Fé negra em espaço branco: esculturas religiosas do ... · A Bíblia, o Livro Sagrado de...

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1 Fé negra em espaço branco: esculturas religiosas do Rosário no território fluminense colonial. NANCY REGINA MATHIAS RABELO* Este trabalho trata das imagens religiosas de Nossa Senhora do Rosário, a devoção das irmandades de negros no período colonial, incidindo predominantemente em parte do território fluminense correspondente às localidades visitadas pelo cônego Pizarro em 1794/5, cuja documentação original encontra-se no Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro. Através das esculturas religiosas, abordaremos a presença das irmandades, que se tornam alvo de interesses financeiros do domínio oficial. A importância das imagens para a Igreja e devoção dos fiéis é aplicada na associação das invocações ao território. No entanto, apesar da enorme popularidade de Nossa Senhora do Rosário 1 , a devoção negra não teve nenhuma localidade contemplada com sua proteção sendo, portanto, relegada à sombra, numa reafirmação do que ocorria com os próprios membros das irmandades do Rosário, alvo de interesses puramente especulativos financeiros. Escultura religiosa – sentido, problemas e conveniências da representação do santo. Por “imagem”, designamos toda representação visível de algo real ou imaginário. Não é necessário ver, para imaginar, e dentro da imaginação, algo que não conhecemos efetivamente pode ter uma forma, uma imagem. Esta concepção ótica aplica-se a um sentido amplo. Numa abordagem restritiva, encontramos o significado da palavra imagem adequado a uma conotação religiosa, associada à representação dos santos. Jean Claude Schmitt (SCHMITT, 2007: 13-15) reflete sobre o tema referindo-se ao contexto medieval, e alerta para o cuidado *CEFET-RJ. Doutora em História e Crítica da Arte. 1 Nossa Senhora do Rosário é a segunda invocação mais popular no contexto estudado, perdendo apenas para Nossa Senhora da Conceição, padroeira do mundo português.

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Fé negra em espaço branco: esculturas religiosas do Rosário no território fluminense

colonial.

NANCY REGINA MATHIAS RABELO*

Este trabalho trata das imagens religiosas de Nossa Senhora do Rosário, a devoção das

irmandades de negros no período colonial, incidindo predominantemente em parte do

território fluminense correspondente às localidades visitadas pelo cônego Pizarro em 1794/5,

cuja documentação original encontra-se no Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de

Janeiro. Através das esculturas religiosas, abordaremos a presença das irmandades, que se

tornam alvo de interesses financeiros do domínio oficial. A importância das imagens para a

Igreja e devoção dos fiéis é aplicada na associação das invocações ao território. No entanto,

apesar da enorme popularidade de Nossa Senhora do Rosário1, a devoção negra não teve

nenhuma localidade contemplada com sua proteção sendo, portanto, relegada à sombra, numa

reafirmação do que ocorria com os próprios membros das irmandades do Rosário, alvo de

interesses puramente especulativos financeiros.

Escultura religiosa – sentido, problemas e conveniências da representação do

santo.

Por “imagem”, designamos toda representação visível de algo real ou imaginário. Não é

necessário ver, para imaginar, e dentro da imaginação, algo que não conhecemos efetivamente

pode ter uma forma, uma imagem. Esta concepção ótica aplica-se a um sentido amplo. Numa

abordagem restritiva, encontramos o significado da palavra imagem adequado a uma

conotação religiosa, associada à representação dos santos. Jean Claude Schmitt (SCHMITT,

2007: 13-15) reflete sobre o tema referindo-se ao contexto medieval, e alerta para o cuidado

*CEFET-RJ. Doutora em História e Crítica da Arte. 1 Nossa Senhora do Rosário é a segunda invocação mais popular no contexto estudado, perdendo apenas para

Nossa Senhora da Conceição, padroeira do mundo português.

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com a interpretação do termo, pois o sentido muda de acordo com o tempo enfocado. Cada

cultura e tempo têm sua forma de se relacionar e sentir a imagem. O termo latino imago, de

onde provém a palavra “imagem”, fundamenta a antropologia cristã, associada à

dessemelhança originada pela Queda.

