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    AS MIGRAES INTERNAS NO BRASIL: UM ENSAIOSOBRE OS DESAFIOS TERICOS RECENTES

    FAUSTO BRITO1

    INTRODUO

    O objetivo deste ensaio2 refletir sobre as migraes internas no Brasil

    recente. A complexidade do tema no possibilita uma tarefa simples. So

    apenas alguns passos em um caminho nada trivial, quando as perguntas

    podem, a princpio, se sobreporem s concluses. Mas, a est o desafio:

    quando no se tm respostas pr-determinadas, as perguntas suscitadas no

    movimento de compreenso da realidade constituem um roteiro para a reflexo

    terica. Seria, ento, mais realista dizer que o objetivo deste ensaio

    constituir-se num roteiro para progredir nesse difcil caminho de compreender a

    mobilidade espacial da populao no contexto atual da sociedade brasileira.

    A produo intelectual sobre as migraes internas no Brasil, ou sobre a

    mobilidade espacial da populao, de uma maneira geral, tem sido extensa e

    rica em informaes. H uma grande predominncia de textos empricos, que

    se multiplicam com a grande disponibilidade de dados disponveis. Esses

    podem ser uma base segura para a reflexo terica. Sabe-se bem, entretanto,

    que a mera regularidade emprica no se constitui, necessariamente, numa

    evidncia de causalidade e, muito menos, em teoria.

    A reflexo, com pretenses elaborao terica, requer algo mais de

    um fenmeno, como as migraes, que no neutro. Pelo contrrio, um

    1 Professor e pesquisador do Departamento de Demografia e do Centro de Desenvolvimento ePlanejamento Regional da UFMG. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq2

    Este ensaio uma verso revista e ampliada do texto apresentado no Taller CELADE de MigracionInterna, Braslia, 2007: Urbanizao, metropolizao e mobilidade espacial da populao: um breveensaio alm dos nmeros.

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    processo social que encerra em si toda a complexidade da sociedade na qual

    ela est inserida. Pela importncia que tm para a sociedade brasileira, as

    migraes no podem ser compreendidas independentemente dela. E, de

    acordo com essa mesma sociedade, esto em constante transformao,

    deixando marcas no passado, estruturando o presente e projetando-se para o

    futuro.

    Grande parte das teorias que ainda servem de referncia para a anlise

    das migraes internas no Brasil, e nos pases em desenvolvimento em geral,

    foram elaboradas nos anos sessenta e setenta, ou at mesmo antes. Elas se

    referem a um contexto histrico especfico e foram importantes para

    compreend-lo. Contudo, j se distanciam da realidade atual em profunda

    transformao e necessitam ser revistas. Pensar sobre elas, porem, pode ser

    um passo importante na elaborao do roteiro a que se prope esse ensaio.

    Mesmo sabendo que as migraes so um fenmeno muito mais amplo, este

    ensaio ser restrito s migraes em direo s reas urbanas,

    particularmente, em direo s grandes cidades e aglomerados metropolitanos.

    No uma escolha ao acaso, pois as migraes rural-urbanas so o ncleo da

    maior parte das teorias elaboradas nesse perodo.

    O PARADIGMA GERAL DAS TEORIAS

    SOBRE AS MIGRAES

    As anlises econmicas e sociolgicas sobre as migraes internas

    foram fortemente influenciadas, respectivamente, pela teoria do

    desenvolvimento econmico com oferta ilimitada de mo-de-obra e pela teoria

    da modernizao social. Na primeira, encontra-se a concepo de que asmigraes so um poderoso mecanismo de transferncia da populao de

    regies agrcolas, densamente povoadas, e com uma produtividade do trabalho

    extremamente baixa, para os setores urbanos e industriais da economia

    capitalista, onde o progresso tcnico intrnseco garante uma produtividade do

    trabalho muito mais elevada.

    Segundo a teoria da modernizao, pode-se dizer que as migraes

    transferem o grande excedente populacional das reas tradicionais dasociedade para as cidades, principalmente as grandes, onde predomina um

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    arranjo social e cultural moderno, baseado nos padres histricos da sociedade

    ocidental. Na verdade, as duas grandes teorias se referem a um mesmo

    fenmeno, as migraes, com uma nfase analtica maior na economia ou na

    sociologia.

    Mesmo que ocorram obstculos intervenientes, associados distncia

    ou aos custos de transportes, assim como aos problemas psicossociais

    inerentes ao translado, a virtuosidade econmica e social das migraes um

    pressuposto inegvel dessas teorias. Essa dimenso positiva das migraes,

    tanto do ponto de vista social, quanto econmico, serve de pano de fundo para

    a racionalidade da deciso de emigrar. A anlise custo-benefcio, em todas as

    suas dimenses, tende a ser amplamente favorvel aos benefcios. Emigrar em

    direo s grandes regies urbanas a opo mais adequada quando o

    objetivo a melhoria do padro de vida, mesmo quando se considera a enorme

    adversidade que essas regies impem aos imigrantes e suas famlias. At

    porque elas tendem a ser superadas quanto maior for o tempo de residncia

    desses imigrantes. O migrante considerado como um indivduo dotado de

    racionalidade econmica na deciso de migrar e, portanto, capaz de desenhar

    os seus caminhos pelo territrio de uma maneira adequada s necessidades

    do mercado de trabalho. Como se cada migrante fosse um empresrio de si

    mesmo a procurando a localizao tima para o seu capital humano3.

    A migrao, para essas teorias, pode-se deduzir, positiva e

    necessria para o desenvolvimento do capitalismo e da sociedade, assim como

    delimita uma estratgia racional para a melhoria de vida do migrante e da

    famlia que o acompanha. Essa dimenso claramente normativa serve ao

    paradigma que ilumina uma grande parte das teorias sobre as migraes que

    foram elaboradas nos anos sessenta e setenta do sculo passado. Ainda que,sob esse paradigma, possam ser encontradas teorias razoavelmente diferentes

    segundo as suas caractersticas epistemolgicas e quanto s suas concepes

    dos desequilbrios regionais e das desigualdades sociais, que esto na raiz do

    desenvolvimento da economia e da sociedade brasileiras.

