Feb 28 - Joao Do Rio - O Bebe de Tarlatana Rosa

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Joao do Rio - O Bebe de Tarlatana Rosa

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  • O BEB DE TARLATANA ROSA

    Joo do Rio (Dentro da noite, 1912) - Oh! uma histria de mscaras! quem no a tem na vida? O Carnaval s interessante porque nos d essa sensao de angustioso imprevisto... Francamente. Toda a gente tem uma histria de Carnaval, deliciosa ou macabra, lgida ou cheia de luxrias atrozes. Um Carnaval sem aventuras no Carnaval. Eu mesmo este ano tive uma aventura... E Heitor de Alencar esticava-se preguiosamente no div, gozando a nossa curiosidade. Havia no gabinete o baro Belfort, Anatlio de Azambuja de que as mulheres tinham tanta implicncia, Maria de Flor, a extravagante bomia, e todos ardiam por saber a aventura de Heitor. O silncio tombou expectante. Heitor, fumando um gianaclis autntico, parecia absorto. - uma aventura alegre? - indagou Maria. - Conforme os temperamentos. - Suja? - Pavorosa ao menos. - De dia? - No. Pela madrugada. - Mas, homem de Deus, conta! suplicava Anatlio. Olha que est adoecendo a Maria. Heitor puxou um longo trago cigarreta. - No h quem no saia no Carnaval disposto no excesso, disposto aos transportes da carne e s maiores extravagncias. O desejo, quase doentio como incutido, infiltrado pelo ambiente. Tudo respira luxria, tudo tem da nsia e do espasmo, e nesses quatro dias paranicos, de pulos, de guinchos, de confiana ilimitadas, tudo possvel. No h quem se contente com uma... - Nem com um, atalhou Anatlio. - Os sorrisos so ofertas, os olhos suplicam, as gargalhadas passam como arrepios de urtiga pelo ar. possvel que muita gente consiga ser indiferente. Eu sinto tudo isso. E saindo, noite, para a pornia da cidade, saio como na Fencia saam os navegadores para a procisso da Primavera, ou os alexandrinos para a noite de Afrodita. - Muito bonito! ciciou Maria de Flor.

  • - Est claro que este ano organizei uma partida com quatro ou cinco atrizes e quatro ou cinco companheiros. No me sentia com coragem de ficar s como um trapo no vagalho de volpia e de prazer da cidade. O grupo era o meu salva-vidas. No primeiro dia, no sbado, andvamos de automvel a percorrer os bailes. amos indistintamente beber champanhe aos clubes de jogo que anunciavam bailes e aos maxixes mais ordinrios. Era divertidssimo e ao quinto clube estvamos de todo excitados. Foi quando lembrei uma visita ao baile pblico do Recreio. - "Nossa Senhora!" - disse a primeira estrela de revistas, que ia conosco. "Mas horrvel! Gente ordinria, marinheiros paisana, ffias dos pedaos mais esconsos da rua de So Jorge, um cheiro de arroz, rolos constantes..." - Que tem isso? No vamos juntos? Com efeito. amos juntos e fantasiadas as mulheres. No havia o que temer e a gente conseguia realizar o maior desejo: acanalhar-se, enlamear-se bem. Naturalmente fomos e era a desolao com pretas beiudas e desdentadas esparramando belbutinas fedorentas pelo estrado da banda militar, todo o pessoal de azeiteiros das ruelas lbregas e essas estranhas figuras de larvas diablicas, de ncubos em frascos de lcool, que tm as perdidas de certas ruas, moas, mas com traos como amassados e todas plidas, plidas feitas de pasta de mata-borro e de papel-arroz. No havia nada de novo. Apenas, como o grupo parara diante dos danarinos, eu senti que se roava em mim, gordinho e apetecvel, um beb de tarlatana rosa. Olhei-lhe as pernas de meia curta. Bonitas. Verifiquei os braos, o cado das espduas, a curva do seio. Bem agradvel. Quanto ao rosto era um pouquinho atrevido, com dois olhos perversos e uma boca polpuda como se ofertando. S postio trazia o nariz, um nariz to bem-feito, to acertado, que foi preciso observar para verific-lo falso. No tive dvida. Passei a mo e preguei-lhe um belisco. O beb caiu mais e disse num suspiro: - ai que di! Esto vocs a ver que eu fiquei imediatamente disposto a fugir do grupo. Mas comigo iam cinco ou seis damas elegantes capazes de se debochar mas de no perdoar os excessos alheios, e era sem linha correr assim, abandonando-as, atrs de uma freqentadora dos bailes do Recreio. Voltamos para os automveis e fomos cear no clube mais chique e mais secante da cidade. - E o beb? - O beb ficou. Mas no domingo, em plena Avenida, indo eu ao lado do chofer, no burburinho colossal, senti um belisco na perna e uma voz rouca dizer: "para pagar o de ontem". Olhei. Era o beb rosa, sorrindo, com o nariz postio, aquele nariz to perfeito. Ainda tive tempo de indagar: aonde vais hoje? - A toda parte! respondeu, perdendo-se num grupo tumultuoso. - Estava perseguindo-te! comentou Maria de Flor. - Talvez fosse um homem... soprou desconfiado o amvel Anatlio. - No interrompam o Heitor! fez o baro, estendendo a mo.