A Bíblia, o Livro Sagrado de referência do cristianismo, é dividida no Velho e no Novo

Testamento, cujo marco se estabelece a partir do nascimento de Jesus. O problema que se

impôs – crucial para a arte escultórica -, é que em mais de uma passagem, o texto da Bíblia do

Velho Testamento condena o uso de estátuas e imagens. Vários foram os momentos em que

estas menções foram interpretadas ao pé da letra e foi questionada a validade das esculturas

religiosas, alegando-se incorrer em idolatria.

Marco de um momento histórico, a Reforma impôs uma série de questionamentos à

doutrina da Igreja católica, e dentre as mais marcantes, destaca-se a questão das imagens

religiosas. A consequente reação da Igreja foi preponderante para a arte religiosa

estabelecendo firmes determinações que passaram a prevalecer. O Concílio de Trento foi

realizado em bases contrarreformistas, visando uma estratégia para neutralizar ou arrefecer os

questionamentos deflagrados por Martinho Lutero.

Na última sessão do Concílio de Trento, realizada em 3 de dezembro de 1563, a Igreja

confirmou o que já fora estabelecido anteriormente em Nicéia: legitimou e reforçou o uso de

imagens religiosas no “Decreto sobre a invocação, a veneração e as relíquias dos santos e

sobre as imagens sagradas”(DENZINGER, HÜNERMANN, 1999: 555). Para a efetiva

prática do que estabelecera, o decreto previu a necessária adoção das imagens religiosas,

sobretudo nos templos, assinalando que tais esculturas se remetiam aos originais que

representavam e, embora não houvesse nelas divindade ou virtude, eram passíveis de

tributação de honra.

A postura era coerente com a trajetória da igreja, que há muito vinha calcando sua divulgação no apelo visual das imagens e no seu potencial didático. São Boaventura (in MENOZZI, 1991: 38), por volta de 1260, declarara :

“As imagens não foram introduzidas na Igreja sem causa razoável. Elas derivam de três causas: a incultura dos simples, a frouxidão dos afetos e a impermanência da memória. Elas foram inventadas em razão da incultura dos simples, que não podendo ler os textos escritos, utilizam as esculturas e pinturas como se fossem

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livros para se instruir nos mistérios de nossa fé. Da mesma forma, elas foram introduzidas em função da frouxidão dos afetos para que aqueles cuja devoção não é estimulada pelos gestos do Cristo recebidos por intermédio dos ouvidos sejam provocados pela contemplação dos mistérios do corpo em sua presença nas esculturas e pinturas, já que na realidade o que se vê estimula mais os afetos do que o que se ouve... Finalmente, por causa da impermanência da memória, já que o que se ouve é mais facilmente esquecido do que o que se vê... Assim, por um dom divino, as imagens foram executadas nas igrejas para que vendo-as nos lembremos das graças que recebemos e das obras virtuosas dos santos”.

O Concílio de Trento confirmou a capacidade das imagens de reavivar a memória,

fazendo com que o fiel repassasse mentalmente os milagres operados por Cristo através dos

santos, e reordenasse sua vida imitando os seus exemplos, incitando-o ao amor divino e à

piedade.

Consciente da força das imagens, a Igreja estabeleceu um firme controle sobre a

produção artística das imagens religiosas, abolindo inovações que não fossem os modelos

tradicionais, previamente aprovados pela Igreja. Deveriam ser eliminadas as superstições, a

ganância, lascívia; não deveriam ser representadas de forma sedutora, e sua veneração feita

com discrição, gravidade e decência. Nada deveria parecer desordenado ou pouco apto, ou

confusamente arranjado; nada profano, nada desonesto, já que a santidade pertence à Santa

Casa de Deus. Tudo deveria conformar-se às antigas escrituras, às tradições, ou à história

eclesiástica. A postura tridentina incentivava ainda a divulgação da vida dos santos e seus

milagres a todas as pessoas simples, numa ação propagandística da vertente católica, sob a sua

rigorosa e permanente vigilância.

