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1 “A alma ao nível da terra” (Ressonâncias do “Amém” na poesia de Cecília Meireles) Osmar Soares da Silva Filho Rio de Janeiro 2012

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“A alma ao nível da terra”

(Ressonâncias do “Amém” na poesia de Cecília Meireles)

Osmar Soares da Silva Filho

Rio de Janeiro

2012

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“A alma ao nível da terra”

(Ressonâncias do “Amém” na poesia de Cecília Meireles)

Osmar Soares da Silva Filho

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do Título de Doutor em Ciência da Literatura (Poética). Orientadora: Professora Doutora Angélica Maria Santos Soares

Rio de Janeiro

Janeiro de 2012

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“A alma ao nível da terra”

(Ressonâncias do “Amém” na poesia de Cecília Meireles)

Osmar Soares da Silva Filho

Orientadora: Professora Doutora Angélica Maria Santos Soares

Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em

Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como

parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Doutor em Ciência

da Literatura (Poética).

Examinada por:

_________________________________________________

Presidente, Professora Doutora Angélica Maria Santos Soares - UFRJ

_________________________________________________

Professor Doutor Claudio de Sá Capuano - UFRRJ

_________________________________________________

Professora Doutora Maria Lúcia Guimarães de Faria – UFRJ

_________________________________________________

Professora Doutora Martha Alckmin de Araújo Vieira – UFRJ

_________________________________________________

Professor Doutor Manuel Antonio de Castro – UFRJ

_________________________________________________

Professora Doutora Teresa Cristina Meireles de Oliveira – UFRJ, Suplente

_________________________________________________

Professora Doutora Maria Helena Sansão Fontes – UERJ, Suplente

Rio de Janeiro

Janeiro de 2012

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SILVA FILHO, Osmar Soares da

“A alma ao nível da terra” (Ressonâncias do “Amém” na poesia de Cecília

Meireles) / Osmar Soares da Silva Filho

– Rio de Janeiro: UFRJ, CLA, 2012.

xiv, 215 f., 30cm

Orientadora: Angélica Maria Santos Soares

Tese (Doutorado) – UFRJ/CLA/ Programa de Pós-graduação em

Ciência da Literatura, 2011.

Referências Bibliográficas: f. 201-214.

1. MEIRELES, Cecília. 2. Poética. 3. Filosofia da Natureza. I. SOARES, Angélica

Maria Santos. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Departamento de Ciência da

Literatura (Poética). III. Título.

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Aos meus avós, entre o Céu e a Terra

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“A Natureza reconhece os poetas”1

Cecília Meireles

1MEIRELES, Cecília. A lição do poema: Cartas de Armando Côrtes-Rodrigues. Celestino Sachet. (org). Ponta

Delgada: Instituto Cultural Ponta Delgada, 1998, p. 6. (12 de Março de 1946).

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Porto, 09 de julho de 2010.

Querida Cecília, Esta noite sonhei estar em sua casa, a do Cosme Velho, fazendo um itinerário curioso entre as suas coleções de xícaras de café e outros objetos que você veio trazendo pelo mundo em suas viagens. Agora sei que seu itinerário é outro e que o café está cada vez pior. Por ora, ando bebendo café aqui mesmo pela terra, e você finalmente passou a conhecer de que são feitas as palavras e as nuvens que tão bem pastoreava. Como é ver tudo de cima? Neste vasto, imenso território alado em que você está? Esta carta que lhe escrevo com tão abusada intimidade é para dizer da minha admiração por sua poesia e por sua pessoa, da minha humilde veneração desesperada e distante. Confesso ter ficado com muita inveja da Fernanda de Castro quando li "Cartas além do tempo"... Primeiro, por ela a ter conhecido quando você veio a Portugal em 1934, depois por terem sido vocês duas confidentes, amigas, próximas e tudo o mais... A inveja é um animal que fica dentro e à espreita, mas às vezes dá os seus resultados mais mirabolantes e, talvez, por força desse animal, nossos diálogos já se façam há muito mais tempo que imaginamos e que vimos nos acompanhando como que por amor. Você, pela poesia. Eu, pelos seus poemas. Sim porque gosto de muitos poemas. Adoro alguns; e os seus eu amo! E eles já me acompanham desde a infância quando já sua pena diria para mim: “Criança, meu amor”, e eu, entre escolher “Ou isto ou aquilo”, acabei ficando com profunda saudade da sua “voz de amizade” dizendo "bom dia". Uma voz que só ouviria aos 18 ou 19 anos na Universidade por aquela bem fazeja iniciativa do disco de Festa... Sua voz era frágil, pequenina, emocionada e firme. Frágil e pequenina por parecer não gritar contra nada que não mereça um grito, emocionada porque não há poeta sem água por dentro e firme porque ainda se movimenta com um sangue eterno de asa de pássaro em manhãs morenas. Ando lendo suas cartas para o Armando Cortes-Rodrigues, Cecília, e, por elas, tenho conhecido você melhor. São todos seus os momentos de ternura entremeados pela profunda melancolia e tédio repentinos, o desejo de solidão... Eu sou de uma geração que conhece e não conhece a solidão (e cada vez mais desconhece a ternura), pois, por mais que se queira estar sozinho, isso nunca é possível... Hoje em dia somos muito mais pessoas do que nos seus anos. E inventaram uma máquina muito útil chamada computador e com ela veio a internet, com a internet os e-mails e com os e-mails acabaram-se as cartas... Com tudo isso ficou muito obsoleto estar só. Todo o tempo estamos nos comunicando, nos falando, rindo uns com os outros... O mundo virou uma grande praça pública. Suas ousadias do seu tempo, Cecília, de ter amigos além-mar e suas reclamações de o correio demorar tanto para enviar uma carta, hoje são "balela"; não fazem mais sentido. Aliás, nem os segundos fazem sentido mais. As horas viraram minutos e os segundos desapareceram, pois, daqui pra lá é possível saber tudo o que acontece... Só não é possível saber nada daqui para aí onde você está. Os deuses estão há muito tempo calados. E a natureza, que foi sempre uma deusa, sofreu um rapto e, como Perséfone, ruma às profundezas dos abismos humanos. Tanta exploração da terra, Cecília; tanta exploração dos homens, dos animais, das plantas. Não há mais anjos, nem há música. Os olhos de muita gente são um cenário de guerra. O Rio de Janeiro que você tanto amou está em total colapso... Não que você não tenha sabido o que foi guerra. Eu sei que soube. E soube da bomba atômica, dos meninos de Pistóia e outras coisas do seu tempo, mais terríveis que isso tudo. Mas agora a guerra se dá em nossa porta e chega a cada um pelo tiro. Há muito revólver, muita droga, muita diversão e pouco sono. Eu receio que seu corpo físico não aguentaria o Rio de Janeiro dos nossos dias, Cecília. Se você já se acastelava naqueles tempos, nesses anos 2000 creio que teu refúgio seria uma copa de árvore na Floresta da Tijuca ou uma concha no meio do mar. Mas o MAR ESTÁ POLUÍDO, Cecília. Há “línguas negras” por toda a parte e, no Oceano

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Pacífico, há agora uma tal sopa de plástico... Tartarugas marinhas confundem águas-vivas e anêmonas com sacolas plásticas e garrafas pet (a desgraça do milênio são essas garrafas eternas!). Elas engolem os plásticos e morrem asfixiadas. Há matanças de baleias e já não há muitas baleias. O mar virou um mar de sangue total - e o sangue não é só humano, como bem vê. O mar deixou de ser absoluto. Infelizmente, não há refúgio, Cecília. E o retrato da situação é humano. Como eu dizia, aprendi a ler praticamente lendo os seus poemas de "Ou isto ou aquilo". Isso era num tempo em que as crianças ainda eram protegidas por uma educação pública mais ou menos estruturada. A rapidez com que as coisas se deterioram não deixou de alcançar a escola, que anda “muito mal das pernas”... Todas as suas convulsões em torno da Escola Nova e de um sistema educacional razoável ainda são lembradas por muitos estudiosos, mas ninguém coloca em prática os sonhos, Cecília. Em suma, em educação está tudo muito abandonado e infiel à felicidade. Mas há aqueles poucos que acabam se tornando, aos trancos e barrancos, qualquer coisa a mais, por conta da poesia. E sua poesia ainda encanta muitas crianças, mas já há adultos em muitas crianças, que, como o “Menino Azul”, ainda não aprenderam a ler. Foi aquele poema a maior lição da minha vida. Talvez eu mesmo ainda não saiba ler, ainda que ensine a tantos outros essa arte. Por isso, peço, desde já, licença para ler sua poesia, escrever sobre ela, estudá-la, apresentá-la... Sua poesia como planta verde, sua poesia como sacrifíicio à terra, sua poesia como salvação em lugares em que só aumenta o perigo... Sua poesia como pretensão. Está vendo como ainda não sei ler tão bem? Sua poesia, Cecília, acabou trazendo-me para lugares que nunca imaginaria estar... Fui empurrado pela sua vida a conhecer Portugal e nessas janelas e ruelas daqui volta e meia o seu vulto aparece. Não, eu também não me encontrei com o Fernando Pessoa. Apenas com uma estátua quase antropomórfica, quase monstruosa, no Chiado em Lisboa. Vi muitos painés de Vieira da Silva e parte do seu traço neles. Não me pergunte como, mas vi. Vi também muito da sua ausência... da ausência do Drummond, da ausência do Bandeira. O Vinícius de Morais todos conhecem - parece que um se salvou... - mas acho que somente pela música. Como pode ser possível? Logo você que cantou tanto Portugal (na verdade você cantou o Universo) estar assim tão esquecida? Talvez você não esteja esquecida, mas escondida, o que dá na mesma e não me serve de consolo. Mas me serve de consolo saber que pelo menos muitos portugueses guardam certo lirismo nos gestos e nas escolhas. É um povo curioso e nós somos muito eles. Somos e não somos, na verdade. Essas impressões,não dá pra expor em poucas e tão óbvias linhas. Seria melhor se conversássemos. Para isso, vou fazer o seguinte, daqui a pouco pego alguns poemas seus e os digo pro vento. Como você agora é só alma, talvez seja o vento, talvez um cogumelo, talvez seja um dos meus amigos, talvez seja o telhado da casa aqui em frente, ou talvez não seja nada disso. Não importa. O que mais faz sentido nisso tudo é o diálogo, que por mais estranho que pareça, acontece. Eu não a escuto, você não me escuta. Mas há o diálogo nas malhas da poesia. Ah! Semana que vem vou a São Miguel. Terra, ar, fogo e água juntam-se e vão se tornando laranjas e vão se tornando pessoas que falam a meio caminho das coisas e de serem Ilha. Não sei por que mão, mas vou a São Miguel! Talvez por uma das mãos do Arcanjo. Talvez pelo Rei do mar com seus terremotos. Talvez pelo avião mesmo... Mas vou. Quer ir comigo? Um forte abraço do amigo, Osmar

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SOL Ao Poeta

Ao Poema Ao meio-dia: meus avós, meus pais, meus irmãos

Ao oriente: Angélica Maria Santos Soares Helena Parente Cunha, Manuel Antônio de Castro, Maria Margarida Maia Gouveia, Vânia Chaves

Ao ocidente: Fundação Ford Fundação Carlos Chagas Faculdade de Letras – UFRJ Filosofia – Uerj

À meia-noite: Prof. Dr. Claudio de Sá Capuano Prof. Dra. Maria Lúcia Guimarães Faria Prof. Dra. Martha Alckmin de Araújo Vieira Prof. Dra. Manuel Antonio de Castro Prof. Dra. Teresa Cristina Meireles Prof. Dra. Maria Helena Sansão Fontes

Às minhas árvores brancas: Gilda Moreira e Lucas Müller. Helaine Alves. Wallace Lopes. Luciano Gomes Brazil. Ricardo Gomes. Erick Curvelo. Hugo Calçada. Francisco Calafate Faria. Ataíde.

Às flores do meu chão: Aava Santiago. Ana Tereza Andrade. Rosilene Silva da Costa. Raquel de Castro. Juliana Dias. Rudá Lemos. Lilian Araújo. Juliana Tutunji. Renan Cortez. Leonardo Lusitano. “As Cabrochas”. Marcelo Rangel. Alvaro Moura. André Lopes. Dir. Glória Vianna. Aline Novais. Silvia Bonini. Adriana Armony. Irene Franco. Magda Furtado. Toda equipe de Português e Filosofia do Pedro II. Vinicius Oliveira. Marcelo Morais. Alessandro Venturoso. Pedro Grabois. Hudson Kelly. Débora Tinoco Alunos do Colégio Pedro II. Equipe Escola Municipal Marcílio Dias, do Isat. Toda equipe do Boteco do Gomes. Reginaldo Barcelos. David Rosa. Portugal. Nordeste brasileiro. Ouro Preto. Rio de Janeiro. Bolsistas da turma de 2008 do Programa Internacional de Pós-graduação Ford.

OBRIGADO

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RESUMO

SILVA FILHO, Osmar Soares da. “A alma ao nível da terra”: (Ressonâncias do “Amém” na

poesia de Cecília Meireles). Tese de Doutorado. Rio de Janeiro: 2012 (Doutorado em Ciência

da Literatura – Poética) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de

Janeiro, 2012.

Este trabalho é uma leitura das questões suscitadas pelo poema “Amém”, de Cecília Meireles

(1901-1964), publicado originalmente no volume Vaga Música, de 1942. Os versos do poema

nos levam, em diálogo com o pensamento de Heráclito (aprox. 540 a.C. – 470 a.C), Friedrich

Nietzsche (1844 – 1900), Martin Heidegger (1889 – 1976) e Hannah Arendt (1906 – 1975), a

repensarmos os sentidos de phýsis e suas referências ao homem no ocidente. A primeira

estrofe de “Amém” põe em questão a linguagem e a capacidade humana de atribuir verdade

ao dizer. A segunda estrofe nos apresenta a imagem poética da “profusão do mundo”, que

nos convoca a revisitarmos a essência da ciência e a relação do homem com outros

elementos da Natureza. Com a terceira estrofe, entra em questão a técnica, a qual

chamamos de “quadratura do círculo”, emblema da tentativa de medida e de controle do

homem sobre todas as coisas. Com a última estrofe, percebemos como o dizer poético

propõe uma diferente tomada de posição do homem no mundo, não pelas hierarquias ou

pela dominação dos outros elementos da Natureza, mas pela compreensão de que a “alma”

humana está “ao nível da terra”, postura que Cecília Meireles, em toda sua obra poética, visa,

ecopoeticamente, a resgatar.

Palavras-chave: Cecília Meireles. Poesia. Phýsis. Ecologia. Homem.

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RESUMEN

SILVA FILHO, Osmar Soares da. “El alma al nivel de la tierra”: (Resonancias del “Amén” en

la poesía de Cecília Meireles). Tesis de Doctorado. Rio de Janeiro: 2012 (Doctorado en Ciencia

de la Literatura – Poética) – Facultad de Letras, Universidad Federal de Rio deJaneiro, Rio de

Janeiro, 2012.

Este trabajo es una lectura de las cuestiones suscitadas por el poema “Amén”, de Cecília

Meireles (1901–1964), publicado originalmente en el volumen Vaga Música, de 1942. Los

versos del poema nos llevan, en diálogo con el pensamiento de Heráclito (aproximadamente

540 a.C. – 470 a. C.), Friedrich Nietzsche (1844-1900), Martin Heidegger (1899-1976) e

Hannah Arendt (1906 -1975), a repensar los sentidos de physis y sus referencias al hombre

en el occidente. La primera estrofa de “Amén” abarca la cuestión del lenguaje y la capacidad

humana de atribuir verdad a lo que se dice. La segunda estrofa nos presenta la imagen

poética de la “profusión del mundo”, que nos invita a revisitar la esencia de la ciencia y la

relación del hombre con otros elementos de la Naturaleza. Con la tercera estrofa, se enfatiza

la cuestión de la técnica, la cual llamamos de “cuadratura del círculo”, emblema del intento

de medida y de control del hombre sobre todas las cosas. Con la última estrofa, percibimos

como el decir poético propone una diferente toma de posición del hombre en el mundo, no

por las jerarquías o por la dominación de los otros elementos de la Naturaleza, sino por la

comprensión de que el “alma” humana está “al nivel de la tierra”, postura que Cecília

Meireles, en toda su obra poética, visa, eco poéticamente, a rescatar.

Palabras clave: Cecília Meireles. Poesía. Phýsis. Ecología. Hombre.

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ABSTRACT

SILVA FILHO, Osmar Soares da. “The soul at earthly level”: resonances of "Amém" in the

poetry of Cecília Meireles. Doctoral Thesis. Rio de Janeiro: 2012 (Phd. in Science of Literature

– Poetics) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012

This study is a thorough account of the issues raised by the poem “Amén”, written by Cecília

Meireles (1901-1964), originally published in the 1942-volume Vaga Música. Dialoguing with

the thoughts of Heraclitus (circa 540 B.C. – 470 B.C), Friedrich Nietzsche (1844 – 1900),

Martin Heidegger (1889 – 1976), and Hannah Arendt (1906 – 1975), the verses of the

aforementioned poem drive us to reconsider the meaning of Physis and its references to

man in western culture. The first stanza of “Amém” focus on language and the human

capacity of assigning truth-values to statements. The second stanza features the poetical

image of the “world profusion”, which summons us to revisit the essence of science and the

relationship between man and other elements of nature. The third stanza presents the

matter of technique, which is referred to as “quadrature of the circle”, an emblem of the

attempt of man’s measuring and controlling of all existing things. Within the last stanza, it is

observed how the poetical saying proposes a different position-taking of man in the world,

not through hierarchies or domination of other elements of Nature; yet, through the

comprehension that the human “soul” lies at “earthly level”, posture which, in an ecopoetical

way, Cecília Meireles aims at rescuing throughout her poetical works.

Palavras-chave: Cecília Meireles. Poetry. Phýsis. Ecology. Human Being.

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ABREVIATURAS UTILIZADAS NESTA TESE

Espectros (1919) (E)

Poema dos Poemas (1923) (PP)

Baladas para El-Rei (1925) (B)

Cânticos (1927) (C)

Viagem (1939) (V)

Vaga Música (1942) (VM)

Mar Absoluto e Outros Poemas (1945) (MA)

Retrato Natural (1949) (RN)

Dez Noturnos de Holanda (1952) (DNH)

Romanceiro da Inconfidência (1953) (RI)

Poemas Escritos na Índia (1953) (PEI)

Solombra (1963) (S)

Sonhos (1950-63) (SS)

Poemas de Viagens (1940-64) (PV)

O Estudante Empírico (1959-64) (EE)

Ou Isto ou Aquilo (1964) (OIA)

Dispersos (1918-64) (D)

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SUMÁRIO

PRIMEIRA PARTE

Apresentação, 16

A (In)compreensão da crítica, 19

Meu Motivo, 22

Poesia e ecologia, 36

SEGUNDA PARTE

Introdução, 44

1. “Amém” ou em torno da “verdade”, 47

1.1. Questionando os améns ao “amém”, 47

1.2. A linguagem como instrumento ou a instrumentalização da verdade, 54

1.3. A essência da verdade ou a verdade da essência: o encobrimento, 67

1.4. Acabamento e ressurgimento da vida sob os véus da noite, 73

2. “A profusão do mundo, imensa”, 94

2.1. A “profusão do mundo”, entre a circular “vertigem” da contemplação e os

“quadrados” dos conceitos, 94

2.2. Dos desenhos de“mundo mágico” aos ruídos da “quermesse da miséria”, 114

3. Dimensões do homem, 143

3.1. A dimensão técnica do homem ou o insolúvel problema da quadratura do

círculo, 145

3.2. “Ando à procura de espaço”: a dimensão poética do homem, 157

4. “Amém”: “A alma ao nível da terra”, 173

4.1. Restaurando raízes devastadas, 173

4.2. Abrindo caminhos no campo, 182

Apêndices, 192

Bibliografia, 201

Filmografia, 212

Arquivos eletrônicos, 213

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PRIMEIRA PARTE

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APRESENTAÇÃO

Desde 2006, após conclusão do mestrado em Ciência da Literatura (Teoria Literária)

na UFRJ, com a dissertação Memória e História em Mulheres de Abril de Maria Teresa Horta,

venho dedicando-me à leitura atenta da obra poética de Cecília Meireles (1901-1964), bem

como de sua prosa, composta por crônicas de viagens e de educação e por cartas enviadas a

amigos, alguns ensaios sobre folclore e educação, desenhos, pinturas, entrevistas, traduções,

peças de teatro, conferências sobre literatura, aulas estenografadas por alunos seus nas

ocasiões em que ela lecionou na antiga Universidade do Distrito Federal e parte da fortuna

crítica de sua obra encabeçada por estudiosos antigos e recentes, no Brasil e,

principalmente, em Portugal.

Passei a dar atenção especial ao estudo da biografia e bibliografia cecilianas, ainda

que não tenha sido possível debruçar-me sobre a totalidade de sua obra. Em parte porque

muita de sua prosa, por exemplo, sequer ainda tenha sido organizada e publicada; e em

parte por, num doutorodado, ser necessária uma pesquisa com vistas à especificidade do

objeto, à busca de um material bibliográfico que não pese contra o trabalho final.

Reconheço, porém, junto a uma nuvem de testemunhas, a necessidade de aqui unir-me a

uma gama de leitores que se arriscam à descoberta das pistas deixadas pelo pensamento

poético de Cecília, um dos mais importantes de nossa literatura, ou, como certo crítico

afirmou, “o lirismo mais elevado da moderna poesia de língua portuguesa”2.

Tenho desde já uma única certeza, a da responsabilidade que é colocar-me diante de

uma obra como a de Cecília Meireles, isto é, diante de uma poeta que sempre pareceu

eclipsar-se “como a Lua”3, tendo declarado “A um desconhecido” sua esperança (e também

certeza) de ser “acreditada”, “entendida profundamente” ainda – e principalmente – quando

não vista:

2

RÓNAI, Paulo. “Adeus à amiga”, Suplemento Literário, O Estado de São Paulo, 14 nov. 1964. 3 É bastante conhecido o poema “Lua Adversa”, publicado em Vaga Música (1942), cujos versos confrontam a

imagem da “Lua” e a da mulher, nas quais “sair para a rua” e “ser tua” são fruto das dinâmicas da lua-mulher, num belíssimo jogo rítmico e imagético compositor de um quadro de revelação e retraimento.

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MENSAGEM A UM DESCONHECIDO Teu bom pensamento longínquo me emociona. Tu, que apenas me leste, acreditaste em mim, e me entendeste profundamente. Isso me consola dos que me viram, a quem mostrei toda a minha alma, e continuaram ignorantes de tudo que sou, como se nunca me tivessem encontrado. (Fevereiro, 1956

4)

(D, 1742)

Não vivi no tempo de Cecília Meireles, não a vi, poucos de nós a viram. Neste mundo

em que, não raro, somos desconhecidos uns dos outros, consola escutar, da própria Cecília

Meireles, a constatação de que a ignorância não se dirime pela visão, pois “a quem mostrou

toda a sua alma” sua imagem se manteve eclipsada. Ver, ensina-nos a autora de Olhinhos de

Gato, não é imediatamente conhecer. A nós que hoje “apenas” a lemos, fica o convite para a

encontrarmos em “profundo entendimento” de sua obra e de sua poesia.

Temos, assim, diante de nós, o desafio de “entender profundamente” essa obra com

a recomendação dada pela própria escritora de que precisamos adentrar no pensamento

poético, como alguém que entra num mundo de esfíngicas perguntas que se nos apresentam

desde já levando-nos às questões que esse universo nos mostra.

Talvez o mistério que está escondido entre ler e entender profundamente a poesia de

Cecília Meireles seja o mesmo que está guardado sob a etimologia de seu nome: “Cecília”, do

latim caecilia, ceguinha. Com a cegueira de seus olhos verdes e atentos5, a poeta nos revela

4 Todos os poemas nesta tese serão citados da edição da Poesia completa, de 2001, organizada por Antônio

Carlos Secchin (MEIRELES, C. Poesia completa. Antônio Carlos Secchin (org.) Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 2001 2.v.) 5 Em carta a Armando Côrtes-Rodrigues, 14 de julho de 1946, a poeta descreve, curiosamente, seu modo de

olhar: “(...) sabe, tenho um astigmatismo curioso, que me faz ver cinco luas crescentes, estrelas grandes e de cabeleira crespa, como crisântemos, -- enfim, um astigmatismo flamejante e multiplicante que embeleza muito todas as coisas. E o que sou é tão distraída no olhar que a rua inteira tira o chapéu quando passo, e estou mirando sempre além do ponto que imaginam os que me cumprimentam.” (MEIRELES, C. Op. cit. 1998, p.25). Na crônica “Uns Olhos”, publicada n’A manhã em 12 de abril de 1944, a Cecília Meireles cronista declara: “Não, eu não me lembro se algum dia tive visão normal. Quando todos estão vendo, é comum que eu não veja nada. (Talvez também por julgar desnecessário ver uma coisa que já está sendo tão vista.) Quando ninguém vê coisa alguma, é certo que estou num êxtase de antecipação, compungida e encantada. (Mania de ver primeiro? Egoísmo? Exotismo? Nada disso: vista defeituosa, meus senhores, nada mais)” in: MEIRELES, C. Crônicas em geral. AZEVEDO FILHO, Leodegário. A. de. (org) Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998 (Cecília Meireles: obra em prosa; v. 1.) p. 73.

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um método, um caminho a trilhar, nos alertando não apenas a ver a camada de aparência

ilusória das coisas: “Meus olhos não têm ilusão nenhuma. E, no entanto, possuo uma

profunda fé inexplicável na perfeição secreta da vida”6; mas a perscrutar, “sem ilusão

nenhuma”, o mundo; aprendendo a ouvir e a sentir os vestígios deixados pela “perfeição

secreta da vida”.7

E assim, nos caminhos de um poético encontro com a poesia de Cecília Meireles,

começamos este trabalho.

6

Sob o título “Aos estudantes”, esse prólogo foi transcrito no Suplemento Literário nº 406 de O Estado de São Paulo (14 nov. 1964). In: MACHADO, Ruy Affonso. “Cecília Meireles, amiga”. In: GOUVÊA, Leila. V. B. (org.) Ensaios sobre Cecília Meireles. São Paulo: Editora Humanitas, USP, 2001. p. 284. 7 Lembramos, de entrada, o comentário de Junito de Souza Brandão: “Para Hesíodo, o poeta tem uma missão a

cumprir, já que, como poeta, o poietés em grego (donde nos veio através do latim poeta (m) o vocábulo poeta) não é tão-somente um "fazedor", um criador, mas antes um legislador em nome das Musas, as detentoras de todas as artes e é este o verdadeiro sentido de poietés, como atesta Platão. Como legislador, em nome das Musas, o poeta, o poietés, é um vidente, um mántis, um adivinho. Não é este, porventura, o significado em latim de uates, "poeta", cujo sentido primeiro é projeta, adivinho, donde o latim uaticinium, "vaticínio", previsão? Se o poeta sabe ser "fingidor", sabe igualmente dizer a verdade, como ele próprio afirma, pelos lábios das Musas: Pastores que habitais os campos (. . .) sabemos relatar ficções muito semelhantes à realidade, mas, quando o queremos, sabemos também proclamar verdades. (Teog. 26-27)” in: BRANDÃO, Junito de Sousa. Mitologia Grega, vol. 1. Petrópolis, Vozes: 1986. p. 161. grifos do autor.

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19

A (IN)COMPREENSÃO DA CRÍTICA

A despeito da recomendação dada pela própria poeta aos seus “desconhecidos”

leitores, o “entendimento profundo”, a leitura e a recepção de Cecília Meireles no Brasil têm-

se restringido a alguns poucos estudiosos sérios8. Por problemas que abarcam até mesmo

imbróglios judiciais familiares9, o acesso à obra de Cecília Meireles é, ainda hoje, escasso, já

passados quase 50 anos de seu desaparecimento...

Além dos já amplamente conhecidos trabalhos de Alfredo Bosi, de Darcy Damasceno,

crítico fidelíssimo à escritora carioca e o de Leodegário A. Azevedo, que foi responsável pelo

resgate de considerável volume de crônicas e outros escritos em prosa de Cecília Meireles,

poderíamos destacar, remontando às últimas duas décadas, o trabalho de Ana Maria

Domingues de Oliveira, líder de um grupo de pesquisa na Universidade Estadual Paulista

responsável pelo mapeamento da recepção crítica da obra ceciliana no país e fora do país; a

tese da professora da Universidade dos Açores Margarida Maia Gouveia “Cecília Meireles:

uma poética do eterno instante”; o estudo “Oriente e Ocidente na poesia de Cecília

Meireles”, de Ana Maria Lisboa de Mello e Francis Utéza e o precioso esforço crítico de Leila

V. B. Gouvêia, que nos presenteou em 2001 com a biografia Cecília em Portugal, a qual não

só foi responsável por aguçar minha curiosidade pela busca, em solo português, das raízes

açorianas de Cecília Meireles, como me levou, durante o processo de pesquisa, a ter em

mãos boa parte dos textos portugueses escritos sobre a autora de Mar Absoluto.

Um quadro do estado da crítica no Brasil e no mundo pode ser encontrado em outro

livro de Leila V. B. Gouvêa, Pensamento e ‘Lirismo Puro’ na poesia de Cecília Meireles, no qual

a autora aponta acertos e tropeços do trabalho de leitura das obras cecilianas dando

destaque a nomes como Mário de Andrade e Cassiano Ricardo, importantes para o processo

8

Em prefácio ao apuradíssimo estudo de Leila V. B. Gouvêa, Davi Arriguci Jr. afirma que “A fortuna crítica de Cecília Meireles está aquém da importância de sua obra. (...)” (ARRIGUCI JR, Davi. Prefácio. In: GOUVÊA, L. V. B. Pensamento e “lirismo puro” na poesia de Cecília Meireles. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1998, p. 11) dando destaque a estudiosos como Otto Maria Capeaux e Alfredo Bosi e reclamando o silêncio de Antonio Candido para com Cecília, identifica no crítico paulista um certo “juízo restritivo” da poeta. O estudo de Leila, publicado recentemente sob o título Pensamento e “lirismo puro” na poesia de Cecília Meireles, São Paulo: Edusp, 2008, se nos mostrou, durante a fase de pesquisa para esta tese, como uma “bússola” pela seriedade da condução da leitura da obra. 9 Conferir sobre o assunto em

http://www.istoe.com.br/reportagens/183103_A+CONFUSAO+NA+FAMILIA+DE+CECILIA+MEIRELES acesso em 01 de janeiro de 2012.

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de aceitação de Cecília Meireles pela intelligenzia brasileira contra uma turma de críticos que

a acusavam, por exemplo, de “(...) pouco original, imitadora de Leopardi e Antero” ou de

escrever “na realidade, a peor das prosas, ou a prosa que pretende ser poesia” (Agripino

Grieco)10

Mário de Andrade foi um dos primeiros, pela ocasião da publicação de Viagem, em

1939, a reconhecer em Cecília Meireles uma “rara independência” para com escolas e

movimentos literários, não sendo, para ele, a escritora carioca seduzida por nenhuma

“adesão passiva” a quaisquer funcionalidades estilísticas, grupos literários11, servindo-se

antes de um “ecletismo sábio” que permitiu que sua poética redundasse, na “melhor coisa

de lirismo puro que nunca se escreveu neste país”.12

Já Cassiano Ricardo foi protagonista do constrangimento sofrido por Cecília Meireles

quando da premiação de Viagem com o 1º lugar de Poesia pela Academia Brasileira de Letras

em 1938, partindo em sua defesa junto a um corpo de acadêmicos – aliás, a Academia

sempre foi motivo de aversão para Cecília – que buscava invalidar a relevância poética da

obra. Leila V. B. Gouvêa relata o nome de outros ledores contemporâneos a Cecília Meireles,

como Manuel Bandeira, Murilo Mendes e Carlos Drummond de Andrade e destaca a leitura

de Paulo Rónai e de toda a fortuna crítica da poeta em Portugal, a saber: autores como

Adolfo Casais Monteiro, João Gaspar Simões, Jorge de Sena, Vitorino Nemésio, a já citada

Margarida Maia Gouveia, entre outros apreciadores da obra.

Para nós, estudantes de hoje, se deu, com muita felicidade, há 10 anos, em 2001, por

ocasião do centenário de nascimento da autora, a publicação da Poesia Completa de Cecília

Meireles, editada pela Aguilar e organizada por Antônio Carlos Secchin; o que aumentou

consideravelmente, nesta primeira década do século XXI, o acesso à sua obra e o interesse

por sua poesia. A publicação dos dois volumes dessa edição representarou também um feito

10

GRIECO, A. Evolução da Literatura Brasileira, Rio de Janeiro, H. Antunes, s.d. p. 247 apud GOUVEIA, M M.. Cecília Meireles: uma poética do “eterno instante”. Lisboa. Imprensa Nacional-Casa da Moeda, “Escritores dos países de Língua Portuguesa”, volume 27, 2002. 11

Em carta a Augusto Meyer, em parte transcrita no livro de Leila, Cecília relata: “Eu vivo muito afastada de todos os grupos literários, porque no Rio, em geral, não há nada mais em desacordo com uma alma de artista que a alma dos artistas. (...) que é uma seita comparada com o infinito, Augusto?” Carta de Cecília Meireles a Augusto Meyer (1930), Arquivo Darcy Damasceno, Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro apud GOUVÊA, L. Op. cit. 2008 p. 25. 12

ANDRADE, Mário de. Sobre Viagem (26-XI-1939). O empalhador de passarinhos. SP. Liv. Martins Edit. (s/d) apud. MEIRELES, C. Obra poética em um volume. Rio de Janeiro, Cia José Aguilar Editora, 1967.

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inédito, que foi a reunião de livros considerados perdidos do conjunto de obras da poeta, a

saber: Espectros (1919), Nunca mais... e Poema dos poemas (1923), Baladas para El-rei

(1925) e Morena, pena de amor (escrito em 1927, mas nunca publicado por Cecília Meireles

em vida). O caso realmente curioso fica com as obras de 1919, 1923 e 1925, suprimidas pela

própria poeta da 1ª edição de sua “Poesia Completa” organizada por Darcy Damasceno em

1959. Assim, como podemos perceber, não se tratava ainda a edição de 1959 de uma versão

“completa”13-14 da trajetória poética de Cecília Meireles15.

A importância da publicação desses volumes iniciais se dá, principalmente, por ser

possível, através de sua leitura, estabelecer de fato um quadro geral de sua poesia; quadro

que compreende versos desde o livreto Espectros, publicado pela Cecília Meireles

adolescente em 1919 até os poemas Dispersos, reunidos por Darcy Damasceno após a morte

da poeta; o que forma um conjunto que abrange um período de mais de 40 anos de

produção poética. Mas, como afirma Leila Gouvêa, “No lento processo de maturação poética

que atravessam múltiplos autores – e esse foi o caso de Cecília Meireles, nem todos terão

manifestado autorrigor a ponto de considerar apenas a produção de maturidade na reunião

de sua obra, como fez a escritora carioca”16. Pelo que temos também a própria poeta como

crítica de si mesma.