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    VAINER, CARLOS B., Reflexes sobre o poder de mobilizar e imobilizar na contemporaneidade, inPOVOA NETO, H. E FERREIRA, A.P.,Cruzando Fronteiras Disciplinares, um panorama dos estudosmigratrios, Editora Revan/ FAPERJ , 2005

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    Vale a pena, antes de prosseguir, fazer uma breve considerao sobre o

    conceito de paradigma utilizado neste ensaio. Como se sabe, ele se consagrou

    no meio acadmico pelo livro de Khun4. Conforme esse conhecido livro, o

    conceito de paradigma se refere aos modelos, ou s idias, que durante um

    certo perodo orientam a atividade cientfica e sobre os quais h um certo

    consenso. Um exemplo simples, mas contundente, ajuda a esclarecer o

    conceito. Se o ponto de partida um modelo geocntrico, as atividades

    cientficas e as teorias dele derivadas, so, logicamente, distintas se os

    pressupostos fossem de um modelo heliocntrico. So duas vises de mundo,

    evidentemente normativas, ou, melhor dizendo, so dois paradigmas distintos.

    Como se observa, pelo prprio exemplo, um paradigma se transforma pelas

    prprias circunstncias histricas e atravs das prprias atividades cientficas.

    Neste ensaio, o conceito de paradigma menos pretensioso e se refere

    apenas s orientaes normativas sobre as migraes, que esto incorporadas

    nas teorias gerais sobre o desenvolvimento econmico e a modernizao

    social. Rev-lo, com pretende este ensaio, fundamental para se repensar as

    teorias clssicas sobre as migraes, assim como para se estabelecer as

    bases de um novo paradigma que fundamente, com a sua nova viso do

    mundo, em particular das migraes, a elaborao de novas teorias.

    Longe de se pretender realizar uma ampla reviso bibliogrfica neste

    breve ensaio, foram escolhidos quatro textos considerados relevantes pela

    influncia que exerceram nas anlises das migraes no Brasil. impossvel

    fugir a uma certa arbitrariedade nessa opo. Os textos escolhidos se

    assentam sobre as teorias econmica e a sociolgica, ou em ambas. No quer

    dizer que outras cincias sociais no tenham contribuies importantes para se

    compreender as migraes. A deciso foi simplificar o rduo caminho pelafrente e voltar-se exclusivamente para os objetivos deste ensaio. Os textos so

    os de Michael Todaro e Paul Singer, pelo lado da Economia, e os de Gino

    Germani e Eunice Durham, pela Sociologia. Vale esclarecer que no se

    pretende fazer uma leitura exaustiva deles, mas, principalmente, mostrar a

    influncia da dimenso normativa do paradigma que os iluminam.

    4 Kunh, Thomas, Estruturas das revolues cientficas; Editora Perspectiva, 1978, So Paulo

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    AS TEORIAS ECONMICAS DAS MIGRAES

    O ponto de partida de Todaro5 o clssico artigo de W. A. Lewis6, que

    observa, nos pases em desenvolvimento, uma oferta ilimitada de fora de

    trabalho, ou, em outras palavras, economias onde prevalece uma populao

    numerosa com um grande crescimento vegetativo, face ao capital e aos

    recursos naturais disponveis. Dadas as diferenas estruturais entre os setores

    rural e urbano da economia, de importncia decisiva a transferncia de mo

    de obra entre os dois setores.

    A questo fundamental para Lewis, do ponto de vista da interao entre

    os dois setores, seria a utilizao do excedente capitalista. Se ele reinvestido,

    mais capital ser gerado e mais pessoas sero empregadas no setor

    capitalista, at desaparecer o excedente de trabalhadores ou at que o total de

    fora de trabalho do setor rural seja transferido para o setor moderno da

    economia capitalista.

    Todaro reconhece que Lewis reproduz, de uma maneira simplificada,

    para os pases em desenvolvimento o que foi a experincia de

    desenvolvimento econmico dos pases mais avanados do Ocidente. Porm,

    no desconhece a importncia da transferncia do excedente populacional. Um

    fenmeno associado, segundo ele, prpria histria do progresso material de

    um pas, quando se torna necessria a transferncia da populao do setor

    agrcola tradicional, com uma produtividade marginal do trabalho igual a zero,

    para a indstria moderna, onde a produtividade positiva e crescente, devido

    ao progresso tcnico.

    Todavia, menciona Todaro, que h um equvoco quando se considera

    que esse processo ocorre em um s estgio. Questiona, devido aosubemprego e desemprego generalizados nos pases em desenvolvimento,

    que nem sempre o trabalhador migrante, sem qualificao, do setor rural

    poder encontrar emprego permanente e bem remunerado no setor urbano.

    5 TODARO, MICHAEL ; A migrao da mo de obra e o desemprego urbano em pasessubdesenvolvidos, in Migrao Interna, Textos Selecionados, tomo I, coordenador, MOURA, HLIO;

    Fortaleza, Banco do Nordeste, 19806LEWIS, W. A. El desarrollo economico con oferta ilimitada de trabajo, in AGARWALA A. N.,SINGH S.P., La economia del subdesarrollo, Editorial Tecnos,Madrid, 1963

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    Prope, ento, que a migrao rural-urbana seja considerada como um

    processo em dois estgios. O migrante, trabalhador rural no qualificado, para

    uma rea urbana, passar inicialmente por um estgio, durante um certo

    perodo de tempo, no chamado setor urbano-tradicional (desempregados

    abertos, subempregados, empregados ocasionais e empregados do setor

    informal). Posteriormente, poder caminhar-se na direo do segundo estgio,

    engajando-se num emprego permanente no setor moderno.

    A hiptese bsica de Todaro relaciona a probabilidade de o migrante

    encontrar emprego urbano com a deciso de emigrar. Mesmo havendo

    desemprego urbano, ele pressupe que haja uma racionalidade nessa deciso

    de emigrar da rea rural para a rea urbana, que est fundamentada no clculo

    econmico de sua renda esperada, ou permanente, e no na renda imediata

    aps a emigrao. Como no existe uma situao de pleno emprego, a renda

    esperada ser ponderada, sempre, pela probabilidade de se obter emprego.

    Mesmo com essa ponderao, no modelo Todaro, o migrante pode

    passar algum tempo desempregado, empregado eventual ou subempregado,

    no primeiro estgio da migrao. Como ele jovem, provavelmente com idade

    entre 15 e 24 anos, considera que a renda real urbana pode at ser menor do

    que a renda rural durante um certo perodo imediatamente aps a data de

    migrao. A racionalidade econmica da deciso de emigrar est dada pela

    possibilidade de transitar para o setor moderno da economia e, portanto, o

    migrante, de fato, estaria pensando na renda urbana provvel valor presente

    do fluxo de renda esperado , quando passasse para o segundo estgio da

    migrao.