No Brasil, o Sínodo diocesano convocado por Dom Sebastião Monteiro da Vide

aconteceu em 1707, quase um século e meio após o Concílio de Trento. Da mesma forma

endossou as prescrições tridentinas, ficando em voga sem questionamentos até o século XIX,

quando a sociedade laicizou-se, e novos valores para além dos religiosos se estabeleceram. A

primeira edição das Constituições Prymeiras do Arcebispado da Bahia foi publicada em

Coimbra, em 1720. Consistiu um esforço de adaptar a legislação religiosa à realidade do

Brasil, pois até então as referências seguidas eram as das Constituições de Lisboa.

Os títulos XX e XXI das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahía tratam das

Santas Imagens, começando por reforçar o estabelecido em Trento: que em todas as igrejas do

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bispado houvesse nos altares a imagem do Crucifixo, da Virgem, e de santos canonizados

oficialmente pela Igreja. A mesma argumentação de defesa das imagens é utilizada: o seu uso

é legítimo para avivar a memória, servir de exemplo, despertar e aprimorar a fé.

Aos bispos e autoridades eclesiásticas recomendava a atenção para que nas imagens

pictóricas ou escultóricas não ocorressem abusos, coisas profanas ou desonestas. Ao Visitador

competia a firme observância de todas as recomendações, devendo aplicar as penalidades que

lhe parecessem justas quando constatasse que não eram devidamente cumpridas as prescrições

da Igreja.

Os santos e os primeiros povoados: denominações religiosas

O surgimento de um povoado, a ocupação de um espaço, é sempre resultado da vontade

humana, onde se estabelecem relações entre dominantes e dominados. Os santos e suas

esculturas estão intrinsecamente ligados à gênese dos povoamentos brasileiros e à atuação dos

homens naquele território. A presença das imagens religiosas com seu conteúdo simbólico

serviram ao propósito tridentino e do colonizador português de ocupação do território para

sedimentação das gentes2.

Os primeiros povoados que surgiram no território brasileiro originaram-se das mais

diferentes motivações. Todas as localidades recebiam denominações associadas a personagens

sacros, como era usual no período de colonização portuguesa. Cidades, vilas e freguesias

eram batizadas sob o nome e proteção de um santo, que por sua vez denominava a matriz

local e tinha sua representação escultórica colocada no altar mor, junto com o Santíssimo e a

Virgem Maria. Entenda-se por implantação da igreja a prática religiosa e a aplicação dos

sacramentos, a veneração e festejo do santo e a celebração dos ritos. Sob a égide de seus

santos fundadores, legitimadores de ética religiosa e concepção mística superior, as

propriedades rurais sedimentaram-se na colônia, através de sesmarias doadas pelo rei, ou

datas de terra concedidas pela Câmara, estabelecendo oratórios ou capelas domésticas para a

prática religiosa particular do proprietário e sua família, e em propriedades muito distantes

das matrizes, também para a escravaria, servindo como elemento agregador comunitário e

2 Desta concepção dos santos como articuladores da apropriação do espaço partilha também a historiadora Marta Penhos em relação ao território sob domínio espanhol. (PENHOS, 2004).

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fixador no sítio da fazenda. A devoção crescente em torno do santo de orago aprofundava a

relação do indivíduo com o lugar, facilitava o controle dos senhores, submetendo cultural e

espiritualmente.

Antonil3 alertava aos senhores de engenho que com especial prudência deveriam eleger

o capelão dentre todas as pessoas e oficiais que fosse empregar no engenho: “O primeiro que

se há de escolher com circunspecção e informação secreta de seu procedimento e saber, é o

capelão”. Para além de todas as atividades religiosas, seria ele também o responsável pela paz

e atalhamento de discórdias, sendo, portanto, a autoridade que amenizaria os atritos, impondo

o clima de serenidade necessário à produção. Na infraestrutura necessária a um engenho real,

Antonil incluía a capela decente com seus ornamentos e todo o aparelho do altar. Nestas

recomendações de caráter administrativo e religioso, vislumbra-se a importância da religião

como sistema de controle, e subentende-se a imagem como instrumento básico do processo.