13

Como dissemos, a própria Cecília Meireles suprimira os três “livros de juventude” (classificação de Leila V. B. Gouvêa), de sua Poesia Completa, mas nunca chegou a dizer por que tenha considerado Viagem, de 1939, sua definitiva estreia literária. Podemos destacar, da leitura de alguns críticos, que, somente a partir da obra de 1939, é que Cecília teria engrenado numa espécie de maturidade artística, em busca de um ideal de “perfeição” de seu fazer poético. Nas palavras de Leila V. B. Gouvêa: “é como se a poeta elegesse a atividade com a linguagem como o terreno de busca do absoluto e do inefável que atravessaria quase toda a sua lírica, assim conferindo “fundamento ontológico” à forma poética. Mas não se tratará apenas de forma, para quem, já madura, diria entender a poesia como prática ‘vital’” (ver: GOUVÊA, L. B. V. Op. cit. 2008 p. 27.) 14

Quanto à produção em prosa, muito ainda do que Cecília Meireles escreveu permanece oblíquo ao público, haja vista o projeto editorial encabeçado por Leodegário Azevedo não ter sido, até concluída a escrita desta tese, levado a cabo. Dele, só tivemos em 2001 publicados o volume I das “Crônicas em Geral”, os cinco volumes das “Crônicas de Educação” e os três volumes das “Crônicas de Viagem”. Da primeira coleção, por exemplo, eram prometidos, a princípio, mais quatro. As brigas familiares que envolvem o espólio da autora junto aos herdeiros é o motivo do imbróglio em torno da edição desses volumes. 15

O que chamamos de trajetória poética abrange toda a publicação de Cecília Meireles, a despeito da nítida rejeição da crítica aos primeiros livros e aos poemas dispersos publicados postumamente. Tal “trajetória” transcenderia a classificações que busquem dizer da qualidade de um conjunto poemático qualquer. Antes, pretendemos, como convém à Poética, privilegiar o pensamento, e, aqui, o pensamento poético ceciliano articulado ao filosófico. Assim, não nos serviria pensar a obra de Cecília Meireles seguindo um sistema dito coerente, imbuído de princípio, meio, fim, de filiações a escolas literárias, ou mesmo de características mais ou menos ligadas a este ou aquele “estilo literário”. 16

GOUVÊA, L. V. B. Op. cit. 2008, p. 26.

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MEU MOTIVO

“Teu bom pensamento longínquo me emociona”17

(Cecília Meireles)

A ressonância dos escritos de Cecília Meireles tem feito vibrar suas ondas poéticas,

para mim, há muito mais tempo do que apenas nesses mencionados últimos anos. Na

infância, tive acesso aos textos de Ou isto ou aquilo (1964), última obra que a escritora

dedicou para crianças, que, à época, acredito eu, abriam meus olhos para a sensibilidade

poética, sensibilidade essa que me permitiu trilhar um caminho em que eu refletisse de

modo poético sobre as “ilusões do mundo”, com uma maneira de escutar e de olhar as coisas

que começa e termina na poesia.

Lembro-me claramente de me terem impactado a musicalidade dos textos, a

disposição dos versos, as gravuras que compunham, com o livro, uma obra de arte relevante,

para crianças e adultos. No painel de tantos poemas de Ou isto ou aquilo, destacaram-se,

muito especificamente, dois: “Leilão de Jardim” e “O Menino Azul”. Aquele, talvez tenha

sido o primeiro texto literário com que tive contato, num livro didático do 3º ano do Ensino

Fundamental, a antiga 2ª série. Nele, a voz poética, que eu imaginava como sendo a da

própria autora, colocava “à venda” um “Jardim”:

LEILÃO DE JARDIM Quem me compra um jardim com flores? borboletas de muitas cores, lavadeiras e pas- sarinhos, ovos verdes e azuis nos ninhos? Quem me compra este ca- racol?

17 “Mensagem a um desconhecido”, D, p. 1742.

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Quem me compra um raio de sol? Um lagarto entre o muro e a hera, uma estátua da Pri- mavera? Quem me compra este for- migueiro? E este sapo, que é jar- dineiro? E a cigarra e a sua canção? E o grilinho dentro do chão? (Este é meu leilão!)

(“Leilão de Jardim”, OIA, 1471)

O pequeno leitor de ontem se perguntava como era possível que se

vendessem/comprassem “borboletas”, “lavadeiras”, “pássaros”, e até mesmo “um raio de

sol?”... Ele não conseguia, na sua infantil consciência, compreender o modo “retalhado”

como a autora daqueles versos tratara o “Jardim”. Obviamente, mais tarde, passou a ter

sentido a dimensão idílica recriada nos apelos cecilianos pela compra do “Jardim”. Entendeu

que não se tratava de um esquema corruptor da natureza recriada por Cecília Meireles na

imagem do “Jardim”, antes sua poesia valia-se de uma lúdica abordagem do “cuidado” para

com os outros elementos da Natureza. Assim, “comprar” o jardim corresponderia, antes de

tudo, à compreensão daquele espaço como valoroso, caro, importante.

Por meio da leitura de outros poemas do livro da minha infância, percebi, na poesia

de Cecília Meireles, uma constante abordagem dos outros elementos da Natureza intricados

ao homem, em mútua referência18. Lançando o olhar, do homem aos demais elementos da

18

Nesta tese, preferiremos a palavra referência à relação por seguirmos, na construção de uma leitura ontopoética da obra de Cecília Meireles, a terminologia heideggeriana, a qual visa retirar o vício metafísico conceitual dos vocábulos. A referência, nesta dimensão, é uma relação em primeira instância, isto é, não pode ser reduzida à relação como adequação de uma coisa à proposição discursiva sobre a coisa. Isso porque se deve entender a referência segundo o aítion grego, isto é, no sentido de coisidade, essência, propriedade. O que é a coisa em sua propriedade de coisa, em sua coisidade é o seu como sendo originário; isto é, a sua referência à sua essência. A relação, por sua vez, se dá, no sentido de “verdade” como “adequação”, que vamos desenvolver

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Natureza e dos demais elementos da Natureza ao homem, os poemas de Ou isto ou aquilo,

em sua maioria, põem em foco, com certa constância, os mais diversos seres: plantas,

animais, jardins, o mar, lagoas, águas, florestas, seres humanos etc. Cantando, não o

dualismo separador de “homem” e “natureza”, Cecília Meireles recria em si a Natureza, na

qual está inscrita, isto é, no horizonte de todas as coisas que vierem a surgir e que vigem

integradas. As crianças de Ou isto ou aquilo brincam na inocência do Jardim e são cantadas e

contadas nas imagens de

um mundo mais largo e talvez mais comprido e que não tenha fim. (“O menino azul”, OIA, 1480)

Poemas como “Os carneirinhos” apresentam versos que desdobram a referência do

homem à Natureza19 des-velando o cuidado do homem aos animais

Todos querem ser pastores quando encontram, de manhã, os carneirinhos, enroladinhos como carretéis de lã

(“Os carneirinhos”, OIA¸ 1473)

Cecília Meireles recria o choro de uma menina “pela borboleta/ que se foi embora”,

apresentando uma desolação que reelabora a percepção do mundo infantil:

Nem o céu azul é bonito, agora, pois a borboleta já se foi embora.

no 1º capítulo desta tese. Sobre a relação Heidegger coloca: "Só assim a relação sujeito-objeto chega a assumir seu caráter de 'relação', ou seja, de dis-posição em que tanto o sujeito como o objeto se absorvem em dis-ponibilidades. Isso não significa que a relação sujeito-objeto desaparece, mas, ao contrário, que somente agora atinge seu completo vigor já predeterminado pela com-posição. Ela se torna, então, uma dis-ponibilidade a ser dis-posta" In: HEIDEGGER, M. “Ciência e pensamento do sentido”. Emanuel Carneiro Leão (trad.) In: Ensaios e conferências. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 52. Já na referência, pela manutenção da coisidade da coisa, ocorre uma relação em primeira instância que afirma a diferença sem, no entanto, ver a diferença hierarquicamente, uma vez que a diferença tem seu fundo na coisidade. Assim, a referência do homem aos outros elementos da natureza deve ser entendida aqui como a manutenção da humanidade do homem em referência à “animalidade” do animal, à “plantidade” da planta etc. Nessa dinâmica de pensamento, desfaz-se o vício metafísico hierarquizante de sujeito e objeto para que se dê lugar à referência, isto é, ao diálogo poético do homem na Natureza com todos os seus elementos, na abrangência da phýsis. 19

Entende-se este relacionamento como referência (cf. nota 18). Quando “relação” assinalar uma hierarquia metafisicamente imposta, abarcará tão somente a noção de proposição a ser desenvolvida nas partes 1 e 2 do 1º capítulo.

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(“Figurinhas”, OIA¸ 1494).

Os versos de Ou isto ou aquilo também abordam ludicamente temas como a corrida

espacial dos anos 1950. Em “Para ir à Lua” se metaforizam o desejo de velocidade, a

transposição de limites e a ultrapassagem das barreiras da física:

Enquanto não têm foguetes para ir à Lua os meninos deslizam de patinete pelas calçadas da rua. (OIA, 1492)

A comunicação tentativa com animais em meio à solidão da velhice é tema de três

poemas do livro, merecendo destaque o divertido poema “A língua do nhem”, no qual

cachorro, gato e galinha “conversam” com uma senhora solitária, comunicando-se, em língua

inventada, fato que, para além da solidão, re-integra20 a “velhinha” à Natureza circundante:

Havia uma velhinha que andava aborrecida pois dava a sua vida por falar com alguém.

E estava sempre em casa a boa da velhinha, resmungando sozinha: nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem...

O gato que dormia no canto da cozinha escutando a velhinha principiou também

a miar nessa língua e se ela resmungava, o gatinho a acompanhava nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem...

.....................................................................

21

(OIA, 1498-9)

20

Doravante, serão grafadas algumas palavras com alguns de elementos morfológicos destacados para que se destaque tanto o seu valor etimológico, quanto seu vigor poético. Outras, no entanto, sem qualquer destaque de elementos morfológicos, serão apresentadas em itálico ou negrito para que se ressalte o seu sentido no contexto a que se referem. 21

Recortes em poemas serão sempre representados com uma linha pontilhada.

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Em Ou isto ou aquilo, as tensões comunicativas entre humanos e não humanos, são

recriadas no melancólico “A pombinha da mata”, que tomaremos como exemplo da

referência entre essas instâncias da Natureza e como exemplo da distância22, dada pela

impossibilidade de diálogo, dos “meninos” à “pombinha”:

A POMBINHA DA MATA Três meninos na mata ouviram uma pombinha gemer. “Eu acho que ela está com fome”, disse o primeiro, “e não tem nada para comer”. Três meninos na mata ouviram Uma pombinha carpir. “Eu acho que ela ficou presa”, disse o segundo, “e não sabe como fugir”. Três meninos na mata ouviram uma pombinha gemer. “Eu acho que ela está com saudade”, disse o terceiro, “e com certeza vai morrer”. (“A pombinha da mata”, OIA, 1496)

Podemos dar destaque à incerteza dos “três meninos” sobre o motivo de sofrimento

da “pombinha”, aguçada pelo insistente gemido percebido por meio da escuta atenta deles.

As crianças à dis-posição23 do acontecimento manifesto da Natureza, ensaiam, cada um a seu

22

A distância é a essência da propriedade. A incomunicabilidade entre homem e animal se dá por não ser nem o homem “pombinha”, nem a “pombinha” homem. Mas abre-se nesse abismo a possibilidade da “escuta”, como podemos ver no poema. 23

Sobre a dis-posição, Martin Heidegger em “A questão da técnica”, texto de abertura da coletânea Ensaios e conferências (2002) fala da referência do homem à phýsis num sentido distinto desse que vemos no poema. Na “dis-posição” elencada pela técnica moderna, há uma relação de exploração diversa de uma “dis-posição essencial” na qual homem e Natureza colocam-se em posição de mútua referência. Heidegger quer dizer que na modernidade, o homem teria inventado a técnica moderna com o intuito de tratar a terra como depósito dis-posto ao usufruto humano como sendo uma grande reserva de recursos à espera de reconhecimento e desenvolvimento. Mas o homem também participaria desse processo, pois “somente à medida que o homem foi desafiado a explorar as energias da natureza é que se pode dar e acontecer o desencobrimento da dis-posição. Se o homem é, porém desafiado e dis-posto não será, então, que mais originariamente do que a natureza, ele, o homem, pertence à disponibilidade?”. Interpretamos com essa pergunta feita pelo filósofo,

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modo, um discurso sobre o animal, movidos de curiosidade e/ou compaixão; o que podemos

perceber pela espécie de narrativa “confessional”, “em meio tom” do poema – um colorido

que é, segundo Leodegário Azevedo Filho24, predominante na poesia ceciliana.

A distância entre homem e animal se dá essencial e locativamente, e por ela se abre a

possibilidade de aproximação através dos sentidos, isto é, o que os aproxima é o som do

gemido da “pombinha”. Há uma dinâmica de tentativa de interpretação da dor alheia,

expressa pela forma verbal “Eu acho”, colocado, pela poeta, na boca de cada menino. No

poema como um todo, há um discurso de possibilidades.

O primeiro “menino” deduz que os motivos de dor da pombinha são “fome” e “não

ter nada para comer”, aproximando-se do animal pelo compartilhado instinto de

sobrevivência – algo que, na abrangência da phýsis, atinge e iguala os seres vivos. O segundo

“menino” deduz que a “pombinha está presa/ e não sabe como fugir”; o que abre a

possibilidade de imaginarmos uma armadilha preparada por algum caçador – outro

indicativo de interação entre homem e animal, desta vez pelo instinto predatório. O terceiro

“menino”, mais radical que os dois primeiros, diz que a “pombinha” sente “saudades”, e que

por isso “com certeza vai morrer”, entregue a um trágico destino anunciado por seu gemido.

A prosopopeia é um recurso de linguagem muito abundante na poesia de Cecília

Meireles. Animais, plantas, chuva, vento, montanha, terra, mar etc., sempre são coativos ao

homem. Ou isto ou aquilo é a poesia com olhos de criança, para quem o mundo é sempre

articulando-a ao poema, que tanto o homem – representado pelos “três meninos”, quanto “a pombinha”, estariam em mútua dis-posição. Na mesma esteira de pensamento, Manuel Antônio de Castro afirma: "A dis-posição, toda disposição, só pode ser disposição, não por um ato de consciência, mas porque radica originariamente no entre. É a intuição originária. Esta já traz em si o conhecer e a reflexão, mas muito mais" (1). CASTRO, Manuel Antônio de. "Interdisciplinaridade poética: o 'entre'". In: Revista Tempo Brasileiro, nº 164. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2006, p. 11. Já Friedrich Nietzsche em Crepúsculo dos Ídolos (NIETZSCHE, F. Crepúsculo dos Ídolos. Paulo César Souza (trad.) São Paulo: Companhia das Letras, 2010) coloca o sentido de disposição como “natureza”, mas num sentido um tanto diverso deste, ao mencionar o “instinto” como uma disposição “antiartística” (ein spzifisches Antikünstlertum des Instinkts - “uma peculiar disposição antiartística do instinto”), isto é, esta “natureza” seria responsável, no entendimento moral que o filósofo alemão tanto critica, por “empobrecer, diluir, debilitar as coisas”. (Op.cit. 2010 p. 68) Vemos, no entanto, no caso específico do poema, o instinto se dá como um dos mais fortes elos sustentadores do amálgama homem-natureza, união, que, na visão da moral racionalizante seria responsável por desfazer, como Nietzsche ironicamente coloca, o estado artístico não instintivo que permite ao “ser humano fruir a si mesmo enquanto perfeição”. (Op. cit. p.68). 24

“Em todos os seus poemas, a essência profunda é atingida, num jogo de contrastes entre o sensível e o abstrato, e quase sempre em ritmo de meio-tom.” In: AZEVEDO FILHO, L. A. de. Poesia e estilo de Cecília Meireles. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1970, p. 37.

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surpreendente e amedrontador, é sempre descoberta da profundidade das cores e dos

movimentos. Sua canção “pousa sobre esses espetáculos infatigáveis” (“Epigrama” Nº 1, V,

13): a da “pombinha” que sente fome, que está presa ou tem saudade; o casamento

frustrado entre de “Uma flor quebrada” (OIA, 1516 ) com o “vento”; o choro das “espumas

da maré cheia” motivado por saudades dos peixes que do mar foram pescados (“Pescaria”,

OIA,1466); a convergência de sonho e realidade numa “fronha de linho” que funde “flor”,

“lenha”, “passarinho”, “rebanho” e “montanha” no sono do homem (“O sonho e a fronha”,

OIA, 1947).

Não só em Ou isto ou aquilo, mas, em sua obra como um todo, Cecília Meireles

apresenta-nos o homem irmanado aos outros elementos da Natureza. Em carta a Armando

Cortes-Rodrigues, ela diz:

se (você) pudesse voar até aqui, com asas de qualquer bicho, mesmo dos papagaios da Virgínia Wolf, e entrasse de repente nessa sala, seria muito lindo, e eu faria como acabo de fazer com uma borboleta que encontrei no jardim: peguei-a, coloquei-a na palma da mão, e fiquei olhando para ela, como se eu e ela fôssemos da mesma família. (Já lhe contei que outro dia matei uma sem querer? Hoje lhe mando a elegia que escrevi sobre ela, e é uma dor sempre dentro de mim até agora

– e para sempre – como a da ‘Pavane’ de Ravel).25

Assim, o constante diálogo tentativo não se dá apenas com animais, mas, à maneira

das cantigas medievais portuguesas26, se direciona também às “árvores mais altas”:

Rama das minhas árvores mais altas, deixa ir a flor! que o tempo, ao desprendê-la, roda-a no molde de noites e albas onde gira e suspira cada estrela. (“Renúncia”, V, 58)

Num modo de interlocução que se dá, não raro, por meio da argumentação

persuasiva, o homem enseja um discurso:

Falo-te, por saber o que é perder-se. Conheço o coração da primavera, e o dom secreto do seu sangue verde, que num breve perfume existe e espera. (“Renúncia”, V, 58)

25

Carta a Armando Côrtes-Rodrigues, 14 de julho de 1946 in: MEIRELES, C. Op. cit. 1998, p.25. 26

O rei D. Dinis escreveu um dos versos mais conhecidos da tradição literária portuguesa: “Ai, flores, ai flores do verde pino/ se sabedes novas do meu amigo”, disponível em http://www.agal-gz.org/modules.php?name=Biblio&rub=mostra_libro&id_livre=32.

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29

O ensaio do diálogo é, em geral, um monólogo; é fala que prescinde do silêncio.

Ainda que na poesia de Cecília Meireles se personifiquem plantas e animais, eles não imitam

os dons humanos, mas se amalgamam ao homem, participando de uma mesma dinâmica

existencial. Cecília Meireles não cria, em sua poética, fábulas ou realismo maravilhoso. A

prosopopéia que aproxima humanos de não humanos é, na verdade, a poética de uma

postura – a postura do “entre”. O “entre” é uma posição.

Pensando brevemente a posição, temos que, na Natureza, homens e outros seres não

estão, como quer a tradição ocidental de pensamento dualista, confrontados, mas tomam

posição, em essencial referência de uns aos outros. Ao que parece, só o homem reflete, pela

linguagem, sobre essa referência. Toda posição é um sendo. Este “sendo”, inefável e

incoercível escapa ao dizer da certeza, servindo-nos, no apelo da poesia de Cecília Meireles,

como mote para o entendimento de uma poética da suspensa lacuna entre homem e animal.

Nós vivemos, neste sentido, o vazio, a abertura vazia do “entre”, a qual promove a dinâmica

fruição do ser em cada ente, em cada pedra, planta, animal e ser humano.

Assim, ao salientarmos as tensões do “entre” podemos nos ver:

(...) entre flor e nuvem, estrela e mar. (“Inscrição”, MA, 322)

E nos perguntar:

Por que havemos de ser unicamente humanos limitados em chorar?

(“Inscrição”, MA, 322)

Assim, meu interesse pela leitura da poesia de Cecília Meireles, que começou com o

espanto proporcionado pelo “Leilão de Jardim”, cresceu ao me deparar com os versos em

que a poeta narra a procura de um “Menino” por um “burrinho manso,/ que não corra nem

pule, / mas que saiba conversar”. Hoje percebo que nele a poética do “entre” encerra, para

além do discurso “unicamente humano”, uma convergência ontológica do animal com o

homem:

O MENINO AZUL

O menino quer um burrinho para passear.

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Um burrinho manso, que não corra nem pule, mas que saiba conversar.

O menino quer um burrinho que saiba dizer o nome dos rios, das montanhas, das flores, - de tudo o que aparecer. O menino quer um burrinho que saiba inventar histórias bonitas com pessoas e bichos e com barquinhos no mar. E os dois sairão pelo mundo que é como um jardim apenas mais largo e talvez mais comprido e que não tenha fim. (Quem souber de um burrinho desses, pode escrever para a Ruas das Casas, Número das Portas, ao Menino Azul que não sabe ler.)

(OIA, 1479-80)

Por muitos anos caro a mim, “O Menino Azul” me reservou agradável surpresa

durante o processo de pesquisa para esta tese, quando, sabendo do apreço que Cecília

Meireles nutria pelo hinduísmo27, descobri uma gravura (veja o anexo 1) em que Krishna, o

deus supremo da religião indiana, se manifesta como uma criança de pele azulada ao lado de

um pequeno bezerrinho, contemplando o mundo e os homens. Foi mesmo impossível não

fazer uma associação entre o poema e a figura. E, como para aquela cultura tudo na

Natureza, em todas as suas expressões, é sagrado, justifica-se assim o status quase divino

que o “burrinho” tem no poema, uma vez que ele sabe o nome das “montanhas, das flores,

de tudo que aparecer”, conta “histórias” que integrem “pessoas e bichos e barquinhos no

mar”, auxilia o “Menino” no processo de conhecimento do mundo, “que é como um jardim”.

Assim, para além do status “unicamente humano” (“Inscrição, MA, 322), o animal se torna

mestre poético do eterno menino “que não sabe ler”: o homem.

As crianças de Cecília Meireles se encontram protegidas “No princípio do mundo. No

27

Sobre o orientalismo em Cecília Meireles, uma boa referência é o recente estudo Oriente e Ocidente na Poesia de Cecília Meireles, de Ana Maria Lisboa de Mello e Francis Utéza, Porto Alegre, Libretos: 2006.

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reino da infância” (“Desenho leve”, RN, 676). Por um idílico contato com a perfeição do

“jardim” posto a leilão, a comunhão entre “Menino” e “burrinho”, a escuta do gemido da

“pombinha” podem, pelo engenho humano, amante da tecnocracia e do des-envolvimento

irresponsável, sofrer ameaças de extinção, sendo, por exemplo, postas em questão pela

poeta, que toma consciência do crescimento urbano do Rio de Janeiro das décadas de sua

vida: “Com estas florestas de arranha-céus, muita gente pensa que passarinho é coisa de

jardim zoológico”28. Pelo que percebemos que no mundo moderno relegaram-se os animais

a um jardim outro, artificializado.

É precisamente neste sentido que esta tese vale-se também da hipótese do que se lê

no título do artigo “A poesia ecológica de Cecília Meireles, Henriqueta Lisboa e Emily

Dickson”, de Márcio Almeida29, isto é, refletimos sobre os desdobramentos da Natureza no

homem, sobre a participação do ser humano na dinâmica da phýsis.

A poeta de “Motivo”, que apresenta como explicação para seu canto a existência do

instante – “Eu canto porque o instante existe” –, reflete não somente sobre a fugaz e perene

imposição do tempo sobre todas as coisas, mas parece, em toda sua obra, pensar e

questionar o lugar do homem no mundo, inquietantemente, perscrutando as tensões entre

todos os elementos da Natureza. E isso se dá pelas vias do estranhamento ou do

reconhecimento, da conservação ou da devastação. Assim, a presença do homem no

“Jardim” pode ser algo tenso e perturbador:

Essa é a glória do jardim com roxos queixumes de rolas, pios súbitos, gorjeios melancólicos, vôos de silêncio, música de chuva e de vento, débil queda de folhas secas, murmúrio de gota de água na umidade verde dos tanques.

28

Crônica “História de bem-te-vi” presente em MEIRELES, C. Escolha seu sonho. Rio de Janeiro: Record. 2002, p. 53. 29

Publicado em 6 de novembro de 1976, na revista Minas Gerais, no Suplemento Literário, sobre o qual Ana Maria Domingues Oliveira discorre: o autor “mostra que, apesar das diferentes formas que cada uma tem de abordar a natureza, suas poesias se consolidam à medida que ressaltam o princípio básico da ecologia: o homem permanecendo humano. Em relação a Cecília Meireles, especificamente, há várias considerações de Darcy Damasceno, nas quais, em resumo, afirma que a poeta revela a natureza física dos sentidos, assim, eterniza a beleza transitória desta.” In: OLIVEIRA, Ana Maria Domingues de. Estudo crítico da bibliografia de Cecília Meireles. São Paulo: Humanitas FFLCH/USP, 2001 p. 58.

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32

Quando um vulto humano se arrisca, fogem pássaros e borboletas; e a flor que se abre, e a folha morta, esperam, igualmente transidas, que, nas areias do caminho, se perca o vestígio de sua passagem.

(“O jardim”, MA, 568)

Por que o homem, que parece ter sido posto no mundo, segundo o fundo mítico do

Éden, para “cuidar” do “Jardim” passou a perturbá-lo, a ponto de a poesia de Cecília

Meireles, em uma leitura animista do mundo, falar da fuga de “pássaros e borboletas” e da

ansiedade da “flor” e da “folha morta” pelo rápido afastamento do vulto humano que se

arrisca?

Queremos questionar, junto à poesia ceciliana, o lugar do homem no “Jardim” – isto

é – no mundo, o lugar do mesmo homem que, quando criança divina encarnada em Krishna,

recebe instruções de um burrinho com a mesma humildade com que Cecília Meireles põe, à

disposição do cuidado alheio, um “jardim” em “leilão”. Assim, o homem, no pensamento

crítico da poesia ceciliana é, em contrapartida ao cuidado do “Jardim” – ecossistema perfeito

e integral, metáfora da vida – merecedor da morte por “fazer a guerra com as próprias

mãos”:

Nós merecemos a morte, porque somos humanos e a guerra é feita pelas nossas mãos, pela nossa cabeça embrulhada em séculos de sombra, por nosso sangue estranho e instável, pelas ordens que trazemos por dentro, e ficam sem explicação.

(“Lamento do oficial por seu cavalo morto”, MA, 540)

A poesia é o supremo exercício de pensamento projetado na recriação da realidade, é

uma triunfante metamorfose da linguagem, que a restitui ao seu estado primeiro, isto é,

reconduz a linguagem à Natureza, devolvendo-lhe o seu frescor e vigor originais30. Sempre

questionando o que está por vir, a poesia se motiva por “cantar o instante” e fazê-lo eterno

através do humano modo de sentir e habitar esta terra. Defendemos que é pelo poético que

o homem toma seu lugar e posição originários no mundo. Os versos cantados por Cecília

Meireles nos levam à vivência do ecológico, sendo este o fundamento sobre o qual o homem

está verdadeiramente assentado.

30

DUFREENNE, M. O poético. Reasylia Kroeff de Sousa e Luiz Arhur Nunes (trad.) Porto Alegre: Globo, 1969.

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33

Já que “poeticamente o homem habita esta terra”31, como diz o poeta alemão

Hölderlin, perguntamo-nos sobre a responsabilidade de o homem habitar este espaço que

lhe foi dado. Como pode o homem ameaçar o “Jardim” que lhe foi confiado, o toldo desses

céus sobre a terra – o “entre” em que está inserido? Se, de fato, “poeticamente o homem

habita esta terra”, em que se baseia “a guerra feita pelas nossas mãos,/ pela nossa cabeça

embrulhada em séculos de sombra”?

Assim, esta tese visa à escuta do pensamento poético, ao exercício da dinâmica de

criação, que se dá no abarcar de todos os entes na phýsis em suas múltiplas, imensuráveis

manifestações. Nas linhas seguintes escutarei a poeta Cecília Meireles, procurarando na sua

poesia a mensagem da “Reinvenção” (VM, 411) de um modo poético, ecológico de habitar

esta “casa” (oikia) em que todos estamos inseridos.

Nossas questões são: como a manifestação da phýsis, da linguagem humana em

poesia se dá plenamente como o modo humano de habitar a “casa” (oikia) pela “linguagem”

(logos)? Como a “ecologia”, conjugação dos termos gregos oikia e logos, formam o termo

que deve ser entendido para além do jargão ambiental a que foi reduzido? Cecília Meireles

canta o homem e a flor repousados em horizontal lugar no mundo – Terra que, “sem

guerras”, abriga nossas vidas e mortes:

Mais que a mão do amor é tépida a terra, que guarda sem guerras a caveira e a flor. (“Canção”, RN, 415)

A poesia de Cecília Meireles nos leva a repensarmos nosso lugar como humanos. Tal

como lemos no poema “Os homens gloriosos”, em que a escritora roga ao “Senhor da Vida”,

em tom de oração, por uma volta à consciência de que é um ser natural, que está

naturalmente integrado a tudo, nos lembramos de que, tendo sido feitos do “pó” e tendo o

“pó” como destino, é apenas na experiência da integração que podemos vivenciar o vigor

ecológico de nossa existência, “retrocedendo aos aléns de nós mesmos”:

Senhor da Vida, leva-me para longe! Quero retroceder aos aléns de mim mesma! Converter-me em animal tranquilo,

31

HÖLDERLIN, F. “No azul sereno....” Marcia de Sá Cavalcante Schuback (trad.) apud HEIDEGGER, M. Ensaios e conferências. Anexo. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 257.

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34

em planta incomunicável, em pedra sem respiração. Quebra-me no giro dos ventos e das águas! Reduze a pó o que fui! Reduze a pó minha memória! Reduze a pó a memória dos homens, escutada e vivida... (“Os homens gloriosos”, MA, 323)

Rogada ao “Senhor da Vida”, a “redução dos homens ao pó” se torna possível pela via

do retrocesso. Como voltar a esse estado de humildade um tanto estoico e nos livrarmos do

materialismo claudicante que nos afasta, cada vez mais, do “animal”, da “planta”, da “pedra”,

dos “ventos”, das “águas” e dos outros homens? Como questionar nosso lugar no mundo

sem de fato passarmos, como parecem passar os poetas, por uma espécie de revolução no

pensamento, sem que nos convençamos, de que o posicionamento do homem na Criação

não se dá hierarquicamente como constumamos pensar? Dada a devastação da Criação,

como efetuar um “retrocesso” para além de nós mesmos, para além do centro de apoio

residente na noção de humanidade a que nos agarramos?

Retroceder é, no pensamento poético, avançar. Na poesia de Cecília Meireles, o corpo

e a razão humanos são destituídos e reduzidos à forma breve e incontável do pó,

vivenciando-se, pelo desejo de ultrapassagem dos limites impostos pelo dualismo, uma

intensa, imensurável e constante metamorfose:

Se me contemplo, tantas me vejo, que não entendo quem sou, no tempo do pensamento. Vou desprendendo elos que tenho, alças enredos... E é tudo imenso.... ............................. Nem me lamento nem esmoreço: no meu silêncio há esforço e gênio e suave exemplo de mais silêncio. ................................

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35

Múltipla, venço este tormento do mundo eterno que em mim carrego: e, una, contemplo o jogo inquieto em que padeço E recupero o meu alento e assim vou sendo. (“Autorretrato”, MA, 457-8)

A poética lograda nesses “aléns de mim” parece nos mostrar que isso é possível

apenas sob a noção de que a Natureza é a ligação de tudo com tudo, num imenso conjunto

de forças chamadas pela escritora de “Senhor da Vida”, a quem se dirige questionando a

própria existência, sem, no entanto, obter dele respostas:

Assim compreendo o meu perfeito acabamento.

(“Autorretrato”, MA, 458)

Assim, pela liberdade em que a poesia coloca as palavras, nos percebemos unidos à

“Vida”, que se estenderia, levando o homem, em extraordinária transformação, à comunhão

com tudo, à transmutação do Ser em múltiplas formas (“assim vou sendo”), pelas vigências

múltiplas, elencadas nos poemas como movimentos e desenhos da “planta incomunicável”,

da “pedra sem respiração”, na redução do humano ao “pó” e da “memória dos homens

escutada e vivida” em “perfeito acabamento”.

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36

POESIA E ECOLOGIA

A preocupação com uma crítica literária não acastelada apenas nos meandros das

universidades e sociedades científicas, mas voltada para questões “pertinentes ao mundo de

hoje”, levou, nos anos 1970, o teórico William Rueckert a cunhar o termo “ecocrítica”, que

pensa a poesia como energia natural, comparada livremente a quaisquer forças da natureza

como a luz, o calor, o sol, a chuva, o vento, os animais etc., as inumeráveis formas de

interações energéticas presentes no universo:

“Um poema é a energia armazenada, uma turbulência formal, algo vivo, uma corrente contínua. Poemas fazem parte dos caminhos da energia que sustenta a vida. Poemas são equivalentes verbais do combustível fóssil (energia armazenada), mas eles são uma fonte de energia renovável, vindos daquelas matrizes gêmeas sempre gerativas, linguagem e imaginação”

32

Reparemos a observação do autor: “matrizes gêmeas sempre gerativas, linguagem e

imaginação”. Nela está contida a afirmação de que o poema assume o caráter de torrente

vital, que se produz por meio dos esforços humanos da linguagem e reelaboração da

realidade, isso porque, como sabemos, o ato criador exige uma tomada de liberdade ante a

“ditadura” da realidade. Neste sentido, pelo pensamento de Rueckert, está em questão nada

mais que a energia advinda do próprio ato de criar, isto é, a poiesis, a qual conforma os

recursos que a comunidade humana pode utilizar para conservar, criar, produzir,

transformando a realidade, tomando ciência de sua participação nas dinâmicas da Natureza,

sem tentar subjugá-la:

A ideia central, moderna do poeta, da literatura, da crítica literária é baseada no postulado de que seres humanos são capazes de criação genuína e de que a literatura é uma das leis desse princípio criativo. Levar a literatura à ecologia (...) é unir dois princípios de criatividade para que seres humanos ajam em concerto com o resto da biosfera, mas não necessariamente para o fim da saúde da biosfera. Esse tem sido sempre o problema. Algumas das nossas mais criativas e incríveis conquistas – em química e física – têm sido as mais destrutivas

33

32

A poem is stored energy, a formal turbulence, a living thing, a swirl in the flow. Poems are part of the energy pathways which sustain life. Poems are a verbal equivalent of fossil fuel (stored energy), but they are a renewable source of energy, coming, as they do, from those ever generative twin matrices, language and imagination RUECKERT, William. Literature and Ecology: an experiment in Ecocriticism. In: GLOTFELTY, Cheryll & FROMM, Harold, eds. The Ecocriticism reader – landmarks in literary ecology. Athens and London Univ. of Georgia Press, 1996, p. 108. (Trad. Inédita Marcela Leite Medina.). 33. The central, modern idea of the poet, of literature, and of literary critcism is based upon the postulate that

humans are capable of genuine creation and that literature is one of the enactments of this creative principle.

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37

O autor recomenda ainda que as pessoas que trabalham com crítica literária, ante

tantas correntes críticas existentes, constituintes de uma gama de possibilidades conceituais,

levem em consideração que a leitura de uma obra literária tenha sempre o caráter da

relevância, mas sem que se confunda a leitura de uma obra de arte poética com o trabalho

de uma diretriz partidária. William Ruercket mostra-se sensível à necessidade mesma de ver

a poética como postura de pensamento atual e permanente.

Gostaríamos de ressaltar o que diz Manuel Antônio de Castro, o qual repara que

devemos nos livrar dos mecanismos classificatórios das obras de arte, não as cercando em

categorias:

Será que pode haver ecologia que não seja poética ou poética que não seja ecologia? Então não há como separar poética e ecologia, e portanto, impossível tratá-las separadamente. Uma outra alternativa seria fazer da ecologia uma dimensão poética, falando para vocês de uma poética ecológica, onde a ecologia seria reduzida a uma possível poética entre outras poéticas. Neste horizonte classificatório, poder-se-ia falar em genética ecológica, literatura ecológica etc. Com isso a ecologia passaria a ser simplesmente uma qualidade, um acidente, uma dimensão aplicável a diferentes disciplinas. (...) Desta maneira a ecologia perde a sua densidade inaugural. A ecologia é uma questão que jamais pode ser reduzida a uma disciplina. Uma tal redução pode ser perigosa para a ecologia, para nós.”

