Faure, jean philippe - educar sem punições nem recompensas

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Jean-Philippe Faure

Educar sem puniçõesnem recompensas

Tradução de Stephania Matousek

EDITORA

VOZES

Petrópolis

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Éditions Jouvence, 2005 Chemin du Guillon 20

Case 184CH-1233 — Bernex

http://[email protected]

Título original francês: Éduquer sans punitions nirécompenses

Direitos de publicação em língua portuguesa:2008, Editora Vozes Ltda.

Rua Frei Luís, 10025689-900 Petrópolis, RJ

Internet: http://www.vozes.com.brBrasil

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fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema oubanco de dados sem permissão escrita da Editora.

Diretor editorial Frei Antônio Moser

EditoresAna Paula Santos Matos

José Maria da SilvaLídio Peretti

Marilac Loraine Oleniki

Secretário executivo João Batista Kreuch

Editoração: Frei Leonardo A.R.T. dos SantosProjeto gráfico: AG.SR Desenv. Gráfico

Capa: WM Design

ISBN 978-85-326-3683-6 (edição brasileira)ISBN 2-88353-422-5 (edição suíça)

Este livro foi composto e impresso pela Editora Vozes Ltda.

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SumárioPreâmbulo................................................................................................5

1 Experiência pessoal e motivação..........................................................6

2 Os objetivos da educação .....................................................................9

3 Atenção ao sentido que você dá às suas mensagens.........................12

4 Vamos parar de achar que o erro é um problema .............................14

5 A crítica vista como uma oportunidade..............................................18

6 Uma boa acolhida ...............................................................................21

7 A empatia, um apoio à nossa capacidade de acolhida.......................23

8 Oferecer nossa presença ....................................................................26

9 Respeito por nossos sentimentos.......................................................29

10 Uma pedagogia da espontaneidade.................................................32

11 Aprender a não saber tudo, uma pedagogia não-diretiva ...............35

12 O problema dos limites.....................................................................38

13 O valor da palavra.............................................................................43

14 Observar ou imaginar o mundo........................................................46

15 O triângulo relacional .......................................................................49

16 A relação de confiança......................................................................52

17 Confrontar-se com as exigências......................................................54

18 Um dia de Ivan, estudante em 2020.................................................57

19 As características de uma escola não-diretiva..................................59

20 Abertura............................................................................................62

Bibliografia .............................................................................................63

Para saber mais......................................................................................64

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Preâmbulo

Ao buscar a simplicidade e tendo pouco espaço disponível num livrodestinado a uma coleção de bolso, fui levado a exprimir algumas crenças comoverdades, e não do jeito que eu gostaria de vivê-las, ou seja, como hipóteses.Apesar dos cortes que foram feitos, não desejo passar a idéia de que tenho apretensão de ter certeza (quero dizer, a cristalização de um esquema depensamentos imutável) do que quer que seja.

Eu ficaria aliviado se os leitores não quisessem aderir de imediato ao queestá escrito e experimentassem por completo o alegre movimento da crítica, quecoloca em questão todas as noções (tanto as nossas como as dos outros).

O conteúdo deste livro se baseia na, e é limitado pela, minha experiência deformador em Comunicação Não-Violenta na Suíça e na França. Às pessoas quedesejam compreender melhor os fundamentos dessa prática, indico os livros deseu criador, Marshall Rosenberg.

Optei por não abordar vários aspectos ligados a uma pedagogia cooperativa,como por exemplo a tomada de decisão através de um consenso ou a gestão dasregras, por causa da amplitude desse tema, que será tratado em outro livro.

Foram muitas as pessoas que me apoiaram na redação deste livro, e, porisso, é impossível citar todas elas. No entanto, gostaria de registrar umagradecimento especial a Aline Bourrit, Christiane Goffard e Patrick Wouters,cujas contribuições foram muito preciosas para me ajudar a esclarecer tanto aminha iniciativa quanto estas páginas.

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1Experiência pessoal e motivação

Um dia, eu esperava a mim mesmo e me dizia: "Guillaume, jáé hora de aparecer", para que eu, enfim, conhecesse aqueleque eu sou.

Guillaume Apollinaire

Como bilhões de outras crianças, aprendi a deixar de lado a relaçãocomigo mesmo. Aprendi a renegar meus sentimentos e confiar nas crenças dosadultos. Aprendi a negar voluntariamente as minhas emoções e varrer astensões para debaixo do tapete. Aprendi a conceder o essencial do meu tempoaos meus pensamentos e alguns minutos de esmola ao meu corpo, fazendo-ocalar-se quando gritava de fome. Essa obra de destruição, de separação, derecalque se chama "educação".

Dos seis aos dezoito anos, acumulei um saber que era completamenteexterior a mim. Inculcaram-me milhares de noções para as quais eu via poucautilidade, em detrimento de assuntos que despertavam minha curiosidade. Aoterminar a escola, as conjugações dos verbos me eram mais familiares do que ointerior do meu corpo. Eu sabia os nomes da maioria dos países do mundo, masera incapaz de exprimir o sentimento que eu trazia no peito. Aliás, eu ignoravasua presença: a escola tinha contribuído para me transformar num analfabetoemocional.

Mas tive sorte, porque todos esses anos de escola não abafaramcompletamente a minha curiosidade. Pouco a pouco, aprendi a rever o mundocomo uma matéria viva e redescobri a alegria de explorar algo quando apesquisa possui alguma ligação com o meu profundo ardor. A Comunicação Não-Violenta (que a partir de agora chamarei de CNV) me permitiu mergulhar emassuntos de estudo dos quais, que eu me lembre, nenhum professor tinha mefalado: reaproximar-me dos meus sentimentos e necessidades, expressar minhaautenticidade, encontrar meu lugar num grupo, administrar os conflitos comconfiança e benevolência...

Percebi a que ponto essa via que a CNV desenvolve me tinha feito faltadurante os anos de escola. Depois, pouco a pouco, uma pedagogia mais global,

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que levava em consideração o pleno potencial do ser humano, revelou-se paramim. Não bastava levar em conta o aspecto relacional na educação semmodificar a estrutura do ensino, como alguns professores me perguntaramdurante meus seminários. Comunicar-se de outra forma implica mudar suamaneira de ser consigo mesmo e sua relação com o mundo. Surgiu então umapedagogia desconcertante: da presença a si mesmo e não mais da ausência; doencaminhamento e não mais do objetivo; do instante e não mais do programa.Tratava-se de fazer uma revolução tão completa que se modificariam todos ospontos de referência de nossa sociedade, uma vez que ela deveria arrancar asprofundas raízes da violência, ou seja, a cultura e as crenças.

Por ter colocado a minha vida focada no plano da imaginação, estouciente do perigo de uma existência virtual. Já constatei a que ponto minharelação com a realidade pode ser frágil e o quão facilmente posso voltar amergulhar num universo de ficções quando o acontecimento que estou vivendome perturba emocionalmente. Isso me tornou sensível ao sofrimento que, emlongo prazo, essa ruptura com a realidade pode provocar nas crianças.

Por isso, não consigo me impedir de sonhar com a força de vida quemudaria a nossa Terra se a educação pudesse ajudar os jovens, mesmo queapenas cem mil, a realizar o seu pleno potencial; se o aprendizado contribuíssepara formar seres humanos autônomos, sensíveis ao seu meio ambiente e emcontato consigo mesmos.

Essas são algumas pistas que seguem a direção da visão pela qualconvido você a me acompanhar.

Na prática das escolas, a educação estagnou na acumulação de saberes ena aquisição de modos de pensar, em detrimento de todas as outras formas deinteligência. Essa focalização nas capacidades mentais restringe o poder deadaptação do indivíduo. No meu trabalho de acompanhamento em CNV, conhecivárias pessoas que conhecem seus problemas, o que poderiam fazer paramelhorar... e que, é claro, não conseguem, apenas com a compreensãointelectual, abandonar o esquema do qual gostariam de se libertar. Para operar atransformação que desejam, elas devem desenvolver suas inteligências corporale emocional.

Quanto à família, cada vez menos os pais podem dedicar o melhor desua atenção aos seus filhos: as pressões do sistema econômico os levam avoltarem para casa sobrecarregados e esgotados. Além disso, sejam quais foremos méritos do que eles conseguem transmitir, os valores que podem encarnar se

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opõem à poderosa inanidade daqueles que a cultura veicula. Assim, as criançassão desorientadas por mensagens contraditórias.

E mais, um forte condicionamento faz com que os jovens não obtenhamo mesmo respeito intrínseco que os adultos. Sejam quais forem os lugares deencontro, a atitude se modifica se a pessoa com que se fala for "menor" ou"maior de idade". Durante minha infância, vivi dolorosamente essa diferença deatenção e permaneci bastante sensível a essas variações de respeito. Ainda hoje,quando escuto na rua um adulto gritar com um outro ser vivo, com freqüênciapreciso me virar para ver se ele se dirige ao seu cachorro ou ao seu filho. Omesmo tom, as mesmas entonações e as mesmas palavras são empregadas nosdois casos.

Aspiro a viver num mundo liberto dos jogos de poder ligados à idade eonde os antigos sistemas de crenças que os fundam desapareçam. Uma dasminhas amigas tem quatro anos. É claro que os assuntos de minhas conversascom ela não são os mesmos que com outras pessoas conhecidas: o senso dehumor nessa idade não é igual àquele que se tem aos quarenta anos. E, noentanto, não vejo diferença profunda entre essa amizade e as outras.

Paradoxalmente, ao lado dessa fundamental falta de consideração paracom os jovens, vejo-os com freqüência com uma liberdade de ação e de discursoque me espanta! Assisto a cenas nas quais professores olham, impotentes,jovens quebrarem o material que lhes foi oferecido; escuto pais que se deixaminsultar sem reação (não se trata de acreditar no insulto, mas de reagir àangústia que está por trás dele); observo sem parar anúncios destinados àscrianças, alçadas ao patamar supremo de consumidores. Vejo acordarem umaliberdade de comportamento que, porém, não é vivida a partir de um respeitoprofundo. Esse desacordo cria uma confusão e uma violência germinal que meaterrorizam.

Em matéria de educação, tenho a impressão de viver, assim como Aliceno país das maravilhas, do outro lado do espelho da lógica. As crianças nãopodem contar com uma abertura para as suas necessidades nem com umaclareza no plano das regras e valores. Os adultos lhes concedem uma recusaquando elas desejam ser escutadas e uma permissividade quando a firmeza seriaum poderoso apoio para elas.

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2Os objetivos da educação

A educação correta cultiva o nosso ser inteiro, a totalidade danossa alma. Ela oferece, ao nosso espírito e ao nosso coração,profundeza e compreensão da beleza.

Krishnamurti

Frente aos desafios do nosso tempo, onde a humanidade é responsávelnão somente pela sua sobrevivência como também pela de milhões de outrasespécies, seria de se esperar que a educação fosse o alvo de todas as atenções,permitindo aos jovens desenvolverem as capacidades de adaptação que essecontexto requer. No entanto, constato com tristeza que a educação contem-porânea é baseada em paradigmas que perpetuam antigos condicionamentosdestrutivos:

A submissão às crenças dominantes e às autoridades exteriores.

São os pais, os professores, depois os chefes, os políticos, etc. quesabem o que é bom para o jovem.

A aquisição de saberes e técnicas que permitem exercer um papelconforme às grandes normas sociais.

A educação consiste essencialmente na acumulação de um saberreconhecido por um grupo ou pela sociedade. O tipo de matérias adquiridas dádireito a um certo status social: admite-se que uma competência em literaturaou medicina tem mais valor do que em eletricidade ou jardinagem.

A assimilação de um sistema de comparação e competição pelosestudantes.

Na maior parte das escolas, os alunos adquirem os esquemas dacomparação. Espera-se de cada indivíduo um desempenho definido globalmentede antemão. Os objetivos são os mesmos para cada um e os membros de umgrupo são comparados entre si de acordo com seus resultados. O esquema dacomparação gera o da competição: os alunos não trabalham em função de si

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mesmos, mas sim para ultrapassar os outros.

Através do meu trabalho de formador em CNV, pude constatar a queponto essas noções de comparação e competição provocam violência. Osestudantes são condicionados a responder às exigências do sistema e, paraconsegui-lo, criam para si mesmos exigências internas (ou, segundo a definiçãoque lhes é dada em CNV, a dolorosa pressão quanto a um objetivo, que nos isolada necessidade do instante). Eles se acostumam a só obter um reconhecimentopositivo se conseguirem produzir resultados conformes às expectativasprojetadas sobre eles. Ao terminar a escola, eles terão acumulado crenças ejulgamentos destrutivos, particularmente sobre si mesmos.

O estrangulamento da originalidade de cada indivíduo em proveitode esquemas culturais gerais.