As esculturas religiosas de Nossa Senhora do Rosário nas Visitas Pastorais do

Cônego Pizarro

A imagem de Nossa Senhora do Rosário tem como representação formal e iconográfica

a Virgem em pé, tendo o menino no braço esquerdo e na mão direita o rosário, atributo que

define a sua invocação. A cabeça apresenta-se coberta pelo véu, e seu manto transpassa a

roupa na parte frontal do abdômen, projetando-se da direita para a esquerda. Sob os pés

configura-se o trono angélico, composto por nuvens e cabeças de anjos. Como representação

estabelecida pela Igreja, as imagens de Nossa Senhora do Rosário não sofriam grandes

variações, pois a sistematização do modelo facilitava o reconhecimento da invocação por

parte do fiel. As diferenças incidem pelas mudanças de gosto de ordem estilística, no que a

escultura pode apresentar-se mais rígida e frontalizada no século XVII, e mais movimentada

3 Ao capelão, competia ensinar aos escravos a doutrina cristã, explicando em quem deveriam crer, como obrar

e pedir Deus o que necessitassem, além do oferecimento de todo o trabalho do dia a Deus, e o prêmio que

caberia a cada um, após a morte, pelo que obrara em vida. Afirmava Antonil que, se fosse preciso ao senhor

pagar ao capelão mais do que se costuma, este seria o melhor dinheiro dado em boa mão. A inauguração do

engenho deveria ocorrer com cerimônia religiosa, assim como o fim da safra. ANTONIL, André João. Cultura e

opulência do Brasil. 3. ed. Belo Horizonte: Itatiaia/Edusp, 1982. (Coleção Reconquista do Brasil). p. 27.

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no século XVIII. Incorporam-se ainda nestas mudanças o olhar direcionado para o fiel, o

panejamento mais movimentado, e aspectos decorativos como o pastilho e olhos de vidro.

A Nossa Senhora do Rosário foi estabelecida como a protetora dos negros, que em

fervor instituíam sua irmandade e cumpriam os deveres estabelecidos em compromissos

aprovados por Lisboa, devendo entre outras obrigações, festejar seu orago, o que muito

enriqueceu a cultura popular brasileira. Constituía-se isolada, ou tendo anexa a de São

Benedito.

Nas Visitas Pastorais de 1794/95, Pizarro relatou vários aspectos relativos às

irmandades e lugares visitados. O cônego visitador relacionou o rol da fábrica4, onde

constavam todos os bens patrimoniais pertencentes à matriz. Quando as irmandades ainda se

constituíam dentro das matrizes e tinham patrimônio individual, as esculturas e todos os

demais bens das irmandades não faziam parte do rol, pois eram bens pertencentes às

associações laicas. Para além deste registro do patrimônio interno, Pizarro assinalou a

existência de irmandades, capelas e estado de conservação das igrejas e dos retábulos. Vale

assinalar que a área visitada era periférica, e como tal, na maior parte extremamente pobre,

onde existiam predominantemente propriedades rurais, engenhos e aldeias indígenas.

Em pesquisa realizada para inventário do patrimônio móvel religioso do Rio de Janeiro,

foram percorridas as localidades visitadas por Pizarro. Abaixo relacionamos sucintamente a

situação das freguesias em relação às irmandades e as esculturas de N. S. do Rosário

encontradas.

1 - Freguesia de São Thiago de Inhaúma. Existia uma irmandade do Rosário

estabelecida dentro da igreja matriz. A imagem5 é um exemplar do início do século XVIII,

que hoje apresenta perdas e intervenções na pintura. O aspecto curioso desta escultura fica por

conta das cabeças angélicas, desproporcionalmente grandes em relação à dimensão da

Virgem, mas que corroboram para conferir uma perspectiva verticalizada à escultura.

4 Fabrica – conjunto de bens patrimoniais das igrejas ou os seus rendimentos destinados à conservação e despesas com a manutenção do culto. MAIA, Antonio. Pequeno Dicionário Católico. Rio de Janeiro: Imprimatur, p. 86. 5 Esta imagem encontra-se hoje recolhida no Museu de Arte Sacra da Arquidiocese do Rio de Janeiro.

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Nossa Senhora do Rosário

Madeira dourada e policromada séc. XVIII ; H - 90 cm

Origem - Igreja matriz de São Thiago de Inhaúma Museu de Arte Sacra da Arquidiocese do Rio de Janeiro.