34

Assim, nos colocando em posições e batalhas inúteis no estudo de literatura,

entupindo-nos de formalismos, neoformalismos, contextualismos, críticas biográficas,

históricas, textuais, míticas, arquetípicas, psicológicas, estruturalismos, fenomenologia etc,

estaremos nos desviando da ecologia como questão, da poesia como questão. Num contínuo

substituir de teorias e metodologias cada vez mais complexas que se esgotam com rapidez,

muito do estudo de literatura tem sido uma espécie de história das vaidades que acaba por

eclipsar o vigor poético da criação literária, em prol de teorizações que só desejam uma

espécie de convencimento argumentativo.

Um exemplo do procedimento classificatório é o que fez, recentemente, o autor Greg

Takin literature to ecology (...) joins two principles of creativity so that humans ar acting in concert with the resto f biosphere, but not necessarily to the ends of biospheric health. Some o four most amazing creative achievements – say in chemistry and physics – have been our most destructive.RUERCKET, W. Op. cit.1996, p. 119. (Trad. Inédita de Marcela Leite Medina). 34

CASTRO, M. A. Poético-ecologia. In: ----. (org). Arte: corpo, mundo, terra. Org. Rio de Janeiro: 7 letras, 2009, p.16-34.

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38

Garrard no livro Ecocrítica35; um estudo detalhado sobre a “postura crítica ecológica”,

explorando os modos como imaginamos e retratamos o relacionamento entre seres

humanos e meio ambiente. Ele define que uma ecocrítica literária visa a “rastrear as idéias e

representações ambientalistas”, para as abordar criticamente, questionando todos os viéses

político-culturais, desde o já conhecido discurso ecológico inflamado até o que chama de

“cornucopianismo”, isto é, o discurso encabeçado pelos capitalistas com vistas a desmentir

os movimentos ecológicos e defender a inesgotabilidade dos recursos naturais.

No livro, o autor aborda o que chama de tropos literários e culturais, ou seja, níveis

de discurso retórico, mais ou menos próximos de uma postura “ecológica”, apresentando-nos

um detalhado painel de obras das literaturas de língua inglesa que problematizam as

interações humanas no espaço. Garrard faz também um histórico do ambientalismo,

apontando tanto sua novidade e relevância como movimento social, político e filosófico

quanto o recente surgimento de diferentes abordagens, críticas ou não, da ecologia, a saber:

o cornucopianismo, a ecologia profunda, o ecofeminismo, a ecologia social ou

ecossocialismo e ecomarxismo e o que ele chama de “ecofilosofia heideggeriana”.

Numa perspectiva quase que unicamente ambientalista, o autor trata, em primeiro

lugar, da noção de desarmonia entre homem e meio-ambiente ao falar do tema “Poluição”

na literatura inglesa em meados dos anos 1960 e define o que seriam “problemas

ecológicos” retratados no discurso literário dos autores que aborda. Sua intenção no livro é

traçar um quadro bastante abrangente de obras que revelem as interações do homem com o

meio ambiente como resultado de inflexões culturais, sociais, políticas, filosóficas,

psicológicas. Buscando refletir a necessidade de interações entre homem e meio ambiente, o

crítico observa que a “natureza” tanto é algo construído culturamente como algo que

“existe”, como objeto, como forma distante do homem e como lugar de origem de nosso

discurso36.

Garrard faz um estudo que privilegia a busca de eixos temáticos nas obras,

classificando-os como:

a) “pastoral”, poética surgida na antiguidade clássica sendo relida sob o nome de

35

GARRARD, Greg. Ecocrítica. Vera Ribeiro (trad.) Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2006. 36

GARRARD, G. Op. cit. 2006, p. 23.

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“Arcadismo” ou “Neoclassicismo”, no século XVIII;

b) narrativas ou poéticas do “mundo natural”, as quais privilegiam a chamada “cor

local” em seus textos, voltando-se somente para uma recriação da paisagem e do

mundo visto como “universo local”;

c) do “apocalipse”, que se centra em narrativas escatológicas, alarmantes e muitas

vezes entremeadas de ficção científica;

d) da “habitação da terra”, textos que metaforizam os modos históricos de o

homem lidar com o planeta;

e) de “animais”, cujo tema é propriamente a vida dos animais, sua “ética” e dinâmica

no planeta;

f) de “futuros da terra”, textos nos quais, de maneira diversa da dos apocalípticos,

pensam, com cunho moral ou não, as consequências da presença do homem no

planeta nas próximas décadas e séculos.

Apesar de este levantamento de dados se mostrar muito rico para os estudiosos de

interações entre literatura, espaço e meio ambiente, o livro não faz referência à noção da

criação poética como advinda de uma energia vital, o que ao nosso ver, como temos dito,

limitaria a compreensão da poética, a qual está “além do estudo da natureza e de sua

preservação, do estudo dos ecossistemas e seu equilíbrio, que fazem da ecologia uma

disciplina”.37.

Maior que o homem, a ecologia estará sempre colocada diante de nós, como “a

questão das questões”. Como a Esfinge que inquiriu Édipo no caminho para Tebas, a ecologia

suscita a necessidade de posições, por parte do homem, imediatas e fundamentais,

perguntando-lhe, como Carlos Drummond de Andrade, “Trouxeste a chave?”38 As questões

surgidas da/na poesia levam o homem ao caminho do pensar, uma vez que seus dons no

mundo, sua posição sob os céus e sobre a terra, são construir, habitar e pensar, como nos diz

Heidegger, que afirma a urgente necessidade de pensarmos o agir do homem, em sua

essência39. O pensar da essência, ou a essência do pensar, não se dá como um exercício

37

CASTRO, M. A. Op. cit. 2009, p. 17 38

DRUMMOND, C. “Procura da poesia”. In: ----. A rosa do povo. Rio de Janeiro, São Paulo: Ed. Record, 2000, p. 13. 39

Cf. HEIDEGGER, M. Carta sobre o Humanismo. Ernildo Stein (trad.) In: -----. Marcas do Caminho. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 326-76.

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metafísico teleológico, o qual aponta para conceitos fechados dentro de sistemas ditos de

“pensamento”, condicionados à construção do repertório da racionalidade, da cultura com

vistas a destruir resquícios, no homem, do “primitivismo” da “natureza”. O pensar da

essência, ou a essência do pensar, não visa a separar “natureza e cultura” porque é seu

exercício mesmo a re-união.

Assim, se tomarmos a ecologia apenas como instrumento avaliativo de obras

literárias, podemos correr o risco de nos privarmos da experienciação do pensamento que

abarca o vigor da poiesis como fundamento de todo pensar; podemos abandonar, como

abandonou o Ocidente moderno, a noção de que o homem está enraizado na Terra.

Configurando a ecologia como “apenas uma postura política ou disciplinar”, esqueceremos o

cerne da poesia, que, em sua potência criadora de colocar sempre diante de nós múltiplas,

infinitas possibilidades de pensamento, bem como sempre recorrentes modos de agir, tem

participação nesse inefável ciclo da vida que chamamos, muito simplesmente, de “Natureza”,

ou ampla e misteriosamente, do que o pensamento grego chamou de phýsis. Nem a phýsis

nem sua ação pela poiesis pode ser classificado, pois que seu mistério, como sendo mistério,

não se acolhe totalmente, antes se resguarda, estando sempre sob véu de alethéia, gozando

da vigência do des-velamento... Do pensamento antigo, somos lembrados por Heráclito que

“a phýsis ama esconder-se”, bem como somos desafiados, pela inscrição no portão de Delfos,

ao “Conhece-te a ti mesmo”. Somos advertidos de que, em Tebas, Édipo pensou ter

decifrado o enigma cantado pela Esfinge e, perdendo-se na escuridão e na in-certeza, (se)

encontrou. Somos alertados de que, mais sob uma envolvente escuridão que sob qualquer

certeza de claridade, está o homem:

Falas, desejo e movimento – a que tremendo vago segredo ides, sem medo?! (“Autorretrato”, MA, 457)

Nesta dimensão, a poético-ecologia nos põe diante do que se nos impõe como

inefável e inaudito, diante do surgir incessante da phýsis, a poesia é a energia de ação do

homem na Natureza, é a essência de todo agir humano, é:

uma energia tão primordial e misteriosa que é mais fundamental e maior do que as

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quatro energias com que a física hoje trabalha. É uma energia tão excepcional e poderosa que não há teoria física que possa calculá-la, medi-la, classificá-la.

40

Diante da profusa destruição do pensamento e da consequente decadência do agir

humano neste mundo, cuja guarda e seguridade foram atribuídas aos poetas, mantenhamos,

poeticoecologicamente sob o véu destas questões, que nos servirão logo de entrada para

pensarmos o verso-título deste trabalho “A alma ao nível da terra”: Onde o Ser mora, senão

na linguagem? Com que o poeta trabalha senão com linguagem? Onde está o homem senão

na linguagem?

40

CASTRO, M. A. Op. cit. 2009, p. 17

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42

SEGUNDA PARTE

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43

INTRODUÇÃO

ESTA TESE: UMA LEITURA DO POEMA “AMÉM”

Nosso caminho nesta tese se dará primordialmente a partir da escuta atenta das

questões suscitadas pelo poema “Amém”, de Cecília Meireles, publicado nas últimas páginas

do livro Vaga Música em 1942, trabalhando sentidos de “Natureza” no Ocidente a partir de

seus versos, expostos a seguir:

AMÉM Hoje acabou-se-me a palavra e nenhuma lágrima vem Ai, se a vida se me acabara também! A profusão do mundo, imensa, tem tudo, tudo – e nada tem. Onde repousar a cabeça? No além? Fala-se com os homens, com os santos, consigo e com Deus... E ninguém entende o que se está contando e a quem... Mas terra e sol, luas e estrelas giram de tal maneira bem que a alma desanima de queixas. Amém. (VM, 271)

Dividiremos a tese em quatro capítulos que tratem, cada um à sua maneira, as

questões do poema, articulando a sua interpretação à leitura de outros escritos de Cecília

Meireles e ao pensamento de Martin Heidegger e Hannah Arendt, entre outros. A discussão

da tese em torno do “Amém” apontará, como veremos, para a escuta da voz poética de

Cecília Meireles, que preza pela dirimição dos conflitos existenciais do homem em sua

referência ao mundo.

No primeiro capítulo, daremos procedimento à leitura da 1ª estrofe do poema, que

coloca em questão o que parece ter sido dado ao homem pela phýsis como peculiaridade: a

linguagem.

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44

Pela noção de “acabamento41 da palavra”, presente nos versos desse quarteto, nos

encaminharemos à discussão sobre a noção ocidental da “verdade” tanto como a veritas

latina, que aponta para a adequatio, tensão entre sujeito e objeto, redução do mundo à

medida do homem, quanto, mais fundamentalmente, para a alethéia grega, cuja vigência,

como veremos, permanece atuante na linguagem humana quando/como poética.

Assim, nosso intuito, no 1º capítulo, é colocar em questão, junto à poesia de Cecília

Meireles, o lugar do homem no mundo como um ser de linguagem, isto é, questionar sua

habitação, sua morada, nos termos colocados pelo obscuro Heráclito: “a morada do homem,

o extraordinário”.42 Para tanto, faremos um breve histórico da palavra “amém”, que dá título

ao poema, procurando entender sua atribuição como “verdade”. Além disso, pela própria

discussão em torno da “verdade”, procuramos investigar o lugar da linguagem poética e o

lugar da linguagem reduzida à gramática, à comunicação e à informação, e as consequências,

para a Terra, do esquecimento da referência criativa do homem para com o mundo pela

linguagem e pelo pensamento. Neste sentido, nosso questionamento maior neste capítulo

será: como se acreditou que a alethéia da phýsis pode ser reduzida às adequações,

comunicações e tecnologias da palavra?

Verificaremos que a postura poética, na contramão de procedimentos redutores, vige

na dinâmica de des-encobrimento do sentido grego de “verdade” (alethéia), o qual é recriado

poeticamente por Cecília Meireles como a imagem da “noite” em sua obra.

No segundo capítulo, avançamos na exegese do poema e buscamos colocar em

evidência a questão “ecológica” cantada por Cecília Meireles na segunda estrofe de “Amém”.

Naqueles versos, experienciaremos a noção de mundo como finitude, numa espécie de

acirramento do problema do “acabamento da palavra” exposto na estrofe anterior. A

“profusão do mundo” e a falta de um “além” nos direcionarão, neste momento, às noções de

mundo no Ocidente e nos levarão a investigar as ideias em torno de phýsis, neste contexto,

percebendo a referência essencial do homem ao mundo.

Neste sentido, com a poesia de Cecília Meireles, buscaremos os modos de

41

Este termo será utilizado abundantemente em nosso texto, com o sentido de “fim, termo, limite”, conforme HOLANDA, Aurélio Buarque de. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa 2ª edição revista e ampliada Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1986, no qual ainda podemos encontrar as acepções: “morte”, “aniquilamento, ruína” bastante plausíveis à noção de “acabamento da palavra” aqui defendida. 42

HERÁCLITO. Fragmento 119. Emanuel Carneiro Leão & Sérgio Wrublewski. (trad). In: Os pensadores originários: Anaximandro. Parmenides, Heráclito. Bragança Paulista. Ed. Universitária São Francisco, 2005. p. 91.

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contemplação do mundo e, no seu dizer poético, a essência da ciência, a percepção da

condição do homem como um ser lançado na Terra. Além disso, a pergunta feita pela poeta:

“Onde repousar a cabeça?/ No além?”, no fechamento da 2ª estrofe, nos servirá como

ponto-chave para articulação com o problema geométrico insolúvel da “quadratura do

círculo”, emblema, para nós, do pensamento dualista e do desentendimento do homem com

a Terra, em afastamento da condição humana, como poderemos conferir com Hannah

Arendt.

No terceiro capítulo, voltamos nosso olhar para a 3ª estrofe do poema “Amém”, que

coloca em questão a tensão entre técnica e poiesis e as dimensões da referência do homem

à phýsis. A constatação de que a poeta, nestes versos, canta o desentendimento entre

“homens” e “deuses” nos levará a repensar em que base se fundamentam os conflitos do

homem no mundo. Percepções do espaço pelo homem serão revisitadas em diálogo com as

reflexões de Martin Heidegger sobre a essência da técnica e a técnica moderna. Em

Construir, habitar, pensar, o autor aponta a tomada de lugares entre céu e terra, mortais e

imortais como a constituição da quaternidade (Ring)43 ontológica da phýsis. A percepção da

integração entre todas as coisas na phýsis nos levará a poéticas imagens da ligação do

humano ao não humano, do divino ao terreno. Procuraremos, assim, perceber como Cecília

Meireles canta a quaternidade, a qual parece não ter sido suficientemente vivenciada pelo

43

As traduções de Ring, nos textos de Heidegger, apontam para o termo “quadratura”, (cf. “Construir, habitar, pensar” Márcia Sá Cavalcante Schuback (trad.) in Ensaios e Conferências. Petrópolis: Vozes, 2002 p. 125-143 e “A linguagem” Emanuel Carneiro Leão (trad.) in: A caminho da linguagem. Petrópolis: Vozes, 2002 pp. 7-26), mas preferi, por ora, substituí-lo pelo sinônimo “quaternidade”, pelo fato de este último não ferir a reflexão que, em outro momento, fizemos na interpretação desse mesmo poema no artigo: “De quadrados e círculos: uma leitura filosófica da poesia de Cecília Meireles, Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira”, publicado na revista Ensaios Filosóficos, disponível em http://www.ensaiosfilosoficos.com.br/Artigos/Osmar_Soares_da_Silva_Filho.pdf. (acesso em 20 de março de 2011.) Naquela ocasião, recorremos ao problema da geometria euclidiana “Quadratura do Círculo”, interpretando-o como emblema da relação entre homem e Natureza paramentada ainda pelo dualismo. Neste sentido, a “quadratura do círculo” era para nós símbolo de desarmonia e da quebra de relacionamento do homem (o “executor” da quadratura, das “linhas retas”, dos “enquadramentos”) com a natureza não humana (representada pela imagem poética do “circular”, do “redondo”, do “oval”, da “circunferência da Terra”, da “esfera”, etc.). Como o problema é insolúvel matematicamente, interpretamos a sua insolubilidade como metáfora da tentativa frustrada do homem de dominar a natureza “quadrando-a”, isto é, reduzindo-a à sua medida. Uma vez que queremos retomar esta discussão aqui, para que os termos não se confundam, utilizaremos nas citações diretas à tradução do texto de Heidegger a palavra “quadratura”, mas, nas nossas reflexões, o neologismo “quaternidade”. Esta discussão será retomada, mais profundamente, no 2º e 3º capítulos desta tese.

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homem ocidental, dada a crise habitacional, para não dizer ecológica, dos dias de hoje.

No último e conclusivo capítulo, referente à última estrofe, retomaremos os sentidos

poéticos da palavra “Amém”. O “Amém”, cantado por Cecília Meireles, revela posturas

recorrentes em seu pensamento: a alocação da “alma” humana “ao nível da terra”, a

ecopoética referência do homem a tudo na Natureza. Perceberemos como a poesia da

autora procura restaurar as raízes devastadas do homem, apontando o elemento humano

como principal responsável pelo Cuidado. Em atendimento ao nosso desejo de manter

abertos os caminhos do homem no “campo” do Cuidado (ideia de Martin Heidegger), este

capítulo substituirá o que seria uma CONCLUSÃO em uma tese. Assim, seremos guiados

pelos poemas cecilianos ao “Amém”, em retorno à condição de homens abertos às

possibilidades poéticas da phýsis.

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CAPÍTULO I

“AMÉM” OU EM TORNO DA “VERDADE”

“Tudo mentira! Mentira da lua na noite escura”44

Cecília Meireles

A leitura da primeira estrofe do poema “Amém” nos coloca diante da palavra como

questão:

AMÉM Hoje acabou-se-me a palavra, e nenhuma lágrima vem. Ai, se me acabara a vida também! ............................................................. (“Amém”, VM, 471)

Desde o título, se suspende uma palavra, rende-se o leitor a ela. A palavra “amém” tanto

se mostra no início quanto no fim do poema, do título ao desfecho. O que é este “Amém”

que se nos apresenta e parece tão crucial para a leitura da obra de Cecília Meireles,

pretendida nesta tese?

1.1. Questionando os “améns” ao “amém”

A pesquisa etimológica do termo “amém” nos direciona para sua origem hebreia e

para sua enorme abrangência cultural em vigor desde a Antiguidade; o que nos remete à

tradição judaico-cristã e à sua sobrevivência na formação do pensamento humano ocidental.

A palavra “amém” aponta, em primeira e mais comum interpretação, para um antigo

ato de fala45 com o qual se tem, comumente, dentre outros, os seguintes sentidos elencados:

44

“Reinvenção”, VM, 411. 45

A Teoria dos Atos de fala tem sua origem nos estudos dos filósofos da linguagem ingleses John Langshaw Austin (1911-1960) e John Searle (1932-) e mesmo por Jacques Derrida (1930-2004). Austin, a quem amplamente se atribui o pioneirismo do estudo, entende a linguagem como uma forma de ação, com a prerrogativa de que “todo dizer é um fazer”; com o livro How do to things with words o autor reflete sobre a possibilidade de não só a linguagem ter a função informativa e comunicacional, mas como uma forma de o homem agir sobre o outro e sobre o mundo circundante. Mais sobre esta teoria pode ser encontrado nos

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48

“assim seja”, “em verdade”; advindos, segundo alguns autores46, do verbo hebreu aman, que

significa “manter firme”, “segurar”; para outros47, a palavra advém do anagrama da frase

hebraica “Ani Maamin”, cuja tradução literal aponta para a frase em língua portuguesa: “Eu

acredito”.

Porém, o caminho até a essência da palavra, cujos primeiros registros na Bíblia

remontam à Torá48 (o livro das leis judaicas), é repleto de percalços que a própria língua

hebraica suscitou, pela eventual incomunicabilidade49 de algumas palavras, garantida por

uma forte tradição escrita que foi responsável por resguardar os mistérios e os pilares da fé

judaica, buscando mantê-la viva, eficaz na liturgia religiosa dos fiéis e do povo hebreu.

Uma análise possível seria a de que, no contexto religioso, a palavra, importada do

hebraico, com quase nenhuma alteração de uso, para o grego, e, posteriormente, para o

latim, serviu também à Igreja de Roma e, como “ato de fala” da liturgia, ensejou o rito de

concordância ou afirmação da fé, aparecendo abundantemente no Novo Testamento, todo

escrito em grego.

Alguns exemplos de acepção da palavra no contexto religioso dão conta do termo

“concordância” pela “fala” em inúmeros contextos elencados na Bíblia: tanto para dar

endosso a uma maldição, pois quando um sacerdote a direcionava a alguém, era necessário

dizer “amém”: “Que esta água que traz maldição, entre em teu corpo, inche a tua barriga e a

impeça de ter filhos. E a mulher dirá: ‘Amém! Assim seja’” (Números 5:22); como para louvar

seguintes artigos: “Teoria dos Atos de Fala” de Gustavo Adolfo Silva in http://www.filologia.org.br/viiifelin/41.htm acessado em 6 de março de 2011 e na bibliografia geral sobre o tema: AUSTIN, John. L. How to do things with words. New York: Oxford United Press, 1965 e SEARL, John R. Expression an meaning. Cambridge: Cambridge University Press, 1979. 46

Cf. CHAMPLIN, Ph.D. Russell Norman. Enciclopédia de Bíblia e filosofia. Ed. Hagnos (São Paulo) 2001, vol. 1 A-C. p. 134; vol. 6. V-Z p. 593. 47

Na tradição literária dos Maimonides, a frase Ani maamin faz parte de um poema de 13 linhas que é recitado nas orações matinais dos judeus. Mais sobre o assunto deve ser visto no endereço eletrônico: http://www.chabad.org/library/article_cdo/aid/332502/jewish/AniMaamin.htmhttp://www.chabad.org/library/article_cdo/aid/332502/jewish/Ani-Maamin.htm acesso em 2 de janeiro de 2012. 48

VAN SETERS, John. “The Pentateuc”. In: MCKENZIE, Steven L. & GRAHAM Matt Patrick. The Hebrew Bible today: an introduction to critical issues. Westminster John Knox Press. 1998.

49 Perdeu-se a noção, na história da língua hebraica, da real pronúncia de muitos termos, como o nome de

Deus, escrito apenas por consoantes pela tradição com a finalidade de resguardar a sacralidade da palavra. O Tetagrama Sagrado YHVH ou YHVW foi latinizado para Javé ou Iavé ou Jeová.

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49

a Javé: “Louvado seja o Senhor, o Deus de Israel, de eternidade a eternidade! Amém e

amém!” (Salmo 41:13).

O “Livro das Revelações” ou “Apocalipse de São João”, no seu último verso, como que

buscando dar endosso a tudo que foi escrito anteriormente, também utiliza a palavra, desta

vez na forma de bênção: “A graça de Jesus Cristo seja com todos. Amém” (Apocalipse de São

João 22:21).

Em se tratando de questões religiosas, digamos que a afirmatividade dos usos de

palavras como “amém” não é somente previsível como necessária – e não somente

necessária, mas constitutiva de toda modalidade discursiva religiosa, com a função de base

fundamental de uma prática. Assim, inúmeros exemplos de “amém” como afirmação da

“verdade” serão vistos na Bíblia e nos desdobramentos das interpretações de seu conteúdo

dito sagrado.

O próprio Jesus Cristo, pelo que podemos ler nos Evangelhos, teria proferido “amém”

em torno de 90 vezes no início de suas falas com a finalidade de introduzir parábolas,

aforismos, sermões, utilizando-a como recurso discursivo de retórica no contato com as

multidões com que lidava, bem como no encerramento de algumas de suas orações, como

podemos ver no episódio do “Pai nosso”.

“Em verdade”, ou “amém”, na fala do Cristo, servem às mais diversas

intencionalidades discursivas: para revelar a negação de seu discípulo Pedro – “Em verdade

vos digo, nesta noite mesmo, antes que o galo cante, três vezes me negarás” (Mateus 26:34)

e de seu discípulo Judas – “Em verdade vos digo: um de vós que come comigo me há de

entregar”. Ou discorrer sobre o modus vivendi do que ele chama de “Reino de Deus”: “Em

verdade vos digo: todo que não receber o Reino de Deus com a mentalidade de uma criança,

nele não entrará”; o que também inclui “perdão de pecados”: “Em verdade vos digo, todos

os pecados serão perdoados aos filhos dos homens, mesmos as suas blasfêmias”. Enfim, um

sem número de exemplos em que tal marcador discursivo “Em verdade, em verdade” ou

“Amém, Amém” é utilizado pela figura maior do Cristianismo pode ser aqui elencado,

segundo os textos neotestamentários, com vistas a estabelecer elos entre a palavra dita e o

que é dito por ela. Essa ligação, tão cara a uma tradição que sempre se viu ameaçada pela

grandiosidade pagã e secularizante do Império Romano, por exemplo, pareceu fluir, nos

primeiros momentos do movimento cristão, perfeitamente dos lábios do Cristo, com vistas a

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um certo “reforço da verdade”, verdade que se vê, segundo a própria tradição diz e divulga,

concentrada, no anagrama/ato de fala “amém”.

Mas essa mesma “verdade” talvez esteja mais escondida sob as bases da palavra na

história judaica, pois se especula50 que ela aponte, desde o seu fundo, para o Egito antigo,

representado na figura de um deus de seu panteão religioso, Amon. E é especificamente a

partir da tensão entre essa possibilidade de origem do termo e o uso corrente posterior a

essa “origem” que pretendemos brevemente discorrer.

Ainda que politeístas, os egípcios exaltaram o deus Amon, chamado-o de “O

Oculto”51, acima de todos os demais do seu panteão, dando-lhe atributos de Criador de

todos os seres.

Amon (ou Amen, como também é nomeado) foi venerado pelos egípcios como

aquele que se escondia sob um véu de mistério, apresentando-se como brisa ou vento,

inefável, impassível de cálculo, invisível, manifestando-se em toda a parte e de modo

imanente. Amon é tudo que é invisível e informe, é Oculto por ser o deus do ar, e como ar,

toca todas as coisas. Seu poder de ação é extremamente abrangente no panteão egípcio52:

seu culto se estabeleceu em Tebas, centro do Egito antigo, onde se tornou grande deus

daquela civilização.53

50

cf. artigo referente ao assunto em http://www.revistauniversomaconico.com.br/conhecimento/em-nome-do amen/ (acesso em 13 de março de 2011) , em http://www.gnosisonline.org/glossario-gnostico/, bem como em THE BOOK OF GODS, The Papirus of Ani, E. A. Wallis Budge trad, 1895. 51

Na introdução ao Book of Gods (Livro dos Mortos), E.A. Wallis Budge comenta a confusão entre monoteísmo e politeísmo no Egito: “Because, however, polytheism existed side by side with monotheism in Egypt, M. Maspero believes that the words "God One" do not mean "One God" in our sense of the words; and Mr. Renouf thinks that the "Egyptian nutar never became a proper name.” Whether polytheism grew from monotheism in Egypt, or monotheism from polytheism we will not venture to say, for the evidence of the pyramid texts shows that already in the Vth dynasty monotheism and polytheism were flourishing side by side. The opinion of Tiele is that the religion of Egypt was from the beginning polytheistic, but that it developed in two opposite directions: in the one direction gods were multiplied by the addition of local gods, and in the other the Egyptians drew nearer and nearer to monotheism.” (in: THE BOOK OF GODS, The Papirus of Ani. E. A. Wallis Budge (trad.), 1895) 52

Cf os estudos do egiptólogo John Wilson acerca do deus in Studies in ancient oriental civilization, The University of Chicago Press, Chicago Illinois, 1936. Outras fontes que advogam a relação discutida neste capítulo são: TSARIO, Michael. The Irish Origins of Civilization, Volume 1; WALKER, Barbara G. The Woman's Encyclopedia of Myths and Secrets 53

E. A. Bugde comenta: “Having by virtue of being the god of the conquerors obtained the position of head of the company of Egyptian gods, he received the attributes of the most ancient gods, and little by little he absorbed the epithets of them all. Thus Amen became Amen-Ra, and the glory of the old gods of Annu, or Heliopolis, was centred in him who was originally an obscure local god. The worship of Amen in Egypt was

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Nos primórdios de seu culto, Amon, inominável e misterioso, criador e caótico, não

gozou de representações iconográficas54; mais tarde, quando estabelecido seu culto em

furthered by the priests of the great college of Amen, which seems to have been established early in the XVIIIth dynasty by the kings who were his devout worshippers. The extract from a papyrus written for the princess Nesi-Khonsu, a member of the priesthood of Amen, is an example of the exalted language in which his votaries addressed him.” 54

"This is the sacred god, the lord of all the gods, Amen-Ra, the lord of the throne of the world, the prince of Apt, the sacred soul who came into being in the beginning, the great god who liveth by right and truth, the first ennead which gave birth unto the other two enneads, the being in whom every god existent, the One of One, the creator of the things which came into being when the earth took form in the beginning, whose births are hidden, whose forms are manifold, and whose growth cannot be known. The sacred Form, beloved, terrible and mighty in his two risings (?), the lord of space, the mighty one of the form of Khepera, who came into existence through Khepera, the lord of the form of Khepera; when he came into being nothing existed except himself. He shone upon the earth from primeval time [in the form of] the Disk, the prince of light and radiance. He giveth light and radiance. He giveth light unto all peoples. He saileth over heaven and never resteth, and on the morrow his vigour is stablished as before; having become old [today], he becometh young again tomorrow. He mastereth the bounds of eternity, he goeth roundabout heaven, and entereth into the Tuat to illumine the two lands which he hath created. When the divine (or mighty) God, moulded himself, the heavens and the earth were made by his conception.[1] He is the prince of princes, the mightiest of the mighty, he is greater than the gods, he is the young bull with sharp pointed horns, and he protecteth the world in his great name 'Eternity cometh with its power and bringing therewith the bounds (?) of everlastingness.' He is the firstborn god, the god who existed from the beginning, the governor of the world by reason of his strength, the terrible one of the two lion-gods,[2] the aged one, the form of Khepera which existeth in all the gods, the lion of fearsome glance, the governor terrible by reason of his two eyes, the lord who shooteth forth flame [therefrom] against his enemies. He is the primeval water which floweth forth in its season to make to live all that cometh forth upon his potter's wheel. [4] He is the disk of the Moon, the beauties whereof pervade heaven and earth, the untiring and beneficent king, whose will germinateth from rising tsetting, from whose divine eyes men and women come forth, and from whose mouth the gods do come, and [by whom] food and meat and drink are made and provided, and [by whom] the things which exist are created. He is the lord of time and he traverseth eternity; he is the aged one who reneweth his youth he hath multitudes of eyes and myriads of ears; his rays are the guides of millions of men he is the lord of life and giveth unto those who love him the whole earth, and they are under the protection of his face. When he goeth forth he worketh unopposed, and no man can make of none effect that which he hath done. His name is gracious, and the love of him is sweet; and at the dawn all people make supplication unto him through his mighty power and terrible strength, and every god lieth in fear of him. He is the young bull that destroyeth the wicked, and his strong arm fighteth against his foes. Through him did the earth come into being in the beginning. He is the Soul which shineth through his divine eyes, he is the Being endowed with power and the maker of all that hath come into being, and he ordered the worldand he cannot be known. He is the King who maketh kings to reign, and he directeth the world in his course; gods and goddesses bow down in adoration before his Soul by reason of the awful terror which belongeth unto him. He hath gone before and hath stablished all that cometh after him, and he made the universe in the beginning by his secret counsels. He is the Being who cannot be known, and he is more hidden than all the gods. He maketh the Disk to be his vicar, and he himself cannot be known, and he hideth himself from that which cometh forth from him. He is a bright flame of fire, mighty in splendors,he can be seen only in the form in which he showeth himself, and he can be gazed upon only when he manifesteth himself, and that which is in him cannot be understood. At break of day all peoples make supplication unto him, and when he riseth with hues of orange and saffron among the company of the gods he becometh the greatly desired one of every god. The god Nu appeareth with the breath of the north wind in this hidden god who maketh for untold millions of men the decrees which abide for ever; his decrees are gracious and well doing, and they fall not to the ground until they have fulfilled their purpose. He giveth long life and multiplieth the years of those who are favoured by him, he is the gracious protector of him whom he setteth in his heart, and he is the fashioner of eternity and everlastingness. He is the king of the North and of the South, Amen-Ra, king of the gods, the lord of heaven, and of earth and other waters and of the mountains, with whose coming into being the earth began its

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52

Tebas, passou a ser representado sob a forma de um homem barbado, com touca de plumas

na cabeça, com o pênis ereto (símbolo, portanto, de ampla fertilidade) e um cetro erguido na

mão direita em forma de látego.55 O deus também pôde ser representado como uma esfinge,

um carneiro ou um ganso – estes últimos seus animais sagrados.

Durante o auge do seu culto em Tebas, acabou por ser associado ao deus-sol Rá, o

que contribuiu para o hibridismo onomástico Amon-Rá ou Mon-Rá, como é mais comumente

referido. O período “solar” de Amon coincide com o de grandeza política e cultural daquela

província, centro do antigo Egito, o que se acredita que tenha ocorrido por volta da 17ª

dinastia (1550-1070 a. C) a mesma da famosa história de José do Egito, narrada no texto

bíblico por Moisés, na Torá. Esse período teve o seu ocaso por volta do século 663 a.C, com a

tomada do reino egípcio pela Assíria, sendo substituído o culto de Amon-Rá pelo de Osíris,

deus agrícola das províncias periféricas a Tebas. Acredita-se também que, por isso, pela

centralidade do deus e pela sua comum associação aos faraós, que os hebreus tenham

absorvido o termo e o utilizado em sua língua corrente, dada a efervescência, em 400 anos

de escravidão, do seu convívio com as práticas sócio-culturais egípcias.

Ora, se Amon se funde a Rá na esfera simbólica, será que o mesmo, de uma forma ou

de outra, não ocorreu com a palavra “amém”, aqui defendida, sucintamente, como advinda

do seu nome?

Assim, nos questionamos se o Amon ou Amen, que tinha a reverência dos egípcios

pelo seu caráter de mistério e obscuridade, caos e criatividade caótica, imanência e

abrangência de toque e responsabilidade56, passou em Tebas, pela fusão ao deus-sol Rá, a

ter, como caráter fundamental, a luminescência, a claridade, traço que auxiliaria não só o

estabelecimento definitivo de seu culto em todo Egito, desde a sua principal cidade, como o

ganho da simpatia dos hebreus - escravos não concordantes do ambiente pagão, em última

análise. A incorporação de um padrão teológico pagão por parte dos hebreus estaria aqui em

existence, the mightone, more princely than all the gods of the first company thereof." (in: MASPERO, Mémoires publiés par les Membres de la Mission Archéologique Française au Caire, t. i., p. 594 ff., and pll. 25-27. apud THE BOOK OF GODS, The Papirus of Ani, E. A. Wallis Budge (trad.) 1895) 55

Cf anexo 2 56

Vale lembrar que a convergência entre mistério, caos e criatividade encontra-se também ricamente presente na mitologia greco-romana, principalmente representada pelas narrativas de criação do universo por Khaos e Geia, isto é, por Céu, Uranos e por Gaia, a Terra.

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jogo. Não digo necessariamente a incorporação de um padrão politeísta57, haja vista o

caráter político centralizador de Tebas e do seu “quase único” deus nesse momento do Egito.

Por outro lado, mais do que uma simples vicissitude histórica, o que se torna para nós

uma questão, com tal possibilidade, é o poder da palavra e do seu uso naquilo que constitui

o homem como ser de linguagem e aquilo que executa o seu uso no universo da língua. Está

em jogo aqui a referência essencial do homem à linguagem; a linguagem, que, no dizer de

Martin Heidegger é “senhora do homem”58 mas, no conceito vulgar, muito aquém deste

lugar de senhorio do homem, se vê instrumentalizada, como, na percepção de Nietzsche,

podemos constatar como tendo sido “inventada apenas para o que é médio, mediano,

comunicável. O falante já se vulgariza com a linguagem”59. Mais tarde, no desenrolar do

texto, nos debruçaremos especificamente sobre esta questão.