    Na teoria de Singer7, as migraes so historicamente determinadas

    segundo a modalidade da industrializao. Como o progresso tcnico impeuma racionalidade econmica industrializao capitalista, gerando economias

    de aglomerao, reorganizando espacialmente as atividades econmicas, as

    migraes internas tornam-se economicamente necessrias. Elas so,

    realmente, um mecanismo de redistribuio da populao segundo os interesses

    do processo de industrializao. Nessa perspectiva, os migrantes so uma

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    SINGER, PAUL, Migraes internas: consideraes tericas sobre o seu estudo, inMOURA HLIO,op. cit.

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    produto cresce mais do que a demanda de fora de trabalho e , segundo

    Singer, o obstculo estrutural mais importante que se interpe entre o imigrante

    e as novas oportunidades econmicas. Esse obstculo pode tornar-se mais

    grave devido s caractersticas individuais do migrante, como o seu nvel de

    educao e renda, assim como o seu desajuste em relao nova realidade

    urbana. Porm, o tempo de aprendizado e aculturao do migrante vai ser

    fundamental, seja para ele se incorporar aos setores modernos da economia,

    seja para se manter no exrcito industrial de reserva.

    Embora existam ntidas diferenas nas orientaes tericas de Singer

    e Todaro, o primeiro mais prximo de uma concepo marxista, atravs da

    utilizao do conceito de exrcito industrial de reserva, as semelhanas quanto

    relevncia das migraes para o desenvolvimento do capitalismo so, tambm,

    notveis. A anlise de Singer menos otimista do que a de Todaro, para quem

    todos os imigrantes tendem a se transferir, com o tempo, para os setores

    modernos da economia. Contudo, mesmo para Singer, os imigrantes oriundos

    das regies estagnadas, encontrariam o seu lugar no capitalismo como exrcito

    industrial de reserva. Ambos, Singer e Todaro, compreendem as migraes

    como necessrias e positivas para o desenvolvimento do capitalismo e para a

    mobilidade social dos indivduos, dentro do contexto dos desequilbrios setoriais

    e espaciais de uma economia em desenvolvimento. Para Todaro, essa

    racionalidade econmica que leva o indivduo a se mover no espao inerente

    sua prpria participao como agente no mercado de trabalho. Enquanto para

    Singer, essa mesma racionalidade est dada para o migrante, no como

    indivduo, mas, como grupo social ou classe, por imposio estrutural do

    processo de acumulao capitalista.

    AS TEORIAS SOCIOLGICAS DAS MIGRAES

    A teoria de Germani8 sobreas migraes internas tem, como pano de

    fundo, a teoria da modernizao social, vertente sociolgica das teorias do

    desenvolvimento econmico, como a de Lewis. A tese fundamental que as

    migraes se constituem num mecanismo fundamental no processo de transio

    8GERMANI, GINO, Sociologia de la modernization, caps. IV, VI e VII, Paidos, Buenos Aires, 1970.

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    da sociedade tradicional para a moderna. As sociedades tradicional e moderna

    so tipos ideais assentados sobre a experincia histrica de desenvolvimento do

    capitalismo no Ocidente.

    Segundo Germani, a sociedade tradicional, extremamente integrada,

    do ponto de vista econmico, normativo e psicossocial, vinculada economia

    agrcola, precisa ser desestabilizada para que as migraes possam ocorrer.

    Sem um efeito demonstrao, atravs dos meios de comunicao de massa ou

    das redes de interao social, ou mesmo atravs do contato entre as

    economias, as migraes, como um processo social, no ocorreriam.

    A populao precisa ser mobilizada socialmente para que seja atrada

    pela sociedade moderna. Diante das novas possibilidades de participao social,

    ela se coloca disponvel para a emigrao. Esse processo de mobilizao social

    dos migrantes, em direo sociedade moderna, o que define a migrao e

    faz dela um processo que se estende desde o lugar de origem at a integrao

    do migrante no lugar de destino.

    Para Germani, ento, a migrao um processo social que vai alm

    dos mecanismos do mercado de trabalho, no plano econmico, e se insere em

    uma ampla mudana social, cultural e psicossocial, tanto individual, quanto

    coletiva, dentro do desenvolvimento da sociedade moderna. Desse modo, as

    migraes, dentro do processo de mobilizao social, so necessrias e

    funcionais para a modernizao da sociedade dos pases em desenvolvimento.

    A anlise de Germani, dentro da tradio estrutural-funcionalista,

    revela a importncia do processo de integrao social do migrante na sociedade

    moderna. Entretanto, como trabalha com dois tipos ideais sociedade

    tradicional e sociedade moderna , tende a uma viso dualista que no condiz

    com a realidade histrica dos pases em desenvolvimento. A sociedade modernaque se gera no se confunde com o padro clssico ocidental, mas, como

    resultado da prpria migrao, combina diferentes culturas e uma enorme

    diversidade social. Mesmo com a indiscutvel hegemonia da sociedade urbana

    sobre o conjunto da nao, no se construiu nas cidades, principalmente nas

    grandes metrpoles, o espelho da sociedade urbana dos pases desenvolvidos.

    Vale lembrar que a dimenso dualista no um equvoco presente somente nas

    teorias sociolgicas da migrao. Pelo contrrio, as teorias econmicas partemdo mesmo pressuposto, quando consideram os pases em desenvolvimento

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    marcados pelo dualismo entre as economias agrcolas atrasadas, pr-

    capitalistas, e as economias urbanas e industriais, capitalistas.

    No contexto de profundas desigualdades sociais e espaciais, os

    imigrantes, ainda que mobilizados socialmente pela sociedade moderna, no

    obedeceram, necessariamente, ao itinerrio otimista de Germani quanto sua

    integrao, sendo empurrados, muitas vezes, em direo excluso social.

    A teoria de Duhram9, focalizada no caso brasileiro, mais esclarecedora

    dos mecanismos sociais envolvidos no processo de migrao, inclusive do

    processo de integrao social. Segundo a autora, para que haja migrao,

    fundamental que a sociedade agrria-tradicional tenha alguma forma de incluso

    na economia competitiva. Somente assim, a necessidade de melhorar de vida

    pode levar ao abandono do universo da sociedade tradicional, dentro do qual

    no h alternativa para a ascenso social. Assim, para Duhram, a migrao no

    s funo da misria na sociedade de origem, mas da necessidade de

    melhoria social. E essa necessidade s se realiza se o indivduo migra.