Na imensa maioria dos casos, a atenção é concentrada na obtenção deresultados esperados pelo professor ou pelo sistema escolar. Sobra poucoespaço para as pesquisas atípicas ou para os encaminhamentos pessoais dosestudantes. Embora recentes reformas escolares valorizem mais a iniciativa doque o resultado, parece que os professores não foram formados para deixar delado os tão preciosos elementos dos saberes que assimilaram ao longo de seusestudos. Por isso, eles mantêm na cabeça os objetivos a serem atingidos. Nomelhor dos casos, há uma tolerância quanto à originalidade, que, porém, éraramente encorajada.

Então, o que poderia ser uma educação que permitisse aos estudantesexercerem ao máximo sua imensa potencialidade natural, que os apoiaria parase tornarem autônomos, sensíveis, criativos e benevolentes?

Uma educação a serviço da vida visa a que os jovens:

sejam capazes de responder com confiança e criatividade aosdesafios da vida;

aprendam a se conhecer intimamente e estejam prontos para sequestionar,

sejam capazes de sentir e exprimir as emoções, tanto para si mesmoscomo para os outros;

desenvolvam os aprendizados que lhes permitam se inserir em suas

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culturas com um espírito de cooperação e, ao mesmo tempo, adquiramum verdadeiro senso crítico com relação a todas as formas de crenças(em outras palavras: um amor pela verdade);

possam assumir a responsabilidade de suas vidas e estejamconscientes das conseqüências de seus atos para o meio ambiente;

adquiram meios para gerir seus problemas e sofrimentos;

desenvolvam uma sensibilidade quanto aos problemas e sofrimentosdos outros;

internalizem uma real capacidade de atenção e de presença noinstante.

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3Atenção ao sentido que você dá às suasmensagens

Se um dia você constatar que os antigos métodos de puniçãoe recompensa são inúteis, seu espírito se tornará bem maisativo.

Krishnamurti

Na minha opinião, o maior problema causado pelas punições erecompensas é o fato de elas enfraquecerem o sentido que a mensagem querpassar. Quando você diz a uma criança: "Faça tal coisa, senão tal outra vaiacontecer! Se você não comer a salada, ficará sem sobremesa! Se você nãoterminar esse dever de casa, não poderá assistir televisão! Se você fizer essedever, terá uma recompensa!", você está sempre sugerindo que a primeira parteda mensagem não é suficientemente válida e que é preciso acrescentar algo paralhe dar crédito.

O problema é a causalidade. Pouco a pouco, as crianças se sentemdivididas entre os dois componentes da mensagem situados de cada lado do"senão". E, no final, a maioria delas vai se condicionar a dar mais importância àsegunda do que à primeira parte.

Tomei consciência disso, em particular, graças ao meu filho, depois deuma situação que vi vemos. Naquele dia, tínhamos pego o bonde no últimosegundo e, por isso, não tive tempo de comprar uma passagem.1 No final dotrajeto, fui comprar um bilhete no distribuidor automático. Então, meu filho meolhou bastante surpreso e me disse:

"Mas, pai, por que você está comprando essa passagem? Agora nãocorremos mais o risco do controlador nos pegar!"

Foi aí que percebi que ele já tinha começado a ser doutrinado pela

1 Na Europa, o sistema de transporte funciona assim: o passageiro compra um bilhete antes de embarcar nomeio de transporte, ao entrar neste valida-o num dispositivo automático que o carimba ou perfura, e, às vezes,um agente controlador passa para verificar se todos pagaram o trajeto (N.T.).

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educação da punição e da recompensa: por que pagamos por uma passagem nobonde? Para escapar dos controladores, ou seja, para evitar a punição.Comuniquei-lhe então a minha surpresa e tristeza pelo fato de ele ver as coisasdesse ângulo. Se estava quitando a minha dívida de um trajeto no transportepúblico, era para demonstrar o meu apoio e reconhecimento por beneficiar detal serviço e porque queria contribuir para a permanência desse direito.

O que criamos quando condicionamos as crianças a agirem para serrecompensadas ou evitar serem punidas? Um mundo de pessoas pouco livres.Uma cultura do medo, com pessoas que pagam pelos artigos das lojassimplesmente para evitar serem pegas se saírem com eles debaixo do braço, enão por uma necessidade de eqüidade. Gente que não ultrapassa os limites develocidade por causa das multas, e não por respeito aos outros motoristas oupor uma necessidade de segurança coletiva. Gente que frauda o fisco tantoquanto possível, porque não foram ajudados no sentido de desenvolver uma realpertença à sociedade da qual fazem parte.

Nas relações com os jovens, eu gostaria de desenvolver uma cultura dosentido. Se realizamos uma ação, é porque ela responde a uma necessidadeconstrutiva. Se os pais pedem alguma coisa ao seu filho, é porque isso possui umsentido, e o importante é fazer a criança entendê-lo.

Mas quero eliminar um risco de confusão: não estou pregando uma novaforma de submissão às instituições. Ao contrário, acho que pessoas educadaspara assumir realmente as suas responsabilidades se conformam com maisfreqüência às obrigações sociais porque têm consciência da interdependênciafundamental entre os seres humanos, o que as leva a serem solidárias com seussemelhantes. Porém, se decidem não cumprir as regras, suas ações sãopoderosas, uma vez que são conduzidas a partir de uma motivação clara. Aí, nãose trata mais de maracutaia ou contrabando, mas sim de uma objeção comconsciência, baseada numa necessidade de integridade.

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4Vamos parar de achar que o erro é umproblema

O professor adota, desde o primeiro dia, o tom e osprocedimentos de um juiz, e, por isso, o aluno desenvolvenaturalmente a atitude de alguém prevenido... que, a todoinstante, talvez seja pego em flagrante delito de falta deatenção ou de ignorância.

Henri Roorda

Uma crença que considero das mais destrutivas é aquela segundo a qualo erro é um problema. Fomos condicionados a acreditar que há respostas certas,as quais devemos buscar, e outras falsas, as quais temos de evitar. Além disso,fomos condicionados a crer que autoridades exteriores a nós sabem o que écerto e o que é errado.

Meu filho também me ajudou a perceber o perigo dessa fixação no erro.Um dia, ele me mostrou uma prova de matemática cuja nota o tinhadesagradado. Olhei seu trabalho e me dei conta de que a sua dificuldade tinhasido causada por um símbolo que ele não conhecia, que significava "multiplicar",enquanto que ele tinha aprendido essa operação com um outro signo. Haviauma seqüência inteira de cálculos nos quais ele se tinha enganado, porque tinhainterpretado que era preciso dividir ao invés de multiplicar. Então eu lhe disse:

"Legal, essa prova lhe foi bastante útil, porque ela permitiu que vocêaprendesse um novo símbolo!", mas ele me respondeu: "É, pode ser, masessa nota vai baixar minha média!"

Pude constatar, ao longo de várias discussões com ele, que suafocalização mais na nota do que no aprendizado o fazia perder o sentido dasprovas.

Com muita freqüência, a atenção dos alunos não está concentrada novalor intrínseco dos fatos, mas na interpretação do sistema de referências dosprofessores.

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Não basta, como sempre escuto por aí, falar do direito ao erro paraapaziguar a tensão que, para a maioria de nós, representou o medo permanentede nos enganarmos, de não correspondermos às expectativas que eram criadasquanto a nós e as quais tínhamos de adivinhar pouco a pouco. Para se livrardesse paradigma é preciso adotar uma atitude globalmente diferente.

Para deixar para trás a oposição entre o certo e o errado, sugiro umparadigma que nos deixa escolha entre duas oportunidades: o esperado e oinesperado.

Quando um resultado é esperado, ele cria um consenso, sustenta fatos,valida um processo de aprendizado ou representa uma aquisição comum. Aprimeira oportunidade é a integração do processo que nos leva ao esperado. Nãoo saber adquirido, mas a incorporação de uma iniciativa que aumenta nossasensibilidade com relação aos problemas da vida.

Quando um resultado é inesperado, ele suscita um processo deinterrogação sobre nossos hábitos a partir da surpresa inicial. No âmbito daeducação, há uma busca comum. O autor da iniciativa e a pessoa surpreendida— não importa quem exerça o papel de professor e o de aluno —confrontamsuas impressões e avaliações, a fim de verificar se há uma chance de colocar emquestão um conhecimento ou validá-lo de outra maneira. Essa busca aberta dosentido do inesperado é a segunda oportunidade.

Um professor de matemática me comunicou as dificuldades queencontrava quando dizia aos seus alunos para prestarem atenção nos seusprocessos de reflexão, e não nas notas que poderiam receber. Ele chegoumesmo a suprimir as notas, mas certos alunos permaneciam focalizados nosjulgamentos que ele poderia fazer sobre eles.

Uma vez, corrigindo uma prova, ele se deparou com um resultado tãosurpreendente que ficou bastante perplexo. Ele se contentou de escrever namargem: "Como você chegou a essa conclusão?" Após receber sua prova, aaluna veio lhe perguntar: "Mas eu acertei ou errei?" E ele lhe respondeu: "Issonão me interessa, o que eu quero é entender o seu pensamento. Você podereproduzi-lo agora?"

Ela acabou reconstituindo-o, porque imaginava que sua solução estavade acordo com a norma esperada. Depois do acontecido, ela explicou que, casocontrário, teria ficado constrangida demais para ousar mostrar-lhe um processoenquanto o supusesse errado.

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"Nesse caso em particular, eu tinha dificuldade em acreditar que seupensamento era válido", acrescentou o professor, "mas para mim eraimportante permanecer aberto: eu não teria aprendido a maneira de lheensinar se não tivéssemos refeito juntos o seu raciocínio".

Embora tanto o esperado quanto o inesperado representemoportunidades, a surpresa causada pelo inesperado me parece ter um valorpedagógico superior. O mais interessante é quando nos "enganamos", quandoestamos em busca de algo, quando questionamos nossos esquemas depensamento, que, de modo tão rápido, tomam a forma nociva de certezas. Estaconcepção é tão contrária aos ensinamentos contemporâneos, que enfatizam aestranha crença no desempenho, que sinto dificuldade em dizer para o meu filhoque considero uma vantagem o fato de ele "falhar" numa prova. Ele não oentenderia, porque seus professores já o mandaram buscar as respostas queesperam para as suas perguntas e tentar não surpreendê-los. Acho isso umapena, pois essa mudança de perspectiva diante do erro é um dos fundamentosde uma pedagogia baseada na atenção às necessidades efetivas do aluno(empregarei também o termo "pedagogia não-diretiva" para designar a partir deagora esta educação centrada na escuta das necessidades).

Essa valorização do erro, num contexto de não-julgamento, muda osentido que damos aos testes escolares. Eles voltam a exercer a sua funçãoprimordial de apoio (a qual não me lembro de ter percebido durante os meusanos de escola). Eles podem se tornar (de novo) instrumentos privilegiados pararevelar os terrenos que devem ser explorados e aqueles já maduros para seremprovisoriamente abandonados.

Para que as avaliações possam ter um sentido pleno é preciso que sejamaplicadas com o espírito de iniciar um processo, e não de validá-lo. Portanto, elasdevem ser propostas no início ou no meio de um período de aprendizado, nãono final. Para não enfraquecer a importância do teste para a pessoa avaliada, eugostaria que não fossem dadas nem sanção nem recompensa. E, para que cadaaluno possa se concentrar no proveito que ele pode tirar, seria bom que, se umacomparação acontecesse, que ela não fosse entre os alunos, mas sim entre osdiferentes resultados possíveis.

Essa não-comparação geral permite introduzir reais desafios para osalunos. Numa pedagogia não-diretiva, interessamo-nos pelas necessidades decada um e buscamos com ele um desafio que lhe permita evoluir. Os testes daeducação tradicional, quase sempre formatados para um grande número de

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alunos, não conseguem encontrar ligação com as necessidades individuais. Paramuitos, eles eliminam a parte de desafio, pois a avaliação não é adaptada às suascompetências: são simples ou complicados demais.

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5A crítica vista como uma oportunidade

No mundo atual, o único objetivo educacional que faz sentidoé a adaptabilidade, ou seja, a fé mais num processo do quenum saber imutável.

Carl Rogers

Para mim, uma das diferenças mais marcantes entre uma educação nosentido da CNV e outras, mais tradicionais, encontra-se em relação à crítica. Emmuitos sistemas educativos que utilizam as normas habituais, a crítica é, para oprofessor, o meio de apontar um erro, a fim de retificá-lo. Ele não somente sabeo que é certo, como também a maneira pela qual os outros alunos devem atingiresse imaginário.

No espírito da CNV, a crítica reflete uma necessidade não-satisfeita deuma pessoa que vai comunicá-la a uma outra para tentar encontrar seu sentidoa partir dessa busca. A insatisfação não é vista como um problema, mesmo que,é claro, ela possa ser vivida de maneira dolorosa, mas sim como umaoportunidade de tomada de consciência. Essa visão e emprego da crítica seintegram no vasto campo do que a CNV chama de celebração. Quando trabalhacom esse espírito, o professor não repreende o aluno pelo resultado inesperadoque ele produziu, mas lhe agradece a sua tentativa e lhe propõe utilizá-la paraaprenderem juntos.