Para se tornar, como sabemos, ato de fala importantíssimo no mundo judaico-cristão,

“amém” pôde ter trilhado um longo percurso: advindo da referência ao deus do mistério e

do caos, deus emblema e centro da realeza e da grandiosidade política do Império, torna-se

termo de uso corrente na comunicação social do Antigo Egito.

A nova manifestação “Amon-Rá”, tinha, dentre outras funções na liturgia daquela

religião, a responsabilidade de encorajar os faraós a conquistarem o mundo, tornando as

nações servas do Egito. Neste sentido, paramentado pela materialidade de Rá, por sua

luminosidade solar, acreditava-se que Amon também pudesse gerar o herdeiro na rainha,

dando ensejo a uma criação meio homem, meio divina, a qual seria o Faraó. Estaria aí uma

aproximação possível com a concepção divina de Cristo por um Deus que desce

espiritualmente sobre a matéria e a engravida? Seria esta mais uma evidência para um dos

nomes de Cristo ser “o Amém”? Ou apenas uma coincidência mítica?

É sabido que as divinas concepções são muito comuns nas narrativas mitológicas mais

antigas, reforçando a paradoxal relação entre um sentimento de orfandade e uma postura de

contiguidade e comparação dos homens para com os deuses. Orfandade porque parecem os

homens verem-se separados dos deuses pelo fato de os deuses mesmos serem a projeção

personificada de poderes, de capacidades que, em tese, os homens não possuiriam.

57

Cf. nota 52 58

HEIDEGGER, M. Op. cit. 2002, p. 126. 59

NIETZSCHE, F. Op. cit. p. 79 (grifo do autor)

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Contiguidade e comparação por serem os próprios deuses projeções da mente humana

sobre si mesma, autoconsideração com vistas à diminuição da solidão do homem no mundo

e atribuição de sentido à vida. Neste sentido, por exemplo, os gregos também identificaram

Amon-Rá com o seu grande Zeus, pai dos homens e dos deuses, responsável por um sem

número de divinas concepções, cujos frutos são de semideuses em jornadas heroicas a

deuses aproximados dos humanos como Dioniso.

Tendo “amém”, como palavra, tanto um fundo mítico antigo, quanto uma prática

religiosa que subsiste até hoje, interessa-nos saber como (e se) esta palavra “mágica”

imbuída de carga simbólica reúne em si o mistério de Amon, a realeza de Amon-Rá e a

afirmação de “verdade” e de “concordância” a que se atribuiu o termo nas práticas de

religiões como o judaísmo, o islamismo, o budismo e o cristianismo. Portanto, da ocultação

misteriosa de um deus que tomou o patamar central no panteão egípcio, emerge “amém”,

um termo que teve, ao longo dos séculos, sua pronúncia e relação com o contexto religioso,

mais ou menos mantidas.

Resta-nos saber também como, no poema, esse “amém” se comporta. É através das

implicações deste “amém” e dos versos sob sua tutela que queremos refletir, e buscar, de

início, a crucial palavra que falta à Cecília Meireles logo na primeira sentença do poema, que

diz: “Hoje acabou-se-me a palavra”.

1.2. A linguagem como instrumento ou a instrumentalização da verdade

No poema, centro de nossas atenções, tem-se como queixa, já no primeiro verso, o

“acabamento da palavra”. O limite do homem na Terra é a linguagem. Mas o homem, sem se

ver limitado pela linguagem, limitou a Terra e a linguagem. Instrumentalizou-a, tornou-a um

meio de acesso à Terra e à “verdade”– talvez por achar que nunca esteve apenas sobre a

Terra e, por isso, ser necessário ultrapassá-la: “O esvaziamento da linguagem, que prolifera

rápido e por toda parte, não corrói apenas a responsabilidade estética e moral, vigente em

todo emprego da linguagem. Provém de uma ameaça à Essência do homem”, diz Heidegger

na Carta sobre o Humanismo60. Tornando “amém” um ato de fala sobre a “verdade”, o

homem teria instrumentalizado a palavra, a verdade, seus atos, suas falas. Tal

instrumentalização se deu e se dá de muitos modos. O uso da palavra com vistas à

60

HEIDEGGER, M. Op cit. 2002, p. 32.

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comunicação rápida e eficaz facilitou as práticas exigidas pela vida ordinária, mas deixou de

prescindir de um exercício crucial ao homem: o pensamento. Como nos diz em um poema

Cecília Meireles:

Benevolência da utilidade; glória do prático. Derrota súbita da poesia... (“U.S.A., 1940”, PV, 1351)

Neste sentido, poderíamos dizer que o escolhido fragmento do poema “U.S.A., 1940”,

ao abordar a atuação do homem na referida data, que marca a troca da poesia pelo “prático”

e pela “benevolência da utilidade”, também alerta para o esgotamento da poesia, já que

“quando o pensamento, saindo do seu elemento, chega ao fim, compensa essa perda,

valorizando-se como techné, isto é, atividade acadêmica e, posteriormente, vida cultural”61.

Assim, os versos ressonariam, já tão distantes do Egito, o fim iminente dos sentidos

misteriosos da antiga palavra mágica “amém”, como se reclamasse “Hoje acabou-se-me o

Amém” em benefício da utilidade do “amém”, em benefício do usufruto político da fala com

vistas à instauração de uma verdade instrumentalizada, manipulada e manipulável? Como se

dá o que Cecília Meireles chama de “derrota súbita” da poesia? Como esta derrota também é

a derrota do mistério?

Como instrumento, os produtos do imaginário podem suscitar a criação de ídolos, de

materializações do mistério, de uniformização do Uno, e o que antes era Oculto e inefável

passa a uma posição inferior na pressuposta hierarquia entre o “Oculto” e o “Solar”

reforçada pela vantagem que a luminosidade goza sobre a escuridão. Em apreciação aos

mitos gregos antigos, Junito de Souza Brandão afirma que o mesmo teria ocorrido na Grécia,

em que a cosmogonia narra a vitória da luz sobre as trevas. Tal vitória não só remonta à

questão da luminosidade, mas aponta para o afastamento gradativo do homem antigo da

chamada desestabilização do Caos; o que se pode entender também como uma questão

política, inerente aos conflitos naquelas sociedades primitivas. É o que percebemos no

louvor da dike (justiça, ordem), filha de Zeus, por sobre o repúdio ao reino da hybris

(violência, caos). Com o advento da chamada ordem do mundo, pautada em leis que se vão

61

HEIDEGGER, M. Op. cit. 2002. p. 30

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instalar na polis grega, o mundo helênico abandonou de vez os resquícios de sua religião

primitiva, ctônia, eivada de narrativas míticas e exultantes do mistério, pela plasticidade da

religião regrada, afinada com a arte e cultura palacianas. Senão vejamos:

Não se trata apenas, como afirma categoricamente Pettazzoni, de "uma insurreição contra formas tradicionais, em nome de um princípio novo promulgado por uma palavra de revelação", mas, sobretudo, da vitória da luz sobre as trevas. Pode-se, isto sim, afirmar que a vitória coube a uma religião mais plástica e mais bela, mas bem menos profunda que a anterior, ligada a potências essencialmente ctônias. Se em Homero e depois em Hesíodo houve nítida vitória do patriarcado sobre o matriarcado, a religião da época clássica buscará um consenso, um equilíbrio entre os dois princípios. O que Hesíodo deseja ressaltar e isto é óbvio, é a "progressão do divino", na busca da díke, da justiça. E na expressão abalizada de Lesky, na Teogonia "não se trata apenas de uma sucessão violenta de vários reis e soberanos dos céus, mas existe um caminho ascendente para a ordem estabelecida por Zeus, que é o triunfo da justiça".

62

Na escala egípcia desse problema, da substituição do caos pela ordem, teria sido

corrompida a “essência” de Amon por sua promoção à categoria “solar” da verdade, ao

fundir-se a Ra? O “acabamento” de Amon (ou sua transformação) reiterado na forma

hebraica (e posteriormente grega) “amém” ter-se-ia dado no nível em que o que era Oculto

passou a designar instrumentalmente o que é “verdadeiro”, dando o termo religioso sempre

status de realidade aos desejos humanos, no dizer de um “assim seja” e de um “em

verdade”, como reforço da fé e, no sentido oposto, como acabamento do mistério? Amon-Ra

seria a tentativa de dar à luz a essência imperceptível de “Amon”?

Assim, reclamaria Cecília Meireles do fim do “mistério”, da “verdade”, ou do “eu

creio”? É preciso que brevemente investiguemos algumas noções de verdade, dos

primórdios de nossa experiência histórica ocidental à nossa experiência atual.

Friedrich Nietzsche será o filósofo que mais rirá da verdade, desencontrando-a no

“verdadeiro mundo, inalcançável no momento, mas prometido para o sábio, o devoto, o

virtuoso (‘para o pecador que faz penitência’).”63; há uma verdade “indemonstrável,

impossível de ser prometida, mas já enquanto pensamento, um consolo, uma obrigação, um

imperativo”.64 A tentativa de alcance de uma verdade instrumental e objetiva, uma realidade

enfim, é para o filósofo alemão a base do erro da humanidade, talvez raiz da recriada queixa

do poema ceciliano em relação à verdade proferível por um “amém” inicial a tudo, por um

62

BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega. Petrópolis: Vozes, 1986, p. 112,113. 63

NIETZSCHE, F. Crepúsculo dos ídolos. Paulo Cézar Souza (trad.). São Paulo Companhia das Letras, 2010, p. 31. 64

NIETZSCHE, F. Op. cit. 2010, p. 31.

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“em verdade vos digo” de uma fé afirmada, ou por um deus tornado solar e central por ser o

mistério algo difícil de suportar.

O “acabamento” de Amon e o “acabamento” da palavra “amém”, em sua acepção,

não são o acabamento da “verdade”, mas a sua pretensa vitória sobre o mistério e,

conseguintemente, sobre o Caos, como nos pode servir a observação de Junito de Souza

Brandão sobre a Teogonia, de Hesíodo:

No plano estritamente religioso, o poema em apreço não é também um mero catálogo de deuses. Projetando o social no divino ou tentando modelar o social pelo divino, o poeta faz o deslocamento do Kháos (Caos), da rudis indigestaque moles, da massa informe e confusa, como diz Ovídio (Met. 1,7), para Zeus, isto é, das trevas para a luz. Trata-se, na realidade, consoante a tese brilhante de Bachofen, da substituição de um tipo de religião por outro, em que o Caos é suplantado por Zeus, o teratomorfismo é substituído pelo antropomorfismo; as trevas são vencidas pela luz; os deuses ctônios pelos olímpicos; o matriarcado pelo patriarcado; Éros, símbolo da promiscuidade sexual, é dominado pelo lógos, pela razão, pela ordem, pela lei. E se a Teogonia foi denominada a "gesta de Zeus" é exatamente porque o grande deus olímpico não se apresenta, e nem poderia fazê-lo, como criador, mas como conquistador e ordenador. Observando-se com atenção as hierogamias, quer dizer, os casamentos sagrados de Zeus, nota-se que o grande deus "antropomorfizado", após estabelecer com suas lutas e vitórias a justiça e a paz, tornou-se a síntese das qualidades divinas e humanas de um governante todo-poderoso, mas justo e civilizado.

65

Convém lembrar que os gregos viram em Amon-Ra a manifestação do seu Zeus, por

sua “capacidade civilizatória” ao engravidar as esposas dos faraós. À maneira de um Édipo

astuto que responde à Esfinge Cantadeira suas certezas sobre o homem, crê-se ser possível

decifrar o real, vencê-lo, nomeá-lo, medi-lo, torná-lo solar e verdadeiro. Acostumamo-nos

aos ensejos e à pró-atividade de uma verdade, da qual o homem extrai conceitos e fórmulas,

cálculos e medidas de adequação a modelos previamente estabelecidos, que “designem o

que constitui o verdadeiro enquanto verdadeiro”, no dizer de Martin Heidegger66.

Pela sentença do filósofo de Ser e Tempo, podemos depreender que o termo

“enquanto” é a residência do problema – aqui colocado como embate – e residência da

discussão em torno do acabamento do “amém”. Veremos que, enquanto palavra e somente

isso, “amém” se acaba, se dilui, desde a primeira estrofe do poema, desdobrando-se em

problemas que serão recriados e reiterados nas estrofes segunda e terceira da peça literária,

em que são destrinchadas, por assim dizer, as consequências do assenhoramento da

65

BRANDÃO, J. S. Op. cit. 1986, p. 161, 162. 66

HEIDEGGER, M. A essência da verdade. (trad) Emil Stein. In: ---. Marcas do caminho. Petrópolis, Vozes, 2008, p. 191.

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58

“verdade”. Senão vejamos:

A profusão do mundo, imensa, tem tudo, tudo – e nada tem. Onde repousar a cabeça? No além? Fala-se com os homens, com os santos, consigo e com Deus... E ninguém entende o que se está contando e a quem. (“Amém”, VM, 271)

“Enquanto” verdade, “amém” acerca-se do que o homem escolheu para sentir

comumente pelos outros, num esquecimento flagrante de um “Amém” que fica sempre

“Oculto”.

Heidegger discorre sobre a essência da verdade no Ocidente, situando a discussão

entre o conceito corrente da palavra na linguagem e no pensamento humano como sendo

aquilo que instrumentalmente designamos autêntico, isto é, fugido da aparência de

falsidade, equivalente entre a palavra e a coisa dita pela palavra. Assim, num primeiro

momento, “amém” atenderia a esse conceito de verdade, pois age, na instância de um ato

de fala, como concordância entre o que se diz e o desejo de realização do que se diz, ou

entre o foco da fé e a própria fé. Em suma, para o filósofo, tratar da essência da verdade não

é se preocupar com o fato de a verdade ser respectivamente uma verdade da experiência

prática da vida ou de um cálculo econômico, se é uma verdade técnica ou política, se

científica ou artística, se filosófica ou religiosa. A meditação sobre a essência da verdade

deve se afastar de tudo o que hoje se caracteriza como “verdade”, como “verdadeiro”,

propositalmente “verdadeiro”. Neste sentido é que “amém” como palavra assumiu o caráter

de “verdade” discursiva afastando-se da essência da verdade.

Dissemos por ora que “amém” acercou-se hoje da vigência de um ato de fala

utilizado, dentre outros contextos, no discurso religioso, participando, portanto, da vigência e

da ação de uma frase, de uma proposição, pelo que Heidegger, destrinchando o que diz o

senso comum acerca da “verdade”, coloca que, no sentido corrente: “Uma enunciação é

verdadeira, quando aquilo a que ela visa e diz está em conformidade com a coisa sobre a

qual se pronuncia. Também neste caso dizemos: está de acordo. O que, porém, está agora de

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acordo não é a coisa, mas a proposição”67. O que diz o autor de Ser e Tempo nos faz retomar

mais uma vez para o sentido tomado por “amém” no contexto religioso de “eu creio”, “estou

de acordo”, “em verdade” ou “é verdade”. Tal concordância se dá de duas maneiras: entre a

ideia da coisa e a coisa e, por outro lado, entre o que se diz da coisa e a coisa.

Ambas as formas de concordância dizem respeito à noção corrente de “verdade”, mas

não remetem ainda à essência da verdade, já que tratam apenas da veritas, a tradução latina

para a forma grega alethéia, que responde por sentenças como Veritas est adaequatio re in

intellectus (a verdade é a adequação da coisa com o conhecimento) ou Veritas est

adaequatio intectus ad rem (a verdade é a adequação do intelecto com a coisa).

Nestas fórmulas, reside não o pensamento de Kant, que viu na subjetividade a

essência do homem e uma conformação dos objetos ao conhecimento humano, mas a fé

cristã e a ideia teológica segundo a qual as coisas, em sua essência e existência só são na

medida em que, como criaturas singulares, correspondem à suprema ideia advinda de um

Deus, o intellectus divinus. Neste sentido, a corrente noção de verdade responde pela

conformidade das coisas a um modelo ideário superior, de um Deus que dá aos homens

capacidade de pensamento, lhes dá intellectus; o que, portanto, deve também estar em

conformidade com a suprema ideia. Heidegger coloca ainda que a noção de adequatio da

mente humana ao divino age como uma forma de “harmonia” das coisas criadas com o

Criador, mas nesta “ordem” subsiste também, desligada da ideia teológica de criação, a ideia

de “ordem do mundo”68, que planificaria, pela construção de uma “verdade”, todos os

objetos por meio de uma razão do mundo.

Assim, a noção comum de “verdade” continuaria salva sob a essência da “verdade

proposicional e lógica”, em que a correspondência exata entre a razão do mundo (a lógica) e

a “razão” da coisa dá conta da essência da “verdade”. Descansando sobre isso, o fundamento

da “verdade” no Ocidente admitiu a “não-verdade” de uma proposição como “não-

conformidade”, em que o que se enuncia sobre a coisa não corresponde à essência da coisa,

não está de acordo, não se acerca da coisa. Pois, se

tomarmos a redução da verdade proposicional à verdade da coisa por aquilo que ela significa de início, a saber, por uma explicação teológica, e se procurarmos manter inteiramente depurada a determinação filosófica da essência de qualquer intromissão da teologia, restringindo o conceito de verdade à verdade da

67

HEIDEGGER, M. Op. cit 2008, p. 191. 68

HEIDEGGER, M. Op.cit. 2008, p. 193.

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proposição, então nos encontraremos ao mesmo tempo, com uma tradição antiga do pensamento, ainda que não a mais antiga, segundo a qual a verdade consiste na concordância (homoiosis) de um enunciado (logos) com o seu objeto (pragma).

69

Ora, a história de “amém” fala da trajetória de uma palavra que se tornou símbolo da

“verdade proposicional”. Mesmo que “amém” seja visto como a concordância de um “assim

seja”, nos perguntamos junto a Heidegger, “como pode uma enunciação, mantendo sua

essência, adequar-se a algo diferente, a uma coisa”70? Isto é, como pôde o Ocidente deleitar-

se em sobrepor “amém” às coisas, determinando-as pelo simples enunciado, pelo simples

dizer, igualando, equivalendo, instaurando a insidiosa “relação” entre as palavras e as coisas.

Dizer “amém” às coisas e aos fatos, instaurar uma verdade litúrgica e funcional, é o dizer que

confirma um “comportamento”71; a saber, na vigência do “assim seja” ou da “verdade” da

proposição, o “amém” permite que o que é dito por ele se “com-porte” como algo que se

estabilize, se mantenha firme em manifestação estática, dure enquanto tal, erguendo a

ponte do “assim – como”, que se “refere ao re-presentar e ao que é re-presentado”72 .

No costume do pensamento ocidental, o “assim seja” de “amém” instaura a

manifestação do que está “presente” – e já ensaiamos reflexão sobre esse sentido aqui com

o questionamento acerca do caráter solar adquirido por Amon no auge do seu culto no Egito,

quando se assumiu a figura de Rá como “presença” divina do Oculto. Ao propor a abertura

da presença da coisa enquanto tal, “amém” como palavra in-siste na re-presentação da coisa,

isto é, do ente. E esse “comportamento”, no dizer de Heidegger, se instaura “no aberto de

um campo”, no interior do qual o ente se põe, se mostra, se apresenta, torna-se suscetível,

disposto naquilo que é e como é. Assim, o que está em questão, ao se confirmar a “coisa”

com a adequação, é a abertura que se dá ao ente. A isso Heidegger chama de

“comportamento” ou “de relação aberta” com o ente. Sua leitura, porém, coloca que não é a

coisa que se conforma à enunciação, mas a enunciação que se conforma à ordem da “coisa”;

abre-se a ela, conforma-se ao ente. Na obediência da “coisa” à palavra é que se dá a corrente

noção de “verdadeiro”. O autor A caminho da linguagem, inequivocamente, procura fazer

69

HEIDEGGER, M. op. cit. 2008, p.194 70

HEIDEGGER, M. op. cit. 2008, p.195 71

HEIDEGGER, M. op.cit. 2008, p. 196. Na 3ª edição de 1954, Heidegger coloca “comportamento” como “manter-se na clareira (in-sistente na clareira) da presentidade do que se apresenta”. 72

HEIDEGGER, M. op.cit. 2008, p. 196

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cair por terra a noção corrente de “verdade” somente atribuída ao enunciado, segundo a

qual é a obediência da “coisa” ao enunciado que se com-porta como “abertura”, e não o

contrário.

Neste sentido, nos serve prontamente, de entrada, a reflexão de Heidegger, por ser a

sentença “acabou-se-me a palavra” o mote do poema “Amém”, peça literária que por

excelência coloca a enunciação como problema. É preciso, com a experienciação da poesia,

refletir sobre o dizer humano e suas consequências. É preciso pensar o dizer o humano como

canto poético. É preciso que relembremos, ante o flagrante abandono da poesia, que é

possível cantar. Neste sentido, nossa reflexão manter-se-á aqui constantemente sob a égide

da problemática palavra “amém”.

Em que “amém” se aproxima ou se afasta de um dizer dito “verdadeiro” ou da

“essência da verdade”? Utilizemos ainda a fala heideggeriana e mais tarde daremos

prosseguimento à leitura da questão desta palavra articulada à estrofe 3ª do poema.

Como se dá essa experiência de estar a palavra disposta ao objeto re-presentado e

não o contrário? Por que caminhos se enveredaram a nossa crença, a nossa prática de que a

palavra tem a capacidade de dizer? Em que sentidos a palavra pode ainda ser uma medida

para a coisa enquanto tal? E que abismo há entre o “em verdade” e o “vos digo” promulgado

pelo “amém”?

Refletindo acerca da “essência da verdade”, Heidegger diz que não há, como já

vimos, possibilidade de se internalizar a verdade apenas na segurança da conformidade do

enunciado com a coisa. Neste sentido, “amém”, como sempre crido, parece ficar falho em

sua eficiência. Não sendo o enunciado quem diz, é o momento de nos perguntarmos de

onde advém não a sua capacidade de apenas dizer, mas a sua possibilidade, a sua permissão

em dizer o que diz. De onde viria esta permissão, senão da abertura?

Para comportar-se como verdade, é preciso, afirma o filósofo alemão, que a essência

da conformidade não esteja sob a tutela da medida apenas, da cartesiana hierarquização

entre forma e conteúdo, mas aponte para a liberdade. “A essência da verdade é a

liberdade”73 – ou a essência do enunciado, ou a essência da conformidade, ou a essência de

um “amém” – é a liberdade. A liberdade é a abertura. Mas de que liberdade estamos

falando? Da liberdade do homem? De o homem ser livre para arbitrar? Da escolha entre

73

HEIDEGGER, M. op. cit. 2008, p. 198.

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“certo” e “errado”? Da liberdade ante o poder de de-cisão?

O senso comum dirá que a liberdade é uma questão de subjetividade. A crença

romântica no sujeito dirá o mesmo. O projeto humanista também. Tudo para o homem e

pelo homem na sua subjetividade contraposta à objetividade do objeto, mas, ambas,

subjetividade e objetividade, dispostas à sedução do humano. Opondo-se à corrente visão de

ser o homem responsável por “dizer a verdade”, lembra Heidegger que, se ao homem

também se atribui a falsidade, a opinião e a não-verdade, como estaria em sua conta um

dizer sempre verdadeiro? Pois “a origem humana da não verdade, apenas confirma, por

oposição, que a essência da verdade ‘em si’ reina ‘acima’ do homem”74. E, ainda que um

“acima” metafísico se imponha ao homem, pergunta o autor: como pode a essência da

verdade só encontrar apoio na liberdade do homem? Como pode a irônica constatação de

Cecília Meireles sobre o acabamento da “verdade” de “amém” lhe servir, no fim das contas

para afirmação do mesmo “amém”, pela recriação da integração na Natureza em sua

poética?

Revisitemos os primeiros versos:

Hoje acabou-se-me a palavra, e nenhuma lágrima vem. Ai, se a vida se me acabara também! (“Amém”, VM, 471)

Ora, para que nos serve a discussão de que é a “verdade” em acabamento uma

questão, a princípio, de pensamento e de linguagem? Parece-me que é para acercarmo-nos

do poema em sua irônica constatação de que “o dizer” não dá conta da “vida”. E isso ocorre

porque os sentidos da vida excedem as possibilidades de explicá-la.

O fundamento do abismo entre o “assim seja” e o que será pelo “assim seja” do

“amém” chama-se liberdade. Tal liberdade não está no homem, em suas possibilidades de

julgamento. Não estando no homem, o com-põe, isto é, está com ele. Não dependendo mais

do homem, que pensa se valer do privilégio de dizer todas as coisas, a liberdade, ou a

“essência da verdade”, escancara, no poema, a constatação fúnebre: “que me a acabe a vida

já que a palavra me falta” – e como não há “amém” que dê conta de todas as coisas, temos,

74

HEIDEGGER, M. op. cit. 2008, p. 198

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63

por isso, um poema.

A essência da liberdade, na dicção de Heidegger, trata justamente da conexão

essencial que há entre a verdade como conformidade e a própria liberdade. A liberdade não

é uma escolha deliberada sobre o objeto. A liberdade não se dota de uma ditadura do dizer.

A liberdade é um cuidado para que o que se manifesta se manifeste. A liberdade se dá

quando o dizer se cala ou quando, mesmo dizendo, deixa-ser o que diz, como nos leva a

refletir a poeta no belíssimo Romanceiro da Inconfidência:

Liberdade, - essa palavra que o sonho humano alimenta que não há ninguém que explique. E ninguém que não entenda. (“Romance XXIV ou Da bandeira da Inconfidência”, RI, 810-3)

Nos termos de Heidegger, “A liberdade revela-se, então, como o que deixa-ser o

ente”75. Essa abertura é requerida por Cecília Meireles ao constatar a prisão do dizer, do ter

de dizer, do engessamento da palavra. Assim, que tipo de “vida” é essa que a poeta deseja

que se acabe juntamente com o acabar da palavra? A “vida” que se esgota com a “palavra”

remete ao projeto de “humanidade” que colocou sobre o dizer todo o peso da existência,

achando-se o homem senhor das coisas ao seu redor, nomeador, direcionador,

instrumentalizador das palavras.

Em outro poema, a autora de Vaga Música também reclama o desgaste do dizer e

revela, na contraposição de uma experiência amorosa à intensidade de teorias sobre o

“mundo”, a atribuição do homem num mundo “muito pensado” com palavras “muito ditas”:

As palavras estão muito ditas e o mundo muito pensado. Fico ao teu lado. (“Interlúdio”, VM, 224)

Em sua trajetória em torno da ratio, em torno da razão claudicante que o obrigou a

dizer sem deixar-ser, o homem acabou por gerar um imenso repertório de palavras e

acreditou “pensar o mundo” por esse mesmo “palavreado”. Mas a luz do pensamento, o

caminho mesmo do pensamento, que se dá pelo modo extraordinário da linguagem não é

necessariamente um caminho de “palavras muito ditas” (“Interlúdio) ou esgotadas (como

vemos em “Amém”), mas um caminho de linguagem. E, como sabemos, a essência da

75

HEIDEGGER, M. op. cit. 2008, p. 200.

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liberdade está em não só a verdade conformar-se à coisa mostrando-se como a liberdade

que possibilita a abertura do ente para o ser. Na participação do homem na liberdade como

do ser-aí ele se vê sempre lançado linguagem sendo esta mesma a sua liberdade, pois:

Antes de falar, o homem terá que deixar-se apelar pelo Ser mesmo com o risco de, sob tal apelo, ter pouco ou ter raramente algo a dizer. Somente assim, se restituirá à palavra a preciosidade de sua Essência e ao homem, a habitação para morar na Verdade do Ser.

76

O que vemos na 1ª estrofe de “Amém” não é a rápida conclusão de que a palavra

acabou, mas a conclusão de que estamos diante de um problema humano de linguagem, isto

é, de que a palavra, como é correntemente usada, funciona mais como instrumento de

tortura do pensamento, ao servir ao “mundo muito pensado” e aos veículos de informação e

do know how, do que como condutora do homem, pairando na vigência de sua liberdade

com energia criadora, poética.

Em um poema excepcional, Cecília Meireles contrapõe, em poucos versos, a “Palavra”

que não se “acaba” no “humano discurso” nem se restringe a ele, mas, que, em sua mais

profunda e essencial acepção e instância, se opõe às “velhas falas e antigos assuntos”:

Espada entre flores, rochedo nas águas, assim firmes, duras, fiquem as palavras, as vossas palavras (…) No meio das águas, das pedras, das nuvens, verão as palavras: estrelas de chumbo, rochedos de chumbo. A cegueira da alma. O peso do mundo. Adeus, velhas falas e antigos assuntos! (“Palavras”, RN, 369)

Se, pelo fim da palavra, “acaba-se” a essência do homem, recriada pelo vocábulo

“vida” em “Amém”, para instaurar-se um projeto de humanidade, tão criticado por Nietzsche

76

HEIDEGGER, M. op. cit.2008, p. 34

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e Heidegger, resta-nos saber o que fica sob os escombros do homem. Resta-nos perguntar se

é por isso mesmo, e não por qualquer outro motivo, que nesta tese temos a tarefa de

escutar, dentre tantos, um poema, palavra restaurada “à preciosidade de sua Essência”.

No dizer de Heidegger, o “deixar-ser significa entregar-se ao ente”; o que não se trata

de uma entrega medidora do ente enquanto tal77, mas, como vimos, a abertura para a

“verdade” do ente como um desvelamento que o pensamento ocidental lançou a nós como

tà alethéia. Estamos diante, novamente, de um problema de linguagem.

A alethéia, traduzida tão rapidamente como “verdade” (veritas) desembocou no

trágico destino do erro que forçou a substituição da liberdade de deixar-ser pela formatação

da palavra. Distanciado do seu vigor, o mesmo se deu com o vocábulo “amém”, cuja acepção

de Oculto, do deus egípcio, pareceu abraçar os sentidos e usos políticos propostos pela

afirmação das certezas con-formadas ao dizer da liturgia.

Assim, se temos constatado um problema de linguagem, temos um poema. A poesia

não é a solução para os problemas da linguagem. Nada estará aqui como chave para as

questões. A poesia é apenas um cuidado com o dizer, uma postura fundamental que

questiona o conflito entre o homem e o seu dizer. E questionar é o que o homem menos tem

feito, e é por não (se) questionar que caiu, no projeto de construção de sua “ratio” sob os

escombros da palavra, pelo que Cecília Meireles recomenda:

As palavras estão muito ditas e o mundo muito pensado. Fico ao teu lado. Não me digas que há futuro nem passado. Deixa o presente – claro muro sem coisas escritas.

Deixa o presente. Não fales. Não expliques o presente, pois é tudo demasiado. Em águas de eternamente, o cometa dos meus males afunda, desarvorado. Fico ao teu lado. (“Interlúdio”, VM, 224)

77

“Ao ente como tal em sua totalidade, chamavam-no os gregos phýsis” HEIDEGGER, M. Introdução à metafísica. Emmanuel Carneiro Leão. (trad.) Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1987, p. 46.

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Os imperativos: “Não me digas”; “Não fales”; “Não expliques” são emblemáticos de

ouvidos cansados de excessivo falatório, nomeações, projetos, teorias, prazos, discursos... O

“Interlúdio” de Cecília Meireles requer silêncio ante a barulhenta produção das palavras

“muito ditas” sobre um mundo “muito pensado”. Sua súplica é, aqui, por “abertura” dentre

um vasto campo de sentidos desgastados pela explicação. Assim, “não explicar”, neste

poema, toma o mesmo sentido do “deixar-ser” da linguagem libertadora, aquele que se

move na conformidade da verdade ao ente, como temos conferido pelo pensamento de

Heidegger. Qualquer sentença explicativa, conformando-se à sedutora “verdade” da

adequatio, afasta-se da vigência da alethéia, que se comporta como desvelamento velado. O

“presente”, que não pode ser explicado, é “claro muro sem coisas escritas”.

A recomendação do poema – e é por isso que estamos estudando poesia – é uma

recomendação sobre a linguagem. Tanto “Amém” quanto “Interlúdio” nos leva à reflexão por

colocarem em questão o caminho do homem em torno do abandono e esquecimento da

alethéia.

A liberdade da entrega do ente em sua entidade total é uma entrega ao abandono do

ente ao Ser. Neste “deixar-ser” reside o “aí” do homem e o dizer o ente desloca-se desse “aí”,

não localizável para um dizer explicativo. Há, no entanto, outro dizer possível. Esse dizer, ou

deixar-ser, é o dizer que está sob o obscuro e revelador véu da alethéia. Só no deixar-ser o

homem pode fruir sua ek-sistência78 e seu estar presente no mundo e, somente assim, o

mundo se mundifica na vivência do homem.

Deixando-ser o ente em sua abertura, o homem volta-se para o caminho mais

acertado num retorno à consciência do esquecimento, do apagamento e da entrega. Quem

se encobre nisso? O homem? Como se encobre? Encobre-se, participando da liberdade

fundamental do deixar-ser entregue à lethe (“esquecimento”, composto interno da tà

alethéia). Mas, em que consiste este encobrimento?

78

Sobre o termo ek-sistência, nos serve o comentário de Angélica Soares: “Na dinâmica de desocultamento, , o homem faz-se passagem obrigatória na medida em que o ‘o homem é, enquanto ec-siste’. Em outras palavras, na medida em que o existente humano se estrutura como Da-sein(...), o próprio sentido sentido do existir (...), longe do simples cotidiano relacionamento funcional com o circundante, se impõe como o ato de pensar e dizer o mistério do Ser, que ao retrair-se promove a iluminação e todo ente em seu ser, isto é, em seu modo de ser. Ek-sistir é, portanto, o libertar-se do homem, implícito no prefixo ‘ek’ – que diz do irromper, do lançar-se para fora das relações do uso, em busca da realização plena de sua humanidade.” In: SOARES, A. Ressonâncias veladas da lira: Álvares de Azevedo e o poema romântico-intimista. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989 p. 19-20.

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1.3. A essência da verdade ou a verdade da essência – em torno do encobrimento

Como vimos, a essência da verdade se dá pela liberdade e pela abertura. A ex-posição

do homem nessa vigência da verdade passa, por sua vez, por um ocultamento, um

encobrimento.

No fragmento 16 de Heráclito, temos a seguinte sentença:

“”79, isto é, “Como alguém poderia manter-se

encoberto face ao que nunca se deita?”. Desta sentença, que atravessou os séculos sem

perder seu vigor meditativo primordial, é que agora nos vamos valer para a reflexão.

A problemática palavra “amém”, como se tem visto, remete a outra ainda mais

complexa – a alethéia grega, esquecida pelos latinos dada sua rápida transposição para a

veritas, relação de adequação entre enunciado e enunciação. Chamado de “o obscuro”,

Heráclito, de cujos escritos conhecemos apenas alguns fragmentos, teve tanto sua imagem

como suas palavras eclipsadas pela tradição. Heidegger diz que mesmo sendo Heráclito “o

obscuro”, ele permanece claro, iluminado, por seu pensamento ser em si mesmo iluminador,

esclarecedor, sustentando e fazendo perdurar à medida que ilumina o que ilumina80.

Friedrich Nietzsche expõe sua repulsa em Crepúsculo dos Ídolos à “razão dos grandes

sábios”, encarnada principalmente, segundo seu julgamento, na figura de Sócrates, mas

reverencia Heráclito, salvando-o do “resto dos filósofos”, visto que o pensador de Éfeso não

“rejeitava o testemunho dos sentidos porque mostravam a multiplicidade e mudança, ele o

rejeitou porque mostravam coisas como se elas tivessem duração e unidade”. A rápida

menção de Nietzsche a Heráclito no aforismo 2º da 3ª parte do livro demonstra apreço não

pela rejeição do efésio aos sentidos, mas por sua descrença na razão, por sua constatação de

que “o ser é uma ficção vazia”81-82. Tal ficção é a mesma que eiva, segundo Nietzsche, o

pensamento ocidental de uma espécie de ódio à noção do “vir-a-ser”. Por isso, se prefere

manejar “conceitos-múmias”, pela crença irrefutável e desesperada no ser imutável, pois

79

HEIDEGGER, M. Aletheia (Heráclito, fragmento 16). In: ----. Op.cit. 2002. p. 227-249. 80

HEIDEGGER, M. Op. cit. 2002. p. 227-249. 81

NIETZSCHE, F. Op. cit. 2010. p 26. 82

A noção de ser em Nietzsche não é a mesma da qual se vale Heidegger. A idéia de “ficção vazia” dá conta do egipcismo, da estaticidade, da petrificação do devir que o filósofo reconhece na história do pensamento ocidental e a que Heidegger também se vale ao, constantemente, referir-se à mesma histórica como a do “esquecimento do esquecimento do ser” (cf. Carta sobre o Humanismo).