    No caso brasileiro, a migrao uma tradio, faz parte do equipamento

    cultural tradicional. Se o indivduo quer melhorar de vida, no resta outra

    alternativa, a no ser migrar para as cidades, particularmente, as grandes. A

    movimentao no espao geogrfico equivale a uma movimentao no espao

    social, organizada a partir do grupo de relaes primrias: famlia, parentes,

    vizinhana e amigos. o grupo de relaes primrias que acumula as

    informaes necessrias para reduzir os riscos inerentes migrao, ajudando

    a adaptao na sociedade urbana e, ao mesmo tempo, faz com que o migrante

    no dissolva os seus laos com a regio de origem.

    A importncia do grupo primrio fundamental, porque o aparelho

    cultural tradicional inadequado para a adaptao do imigrante ao mundourbano, principalmente, o mundo do trabalho. Esse grupo, em particular a

    famlia, que possibilita a sua orientao para o ajuste sociedade urbana,

    assim como a garantia do seu bem-estar e da sua segurana econmica.

    Alm de outras contribuies importantes, Duhram chama ateno para a

    importncia da migrao como a nica alternativa para a mobilidade social dos

    DURHAM, EUNICE, A caminho da cidade, 3 e 4 partes, Editora Perspectiva, 1984.

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    que residem nas regies agrcolas tradicionais. Trata-se de um componente

    fundamental da tradio cultural brasileira. Mais do que necessria, do ponto de

    vista do desenvolvimento capitalismo ou da modernizao da sociedade, a

    migrao parte da cultura brasileira, como caminho para a mobilidade social

    do indivduo. No s uma resultante racionalidade econmica na deciso de

    emigrar, mas, produto da racionalidade social enraizada na prpria cultura

    brasileira. De acordo com os outros autores citados, para Duhram, a migrao,

    ainda que resultante da deciso individual, um processo social inerente

    prpria sociedade onde se insere.

    Outras caractersticas do paradigma que ilumina essas teorias podem,

    tambm, ser mencionadas. Em Duhram, mas, tambm, nos outros autores, a

    migrao predominantemente familiar e definitiva. O indivduo no migra

    sozinho, mas associado famlia e articulado dentro de uma rede de interaes

    sociais que facilita a sua integrao na regio urbana. E a migrao tende a ser

    definitiva, pois, quanto maior o tempo de residncia, maiores sero as

    possibilidades de assimilao da cultura urbana e da incorporao ao mercado

    de trabalho tipicamente capitalista.

    Em sntese, pode-se compreender, atravs das teorias econmicas e

    sociolgicas analisadas, que o paradigma que lhes serve de pano de fundo tem,

    como referncia normativa, que a macia transferncia de populao das reas

    agrcolas tradicionais para as regies urbanas industriais, no s necessria,

    como positiva, para o desenvolvimento da economia capitalista e para a

    modernizao da sociedade. A migrao, desse modo, um processo social

    inerente ao desenvolvimento do capitalismo, e a racionalidade envolvida na

    deciso de emigrar leva uma deciso favorvel emigrao, apesar dos

    custos sociais, econmicos e psicossociais envolvidos. A migrao, portanto,tende a ser, familiar e definitiva e o caminho mais racional, economicamente,

    em direo a uma melhoria das condies de vida ou a uma mobilidade social.

    AS MIGRAES E AS PARTICULARIDADES

    DO CASO BRASILEIRO AT 1980

    As migraes foram determinantes na histria brasileira recente,contribuindo decisivamente para as particularidades do seu processo de

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    urbanizao. Uma questo fundamental que se coloca, ento, se as

    migraes, e o processo de urbanizao, ocorreram de acordo com o

    paradigma analisado anteriormente.

    O processo de urbanizao no Brasil s se acelerou e assumiu uma

    dimenso realmente estrutural na segunda metade do sculo passado.

    Somente na dcada de sessenta que a populao urbana superou a rural. A

    velocidade do processo de urbanizao, muito superior dos pases

    capitalistas mais avanados, foi a grande novidade do caso brasileiro.

    Exemplificando, em apenas 50 anos, na segunda metade do sculo XX, a

    populao urbana passou de 19 milhes para 138 milhes, multiplicando-se 7,3

    vezes, com uma taxa mdia anual de crescimento de 4,1%. O que significou, a

    cada ano, em mdia, que 2,4 milhes de habitantes eram acrescidos

    populao urbana.

    Esse acelerado processo de urbanizao era parte das profundas

    transformaes estruturais pelas quais passavam a sociedade e a economia

    brasileiras. De fato, era a prpria sociedade brasileira que se transformava

    cada vez mais em urbana, tornando irreversvel a hegemonia das cidades, no

    s como o locus privilegiado das atividades econmicas e da residncia da

    populao, mas, tambm, como centro de difuso dos novos padres de

    relaes sociais inclusive as relaes de produo e de estilos de vida. Era

    o Brasil moderno, urbano-industrial, que se sobrepunha ao Brasil agrcola-

    tradicional, gerando uma sntese singular, muito alm de qualquer dualismo:

    desenvolvimento econmico e modernizao social, com fortes desequilbrios

    regionais e agudos desequilbrios sociais.

    Essas particularidades da economia e da sociedade brasileiras serviram

    de pano de fundo para o fantstico movimento migratrio da populao.Somente entre 1960 e o final dos anos oitenta, estima-se que saram do campo

    em direo s cidades quase 43 milhes de pessoas, inclusive os efeitos

    indiretos nas respectivas dcadas10. Um deslocamento populacional

    gigantesco, num breve espao de tempo, o que bem qualifica a causa

    10

    CARVALHO, J OS A.; FERNANDES, FERNANDO. Estimativas dos saldos migratrios etaxas lquidas de migrao das Unidades da Federao e grandes regies do Brasil .1994. Disponvel em: www.cedeplar.ufmg.br.

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    fundamental do acelerado processo de urbanizao pelo qual passava a

    sociedade brasileira.