  • Heitor ascendeu outro gianaclis, ponta de ouro, continuou: - No o vi mais nessa noite e segunda-feira no o vi tambm. Na tera desliguei-me do grupo e ca no mar alto da depravao, s, com uma roupa leve por cima da pele e todos os instintos fustigados. De resto a cidade inteira estava assim. o momento em que por trs das mscaras as meninas confessam paixes aos rapazes, o instante em que as ligaes mais secretas transparecem, em que a virgindade dbia e todos ns a achamos intil, a honra uma caceteao, o bom senso uma fadiga. Nesse momento tudo possvel, os maiores absurdos, os maiores crimes; nesse momento h um riso que galvaniza os sentidos e o beijo se desata naturalmente. Eu estava trepidante, com uma nsia de acanalhar-me, quase mrbida. Nada de raparigas do galarim perfumadas e por demais conhecidas, nada do contato familiar, mas o deboche annimo, o deboche ritual de chegar, pegar, acabar, continuar. Era ignbil. Felizmente muita gente sofre do mesmo mal no Carnaval. - A quem o dizes!... suspirou Maria de Flor. - Mas eu estava sem sorte, com o azar, com o caiporismo dos defuntos ndios. Era aproximar-me, era ver fugir a presa projetada. Depois de uma dessas caadas pelas avenidas e pelas praas, embarafustei pelo S. Pedro, meti-me nas danas, rocei-me quela gente em geral pouco limpa, insisti aqui, ali. Nada! - quando se fica mais nervoso! - Exatamente. Fiquei nervoso at o fim do baile, vi sair toda gente, e sa mais desesperado. Eram trs horas da manh. O movimento das ruas abrandara. Os outros bailes j tinham acabado. As praas, horas antes incendiadas pelos projetores eltricos e as cambiantes enfumadas dos fogos de bengala, caam em sombras - sombras cmplices da madrugada urbana. E s, indicando a folia, a excitao da cidade, um ou outro carro arriado levando mscaras aos beijos ou alguma fantasia tilintando guizos pelas caladas fofas de confete. Oh! a impresso enervante dessas figuras irreais na semi-sombra das horas mortas, roando as caladas, tilintando aqui, ali um som perdido de guizo! Parece qualquer coisa impalpvel, de vago, de enorme, emergindo da treva aos pedaos... E os domins embuados, as danarinas amarfanhadas, a coleo indecisa dos mscaras de ltimo instante arrastando-se extenuados! Dei para andar pelo lago do Rocio e ia caminhando para os lados da secretaria do interior, quando vi, parado, o beb de tarlatana rosa. Era ele! Senti palpitar-me o corao. Parei. - "Os bons amigos sempre se encontram" disse. O beb sorriu sem dizer palavra. - Ests esperando algum? Fez um gesto com a cabea que no. Enlacei-o. - Vens comigo? -"Onde?" indagou a sua voz spera e rouca. - Onde