Se a crítica for empregada a partir desse ponto de vista durante umtempo suficiente, tenho a esperança de que os jovens acabarão buscando-acomo uma oportunidade, ao invés de fugir dela como de uma prova. Porém,antes de chegar lá, o professor tem de realmente amenizar a fragilidade queseus alunos desenvolveram após terem sofrido as críticas costumeiras como sefossem agressões. Talvez seja preciso dar o exemplo: encorajar os estudantes alhe dar avaliações e lhes mostrar todo o prazer de recebê-las através de suaatitude. Até o dia em que a crítica poderá ser percebida assim como é: umaforma particular de nossa gratidão pelo que a vida nos está ensinando.

A CNV propõe um procedimento para nos apoiar na expressão dessaforma de crítica construtiva:

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Exprimir antes de tudo a nossa autenticidade:

a observação mais rigorosa possível dos fatos;

o sentimento que isso estimulou em nós;

nossa necessidade não-satisfeita;

e terminamos por uma demanda de conexão. Por exemplo:

"Quando vejo que não concordamos em sete das dez questões desseteste de biologia, fico curioso para saber as razões dessa diferença egostaria de lhe pedir para me explicar as razões das suas escolhas."

Escutar com empatia:

As concepções ultrapassadas que acumulamos com relação à críticafazem com que ainda seja raro encontrar pessoas essencialmente antenadasquanto aos seus aspectos construtivos. Um reflexo saudável consiste, portanto,em investir um momento na escuta empática do jovem para verificar se ele nãoestá brincando de "Quem está certo e quem está errado?"

Dessa forma, ele pode nos dizer:

"É verdade, não entendo nada de biologia!" Em vez de tentar convencê-lo do valor do seu raciocínio, com freqüência é mais útil ajudá-lo primeiroa se voltar para os seus medos. Pode ser propondo-lhe a seguintereformulação:

"Você ficaria desmotivado porque tem dificuldade em acreditar nas suascapacidades nesse domínio?"

Buscar a vantagem da nossa insatisfação:

Em que medida ela permitirá que o avaliado evolua e que o avaliadorrepense sua visão de mundo. Se houver abertura, os dois movimentos realmentese realizarão. É uma busca mútua, com um beneficio para os dois.

O critico poderia prosseguir assim:

"Estou surpreso ao perceber a quantidade de pontos sobre osquais não temos a mesma opinião, porque eu achava quetinha passado tempo suficiente explicando meu ponto de vistae que você me tinha dito estar de acordo. É importante para

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mim saber onde poderia ter sido mais claro.

Você pode me ajudar resumindo o que você tentou fazer?"

Celebrar o sentido do que emergiu:

Certas vezes, o benefício se mostra mais efetivo para a pessoa querecebe a avaliação, e, em outras, para aquela que a aplica.

Nos casos descritos anteriormente, uma vez que o aluno e o professorestiverem de acordo sobre o ensinamento a ser tirado da diferença dos seuspontos de vista, o primeiro poderá dizer:

"Sinto-me aliviado porque agora esta matéria me parece mais simples, oque me dá um pouco mais de autoconfiança em biologia!"

E o segundo:

"Também me sinto aliviado de ter descoberto o que você não tinhaentendido do meu raciocínio. Agora, tenho uma idéia de como possoexplicar essa matéria de outra forma da próxima vez."

O que vai mudar a relação com a crítica não é tanto um procedimentoou uma maneira de se expressar, mas uma atitude aberta do professor: suaverdadeira curiosidade quanto à iniciativa do jovem; sua capacidade de deixar delado seus conhecimentos enquanto busca, junto com o aluno, o que os doispodem aprender com essa situação.

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6Uma boa acolhida

Escutar quer dizer amar. Amar significa: estar disponível parao que está aqui.

Éric Baret

Faço questão de desenvolver com as crianças uma relação fundadanuma qualidade de acolhida global. Essa atenção fundamental quase nunca lhesé dada. Vou dar um exemplo, que escolhi entre vários outros, porque memarcou:

Fui convidado, numa escola genebresa, para assistir a uma formação dealunos mediadores. Eu e a formadora estávamos arrumando a sala, quando, porfalta de sorte, chegou um grupo de atores nos explicando que aquele lugarestava reservado para o ensaio deles. Fomos obrigados então a mudar de sala. Aprofessora aparece com a turma, e começa uma grande discussão entre ela, aanimadora e dois outros adultos presentes. Durante cinco minutos, elesresolveram tudo entre si.

Durante esse tempo, o grupo de crianças tinha sido largado no seucanto. Ninguém lhes disse bom-dia nem explicou o que estava acontecendo. Porquê? Porque eram jovens. Para aquelas pessoas não era normal dar a mesmaqualidade de atenção a um grupo de crianças e a adultos. Imagine a mesmasituação com um grupo de vinte adultos. O primeiro reflexo seria lhes dizer:

"Bom-dia, sentimos muito por fazê-los esperar. Tínhamos reservado essasala, mas houve um contratempo. Vocês podem, por favor, esperar umpouco?"

Essa diferença de atitude em função da idade de nosso interlocutor é umcondicionamento ancorado tão profundamente que o vejo inculcado mesmo empessoas repletas de benevolência para com os jovens. Nas relações entremaiores e menores de idade, com freqüência observo mudanças de tom, deescolha das palavras, de posições corporais, as quais interpreto como os indíciosde um jogo de poder. Essas mudanças de relação se fazem de maneira tãoinconsciente que os envolvidos me dizem em seguida, quando lhes falo sobre

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isso, não terem percebido. Só que, através dessas manifestações, as criançasaprendem a se submeterem — ou a se revoltarem ou a fugirem, o que dá nomesmo.

Esse é um ponto sobre o qual eu gostaria de insistir. Em geral pensamosque é nas situações difíceis que as relações se fragilizam. Porém, é a partir darepetição desses milhares de momentos, nos quais não damos aos jovens a mesma

boa acolhida que aos adultos, que a base da confiança se quebra. Não é tanto nassituações de conflito que essa diferenciação se dá, pois as pessoas envolvidassabem perfeitamente que se trata de momentos delicados, onde cada um perdeum pouco da sua estabilidade e então dá o melhor de si. É sobretudo o acúmulodessas atitudes inconscientes, onde o menor é tratado com menos consideraçãopor causa da sua idade.

É por isso que com os professores eu não trabalho tanto o que acontecedo início ao final do seu curso, mas do fim deste último ao começo do seguinte.Falo sobre todas as relações, todas as conexões que se criam nos corredores eno pátio. Todas essas ocasiões condicionam os jovens ou no sentido de umrespeito mútuo ou no de um hábito de submissão ou revolta.

O que ainda prejudica a boa acolhida é a rigidez dos papéis nos quaisfomos condicionados a nos mantermos. Deixamo-nos permanecer fixos naimagem do nosso papel porque nos desapegarmos dele nos deixa inseguros. Acapacidade de passar de um papel para outro, em função das necessidades dasituação, é justamente um elemento-chave de uma pedagogia não-diretiva.

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7A empatia, um apoio à nossa capacidade deacolhida

Os pais só lançam um olhar incondicionalmente positivo sobrea criança se fizerem o mesmo com relação a si mesmos.

Carl Rogers

A CNV determina dois poderes na comunicação: o de nos voltarmos paraa nossa vulnerabilidade e exprimi-la e o de nos abrirmos de maneiraincondicional à mensagem de nosso próximo e reformulá-la. Este segundo poderse chama "empatia".

Ela poderia ser definida como a qualidade do que permanece na nossafaculdade de escuta quando nos liberamos de nossos hábitos e defesas:

Quando paramos de acreditar saber para o outro o que é bom para ele— e, portanto, abstemo-nos de dar conselhos quando eles não nos são pedidos.

Quando cessamos de querer fazer alguma coisa nas relações onde bastaque existamos.

Quando aceitamos não nos metermos no que diz respeito apenas aooutro e, em momentos diferentes, não incluir o outro no que só interessa a nósmesmos.

Quando tivermos feito esse trabalho de purificação, podemos noscolocar à escuta do nosso interlocutor. Durante alguns segundos não buscamosmais mudar o mundo e em especial a pessoa que estiver diante de nós, paramosde impor aos indivíduos que nos cercam o peso de nossas exigências e de nossosaber.

Uma ação profundamente ecológica pode então começar. Podemos nosabrir à mensagem viva que o nosso interlocutor, com freqüência de mododesajeitado, está tentando nos passar. Oferecemos-lhe o presente de umaacolhida que não tenta reformar, nem mesmo entender, mas simplesmente criaruma boa conexão com ele.

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A força dessa benevolência em ação pode ser representada de duasmaneiras:

Através de nossas propostas de reformulação, onde propomos aooutro uma interpretação centrada nos sentimentos e necessidadessubjacentes da mensagem exprimida, seja ela qual for.

Pelo desapego que devemos ter quanto à forma literal do que é dito.Conseguimos este recuo graças ao interesse que aquele que se exprime despertaem nós. Para quem escuta, cada frase contém a manifestação de umanecessidade fundamental. Se quem está sendo escutado sente que a nossaatenção é aberta, ele poderá se deixar levar, sendo ele mesmo, já que nãoprecisa mais convencer, nem se defender ou se justificar.

Portanto, a acolhida empática não é insignificante. Quando aoferecemos, ela presta um grande serviço à relação. Além do resultado quepodemos obter no instante, a prática da empatia alimenta nossas relações, eprincipalmente as que são íntimas, que demandam muita confiança.

Vejo o alcance mais precioso disso na sua aplicação a longo termo. É arepetição de situações em que a criança pôde se sentir acolhida exatamenteonde se encontrava que é a base de uma segurança fundamental nas suasrelações consigo mesmo e com seus pais. É um forte apoio para desenvolver suaautoconfiança.

Essa acolhida não implica que devamos ficar uma hora, ou mesmo dezminutos, escutando o que o nosso interlocutor está exprimindo. Com freqüência,mesmo uma só reformulação vai mudar a energia emocional, contanto quetenhamos criado previamente em nós um espaço suficiente de abertura.

Uma professora me contou a seguinte experiência ocorrida no seuestabelecimento. Ela tinha dificuldades com um jovem que não suportava certasobrigações da instituição. Uma noite, ele disse:

"Que saco ter que ir dormir agora!"

Ela entendeu o que ele devia estar sentindo e apenas lhe disse:

"Isso o deixa com raiva? Você gostaria tanto assim de poder escolher?"

Ao que ele apenas respondeu "Ahan" e subiu para o seu quarto, para

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surpresa da escutante, que esperava ter que gerir sua resistência habitual.

Uma mãe me contou um episódio muito parecido que ela tinha vividocom uma das suas filhas. Ela a rodeava na cozinha enquanto reclamava de suairmã, depois dos seus deveres de casa, da escola, e assim por diante. A mulherinterrompeu a sua tarefa durante alguns segundos, entrou em contato com airritação de sua filha, tomou-a um instante em seus braços e apenas lhe disseessa frase:

"Hoje não é o seu dia, né?"

A criança pareceu subitamente calma. Sacudiu a cabeça e depois deixousua mãe para ir fazer os seus deveres.

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8Oferecer nossa presença

Tudo o que eu gostaria de realizar não é nada se comparado aessa coisa mágica que é o fato de existir.

Éric Baret

A manifestação do respeito pelo outro, ou seja, a empatia, nem teriavalor se não fosse o reflexo de um respeito por si mesmo. É um grande presenteque podemos dar aos nossos filhos: oferecer-lhes a força da nossa presença.Participarmos de suas vidas, estarmos conscientes do que está acontecendo, dassolicitações do nosso ambiente, das mensagens que as pessoas que nos cercamnos enviam, do que vivenciamos.

Essa presença é realmente um presente, constitui por si só um contextode segurança para os jovens. Para eles, as referências fundamentais são dadaspela clareza dos pais, dos professores. As regras que instauramos, os pedidosque fazemos têm valor acima de tudo a partir dessa clareza. A verdadeiraautoridade não pode ser imposta, ela é concedida por um grupo. É o sentimentode paz interior de uma pessoa que leva outras a terem confiança nela.

Essa qualidade de presença se manifesta de várias maneiras. Primeiro,ela se baseia na nossa autenticidade no instante: quando nos voltamos para oque está dentro de nós, tanto no plano corporal como no emocional eintelectual, e simplesmente o exprimimos. Essa capacidade de manifestar anossa vulnerabilidade é vista pela CNV como o contrário de uma fraqueza. Elarepresenta uma das forças de um ser humano.

Isso vai de encontro a muitos esquemas culturais contempo-râneos. Emgrande parte dos filmes destinados aos adolescentes, a característica dos heróisé a sua impassibilidade diante dos acontecimentos. Mesmo nas profundezas dafloresta ou na frente de um revólver apontado para eles, nada parece atingi-los.Essa indiferença com relação às circunstâncias é apresentada como um modelopara o público. Temo que a referência então adquirida pelo espectador seja orecalque de suas emoções, em detrimento do desenvolvimento de umaverdadeira inteligência emocional: a capacidade de percebê-las, exprimi-las egeri-las.