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para o pensamento ocidental “O que é não se torna, o que se torna não é”83. Essa mesma

mumificação do real rapidamente permitiu à filosofia a escolha pela verdade como

adequação; como vimos, amparados por Heidegger, na seção anterior. E isso levou ao

abandono da dicção e das imagens de pensadores originários como Heráclito.

Martin Heidegger, na conferência Alethéia (Heráclito, fragmento 16) diz do efésio que

o iluminar do seu pensamento é uma “clareira”. O que é a clareira senão uma abertura na

floresta? É a clareira o extremo retraimento da floresta, sua recusa por ser inteiramente

escondida, a revelação, livre, do que estava oculto? Em que medida tal iluminação revela “de

verdade” o que estava “oculto”, estabelecendo-se como “desocultar”?84 É o “desocultar” um

apagamento ou, inversamente, uma iluminação? A questão imbuída do espanto heraclítico

no Fragmento 16 é, para Heidegger, mais do que já foi dito sobre ela; a saber: a noção de

des-encobrimento ligada por Clemente de Alexandria à de inequívoca revelação divina, de

um Deus onipresente, iluminador de tudo e todos da fé cristã. O equívoco da interpretação

teológica, a qual se vale do velho embate entre luz e trevas, escuridão do pecado e

clemência divina, se assenta justamente sobre a não percepção, dado o esforço teologizante

do autor do Pedaigogos. Heráclito parece tratar mais do “manter-se encoberto” do que

necessariamente da “luz” contra a qual se se encobre. Heidegger percebe que o efésio se

interessa, no seu espanto questionador, pelo “nunca declinar”.

Por ser uma questão, uma pergunta, o Fragmento 16 não goza de qualquer resposta

que acalme os ânimos do saber (os quais, mormente, foram interpretados e experimentados

como ter pela nossa tradição de pensamento). Uma pergunta, um espanto, eis o mote do

pensamento heraclítico neste fragmento, e, consequentemente o motivo do nosso, via

poesia de Cecília Meireles.

Em que consiste o “manter-se encoberto”, que em grego aponta para a palavra última

do fragmento (lathoi)? Heidegger recorre, movimentado por essa pergunta, por essa

palavra, ao episódio em que Homero narra o choro de Ulisses na Odisseia (canto VIII, verso

83 e seguintes) e nele encontra o verbo grego elanthane,o qual aparece da seguinte

maneira, na tradução de Voss: “para todos os outros convidados, ele encobriu suas lágrimas”,

associando o trecho “ele encobriu” à locução “manteve-se encoberto”. Tal constatação, para

83

NIETZSCHE, F. Op. cit. 2010, p. 25. 84

HEIDEGGER, M. Op. cit. 2002, p. 228.

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o filósofo alemão, remonta à noção grega de vida, dado o lema, igualmente grego, dos

epicuristas “” (lathe biosas), isto é, “viva no encobrimento”, a vida do homem

vigora enquanto encoberta, enquanto vigora:

O traço fundamental da vigência como tal consiste em manter-se encoberto e manter-se desencoberto. Não é necessário fazer primeiro uma etimologia

aparentemente insustentada da palavra para se experienciar que, por toda parte, a vigência do que é vigente só vem à linguagem no brilho, no anúncio, no pro-por-se, no surgir, no pro-duzir, no aspecto.

85

Acrescentaria, ainda, ao excerto de Heidegger, que tal vigência se dá, por inteiro, na

entidade do ente, no modo de aparecimento do Ser do ente, no deixar-ser o ente ser.

Constantando que Ulisses, pela pena de Homero, não chora encobrindo-se, mas mantém-se

encoberto enquanto chora, Heidegger desencobre uma vigência, um estar à espera, que,

pode ser interpretada (transposta) como “vergonha” (aidos). A vergonha, por seu turno, é a

cobertura ao vigente, é a proximidade com o que vige, é aquilo que toma, por completo, o

que se encobre, iluminando-o. Mas como se dá esse “iluminar” da vergonha vivenciada por

Ulisses?

Nas lágrimas de Ulisses e na ausência de lágrimas recriada por Cecília Meireles, na 1ª

estrofe de “Amém” pela qual nos guiamos, há um sabor de vergonha, de encobrimento

irônico diante da falta da palavra. A que lhe serve tal reclamação, tal constatação de sua

impossibilidade de dizer diante do acabamento do dizer? Em que silêncio se debruçará, se se

debruçar sobre qualquer silêncio? Não há respostas. Apenas um “amém” esgotado pelo

afastamento profuso da alethéia.

A raiz dessa palavra grega é, em Heidegger, (lath-)Advinda de

(epilanthanesthai), em sua tradução correta, deve ser interpretada como

“esquecer”. Mas, segundo Heidegger, “esquecer”, que “é a coisa mais clara do mundo”

desembocou no seguinte destino: “O homem moderno esqueceu o que é esquecer.”86. Em

outro momento, ele diz que o problema do pensamento ocidental é “esquecer que o ser se

esquece”87. Por esquecer que o ser se esquece, o homem, dando as costas à essência do

esquecimento, crê poder dar entidade ao Ser, quando, na verdade, é o Ser quem se dá no

ente; nunca o contrário. Em apreciação aos gregos, à maneira de Nietzsche com Heráclito,

85

HEIDEGGER, M. Op. cit. 2002, p. 232 86

HEIDEGGER, M. Op. cit. 2002, p. 233. 87

HEIDEGGER, M. Op. cit. 2002, p. 232.

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Heidegger percebe na narrativa homérica do episódio do choro do herói, que “Os gregos

fizeram a experiência do esquecimento, (lethe), como destino de encobrimento.”88

Se o contrário do que a lógica ocidental se acostumou a pensar é o que impera nos

“entres” que eivam os fragmentos heraclíticos de silêncio e mistério, estamos diante não de

um repertório fácil de conceitos, mas de algo que nos impele a pensar com muito mais

cuidado e dizer com uma postura muito semelhante à que Cecília Meireles recomenda no já

aqui apreciado poema “Interlúdio”. O encobrimento ou o esquecimento como destino é uma

dinâmica que vige com simplicidade, mas não simplesmente. Heidegger propõe-se a

entender que a dinâmica do encobrimento de um se dá sempre em referência a algo que, de

outro modo, se desencobre89, porém o que se desencobre está, ao mesmo tempo,

encoberto; assim, algo que se encobre, nessa relação, não se encobre apenas para outra

coisa, mas para si mesmo. Em suma, tal dinâmica dá conta, em sua vigência, da

impossibilidade de que algo seja completamente tomado pela ciência do dizer e do saber; tal

destino está dominado pelo retraimento de tudo que vige. Tudo que vige se retrai.

O espanto de Heráclito no Fragmento 16 é interpretado por Heidegger como um

problema que toca na questão da “relação” entre aquele que se encobre e diante do que se

encobre o que se encobre. (to me dynon pote)isto é, “(a)o que nunca se

deita” é complemento à pergunta de pos an tis lathoi) “como alguém

poderia manter-se encoberto?” e coloca diante de nós o problema que consiste em pensar

“quem” está sendo encoberto e “o que” nunca declina. A pergunta do efésio, segundo

Heidegger, coloca o homem em questão, o pensa nesta referência “ao que nunca declina”,

não permitindo, como tão rapidamente o homem moderno ousa pensar, que se trate de uma

relação sujeito-objeto, na qual o homem dá conta tanto da própria subjetividade, vista por si

mesmo como objeto de análise e controle, como da objetividade do objeto. Tal pretensão

será inteiramente desarmada se, recomendados pelos dois filósofos (e pelos poetas),

pensarmos o homem não apenas numa relação, mas numa dinâmica de referência essencial

do homem “ao que nunca declina”

Mas o que é que nunca declina? – perguntam Heidegger e Heráclito. Tão sério como

responder a essa questão – a meu ver, sempre aberta –, é o advérbio de negação “nunca”, o

88

HEIDEGGER, M. Op. cit. 2002, p. 233. 89

HEIDEGGER, M. Op. cit. 2002, p. 234.

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mais dinâmico da sentença. Volta-se, então, o autor para a palavra (tó dynon), a

qual aponta para os sentidos de “afundar”, “mergulhar”, “cobrir com um véu”, “envolver”;

podendo-se também referir às noções “deitar-se o sol” e “ir em direção à noitinha”. Neste

sentido, Heidegger conclui que o declinar é como um entrar no encobrimento90.

Mas, como o declinar do início do fragmento (dynon) e (lathói)podem

dinamicamente dizer o mesmo? Como podem convergir para o mesmo sentido? Como o

“nunca declina” concorda com o “mantém-se encoberto” num mesmo movimento?

A saída interpretativa do autor de Ser e Tempo é a transformação do modo negativo a

que faz referência o advérbio “nunca” para o positivo “sempre”, do qual se apreende, em vez

de “o que nunca declina” o termo “o que sempre surge”. A expressão em língua grega para

tal sentença é (tó aei phyon), a qual não se encontra nos fragmentos do

pensador efésio, mas aponta para o fundamental sentido da phýsisÉ a phýsisquem nunca

se deita, nunca declina. E é enquanto ela exerce esse perene trabalho, que o homem se

mantém encoberto; por que não dizer lançado; por que não afirmar, como já afirmamos, se

mantém na liberdade de sua abertura?

O homem está na abertura quando vive em referência à phýsis, esta é a essência do

seu fundamento, é onde está verdadeiramente fundado, é na phýsis que se dá a dinâmica da

alethéia. Nela, Heidegger, amparado em Heráclito, encontra as duas pontas da expressão:

Se a expressão deve significar não é porque a referência à

haveria de nos esclarecer que é , mas sim o contrário: “o que nunca declina” nos dá a pensar que e em que medida se faz a experiência da

como o que sempre surge e nasce.91

Sua recomendação é para que o “nunca”, correta tradução de “”, seja

refletido não em uma acepção rápida de negatividade, mas no que indica de positivo, isto é:

o que nunca declina nunca o faz como antes fez, atribuindo ‘alguma coisa àquilo que entrou no âmbito de sua negação: uma recusa, um manter à distância, um

velar diz: já não...a cada vez (...) Diz que alguma coisa vigora diferentemente do modo em que vigora”

92

Esta é a phýsisaquela que nunca declina, sempre se dando de um modo diferente.

Já não está em jogo aqui a apreensão de algo sobre o que se diga, pois ela se dá de maneira

duradoura, vige pura e simplesmente no seu viger; sua tensão e durabilidade é o surgir.

90

HEIDEGGER, M. Op. cit. 2002 p.236. 91

HEIDEGGER, M. Op. cit. 2002 p. 237. 92

HEIDEGGER, M. Op.cit. 2002, p. 237.

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Neste âmbito, ela não se seduz nem pela estaticidade, nem pela multiplicidade, como, por

Zenão, poderíamos pensar. O que é dela é o “nunca entrar num encobrimento”, cabendo ao

homem, nela inserido, manter-se encoberto.

Heidegger finalmente redimensiona no referido a interpretação do fragmento

heraclítico “” como descobrimento e encobrimento de uma só vez e

aquilo que, a cada vez, o faz, “não como acontecimentos distintos e reunidos numa simples

ordem sucessiva, mas como um e o mesmo acontecimento”. Temos, por esse mistério,

completamente nula a noção de causalidade tão cara ao pensamento ocidental,

principalmente atrelado à metafísica aristotélica. Se, nesta dimensão, é um e o mesmo

acontecimento, Heidegger conclui: a phýsis não deve ser entendida como “surgimento”, pois

do mesmo Heráclito temos, no fragmento 123, o misterioso e extraordinário

“phýsis ama esconder-se”.

Ora, como algo que ama se esconder sempre surge? Pergunta-nos o fragmento do

pensador efésio. E, longe de darmos qualquer vazão a uma resposta sobre a questão, o que

nos furtaria por completo do exercício de reflexão sobre a poesia – nosso trabalho –, a

perplexidade se mantém. Junto ao pensador alemão, adentramos neste novo e cabal

fragmento em que Heráclito pelo verbo kryptesthaiaproxima a phýsis do encobrimento.

Como nunca declina, a phýsis se dá como um "descobrir-se" perene, ao passo que, por

"proximidade de vizinhança" ao "esconder-se" conferida pelo verbo "", temos, à

conclusão de Heidegger a partir de Heráclito, que "Descobrir-se ama esconder-se".93

Tal descoberta sobre a vigência da phýsisdeveria apontar, em primeira instância, que

faz parte de sua dinâmica o fato de que “surgir busca encobrimento”, mas a interpretação

rasa esquece, segundo Heidegger, que a Heráclito não parece interessar, no seu pensamento,

a causalidade entre surgir e encobrir. A proximidade lograda pelo verbo phylei, diz respeito a

um “surgir” que se resguarda no “encobrir”. Em suma, todo momento em que surge, a phýsis

ama sua possibilidade infinita de se ocultar, nisso se ancora e é nisso que está a sua verdade.

Neste vigorar é que se dá a verdade do ser, como alethéia, des-encobrimento que (se) retrai

enquanto surge, encobre enquanto des-encobre o que faz surgir.

93

HEIDEGGER, M. Op. cit. 2002, p. 239.

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73

1.4. Acabamento e ressurgimento da vida sob o véu da noite

Na poesia de Cecília Meireles, a phýsis assume primordialmente o caráter plástico da

imagem da “noite”.

Para a autora dos Doze Noturnos da Holanda, a “noite” não é apenas uma ambiência

espácio-temporal ou Leitmotif romântico-melancólico, mas se dá como o extraordinário a

que o homem, na sua tensão de ser, está atrelado. A noite é aquilo que abre o homem para a

sua relação mais uterina, mais primordial com a verdade de sua vigência, de seu ser. Mais do

que a claridade do dia, em que a ratio toma os ares do pensamento e as rédeas do homem, a

“noite” cantada por Cecília Meireles responsabiliza-se, divinizada, pelo envolvimento do

dizer com a verdade. Na “noite” reside o encobrimento do qual advém alethéia. Neste

encobrimento, a alma poética ceciliana viaja, fora e livre de corpo (mas não livre de

humanidade), por sobre a ek-sistência, na Natureza, do homem, desvelando esta verdade a

que estamos atrelados:

A noite não é simplesmente um negrume sem margens nem direções; Ela tem sua claridade, seus caminhos, suas escadas, seus andaimes. A grande construção da noite sobe das submarinas planícies aos longos céus estrelados em trapézios, pontes, vertiginosos parapeitos, para obscuras contemplações e expectativas. (…) Abraçava-me à noite e pedia-lhe outros sinais outras certezas: a noite fala em mil linguagens, promiscuamente. ......................................................................................................... E um grande pasmo de lágrimas preparava palavras e sonhos, essas vastas nuvens que os homens buscam... (“Três”, DNH,710)

No poema, recria-se o gesto de “abraçar a noite”, com um pedido de “outras

certezas”, ao que é respondido “promiscuamente”, em “mil linguagens”, as quais acabam por

dizer à humana procura por certezas que tal busca já tem em si a preparação de “palavras e

sonhos”, referências aqui não da firmeza da “espada entre flores” do poema “Palavras”

anteriormente visto, mas das “vastas nuvens” fugidias e inconstantes, reticentes...

A obscuridade das “contemplações e perspectivas” que a noite prepara é fluida

resposta e perene convite à escuta do silêncio, à leitura do que “jamais esteve escrito”, isto é,

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74

à “abertura”:

Abraçava-me à noite nítida,

à alta, à vasta noite estrangeira, e aos seus ouvidos sucessivos murmurava: 'Não quero mais dormir, nunca mais, noites esparsas nuvens de estrela, sobre planícies detidas' ....................................................................................................

E a noite dizia-me: 'Vem comigo, pois, ao vento das dunas, vem ver que lembranças esvoaçam na fronte quieta do sono, e as pálpebras lisas, e a pálida face, e o lábio parado e as livres mãos dos vagos corpos adormecidos!' 'Vem ver o silêncio que tece e destece ordens sobre-humanas, e os nomes efêmeros de quase tudo que desce à franja do

[horizonte! .................................................................................................... E a linguagem da noite era velhíssima e exata. (“Dois”, DNH, 709)

Na poesia ceciliana, a noite faz apagarem-se, esconderem-se, encobrirem-se as

certezas, numa linguagem “velhíssima e exata”, de uma velhice “originária”, como a dos

pensadores Anaximandro, Parmênides e Heráclito, que, do fundo da Grécia primitiva,

colocam até hoje que o pensar e o dizer têm a mesma essência – a da verdade, alethéia.

Esses pensadores de outrora, de hoje, não se prenderam às determinações das causalidades,

pelo que o Ocidente posteriormente teria aberto, no seio de sua tradição, um fosso cada vez

maior e quase intransponível, impeditivo do acesso à vigência do agir e do pensar de modo

grego, por assim dizer, originário. São originários esses pensadores por pensarem

originariamente a origem: “A origem é o que é pensado no seu pensar”94, diz Heidegger. A

origem não deve ser pensada, porém, metafisicamente, mas como questão de que tratam

esses pensadores:

A origem é causal e linear. O originário não. Ele é como a fonte que alimenta sempre o rio, esteja em que altura estiver a sua correnteza, da nascente à foz. Originária é a Terra, que sempre é a permanente fonte de toda vida e de todos os viventes, inclusive nós seres humanos. Originária é a mulher-mãe ao conceber, gestar e dar à luz um filho. Entre a primeira mulher que deu à luz um filho e a que hoje dá à luz um filho não há diferença nenhuma do ponto de vista de ser mãe-mulher. A mãe-mulher é sempre originária.

95

94

HEIDEGGER, M. Parmênides. Sérgio Mário Wrublvski (trad.) Petrópolis: Vozes, 2008 p. 21

95 CASTRO, Manuel Antonio de. "Poíesis, sujeito e metafísica". In: ----. (org.). A construção poética do real. Rio

de Janeiro: 7Letras, 2004, p. 19. Obtido em http://www.dicpoetica.letras.ufrj.br/index.php/Origin%C3%A1rio, acesso em 8 de outubro de 2011.

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Assim, a noite originária, no dizer da poeta,

rodava por seu mundo silencioso e liberto. Não havia mais nada: somente seu poder, sua grandeza, sua solidão. Era deserta, ausente, e, ao mesmo tempo, repleta e palpitante. Alastrava e secava miragens, e não ficavam mais vestígios. E era uma estranha surdez, penetrante, Sorvendo todas as falas e músicas. (“Quatro”, DNH, 713)

Na vigência de sua linguagem “velhíssima e exata”, abre-se a possibilidade, em sua

dinâmica de apagar todas as certezas, de nos acercarmos, ainda que constantemente nos

vejamos “interditados” pela razão, daquilo que se pode apreender da alethéia da phýsis

Junto a instâncias temporais e espaciais, apreendemos sensações inexatas e

simultâneas, as quais, na plástica do poema, pelo jogo de imagens projetado nos adjetivos e

advérbios, se dão como “num mundo silencioso e liberto.” A noite é percebida como

“deserta”, “ausente”, “repleta” e “palpitante”, instâncias reunidas sob a tutela do termo

indicador de simultaneidade “ao mesmo tempo”. Desde o iluminado termo “mesmo”, a

instância ontológica da “noite” erige, e a reunião das contrariedades de sua natureza. E

podemos encontrar nela as contradições do próprio Ser96. A reunião, pelo “mesmo” e “pelo

tempo”, institui uma espécie de constância e simultaneidade da “noite”: ela se retrai

completamente como “deserto” e “ausência” e, num único movimento, é “repleta” e

“palpitante”. Sem o amparo da lógica e de suas hierarquizações, em seu negrume, a “noite”

do poeta é a “noite do homem”, pois diz, para além da “verdade proposicional”, que é

possível ser “deserta” e “palpitante”, no seio do paradoxo. Sua alethéia permanece no bojo

de um “Amém” ainda e muito mais escuro e maior, num lugar Oculto, inefável, onipresente,

subjacente a tudo, promotor, ao mesmo tempo, de vida e morte, simultaneidade na qual o

96

No dizer de Heidegger, reside na gramática da palavra ser a história do próprio Ocidente. Não só na gramática da palavra, mas no esquecimento da exatidão do ser, uma vez que reside na essência do seu destino o esquecimento: “O esquecimento corretamente pensado, o ocultamento do ser (essência no sentido verbal do ser ainda não desocultado, esconde tesouros inexplorados e permanece a promessa de um achado que apenas espera por uma procura adequada. Para presumir tal coisa não são necessários dons proféticos nem as manias dos pregoeiros; mas importa, apenas a atenção exercitada durante decênios, centrada naquilo que foi e continua sendo, que se anuncia no pensamento metafísico do ocidente. Isto que foi e continua sendo sob o signo do desvelamento do que se presenta. O desvelamento consiste no velamento do que se presenta. A este velamento, no qual se funda o desvelamento (aletheia), deve dedicar-se a lembrança. Ela lembra aquilo que foi, o que não passou porque permanece o imperecível em tudo o que dura, que sempre garante o acontecimento do ser.” (in: HEIDEGGER, M. Sobre o problema do ser. Ernildo Stein (trad.) São Paulo, Duas Cidades, 1968 p.p. 50-1; grifo do autor)

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homem está lançado.

A “noite” também se dá como movimento de liberdade, pois liberta o homem do

falatório claudicante, já que se opõe ao “rumor do mundo”:

O rumor do mundo vai perdendo a força, E os rostos e as falas são falsos e avulsos. ................................................................. A lua que chega traz outros convites. (“Um”, DNH, 708)

Por isso, recomenda-se um silêncio tão radical como o de uma sepultura:

(Noite imóvel, noite escura, forrada de sedas suaves, pequeno mundo sem chaves quase como a sepultura) (“12”, MR, 1219)

Se por um gradativo processo de consciência de imersão na “noite”, de

experienciação da liberdade noturna, nos desprendermos do “diurno limite de cada

criatura”, nos alocaremos mais próximos da verdade da phýsis, transfigurando em linguagem

poética a espessa experiência de vigília, de estarmos acordados enquanto “os rostos e as

falas são falsos e avulsos”. Tal vivência da/na noite, recomendada pela poesia, é capaz de

“transportar” o homem para além de si mesmo, até o modo crucial de não saber mais se “É”,

desarmando-se, assim, a noção de identificação, tão cara à construção das verdades

nominativas ocidentais:

Eu mesma não vejo quem sou, na alta noite, nem creio que SEJA: perduro em memória, à mercê dos ventos, das brumas nascidas nos dormentes lagos que ao luar se evaporam. (“UM”, DNH, 708)]

O destaque dado pela dicção poética ao verbo ser nos coloca diante, mais uma vez,

da “noite” como um horizonte de questões ontológicas em que o ser do homem, ou a sua

referência à alethéia, é o quem e o o quê questionados. Pela poesia, podemos nos livrar da

comum postura de estarmos desatentos aos “outros convites da lua que chega”. Tal processo

se daria pelo abandono da noção de que é possível amparar-nos na centralidade do sujeito

cartesiano, decorrente do domínio da estrutura da ratio por sobre o tempo e sobre o espaço,

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sobre o corpo e o espírito, sobre a identidade e a diferença -- centralidade tão cara à

inteligência humana moderna e que parece ser dispensada por Cecília Meireles, pois

à medida que o homem vai adiante, e a sua vida poética e, ainda acima, a sua vida mística tendem a ultrapassar a vida conceptual – tudo no homem tende à manifestação do silêncio. E o silêncio deixa de ser um vazio, uma privação, um estado de pobreza anterior ao surto enriquecedor e iluminativo da inteligência para ser um estado de perfeição, de superação, de plenitude, em suma, que aproxima a natureza humana da natureza angélica. E leva o homem à vida contemplativa, à vida que anuncia o estado perfeito de Graça e de Glória, que é Visão e não mais palavra. É o estado de união com Deus, o estado que leva o homem, mesmo ainda em sua condição terrena, a aproximar-se do estado perfeito da vida fixada na eternidade.

97

Em sua trajetória poética desde Espectros, livro que desenha, já em seu primeiro

poema, os traços da personalidade e do seu viço, Cecília Meireles, atravessada pela

intimidade com a “noite” e com as coisas esquecidas, ocultas, misteriosas, passadas, aloca

nelas, nas imagens do encobrimento e do desencobrimento, a antitética presença dos

ausentes, os “silenciosos fantasmas de outra idade”:

Nas noites tempestuosas, sobretudo Quando lá fora o vendaval estronda E do pélago iroso à voz hedionda Os céus respondem e estremece tudo, Do alfarrábio, que esta alma ávida sonda, Erguendo o olhar, exausto a tanto estudo, Vejo ante mim, pelo aposento mudo, Passarem lentos em morosa ronda Da lâmpada à inconstante claridade (Que ao vento ora esmorece ora se aviva, Em largas sombras e esplendor de sóis),

Silenciosos fantasmas de outra idade À sugestão da noite rediviva. -- Deuses, demônios, monstros, reis e heróis. (“Espectros”, E, 15)

O tema da noite, acompanhado do da fugacidade do tempo, é constante na poética

de Cecília. Presente até mesmo no que pode ter sido seu último poema, escrito no leito de

morte em agosto de 1964, o motivo noturno transmuta-se em toda sua trajetória pela

tensão entre o que fica e o que passa: “... eu amo o eterno e o efêmero e queria fazer o

efêmero eterno” (“Três Orquídeas”, D, 1957). Assim, como instância não fragmentária, mas

97

LIMA, Alceu Amoroso. Da Inteligência à Palavra. Rio de Janeiro, Agir, 1962, p.34 apud AZEVEDO, Leodegário A. de. op.cit. 1970, p. 105

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fragmentadora, fluido e constante, o tempo em Cecília Meireles, mormente transfigurado

nas imagens da “noite”, terá sempre em si a capacidade de terrivelmente esgotar todas as

coisas, mas conferir-lhes, pela poesia e pela canção, eternidade. Isso porque, em Cecília

Meireles,

não predomina a impressão mundana da vida, mas a inquietação permanente do espírito humano diante dos mistérios da eternidade. Por isso a poesia atinge o plano da universalidade (...) quando busca revelar o homem diante de Deus.

98

Se, num poema escrito tão precocemente, já percebemos que a “noite” sugere, com

sua “inconstante claridade”, a aparição de “Deuses, demônios, monstros, reis e heróis” de

outros tempos; em muitos outros momentos de sua obra, essa sugestão será acatada como

um motivo primordial. Em Espectros flagramos o nascer maravilhoso de uma árvore:

Nas horas quietas, em que tudo dorme, Sombranceira e viril, como um carvalho, Alevanta-se espessa árvore enorme. (“Defronte da janela em que trabalho”, E, )

Mas são as sombras da noite que lhe permitem a transformação, sobrenatural, num

homem:

(...) a árvore enorme, Erguida ante a janela em que trabalho, Toma a feição de uma cabeça rude, Sonolenta e selvática oscilando Numa estranha fantástica atitude. (“Defronte da janela em que trabalho”, E, )

Mesmo em movimentos poéticos em busca de claridades “solares” (“Tinham-me

ensinado que a vida/ Era a alegria/ De abrir os braços ao sol,/ Despertando,/ E curvar a

fronte, Saudando a noite” “Poema da Sabedoria, PP, 84), Cecília Meireles vê-se arrastada,

poeticamente, para os domínios da “noite”, como neste excerto de “Isis”:

Rolo, assim, na correnteza Da sorte que se acelera, Entre margens de tristeza, ............................................. Lá vou, pela noite escura,

98

AZEVEDO FILHO, L. A.. Op. cit. 1970, p. 101.

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Pela noite de segredo, Como um rio de loucura... Tudo em volta sente medo... E eu passo, desiludida, Porque sei que morro cedo... Lá me vou, sem despedida... Às vezes, quem vai regressa... E diz-me a desconhecida: “Mais depressa! Mais depressa!...” (“Ísis”, NM, 40)

Diante da desconhecida Ísis (“Às vezes, quem vai regressa”), a poeta observa sempre

que, para além do “pobre jogo das variedades”, ênfase do dia, cada coisa tem em si um

“caos” noturno incontrolável, um “Amon” interno:

Cada um tem a sua noite. Cada coisa. E tudo está na noite, enquanto é noite. (“A noite”, EP, 1442)

Além de chamar nossa atenção para o vigor essencial de “cada coisa” na dinâmica da

Natureza, a afirmação de que “tudo está na noite” oculta referências ontopoéticas por

corresponder à noção grega de alethéia, como des-ocultação, des-encobrimento, e por

relembrar a dinâmica requerida pelo chamado “espanto” de Heráclito quando do Fragmento

16: tudo se des-encobre enquanto se encobre.

Neste sentido, a afirmativa contida no verso ceciliano nos serve de mote para a

discussão em torno do trabalho executado pela phýsis em seu abarcante processo de dar

ensejo, como criadora e destruidora, a todas as coisas. A referência no verso à totalidade do

pronome “tudo” e à sua alocação espácio-temporal “na noite” respondem, plenamente, pela

mesma experiência grega, pois, como podemos ver: “A harmonia invisível é mais forte que a

visível” (Heráclito, fragmento 54)99

A questão da invisibilidade nos faz lembrar o que nós dissemos aqui sobre Amon, o

caótico e obscuro deus do “Amém”. Mas a noite também nos remete ao mito de Nix, filha

99

HERÁCLITO. Op. cit. 2005, p. 73.

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mesma do Caos, mãe dos titãs Céu (Urano) e Terra (Gaia), que sozinha deu à luz entidades

como Moro (o Destino), Tânatos (a Morte), Hipnos (o Sono) e Moiras; estas medem a vida

humana e dos deuses100. Ao dizer “tudo está na noite”, a poesia de Cecília Meireles revive a

memória mítica que nos foi ensinada pelos antigos.

Assim, subjaz uma “harmonia”, uma “sinfonia” no caos, que não se pauta pela

visibilidade, mas pela “escuridão”:

é essa escuridão tão envolvente que parece um exercício de morte; assim vai desaparecendo tudo, assim desaparecemos dos outros e de nós. .................................................... A noite esconde a terra, o céu, a casa, os vossos rostos. ..................................................... O dia é um bailarino com sinos e espelhos. .................................................... E somos de repente uns falsos acordados. (“A noite”, EP, 1441-2)

Como envolve as “Formas despidas de matéria, energia divina que renova os seres e

as coisas destruídas, e sempre destruídas pelo tempo.”101, o caos é também aquilo que em

Heráclito, faz des-aparecer a “ordem” das coisas, na sua “verdade” e “constituição”. Assim,

diante dos homens, está posto o mais intrigante mistério, o fogo do Logos, pelo qual tudo

vem a estar de acordo. Nós, porém, não sabemos como esse acordo se dá; nenhuma ciência

o alcança em sua plenitude.

Pois, diante do Logos, “falsos acordados”,

os homens se comportam como quem não compreende tanto antes como depois de já ter ouvido. Com efeito, tudo vem a ser conforme e de acordo com este Logos, e, não obstante, eles parecem sem experiência nas experiências com palavras e obras, iguais às que levo a cabo, discernindo e dilucidando, segundo o vigor, o modo em que se conduz cada coisa. Aos outros homens, porém, lhes fica encoberto tanto o que fazem acordados, como se lhes volta a encobrir o que fazem durante o

100

BRANDÃO, J. S. Op. cit. 1986, p. 155. 101

AZEVEDO FILHO, L. A. Op. cit. 1970, 102.

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sono. (Heráclito, fragmento 1)102

“Na noite” que a tudo encobre, como se pode achar o homem acordado, diante

deste que é um “exercício de morte” pelo qual “se conduz cada coisa”?

A comum interpretação deste que é o importantíssimo fragmento de Heráclito dá

conta da noção dos homens como participantes da ordem de todas as coisas. O acesso à

“ordem” (advinda do caos e expressão última do caos) não pode ser forjado pela razão, já

que a razão não alcançaria nunca o que o Logos apreende como fórmula única pela qual as

coisas se proporcionam e se dispõem. Como “conjunto”, “cálculo”, “medida” ou “proporção”

de tudo103, o Logos dos quais o homem participa, mas não necessariamente domina, é

inexplicável; mesmo porque o difícil para o homem, como percebemos no fragmento, é,

participando do Logos, dissuadi-lo do mistério em que ele mesmo, o homem, está lançado.

Já que o homem também é uma “coisa” e “cada coisa tem a sua noite”, não caberia à própria

noite des-velar-se.

Na mesma direção, o homem, na visão ceciliana, comporta-se como um “falso

acordado” como, aquele que, na fala de Heráclito, está “encoberto ao que faz tanto acordado

como quando dorme”. Por esta posição de que não se pode furtar, o homem se esquece de

que o Ser é esquecido; e, em flagrante desconhecimento da abertura e da liberdade de sua

“noite”, afasta-se, como vimos, da essência da verdade. O Logos, como medida do homem,

seria, assim, a sua própria liberdade. Bastar-lhe-ia, outrossim, que o cálculo dessa medida

inalcançável não se buscasse pelo cálculo instrumental.

Da “noite”, a poesia de Cecília Meireles nutre sua visão. Guiados por sua vidente

cegueira, ganhamos novos olhos para, no que nossa noite esconde, perscrutarmos nossa

harmonia interna, abraçada por nosso íntimo caos noturno. A noite nos é mãe, a mater que

nos dá a matéria-prima, a causa inefável de nossa constituição. Por sua célula-mater fomos

“postos” na Terra, como Nix104 pôs o “ovo primordial do qual nasceu Eros, que depois

102

HERÁCLITO. Op. cit. 2005, p. 59. 103

KIRK, G. S. et alii. Os filósofos pré-socráticos. Carlos Alberto Louro Fonseca (trad.) Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008, p. 194.

104 Em CHEVALIER, J. & GHEERBRANT, A. Op. cit. 2003 p. 639-40 (grifos do autor), lê-se a seguinte atribuição da noite à divindade: “Para os gregos, a noite (nyx) era a filha do Caos e a mãe do Céu (Urano) e da Terra (Gaia). Ela engendrou o sono e a morte, os sonhos e as angústias, a ternura e o engano. As noites eram frequentemente prolongadas segundo a vontade dos deuses dos deuses, que paravam o Sol e a Lua, a fim de realizarem melhor as suas proezas. A noite percorre o céu envolta num véu sombrio, sobre um carro atrelado com quatro cavalos pretos, seguida do cortejo de suas filhas, as Fúrias, as Parcas. Imola-se a esta

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desnudou a Natureza”. Somos, por isso, da mesma “Natureza” dos deuses, já que tudo, na

instância mítico-poética, vem da “Noite”.

No calor do útero noturno, a poeta mergulha nas águas turvas primordiais, tendo

diante de si a opaca visão das coisas, que, só às cegas, podem ter sua verdade, sua

primordial essência e constituição experienciadas. A “noite” exige de nós uma leitura

aquático-ctônia de mundo; sem códigos mentais, intermédios de linguagem humana e cifras

facilitadoras. Voltar ao seu útero requer um encontro com a porção divinizada, ao mesmo

tempo terrível e maternal, da Natureza:

Deusa dos olhos volúveis pousada na mão das ondas: em teu colo de penumbras, abri meus olhos atônitos. Surgi do meio dos túmulos, para aprender meu nome. Mamei teus peitos de pedra constelados de prenúncios. Enredei-me por florestas entre cânticos e musgos. Soltei meus olhos no elétrico mar azul cheio de músicas. Desci na sombra das ruas, como pelas tuas veias: meu passo – a noite nos muros – casas fechadas – palmeiras – cheiro de chácaras úmidas – sono da existência efêmera ................................................... (“Terra”, V, 254)

Neste retorno às entranhas da “Deusa dos olhos volúveis”, podemos nos relembrar

do parentesco entre nós e a Terra, numa flagrante consciência de que tudo está interligado,

de que “tudo se corresponde”, pois, da mesma mater:

Homem, objeto, fato, sonho, tudo é o mesmo, em substância de areia, tudo são pelas paredes de areia, como neste solo inventado: mar vencido, fauna extenuada, flora dispersa, tudo se corresponde: zune o caramujo na onda com o mesmo som do lábio de amor

divindade ctônica uma ovelha negra.” O mesmo se confirma em BRANDÃO, J. S. op. cit. 1986, p. 223 (grifos do autor): “NIX, a velha divindade, nascida do Caos na primeira fase do Universo, e que dera à luz Éter e Hemera, tornou-se extremamente fértil na primeira progênie divina. Gerou, por partenogênese, as seguintes abstrações: Moro, Tânatos, Hipno, Momo, Hespérides, Queres, Moîras, Nêmesis, Gueras e Éris.