Foto: Nancy Rabelo

2 – Freguesia de Nossa Senhora do Loreto – Jacarepaguá – a irmandade do Rosário

estabelecia-se dentro da matriz, com compromisso ainda não aprovado6 por Lisboa. Pizarro

constata que a irmandade, apesar dos parcos recursos, satisfazia suas obrigações em respeito

ao culto de seu orago. Hoje a imagem do Rosário não existe mais.

3 – Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação – Irajá. Existia nesta matriz as

irmandades do Rosário e também a de São Benedito, que sobreviviam com extrema

dificuldade (segundo Pizarro, quase extintas), sem cumprir seus deveres em relação ao orago.

A imagem mariana não foi encontrada no atual acervo, tendo sido citada no rol do cônego.

4 - Freguesia de São João Batista de Meriti – Necessitando de reforma em seu retábulo

– segundo Pizarro, reduzido à aniquilação -, a irmandade do Rosário constituía-se dentro da

matriz7. As imagens desta matriz, deterioradas, não foram mencionadas no rol.

6 Era comum a irmandade existir e praticar os deveres e prescrições estabelecidos em Compromisso, embora ainda não estivessem aprovadas por Lisboa, pois as licenças às vezes levavam muitos anos para serem confirmadas e chegarem ao Brasil. 7 “Todas elas (as irmandades) se axão reduzidas á aniquilação: p. q. os Altares de seos Oragos não tinhão cruzes, castiçaes, toalhas etc., e se conservavão desardonados: e té das mesmas Imagens vi umas necessitadas de renovação nas suas pinturas; outras, danificadas no seo todo.” (ARAUJO, 2008: v. I, 77).

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5 – Freguesia de Nossa Senhora do Desterro – Campo Grande8. A irmandade de Nossa

Senhora do Rosário existira em outros tempos, mas em 1794 já se encontrava extinta pelo

total desinteresse por parte dos fregueses pelos assuntos relativos à religião.

6 – Freguesia de S. Salvador do Mundo – Guaratiba. Nesta freguesia, a irmandade

zelava dignamente pela sua imagem e mantinha o altar de seu orago com asseio. A imagem

hoje não mais existe nesta igreja.

7 – Freguesia de Nossa Senhora da Guia – Mangaratiba. Tratava-se na época de uma

aldeia de índios, que estivera sob a proteção dos padres jesuítas antes da expulsão dos

mesmos; não contava com irmandades.

8 – Freguesia de Nossa Senhora dos Remédios – Vila de Parati. Dentro da vila já existia

a capela de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Pretos, contando com patrimônio

de casas pertencentes a seus oragos. A imagem original encontra-se no altar mor até os dias de

hoje, e possui características estilísticas do final do século XVII. É frontalizada e tem o trono

com cabeças angélicas horizontalizadas, mas já apresenta volumetria avantajada e com

alguma movimentação.

Nossa Senhora do Rosário

8 Nesta matriz, subsistiam apenas as irmandades do Santíssimo Sacramento e de Nossa Senhora da Conceição, mas de tal forma encontravam-se abandonadas e sem exercerem as obrigações que rezavam seus compromissos, que Pizarro proibiu que os irmãos fossem enterrados nas sepulturas a que teriam direito os membros das respectivas irmandades. O estado de abandono e parco fervor religioso já era um problema antigo. O visitador que antecedeu Pizarro registrara: “Eu continuo a ver com lastima de meo coração o que já o R. D. Visitador meo antecessor notou das Irmdes. Nossa Senhora da Conceição e do Rozario desta matriz: eu vi as Sagradas Imagens sem culto, os altares desornados, tudo inculcando uma deixação, e extinção destas irmandades: eu assim a considero.” (ARAÚJO, 2008: 91 v.I).

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Capela de N. S. Rosario e S. Benedito dos Pretos – Paraty Madeira dourada e policromada.

Séc. XVII – H – 77 cm Foto: Acervo Inepac.

9 – Freguesia de Nossa Senhora da Conceição – Vila de Angra dos Reis da Ilha Grande.