    As migraes internas redistribuam a populao do campo para as

    cidades, entre os estados e entre as diferentes regies do Brasil, inclusive para

    as fronteiras agrcolas em expanso, onde as cidades eram o piv das

    atividades econmicas. Mas, o destino fundamental dos migrantes que

    abandonavam os grandes reservatrios de mo de obra o Nordeste e Minas

    Gerais, principalmente eram as grandes cidades, particularmente, os grandes

    aglomerados metropolitanos em formao no Sudeste, entre os quais a Regio

    Metropolitana de So Paulo se destacava.

    As migraes definiram a tendncia concentrao populacional nos

    grandes aglomerados metropolitanos. Em 1970, contabilizava-se, no Brasil,

    uma populao de cerca de 93 milhes de habitantes. Aproximadamente um

    tero desse total tinha, como residncia, os municpios pertencentes s

    aglomeraes metropolitanas. Considerando-se somente a populao urbana,

    essa proporo chegava quase aos cinqenta por cento11.

    Levando em conta que foi somente na dcada de sessenta que a

    populao urbana superou a rural, pode-se afirmar que a transformao urbana

    no Brasil foi to acelerada que fez coincidir, no tempo, a urbanizao, a

    concentrao da populao urbana e a metropolizao.

    Vale a pena refletir sobre o papel das migraes internas dentro do

    processo de urbanizao. Elas foram decisivas para alinhavar e integrar

    territorialmente a sociedade brasileira, na segunda metade do sculo XX. Com

    a expanso dos sistemas de transporte e de comunicao, os migrantes

    fluram aceleradamente, contribuindo para a estruturao de um sistema de

    cidades de dimenso nacional, comandado pelos grandes aglomeradosmetropolitanos. A presena do Estado, no caso, foi preponderante, tanto nas

    polticas que condicionavam a alocao espacial dos investimentos pblicos e

    privados, quanto na expanso da fronteira agrcola e mineral.

    Os fluxos migratrios, que contribuam para consolidar o sistema de

    cidades, intensificaram-se com o desenvolvimento da economia e da

    sociedade, entre 1950 e 1980. No s eram necessrios para a economia

    11BRITO, FAUSTO. O deslocamento da populao brasileira para as metrpoles. EstudosAvanados, 57, USP, 2006.

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    urbano industrial que se expandia, principalmente no Sudeste, como transferia

    maciamente populao das reas agrcolas tradicionais, estagnadas ou no,

    para as regies urbanas.

    No resta dvida que se abria uma oportunidade de melhoria da

    qualidade de vida para uma enorme parcela da populao. Duhram tinha razo

    quando chamava ateno para a tradio migratria, enraizada na cultura

    brasileira, que articulava a mobilidade espacial com a mobilidade social. Alis,

    era essa a nica alternativa de mobilidade social para a grande maioria da

    populao brasileira12. Nunca, como nesse perodo da histria brasileira, as

    oportunidades foram tantas nas grandes cidades e, em particular, nas regies

    metropolitanas. Com o desenvolvimento acelerado da economia, os empregos

    e as ocupaes se multiplicavam e a esperana dos migrantes podia, muitas

    vezes, se transformar em realidade.

    Os caminhos percorridos pelos migrantes, atravs das grandes

    trajetrias migratrias, traziam a esperana, nem sempre efetivada, de uma

    melhoria das suas condies de vida. Os grandes aglomerados metropolitanos

    eram os lugares, por excelncia, onde era possvel viabilizar a articulao entre

    mobilidade espacial e mobilidade social. Mesmo que houvesse um tempo de

    adaptao ou que se tivesse que passar um perodo nos setores tradicionais

    da prpria economia urbana.

    Essa era a grande caracterstica do padro migratrio que prevaleceu

    at os anos oitenta: o desenvolvimento da economia e da sociedade abria

    caminhos para a articulao da mobilidade espacial, ou da migrao, com a

    mobilidade social. Mudar de residncia com a famlia para um outro municpio

    ou estado era uma opo social consagrada pela sociedade e pela cultura,

    estimulada pela economia e com a possibilidade de se obter xito na melhoriade vida13 . Tudo, de acordo com o paradigma e com as teorias: a migrao era

    racional e necessria para o individuo que migrava, em particular, e positiva e

    funcional para o desenvolvimento da economia e modernizao da sociedade.

    12BRITO, FAUSTO. Brasil, final do sculo: a transio para um novo padro migratrio. In:CARLEIAL, ADELITA (org.). Transies migratrias. Fortaleza: Iplance, 2002.

    13

    BRITO, FAUSTO. Brasil, final do sculo: a transio para um novo padro migratrio. In:CARLEIAL, ADELITA (org.), op.cit.

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    Contudo, a histria mostrou que eram muitos os migrantes, mas nem

    todos conseguiam transformar a sua esperana em realidade, apesar do

    dinamismo da economia e da abertura propiciada pelas mudanas em direo

    modernizao social. A sincronia, no tempo, entre os acelerados processos

    de urbanizao, concentrao urbana e metropolizao, estimulada pelas

    migraes, contribuiu para uma extensa revoluo urbana, que atravessou o

    pas e marcou profundamente a sociedade moderna que emergia. Contudo, as

    desigualdades sociais, que historicamente tm sido uma caracterstica da

    sociedade brasileira, tornaram-se mais agudas e se projetaram sobre o Brasil

    urbano e moderno. Ainda que muitos imigrantes tenham aproveitado as amplas

    oportunidades econmicas e sociais e conectado a mobilidade espacial com a

    social, os obstculos postos pela rgida estrutura social foram extremamente

    seletivos e o processo de integrao social foi muito diferenciado. Nessa

    perspectiva, ao contrrio do que previa o paradigma, e as teorias por ele

    influenciadas, nem mesmo o tempo de residncia, para muitos imigrantes, era

    suficiente para que eles rompessem os limites integrao, postos pela

    extrema desigualdade social que acompanhava as modernas economia e

    sociedade urbana no Brasil.

    AS MIGRAES E AS PARTICULARIDADES

    DO CASO BRASILEIRO APS 1980

    O padro migratrio prevalecente at a dcada de setenta do sculo

    passado, no Brasil, comeou a sofrer profundas modificaes.

    Conseqentemente, o paradigma e as teorias examinadas anteriormente neste

    ensaio, se j no so plenamente satisfatrias para explicar as migraes entre1950-1980 e esto a exigir uma profunda reviso14.

