4

    100,3 34,7

    58,6 24,5

    53,8 46,7

    Norte

    NordesteCentro-Oeste

    Sudeste

    Sul

    Fonte: Mapa da Violncia 2014

  • Educao para as Relaes Etnicorraciais 37

    Apesar de reconhecermos, pelo menos no nvel do discurso, que a diversidade nos enriquece, sabemos que nas relaes de poder, dentro e fora da escola, as diferenas socialmente cons-trudas entre brancos e negros foram natura-lizadas e transformadas em justificativas para as desigualdades entre esses dois segmentos.

    A educao tem um papel fundamental na busca de equidade e mais oportunidades para todos e todas, mas a juventude negra continua preferindo o fundo da sala de aula. A abordagem dos contedos formulados para o Ensino Mdio e a Educao de Jovens e Adultos ainda no dialoga com essa face da realidade social brasileira. Os/as educadores/as ainda no reconhe-cem na trajetria dos sujeitos presentes na comunidade escolar os saberes, a memria e os sinais do enfrentamento cotidiano das desigualdades socioeconmicas e raciais.

    Na relao construda entre educadores e educandos, o estmulo afirmao das identidades racial e cultural dessa juventude deve ser considerado como elemento essencial para a produo de conhecimentos potencialmente transformadores das relaes de poder que se desenrolam na escola. Esse o ponto de partida para o exerccio de uma prtica pedaggica comprometida com a superao da educao pautada nica e exclusivamente pela nossa matriz etnicorracial e cultural europeia. Tendo em vista esse comprometimento, necessrio propor e executar aes efetivas de enfrentamento dessa realidade, a comear pelo acolhimento dessa juventude no ambiente escolar.

    37% 37% 33% 34%

    95% 95% 92% 94%

    42%61%

    29% 39%

    15% 17%4% 6%

    0%

    20%

    40%

    60%

    80%

    100%

    homembranco

    mulherbranca

    homemnegro

    mulhernegra

    Taxa de escolarizao lquida por cor/raa e sexo,segundo nvel de ensino

    (PNAD/2004)

    educao infantil ensino fundamental ensino mdio ensino superior Srie 5

  • 38 Formao de Dirigentes Sindicais

    7. NEGRAS MULHERES, TRAJETRIAS DE LUTA E RESISTNCIA: NOSSOS PASSOS VM DE LONGE

    Llia Gonzales

    Tereza de Benguela

    Luiza Mahim

    Aqualtune

    Carolina de Jesus

    Tia Ciata

    Dandara dos Palmares

    Me Menininha do Gantois

    Luiza Bairros

    Ao longo de toda a nossa conversa estamos falando de luta e resistncia negra contra as diferentes expresses do racismo na sociedade brasileira. Nessa parte do fascculo evocamos Llia Gonzales, Carolina de Jesus, Luiza Mahim, Dandara dos Palmares, Tereza de Benguela, Tia Ciata, Aqualtune, Me Menininha do Gantois, Luiza Bairrose outras grandes negras mulheres para o nosso dilogo com voc, trabalhadora e trabalhador em educao, a partir do legado de fora e coragem marcante nas trajetrias dessas mulheres para enfrentar no dia-a-dia, nesta sociedade, a discriminao por ser mulher e por ser negra.

    O sexismo, a opresso de classe e o racismo, prticas sociais que so ligadas entre si na chamada intersec-cionalidade, violentam e matam. Mas, quando aprende-mos a reconhecer a sua existncia, tambm podem indi-car caminhos para o seu enfrentamento e superao na medida em que o nosso trabalho no ambiente escolar encoraja a construo, fortalecimento e defesa das iden-tidades de gnero.

    Na sociedade brasileira as ideologias do racismo e do machismo se encontram na base das relaes entre as pessoas, e interferem muito fortemente na hierarquizao dos grupos diferentes de indivduos. Nesse caso, enten-der o protagonismo das mulheres negras na nossa hist-ria, no passado e no presente, permite rediscutir essas relaes, refletir sobre os lugares a que sempre foram obrigadas a ocupar, em decorrncia destas violncias, e mudar a forma como essas mulheres tm sido representa-das nos vrios setores da sociedade, inclusive na educao.

    As trajetrias das mulheres negras ainda no so con-templadas efetivamente nos livros escolares e na educa-o formal, mas preciso mergulhar na histria real do Brasil e redescobrir as suas memrias de luta e sobrevi-vncia, pois o desconhecimento causa a perpetuao do sofrimento.

    No so escravizadas e nem objetos de desejo, so negras mulheres cidads que contriburam e contribuem para a construo desta sociedade. Entretanto, o que poderia ser considerado como histria ou reminiscncias do perodo colonial permanece vivo no imaginrio social, e adquire novos contornos e funes em uma ordem social supos-tamente democrtica.