A Irmandade do Rosário existia nesta matriz. A imagemé de origem portuguesa, e remonta ao

século XVII. Fora da vila, no local denominado Mambucaba, foi instituída em 1644 a capela

de Nossa Senhora do Rosário. A imagem escultórica existente é de barro, da mesma época:

século XVII, que muito se aproxima dos modelos executados por Frei Agostinho de Jesus9.

Nossa Senhora do Rosário

Madeira dourada e policromada Século XVII – H – 108 cm

Matriz de N. S. da Conceição – Angra dos Reis Foto: Acervo Inepac

Nossa Senhora do Rosário Século XVII – H – 106 cm.

Capela de N. S. do Rosário de Mambucaba Museu de Arte Sacra de Angra dos Reis

Foto: Acervo Inepac.

10 – Freguesia de São João Marcos – A freguesia desapareceu em 1941, quando no

governo Vargas foi construído o Ribeirão das Lages, alegando-se estar ameaçada de

inundação. Embora não contasse com Irmandade, a igreja possuía em um de seus altares a

imagem do Rosário, pois consta na relação de Pizarro. Não foi localizada.

11 – Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Campo Alegre do Rio Paraíba – atual

Resende. Contava com uma imagem do Rosário, hoje não localizada

12 – Freguesia de São Francisco Xavier – Aldeia de Itaguaí. Fundada pelos jesuítas para

os índios locais, não tinha irmandades nem nenhuma outra imagem além do orago da matriz.

9 Ver SILVA NIGRA, 1971: p 61- 68.

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13 – Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Mariapicú – contava com Irmandade

e imagem de Nossa Senhora do Rosário, alocada em altar lateral, imagem hoje desparecida.

14 – Freguesia de Santo Antonio de Jacutinga – atualmente, parte do território de Duque

de Caxias e Nova Iguaçú. Possuía irmandade e imagem do Rosário. Esta imagem não foi

localizada, nos dias atuais. No território desta freguesia, havia a fazenda dos beneditinos. Ali

foi ereta uma capela devotada a Nossa Senhora do Rosário, para dar assistência espiritual à

escravaria. Contava com pia batismal e nela se enterravam os cadáveres.

15 – Freguesia de Nossa Senhora do Pilar – Atualmente, Duque de Caxias. Contava

com a Irmandade do Rosário, e portanto, com a sua imagem no altar que lhe era devotado. A

imagem está desaparecida, mas dela existe registro nos arquivos do IPHAN.

16 – Freguesia de Nossa Senhora da Piedade de Iguaçú – Nova Iguaçú. Instituída a

irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos. A imagem é do século XVIII, erudita,

bastante movimentada, de procedência portuguesa.

Nossa Senhora do Rosário

Madeira policromada e dourada Século XVIII – H- 73 cm. Diocese de Nova Iguaçu

Foto: Irmã Cristina 17 – Freguesia de Nossa Senhora da Conceição – orago do Alferes – Atualmente, Paty do

Alferes. À época das Visitas Pastorais do Cônego Pizarro esta matriz não tinha nenhuma

irmandade instituída, e a única imagem da igreja era a da Conceição, padroeira.

18 – Freguesia de Santa Família – Tinguá. Nesta matriz, a imagem do Rosário existia

colocada em retábulo, ainda que sem irmandade. Não foi localizada na pesquisa.

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19 – Freguesia de Nossa Senhora da Conceição, S.Pedro e S. Paulo – atualmente, Paraíba do

Sul –Localizada em sítio remoto no Caminho das Minas, não tinha irmandade ou imagem.

20 – Freguesia de Nossa Senhora da Piedade de Inhomirim – Atualmente, Inhomirim. Nesta

matriz a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos mantinha seu altar e imagem

com zelo, conforme reconheceu Pizarro. No território desta freguesia foi citada uma Capela

devotada a Nossa Senhora do Rosario em propriedade particular, mas que por não se

conservar decentemente pelo proprietário, Pizarro mandou destruir, ordenando que se

levassem as imagens para a matriz. As imagens originais não foram encontradas, mas

assinalamos outro exemplar, proveniente da Capela de Santana , de Sêbolas.