    A reduo do ritmo da urbanizao, assim como do crescimento das

    grandes cidades e aglomerados metropolitanos, refletem as transformaes

    profundas pelas quais passaram a economia e a sociedade brasileiras. A

    intensa internacionalizao da economia e a conseqente reestruturao

    14

    BRITO, FAUSTO. Brasil, final do sculo: a transio para um novo padro migratrio. In:CARLEIAL, ADELITA (org.), op.cit.

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    produtiva modificaram substancialmente o processo de acumulao de capital,

    mesmo sem ter alterado, substancialmente, os desequilbrios regionais e as

    desigualdades sociais. Todavia, a economia e a sociedade no exigiam mais

    uma transferncia inter-regional do excedente populacional na forma como

    aconteceu no terceiro quartel do sculo passado.

    Dessa maneira, as migraes deixaram de ser to positivas e

    necessrias para o desenvolvimento do capitalismo e para a modernizao da

    sociedade. As grandes cidades e os aglomerados metropolitanos, como

    resultado, em grande parte, das migraes anteriores e das suas

    conseqncias intergeracionais, passaram a contar, dentro dos seus prprios

    limites territoriais, com o excedente populacional necessrio para o

    funcionamento satisfatrio do mercado de trabalho.

    Por outro lado, as macias transferncias inter-regionais da

    populao,seja das reas rurais para as urbanas, seja entre os diferentes

    estados e regies, deixaram de ser viveis, no s do ponto de vista

    econmico e social, mas, tambm do ponto de vista demogrfico. O padro

    migratrio prevalecente anteriormente no Brasil tpico da primeira fase da

    transio demogrfica, quando fecundidade alta e mortalidade em forte declnio

    possibilitavam altas taxas de crescimento populacional nos grandes

    reservatrios de mo-de-obra, como o Nordeste e Minas Gerais.

    Anteriormente, a transferncia dos enormes excedentes populacionais para as

    reas urbanas, somados aos altos e generalizados nveis de fecundidade,,

    foram decisivos para a notvel sincronia entre urbanizao, concentrao

    urbana e metropolizao.

    Na fase atual da transio demogrfica, onde a fecundidade j alcana o

    nvel de reposio, no h mais possibilidade de se gerar, nas tradicionaisregies de origem migratria, os mesmo excedentes populacionais do passado

    e, conseqentemente, suas enormes transferncias interestaduais. A

    condies demogrficas se associam s econmicas e sociais, para tornarem

    as migraes menos provveis e necessrias do que previa o antigo

    paradigma.

    Observa-se, ento, atualmente, uma reduo na velocidade do

    crescimento dos grandes aglomerados metropolitanos, principalmente dos seusncleos, e um redirecionamento de parte das migraes internas para as

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    cidades mdias no metropolitanas15. Dentro dos aglomerados metropolitanos,

    tem havido uma notvel tendncia a um maior crescimento dos municpios

    perifricos, em relao s capitais, evidenciando um processo de inverso

    espacial do comando do crescimento demogrfico metropolitano, acelerado

    pelos saldos negativos dos fluxos migratrios entre capitais e os outros

    municpios metropolitanos.

    Pode-se argumentar que a alocao espacial das atividades econmicas

    dentro do espao metropolitano gerou, tambm, um mercado de trabalho

    metropolitano. E, como conseqncia, uma mobilidade da fora de trabalho em

    direo a uma maior proximidade do emprego. Nas primeiras dcadas de

    formao dos aglomerados metropolitanos, esse fenmeno foi claramente

    observado. Mas, atualmente, a ele se sobrepe a mobilidade pendular, isto , a

    mobilidade espacial derivada da separao entre o lugar de residncia e o

    lugar de trabalho ou, mais amplamente, uma separao entre o lugar de

    residncia do trabalhador e os diferentes lugares indispensveis sua

    reproduo social e da sua famlia.

    Os migrantes que chegam, recentemente, aos aglomerados

    metropolitanos esto sujeitos, como sempre, s mesmas dificuldades impostas

    populao metropolitana pelos mercados de trabalho e imobilirio. A

    estratificao social seletiva, no s para os imigrantes, mas para toda a

    populao. Do ponto de vista social e econmico, os migrantes e os no

    migrantes se tornaram ainda mais indiferenciados. Entretanto, os rigores dos

    mercados de trabalho e imobilirio tornaram a seletividade da estrutura social

    urbana mais rigorosa do que no passado. E , justamente, essa estrutura social

    rigorosa, projetada no espao das metrpoles, associada s condies

    recentes da acumulao capitalista, que mantm dentro dos seus prprioslimites territoriais, excludos dos benefcios da sociedade e da economia, o

    excedente de mo de obra necessrio.

    15BRITO, FAUSTO. Expanso urbana nas grandes metrpoles: o significado das migraesintrametropolitanas e da mobilidade pendular na reproduo da pobreza. Revista Perspectiva,So Paulo: Fundao Seade, jan. 2006.

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    AS MUDANAS FUNDAMENTAIS NO PARADIGMA

    No se quer dizer que a tradio migratria brasileira desapareceu, at

    porqu a rigidez da estrutura social brasileira ainda impe, para muitos, a

    migrao, como uma das poucas alternativas para se melhorar de vida ou

    ascender socialmente. Entretanto, a ampliao das telecomunicaes, hoje

    mais abrangente do que antes, assim como as redes de interao social, tm

    tido um efeito fundamental divulgando que as grandes virtudes das grandes

    cidades desapareceram, diante da violncia urbana, do desemprego, das

    dificuldades de acesso aos servios pblicos bsicos e moradia. As

    externalidades positivas das grandes cidades, das regies metropolitanas em

    particular, que tanto atraam os migrantes, segundo as teorias econmicas,

    foram superadas pelas externalidades negativas, comprometendo a

    esperana do migrante de traduzir em realidade a sua iluso de melhorar de

    vida.

    No h dvida que a reduo excepcional da capacidade de gerao de

    emprego e de novas oportunidades ocupacionais, objetivamente, descolou a

    mobilidade espacial da mobilidade social, inaugurando um novo padro

    migratrio e superando as antigas teorias e o paradigma que servia de

    referncia para elas.