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Não que a serenidade face às situações delicadas não me pareça umobjetivo a ser alcançado. Porém, essa tranqüilidade só me deixa seguro quandoé resultado de um processo de aceitação de nossa vulnerabilidade e de tomadade consciência de nossos limites. Ao recalcarmos nossas emoções, obtemos umcerto controle do instante, cuja conseqüência, com a qual teremos de arcar maistarde, é uma tensão escondida. A presença não pode ser encarnada a partir deuma força de vontade ou de reflexão. Ela nasce de um desapego e segue o cursode nossos sentimentos.

Assumir a responsabilidade de nossas necessidades também me pareceessencial. Trata-se de permanecermos fiéis ao que sentimos, não nosmisturarmos com as reações dos outros, ao mesmo tempo em que respeitamosnossas necessidades. Este equilíbrio entre uma atitude clara, firme para si eaberta para o outro cria condições de segurança para as crianças, antes derealizarmos qualquer ação.

Nossa autenticidade não será necessariamente algo fácil de entenderpara o nosso interlocutor. A CNV não visa à gentileza (se esta consiste emacreditar que é preferível evitar os conflitos), mas à benevolência, quer dizer, orespeito pelo que está dentro de nós e a confiança no que sua expressãohonesta vai trazer. Às vezes, o estar presente de verdade pode tomar a forma daexpressão de nossa raiva, contanto que possamos demonstrá-la de maneiraconstrutiva.

Há tantas pessoas desajeitadas na manifestação de sua raiva que muitasse protegem desse sentimento antecipadamente, não querendo exprimi-lo ourecebê-lo. Para ajudar tais pessoas e entender este sentimento como uma formade vulnerabilidade, a CNV preconiza assumir a plena responsabilidade dele eterminar nossas intervenções por pedidos concretos e positivos. Portanto,perceber que não estou irritado com alguém, mas com raiva porque gostaria desatisfazer tal necessidade, não gritar para o outro tudo o que nos desagradanele, mas lhe dizer o que nos fez falta e o que queremos.

Um amigo que pratica a CNV há alguns anos me comunicou algumasmudanças que essa visão o levou a introduzir na sua comunicação com seusfilhos. Ele tinha adquirido dos seus pais o hábito de ameaçar para obter o quedesejava. Descontente com essa transmissão, ele concentrou sua atenção no atode conversar com seus filhos com autenticidade. Mesmo na expressão de suaraiva, ele descobriu que, agindo dessa maneira, ele obtinha deles o que desejavade modo mais fácil, e não mais pela força do medo. Por exemplo, quando seu

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filho percebia que, se seu pai estava bravo, era em primeiro lugar em função doseu cansaço e de sua necessidade de preservar seu tempo — e não sendo ele acausa disso —, ele ficava comovido, mas sem culpa.

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9Respeito por nossos sentimentos

Quando você parar de achar que compreende o seu filho... lherestará a admiração, o sentimento, a brincadeira, o amor.

Éric Baret

Aprender a se conhecer, a desenvolver uma ligação benevolente consigomesmo me parece no mínimo tão importante quanto saber ler e escrever bem.E, de fato, se tivéssemos os indicadores para poder calcular a taxa deanalfabetismo emocional e corporal no final do período escolar, acho que osnúmeros seriam aterradores. Na Suíça, um nível de analfabetismo de 15% ou20% preocupa. O que diríamos então de uma proporção de 80% a 90% deanalfabetos emocionais e corporais? Lançamos na vida "ativa" inúmerosindivíduos que não aprenderam a se escutar, que tomaram o hábito de recalcarsuas tensões e que não sabem que palavras podem traduzir o seu mal-estar. Aisto vêm se juntar, no âmbito das estatísticas, as altas taxas de depressão,obesidade, suicídios e divórcios. Espero que um dia essa matéria essencial pordefinição (o seu próprio ser) seja ensinada nas escolas.

Vamos pensar na forma que essa parte fundamental da educaçãopoderia ter.

Imagino-a na forma de um único ateliê: o do conhecimento de si mesmo.O ser humano seria estudado em sua globalidade, cada parte remetendo àoutra. O que importa é a aquisição de um reflexo de atenção às mensagens queo nosso corpo nos envia quando estamos perturbados, em vez de recalcar estainformação, como tantos de nós aprenderam a fazer. E assim desenvolver aconfiança em nossos sentimentos.

Vamos explorar as diferentes portas de acesso a nós mesmos, duas dasquais são privilegiadas e devem ser enfatizadas: os sentimentos corporais e asemoções. É claro que a mensagem de uma porta está profundamente ligada à daoutra.

A visão de um professor dedicado à inteligência corporal seria no sentidode que a criança redescobrisse a comodidade e o prazer de habitar o seu corpo

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(segundo a expressão de Thérèse Bertherat2). Para conseguir isso, em vez de ummétodo escolhido entre as dezenas que figuram no mercado do bem-estar, oque conta, na minha opinião, é a permanência da consciência das necessidadescorporais ao longo dos estudos.

Devemos ajudar os jovens a estarem disponíveis para a escuta e a cuidardas suas necessidades físicas: movimentar-se, alimentar-se, relaxar de maneirasaudável e respeitosa.

Temos de ensinar às crianças o ato de prestar atenção nos sinais do seucorpo quando exprime tensões, indisposições, contrariedades e inquietudes.Devemos lhes dar as chaves para aceitar e transformar esses mal-estares.

Por exemplo:

Realizar jogos, espaços e rituais para favorecer as necessidades demovimento nas turmas, como rodas de reflexão onde seria possívelcogitar um assunto ao mesmo tempo em que todos andam.

Ritmar os tempos de estudos por momentos de concentração,relaxamento ou liberação das tensões corporais.

Prever momentos de expressão, de compartilhamento dossentimentos psíquicos e suas mensagens.

Oferecer aos alunos assentos ergonômicos, bolas ou bancos.

Ter uma abertura da parte dos professores às posições corporaisfreqüentemente julgadas desrespeitosas, as quais eu associo mais aocansaço ou ao tédio.

Propor ateliês para desenvolver o sentido do ritmo: rítmica,eurritmia, dança, etc.

Quanto à inteligência emocional, poderíamos propor às crianças umaalfabetização. As mensagens veiculadas pelos sentimentos deveriam se tornarpara eles como que placas de trânsito. Cada um deve conhecer seu sentido: umaplaca de rua sem saída, um sentido proibido, uma ultrapassagem de limite develocidade... Mensagens que eles poderiam aprender a aceitar, sejam elas quais

2 Thérèse Bertherat criou e desenvolveu, em meados da década de 1970, em Paris, a antiginástica, técnica quepermite conhecer melhor o seu próprio corpo e realizar novos movimentos, diferentes dos praticadoscotidianamente. Segundo ela, devemos esquecer os lugares-comuns de que somos "moles ou fracos demais,gordos ou magros demais", pois todos somos muito bem-feitos. Porém, nossa forma perfeita é mascarada porcrispações, dores, deformações, etc. Fonte: site oficial de Thérèse Bertherat, http://www.antigymnastique.com(N.T.).

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forem, em vez de se voltar vagamente para os "bons" sentimentos e tentarsufocar a força de vida dos outros.

Por exemplo, o tédio ou a frustração, sentimentos "horríveis" aos quaisnão damos consideração na nossa sociedade de lazeres, poderiam serapresentados como oportunidades de se conhecer melhor, convites para escutara si mesmo.

Ou então a raiva, potência constrangedora que revela nossa inabilidadea exprimir nosso mal-estar. As crianças poderiam treinar "gritá-la" estandoconscientes do que querem, e não, como de costume, exprimindo algo de quenão gostam no outro.

E mesmo os medos, turbulências subterrâneas que se escondem tãobem. Os alunos poderiam ensaiar ir buscá-los atrás dos discursos animadores,dos sentimentos aparentes ou dos comportamentos provocadores.

Ou ainda a surpresa, chave de nossa relação com o mundo emocional. Seos jovens percebessem que ela pode trazer mais alegria do que pânico, a simplesdescoberta ajudaria a formar cidadãos abertos à diferença.

O aprendizado também consiste em realizar nossos movimentos de fugacom relação a emoções que nos perturbam. É, em seguida, adquirir os meios deadministrá-las: a capacidade de se concentrar, de prestar atenção em si mesmo,de se deixar surpreender pela energia que surge no coração, de acolher as ondasdessa corrente, de colocar uma delas de lado quando nos submerge, etc.

Uma amiga minha me contou uma maneira inspiradora de iniciar um be-a-bá emocional. No seu jardim-de-infância sempre perguntam de manhã a cadarecém-chegado como ele se sente. Quando se expressa, ele entra numa rodaonde todos os participantes cantam várias vezes o seu nome e a emoção que eleestá sentido:

"João está triste esta manhã, João está triste esta manhã."

Guardo a alegre lembrança de uma experiência que vivi numa colônia deférias. Para iniciar as crianças à expressão de seus sentimentos, tínhamospintado um grande círculo no qual diferentes emoções correspondiam a umacor. Antes da reunião cotidiana, cada um pintava o seu rosto seguindo essecódigo, as cores representando sua sensibilidade do momento.

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10Uma pedagogia da espontaneidade

Não fazemos questão de que a criança esteja interessada peloseu trabalho. Pedimos-lhe somente para obedecer. Se, naturma, com freqüência ela parece tão pouco inteligente, éporque não sacudimos seu espírito, não nos demos aotrabalho de despertar sua curiosidade.

Henri Roorda

Várias vezes fiquei chocado, ao conversar com estudantes, de constatara que ponto o interesse que eles demonstravam por tal assunto eracondicionado e limitado pelas diretivas que lhes tinham sido dadas.

"Tá, mas isso não está no programa.""Não é o que o professor quer.""Não vale a pena estudar tal matéria, não vai cair na prova mesmo!"

Que tristeza: eles viam o mundo não a partir de sua curiosidade, mas deacordo com a imposição de uma hierarquia.

Quando observo a incrível força de curiosidade presente na criança bemnovinha, a que ponto todo o seu ser é captado por cada novo tema dedescoberta, fico desesperado ao ver o contraste com o estudante-padrão. Queimpulso de vida se apagou e quanto o indivíduo aprendeu a se limitar! E nãosomente a sua curiosidade. Estando essa qualidade restrita, uma parte da suainteligência e de sua capacidade de adaptação morre.

O que impediria, e mesmo suscitaria, o entusiasmo do jovem comrelação à descoberta do mundo? O que falta para ele confiar na plenitude domovimento que o fez aprender, nos primeiros anos de sua vida, um ou maisidiomas, sem programa preestabelecido? Por que não dar prioridade ao quemobiliza a sua atenção neste instante?

Essa pedagogia, que enfatiza a espontaneidade, implica inverter a lógicada iniciativa de aquisição no seio da escola pública. Não vamos mais partir doobjetivo de um Estado, mas da interação das necessidades individuais tanto dos

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alunos como dos professores. Isso implica também desenvolver meios paraesclarecer essas necessidades em presença, possíveis estratégias no momento eestabelecer processos de acompanhamento para permitir tirar o máximoproveito das escolhas efetuadas.

Se desejamos incitar os jovens a ter prazer em aprender, é necessárioque os pedagogos comecem por se divertir. Em seguida, eles naturalmentemostrarão aos seus alunos a alegria de explorar. O que o professor vai transmitiré antes de tudo o seu entusiasmo por uma matéria.

Desse ponto de vista, a tarefa primordial do professor é conservar a suaprópria espontaneidade, manter a ligação com os sonhos que o levam a exercera sua profissão. Esse aspecto agradável do seu trabalho demanda que suasmotivações, que evidentemente evoluem com o tempo, permaneçam claraspara ele. Essa vigilância vai levá-lo a desenvolver um conhecimento de si mesmoe uma conexão com suas necessidades. Essas capacidades lhe serão úteis nosmomentos agitados que surgem durante o ano letivo.

A fim de prevenir o esgotamento e o desestímulo dos professores, duasajudas me parecem preciosas: criar espaços de acolhida empática, para darconta de assuntos de escuta atrasados, facilmente acumulados numa profissãoem que se dá o melhor de si aos outros, e prever intervalos regulares derevigoramento, um por ano por exemplo, onde os professores poderiam estarcertos de manterem os laços com suas aspirações profundas.

Além da ação empolgante do professor, outros fatores permitem que osjovens se voltem para a aventura infinitamente apaixonante que é oquestionamento da vida. Um contexto rico, aberto e motivante, junto com váriosinstrumentos e temas de exploração à disposição. A menor pressão possívelquanto a um objetivo enquanto o estudante não tiver escolhido uma direçãoclara — visto que as obrigações provocam uma resistência proporcional à forçaexercida, o que leva a uma queda da espontaneidade interior.