  • Educao para as Relaes Etnicorraciais 39

    De modo geral, a dominao e apro-priao social das mulheres objeti-vam perpetuar este lugar de donas do lar, musas, mulatas, boas de cama, amas de leite, cuidadoras, lugares que as mulheres quando resis-tem a ocupar, essa resistncia a leva a enfrentar todos os dias o machismo e o sexismo que insistem em as manter como subproduto do homem. O movi-mento feminista, que ganhou noto-riedade no Ocidente denunciando o machismo e o sexismo e propondo um novo olhar das sociedades para as contradies de gnero, se mos-trou incompleto para dialogar com as especificidades das demandas das mulheres negras nos pases da dis-pora africana.

    Um novo olhar, ao mesmo tempo antirracista e feminista, fundamen-tal para uma reviso dos conceitos e identificao dos preconceitos que tantas vezes reproduzimos ou ali-mentamos no ambiente da escola. esse o caminho que permitir a des-construo dos valores forjados pela mentalidade colonialista e cristaliza-dos na nossa formao, dentro e fora da vida acadmica e escolar.

    Uma questo igualmente importante para dialogar a esttica da mulher negra, que mesmo em face de alguns cenrios favorveis introduzidos ulti-mamente pelas mdias, em geral con-tinua desvalorizada, causando sofri-mento, baixa autoestima, depres-so e morte. A auto representao do corpo, especialmente do cabelo, simbolicamente importante na cons-truo de identidade negra, este um ponto de vista importante para a psi-canalista Neusa Souza Santos, que afirmava que ser negra no Brasil tornar-se negra.

    NEUSA SOUZA SANTOS PSICANALISTADE ORIENTAOLACANIANAE ESCRITORA, NASCIDA NA BAHIA, MILITOU DESDE ADCADA DE 1980CONTRA O PRECONCEITO E PELA IGUALDADE RACIAL NO PAS. ESCREVEU ARTIGOS E CRNICAS EM JORNAIS E REVISTAS. ENTRE SEUS ESCRITOS DESTACA-SE O LIVRO TORNAR-SE NEGRO, UM CLSSICO PUBLICADO PELA EDITORA GRAAL (1983), BASEADO EM ESTUDO DE CASOS EM QUE DEMONSTRA COMO O NEGRO SUBJUGADO EM UMA ESTRUTURA QUE O NEGA ENQUANTO SUJEITO PORTADOR DE UM OUTRO ETHOS CULTURAL OU OUTRO JEITO DE SER E DE ATRIBUIR VALORES A SI E AO MUNDO. DIZ A AUTORA QUE UMA DAS FORMAS DE EXERCER AUTONOMIA POSSUIR UM DISCURSO SOBRE SI MESMO, REFERINDO-SE CONSTRUO DE UM DISCURSO DO NEGRO SOBRE O NEGRO, NO QUE TANGE SUA EMOCIONALIDADE. MORREU EM 20 DE DEZEMBRO DE 2008, COM 60 ANOS DE IDADE, AO SE SUICIDAR, LANANDO-SE DO ALTO DE UMA CONSTRUO NOBAIRRO DE LARANJEIRAS, NORIO DE JANEIRO, DEIXANDO APENAS UM BILHETE PEDINDO DESCULPAS POR SEU ATO.

  • 40 Formao de Dirigentes Sindicais

    A fortssima vinculao da sociedade bra-sileira viso etnocntrica e eurocntrica prevalece tambm no modelo esttico de beleza. Esse modelo muitas vezes conduz as negras mulheres a um branqueamento da sua esttica para serem aceitas ou tole-radas nos lugares onde se desenvolvem as relaes em sociedade. Especialmente no que refere ao cabelo, este passa a ser um marcador de dor, porque comumente a mulher negra violentada psicologica-mente para no se reconhecer nele, o que alimentado, inclusive com banalidade, nas escolas. Neste desafio para tornar-se negra, a representao da sua esttica sinnimo de tenso e de superao. Ou seja, o cabelo, e tambm a imagem na sua extenso corprea, pode representar a sub-misso ou o rompimento com esse modelo, levando ou no superao de conflitos.

    Romper com os padres estticos romper com o racismo e enfrentar corajosamente uma sociedade que prioriza valores fun-dados em uma nica matriz civilizatria, desconsiderando e negando outros valores igualmente civilizatrios, porm diferentes e diversos. Significa produzir conhecimento sobre a simbologia do cabelo, informando e estimulando as estudantes negras a valori-zarem o seu prprio cabelo como herana tnicorracial. Porque, para alm