    O mercado de trabalho tornou-se rgido, com uma cadeia de pr-

    requisitos educacionais e de treinamento extremamente excludentes para a

    grande maioria da populao migrante. Hoje, basicamente impossvel, para o

    migrante pobre e sem um nvel educacional elevado, sair do interior nordestino,

    ir para So Paulo e l conseguir alguma forma de ascenso social, mesmo

    dentro dos estreitos limites da classe trabalhadora. Alm do mais, a sociedadeurbana, mais competitiva e cada vez menos solidria, assombrada com a

    barbrie que tem predominado nas relaes sociais, aumentou os seus

    mecanismos de discriminao e de excluso dos mais pobres.

    Conseqentemente, as barreiras ao livre trnsito dos migrantes tm sido

    freqentes e exacerbam os mecanismos de seletividade estrutural.

    A migrao, desnecessria do ponto de vista da economia e descolada

    das possibilidades de ascenso social, pode tornar-se negativa para oindivduo. A racionalidade econmica que, segundo o velho paradigma, era a

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    bssola necessria para o migrante encontrar o seu caminhos, no movo padro

    migratrio torna-se, mais ainda, obsoleta diante dos riscos envolvidos,

    atualmente, no processo migratrio.

    Em sntese, os fundamentos demogrficos, econmicos, sociais e

    culturais do padro migratrio que prevaleceu at a dcada de oitenta foram

    fundamentalmente comprometidos16. Portanto, os mecanismo de mobilizao e

    integrao social dos migrantes na sociedade urbana, moderna, como previam

    alguma teorias, perdeu muito do seu vigor. A migrao de retorno, que se

    generalizou nas grandes regies metropolitanas, , para muitos, um novo

    caminho na contramo da possibilidade de ascenso social para o migrante. A

    sociedade e a economia mobilizam grande parte dos migrantes na regio

    metropolitana, no absorvidos econmica e socialmente, para o caminho de

    volta, o retorno, ou para se deslocar para as periferias mais distantes dos

    municpios metropolitanos.

    A emigrao de retorno reflete, tambm, inclusive para aqueles que

    residiam h mais tempo nos aglomerados metropolitanos, que a integrao do

    imigrante na sociedade urbana moderna no quebrou os seus vnculos com o

    grupo primrio e, conseqentemente, com a regio de origem. Durhram

    percebeu com nitidez esse fundamento da migrao para as grandes

    cidades17.

    No surpreendente que, mesmo sob todos os riscos, muitos continuem

    migrando para So Paulo, ou qualquer outro grande centro urbano. a fora

    da inrcia das trajetrias migratrias, construdas durante mais de meio sculo,

    como o nico caminho para a sobrevivncia social. Elas podem se manter,

    mesmo que as condies objetivas se tornem desfavorveis. Mas sero, sem

    dvida, cada vez menos migrantes a percorr-las com a mesma motivao queprevalecia at os anos oitenta.

    A inrcia estrutural das trajetrias explica uma parte da migrao para os

    grandes aglomerados metropolitanos. No podem ser omitidas as pssimas

    16BRITO, FAUSTO. Brasil, final do sculo: a transio para um novo padro migratrio. In:CARLEIAL, ADELITA (org.), op.cit.

    17

    DURHAM, EUNICE, op.cit, 1984.

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    condies econmicas e sociais que persistem em muitas regies no Nordeste,

    em Minas Gerais e em muitas outras regies brasileiras. Migrantes potenciais

    ainda so gerados pelas grandes desigualdades e pelos agudos desequilbrios

    sociais que ainda prevalecem no Brasil. Mas, para esses, a migrao de alto

    risco para as regies metropolitanas uma alternativa, no mais para a

    mobilidade ou ascenso social, mas para a mera sobrevivncia. Torna-se uma

    migrao datada, j no mais uma mobilidade familiar com o objetivo de se

    mudar de residncia, contando com o tempo ao seu lado. Pelo contrrio, uma

    migrao, na sua grande maioria, de curto prazo, para melhorar de vida, no

    no lugar de destino, mas no lugar de origem.

    As grandes metrpoles passaram a ser, para os migrantes que chegam,

    ou para aqueles que dentro dela se movem, acima de tudo, uma arriscada

    busca da sobrevivncia, com uma grande possibilidade de insucesso. No

    sem motivo que a reemigrao, o retorno e a migrao de curto prazo se

    transformam em opes para os migrantes, mesmo para aqueles que, na sua

    regio de origem, pouco tm para a uma sobrevivncia digna.

    O migrante e o processo migratrio no podem mais ser compreendidos

    a partir do mesmo paradigma e das mesmas teorias que melhor se ajustavam

    explicao do padro migratrio que prevaleceu at a dcada de oitenta do

    sculo passado. Resta o desafio de responder s questes tericas postas

    pelo novo paradigma enunciado neste ensaio.

    AS DIMENSES POLTICAS DO NOVO PARADIGMA

    Contudo, antes de concluir, importante voltar a um tema fundamental.

    Na definio clssica de migrao, segundo a tradio marxista, a mobilidade dafora de trabalho uma condio necessria para a constituio do mercado de

    trabalho capitalista. O trabalhador tem a liberdade de vender a sua fora de

    trabalho, liberdade positiva, pois a fora de trabalho uma mercadoria sua e que

    pode ser vendida segundo o seu interesse. Por outro lado, o trabalhador no

    tem alternativa a no ser vender a sua fora de trabalho. a dimenso negativa

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    da liberdade que o mercado de trabalho capitalista lhe oferece18.

    A liberdade de vender a sua fora de trabalho implica, como condio

    necessria, a sua mobilidade entre os diferentes setores da economia e no

    espao, segundo as necessidades do capital. Nessa perspectiva, liberdade de

    vender a sua fora de trabalho, acrescenta-se a liberdade de se mover no

    espao ou de migrar. Em outras palavras, a migrao, ou a mobilidade espacial

    da fora de trabalho, considerada, por definio, inerente ao prprio mercado

    de trabalho capitalista. Trata-se de uma condio que se desenha desde os

    primeiros estgios do capitalismo, quando da subordinao formal do trabalho

    ao capital.

    Com o desenvolvimento do capitalismo, e com a intensificao do

    progresso tcnico, a tendncia do mercado de trabalho tem sido aumentar os

    requisitos entrada, exigindo-se, cada vez mais uma maior qualificao da mo-

    de-obra. A partir dos anos oitenta, com a ampliao da internacionalizao da

    economia e com a profunda reestruturao produtiva, o mercado de trabalho

    capitalista aumentou a rigidez das barreiras entrada. Logicamente, essas

    barreiras se traduzem na gerao de um excedente de fora de trabalho,

    empurrado para as atividades ocupacionais com menor produtividade ou mesmo

    para o desemprego.