  • quiseres! Peguei-lhe nas mos. Estavam midas mas eram bem tratadas. Procurei dar-lhe um beijo. Ela recuou. Os meus lbios tocaram apenas a ponta fria do seu nariz. Fiquei louco. - Por pouco... - No era preciso mais no Carnaval, tanto mais quanto ela dizia com sua voz arfante e lbrica: - "Aqui no!" Passei-lhe o brao pela cintura e fomos andando sem dar palavra. Ela apoiava-se em mim, mas era quem dirigia o passeio e os seus olhos molhados pareciam fruir todo o bestial desejo que os meus diziam. Nessas fase do amor no se conversa. No trocamos uma frase. Eu sentia a ritmia desordenada do meu corao e o sangue em desespero. Que mulher! Que vibrao! Tnhamos voltado ao jardim. Diante da entrada que fica fronteira rua Leopoldina, ela parou, hesitou. Depois arrastou-me, atravessou a praa, metemo-nos pela rua escura e sem luz. Ao fundo, o edifcio das Belas-Artes era desolador e lgubre. Apertei-a mais. Ela aconchegou-se mais. Como seus olhos brilhavam! Atravessamos a rua Lus de Cames, ficamos bem embaixo das sombras espessas do Conservatrio de Msica. Era enorme o silncio e o ambiente tinha uma cor vagamente rua com a treva espancada um pouco pela luz dos combustores distantes. O meu beb gordinho e rosa parecia um esquecimento do vcio naquela austeridade da noite. - Ento, vamos? -"Para onde?"- Para a tua casa. -"Ah! no, em casa no podes..." - Ento por a. -"Entrar, sair, despir-me. No sou disso!" - Que queres tu, filha? impossvel ficar aqui na rua. Daqui a minutos passa a guarda. -"Que tem?" - No possvel que nos julguem aqui para bom fim, na madrugada de cinzas. Depois, s quatro tens que tirar a mscara. -"Que mscara?" - O nariz. -"Ah! sim!" E sem mais dizer puxou-me. Abracei-a. Beijei-lhe os braos, beijei-lhe o colo, beijei-lhe o pescoo. Gulosamente a sua boca se oferecia. Em torno de ns o mundo era qualquer coisa de opaco e de indeciso. Sorvi-lhe os lbios. Mas o meu nariz sentiu o contato do nariz postio dela, um nariz com cheiro de resina, um nariz que fazia mal. - Tira o nariz! - Ela segredou: No! No! custa tanto a colocar! Procurei no tocar no nariz to frio naquela carne humana. O pedao de papelo, porm, avultava, parecia crescer, e eu sentia um mal-estar curioso, um estado de inibio esquisito. - Que diabo! No vs agora para casa com isso! Depois no te disfara nada. -"Disfara sim!" - No! procurei-lhe nos cabelos o cordo. No tinha. Mas abraando-me, beijando-me, o beb de tartalana rosa parecia uma possessa tendo pressa. De novo seus lbios aproximaram-se da minha boca. Entreguei-me. O nariz roava o meu, o nariz que no dela, o nariz de fantasia. Ento, sem poder resistir, fui aproximando a mo, aproximando, enquanto com a esquerda a enlaava mais, e de chofre agarrei o papelo, arranquei-o. Presa dos meus lbios, com dois olhos que a clera e o pavor pareciam fundir, eu tinha uma cabea estranha, uma cabea sem nariz, com dois buracos sangrentos atulhados de algodo, uma cabea que era alucinante - uma caveira com carne... Despeguei-a, recuei num imenso vmito de mim mesmo. Todo eu tremia de horror, de nojo. O beb de tarlatana rosa emborcara no cho com a caveira voltada para mim, num

  • choro que lhe arregaava o beio mostrando singularmente abaixo do buraco do nariz os dentes alvos. -"Perdoa! Perdoa! No me batas. A culpa no minha! S no Carnaval que eu posso gozar. Ento, aproveito, ouviste? aproveito. Foste tu que quiseste..." Sacudi-a com fria, colocando-a de p num safano que a devia ter desarticulado. Uma vontade de cuspir, de lanar, apertava-me a glote, e vinha-me o imperioso desejo de esmurrar aquele nariz, de quebrar aqueles dentes, de matar aquele atroz reverso da Luxria... Mas um apito trilou. O guarda estava na esquina e olhava-nos, reparando naquela cena da semitreva. Que fazer? Levar a caveira ao posto policial? Dizer a todo mundo que a beijara? No resisti. Afastei-me, apressei o passo e ao chegar ao largo inconscientemente deitei a correr como um louco para a casa, os queixos batendo, ardendo de febre. Quando parei porta para tirar a chave, que reparei que a minha mo direita apertava uma pasta oleosa e sangrenta. Era o nariz do beb de tarlatana rosa... Heitor de Alencar parou, com o cigarro entre os dedos, apagado. Maria de Flor mostrava uma contrao de horror na face e o doce Anatlio parecia mal. O prprio narrador tinha a camarinhar-lhe a fronte gotas de suor. Houve um silncio agoniento. Afinal o baro Belfort ergueu-se, tocou a campainha para que o criado trouxesse refrigerantes e resumir: - Uma aventura, meus amigos, uma bela aventura. Quem no tem do Carnaval a sua aventura? Esta pelo menos empolgante. E foi sentar-se ao piano.