Isso não quer dizer que abandonamos a noção de objetivo. Quando umaluno se foca num projeto, com o aval do seu professor, são definidos objetivos,que no entanto evoluem. Avaliações conjuntas regulares permitem adaptá-lospara que permaneçam a serviço da iniciativa de aprendizado e não se tornemobstáculos.

O essencial não está no projeto escolhido, mas na maneira como ele évivido pelo jovem e como seu encaminhamento é explorado pelo professor. A

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construção de pipas não tem nem mais nem menos valor do que atrigonometria, contanto que a matéria seja abordada com paixão e que ocontexto permita que o que foi aprendido dê frutos.

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11Aprender a não saber tudoO questionamento, base de uma pedagogianão-diretiva

Eu me pergunto se, quando uma tartaruga esconde a cabeçana sua carapaça, lá dentro é tão escuro que ela tem medo deficar ali.Eu me pergunto se uma pedra gosta de ser dura.Eu me pergunto se o céu gosta de ser azul.

Ruth Bebermeyer

Recentemente, durante um curso que ministrei a adolescentes com aminha colega Fabienne Rauch, pudemos experimentar a magnífica capacidadede questionamento do mundo que acontece nessa idade graças a uma dasparticipantes, que exprimiu suas dúvidas quanto ao que propúnhamos. Nós lhetínhamos comunicado todo o prazer que sentimos ao descobrir sua faculdade dequestionamento do que dizíamos e a segurança que isso nos proporcionava, poisdessa forma, sabendo que o nosso discurso passaria pelo crivo da crítica,podíamos nos permitir sermos menos vigilantes.

No entanto, essa menina baseava suas observações em suasrepresentações do mundo, as quais temíamos serem imutáveis. De fato, ela nosdizia: "Não vou mudar minhas idéias" ou "Tenho minha opinião". Ela já tinhaaprendido a saber tudo! Acho isso uma pena, pois, se o questiona-mento ébaseado num sistema de representações já adquiridas, ele pode não sersuficientemente pleno para criticar certas crenças imutáveis. Para conseguir umaavaliação realmente livre do que nos acontece é necessário partir do não-saber.Esse questionamento, que não sabe nada ou, em todo caso, não sabe mais nadadurante um tempo suficiente, representa para mim a chave da criatividade.

A escola que repete normas e contribui para mantê-las conduz ascrianças a certa rigidez de pensamento. A adoção de hipóteses apresentadascomo evidências, a multiplicação de respostas já prontas e os saberes aingurgitar sem comentários nem críticas reduzem a maravilhosa plasticidade doespírito infantil. Cada certeza adquirida (lembre-se de que chamo de "certeza"

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uma crença cristalizada) mata uma parte de nós mesmos. Esses "pensamentosimutáveis" são obstáculos para a nossa capacidade de nos voltarmos para oinstante. Um espírito profundamente angustiado se agarra a essas crenças. Jáum espírito seguro de si aprende a desenvolver uma confiança no que está porvir e a simplesmente manter um espírito aberto.

A chama da inteligência (que a educação reduz a cinzas com tantafreqüência) é a potência de Um questionamento permanente, de um olharsempre novo sobre as coisas, de um olhar que não considera nada como já dado.É o presente do ato de colocar em questão certas convicções do professor e doaluno, para que eles sigam juntos por caminhos nunca antes trilhados.

A chama da inteligência é o olhar extraordinário que a criança pequena,eternamente surpresa, lança sobre o mundo. A magia revelada nos desenhos deum pedaço de madeira, na forma de uma montanha, nas cores de um alimento.E afloram as questões:

"Por que as chamas nunca descem? O que a grama sente quando écortada? De onde vem a água da fonte, já que não chove há umasemana?"

Que mundo surgiria se as crianças fossem encorajadas a continuar essequestionamento?

É um motivo a mais para a exploração pedagógica da espontaneidadedos jovens, que permite ao tema explorado manter a sua atualidade e sertrabalhado por inteiro.

Uma escola ao meu gosto enfatizaria tanto a desaprendizagem quanto aaprendizagem. Trataríamos um assunto uma primeira vez, depois diríamos aosjovens para esquecê-lo durante um tempo e, em seguida, o retomaríamos. Oque permaneceu? Como essa parte se integrou ao espírito deles? Revejamos oselementos que a memória não guardou na consciência, como se eles nuncativessem sido tratados. Como olhá-los de outra forma, permitindo-lhes revelarseus diferentes aspectos?

Vamos estimular os estudantes a ficarem com os seus questionamentos.Acima de tudo, não se deve pressioná-los para que assimilem um tema — senãorapidamente eles correm o risco de se contentarem com uma aquisição. Vamosdeixar as interrogações amadurecerem neles, ajudá-los depois a formulá-las,construir pontes com outros elementos.

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Vamos favorecer sua faculdade de duvidar, de colocar em questão seufiltro de interpretação dos acontecimentos. Assim os ajudaremos a manter avivacidade natural de seus espíritos, a chama inata do questionamento.Contribuímos para que eles se tornem membros ativos da sociedade, ou seja,cidadãos perturbadores. Esse poder de suscitar e de ficar no desconfortopermitirá a evolução do seu meio ambiente.

É o peso de nossos saberes que representa o principal obstáculo para avida criativa e o conhecimento mais íntimo do mundo.

É a nossa relação com a surpresa que revela nossa capacidade de aceitaro mundo tal como ele é, em vez de defender nossas crenças.

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12O problema dos limites

A cultura busca a norma, a adesão coletiva, e persegue oanormal.

Jean Dubuffet

Um grande problema na educação são os limites. Regularmente escutopais me dizerem:

"Tudo bem, mas de qualquer forma é preciso impor limites aos nossosfilhos!"

Sempre tenho vontade de lhes responder (na verdade, começoescutando-os, pois isso permite que nos entendamos mais rápido):

"Concordo perfeitamente, mas será que você pode me explicar o quevocê entende por limite?" porque vejo que diferentes significados seescondem por trás desse termo.

Para mim, quando uma pessoa fala de limites, a questão fundamental ésaber se ela está falando de uma necessidade ou de uma visão estratégica.*

No âmbito da necessidade, constato que as crianças (e, na verdade, osadultos também) se sentem seguros num contexto claro. É possível criá-losatravés de referências, que são meios a serviço da vida. Para delimitar ocontexto devemos utilizar limites precisos com um objetivo construtivo. Se asreferências não convêm mais, podemos substituí-las por outras, contanto queelas permitam responder às necessidades de presença (mais freqüentemente asegurança, o sentido ou a pertença).

Nessa perspectiva, o limite representa um apoio para a relação, em cujaproteção a atenção é concentrada. Por exemplo, quando um professor propõe,como regra de comunicação para a turma, que cada aluno fale de uma vez semser interrompido. Se essa estratégia estiver explicitamente associada às

* Para deixar claro, gostaria de especificar que, quando emprego o termo "estratégia", não faço julgamentosde valor sobre ele. Utilizo-o para designar a implantação de ações para satisfazer necessidades.

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necessidades de compartilhamento e clareza das quais provém, há chance de elaser aceita como ajuda, e não como outra imposição vinda dos adultos.

No cotidiano, a complicação deriva muito da atração que as situaçõesexercem sobre nós. De tanto pensar, soluções acabam se impondo a nós. Noentanto, assim que acreditamos saber a maneira exata como a nossanecessidade deve ser satisfeita, não estamos mais em contato com ela, mas como âmbito da estratégia.

É claro que uma hora empregaremos meios de ação, mas comfreqüência, quando as pessoas falam de limites, elas já têm idéias rígidas sobreos que devem ser impostos. São regras, punições, palmadas, advertências. Eleslhes passam um sentido de obrigação, e não de ajuda.

Uma dificuldade crucial nas relações entre pais e filhos vem do fato deque, com muita freqüência, os primeiros têm claramente na cabeça asestratégias que querem instaurar com relação à sua prole, mas não asnecessidades que alimentam através delas. Eles afirmam para mim:

"É necessário que nossa filha vá dormir antes das nove da noite." "Façoquestão de que meus filhos tenham uma alimentação variada." Etc.

Suas estratégias são claras. Contudo, quando lhes pergunto:

"Por que essa maneira de agir é importante para você e não para o seufilho? Posso imaginar o sentido que você vê nessa regra para o seu filho,mas, e para você?", fico espantado com o tempo necessário paraencontrar uma resposta.

Quando esses pais entram em contato com as necessidades que elesbuscam satisfazer através de suas exigências, com freqüência estas últimasdesaparecem ou se modificam. Por exemplo: uma vez que percebem que oessencial para eles é se reservar um tempo de revigoramento à noite, o pedido àsua filha se torna: "Não nos perturbe depois das nove da noite."

Se uma necessidade não estiver claramente expressa, issoautomaticamente estimula no interlocutor um reflexo de defesa ligado à suanecessidade de autonomia. Tendo visto essa resistência na prática, numaquantidade considerável de casos, tirei a conclusão de que um dos maioresserviços que podemos prestar aos nossos filhos é sermos claros quanto às nossas

necessidades quando lhes pedimos alguma coisa. E, a partir daí, estarmos, quanto

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possível, mais abertos às estratégias implantadas para satisfazer tal necessidade.

Gostaria de dissipar certas representações que escutei várias vezes sobrea não-diretividade. Para explicar as causas delas, devo em primeiro lugar abordara noção de crença. Esta última faz parte de uma representação binária domundo. Cada fixação mental tem seu oposto, que não é um outro paradigma,mas o outro lado da medalha. Se imaginarmos uma coisa certa, estaremosprontos a considerá-la errada. Se projetarmos sobre alguém uma fantasia deinteligência, aceitaremos de modo inconsciente a imagem de sua estupidez.

Na nossa cultura da eficácia, muitas pessoas estão acostumadas a sefocalizarem nas estratégias. Quando surgiu a moda de uma educação menosdiretiva, elas pensavam: "Antes, eu impunha limites. Pois bem, vou mudar minhamaneira de agir: vou eliminá-los!"

Na verdade, elas permaneceram completamente no mesmo sistema decrenças, mas imaginaram aderir a um sistema não-diretivo enquanto que narealidade tinham passado de uma atitude diretiva a uma negligência.

Portanto, as pessoas envolvidas pelas crenças sobre a não-diretividadeeliminaram várias obrigações que impunham anteriormente e se convenceramde que tinham mudado de doutrina pedagógica. O que evidentemente provocousituações pouco agradáveis. Seus filhos não tinham mais segurança em funçãoda falta de referências, e os professores se enrascaram na confusão que havia noinício. Como ninguém se entendeu, depois de um tempo os adultos afirmaram:"A não-diretividade não funciona, vamos instaurar novamente os limites!"

Essa alternância, a partir de uma confusão, ainda poderia durar muitotempo. Pelo menos enquanto não houver a compreensão de que diretividade epermissividade são os dois pólos da mesma esfera de consciência.

Então, como impor limites a partir da consciência das necessidades?Uma pedagogia não-diretiva não se apóia nas representações hierárquicas,sanções e outros meios de obrigação. Para sustentar seu funcionamento, elautiliza outros elementos:

a maior clareza possível na circulação da informação;

a autonomização da maioria de seus atores;

a confiança recíproca;

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o aumento da quantidade de referências.

Os limites não devem ser suprimidos, pelo contrário, devem seraumentados. Um sistema não-diretivo se caracteriza por um número dereferências maior.

Mais do que no âmbito do fazer, é no do ser que os limites adquirempotência. A clareza sobre as nossas necessidades, a fidelidade a nós mesmos e anossa coerência são belos limites para os outros. Tenho a convicção de que, sedesenvolvermos essa arquitetura interna, teremos menos necessidade de imporuma estrutura externa para atenuar a nossa confusão.

Em todo caso, para favorecer a vida social, as referências são grandesapoios. Elas podem tomar as formas:

de transmissão de informações:

"A lei estipula que é proibido fumar aos menores de dezoito anos.""O costume neste prédio é de os moradores dizerem bom-dia quando secruzam."

de opinião:

"A fumaça do cigarro me incomoda. Eu acharia respeitoso seconviéssemos que nesta sala ninguém deve fumar."

de expressão da nossa autenticidade:

"Fico preocupado quando você me diz que vai acampar com dois amigosda mesma idade. Preciso me assegurar de que manteremos contatodurante esse período."

de pedidos concretos e realizáveis:

"Você pode conversar agora? Há algo que o impediria de fazer o que eulhe pedi?"

de negociação de regras de vida:

"Alguém gostaria que nossas sessões não fossem encabeçadas por umanimador? Se sim, pode dizer o porquê?

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de esclarecimento dos campos não-negociáveis:

"Se você quer fazer parte do nosso time de futebol, tem de vir a pelomenos um treino por semana. Você está preparado para aceitar isso?"

de indicação da causalidade ligada a uma ação:

"Se você colocar a mão nessa resistência elétrica, vai se queimar." Etc.