    Esse excedente disponvel nos grandes aglomerados metropolitanos,

    como j mencionado, dispensa a histrica dependncia do seu mercado de

    trabalho das transferncias regionais ou inter-regionais de mo de obra, mesmo

    quando a economia segue uma trajetria de crescimento. A conseqncia

    inevitvel, portanto, que se estabeleam barreiras mobilidade espacial da

    populao, principalmente daquela com menor qualificao profissional. No se

    trata, somente, de um aumento da seletividade na origem e no destino, comopreviam as tradicionais teorias sobre as migraes, mas de uma independncia,

    cada vez maior, da acumulao capitalista de imigrantes provenientes de

    regies alm dos aglomerados metropolitanos, a no ser por um curto prazo.

    No caso dessas metrpoles, onde se localiza a maior parte do

    excedente de mo de obra do pas, as exigncias do mercado de trabalho que

    18

    GAUDEMAR, J EAN PAUL, Mobilidade do Trabalho e acumulao do capital, caps. 5,6 e 7,Editorial Estampa, 1977.

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    se intensifique a mobilidade intrametropolitana, inclusive a pendular. No se

    trata de que o mercado de trabalho capitalista dispense a liberdade de

    movimento da mo de obra, contudo o contedo dessa liberdade diferente.

    Ela est cada vez mais condicionada por restries, no s econmicas, mas

    sociais e polticas. Boa parte da populao, certamente, deixa de se constituir,

    realmente, no excedente necessrio, do ponto de vista da economia e da

    sociedade, e passa a ser suprflua, ou seja, social e economicamente

    dispensveis. O caminho desta parcela da populao torna-se, apenas, mero

    objeto das polticas de transferncia de renda do governo.

    Vale a pena, para contribuir na construo do argumento, recorrer ao

    exemplo da migrao internacional. O estgio avanado da transio

    demogrfica nos pases desenvolvidos exige, para suprir o mercado de trabalho,

    face s necessidades da economia, uma crescente migrao internacional.

    Entretanto, por razes que ultrapassam as econmicas, assiste-se a um notvel

    paradoxo: a crescente demanda de mo de obra est sendo acompanhada de

    fortes restries imigrao internacional. No aqui, neste ensaio, o lugar

    para se discutir esse tema, mas evidente que a liberdade de movimento da

    mo de obra no plano internacional est longe de gozar das mesmas franquias

    que o capital.

    As migraes internas no tm as restries das migraes

    internacionais resultantes das fronteiras das naes soberanas. Contudo,

    observam-se, cada vez mais, barreiras econmicas, sociais e polticas ao livre

    movimento dos migrantes internos. Pode-se dizer que a liberdade de movimento

    da mo-de-obra, se nunca foi plena para a totalidade da populao, atualmente

    est cada vez mais condicionada fortes restries.

    Na perspectiva de se elaborar um novo paradigma para se compreenderas migraes atualmente, emerge uma dimenso normativa, poltica,

    extremamente relevante, no s para a migrao internacional, mas para a

    interna: o direito liberdade de se mover no territrio. lgico que o direito

    mobilidade est associado ao direito no mobilidade, recusa a mobilidade

    forada, fruto da violncia do Estado ou do capital.

    Se a realidade atual tem transformado a mobilidade espacial, ou a

    migrao em uma atividade de risco para os considerados suprfluos pelaeconomia e pela sociedade, no se exigiria, ento, que a liberdade de

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    movimento seja um pr-requisito do individuo, como cidado, e no do

    mercado? O contedo da liberdade passaria a ser outro, sairia do plano

    econmico e passaria para o plano poltico. Torna-se fundamental, ento,

    garantir o direito das pessoas mobilidade, alm dos estreitos caminhos que o

    mercado lhes impem. Essa dimenso poltica, a isonomia no direito

    mobilidade espacial, deve ser incorporada como fundamento do novo paradigma

    de referncia para as novas teorias sobre as migraes internas recentes no

    Brasil. No antigo paradigma, as migraes aparecem fundamentalmente no

    espao econmico. As normas do mercado se sobrepem poltica e a

    racionalidade econmica aos direitos do cidado. Essa marcante

    despolitizao um dos traos a ser superado pelo novo paradigma.

    Uma outra dimenso poltica deve ser incorporada compreenso das

    migraes, no caso do Brasil. Uma mudana substantiva observada no padro

    migratrio ps-1980 foi o descolamento da mobilidade espacial da mobilidade

    social. Uma questo fundamental, pois era uma das poucas possibilidades de

    mobilidade social aberta pela sociedade brasileira e, mesmo assim, com uma

    probabilidade condicionada de xito. Se o direito mobilidade espacial deve ser

    resguardado, o mesmo deve ser considerado para o direito mobilidade social.

    Ou, em outras palavras, a liberdade de movimento deve estar articulada, na

    perspectiva da justia, ao direito de melhoria nas condies de vida. Nas

    condies atuais da sociedade e da economia, sabe-se bem, que uma

    possibilidade remota reviver essa articulao.

    Mas, a reside um problema importante. No basta entender somente

    como o padro migratrio se transformou e quais as mudanas significativas que

    devem ser incorporadas a um novo paradigma para entend-lo. Precisa-se ir

    alm, no s entendendo que a mobilidade espacial um direito do individuo,mas, tambm, avanar em direo ao futuro e pensar sob que condies

    econmicas e sociais a mobilidade espacial pode voltar a se articular com a

    mobilidade social. O presente no uma fatalidade inexorvel e nem o futuro

    a sua plida projeo.

    A atividade analtica no se esgota na compreenso da realidade como

    ela , mas vai alm, dando conta de como a realidade deveria ser na

    perspectiva da justia e da reduo das desigualdades sociais. H muito j sesuperou o desencontro entre o campo terico e o normativo. A discusso

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    colocada neste ensaio sobre os paradigmas e sua importncia na construo

    das teorias migratrias procurou superar essa dicotomia. Dessa maneira, a

    anlise sobre o presente das migraes internas no se separa da reflexo

    sobre o seu futuro. No se trata, fundamentalmente, de pensar polticas

    migratrias, mas de se entender, na perspectiva do novo paradigma, a dimenso

    poltica das migraes internas no plano do direito e da justia social. .

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    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS:

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