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e da voz da agonia. Os abraços, as nuvens, o outono pelo parque têm o mesmo gesto, grave, precário, fluido (“Sete”, DNH, 717)

Neste, que é o sétimo dos Doze Noturnos da Holanda, num exercício ek-sistencial,

Cecília Meireles nos leva a não apenas comparar os nossos gestos aos dos outros seres da

Natureza, mas nos dizermos, “Homem, objeto, fato, sonho”, como o “mesmo, em substância

de areia”. Assim, pelo processo metafórico, somos relembrados, através de uma espécie de

alquimia ontológica essencial, a nos vermos como “paredes de areia”, nas quais “homem”, “o

mar vencido”, “a fauna extenuada” e a “flora dispersa” se encontram, percebendo-se como o

mesmo, em todas as partes, em distinção infinda e igualdade. Lembremos que a “areia” é a

face mais diminuta da “Terra” e, ao mesmo tempo, a mais abundante. A “areia” nos dá a

noção de que a natureza é infinita e múltipla; a areia nos alerta sobre a impossibilidade de

facilmente reduzir cada um de seus grãos à medida e ao cálculo, pelo que nos vemos, mais

uma vez, diante do inumerável caos, da tirania do tempo, escorrendo, na ampulheta, da

nossa ek-sistência. Neste sentido, a areia que a tudo transmuta: “homens”, “mar”, “fauna” e

“flora”, é a manifestação do útero da Terra, pois:

Fácil de ser penetrada e plástica, a areia abraça as formas que a ela se moldam; sob este aspecto, é um símbolo de matriz, de útero. O prazer que se experimenta ao andar na areia, deitar sobre ela, afundar-se em sua massa fofa – manifesto nas praias – relaciona-se inconscientemente ao regressus ad uterum (...). É, efetivamente, como uma busca de repouso, de segurança, de regeneração.

105

Atenta ao caos da noite, Cecília Meireles nos transpõe, poeticamente, à substância

disforme e indiferenciada que a tudo fez/faz surgir. Desde o pronome indefinido “tudo”,

pergunta-nos, perplexa:

quem segura a noite assim carregada desses escombros que à luz do sol parecem grandiosos bens indispensáveis? (“Sete”, DNH, 717)

Sendo “A harmonia invisível mais forte que a visível”, no dizer de Heráclito, podemos

recorrer não apenas ao sentido da visão para experimentar a verdade da “noite”. A visão

forçou a construção de uma civilização pautada na masculina “luz do sol”, em que o “ponto

de vista” e a “visão de mundo” são estreitas monografias e tentativas de explicação da

105

CHEVALIER, J. & GHEERBRANT, A. Op. cit. 2003 p. 79.

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“harmonia” e “parecem grandiosos bens indispensáveis”. Há escuta e sentir por todos os

lados, à luz do dia ou à luz da noite, trazendo-nos uma experienciação inteiriça de nosso

estar no mundo.

Assim, se ouvirmos o dizer heraclítico, perceberemos que são muitos os sentidos e

não somente o da visão e, que integrados, mutuamente participantes, se mesclam na

apreensão de uma harmonia invisível, que subjaz à opinião e a uma verdade como unicidade

inquestionavelmente “solar”. Na experiência do mundo, os sentidos nos podem levar,

impulsionados sempre pela noite e pelo sonho, a perceber o “invisível” e preterir, em dados

momentos, o “apenas visível” em louvor da “música”, do “cheiro da madrugada”, da “terra

molhada”, do “gosto de terra”. Este processo de exposição crescente ao mundo em viagem

pela noite se dá nesta volta à referência uterina, originária e primordial, por uma ampliação

dos sentidos e consequente construção de uma poética que nos aproxima do Todo, não

amparada no projeto ocidental do “ponto de vista”, mas holística, atenta aos movimentos da

phýsis.

Neste sentido, à dis-posição da “noite”, com a poesia de Cecília Meireles, podemos

nos colocar à escuta do Logos, ou se preferirmos, à escuta do ser. Lançada na escuridão, a

poesia sonha “dizer com claridade o que existe em segredo”. E seu dizer é sempre um canto

ou um jogo em que a cegueira sustenta a verdadeira vidência, como podemos perceber no

poema “Disse-me o cego na estrada”:

Disse-me o cego na estrada, sem nenhum constrangimento, que andar à beira do abismo é difícil, mas que a luz avisa, fora das pálpebras, e a direção se conhece pela brisa na barba. Ele andava pelos muros, à beira dos precipícios, funâmbulo e equilibrista, com o vento aberto na barba e o sol nas fanadas pálpebras. Os videntes caminhavam agarrando o muro e o chão, pisando a sombra do cego e as palavras que dizia. Se algum vidente caísse, com toda a certeza, o cego rápido o levantaria.

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(“Disse-me o cego na estrada”, D, 1815)

“Com o sol nas fanadas pálpebras”, o cego é ele mesmo “uma noite”. Sua noite

interior é que lhe permite ver mais que os videntes, pois, amparado na sensibilidade “do

vento aberto na barba”, “funâmbulo e equilibrista”, anda à beira do abismo, ciente da

dificuldade do exercício desta “abertura” para o inefável. Sua “certeza”, oposta à dos

videntes, não é a de agarrar a materialidade do “muro e do chão”, dada pelos “sentidos”,

nem a de “pisar a sombra e as palavras”, mas a de integrar-se, desde a escuridão de sua

cegueira, a uma vidência maior – a uma vidência interior, que, segundo Platão, assenta-se no

eidos: aquilo que jamais é percebido pelos olhos do corpo, a ideia, que não designa apenas o

aspecto não sensível do que é sensivelmente visível: a essência daquilo que se pode escutar,

ver, tocar, sentir106.

Apenas a partir do amplo conhecimento deste mundo interior é que o cego pode

executar “com toda a certeza” o resgate “rápido” dos videntes que por ventura caiam no

abismo da razão. Isto seria o mesmo que, na noite imensa, amar a indivisível – e invisível –

massa informe, promotora da escuridão e, com ela, da totalidade. A “noite” não apenas toca

o sentido da visão, mas também nos recomenda uma nova “audição”, uma nova “escuta”.

No quarto poema do livro Viagem, “Anunciação”, por exemplo, a poeta nos convoca a

adentrar o itinerário noturno, rogando que a “noite” seja embalada “apenas” por uma

“música de seda, frouxa e trêmula”, que recupera, memorialística e extratemporalmente, as

“mãos de esquecidos corpos quase desmanchados no vento”.

Com isso, Cecília Meireles reúne poeticamente “noite”, “música” e “tempo”,

conferindo à instância espácio-temporal o poder de vencer as forças do tempo contra o

aniquilamento do canto, aniquilamento requerido, como temos visto, pelo falatório do dizer:

Toca essa música de seda, frouxa e trêmula que apenas embala a noite e balança estrelas noutro mar. Do fundo da escuridão nascem vagos navios de ouro, Com mãos de esquecidos corpos quase desmanchados no vento. E o vento bate nas cordas, e estremecem as velas opacas,

106

HEIDEGGER, M. A teoria platônica da verdade. Enio Paulo Giachini e Ernildo Stein (trads.) In: ----. Marcas do Caminho. Petrópolis: Vozes, 2008 p. 226.

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e a água derrete um brilho fino, que em si mesmo logo se perde. Toca essa música de seda, entre areias e nuvens e espumas. Os remos pararão no meio da onda, entre peixes suspensos; e as cordas partidas andarão pelos ares dançando à toa. Cessará essa música de sombra que apenas indica valores de ar. Não haverá mais nossa vida, talvez não haja nem o pó que fomos. E a memória de tudo desmanchará suas dunas desertas, E em navios novos homens eternos navegarão. (“Anunciação”, V, 229)

Se atentarmos formalmente para o uso do polissíndeto “e”, que encerra, para a

formação dessa “música de seda”, a ligação entre os elementos naturais aparentemente

desprendidos, perceberemos o vertiginoso exercício de percepção da integração de tudo a

tudo. O toque e a audição da “harmonia invisível”, requeridos por Heráclito, passa a se valer,

através de outra dis-posição dos sentidos: a “música de seda” nos é tão perceptível no

poema que nos faz lembrar a certeza de Nietzsche de que “sem a música a vida seria um

erro”107.

Leitmotif do lirismo de Cecília Meireles, a música tem grandiosa atribuição no poema.

Ela “embala a noite”, “o mar”, “os homens mortos”, “os homens novos”, lembrando-nos que,

na Natureza, na phýsis, tudo está integrado. Tal percepção, porém, só se dá pelo sentir e pelo

operar da obra de arte, dando-se a canção como um elemento não de diferenciação

(sinônimo de “dia” e “discurso”), mas de indiferenciada harmonização.

“Discurso” e “Excursão”, também em Viagem, são poemas que insistem na

construção do percurso humanos sob os domínios da noite e da consciência de sua

experenciação pelo canto. No primeiro, apresenta-se o refrão “E aqui estou cantando”, logo

no verso inicial, com um “E” suspensivo e aparentemente ligado a nenhum outro sintagma.

No artigo intitulado “Cecília Meireles e o tempo inteiriço” em que defende o sentimento de

orfandade como recorrente em toda obra da poeta, Miguel Sanches Neto, ao apreciar este

poema, diz que, no verso “E aqui estou cantando”, “A poeta se põe a cantar indefinidamente,

pensando-se como um ser que existe no e para o ritmo.”108:

E aqui estou, cantando.

107

NIETZSCHE, F. Op. cit. 2010, p. 14. 108

SANCHES NETO, Miguel. Cecília Meireles e o tempo inteiriço. In. MEIRELES, C. Op. cit, 2001, p. xxxvii-xxxviii

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Um poeta é sempre irmão do vento e da água: deixa seu ritmo por onde passa. Venho de longe e vou para longe: mas procurei pelo chão os sinais do meu caminho e não vi nada, porque as ervas cresceram e as serpentes andaram. Também procurei no céu a indicação de uma trajetória, mas houve sempre muitas nuvens. E suicidaram-se os operários de Babel. Pois aqui estou, cantando. Se eu nem sei onde estou, como posso esperar que algum ouvido me escute? Ah! se eu nem sei quem sou, como posso esperar que venha alguém gostar de mim? (“Discurso”, V, 229-30)

Neste sentido, o “discurso”, que dá título ao poema, ganha não mais o sentido do

dizer propositivo, mas alia-se a um cantar de modo órfico, existencial, como um modo de a

voz poética humana, ao dis-cursar (seguir o seu curso), se estabelecer no mundo,

integrando-se, pela percepção de que está na terra, de que tem um corpo e de que “se

mantém encoberto diante do que nunca declina”:

Venho de longe e vou para longe: mas procurei pelo chão os sinais do meu caminho e não vi nada, porque as ervas cresceram e as serpentes andaram. Também procurei no céu a indicação de uma trajetória, mas houve sempre muitas nuvens. E suicidaram-se os operários de Babel. Pois aqui estou, cantando. (“Discurso”, V, 229-30)

Aí prevalece a atmosfera de incerteza, a qual não nos permite nominar o entorno e

dar as direções precisas da localização do corpo no mundo. Nada se reduz a uma dicção que

tente tornar óbvios os movimentos incoercíveis da phýsis.

Em “Excursão”, extraordinariamente, Cecília Meireles passeia com seu canto pela

noite e pela memória e percebemos “o tempo inteiriço” (“Mar absoluto”, MA, 449), nos

íntimos elos das instâncias passadas, presentes e futuras, que atravessam, transeuntes, os

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sentidos do corpo. A excursão noturna reúne corpo, mundo e terra. O dizer desses versos ora

nos remete para o hoje do discurso, ora para um passado remoto, sem, no entanto,

podermos nos desprender de um ou de outro, pois, já que somos humanos, nosso ser vige

horizontalmente no tempo e no espaço:

Estou vendo aquele caminho cheiroso da madrugada: pelos muros escorriam flores moles da orvalhada; na cor do céu muito fina, via-se a noite acabada. (“Excursão”, V, 230)

Assim, a experiência passada é constantemente atualizada pelo espírito da memória:

Estou diante daquela porta que eu nem sei mais se existe...

(“Excursão”, V, 230 )

É, “longe e fora das horas”, que podemos vislumbrar e “olhar dentro das almas”

revisitando, nesta noite lembrada, como, no poema anteriormente visto, “Espectros”,

“fantasmas insepultos”, os quais só por uma alma atenta à harmonia invisível da phýsis

podem ser visitados. Reparemos a dupla negação presente no verso que acaba por furtar até

mesmo Deus da experiência da memória da noite, vivida “apenas” pelo homem:

itinerários antigos que nem Deus nunca mais leva. (“Excursão”, V, 230)

Essa prevalência do canto poético por sobre o valor dos deuses é-nos também

lembrada por Heráclito. Nos fragmentos 78 e 116, lemos: “A morada do homem não tem

controle, a divina tem”109 e “É dado a todos os homens conhecer-se a si mesmos e

pensar”110. Duras lidas humanas sempre vistas com certo sofrimento pela poesia de Cecília

Meireles dada a “excursão” do homem pela vida conhecendo-se a si mesmo, mas mantendo-

se sempre desconhecido de si mesmo, numa totalização intransponível em palavras, mas

experienciada na vigência do que a phýsis lhe deu como lugar: a própria linguagem.

Ambivalente e ambígua, a “noite” do homem, em “mil linguagens, promiscuamente”

109

HERÁCLITO. Op. cit. 2005, p. 79. 110

HERÁCLITO. Op. cit. 2005, p. 89.

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fala. Na “Excursão”, sob o signo do silêncio, de sempre mais silêncio, mas impulsionando a

canção, a “noite” estabelece no homem sua harmonia invisível que, por homens atentos

como os poetas, pode ser percebido como:

Silêncio grande e sozinho, Todo amassado com treva, Onde nossos olhos giram Quando o ar da morte se eleva. (“Excursão”, V, 230)

Este mesmo silêncio deixa aparecer, sem qualquer regularidade e programa definido,

sua “latente música”, “flor do espírito desinteressada e efêmera”.

No poema “Música”, transcrito a seguir, também presente em Viagem, Cecília

Meireles apreende na noite a sonoridade que é, paradoxalmente, silenciosa e canta. A

música é “noite perdida” e também “noite encontrada”, tanto é “morta” como “vivida”,

transfigurando-se, sofisticadamente, na experiência do homem como uma profusão de

possibilidades, de encobrimento e nascimento, já que é “noite/ morta, vivida/ e

ressuscitada”.

Assim, a “noite” subsiste sem depender da ação humana, sem recorrer à sua

singularidade. Noutro sentido, é o homem quem deve recorrer a ela para, desbaratado de

qualquer pretensão de ultrapassagem de sua condição humana, “conhecer-se e pensar”. Em

muitas de suas angústias, Cecília Meireles percebe não haver possibilidade de canto sem o

abandono das esquematizações sujeito-objeto a que a razão humana parece estar disposta a

perpetuar, sem negociar com a verdade do ser, da qual, irremediavelmente se esquece e por

se esquecer não pode experenciar sem a esperança da lembrança – promessa de alcance

sempre virtual e distante, com o qual a poeta de Nunca mais... pareceu se acostumar desde

muito jovem: “Em toda minha vida nunca me esforcei por ganhar ou perder. O sentimento da

transitoriedade de tudo é o fundamento mesmo da minha existência”.111

Para Cecília Meireles, a tensão de diálogo entre o mundo, o tempo e sua referência ao

homem, interagem, dando-se questões, pelas quais o homem, diante dos outros seres

naturais, se vê tanto amparado pela continuidade, como desamparado pelo estranhamento.

Tal tensão pode-se evidenciar em momentos de maravilhamento contemplativo do

111

Em entrevista a Adolfo Bloch, em abril de 1964, para a Revista Manchete, disponível na íntegra em http://www.tirodeletra.com.br/entrevistas/CeciliaMeireles.htm, acesso em 4 de janeiro de 2012.

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espetáculo que une a paisagem exterior à interior:

Noite perdida não te lamento embarco a vida: no pensamento, busco a alvorada do sonho isento, puro e sem nada, - rosa encarnada, Intacta, ao vento, Noite perdida noite encontrada, morta, vivida,

e ressuscitada... (Asa da lua, quase parada, mostra-me a sua sombra escondida que continua a minha vida num chão profundo! - raiz prendida a um outro mundo). Rosa encarnada do sonho isento, muda alvorada que o pensamento deixa confiada ao tempo lento... Minha partida, minha chegada, é tudo vento... Ai da alvorada! Noite perdida, noite encontrada...

(“Música, V, 232-3)

Em momentos de abissal desilusão, a Natureza, aqui recortada na ambiência da noite,

mostra sua faceta cruel, restando ao homem lançado no mundo o sentimento de intenso

abandono. Resta-nos com voz poética afirmar “é tudo vento”. A própria passagem do tempo,

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passagem de tudo tornado em “vento”, é a regra axial para o nosso conluio com a Natureza.

Tal conluio só deve ser percebido desde “raízes prendidas/ num chão profundo”, que

apontam para uma uterina referência à phýsis

Pela “noite”, entre nascimento e morte, “partida” e “chegada”, o homem vige. O

viger primordial não se dá sem um sustentáculo de mistério, nos mantendo entregues ao

“tempo lento” tal qual a alvorada, “Rosa encarnada do sonho isento”, se mantém intacta no

“vento” que é “tudo”. Cabe a nós, como à poeta, buscar a contemplação do “sonho puro e

intacto” dessa “Rosa encarnada”, que “prendida a outro mundo”, agoniza na noite,

perdendo-se e achando-se na dinâmica de transmutação e permanência de um “desfolhar-

se”, como o do “4º motivo da rosa”:

Não te aflijas com a pétala que voa: também é ser, deixar de ser assim. Rosas verás, só de cinza franzida, mortas intactas pelo teu jardim. Eu deixo aroma até nos meus espinhos, ao longe, o vento vai falando em mim. E por perder-me é que me vão lembrando, por desfolhar-me é que não tenho fim.

(“4º motivo da rosa”, MA, 308)

Por outro lado, a “noite”, tudo transmutando e tudo fazendo permanecer, guarda em

suas profundezas os tesouros do passado, da memória dos que se foram, dos mortos;

desempenha esse papel como o de Plutão, obscuro deus dos infernos, chamado pelos latinos

de “o rico”, de “o dono de todas as almas e tesouros”, isto é, de “tudo”, como podemos

conferir neste trecho do Noturno “Sete”:

Tudo jaz, diluído e cintilante, numa profunda névoa. Nada, porém, se perde ou esquece, embora tão finamente dispersos nessa grandeza. ............................................................................................ Tudo paira na estrutura da noite, Em seus arquivos superpostos. (“Sete”, DNH, 716)

O que fica sob os escombros do caos noturno, e não apenas o que aparece na

obviedade clarificante, é o que nos resta nesta dimensão poética de des-encobrimento: o

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homem. É o homem quem perdura sob esses escombros. E é nessa “noite” que está sua

alethéia, seu canto.

Este canto da noite é uma “Serenata”, pela qual apreendemos a vigência musical da

“Natureza”, que transcente, sempre extraordinariamente, o simples “dizer”, e, mormente,

esgotamento da palavra; com qual nos deparamos na leitura da 1ª estrofe de “Amém”. A

serenata, a música poética da Noite, é “a morada do homem, o extraordinário”, como nesta

estrofe de “Motivo”:

Sei que canto. E a canção é tudo. Tem sangue eterno a asa ritmada. E um dia sei que estarei mudo – mais nada. (“Motivo”, V, 227-8)

Assim, se não podemos nos valer apenas de palavras, programas, teses, conceitos

para darmos conta da vida, pois, como vimos em “Amém”, o dizer é sempre falho.

Aprendemos com os poetas a reparar na canção oculta, mas presente, latente, subjacente a

cada coisa, em sua noite, em sua vigência. De modo órfico, no canto, a rogar ao homem que

“repare na canção”, que estabeleça o exercício de escuta do som da água da “fonte fria”, a

música de Cecília Meireles, a despeito do desdém dos homens habitantes de “um mundo

desfeito”, nos oferece “sua flor de melancolia”, pelo que, procurando nos lembrar de nossa

posição no espaço, busca conscientizar-nos de nossa referência à terra. Sua poesia compara

a melancolia da fonte escutada “tardiamente”, ao “murmúrio perfeito” do coração humano,

estabelecendo uma superposição de tempos e espaços em camadas: da fonte sobre o

coração humano; da “voz do vento” sobre o “sonho da noite” e do “universo” sobre o

tempo. Seus versos simbolizam o abarcar de tudo isso, pois reúnem: “fonte”, “coração

humano”, “vento”, “sonho da noite” “universo” no “tempo” que perdura sobre tudo “por

eternidades serenas”, na “altura da noite” e na dimensão terrenal da “fonte fria”, que canta

para o mundo escutar o que somente o poeta “repara”:

SERENATA

Repara na canção tardia que nitidamente se eleva num arrulho de fonte fria. O orvalho treme sobre a treva e o sonho da noite procura

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a voz que o vento abraça e leva. Repara na canção tardia que oferece a um mundo desfeito sua flor de melancolia. É tão triste, mas tão perfeito, o movimento em que murmura, como o do coração no peito. Repara na canção tardia que por o teu nome, apenas, desenha a sua melodia. E nessas letras tão pequenas o universo inteiro perdura. E o tempo suspira na altura por eternidades serenas.

(“Serenata”, V, 234-5)

Se o “murmúrio da fonte” é “tão triste” como o do “coração no peito”, temos não

mais uma distância entre nós e as outras coisas da natureza, mas somos “tão tristes como o

gotejar da água da fonte”. Usufruindo da mesma solidão e tristeza, que eterna e

misteriosamente canta, com todo o universo, podemos ensaiar, como fonte de poesia, um

modo muito distinto daquele com que estamos acostumados a dizer “amém”. Pois

(...) a função da poesia (...) é nutrir o espírito do homem oferecendo-lhe o universo para se alimentar. Nós temos apenas que diminuir nosso costume de dominar a natureza e aumentar o de participar dela, para que a reconciliação aconteça. Quando o homem se orgulha de não ser apenas o local onde as ideias e sentimentos são produzidos, mas também a encruzilhada onde eles se dividem e se misturam, ele estará pronto para ser salvo. Logo, a esperança se encontra em uma poesia através da qual o mundo invade o espírito do homem de tal maneira que ele se torna mudo e, mais tarde, reinventa a linguagem.

112

112

“... the funciono f poetry... is to nourish the spirit of man by giving him the cosmos to suckle. We have only to lower our standart of dominating nature and to raise our standart of participating in the order to make reconciliation take place. When man becomes proud to be no just the site where ideas and feelings are produced, but also the crossroad where they divide and mingle, he will be ready to be saved. Hope therefore lies in a poetry through which the world so invades the spirit of man that he becomes almost speechless, and later reinvents language.” (PONGE, Francis. The voice of Things, apud RUERCKET, W. Op. cit. 1996 p. 105 Tradução inédita de Marcela Leite Medina)

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CAPÍTULO II

“A PROFUSÃO DO MUNDO, IMENSA”

“O homem é o lado de dentro do mundo, e o mundo é o lado de fora do homem”113

(Ronaldes de Melo e Souza)

Diante do constante surgir da “noite” que nos move e da qual, como vimos, tudo se

encobre e se des-encobre no mundo, que verdade se des-vela? O que des-oculta o ser do

homem? Neste capítulo, pela apreciação da 2ª estrofe do poema “Amém”, pensaremos como

o “mundo” se apresenta como uma questão e como se desenvolveram, na trajetória do

pensamento ocidental, alguns conceitos que tentam estagnar a poética “profusão do

mundo”.

2.1. A “profusão do mundo”: entre a circular “vertigem” da contemplação e os

“quadrados” de conceitos

A profusão do mundo, imensa tem tudo, tudo – e nada tem. Onde repousar a cabeça? No além? (“Amém”, VM, 271 )

O que é o mundo? O mundo é um círculo-questão. Uma questão que circula, um

círculo que questiona. Como diz Heráclito no seu fragmento 30, "O mundo, o mesmo em

todos, nenhum dos deuses, e nenhum dos homens o fez, mas sempre foi, é e

será, fogo sempre vivo, acendendo segundo a medida e segundo a medida apagando.”114.

Ainda que “o mesmo em todos”, o mundo tem sido interpretado, no pensamento

ocidental, principalmente pelo legado científico, não como “fogo sempre vivo”, mas

estagnado “em sua profusão imensa” por meio de um reto horizonte de conceitos.

Esquecidos de que “princípio e fim se reúnem na circunferência do círculo”115, para cada

momento e para cada era que vivemos, temos formulado uma nova “visão de mundo” à qual

costumamos atribuir status de verdade e com a qual enquadramos o mundo em um campo

113

114

HERÁCLITO. Op. cit. 2005 p. 67. 115

HERÁCLITO. Op. cit. 2005, p. 87.

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de possibilidades conceituais, segundo “restrições culturais” determinantes de épocas e

mentalidades. Assim, para o que se chama vulgarmente de “cultura”, designamos “o espaço

em que se desenrola a atividade espiritual e criadora do homem”116, ou seja, designamos, o

mundo, como um espaço restrito a outro ainda menor: os olhos do homem.

Os versos de Cecília Meireles nos falam que a “profusão do mundo, imensa/ tem

tudo, tudo – e nada tem”, nos fazendo recair sobre os mistérios das perguntas: “Onde

repousar a cabeça?/ No além?”. Para o que esses versos apontam? Para os desencontros do

homem no mundo em “profusão” ou para a profusa possibilidade de representarmos o

mundo e, dessas representações, extrairmos conceitos ditos verdadeiros? Ou podem os

versos dessa estrofe nos lembrar que, porque equivale “tudo” a “nada”, a “profusão do

mundo” nos leva ao maravilhamento contemplativo dos “universais segredos”

(“Mimetismo”, EE, ) que des-ocultam a phýsis em seu constante surgir de homens, animais,

vegetais e minerais em profusão de possibilidades?

A dificuldade de o homem ocidental ver e sentir a “profusão” poética “do mundo”

advém de uma outra miopia e insensibilidade; advém de algo que o o impede de ver a si

mesmo integrado aos outros elementos da Natureza. Pela moderna lógica de dominação, isto

é, pela tentativa de controle da “profusão do mundo, imensa”, o homem aventurou-se,

como diz Martin Heidegger, distante de seu lar: o mundo, sua morada, deixou de se ver

questionado ante o “incontornável”. Num abandono de posturas, como as dos “pensadores

originários” e dos poetas, que apontam para a necessidade de um extremo retraimento

diante do Ser117, dispomos o mundo como objeto à análise e o solo, seio da Terra, ao

domínio. Para eles, o mundo se dá como a “clareira” na qual o homem está lançado e

carece, para que o habitemos na vigência de um humano habitar, que o pensemos. O

esquecimento da dinâmica de velamento e des-velamento de toda a Natureza e a capacidade

de o homem se fazer construtor de arquiteturas conceituais pretensiosas e inquebrantáveis

sobre a própria Natureza nos afastaram da consciência do posicionamento entre-meios que

nos exige o mundo, o qual temos visto obliquamente e em descaso com o Ser. Construímos,

dentro de nós, um mundo devastado por conceitos. No quadrado de nosso campo visual,

reduzimos o círculo-questão ao nome “mundo”. No entanto, tanto nós quanto o mundo são

116

HEIDEGGER, M. Ciência e pensamento do sentido. Emanuel Carneiro Leão (trad.). In: ---. Op. cit. 2002. p. 39 117

HEIDEGGER, M. Op. cit. 2008, p. 21.

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incontornáveis círculos-questões ainda e sempre ainda a serem pensados.

Que é o mundo “em profusão imensa” para que o percebamos e nos percebamos

nele? Adentremos a questão vendo-nos em posicionamento ek-sistencial no “acontecimento

apropriador de clareira e iluminação”118 do mundo. Experienciemos os horizontes do mundo,

e deixemos-ser cada coisa em seu lugar, em uma re-tomada constante de espaço. Não

reduzamos o mundo à claridade de nosso olhar.

Há um véu que nos resguarda e nos encobre; este véu de profusão é a i-nominada,

claro-escura, penumbrada alethéia. Adentremos a questão, escutemos um eco antigo: o

mundo é “o que nenhum dos deuses nem nenhum dos homens pro-duziu”119. Apenas

eivados dessa in-certeza é que veremos o “aqui” como um constante lançar-se “além”. “O

mundo em profusão imensa” é em si o mundo-além, mas não um além daqui. O mundo é

um além do homem, pois que o horizonte de questões que se nos abrem como flores

incoercíveis e imensuráveis estará sempre “além” do nosso pequeno globo ocular de

homem.

“O mundo em profusão imensa”: surgir incessante da phýsis; “o mundo é um fogo

duradouro, um surgir que dura e sustenta”120. Queimando na constância da dinâmica de um

aparecer contínuo, o “fogo” (pyr) do mundo é a profusa energia que tanto vigora, ilumina,

flameja, aquece e queima, quanto destrói, purifica, extingue, apaga, desata e reduz a cinzas e

a pó.

Assim, de dobras infinitas e inomináveis, o “fogo” do mundo é um “além” em

“profusão” que, a todos aquecendo e a todos consumindo, lança ao homem o desafio de

entender como é ter “tudo” e “nada” ter, vil incêndio infindável, possibilidade irresoluta de

vida e morte, medidas infinitas entre o Céu e a Terra.

Sacríficio sagrado, fogo das fogueiras, fogo das paixões ou das chamas irreversíveis, o

mundo é fogo que permite tanto uma vigilía segura e aquecida sob a plasmática dança de luz

e calor que ilumina as noites escuras do homem, como a morte de uma floresta inteira por

uma simples fagulha. A “profusão do mundo, imensa” nos coloca diante de um vir-a-ser

contínuo!

Este vir-a-ser, sabemos, são os incontáveis surgimentos da phýsis. Distantes da

118

HEIDEGGER, M. Op. cit. 2002, p. 243. 119

HEIDEGGER, M. Op.cit. 2002, p. 243. 120

HEIDEGGER, M. Op. cit. 2002, p. 243.

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contemplação poética desse surgir incessante, algumas representações do mundo se dão,

segundo Martin Heidegger, exclusiva ou predominantemente, como ciência, cosmologia ou

filosofia da natureza121. E tais representações, ao longo da história de nossa linguagem,

gerenciam viagens para fora dos mistérios do mundo. Por certezas calculadas, axiomas

dogmatizantes, teorias científicas, assertivas filosóficas fizeram recair sobre a ratio toda a

responsabilidade pela veritas, má transposição do vigor grego alethéia. Assim, ao dizermos

“mundo” e representá-lo pela adequatio, retiramos da linguagem o seu vigor apropriativo da

abertura e da liberdade da alethéia, correndo o risco de nos guiarmos cegamente por um

senso comum e ocular, pautado, não raro, pela automatização da vida e do pensamento.

Uma das representações de mundo que foram mais atuantes nas mentalidades do

Ocidente moderno propunha a interpretação do universo como uma grande máquina da

qual tudo funciona como peças de engrenagem. Tanto o cogito ergo sum de René Descartes,

como a matemática da natureza de Isaac Newton, concorreram no século XVII para formar o

sólido alicerce do pensamento científico atuante até boa parte do século XX122. Os

parâmetros de verdade assumidos pelo discurso da ciência moderna foram utilizados na

secularização da Natureza. Antes vista pelos antigos como a deusa Gaia, organismo vivo a

que nós humanos estamos intimamente ligados por ser ela a Mãe de todos os seres, a Terra,

no advento da modernidade, deixou de ser considerada solo sagrado, passando a ser vista

como passível de exploração até o máximo de suas possibilidades. Tal exploração prescinde,

outrossim, do cálculo. As tentativas de redução da phýsis à pura medida e do homem e do

mundo à máquina pareceram pôr o mundo, circulo-questão, e Terra, mãe de todos nós, sob

os cercos de uma “quadratura”.

A propósito, a “quadratura do círculo” – problema clássico da geometria grega,

proposto por Anaxágoras de Clazomenes (499-428 a.C.), condenado à prisão por dizer que o

Sol não era uma divindade – consiste no fato de que se tendo um dado círculo, não ser

possível, por meio apenas de régua sem escalas e compasso, que se construa a partir dele

um quadrado de mesma área.123

A não contiguidade entre a área de um círculo, uma figura que em qualquer posição é

121

HEIDEGGER, M. Op. cit. 2002, p. 243. 122

CAPRA, Fritjof. Ponto de mutação: a ciência, a sociedade e a cultura emergente. São Paulo: Cultrix, 1995, p.58. 123

Cf artigos sobre o problema em http://super.abril.com.br/superarquivo/1989/conteudo_111717.shtml, e http://www.ime.usp.br/~leo/imatica/historia/quadr_circulo.html acessados em 07 de outubro de 2011.

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ela mesma, constante, absolutamente simétrica, e o quadrado, desenho que visa à igualdade

entre os seus lados, entre suas pontas/pontos e arestas, que visa à paridade entre as suas

medidas, mas não a infinitude, é, têm provado os matemáticos, irreconciliável.

Se quisermos pensar, poeticamente, o círculo, diríamos que ele requer a perfeição no

âmbito do “para-sempre”, ao passo que o quadrado, pela sua forma, se dá como um

construto efêmero: para cada lado do quadrado há um valor finito e previsível pela medida,

seus lados não dão as voltas intermináveis que o círculo empreende, pois que lados de um

quadrado124 sempre terminam...

Na ilustração que se segue, sobrepoem-se círculo e quadrado de mesma área:

Hipócrates de Quios (século V a. C.) também tentou quadrar linhas curvas, mas não

alcançou a tão requerida composição da “quadratura do círculo”. Sua tentativa se configurou

somente como uma aproximação, mas não como uma equivalência, e, assim, provou-se, com

seu legado, que é impossível a construção de um segmento de tamanho transcendental de

um , para que se chegue à “quadratura” de um círculo.

A “quadratura do círculo” representa, mais que um problema matemático insolúvel

por instrumentos tradicionais da geometria, “o problema da introdução do indivíduo

material na espiritualidade do Cosmo ou em Deus”.125 É uma questão que também se

configura pela busca do impossível, a tentativa de apreensão do inefável. A “quadratura”

pode também ser vista como o descanso do homem sobre o cálculo; como uma tomada de

posição no mundo motivada pela vontade de dominação, pela noção de que é possível

124

No Dicionário de Símbolos, encontramos a afirmação de que quadrado “se trata, em primeiro lugar da ideia de materialização, por oposição à de espiritualidade, ligada ao círculo ou à esfera” in: CHEVALIER, J. & GHEERBRANT, A. Op. cit. 2003, p. 257.

125 CHEVALIER, J. & GHEERBRANT, A. Op. cit. 2003, p. 757.

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racionalizar toda a Natureza, geometriamente. E é nos liames desse impossível cálculo, dado

pela própria infinitude do círculo, que aqui temos, na tensão entre círculo e quadrado, o

emblema, a metáfora do dualismo, no qual o “homem”, ao comportar-se como e com o

quadrado, instaura “a antítese do transcendente”126, torna-se antagonista dos movimentos

do mundo, reduzidos à objetidade:

[O quadrado] simboliza a interrupção (ou parada), ou o instante antecipadamente retido (...) implica uma ideia de estagnação, de solidificação; e até mesmo de estabilização na perfeição (...). O movimento livre e fácil é circular, arredondado, ao passo que a parada e a estabilidade se associam a figuras angulosas, linhas contrastantes e irregulares.