O importante não é tanto o limite escolhido dentre a multiplicidadeexistente, mas sim a certeza de que:

Nós o impomos corretamente para beneficiar a relação.

Conseguimos que ele seja percebido assim.

Há uma quantidade suficiente de limites para "alimentar" asnecessidades ativadas.

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13O valor da palavra

A palavra é a sua aliada, mas nunca a sua substituta!Janusz Korczak

O instrumento privilegiado que utilizamos numa pedagogia não-diretivaé a comunicação. Porém, para que a palavra se torne realmente uma ajuda, épreciso que ela tenha adquirido uma consideração particular. Por isso, acho útilapresentá-la às crianças como um elemento que a priori questionamos apenaspor uma razão salutar.

Ao darmos mais força à palavra, visamos a dar mais importância àresponsabilização. Para funcionar, a não-diretividade precisa de certo grau deimplicação dos seus membros. Ela se apóia numa tomada de responsabilidadeindividual, proporcional aos meios de cada um e de cada uma.

Vejamos como proceder.

Desenvolvendo uma atitude coerente. Em primeiro lugar, nósmesmos devemos fazer o que dizemos e dizer o que fazemos. Quantasvezes escutei pais ameaçarem seus filhos de ações que nuncacometeriam?

"Se você não vier comigo, vou deixá-lo na loja!"

"Cuidado, se continuar, vamos pedir para esse policial prender você!"

Seus filhos acabam não levando a sério essas fantasias; dá para ver naindiferença que manifestam diante dessas ameaças.

Esforçando-nos para que as crianças respondam aos nossos pedidos.Não se trata de forçá-las a satisfazê-los, mas de se engajar para obteruma resposta autêntica. Essa qualidade de atenção não é inútil. Parapreservar a energia de todos, antes de fazer um pedido, vale a penapensar com carinho se ele faz realmente sentido.

Por exemplo, um pai pede ajuda numa tarefa ao seu filho, que,

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recorrendo a uma estratégia corrente, aquiesce, mas não vai. O primeiro podeparar um instante para verificar se o seu pedido faz sentido para si e depoiscomeçar a tirar proveito desse pequeno conflito, dizendo:

"Fico chateado quando escuto você dizer sim e não vir me ajudar. Prefiroque me diga logo não, pelo menos eu sei o que esperar. Você sabe que ahonestidade nas nossas relações é importante para mim. Por isso, podeme dizer o que passou pela sua cabeça quando você me respondeu?"

Mostrando a importância que damos ao respeito dos compromissos.Resignar-se com relação às quebras de compromisso não tem nada a ver com anão-diretividade. Pelo contrário, ela nos conduz a não deixá-las passaremdespercebidas. Podemos permanecer abertos à mensagem que procura seexpressar por trás da ruptura. Esta abertura implica uma escuta daquilo quebusca se fazer ouvir por trás das ações inábeis. Ela não quer dizer que aceitemosesses atos ou que estejamos dispostos a questionar nossa posição.

Entretanto, podemos abrir um espaço para verificar:

"Ok, é isso o que você quer me dizer."

Podemos correr o risco de nos comovermos. E eu convido a todos acorrerem esse risco, porque, quanto mais o fizermos, mais a relação podeevoluir. Devemos permanecer fiéis à nossa necessidade, se ela continuar vivadentro de nós. Porém, devemos estar abertos quanto à escolha da maneira desatisfazê-la. É uma posição básica da CNV: estarmos atentos às nossasnecessidades e flexíveis com relação às estratégias a serem empregadas.

O valor conferido ao compromisso e à tomada de responsabilidadepoderia parecer em contradição com a importância da acolhida do instante. Noentanto, não os vejo como dois fatores que se opõem, mas, ao contrário, que seequilibram. A visão de longo prazo sustenta a escuta do instante.

É preciso levar em consideração a fluidez da emoção. Esta é realmente amensagem mais segura na comunicação, contanto que não seja escutada comoum objeto isolado, mas como elemento de uma dinâmica em curso. Várias vezesassisti a essa necessidade de acolhê-la com uma distância.

Dessa forma, digamos que uma pessoa enxergue o seu esgotamento e anecessidade de respeitar seu ritmo de vida. Perceba a que ponto não o escutounos últimos tempos. Esta tomada de consciência a conduz a parar tal atividade,

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cansativa demais para ela. Voltando-se para tal possibilidade, ela é invadida porum imenso alívio. Para ela, tudo parece estar no seu lugar... e está. No entanto,se continuar sua escuta, ela será levada a prestar atenção numa necessidade desegurança material e a lhe dar prioridade. Escolherá manter seu emprego, maseste lhe demandará menos energia porque as razões de sua escolha se tornarãoclaras para ela. Se essa pessoa tivesse acreditado em sua emoção rápido demaisou se lhe tivesse dado apenas uma acolhida fragmentária, poderia ter tomadouma decisão que na realidade seria precipitada demais para ela. O que não querdizer que ela não pedirá demissão em seis meses, quando esse impulso tiveramadurecido o suficiente.

Podemos levar uma vida fundada unicamente na prioridade dada ao queacontece instante após instante. Posso admirar tal escolha; só que, para mim,ela não é conciliável com a não-diretividade. Viver a cooperação nesse sistemapedagógico implica nutrir relações que levem em consideração o respeito pelasnecessidades do grupo e, portanto, visão de longo prazo.

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14Observar ou imaginar o mundo

A criança, que vê os mínimos e reais detalhes do mundo, deveter sobre nós, que vemos imagens de nossas sínteses mentais— inacessíveis para ela —, uma idéia de inferioridade; eladeve nos considerar como incapazes, como pessoas que nãosabem enxergar.

Maria Montessori

O primeiro convite da CNV é o de desenvolvermos uma sensibilidadequanto às coisas que existem e de estarmos conscientes dos comentários queacrescentamos a elas. Quanto mais potente é o movimento de observação,menos se julgará. E, mesmo que nos percamos num "cinema interior" a partirdos fatos que gravamos na mente, a todo instante é possível voltar ao rigor daobservação constatando sem comentários as imagens com as quais brincamos.

A atenção ao que acontece é o movimento natural da criança bemnovinha. A intensidade de sua relação com o mundo é tal que não há — ou hápouca — distância entre ela e o objeto que a atrai. Todo o seu ser é mobilizadopela relação presente: a dança da vassoura sobre o chão, os jogos de luz naconcavidade de uma colher ou os fascinantes relevos do purê de batatas no seuprato.

Contudo, na nossa sociedade, onde os intermediários eletrônicos estãoem todo lugar, essa ligação privilegiada com o instante se fragiliza. Amultiplicação dos meios virtuais de comunicação aumenta a nossa propensão anos protegermos da realidade imaginando-a. Além da diminuição dos contatosreais, a insistência desses meios na distração estimula nossos sistemas deproteção. Em vez de nos voltarmos para as emoções originadas pelaconfrontação, rejeitamo-las comentando os acontecimentos. O risco que secorre é o de dar, pouco a pouco, uma prioridade interior aos comentários sobreos fatos objetivos, o que em longo prazo provoca sofrimento.

Regularmente acompanho grupos de jovens em programas na naturezae fico espantado com a dificuldade deles em se conectar ao seu meio ambiente.Nas saídas para observação de animais, escuto-os falarem durante horas, dias,

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sobre a sua convivência na turma ou seus lazeres, às vezes mesmo quando osbichos que eles foram ver estão na sua frente. Essa distância com o presente nãorevela uma falta de interesse pela natureza, não é o que eles me dizem quandoos questiono, mas um hábito de inatenção já bastante consolidado.

Fui levado a comparar minha capacidade de atenção no mundo e a queconsigo dar a mim mesmo. Pude perceber que, quando aprendia nem que fossesó um pouco a olhar para mim, essa aptidão se transformava numa aberturamaior para os outros. Para mim, é doloroso sentir então essa deserção de simesmo nos jovens, que, há alguns anos, educavam-me para que eu avivassemeu olhar sobre as coisas.

Por isso, aspiro a que o ato de observar se torne outra prioridade daeducação. Que a criança possa conservar a profundidade de sua relaçãosensorial com o mundo. Que ela desaprenda a pensar suas relações, se já estivercontaminada por esse hábito, e se instrua para vivê-las com a mesmaintensidade de quando ela toca, escuta, vê, experimenta e cheira.

Uma educação da observação enfatizaria dois eixos que se completammutuamente:

Desenvolver uma relação rigorosa com a realidade.

Tomar consciência da nossa dificuldade em não julgar o que nos cerca.Desenvolver a capacidade de distinguir os fatos objetivos dos julgamentos, bemcomo assumir a responsabilidade da nossa subjetividade.

Essa compreensão poderia ser criada através de brincadeiras como"Kim" (na qual se deve citar o máximo de objetos escondidos sob um pano, quesó foi retirado durante alguns segundos); a descrição de cenas representadas,quadros, paisagens, como se o narrador quisesse ajudar um cego a pintá-los; avisita de um laboratório de física para descobrir os meios que a ciência possuipara observar o mundo; etc. As possibilidades são limitadas apenas pelacriatividade do pedagogo.

Esse aprendizado faz com que o amor pela verdade cresça.

Sensibilizar-se quanto à potência de nossos sentimentos.

Desenvolver uma pedagogia multissensorial, que compensaria a atualtirania da visão em detrimento dos outros sentidos. Essa atenção a todos os

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sentidos é o ponto de partida da pedagogia aplicada nas escolas Steiner.3

As brincadeiras que estimulam a nossa capacidade de espanto e demaravilhamento contribuem para o aumento dessas capacidades. Algunsexemplos: passeios sensoriais com os olhos tapados, a pintura de vistas que nossurpreendem, a criação de um mapa sonoro ou olfativo do nosso meioambiente, etc.

Esse aprendizado ajuda a aumentar o amor pela beleza.

3 "Introduzida por Rudolf Steiner em 1919, em Stuttgart, Alemanha, uma das principais características estapedagogia é o embasamento na concepção de desenvolvimento do ser humano, criada pelo próprio RudolfSteiner, que leva em conta as diferentes características das crianças e jovens, segundo sua idade aproximada.Um mesmo assunto é abordado várias vezes durante o ciclo escolar, mas nunca da mesma maneira, e semprerespeitando a capacidade de compreensão da criança. Para atingir a formação do ser humano, a pedagogiaatua no desenvolvimento físico, anímico e espiritual do aluno, incentivando o querer (agir) por meio daatividade corpórea das crianças em quase todas as aulas. O sentir é estimulado na constante abordagemartística e nas atividades artesanais específicas para cada idade. O pensar é cultivado paulatinamente, desde aimaginação incentivada por meio de contos, lendas e mitos — no início da escolaridade —, até o pensarabstrato rigorosamente científico do Ensino Médio (colegial)." Fonte: http://www.ewrs.com.br/pedagogia.htm(N.T.).

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15O triângulo relacional

Podemos contribuir para o aprendizado de uma criança, masnão ensinar.

Marshall Rosenberg

Uma representação do ser humano me ajuda muito a apreender acomplexidade de suas motivações. Pais e professores já me confessaram seapoiar nela para decodificar os comportamentos de crianças que lhes pareciamcontraditórias demais.

Nas relações humanas, uma freqüente complicação é a crença segundoa qual um indivíduo é inteiriço, uma personalidade monolítica, que às vezestende para uma direção e às vezes para outras. O trabalho que pude realizarsobre os jogos das relações me convenceu do contrário: vejo os indivíduoscomo seres eternamente divididos em partes interiores que, por sua vez, comfreqüência se opõem. É por isso que um adolescente pode mandar seus pais secatarem num instante e, no momento seguinte, repreendê-los por não lhedarem atenção. Aqui não há paradoxo ou espírito de perversidade, mas aexpressão de um conflito interno. Ele está vivendo um dilema entre uma fraçãoíntima que aspira a mais liberdade e outra que sente grande necessidade desegurança.

A multiplicidade de conflitos internos se desdobram em três grandespartes:

Chamo a primeira de "animadora" ou "exploradora". É ela que leva oindivíduo a correr riscos, enfrentar desafios ou pedir demissão dotrabalho sem a segurança de ter encontrado outro. Também é ela queincita a criança a se levantar e dar seus primeiros passos, etc. Anecessidade que ela encarna é a autonomia. Esta tendência nos fazseguir em frente.

Denomino a segunda de "protetora". Sua função é manter emsegurança todas as partes que compõem o ser humano. O que quer quefaçamos, ela sempre procura segurança. O que não nos impede de saltar

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de pára-quedas ou fazer escalada: ela simplesmente quer ser convencidade que podemos viver tais situações com alguma forma de segurança,pois esta é a necessidade que ela personifica acima de tudo. Estatendência nos faz dar um passo atrás.

Batizei a terceira de "educadora". Ela representa a inclinação a tirarpartido de tudo o que nos acontece sob a forma de tomadas deconsciência. Se não virmos nenhum sentido numa ação, não arealizamos, esta é a necessidade que esta parte encarna. Tal tendêncianos leva para cima.