Nossa Senhora do Rosário

Madeira dourada e policromada Séc. XVII/XVIII – H 72,5 cm.

Procedente da Capela de Santana Foto: Acervo Inepac

21 – Freguesia de Nossa Senhora d’Ajuda – Ilha do Governador. No ano de sua Visita,

Pizarro reativou esta irmandade, que estivera extinta por vinte e sete anos, donde se deduz que

sua imagem voltou à Igreja. Foi localizada uma belíssima imagem do Rosário procedente da

Capela de Nossa Senhora de Nazareth, da Fazenda do Mosteiro de São Bento.

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Nossa Senhora do Rosário

Madeira policromada e dourada Século XVIII – H – 79 cm.

Procedente da Capela de Nossa Senhora de Nazareth Museu de Arte Sacra do Rio de Janeiro

Foto: Nancy Rabelo 22 – Freguesia de Nossa Senhora da Guia – Pacobaíba. Contava esta matriz com a Irmandade

de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, o que configura como certa a existência desta

imagem na igreja, mas infelizmente não chegou aos dias atuais em seu local de origem.

23 - Freguesia de São Nicolau do Suruhy – atual Suruí, em Magé. A Irmandade constituía

sua imagem no altar lateral, do lado do evangelho; a mesma já não se encontra no local.

24 – Freguesia de Nossa Senhora da Piedade de Magé – Magé. Contava com a Irmandade do

Rosário, e portanto com sua imagem, porém hoje já não mais se encontra em seu local

primitivo, tendo desaparecido. É mencionada a presença da imagem da Senhora do Rosário

em capelas particulares, como a do Senhor Bom Jesus do Monte.

25 – Freguesia de Nossa Senhora da Ajuda – hoje Guapimirim. Nesta matriz fora ereta as

duas irmandades de negros: do Rosário, e de São Benedito. Não foi possível localiza-las.

26 – Freguesia de Santo Antonio de Sá – atualmente, Cachoeiras de Macacu. Irmandade de

Nossa Senhora do Rosário e São Benedito. A imagem não se encontra na igreja atualmente.

27 – Freguesia da Santíssima Trindade – Atual Japuíba. Possuía irmandade de Nossa Senhora

do Rosário e São Benedito. A imagem existe na igreja até os dias de hoje, e embora repintada,

é um exemplar de ótima qualidade.

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Nossa Senhora do Rosário

Madeira dourada e policromada Século XVII

Igreja da Santíssima Trindade - Japuíba Foto: Nancy Rabelo

28 – Freguesia de Nossa Senhora do Desterro – Itambi, Itaboraí. A Irmandade do Rosário se

contituía quase integralmente dos escravos da fazenda do Engenho de São Paio, do capitão

João de Soiza Lobo. A imagem não foi encontrada.

29 – Freguesia da Nossa Senhora da Conceição – Rio Bonito. Até o momento da visita de

Pizarro, não existia nenhuma irmandade nesta matriz, sendo então ereta novamente a do

Rosário (que já houvera, e fora extinta), e colocado na igreja o seu orago – a imagem,

portanto -, mas que não foi encontrada em seu local primitivo nesta pesquisa.

30 – Freguesia de São Barnabé – atualmente, parte de Itaboraí. Originada na aldeia jesuítica,

após a expulsão dos padres a igreja passou à administração da diocese. Sem irmandade

alguma.

31 – Freguesia de São João Batista – Itaboraí. Contava com irmandade de Nossa Senhora do

Rosário, mas a imagem não foi localizada na igreja nos dias atuais.

32 – Freguesia de São Gonçalo – São Gonçalo. Nesta igreja, existia duas irmandades do

Rosário: a dos brancos (encontrada em total desleixo, segundo Pizarro), e a dos negros –

zelosa e cuidadosa dos ornatos do seu altar, dizendo missa, recitando a Ladainha com os

irmãos devidamente paramentados frente à imagem. Não foi encontrada a escultura religiosa

desta devoção em nesta pesquisa.

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33 – Freguesia de São Lourenço – Niterói. Fundada pelos padres jesuítas, atendia à aldeia de

índios, passando após a expulsão dos padres à administração da diocese. Não contava com

nenhuma irmandade.