127

Algumas correntes científicas colocaram o peso da existência sobre o cálculo

geométrico, medindo a Terra com certezas matematicamente estabelecidas, para que o

mundo se lhes dê na palma da mão como um móbile parado: “a terra, medida por seus

quatro horizontes é quadrada”128, diz-se no bojo dos símbolos. Mas, ao que parece e, como

mostra a própria abstração matemática, o mundo sempre escapou do alcance da simples

quadratura. Oferecendo-se em seus movimentos circulares e, nessa oferta essencial, nos

fazendo “andar em círculos”, o mundo como eterna questão, não se restringe a respostas.

Sabemos, no entanto, que estamos nele. A Terra nos oferece um mundo. E enquanto ela gira

em torno do Sol; a Lua em torno dela; e tudo: Sol, Lua e outros planetas, pela galáxia girante,

giram, há quem tente quadrar o mundo para não sofrer as vertigens dos movimentos

circulares que nos colocam diante de suas questões. O caminho da “vertigem” nos parece o

caminho do pensamento poético, no qual:

... nos movimentamos (...) constantemente em círculo. Este é o sinal de que nos movimentamos no âmbito da filosofia. Por toda parte um andar em círculos. Este movimentar-se em círculos da filosofia é uma vez mais algo contrário ao entendimento vulgar. Este só quer realmente chegar até a sua meta, de modo a possuir as coisas e a manipulá-las. Caminha em círculos – com isto não se vai a lugar algum. Mas antes de tudo este movimento dá vertigem, e a vertigem é pavorosa. Sentimo-nos aí como se estivéssemos dependurados no nada. Daí o não a este movimento circular, assim como a exclamação: nada de círculo! É isto que diz ao menos uma regra lógica universal. Neste sentido, tem de ser a ambição filosófica científica prosseguir sem este círculo. Mas – quem nunca foi tomado pela vertigem em meio a uma pergunta filosófica ainda não chegou efetivamente a perguntar de maneira filosofante: nunca andou ainda em círculos. Em meio a este movimento circular, o decisivo não é a única coisa que o entendimento vulgar consegue ver, o andar ao longo da periferia e o retornar à mesma posição na periferia, mas sim o

126

CHEVALIER, J. & GHEERBRANT, A. Op. cit. 2003, p. 750. 127

de CHAMPEAUX G., dom STERCKX S. (O.S.B.) Introduction au monde de Symboles, Paris, 1966 p. 30-31, apud CHEVALIER, J. & GHEERBRANT, A. Op. cit. 2003, p. 750

128 CHEVALIER, J. & GHEERBRANT, A. Op. cit. 2003, p. 751.

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olhar para o interior do centro enquanto tal que é possível no curso circular e somente nele.

129

Assim, perguntamos uma vez mais: O que é o mundo? Para este cículo-questão,

insistimos em nos lembrar do 1º verso do poema “Amém”: “Hoje acabou-se-me a palavra”.

Isto é, hoje (num tempo determinado pela repetição dos dias, é sempre e, originariamente,

“hoje”) se dá o esgotamento da vida, o esgotamento do Ser e de seu vigor no desperdício do

dizer quadratizante. Diante da inexorável fruição da vida humana inserida,

irremediavelmente, no mundo, deveríamos nos perguntar sobre o que, de fato, é construído

pelo homem. O mundo, este lugar de conluio entre nós, os animais e outros seres, este lugar

oferecido pela Terra e entendido por Heidegger como “mundo ambiente"130, é o espaço que

nos enlaça e o lugar que nos permite a convivência comunitária na amplitude “da

totalidade”131 de sua “profusão imensa”.

Mas, no mundo, o que, uma vez construído pelo homem, de fato, permanece? E o

que fica para além da constante fruição da vida? A consciência de que o homem é um ser

que passa envolto pelo tirano tempo que passa é, na inquieta poesia ceciliana, uma

obsessão. A poeta capta a necessidade de permanência ante a angústia de passar,

contemplando e cantando o mundo, cerceada pela tensão vital de dar eternidade a tudo

que, sendo efêmero, seus versos tocam. Também se percebendo efêmero, o homem pode

“contemplar” o enorme espectro de coisas que se lhe apresentam sem tensão de saber e de

dar fim, com o saber, a todas as coisas. Assim, uma consciência da inexorável passagem do

tempo aponta, irremediavelmente, para o que, na poesia de Cecília Meireles, aqui

entendemos como sendo a contemplação da “profusão do mundo, imensa”, presente em

seus versos como mais um de seus motivos. Tão “imensa” e incoercível é essa “profusão”

que por ela nos flagramos, envoltos e lançados em sua prodigalidade, numa vertiginosa e

circular “Contemplação” poética:

129

HEIDEGGER, M. Os conceitos fundamentais da metafísica: mundo, finitude, solidão. Tradução de Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006, p. 207.

130 Martin Heidegger atribui a J. v. Uexküll o termo “mundo ambiente”, que, advém da noção de “mundo ao redor” (Umwelt) para defender a tese de que o animal é “pobre de mundo”, “a pedra é sem mundo” e o “homem constrói mundo” sendo essas diferenças de referência ao mundo as diferenças essenciais que se caracterizam como os conceitos ou questões fundamentais da metafísica. Conferir: HEIDEGGER, Martin. Op.cit. 2006, p. 229-30.

131 HEIDEGGER, M. Op. cit. 2006, p. 207.

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Não acuso. Nem perdoo. Nada sei. De nada. Contemplo. Quando os homens apareceram, eu não estava presente. Eu não estava presente, quando a terra se desprendeu do sol. Eu não estava presente, quando o sol apareceu no céu. E , antes de haver o céu, EU NÃO ESTAVA PRESENTE. Como hei de acusar ou perdoar? Nada sei. Contemplo. Parece-me que às vezes me falam. Mas também não tenho certeza. Quem deseja ouvir, nestas paragens onde todos somos estrangeiros? .............................................................................

(“Contemplação”, MA, 453)

Tão antigo quanto os homens é o exercício da “contemplação”. Do nascimento à

morte, contemplamos. A poeta se mantém perplexa ante a impossibilidade de explicar o

nascimento das formas do mundo e se retrai ao perceber-se diante da incompletude das

vozes: “Parece-me que as vezes me falam/ Mas também não tenho certeza”. Sua voz, por seu

turno incompleto, ensaia, balbucia afirmativas, aparentemente desconexas, que, ao longo do

poema, vão sendo eivadas pelo refrão “Eu não estava presente”, repetido quatro vezes na

segunda estrofe, uma delas grafada em letras maiúsculas que dão ênfase à inextricável

ausência de respostas. Porque “não estava presente/ quando a terra se desprendeu do sol

(...) quando o sol apareceu no céu”, a poeta se retrai diante da possibilidade de julgamento

dos fatos do mundo, não lhe sendo possível acessar as verdades pela acusação ou pelo

perdão. Na “contemplação” poética, o homem dista da tentativa de “quadratura do círculo”

e em, circular vertigem, se vê “entre” o que “parece ser dito” e o que “deseja ouvir, nestas

paragens/ onde todos somos estrangeiros”. Ao se perceber incapaz de reduzir ao discurso a

vigência de “tudo” que surge, mesmo “antes de haver céu”, pela phýsis, o homem assume-se

sob o véu de alethéia; sua “Contemplação” passa a ser uma cosmologia poética que não

prescinde do dizer explicativo. Contemplando-se integrado ao surgir incessante da phýsis, o

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homem religa-se, na vigência do caminho, à Terra que o sustenta, e, no seu seio maternal,

deleita-se. Escorre como um “rio desviado”, move-se com a velocidade de uma “seta

exilada”, é levado na “onda soprada ao contrário”, como podemos ver na continuação do

poema:

Por mais que me procure, antes de tudo ser feito, eu era amor. Só isso encontro. Caminho, navego, voo, – sempre amor. Rio desviado, seta exilada, onda soprada ao contrário, – mas sempre o mesmo resultado: direção e êxtase.

(“Contemplação”, MA, 455)

E, assim, no maravilhamento poético da “contemplação”, mesmo a empiria e a

episteme, experimentação e conhecimento, se dão como um exercício de comunhão do

homem com os outros elementos da/na Natureza e não como observação e domínio dos

entes como objetos deslocados do sentido original do deixar-ser, como se destaca em O

estudante empírico:

Minha aprendizagem é uma calma conquista, para provas de qualquer instante: estudante empírico, autodidata aplicado, em alma e corpo sou memória de diamante, visão sem pálpebra, disciplinada vista. (“Com minhas lições bem aprendidas”, EE, 1445)

Aquilo que entendemos como sendo a capacidade humana de “acusar” ou “perdoar”,

negada no poema “Contemplação”, dogmatização e a classificação comuns ao cientificismo,

é substituída pela empiria poética, que leva o homem à “aprendizagem” e à “calma

conquista” do conhecimento, instrumento para “provas de qualquer instante”. O esforço de o

homem entender-se e entender o mundo só se lograria, segundo nos diz o “estudante

empírico”, pela incursão dos nossos sentidos, “em alma e corpo” no mundo, pela

cristalização de “lições bem aprendidas”, que redundam, com o tempo, em “memória de

diamante”, “visão sem pálpebra” e “disciplinada vista”.

Cecília Meireles nos diz que precisamos aprender a ver para sermos felizes. A

felicidade está, como relata na crônica “A arte de ser feliz”, na observação das pequenas

coisas que se abrem aos nossos olhos e para as quais devemos estar atentos:

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HOUVE um tempo em que a minha janela se abria sobre uma cidade que parecia feita de giz. Perto da janela havia um pequeno jardim seco. Era uma época de estiagem, de terra esfarelada, e o jardim parecia morto. Mas todas as manhãs vinha um pobre homem com um balde e, em silêncio, ia atirando com a mão umas gotas de água sobre as plantas. Não era uma rega: era uma espécie de aspersão ritual, para que o jardim não morresse. E eu olhava para as plantas, para o homem, para as gotas de água que caíam de seus dedos magros e meu coração ficava completamente feliz. MAS, quando falo dessas pequenas felicidades, que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem, outros que só existem diante das minhas janelas e outros, finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim.

132

Em outra crônica, já aqui mencionada133, a poeta escreve sobre os próprios olhos,

denominando-os “tortos”:

(...) paisagem inumana é muito grata, contemplada por olhos tortos como os meus. (...) A paisagem inumana oferece espetáculos que, devidamente narrados, enchem de disciplicente inveja os que me escutam. (...) Quando digo que vejo cinco luas crescentes, em lugar de uma, – como os vulgares mortais, – há uma certa hostilidade contra mim, que eu percebo mesmo com os olhos generosos que tenho... E quando vejo a lua cheia, dilatando-se, respirando com o papo de um grande pássaro amarelo, e mostrando por dentro pulmões verdes e azuis, – ah! todos pensam que são imagens de poesia que ando querendo misturar com realidade. E é apenas o mecanismo do meu cristalino, agindo sob o rigor das leis que os físicos ensinam...

134

A atenção aos desenhos da Vida se dá por olhos generosos, que, agindo “sob o rigor

das leis que os físicos ensinam”, abrem-se, em profundidade poética, à profusão de

espetáculos que devem ser “devidamente narrados”. Cecília Miereles nega, com este dizer, a

a recorrente oposição dualista entre a “realidade” e as “imagens de poesia”. Quando se diz

“vidente do ar” (“Loja do astrólogo”, PI, 1031), a poeta advoga a simples necessidade de

vermos a realidade, isto é, “cinco luas crescentes, em lugar de uma”, “a lua cheia, dilatando-

se como o papo de um grande pássaro amarelo”, imagens que um “pseudo mundo cuja

integridade tanto defendem os de vista normal”135 obliterou.

Assim, a poesia permite aprofundar-nos na compreensão do Universo, para que não

nos debrucemos no apenas do cientificismo, mas façamos do humano dis-curso um “curso já

sem palavras de sabedoria”, que projete, “para além”, os nossos olhos, ao poético alcance do

impenetrável sentido de ciência:

132

MEIRELES, C. “A arte de ser feliz. In: ---. Escolha o seu sonho. Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 20-1 133

cf. nota 6 134

MEIRELES, C. Op. cit. 1998, p. 74. 135

MEIRELES, C. Op. cit. 1998, p. 75.

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estudante empírico, autodidata aplicado, desvalido, em mim mesmo, e para além, me aprofundo, para o curso já sem palavras da sabedoria. (“Com minhas lições bem aprendidas”, EE, 1445)

Neste sentido, a originária “Contemplação” do mundo, desde os antigos, impulsionou

a humanidade à observação dos fenômenos naturais, com a curiosidade de quem sempre

produziria, além de poesia e arte, ciência... Mas qual a essência da ciência? Se nos

fundamentarmos em uma maneira de olhar enraizada na Terra, perceberemos nossa posição

de lançados no mundo quando, como diz o poema, nos permitirmos ver “desvalidos em nós

mesmos”, aprofundando nossas raízes no solo do Ser, e quanto mais enraizados, mais

lançados em copas e ramagens de vivência, dando frutos “além” das rasas e superficiais

“palavras da sabedoria” dogmática. O incontornável caminho da raiz em busca da água que

lhe dá vida acerca-se do sentido originário e essencial da ciência.

Nas estrofes de “Mimetismo”, nos acercamos desse sentido. Nos versos, a

curiosidade humana ante uma das manifestações da phýsis é representada pelo “sábio no

jardim”. Diante do “artifício da borboleta” – “bordado” que “guarda, em paredes de medo,/ a

esperança da seiva”, se reitera três vezes que o “sábio no jardim sorria”, o que nos mostra

como o concentrado sorriso do “sábio” o acerca do incontornável:

O sábio no jardim sorria do artifício da borboleta convertida em folha amarela até com manchas e defeitos. O sábio sorria daquela mentira. Ó colorido embuste! Ó fingimento desenhado por cegos presságios e sustos! Para salvar seu breve tempo, - tempo de inseto! – dom dos vivos tinha a borboleta bordado seu sigiloso mimetismo. ............................................................. Sendo e não sendo, perto e longe, escondia-se, ignota e inquieta, guardando, em paredes de medo, a esperança da seiva eterna. O sábio no jardim sorria

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do cauteloso fingimento, de tênue silêncio expectante sobre os universais segredos. (“Mimetismo”, EE, 1443-4)

Entre a observação do “sábio” e o fingimento do inseto, a poesia desses versos recria,

no “sorriso” do homem, o maravilhamento contemplativo da “borboleta” que permanecerá

sempre, ao nosso olhar, “ignota e inquieta”, exímia praticante do exercício de “ser e não ser”

pelo “mimetismo”. Ao estabelecer o jogo do artíficio, entre o “ser” e o “não ser”, o inseto

escapa ao procedimento analítico e se oferece como enigma, “convertida em folha amarela/

até com manchas e defeitos”, ao observador que a contempla. Totalmente alheia ao

homem, o mimetismo da “borboleta” apresenta-se como uma “mentira”. Animal que se

assemelha, pela beleza, às flores, fruto do lento trabalho de metamorfose da lagarta, sobre

“mentiras” constrói a sobrevivência que lhe salva o “breve tempo de inseto”. Sua estratégia

de fingimento é “dom dos vivos”, como se afirma no poema, e, desse dom, nós humanos

também nos servimos. Por ele, o inseto agoniza “perto e longe” da morte, assim como nós,

no tempo de nossa ek-sistência, aguardamos a “esperança da seiva eterna”. O “tênue silêncio

expectante” da “borboleta” nos oferece, por fim, de modo diminuto, uma expressão da

potência totalizante da phýsis, pois “universais segredos” perduram em suas delicadas e finas

asas, ranhuras aladas na “folha amarela”.

A cor, com que o inseto imita o ambiente em redor, a tudo o integra. O mimetismo é

o escape da morte, no prazo da vida; é o presente no qual o animal se dá, na abertura de sua

essência, ao mundo, reverberando, na aparência, o próprio mundo como “folha”. Diante do

“colorido embuste”, resta ao “sábio” sorrir. E o sorriso, égide da “Contemplação”,

fundamentará sua tomada de ciência do mundo, sem intensão de domínio, já que, no

“mimetismo” da borboleta, repousam, como dissemos, os mistérios dos “universais

segredos”.

A postura do “sábio”, sua curiosidade expectante, diante daquilo que não se dá por

completo, mas finge ser outra coisa, nos lembra o posicionamento do homem no mundo.

Sem reduzir o animal à sua retina, mas o deixando-ser em sua verdade, a poeta-observadora

da “borboleta” nos coloca, uma vez mais, diante da contemplação. O que é a contemplação?

Em que sentidos podemos pensá-la? Provocados pelo poema de Cecília Meireles, somos

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lembrados insistentemente que “não estamos presentes” ao nascimento das formas. A

“Contemplação” repousante sobre expressões poéticas que cantam a “profusão do mundo,

imensa” nos leva agora a confrontar a corrente noção de ciência com o seu sentido

originário. Como nos instiga o fato de o “sábio”, em vez de dizer qualquer verdade, sorrir! E

como fala o silêncio sob o que ambos, “sábio” e “borboleta”, permaneceram integrados!

Vimos no capítulo anterior que Martin Heidegger diz ser Parmênides, Heráclito e

Anaximandro os “pensadores originários” não por “abrirem” o pensar do Ocidente (mesmo

porque, antes deles, já havia pensadores), mas por pensarem, originariamente, a “origem”.

Em contraponto ao elogio desses pensadores, o autor de Carta sobre o humanismo explica

que a escolha, no Ocidente, pela ratio como versão final de todo e qualquer discurso,

colocou sobre os ombros da ciência, a explicação para a “origem”. A inexorabilidade da

verdade atribuída à ciência esbarra na percepção de que, em essência, “A ciência não pensa.

(...) Das ciências para o pensamento não há uma ponte, mas somente um salto”136. Neste

sentido, a ciência e a técnica modernas, distanciadas do que questiona o pensamento da

origem, isto é, distanciada da dinâmica de des-velamento do Ser, passou a apenas visar o

ente, discorrer sobre ele, delimitá-lo às suas camadas individuais e aspectos circunscritos137,

crendo-se, segura, de que o discurso sobre o ente é em si mesmo o Ser, ou seja, de que o

originário do ente estaria no discurso e não no Ser.

Assim, o discurso da ciência moderna, visa ao ente como assunto, projeta-o como ob-

jeto disposto à análise, num intuito metafísico de classificação (ou de “abandono do Ser pelo

ente”). Sob o domínio da classificação dos entes e distantes da esfera do agir como essência

do pensamento humano, “Nós ainda estamos muito longe de pensar a essência do agir de

maneira suficientemente decisiva. Só conhecemos o agir como produção de um efeito, cuja

realidade vem segundo sua utilidade”.138 Os poetas, na via oposta, sempre atentos às

armadilhas da língua dogmatizante, questionam, com o seu canto, a pretensa capacidade de

o homem dar nome às coisas em redor. Certos de que o discurso não dá conta da “profusão

do mundo, imensa”, procuram afastar-se dos homens que “combatem pelo que julgam

saber” (“Não sei distinguir as várias constelações”, EE, 1439); como faz Cecília Meireles ao

questionar, entre frases afirmativas e interrogativas, o cerceamento da “gramática” do

136

HEIDEGGER, M. O que quer dizer pensar. Gilvan Fogel (trad.) In.: Op.cit. 2002, p.115. 137

HEIDEGGER, M. Op.cit. 2008, p. 21. 138

HEIDEGGER, M. Op. cit. 2008, p. 327-376.

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“dicionário”, no poema “Todas as coisas têm nome”:

Todas as coisas têm nome. (Têm nome todas as coisas?) Todos os verbos são atos. (São atos todos os verbos?) Com a gramática e o dicionário faremos nossos pequenos exercícios. Mas quando lermos em voz alta o que escrevemos, não saberão se era prosa ou verso, e perguntarão o que se há de fazer com esses escritos: porque existe um som de voz, e um eco – e um horizonte de pedra e uma floresta de rumores de água que modificam os nomes e os verbos e tudo não é somente léxico e sintaxe. Assim temos visto. 1960 (“Todas as coisas têm nome”, EE, 1437)

Ao se declarar em constante aprendizagem, no poema “Hoje desaprendo o que tinha

aprendido até ontem”, a poeta destrincha a “frágil escola que somos”:

Hoje desaprendo o que tinha aprendido até ontem e que amanhã recomeçarei a aprender. Todos os dias desfaleço e desfaço-me em cinza efêmera: todos os dias reconstruo minhas edificações, em sonho eternas. Esta frágil escola que somos, levanto-a com paciência dos alicerces às torres, sabendo que é trabalho sem termo. E do alto avisto os que folgam e assaltam, donos de risos e pedras. Cada um de nós tem sua verdade, pela qual deve morrer. De um lugar que não se alcança, e que é, no entanto, claro, minha verdade, sem troca, sem evidência nem desengano permanece constante, obrigatória, livre: enquanto aprendo, desaprendo e torno a reaprender.

1961

(“Hoje desaprendo o que tinha aprendido até ontem”, EE, 1442-3)

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A ciência moderna distanciou-se de posturas como a do poema, em que somos

apresentados a uma uma “verdade, sem troca, sem evidência nem desengano”, a qual se

expressa por uma confessada capacidade de aprender e desaprender enquanto o ser

humano se desfaz “em cinza efêmera”, ou seja, enquanto ergue um construto de

conhecimentos inconclusivos, de questões sem respostas prontas, “do edifício às torres” da

sua humana vivência.

O discurso científico se tornou reinante em nossa cultura como última e única versão

da verdade. Na virada do paradigma de pensamento medieval para a modernidade, se

destacam nomes como Francis Bacon, o qual, paramentado numa profunda e empolgada

crença nos poderes de dominar pelo conhecimento todos os elementos da Natureza, do

homem às Estrelas, defendia arduamente, na Inglaterra do século XVII, a investigação

científica como única responsável pelo progresso da humanidade; dizendo ser necessário

enfrentar a Natureza “acossando-a em seus descaminhos”, “obrigando-a a servir”, “extraindo

dela, sob tortura, todos os seus segredos”139. Além dele, como dissemos, René Descartes foi

emblemático representante de um espírito científico que renegou toda e qualquer

possibilidade de dúvida no caminho do homem em busca do conhecimento e na sua relação

com o mundo: “Rejeitamos todo conhecimento que é meramente provável e consideramos

que só se deve acreditar naquelas coisas que são perfeitamente conhecidas e sobre as quais

não pode haver dúvidas”140. Seu postulado de certeza absoluta veio, no século XX, a ser

questionado pela noção de “verdade aproximada” da física quântica, a qual colocou sob os

escombros do impossível cálculo a compreensão do universo.

Sabemos, porém, que os poetas e pensadores originários retraem-se diante dos

“universais segredos” que a eles se apresentam. Vendo-se incapazes de dar “nome” a “todas

as coisas”, os poetas só elaboram suas thésis (sentido grego para “posicionamento”) no

abarcar da phýsis141. Sua “verdade” se expressa num constante exercício de aprendizado:

“enquanto aprendo, desaprendo e torno a reaprender”. Assim, como no poema de Cecília

Meireles, no mesmo passo em que afirmam que “Todas as coisas têm nome”, os pensadores

139

MERCHANT, Carolyn: The death of nature. Nova Iorque: Harper & Row, 1980 apud CAPRA, F. Op. cit. 1995, p. 52. 140

GARBER, Daniel. Sience and certainty in Descartes. In: HOOKER, Michael (org.): Descartes, John Hopkins University Press, Baltimore, 1978 apud CAPRA, F. Op. cit. 1995, p. 54.

141 HEIDEGGER, M. Op. cit. 2002, p. 40

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originários põem em questão o próprio poder de afirmar, ao manterem a dúvida interna,

representada pelo verso entre parênteses: “(Todas as coisas têm nome?)”. São “sábios”

porque resguardam seu posicionamento no incontornável sentido originário da ciência,

vizinho à essência do agir humano: o pensamento. Ao se verem lançados num mundo que

des-vela e encobre a Natureza, os pensadores originários reconhecem que “um horizonte de

pedra” “e uma floresta de rumores e água” têm o poder de transformar “os nomes e os

verbos”, pois “tudo não é somente léxico e sintaxe”. Assim, a potência criadora do homem é

fruto das lições da “aula do silêncio”, que faz permanecer encoberto o incontornável do que

é visto, do que é escutado e do que é sentido no mundo. Não se ditam nomes e regras ao

agir da phýsis. O sentido mais originário dessa postura e dessa escuta do silêncio aponta para

a vigência de uma operação, a qual pretendemos pensar, segundo a leitura de Martin

Heidegger e segundo a instigante oscilação entre afirmação e questionamento que vimos no

poema de Cecília Meireles. Tão essencial quanto o operar de uma obra de arte, a essência da

ciência opera no originário pensar dos pensadores e dos poetas, opera como algo

“inalcançável”, que não se reduz ao saber, mas só se dá no âmbito “do que é digno de ser

pensado”.

Na conferência Ciência e pensamento do sentido, Martin Heidegger diz ser “a ciência

a teoria do real”142. Colocando em evidência os caminhos por que se enveredaram os

trajetos conceituais do pensamento ocidental, o autor estuda a noção de que a ciência,

entendida em sua representação habitual, mais propriamente a ciência moderna, marca um

desencontro do homem com a vigência do real: “A frase ‘a ciência é a teoria do real’ não vale

nem para a ciência medieval nem para a ciência antiga”143. Heidegger nos lembra que os

sentidos originários da ciência não se guardam sob concepções correntes de teoria,

conhecimento, que levam o “conjunto de poderes humanos” à “dominação planetária”.144

O “real” de que “a ciência é a teoria” remete à noção de “operação”, a qual, por sua

vez, volta nossos ouvidos à palavra grega thésis. Thésis é o posicionamento do homem na

phýsis: “ é , a saber, a pro-posição de algo por si mesmo, no sentido de pôr em

frente, de trazer à luz, de a-duzir e pro-duzir, de levá-lo à vigência. É, neste sentido, fazer que

142

HEIDEGGER, M. Op. cit. 2002, p. 40. 143

HEIDEGGER, M. Op. cit. 2002, p. 40. 144

HEIDEGGER, M. Op. cit. 2002, p. 39.

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equivale a operar, que diz viger uma vigência. Assim, o real é o vigente”. 145. Mas, em algum

momento da história, se desfez, flagrantemente, a ideia de que o posicionamento (thésis) do

homem na phýsis era a própria phýsis agindo no e pelo homem, pelo que os poetas

procuram pôr em evidência, generosamente, o relacionamento do homem com o mundo,

intricado a tudo. Através do vidente olhar dos poetas, os “universais segredos” do mundo se

oferecem à “Contemplação”. Tais segredos des-locam-se como objetos, fogem à dominação

do conhecimento tal como estamos acostumados a lidar, mas se nos apresentam em sua

vigência, isto é, como cada coisa que vige pelo deixar-ser.

Mas por que Heidegger diz que a ciência moderna é uma “teoria do real” distante do

que foi a ciência para o pensar antigo, isto é, distante do pensar de “maneira grega” como

costuma postular o filósofo?

O autor de A origem da obra de arte faz uma importante leitura do termo “teoria”

presente nessa afirmativa sobre a ciência moderna. Essa leitura nos ajudará aqui de modo

especial na apreciação da 2ª esfrofe do poema “Amém” e das questões que seus versos nos

têm trazido neste momento, a saber: a “contemplação” da “profusão do mundo, imensa”; a

questão do conhecimento, cantada pelo “estudante empírico”; e, como veremos mais

adiante na seção 2.2, os sentidos de mundo, como lugar “mágico” transformado pela ação

humana naquilo que Cecília Meireles chamou, em um importante poema que destacaremos,

de “quermesse da miséria”.

Em sua habitual acepção, desligada do sentido originário de ciência, o termo “teoria”

se distancia um pouco dos étimos gregos (theorein) e (theoría), palavras

transpostas para o latim, respectivamente, como contemplari146 e contemplatio e, para a

nossa língua, como “contemplação”. Por contemplari, desapareceu, segundo Heidegger, o

sentido originário grego, pois o termo latino diz respeito ao ato de “separar e dividir uma

coisa num setor e aí cercá-la e circundá-la”.147 O templum latino, residente no termo

contemplari, é o setor recortado do céu, a “quadratura” medida e cálculada do círculo, com

que o homem divide a totalidade da phýsis e torna essa totalidade alcançável à sua

percepção visual. A tradução latina contemplatio também fala de uma observação no sentido

de consideração, concentração religiosa; bem como do ato de observar, um quadro em cuja

145

HEIDEGGER, M. Op. cit. 2002, p. 42. 146

HEIDEGGER, M. Op. cit. 2002, p. 46. 147

HEIDEGGER, M. Op. cit. 2002, p. 46.

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experiência nos sentimos libertados. Por esse sentido, teríamos que a “teoria” é a

observação do real, ainda distanciada, para Heidegger, do sentido grego de , pois que

o sentido de observação, advindo de contemplatio, como atitude divisora de intervenção no

real acerca-se, antes, da experiência da ciência moderna como uma “regência objetivada do

real à medida que, por sua atividade de teoria, ex-plora e dis-põe do real na objetidade”148.

Isto é, a ciência moderna como teoria do real entende tudo que se lhe dá como já dissemos

aqui de diferentes modos, como objeto, para que o real possa ser ao homem algo previsível

pela medida e pelo cálculo, pois que, como afirma Heidegger é no cálculo que reside para o

homem da ciência um descanso, “o procedimento assegurador e processador de toda a

teoria do real”149

Mas o autor diz que, ainda assim, mesmo perseguindo o real com o cálculo em mãos,

“a sombra da originária sempre atravessa a “teoria” de uso moderno”.150 Por quê? É

no mistério deste sentido que podemos afirmar que o exercício poético da “Contemplação”

não é de modo algum sinônimo do que vimos, brevemente, como a transposição latina de

contemplatioA essência da ciência permanece desconhecida ao homem da ciência

moderna, se guarda num mistério não representado, se guarda naquilo que permanece

sempre incontornável enquanto objetidade. A “contemplação”, ensejada em tantos poemas

por Cecília Meireles, advém mesmo e sem alteração do sentido grego de porque a

poeta percebe que sempre o real é o que vige; não um “isso” do que se pode acercar com

discursos de causalidade e consequência. A poiesis com que o poeta pro-duz o seu canto é a

própria experienciação do real em sua vigência. Todo canto poético é um pro-duzir do “real”

e do real em sua vigência. Na contemplação poética, “o incontornável que rege e reina na

essência da ciência”151 está sempre e mais uma vez colocado nos versos com que o poeta

canta o abarcar enorme, profuso da imensa phýsis. Esse incontornável que está na essência

de toda “teoria” científica (mesmo que a própria ciência moderna não se aperceba disso)

chama-se de “pensamento do sentido”, o pensamento que nos põe a caminho do lugar de

nossa morada, isto é, um lugar que é o ininterrupto questionamento, entrega inesgotável do

148

HEIDEGGER, M. Op. cit. 2002, p. 48. 149

HEIDEGGER, M. Op. cit. 2002, p. 49. 150

HEIDEGGER, M. Op. cit. 2002, p. 46. 151

HEIDEGGER, M. Op. cit. 2002, p. 55.

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homem ao Ser, aquilo que é digno de ser questionado.152

Nessa entrega, Cecília Meireles se reconhece “estudante empírico/ autodidata

aplicado”, não enredado em “palavras da sabedoria”:

Mas decerto o que aprendo é meu somente, meu patrimônio incomunicável, sem herdeiro; estudante empírico, autodidata aplicado, professor meu sou e único aluno verdadeiro, e, a minha, é a escola da humana gente. Apenas meu esforço ultrapassa noite e dia, torna-me em aula constante o tempo do mundo (“Com minhas lições bem aprendidas”, EE, 1445)

“O estudante empírico”, diante do real que vige e fulge sua intermitente luz, nos

recônditos de tudo que surge na phýsis, detém os seus ouvidos às questões que aparecem,

instantâneas, passageiras, efêmeras: eternas! Seu olhar atém-se ao tempo presente para

apreender “nossa existência”, “nosso itinerário”, “nosso corpo” e “nosso destino”. Atento à

“grande aula do silêncio”, o poeta-aprendiz fecha o livro e contempla para, só então,

perceber que o incontornável des-vela o mundo, o “redondo horizonte”, a “ilusão dos

firmamentos”:

O ESTUDANTE EMPÍRICO Eu, estudante empírico, fecho o livro e contemplo. Eis o globo, o planisfério terrestre, o planisfério celeste, o redondo horizonte, a ilusão dos firmamentos. E a nossa existência. Eis o compasso, o esquadro, a balança, a pirâmide, o cone, o cilindro, o cubo, o peso, a forma, a proporção, as equivalências. E o nosso itinerário. Saem das suas caixas os mistérios: desenrola-se o mapa dos ossos, com seus nomes; o sangue desenha sua floresta azul; cada órgão cumpre um trabalho enigmático: estamos repletos de esfinges certeiras.

152

HEIDEGGER, M. Op. cit. 2002, p. 59.

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E o nosso corpo. E os dinossauros são como carro de triunfo, reduzidos à armação; e no olho profundo do microscópio a célula se anuncia. E o nosso destino. O professor escreve no quadro o Alfa e o Ômega. A luz de Sírius ainda lança escadas em contínua cascata. E lentamente subo e fecho os olhos e sonho saber o que não se sabe simplesmente acordado. Grande aula, a do silêncio. Dezembro, 1962 (EE, 1452-3)

Que quadratura do círculo poderia empreender-se nesse exercício de poética

empiria? Mesmo que munido dos tradicionais instrumentos de medição e cálculo–

“compasso”, “esquadro”, “balança”; dos seus construtos – “pirâmide”, “cone”, “cilindro”,

“cubo”; dos seus parâmetros de cálculo: “peso”, “forma”, “proporção”, “equivalência”, o

“estudante empírico” fecha o livro e contempla: está diante do incontornável. O “itinerário”

humano repleto de “esfinges certeiras”, na incompletude de sua pesquisa, desenrola-se e

reinventa-se. Os mistérios “saem de suas caixas”, des-velam-se o “mapa dos ossos”, “os

dinossauros” como “carros de triunfo” tombam como verdades inconseguidas sob “a luz de

Sírius”, estrela refulgente em “contínua cascata”.

Na tensão constante entre o ser e o devir, determinação e indeterminação, assentam-

se, como “esfinges certeiras”, diante de nós, os limites e os deslimites da medida. Ei-lo, o

incontornável. “Esfinges” apresentam-se como a Édipo, e as questões do mundo alimentam-

se de “nosso destino”, nos trançam nos fios da vida as Moiras!

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2.2. Dos desenhos de um “mundo mágico” aos ruídos da “quermesse da miséria”

“Que tudo retorne a mais extrema aproximação de um modo do devir e do ser: cume de contemplação”

Friedrich Nietzsche153

Voltemos ao poema “Contemplação”: Não acuso. Nem perdoo. Nada sei. De nada. Contemplo.

(“Contemplação”, MA, 455)

Pensemos o mundo como uma medida. Na esteira do dizer de Heráclito,

relembremos uma vez mais: “o mundo (...) fogo sempre vivo, acendendo segundo a medida

e segundo a medida apagando.”154. Que medida é esta que se impõe ao fogo,

intermitentemente, acendendo e apagando o “mundo”? Neste ponto de nosso trabalho

perscrutaremos, com Cecília Meireles, num primeiro momento, como o “mundo” em

“profusão, imensa” se nos apresenta como um Jardim; e, num segundo momento, como

nosso mundo interior foi devastado, transformando-nos em habitantes da “quemesse da

miséria”.