Vejo essas três partes como guias que estão a nosso serviço e sempreativas, nunca páram de tomar conta de nós. Elas formam as três pontas de umtriângulo e cada uma puxa a brasa para a sua própria sardinha. A personalidadede um ser humano se situa no interior dos três lados desse triângulo e tendepara uma ou outra direção em função da parte escutada no instante. Noentanto, seria uma ilusão acreditar que é possível ignorar uma dessas partes porlongo tempo. Quando uma delas não é escutada, acumula frustração e pouco apouco começa a gritar mais alto, até o momento em que nos força a levá-la emconsideração.

Quando tenho dificuldade em me ligar à força de vida por trás damensagem de um jovem, eu me pergunto:

"Qual dessas três partes ele está escutando agora?"

Quando um aluno diz durante a aula: "Ah, estou perdendo meutempo, não serve para nada aprender essas datas!", é visível que a suaparte educadora pede para entender melhor o sentido do que lhe éproposto.

Quando meu filho me confessa, com um tom desiludido: "De qualquerforma, na audição não vou conseguir tocar essa música sem errar",escuto sua parte protetora que tenta poupá-lo de uma decepção.

E quando um jovem afirma: "estou com vontade de passar a noiteacordado com meus amigos", imagino que seja a sua parte animadoraque o leva a querer esse tipo de experiência.

É claro que o adulto também está exposto às mesmas leis da divisãointerna. Ele também enfrenta um dilema entre suas partes íntimas. Uma

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educação mútua implica o mesmo respeito pela complexidade do triângulo dospais e professores que pelo do jovem.

O triângulo relacional também me ajuda a compreender as referênciasque sustentam uma pedagogia não-diretiva. Se almejarmos um equilíbrio entreas tendências contraditórias das três partes interiores, então os limites quevamos impor, tanto para os nossos filhos como para nós mesmos, apresentarãonaturalmente certas características.

Para levar em conta a necessidade de segurança da "protetora", vamosoferecer informações:

numerosas,

claras,

confiáveis.

Para satisfazer à necessidade de sentido da "educadora", vamos darinformações que serão ao mesmo tempo:

associadas às nossas necessidades,

bem explicadas,

avaliáveis.

Por fim, para responder à necessidade de autonomia da "animadora",nosso discurso será: flexível,

questionável.

A prática desses oito critérios contribui para instaurar a condição básicade um funcionamento não-diretivo: a riqueza dos recursos.

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16A relação de confiança

O que é essa metade da humanidade que, vivendo ao lado dose com os adultos, encontra-se ao mesmo tempo tãodramaticamente separada deles? Nós a fazemos carregar ofardo dos seus deveres de sujeitos de amanhã sem lheconceder os seus direitos de sujeitos de hoje.

Janusz Korczak

O que permite um equilíbrio entre nossas partes internas é a qualidadeda aceitação de cada uma. Esta atenção cria aos poucos uma relação deconfiança entre as três tendências. Quando não há tal benevolência, muitoschegam a acreditar que têm adversários no interior de si mesmos. Isso porque,de tanto não serem escutadas, as partes interiores começam a gritardesajeitadamente e acabam sendo percebidas como inimigas! A "animadora" éimaginada como um tirano; a "protetora", como um policial; a "educadora",como um censor. Um dos objetivos da relação de ajuda na CNV é ajudar a pessoaa perceber que, na verdade, as partes internas são amigas que sofrem com umdéficit de empatia.

Em seguida, nossos conflitos íntimos se revelam nas relações exteriores.A falta de harmonia interior induz uma desconfiança com relação aos outros:acreditamos termos algo a defender ou justificar. Ao contrário, a confiança quepodemos ter em outras pessoas desenvolve a confiança entre nossas partesinternas. Por isso, uma ajuda essencial que permite às crianças desenvolveremuma amizade consigo mesmas (de acordo com o título de um livro de PedmaChödrön que eu adoro)4

, consiste em construir confiança em suas relações comos outros, principalmente com as pessoas que representam modelos para elas.

Para mim, esse laço de confiança é a base de um trabalho educativoprofundo. É a primeira coisa que busco quando entro em contato com jovens. Éo ponto que quase sempre privilegio em caso de dilema.

A importância da relação de confiança reforça o sentido do investimento

4 Entrer en amitié avec soi-même. Paris: Pocket, 2000 (N.T.).

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na faculdade de presença e de acolhida. A autenticidade e a empatia de pais eprofessores representam exemplos inspiradores para as crianças. Qualidadesque são o que cada um deve dar a si mesmo se quiser alcançar o bem-estar emsua vida.

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17Confrontar-se com as exigências

É evidente que a sociedade deva exercer um controle benéficosobre o indivíduo humano e é verdade também que aeducação deve ser considerada como uma ajuda para a vida,mas esse controle nunca deve ser constrangedor nemopressivo, mas sim um ajuda física e psíquica.

Maria Montessori

Freqüentemente os pais me dizem estarem descontentes com asexigências que se vêem obrigados a fazer aos filhos. Eles gostariam de aplicarmelhor o processo da CNV, que implica pedidos negociáveis. Vejo que a tensãopara manter essa aspiração à não-exigência lhes custa muita energia e que elesacabam oscilando entre este ideal sedutor e rupturas culpabilizantes comrelação a ele. Por fim, a idéia de funcionar sem exigência se torna para eles umanova forma de exigência.

Acho mais econômico primeiro exercermos uma benevolência quanto ànossa natureza humana e aceitarmos o fato de esbarrarmos regularmente emnossos limites internos, o que nos impede de dialogar o tempo todo. A partirdessa indulgência, é com relação aos nossos limites que podemos aplicar a CNV.A exigência surge então como a compensação desajeitada de necessidadesrecalcadas.

Se criamos essa violência interna, é porque gostaríamos muito de serpais mais amáveis, mais disponíveis, mais alguma coisa. Isso porque, entre anossa situação atual e o que desejamos viver, conhecemos bem a diferença, quenos é insuportável, e assim temos tendência a mascará-la, recalcá-la, o que criauma saturação emocional... até o dia em que as nossas barreiras se quebram. Eacabamos impondo às pessoas que nos cercam um comportamento quedetestamos. Portanto, é a beleza de nossos valores e ideais queautomaticamente suscita o peso de nossas exigências.

Daí a vantagem de não dirigirmos nossa atenção para os charmes dofuturo, mas sim acolhermos o que está presente no instante. Sermos brandoscom a nossa frustração, se for o caso, ou seja, concedermo-nos empatia. E, se o

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nosso nervosismo persistir, aceitar viver com ele. Certamente, para os nossosfilhos, pareceremos muito mais coerentes na situação dada e pacíficos em longoprazo. É ao aceitar nossa violência que começamos a mudá-la.

Parece-me útil lembrar que a cada exigência no interior de mim mesmocorresponde uma outra que eu projeto sobre o mundo. Portanto, aprender aadministrar tanto a nossa violência interior como aquela que impomos àspessoas que nos cercam dá no mesmo.

Dito isso, vejamos um processo mais detalhado para nos ajudar a fazerexigências e, ao mesmo tempo, salvaguardar o máximo de benevolência mútua.Partamos do exemplo de uma mãe furiosa com a sua filha, que acaba de serecusar a lhe fazer um favor.

Primeiro, concedo a mim mesma um tempo de acolhida.

Quais são os sinais de alarme? Meus pensamentos:

"Acho que minha filha está exagerando! Como ela é mimada! E ainda porcima acha que eu sou a empregada dela!"

O que esses pensamentos me revelam dos sentimentos e necessidadesque estão dentro de mim?

"Eu me sinto exasperada, ressentida e decepcionada! Preciso dereconhecimento pela dificuldade do papel de mãe, de empatia peloacúmulo da minha frustração (é claro que essa não é a primeira vez queisso acontece!) e de apoio para as tarefas do cotidiano."

Segundo, que escolha surge a partir da escuta de mim mesma?

Qual é a direção que a energia segue no instante? Será que a minhaveemência é tal que é melhor administrar interiormente o meu conflito ou seráque tenho clareza suficiente para me exprimir?

Terceiro, será que consigo assumir a responsabilidade da minhaexigência?

Será que consigo me concentrar mais no que quero proteger para mim epara a nossa relação do que na vontade de castigar a minha filha?

Será que percebo os limites em que cheguei? Será que sinto

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suficientemente as necessidades frustradas em mim, conseguindo separar estaconsciência do que acho da minha filha?

Quarto, como posso formulá-la?

Expresso uma ordem, mas associo-a à minha vulnerabilidade e tentocomunicar o seu sentido. Por exemplo:

"Não estou mais afim de discutir porque estou esgotada e queropreservar o meu tempo. Agora, vá limpar a cozinha! Dessa forma vou meassegurar de que cada um faz a sua parte para a organização da casa."

Atenção! Uma freqüente complicação nesses momentos é deixarressurgir nossos antigos condicionamentos e acrescentar uma ameaça. Assimenfraqueceríamos a exigência ao deixar subentendido que ela não basta por sisó. Se estamos dando uma ordem, que ao menos ela possua o mérito de serclara.

Quinto, qual será o acompanhamento que virá em seguida?

A partir da minha experiência, a exigência não é tão problemática. Sãomais as nossas dificuldades de acompanhá-la que podem estimular reações edefesas — parto do pressuposto de que não estamos nos confrontando comuma filha que está acostumada a se submeter ou a se revoltar diante de ordens,mas sim a um modo de relação baseado num respeito mútuo. Se estivermosdispostos, podemos tentar nem que seja um pouco permanecer à escuta dareação do outro:

"Você pode apenas me dizer como encara isso?"

Nessas horas, quase nunca temos vontade de ou meios para investir naempatia, mas acho preferível lembrar de explorar esse tipo de conflito nummomento mais favorável. Portanto, perguntar no dia seguinte:

"Você entendeu, afinal, por que eu estava tão zangada ontem à noite?"

A idéia é tentar ir ao centro do conflito, dessa vez, para evitar arepetição dessas situações insatisfatórias.

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18Um dia de Ivan, estudante em 2020

Quero que ensinemos a amar e a compreender o maravilhoso"eu-não-sei" da ciência moderna quando aplicada à criança.

Janusz Korczak

Naquela manhã, Ivan estava se sentindo tão estranho que até hesitouem ir à escola, mas decidiu ir porque tinha vários projetos em andamento e adiaro avanço deles lhe era penoso.

Só que, tendo chegado ao estabelecimento, nenhum dos anúncios dasala de repartição o interessou. Nem o curso que uma das suas colegas ia darsobre a história das histórias, nem o ateliê sobre o conhecimento do corpohumano, ao qual ele tinha planejado ir naquela manhã e que, no entanto, otinha fascinado nas últimas semanas. Ele informou sua não-participação num doscomputadores do hall de entrada. Quando contou sua decisão aos seus amigosSérgio e Rômulo, ambos ficaram emburrados durante um tempo, pois contavamcom ele para bater o recorde da escola na montagem de esqueleto, já que a"barreira dos dez minutos" tinha sido quebrada na semana precedente. Ele usoude empatia para com eles, que se acalmaram rapidamente, deixando-o pararecrutar um novo manipulador de ossos.

Ivan foi olhar os anúncios na bolsa individual, mas decididamente nadalhe chamava a atenção naquele dia. Nem a colaboração para uma crônicaesportiva, nem um passeio entre as plantas comestíveis, nem um ateliê decerâmica. Por isso, ele se dirigiu para o lugar que ele e seus colegas chamavamde "estação de triagem".

No espaço aberto, três dos quatro escutantes já estavam ocupados. Sótinha sobrado Isabela, o que lhe era bem conveniente. Ele a achava muitosimpática, e mesmo sedutora, embora ela já devesse ter ultrapassado a idadecanônica de trinta anos. A regra para esse tempo de ajuste da manhã era nãopassar mais de meia hora com cada pessoa para que qualquer um que quisesseconsultá-los tivesse uma vaga. No entanto, Isabela lhe dedicou o dobro disso. Eleficou agradecido, pois realmente precisou desse tempo todo para ter maisclareza. Ele se deu conta do tédio em suas atividades habituais e da sua

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necessidade de explorar um terreno radicalmente novo. Sua escutante lheapresentou os atuais ateliês de conhecimento de si e lhe propôs se perguntar setinha chegado o momento de procurar um deles.

Seguindo sua sugestão, ele foi caminhar no parque durante um bomtempo. Até então, a descoberta de si não tinha sido um aspecto da educaçãoque o atraísse. O professor que o orientava já lhe tinha feito proposições nessesentido várias vezes, mas ele tinha ficado ocupado demais, ano após ano,realizando muitas vontades, e todo o tempo que ele se reservou, distante daescola, foi dedicado ao lazer. Na beira dos seus quatorze anos, talvez realmentefosse hora de parar e fazer um balanço.