34 – Freguesia de São João Batista – Niterói. Contava com Irmandade do Rosário, que exercia

seus compromissos satisfatoriamente. A imagem não foi localizada.

Conclusão

Os negros – mão de obra fundamental na estrutura agrária e econômica da época,

reunidos sob a égide da proteção do Rosário, tinham nas suas irmandades um reduto de

congraçamento e apoio mútuo permanente, legitimado pelos padrões oficiais de então. Na

estrutura social estratificada e preconceituosa da época, estas irmandades eram às vezes

apoiadas pelos senhores dos cativos, os quais na maior parte contavam com capelas ou

oratórios particulares em suas propriedades ou reuniam-se em outras irmandades na matriz,

não se misturando com os negros.

Apesar de constar em quase todas as freguesias irmandades devotadas à Nossa Senhora

do Rosário, a protetora dos cativos não teve nenhuma igreja matriz e território correspondente

sob sua proteção nas localidades visitadas pelo cônego Pizarro no Rio de Janeiro, em 1794.

Os negros, e tudo que a eles se relacionava no território de domínio branco, perpassava mais

pelo alvo de especulação financeira do que pelo que lhes dizia respeito diretamente.

Em seu relatório, Pizarro afirma que um dos maiores problemas enfrentados pelas

Irmandades de modo geral e particularmente pela do Rosário, foi a interferência do Juízo

secular nos assuntos financeiros que antes eram de administração da Igreja; neste âmbito, os

altos custos impostos pelos juízes passaram a asfixiar as finanças das irmandades,

extorquindo grandes somas. Para que os irmãos dessem conta de satisfazer tais cobranças, os

juízes retiraram a obrigatoriedade estabelecida em Compromisso de festejar seus oragos,

considerando que isso gerava despesas julgadas desnecessárias. Pizarro atribui a esta

interferência o enfraquecimento da religiosidade dos povos e o péssimo estado de manutenção

em que encontrou as imagens e alfaias. Para o cônego, o foco de interesse por parte dos

Ministros deslocava-se por completo do aspecto religioso: “Aos Ministros seculares só

importa a revista de contas, e o q’ mais lhe podem trazer algum interesse pecuniario, para

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fazerem engrossar suas bolças, e que as Irm.des satisfação ao fim da suas instituições, bem

lhes peza a consciência.”(ARAÚJO, 2008: 187, V.II)

Em regiões de total abandono e indiferença religiosa, Pizarro (ARAÚJO, 2008: 77; 91,

V.I), julgou que as irmandades do Rosário eram prejudiciais à Igreja e davam prejuízo às

fábricas: os irmãos passavam a vida sem cumprir o que fora estabelecido em seus

compromissos – que incluía festejar e cuidar das imagens de seu orago, mas queriam ter

direito a enterramento após a morte. Nesta afirmação se depreende que também a Igreja

preocupava-se mais com as finanças do que em corrigir as causas do distanciamento religioso

dos irmãos e satisfazer-lhes apoio espiritual.

Nas áreas de povoamento mais antigo ou onde se estabeleciam ordens religiosas, é

comum encontrar imagens de várias devoções de descendência portuguesa ou de fatura

erudita elaborada. No entanto, as imagens das irmandades do Rosário, configuram uma fatura

menos erudita, mas não menos expressiva, como no caso do exemplar de Mambucaba.

Constata-se nesta pesquisa que muitas imagens se perderam. Podemos supor que, para

além dos problemas de preservação (cupins, umidade) e falta de consciência patrimonial

(roubos e especulação de mercado), o enfraquecimento das irmandades contribuiu para o

desapego às imagens - referencia simbólica religiosa fundamental. Sobreviveu no folclore o

vigor e o espírito alegre da festa do Rosário, afeita à cultura negra, identificado com o ritual

musical e multicolorido de suas raízes étnicas.

As imagens desta devoção dos pretos, outrora presentes em quase todo o território, hoje

se encontram desparecidas. É provável que estejam irremediavelmente desvinculadas de suas

origens, habitando espaços (brancos?) de coleções particulares.

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