Depois da pausa do meio-dia, um pouco aliviado, ele se juntou ao seutime para o ateliê de "análise de desempenho do jogador de futebol". Seuentusiasmo por essa disciplina vinha do fato de que, no ano anterior, o time dos"Carvões Ardentes" tinha ganho o torneio da escola graças a um curso de "lógicae futebol". Com a ajuda de um professor, seus membros tinham analisado asestratégias de todos os seus adversários e elaborado combinações vitoriosaspara cada jogo. Para o ano letivo de 2020, o seu próprio time, bem como todosos outros, matricularam-se nesta disciplina. Para se assegurarem da vitória, elestinham definido esse novo curso com uma professora. Naquela tarde, passaramcerca de duas horas tentando otimizar seus movimentos de corrida com orecurso de um vídeo.

Antes de ir para casa, ele foi perambular pela Ágora. A maioria daspessoas presentes era constituída de estudantes mais jovens. A Ágora era umlugar muito enriquecedor para eles, que esperavam poder captar ali a atençãodos veteranos de quinze anos. Ivan fazia parte de um grupo influente, eficaz nomeio dos alunos porque nenhum adulto tinha aceitado participar dele. Seuobjetivo era manter os torneios da escola que ainda eram competitivos. Aintenção dos seus membros era votar este assunto no conselho seguinte daescola, o que implicava em obter previamente uma decisão por consenso. Paraisso, era necessário juntar pelo menos uma minoridade decisória: 30%.

Ele passou de uma roda a outra, sem se sentar, escutando o jargão doslobistas. Depois, afastou-se com as orelhas vibrantes pela magia dos argumentose, fato estranho, com o coração resserenado pela ambiência febril.Decididamente, era difícil se entediar na escola.

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19As características de uma escola não-diretiva

Pode ser que a maior descoberta que tenhamos feito emSummerhill 5 é que uma criança nasce sincera. Decidimos nãoincomodá-la para descobrir sua verdadeira natureza.

A.S. Neill

A atração que a competição exercia sobre os estudantes entrevistos nocapítulo anterior talvez choque aqueles e aquelas que sonham com umaeducação cooperativa. Por isso, quero me explicar: se eu os descrevi assim, foiporque queria dar realismo à história. A competição é um modo de pensamentotão presente nas nossas sociedades que temo ser preciso algumas décadas paralimitar o seu poder nocivo. Suponho que durante muitos anos os professorestenham de levar em consideração a presença desse fator nos jovens dos quaiscuidam... bem como em si mesmos.

A relação do cotidiano de Ivan visa a ilustrar, entre múltiplaspossibilidades, o funcionamento de uma escola que aplica globalmente a CNV. Ofato de que sua estrutura pudesse ter diferentes formas representa justamentealgumas características dessa pedagogia. No entanto, seja qual for arepresentação que façamos de um estabelecimento escolar desse tipo,existiriam algumas especificidades. Nestas escolas sempre haveria:

Uma ênfase sobre os impulsos e as necessidades mútuas, tanto deprofessores como de alunos.

Um ambiente rico e uma ação dos professores focada mais na

5 "Summerhill é uma escola inglesa, fundada em 1921 por Alexander Sutherland Neill (Escócia, 1883-1973). Éuma das pioneiras dentro do movimento das escolas democráticas. Atende crianças do equivalente ao EnsinoFundamental e ao Ensino Médio. Uma escola democrática é caracterizada por dois princípios básicos: apossibilidade de os alunos escolherem se querem ou não assistir às aulas e a dinâmica de assembléias, ondetodos participam para decidir as normas da escola. Summerhill se destaca por defender que as criançasaprendem melhor se livres dos instrumentos de coerção e repressão usados pela grande maioria das escolas.Todas as aulas são opcionais, os alunos podem escolher as que desejam freqüentar e as que não desejam. Neillfundou a escola acreditando que 'uma criança deve viver sua própria vida — não uma vida que seus paisacreditem que ela deva viver, não uma vida decidida por um educador que supõe saber o que é melhor para acriança'". Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Summerhill (N.T.).

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evolução do meio do que na mudança direta do indivíduo.

Uma flexibilidade das regras e dos papéis, cuja evolução é marcadapor uma fluidez.

Uma educação global que leve em conta os diferentes aspectos dosseres sociais que nós somos (os aprendizados se dariam tanto através detomadas de consciência quanto de conhecimentos intelectuais erelacionais, integrações corporais e emocionais, etc.).

Uma iniciativa de acolhida das necessidades de empatia e dosconflitos.

Uma conscientização das responsabilidades individuais e dasconseqüências dos nossos atos.

Um modo de tomada de decisão essencialmente consensual.

Gostaria de apresentar em grandes linhas o funcionamento doestabelecimento que tentei imaginar no capítulo anterior.

Para os alunos motivados para adquirir novos conhecimentos, trêspossibilidades de estudo são oferecidas:

As pesquisas e as experiências durante as aulas.

Os aprendizados a partir de uma animação ou de umcompartilhamento de jovens.

Os aprendizados a partir de uma animação ou de umcompartilhamento de um professor.

Numa pedagogia não-diretiva, a co-aprendizagem se efetua a partir decompetências mútuas. Todo dia se verifica quem gostaria de compartilhar umaaquisição com o grupo (não necessariamente um professor, o que não impede osprojetos de longo prazo). Os pedagogos podem exercer papéis variados: suscitaro entusiasmo, dar referências, ajudar a se conhecer, transmitir informações eacompanhar os temas de pesquisa.

Se um jovem estiver desmotivado, as seguintes alternativas lhe sãooferecidas:

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Reservar-se um tempo de descanso, de jogo ou de criatividade.Espaços de relaxamento, de jogos e de expressão artística estão àdisposição para aqueles que não querem participar das atividadesprevistas. Aliás, aceitando o convite de Rabindranath Tagore e deCélestin Freinet,6 uma possibilidade de revigoramento na natureza sesitua próxima à escola.

Investir no esclarecimento das suas necessidades recorrendo a espaçosabertos. Nestes lugares de acolhida, estudantes e professores propõem temposde escuta para ajudar aqueles que assim desejam.

Todos os momentos no interior da escola são apresentados como partes damesma iniciativa global de aprendizado, mesmo os tempos de descanso, jogosou empatia. O que conta é a atenção investida para ver nisso um sentido.

A partir do esclarecimento permitido no espaço aberto, o aluno podeseguir três direções:

Voltar para uma das três formas cotidianas de aprendizado.

Um período de investimento para se conhecer melhor (a escolapropõe ateliês nesse sentido).

Um novo projeto a partir do impulso que surgiu nele.

Para administrar os problemas da escola e integrar as idéias inéditas, umconselho se reúne regularmente. As decisões são tomadas através do consensode todas as pessoas presentes. Em caso de impasse, é possível voltar a umfuncionamento democrático. Algumas regras corrigem os jogos de poderpróprios a esse modo. Este aprendizado da vida de grupo se dá na Ágora, quetambém é um lugar de encontro e de troca.

6 Rabindranath Tagore (1861-1914), escritor indiano, Nobel de Literatura e pedagogo, pregava que, através deuma reflexão sobre questões fundamentais, as crianças poderiam encontrar a paz interior necessária aoaprendizado escolar. Sua escola, chamada Shantiniketan (casa da paz), caracterizava-se por vida ao ar livre,grande importância dada à iniciativa das crianças, autogerenciamento e desenvolvimento intelectual em vez deaquisição de grande quantidade de saber com um horário rígido. Sua pedagogia visava tocar a alma. Eleinfluenciou muito Célestin Freinet (1896-1966), pedagogo francês cujas idéias primordiais eram a expressãolivre e o respeito pela criança. Este último constitui uma referência para os professores que sonham com umapedagogia libertadora e centrada na criança. No Brasil, suas idéias marcaram Paulo Freire, pedagogo conhecidopor seus esforços para a alfabetização de adultos e de pessoas com baixo poder aquisitivo. Fonte: ACKER,Victor. Célestin Freinet (1896-1966): l'histoire d'un jeune intelectuel. Paris: L'Harmattan, 2006 (N.T.).

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20Abertura

Nenhum problema pode ser resolvido sem mudar o nível deconsciência que ele engendrou.

Albert Einstein

Parece-me mais sábio não terminar com uma conclusão um livro queaborda um assunto sobre o qual nunca podemos empregar a palavra "fim".

Sei que insisti muito para os professores considerarem a amplitudeglobal da educação, embora eu saiba que, mesmo que grande parte delesaspirem a isso, são limitados pela falta de meios à sua disposição e pela carênciadas estruturas. Essa educação global não pode ser feita sem uma transformaçãoprofunda dessas estruturas. No entanto, ela própria só pode ser vivida depois deuma revolução das consciências. A maior pobreza dos recursos não é material,mas interior: o peso dos condicionamentos, que limita nosso poder de presença,de acolhida, de abertura e de criatividade.

Para mim, isso não implica o aumento de uma carga de trabalho que já éconsiderável e pouco reconhecida, afirmação que me permito fazer porque commuita freqüência encontro professores esgotados por seus compromissos. Vejoisso mais como urna modificação de sua grade de "cargas", que se torna umagrade de "levezas", o que significa menos tempo dedicado ao ensinamentoforçado de uma matéria em beneficio do aprendizado das relações e de tarefasde animação.

Talvez eu não tenha enfatizado o suficiente a responsabilidade dos pais.Para mim, a missão do professor não implica a saída de cena dos pais. Aocontrário, tenho a convicção de que todos os investimentos numa profundaqualidade de atenção a si mesmo e ao outro preconizados no âmbito da escolafazem ainda mais sentido no seio da família.

Faço votos de que a educação contemporânea leve em conta maisglobalmente o seu principal ator: a criança. Que os contatos entre jovens eeducadores se construam a partir desta expressão natural de amor: o respeitomútuo.

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Bibliografia

BARET, Éric. De l'abandon. Paris: Les Deux Océans, 2004.

ILLICH, Ivan. Educação sem escola? Lisboa: Teorema, 1974.

KORCZAK, Janusz. Como amar uma criança. São Paulo: Paz e Terra, 1986.

KRISHNAMURTI. Palestras com estudantes americanos. São Paulo:Pensamento/Cultrix, 1990.Réponses sur l'éducation. Paris: Stock, 1982.

MARROU, Henri-Irénée. História da educação na Antigüidade. São Paulo: EPU,2006.

MONTESSORI, Maria. A criança. Rio de Janeiro: Nórdica, s.d.Mente absorvente. Rio de Janeiro: Nórdica, 1949.

NEILL, A.S. Liberdade sem medo. São Paulo: Ibrasa, 1977.

ROGERS, Carl. A Terapia centrada no paciente. Lisboa: Moraes, 1974. Liberdade paraaprender. Belo Horizonte: Inter Livros, 1973.

ROORDA, Henri. "Le pédagogue n'aime pas les enfants"; Gilliard Edmond, "L' écolecontre la vie"; Rougemont Denis de, "Les méfaits de l´instruction publique",in Trois pamphlets pédagogiques. L'Age d'Homme (Poche Suisse), 1984.

ROSENBERG, Marshall. Les mots sont des fenêtres (ou des murs). Genebra/Paris:Jouvence/ La Différence, 1999.Une éducation au service de la vie. Québec: Éditions de l'Homme, 2005.

STE1NER, Rudolf. A educação da criança segundo a ciência espiritual. São Paulo:Antroposófica, 1998.

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Para saber mais

Se você quiser conhecer melhor a CNV, pode consultar os seguinteswebsites:

www.cnvc.org (internacional, em inglês)

www.nvc-europe.org (europeu)

www.cnvbrasil.org

No Brasil, Marshall Rosenberg possui uma equipe de pessoas habilitadasque trabalham para mediar conflitos em presídios, em morros do Rio de Janeiro,em empresas e até em ambientes familiares. A rede de comunicação não-violenta no Brasil é sustentada por doações. Educadores também realizamoficinas para qualquer pessoa que tenha interesse em aplicar esse aprendizadono cotidiano. O foco é sempre inspirar a compaixão, por isso foi carinhosamenteapelidada de linguagem do coração7. A ONG CNV Brasil foi fundada em 2003pelo inglês Dominic Barter no Rio de Janeiro.

O Centro internacional para a Comunicação Não-Violenta (CNVC)coordena as atividades das diferentes associações nacionais ou grupos regionaispelo mundo.

Jean-Philippe Faure, professor em Comunicação Não-violenta na Suíça,pratica esses princípios inspirado na obra de Marshall Rosenberg. É co-autor dolivro L'empathie, le pouvoir de l'accueil. Foi sua grande experiência comoformador e pai e seu trabalho com pais, educadores e crianças que lhe permitiua concretização desta obra inovadora.

7 Fonte: Entrevista com Marshall Rosenberg, "O fim do bate-boca", por Marcia Bindo. Disponível em:http://vidasimples.abril.com.br/subhomes/gente/gente_235822.shtml. Edição de março de 2007 (N.T.).

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