A postura estoica de Cecília Meireles dada em toda sua obra como sendo um “estado

de espírito fundamental”155, se afirma constantemente por não fazer, como poeta que é,

juízo de valor das coisas, não estabelecendo qualquer tipo de moral, cuja honra se assentaria

sobre uma noção de domínio sobre o mundo:

Não acuso, nem perdoo Que faremos, errantes entre as invenções dos deuses?

(“Contemplação”, MA, 455)

Seu dizer é um calar-se, é fruto de um sentimento de pertencimento a um domínio

153

NIETZSCHE, F. Fragmentos Póstumos – final de 1886 – primavera de 1887 apud MACHADO, Roberto. Zaratustra, Tragédia Nietzschiana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p. 147. 154

HERÁCLITO. Op. cit. 2005, p. 67. 155

CROCE, B. A poesia. Flávio Loureiro Chaves. Porto Alegre, Ed. da Faculdade de Filosofia da UFRGS, 1967, p. 176-177 apud GOUVÊA, L. Op. cit. 2008, p. 66.

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maior, que reverbera, na experiência pessoal, a “ordem”, numa entrega do homem ao

mundo, em abertura ao Todo. Como podemos perceber, a “Contemplação” nos leva a uma

geometria poética:

Já vês que me enterneço e me assusto, entre as secretas maravilhas. E não posso medir todos os ângulos do meu gesto. Noites e noites, estudei devotamente nossos mitos e sua geometria.

(“Contemplação”, MA, 455)

Não estivemos presentes nos primórdios da criação... O mundo como possibilidade

de abertura à pre-sença do Ser no ente, em sua fulgente e interminente luz, faz perpassar

aos nossos olhos “secretas maravilhas” que assustam aqueles que, pretensas testemunhas

oculares totais, tentam “medir todos os ângulos do gesto”. Fato é que todos os fatos que

englobam o que chamamos de “mundo” ou de “história” mais nos deveriam levar ao

“espanto” diante dos “nossos mitos e sua geometria”. Há, subjacente a toda explicação lógica

do mundo, “maravilhas” que nos remetem ao paradoxo de, como afirma Martin Heidegger,

estarmos em dupla situação no mundo, pois somos: “1. uma parte do mundo” e “2.

enquanto esta parte, (...) ao mesmo tempo senhores e servos do mundo”156. Assim, a

dubiedade dessa situação flagrante em que nos encontramos nos é revelada no poema pelo

paradoxo entre a impossibilidade de medir “os ângulos do gesto” e a possibilidade de

estudar “a geometria dos mitos”. Entre sermos construto do próprio mundo e, nele,

construtores de arquiteturas.

O que é a “geometria” do mito? É o incontornável reinante na essência da ciência, na

essência da contemplação, tal qual vimos na seção anterior? É a medida que se dá como

“explicação” para a origem, para o nascimento e morte dos deuses, das formas, do mundo,

dos homens, animais, plantas, minerais? É uma forma de nos compreender, pelas medidas

do mito; uma inquietação poética, sempre atiçada pela íngreme carga de incerteza posta

sobre os olhos, pelos fenômenos da Terra e pela condição humana? A impossilidade de o

homem abarcar, com os olhos diminutos, curtos e limitados, a totalidade, é a doação de um

não saber vazio que, na poesia, eiva de questões e espantos “nossas viagens” pela ek-

sistência, lançados em “cargas ocultas de desconhecidos vínculos”:

156

HEIDEGGER, M. Op. cit. 2006, p. 206.

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Não cabe à Geometria meramente a afirmação de uma função enquanto ferramenta que serve ao homem na compreensão das coisas. Ela é em si um mundo que se dá no agir humano enquanto pro-cura originária, isto é, é mais um caminho que afirma o homem na tensão do questionamento, é mais uma possibilidade dentre a infinitude de caminhos que abarca o homem no seu viver.

157

Motivados pela consciência de pequenez do status humano, sabemos que:

Tão poucos somos – e tanto causamos, com tão longos ecos! Nossas viagens têm cargas ocultas, de desconhecidos vínculos. Entre o desejo de itinerário, uma lei que nos leva age invisível e abriga mais que o itinerário e o desejo. Que te direi, se me interrogas? As nuvens falam? As nuvens tocam-se, passam, desmancham-se. Às vezes, pensa-se que demoram, parece que estão paradas... – Confundiram-se. E até se julga que dentro delas andam estrelas e planetas. Oh, aparência... Pode talvez andar um tonto pássaro perdido. Voz sem pouso, no tempo surdo.

......................................................................................

Eu não estava presente, quando formaram a voz tão frágil dos pássaros. Quando as nuvens começaram a existir, qual de nós estava presente?

(“Contemplação”, MA, 455)

Qual de nós pode afirmar algo sobre o mundo e sobre nós mesmos sem se dar conta

de todas as inquietantes dúvidas? A “Contemplação” do incontornável nos remete à

“geometria” do extraordinário, a uma “geometria” que não é mera medição deste mundo,

círculo-questão inescusável em seu cromo de mínimos segredos. Contemplar abre nossos

olhos ao “nascimento mudo das formas”, os ouvidos para as músicas das águas, os braços

para os movimentos do ar e para as plasmaticidades do fogo, os dedos à tepidez da terra e o

espírito à co-moção profunda:

157

PESSANHA, Fábio Santana. Poética do teatro: reunião de corpo, terra e mundo. In: REVISTA TEMPO BRASILEIRO. out-dez 2007 nº 171 – 2007. Rio de Janeiro, Tempo brasileiro. p.104

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MADRUGADA NO CAMPO

Com que doçura esta brisa penteia a verde seda fina do arrozal – Nem cílios, nem pluma, nem lume de lânguida lua, nem suspiro de cristal. Com que doçura a transparente aurora tece na fina seda do arrozal aéreos desenhos de orvalho! Nem lágrimas, nem pérola, nem íris de cristal. Com que doçuras as borboletas brancas prendem os fios verdes do arrozal com seus leves laços!! Nem dedos, nem pétalas, nem frio aroma de anis em cristal. Com que doçura o pássaro imprevisto de longe tomba no verde arrozal! – Caído céu, flor azul, estrela última: súbito sussurro e eco de cristal. (MA, 460)

É “Madrugada no campo”! As paisagens interior e exterior se reúnem sob a

penumbra da noite e uma luz negra repousa sobre os sentidos dos que dormem, revelando

em atmosfera de sono e sonho, o que, na abertura de um “campo” de arroz, provavelmente

ermo e longínquo, nos sintoniza ecologicamente ao mundo. “Com que doçura esta brisa/

“penteia a verde seda fina do arrozal”?

É preciso abrirmos nossos sentidos para, no jogo de imagens empreendido pelos

versos, percebermos que o integrar-se do vento ao campo de arroz nos remete a sensações

outras, que se poderiam assemelhar a este pentear a “verde seda fina”, mas “Nem cílios,

nem pluma, /nem lume de lânguida lua, nem suspiro de cristal” apresentam tal doçura,

grande prêmio da noite para o campo. Empreendendo a marcha da viração do silêncio, a

madrugada, tempo suspenso sobre o campo de arroz, nos apresenta, com suas minúcias,

um mundo intrinsecamente vegetal que vai sendo transformado pela “ transparente aurora”,

instante esplêndido que tece a “seda fina do arrozal”: sem “lágrimas”, sem “pérola” “nem íris

de cristal”.

Da fina claridade matinal, que chega de dentro do próprio “campo”, “borboletas

brancas”, num tênue exercício, prendem “os fios verdes do arrozal/ com seus leves laços”. O

branco trabalho dessas parcas difere, ek-sistencialmente, dos “dedos”, das “pétalas” e do

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“frio aroma de anis em cristal”. Mas é apenas com o “pássaro imprevisto” que se dará a final

re-união do “Caído céu” – “flor azul”, “estrela última” – com o seio da Terra, “verde arrozal”,

nos liames dos tempos noturno e diurno. Extraordinariamente, o “pássaro imprevisto”

estabelece o corte desses tempos. Caído sobre o mundo, lança-se sobre o “verde arrozal”

fazendo convergir direções do mundo que pareciam disparatadas.

Percebemos como, nesta integração, o simples e “súbito sussuro” é, do pássaro à

manhã, a re-união de todos os elementos da Natureza, que, tocados pela “brisa”, pela

“transparente aurora” e pelas “borboletas brancas”, irrompem o claro “eco de cristal” que

des-encobre “com doçura” uma comunhão poética, pressentida no jogo de sombra e luz da

“madrugada no campo”. Assim, o “cristal”, reiterado no fim de cada estrofe da “madrugada”,

é a própria manhã que ecoa na voz do “pássaro”. Trazido de modo “imprevisto”, o “eco” que,

do “pássaro”, espelhou o “súbito sussurro” era a “doçura” que sentimos “na madrugada do

campo”. Assim, cada coisa no seu lugar é, em sua propriedade ek-sistencial, resguardada com

o todo que as tolda.

A percepção da vida como “desenho” aparece no título de doze poemas de Cecília

Meireles. Em “Desenho quase oriental”, por exemplo, observamos que um jogo entre “flor” e

“borboleta” des-oculta os sentidos de integração entre ser humano, flor, vento e borboleta:

Uma borboleta que voa sobre um vento que é o seu retrato, numa árvore, parece que chama por ela, parece que adeja o convite de amarem-se. Parece que a flor lhe responde, que é presa, sem asas, que vive e morre no ramo. Parece que é triste não ir pela brisa de amores bem longe. Parece que as duas se entendem, parece que as duas deploram. Parece. Mas sempre há uma brisa forte que leva, com asas quebradas, as pétalas. (“Desenho quase oriental”, D, 1643)

A contemplação também desenha a comunhão do homem, desde a Terra, com o Céu.

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Há um Céu interior ao homem, um Céu ainda desconhecido, que traz “de longe” uma dor,

ferida de “outra mão”, que torna inteiriça a referência do homem ao “peixe ferido” e “ao fio

descido” sobre o “coração”. A poeta traça retas, que, superpostas, espelham o Céu na Terra,

nos remetendo à imagem das “linhas de anzol”:

DESENHO

Pescador tão entretido numa pedra ao sol, esperando o peixe ferido pelo teu anzol há um fio do céu descido sobre o teu coração: de longe estás sendo ferido por outra mão. (RN, 655)

O poema é um desenho geométrico em que pescador e peixe e Céu se entretêm,

num triângulo. Sem medir a dimensão das “feridas”, a linguagem poética percebe a linha de

fuga e o confronto das esperas: do homem pelo peixe fisgado e de Deus pelo homem

“entretido”. Mas, como tudo a tudo se pertence, não permanecemos alheios à cena como

espectadores fugazes; de um triângulo, se constrói uma poética quaternidade, na qual somos

incluídos pelo poeta – lançador final das linhas. Homem, Natureza, Deus se entrecruzam

neste tecido poético em que as “linhas de anzol” desdobram-se, do céu ao mar. Exterior e

interior se estabelecem, assim, como dobras do mesmo espetáculo. Podemos ainda perceber

que água, terra, fogo e ar se com-põem nos versos. Na “pedra ao sol”, temos o singular toque

do fogo imenso na terra, estes acolhem, no consentimento do conjunto, o homem entre o ar

e as águas. As expressões da phýsis nos elementos dis-põem cada coisa em seu lugar, num

abrigo de “amizade”, em que o homem serenamente espera.

Os detalhes do mundo também são desenhados no poema “Grilo”, inseto a quem se

atribuiu extraordinária responsabilidade. Nos versos que se seguem, o toque noturno do

grilo é uma maquinaria de fenômenos e sensações:

Máquina de ouro a rodar na sombra, serra de cristal a serrar estrelas... ............................................................. Máquina de ouro tremendo no ar de vidro frio,

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cortando o broto das palavras rente à boca... Desmanchando nos dedos arquiteturas que iam parando, e livro de imagens que o vento compunha, ilogicamente. Ah! que é dos ramos de estrelas finamente desprendidas pela sonora lâmina que estás vibrando sempre, sempre? (“Grilo”, V, 263-4)

Natureza, um “livro de imagens que o vento compunha”! Assim como o poeta, assim

como cada um de nós, a Natureza “nos dedos” do homem e do grilo, próximos, intimamente

ligados, desmancha arquiteturas separativas, dissolve as construções de barreiras,

ressignifica as distâncias, transborda em referências poéticas, “ilogicamente”. O minimalismo

empreendido pelo poema, atento às minúcias do cenário, aponta para a união integradora

do “grilo” – no fundo da terra, entre as plantas – com as altas e distantes estrelas. Ao

percebermos reunidos no “grilo” as potências do “ouro” e do “cristal”, nos tornamos capazes

de negar a percepção comum do animal. Transmutando-se em “máquina” e em “serra”, o

“grilo” toca sua sempre música da noite nos campos silenciosos. Tal transmutação alquímica

do “grilo” em “ouro” também ocorre quando os artefatos “máquina” e “serra” são salvos do

perigo de uma simples acepção instrumental, unidos, pela metáfora, ao grilo. E nesse

exercício poético um canto de sono exerce a ultrapassagem da percepção horizontal dos

conceitos, para, com um “grilo”, ganharmos rico mosaico de imagens novas: entre o fremir

de suas patas, erguem-se os construtos da “máquina”, da “serra”, do “ouro” e do “cristal”,

pela interligação eco-lógica de todos os elementos.

Ao mesmo tempo em que observa o espetáculo das demais expressões e criações da

Natureza, Cecília Meireles nos traz o sentido do enternecimento poético da integração ao

mundo e ora comparativamente pelo símile às plantas e aos animais, ora pelo “Desenho” da

memória poética:

Fui morena e magrinha como qualquer polinésia, e comia mamão, e mirava a flor da goiaba. E as lagartixas me espiavam, entre os tijolos e as trepadeiras, e as teias de aranha nas minhas árvores se entrelaçavam

Isso era um lugar de sol e nuvens brancas, onde as rolas, à tarde, soluçavam mui saudosas… O eco, burlão, de pedra, ia saltando, entre vastas mangueiras que choviam ruivas horas.

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Os pavões caminhavam tão naturais por meu caminho, e os pombos tão felizes se alimentavam pelas escadas, que era desnecessário crescer, pensar, escrever poemas, pois a vida completa e bela e terna ali já estava.

Como a chuva caía das grossas nuvens, perfumosa! E o papagaio como ficava sonolento! O relógio era festa de ouro; e os gatos enigmáticos fechavam os olhos, quando queriam caçar o tempo.

Vinham morcegos, à noite, picar os sapotis maduros, e os grandes cães ladravam como nas noites do Império. Mariposas, jasmins, tinhorões, vaga-lumes moravam nos jardins sussurrantes e eternos.

E minha avó cantava e cosia. Cantava canções de mar e de arvoredo, em língua antiga. E eu sempre acreditei que havia música em seus dedos e palavras de amor em minha roupa escritas.

Minha vida começa num vergel colorido, por onde as noites eram só de luar e estrelas. Levai-me aonde quiserdes! – aprendi com as primaveras a deixar-me cortar e a voltar sempre inteira.

(“Desenho”, MA, 523)

Neste particular cromo, a lembrança do passado tem como mote de recriação a

referência do mundo da criança à Natureza: “Minha vida começa num vergel colorido”. O

começo da vida num “vergel colorido” onde “os pavões caminhavam tão naturais pelo

caminho” nos remete à imagem do Paraíso terrestre, infância da humanidade, momento de

descobertas inaugurais, originárias, poéticas, de uma aprendizagem liberta de cientificismos

redutores: “aprendi com as primaveras/ a deixar-me cortar e a voltar sempre inteira”. As

primaveras, no corpo do homem, fundem-se na memória poética às imagens das

“mariposas, jasmins, tinhorões e vaga-lumes”, as quais povoam o mundo circundante num

passado ressuscitado. As canções da “avó” eram feitas de “mar e de arvoredo” – com isso, a

poeta nos diz também que tudo, entretecido, canta, age, se expressa; inclusive a “chuva”,

“nos teares de água”:

Sobre a chuva, o sono: tão leve, que mira todas as imagens e ouve, ao mesmo tempo, longa, paralela, a canção divina

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dos fios imensos que, nos teares de água, entre o céu e a terra, o tempo separa e a noite combina. (“16”, MR, 1223)

A presença e ação do homem em estado de infantil inocência no Jardim são um

detalhe nas memórias do “Desenho” recriado em palavras por Cecília Meireles. Todos os

elementos da Natureza tomam posição e agem em concomitância:

E as lagartixas me espiavam, entre os tijolos e as trepadeiras, e as teias de aranha nas minhas árvores se entrelaçavam Isso era um lugar de sol e de nuvens brancas, onde as rolas, à tarde, soluçavam mui saudosas... O eco, o burlão, de pedra, ia saltando, entre vastas mangueiras que choviam ruivas horas ................................................................................ Mariposas, jasmins, tinhorões, vaga-lumes Moravam nos jardins sussurrantes e eternos. (“Desenho”, MA, 523)

Mas, atentemos para a ocorrência do pronome possessivo “minha”, dada algumas

vezes no poema. Por esse termo, que noção de posse pode ser estabelecida? Das quatro

vezes em que a poeta o profere, uma nos chama especial atenção: “as teias de aranha nas

minhas árvores se entrelaçavam”. As árvores são pertences do homem? O que isso quer

dizer? As árvores só pertencem ao homem na medida em que ele cuida delas e não as

devasta. O homem também pertence às árvores. Fugindo do risco de confundir o Cuidado

com o domínio, percebemos o entrelaçamento das “teias de aranha” às árvores, num mútuo

pertencimento. Ao ver-se intimamente ligado, o homemm, em sua revisitada inocência, é

saudado pela lembrança de que, em “jardins sussurrantes e eternos”,

era desnecessário crescer, pensar, escrever poemas, pois a vida completa e bela ali já estava. (“Desenho”, MA, 523)

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A “vida completa e bela” nos faz escutar o antigo eco do Éden, Jardim que

abandonamos em troca do “conhecimento do bem e do mal”:

Sabe-se que o Paraíso terrestre do Gênesis era um jardim, sabe-se que Adão cultivava o jardim; o que corresponde à predominância do reino vegetal no começo de uma era cíclica, enquanto a Jerusalém celeste no fim será uma cidade. Já foi dito apropriadamente, dos jardins da Roma antiga que eram lembranças de um paraíso perdido. Eram também imagens e resumos do mundo, como o são ainda, em nossos dias, os célebres jardins japoneses e persas. O jardim, no Extremo Oriente, é um mundo em miniatura, mas também é a natureza restituída ao seu estado original, convite à restauração da natureza original do ser.

158

O Jardim é um mundo restituído ao seu estado original de perfeição harmônica. Nele

não se estabelece qualquer relação de domínio entre homens, plantas e animais. É

principalmente o local de “aprendizagem” do homem como os outros elementos da

Natureza; nele o homem assume a postura de “Estudante empírico”, captando as

ressonâncias das canções “de mar e de arvoredo” e os ecos da chuva, caída de “grossas

nuvens”. Tudo canta, tudo fala; no Jardim. Ao dispor-se a essa escuta, o homem percebe as

“Transformações” do mundo circundante; atento ao velamento e des-velamento das formas,

é capaz de se dizer na vida, na morte e na ressurreição de suas irmãs, as folhas159:

Sobre o leito frio sou folha tombada num sereno rio. Folha sou de um galho onde uma cigarra, nutrida de orvalho, rasgou sua vida em música – ao vento – desaparecida... Sobre o leito frio, sou folha e pertenço a um profundo rio. (Pela noite afora, vão virando sonho músicas de outrora...)

158

CHEVALIER, J & GHEERBRANT, A. Op. cit. 2003, p. 512. Grifos dos autores. 159

cf. a crônica “Nossas irmãs, as plantas” (MEIRELES, C. Op. cit. 1998, p. 142-7.) em que Cecília Meireles pensa a relação plantas-homens sempre pela via da metaforização e da comparação, recriando imagens de incrível densidade como neste excerto: “Nas florestas, o homem sente a possibilidade do seu desprendimento humano – porque o seu corpo é insignificante, perto de tão altos troncos; sua voz é fraca, na densidade do ar azulado, de transparentes ecos; sua vida é pequena, diante da vida que ali está sendo, deixando de ser e tornando a ser – envolta na sua continuidade, num mundo próprio, carregado de forças que vêm das entranhas invioláveis da terra, conhecida apenas por deuses.”

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(MA, 511)

Em que nível, o poeta pode dizer: “a árvore é minha”? Por que comunhão poética

pode afirmar ser folha de um galho tombada, pertencente a um sereno rio? Mikel Dufrenne

diz que “a Natureza exige o homem que fala”160. A inspiração de que tanto se fala quando se

discorre sobre a arte poética seria uma imposição da Natureza ao homem, um sentimento

que o fundamenta, relembrando-o sempre de que é Natureza. Todas as imagens do mundo

são poetizáveis, todas são em si mesmas poéticas, pois todas foram perpassadas

irremediavelmente pelo poien da phýsis. Assim, ao visitar a intimidade da imagem de uma

folha que cai, em “Transformações”, do galho ao rio, o poeta restaura, no seu dizer, o dizer de

um mundo circundante que parece mudo, mas fala. Daí, a necessidade de os poetas

atenderem à exigência da Natureza. A sentida comunhão poética do homem com a “folha”

se dá não na comparação, mas pelas metáforas, que são “enigmas ontológicos” que

“transferem seres” 161, como nos diz William Ruercket. Ao se afirmar “folha”, o homem, pela

linguagem poética, oferece ao mundo, como retribuição, um dizer. O dizer construtivo do

homem-poeta realoca, na eternidade das palavras, a “música – ao vento – desaparecida” da

“cigarra nutrida de orvalho”; transforma essa música em sonho, pois no homem o sonho é

feito de imagens que desfazem as fronteiras do dualismo, que incutem o ser “pela noite

afora”, num mergulho no coração do “profundo rio”.

“Aprendi com as primaveras a me deixar cortar e a voltar sempre inteira”: No

“jardim”, tudo se dá de modo irmanado, desierarquizado. Nele, o homem e o pássaro

percebem-se horizontalmente; suas plantas recebem o sol e as quatro estações por todo o

ano; por ele passam as brisas e as chuvas com passos e toques na terra parecidos com os do

homem: em abundância. O “jardim” é o pequeno universo onde perduram, uniformemente,

as tardes de nossas vidas. Nele, o diverso é inúmero e se reflete nos olhos do homem:

DIÁLOGOS DO JARDIM Debaixo de tanto calor, o pássaro arranjou um ramo verde e fresco

160

DUFRENNE, M. O poético na natureza. In: ----. O poético. Luiz Arthur Nunes e Reasylvia Kroeff de Souza (trad.). Porto Alegre: Editora Globo, 1969, p. 214.

161 “ontological riddles that trasfer being” RUERCKET, W. Methafor and reality: a meditation on man, nature an words. Disponível em http://kbjournal.org/node/128#comment, acessado em 18 de dezembro de 2011. Trad. inédita de Marcela Leite Medina.

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e pôs-se a falar. O pássaro perguntava-me: “Lembras-te das grandes árvores, com lágrimas douradas de resina?” Respondi-lhe que sim, que me lembrava. .................................................................... “Lembras-te dos cajus maduros, caindo fofamente na folhagem morta do chão?” Respondi-lhe que sim, que ainda os via, muito longe, amarelos e túrgidos, às vezes, rebentados na queda, escorrendo, permosos, sumo doce. ............................................................ E o passarinho perguntava: “Lembras-te da tua voz devolvida pelo eco?” E eu me lembrava, mas não das palavras, só que as respostas eram sempre incompletas. ................................................................ E eu me lembrava de tudo e sentia o aroma da tarde, e o canto das cigarras, e o lamento dos sabiás e das rolas, e via brilhar a bola azul do telhado, que amei tanto, e sentia, tão doce, a minha perpétua solidão. E perguntei ao pássaro: “Onde estavas, para me perguntares tudo isso? Também já viveste tanto? E ele me respondeu: “Não, tudo isso está no fundo dos teus olhos. Eu só vou perguntando o que estou lendo... E, porque o leio, canto.”

Abril, 1956

(D, 1743-4)

“Também já viveste tanto?”, pergunta a poeta, em diálogo com um pássaro no

Jardim. Tudo canta, tudo fala. Tudo exige do homem uma voz poética ressignificante. O

pássaro canta o que via no “fundo” de uns olhos. Mas, onde é mesmo este fundo? Dissemos

mais acima no texto que o mundo não está reduzido às retinas do homem, mas sabemos que

é nelas que o pouco do mundo percebido pelo homem se retém. A memória retém dentro

de nós o mundo. E ela mesma traz à tona poéticas e narrativas interiores. Este ciclo de

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interioridade e exterioridade, comunhão de mundo e homem nos é lembrado pela

comparação do olho, em sua redondeza, ao “globo, pequeno planeta”, nos fragmentos do

poema que se segue:

MAPA DE ANATOMIA: O OLHO

O Olho é uma espécie de globo é um pequeno planeta com pinturas do lado de fora. Muitas pinturas: azuis, verdes, amarelas. .................................................. Mas por dentro há outras pinturas, que não se vêem: umas são imagens do mundo, outras são inventadas. O Olho é um teatro por dentro. (EE, 1436)

Grande teatro, o Olho é um mundo de memórias. Local onde se faz e desfaz, vela e

des-vela, o “mundo mágico” da “Contemplação”. Mas o Olho não apenas congrega desenhos

idílicos da Natureza. Às vezes:

sejam atores, sejam cenas e, às vezes, sejam imagens, sejam ausências foram, no Olho, lágrimas.

(“Mapa de anatomia, o Olho”, EE, 1436)

Pequeno planeta, palco de “imagens do mundo” e de “imagens inventadas”, o Olho

também chora lágrimas de ausências. O choro, na poesia de Cecília Meireles, é o mote da

solidão, da desilusão amorosa, da amargura, do sofrimento e das angústias existenciais. Mas

é também choro motivado pelo amor aos outros elementos da Natureza, como podemos ver

em “Elegia a uma pequena borboleta”:

Choro a tua forma violada miraculosa, alva, divina, criatura de pétala, de aragem! Choro ter pesado em teu corpo que no estame não pesaria. Choro esta humana insuficiência: – a confusão dos nossos olhos, – o selvagem peso do gesto,

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– cegueira – ignorância – remotos instintos súbitos – violências que o sonho e a graça prostam mortos. Pudesse a etéreos paraísos ascender teu leve fantasma, e meu coração penitente ser a rosa desabrochada para servir-te mel e aroma, por toda a eternidade escrava! E as lágrimas que por ti choro fossem o orvalho desses campos, – os espelhos que refletissem – voo e silêncio – os teus encantos, com a ternura humilde e o remorso dos meus desacertos humanos! (RN, 610)

Eis o mundo dos humanos: “confusão dos nossos olhos”, “selvagem peso do gesto”,

“cegueira”, “ignorância”, “remotos instintos súbitos”, “violências”, “desacertos” que só são

redimidos quando o homem torna suas ações frutos de uma “ternura humilde”. Neste canto

elegíaco de quem não pôde preservar a vida do pequeno inseto, forma violada “pela humana

insuficiência”, somos lembrados de que cada vida tem dignidade, de que todas compartilham

do mesmo Céu e da mesma Terra. Numa emocionante crônica de 1942, Cecília Meireles

descreve o sentimento aterrador que teve diante de uma gata morta a pedradas:

Diziam: “É uma gata muito arisca.” Descia estas escadas como se fosse dona do mundo. E era um ser de silêncio. Agora está ali. Com seu silêncio apenas. Disseram que foi uma pedrada. (O mundo dos homens é mau.) (...) O menino hoje explicou: “Foi uma pedrada”. E concordou em levá-la para longe, para a floresta, para uma grota. E levou-a nos braços, embrulhada, como qualquer morto. Era enternecedor, essa espécie de enterro em que tomava parte um menino. Um menino de rua, que sabe coisas de gatos e florestas. O carteiro também me disse: “Aquela gata foi morta a pedrada. Uma na cabeça, outra no peito. Eu vi quando ela estava caída. Toda ensanguentada.” Disse-me isso, entregando-me cartões de Boas Festas. Mas estava um pouco triste, como eu. (Estes votos. Estes sinos na igreja. Estes presentes. Estas árvores. Estes brinquedos. Consoadas. Nozes, castanhas, figos, passas. Uma gata morta a pedrada. Por quê, meu Deus, por quê?). (...) Olho para os cartões de Natal. Velas, sinos, pinheiros, letras douradas, o Menino Jesus... (A gata foi morta no domingo, dia 26 de dezembro. Outros sinos, outras velas, outros pinheiros... De novo o Menino Jesus, o burrinho, o boi... (O mundo dos homens será para sempre mau?)

162

162

MEIRELES, C. Jardim no natal. In: ----. Op. cit. 1998, p. 340 (publicada originalmente em 28 de dezembro de 1954, em São Paulo, jornal Folha da Manhã).

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Apenas “um menino de rua”, pobre como um Cristo, enterrou a gata, na crônica de

Cecília Meireles. Insipiente “Menino azul que não sabe ler”, ele tem em seu mundo

particular a ciência de “coisas de gatos e florestas”; é suficientemente sensível para perceber

a dignidade de um animal destruído... Mas os meninos que em nós vivem muitas vezes

permanecem adormecidos... Pela pressa em ganharem um mundo que já lhes pertence,

tornam-se adultos arredios, e neles não há mais espaço para o cultivo de um jardim interior.

Assim, ao nos lembrar do Jardim, a poeta constantemente lamenta um estado de inocência

devastado:

Hoje nós somos criaturas sem sossego, perdidas em lutas urgentes e difíceis, amarguradas e envenenadas, de tão mergulhadas no puramente humano. Quando amanhã pudermos descansar, olharemos em redor, procurando nestas cidades de cimento um lugar para o sonho tranquilo, e então nos lembraremos dos jardins, das árvores, de qualquer flor. Sentiremos que estamos mais perfeitos, que já somos melhores, quando pudermos sorrir de um ramo que desabrocha, e olhar com doçura para qualquer folha que cai – e que hoje, nesta pressa bárbara, nem sentimos que existe, nem nos importamos que acabe...

163

Por que “Nesta pressa bárbara, nem sentimos que existe, nem nos importamos que

acabe” a fauna, a flora, aquilo que não é homem, e, muitas vezes, mesmo o que é

homem?... Como esta questão ecoa! Como e com que força grita! Ela é uma advertência

triste e melancólica; é a busca por um “sonho tranquilo” entre as paredes de cimentos que

nossa cultura construiu. É também um choro por crianças que brincavam tranquilas no

“Desenho leve” (MA, 675) do Jardim do “princípio do mundo/ no reino da infância” e hoje

são “criaturas sem sossego, perdidas em lutas urgentes e difíceis, armaguradas e

envenenadas”. Residentes em nós, nossas crianças, por algum motivo que não podemos

perscrutar com psicologismos, se desentendem com o mundo e afastam-se do que olham,

tapam os ouvidos ao que poderiam escutar, calam-se quando poderiam, poeticamente, dizer.

Todos os elementos da Natureza são atingidos pelo nosso esquecimento do Jardim. O mundo

dos homens, cinzento e sem horizonte, impede que, no ar, voos sejam ensaiados com

liberdade:

POMBA EM BROADWAY Naquele reino cinzento

163

MEIRELES, C. Nossas irmãs, as plantas. In: ----. Op. cit. 1998, p. 145-6 (publicada originalmente em 11 de abril de 1945, no Rio de Janeiro, no jornal A manhã).

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veio a pomba bater asas contra muros de cimento. Veio a pomba bater asas naquele reino severo com portas negras nas casas. O rumor de suas penas era um murmúrio de fontes brancas em tardes morenas. Era um sussurro de fontes, mas ai! por densas paredes e verticais horizontes! Que mensagem conduzia subindo e descendo os ares, pela fronteira do dia, subindo e descendo os ares, estrangulada nos muros daqueles densos lugares, por onde vultos escuros, o ouro do mundo levavam fechado nos punhos duros? ................................................. (RN, 642-3)

Aqui, entre as asas da pomba, num duro mundo de concreto, “muros de cimento”,

ergue-se um “reino severo” onde os homens de “punhos duros” levam o ouro do mundo,

exploram as possibilidades de riqueza, acumulam em si e nas suas ações esquecimentos sem

saudade daquilo que só a poeta percebe: o bater das asas brancas de uma pomba “em

tardes morenas”, responsável pela extraordinária viração do dia. Sem escutarem o sussurro

das asas que ruflam, em plena confusão urbana, os homens duros eivam-se de pressa; des-

envolverem-se do mundo circundante, perderam o tato, fecharam-se num lugar unicamente

humano; alheios inclusive, pela pressa, ao tempo que a pomba movia entre as asas. Quem

atentaria para “a mensagem” que a pomba conduzia “subindo e descendo nos ares/

estrangulada nos muros/ daqueles densos lugares”? Estrangulada pomba por

estranguladores rápidos, estrangulados entre muros, prédios, pressa e tédio, que poema

inspiraria?

Ao descrever a Nova Iorque dos anos 40, a poeta reconstrói, em longo poema do qual

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extraímos uma parte, os perigos do capitalismo e de seu peso antilírico de exploração,

consumismo e progresso:

Departament stores de vinte andares. Anjos de vidro e aço, ascensores deslizam suaves, atravessando mundo de roupas aconchegadas umas nas outras, legiões sem vida de corpos frouxos que esperam a hora de seu destino pelos cabides... E os visitantes fazem, desfazem cálculos rápidos no quadro-negro do pensamento, e a vida humana é devorada por cinco jardas de qualquer pano, um broche falso, um feltro e um véu. .................................. Lojas do sonho desnecessário: lanternas! onde Edson vive a todo instante num vidro tênue! leques! na terra em que o air-conditioned reina tranquilo! no mundo ágil do ventilador! .............................................. (“U.S.A. 1940, PV, 1351-1353)

Tudo reduzido ao manipulável objeto, sonhos desnecessários em linha de produção

para atender aos ditames do consumo; o trabalho deslocou-se para sempre do Jardim e,

oposto ao Cuidado, o homem passou do ser ao ter. As pessoas, desde o advento da

Revolução Industrial, passaram a subjugar-se a uma ditadura da produção maquinal; o que

era apenas necessário perdeu o lugar para a contingência e para o enriquecimento. A vida

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humana deixou de ser con-vivência; devorados modernamente pela “ordem do dólar”

(“U.S.A 1940, PV, 1354), acirramos nosso descuido quando tendemos a dominar tudo ao

nosso redor, nos sentindo capazes de reduzir qualquer coisa à força humana. Tudo, nesta

lógica de dominação torna-se artificial, mesmo os “anjos”, viram “vidro” sem metáfora e as

plantas arranjos plásticos que poderiam ser a verdade de nossos jardins – a eternidade

reduzida a produtos que não se reciclam.

Mundo oposto à harmonia do “Jardim”, desfeito em pedaços, “mundo mágico” em

choque e deturpação, o “mundo dos homens” desintegra-se e a tudo desintegra; distante de

qualquer paraíso – longe, muito longe “da perfeição secreta da vida”, inaugurou, de modo

bruto, a violência das guerras:

GUERRA Tanto é o sangue que os rios desistem de seu ritmo, e o oceano delira e rejeita as espumas vermelhas. Tanto é o sangue que até a lua se levanta horrível, e erra nos lugares serenos, sonâmbula de auréolas rubras, com o fogo do inferno em suas madeixas. Tanta é a morte que nem os rostos se conhecem, lado a lado, e os pedaços de corpo estão ali como tábuas sem uso. Oh, os dedos com alianças perdidos na lama... Os olhos que já não pestanejam com a poeira... As bocas de recados perdidos... O coração dado aos vermes, dentro de densos uniformes... Tanta é a morte que só as almas formariam colunas as almas desprendidas... – alcançariam as estrelas. E as máquinas de entranhas abertas, e o cadáveres ainda armados, e a terra com suas flores ardendo, e os rios espavoridos como tigres, com suas máculas, e este mar desvairado de incêndio e náufragos, e a lua alucinada em seu testemunho, e nós e vós, imunes, chorando, apenas, sobre fotografia – tudo é um natural armar e desarmar de andaimes em tempo vagarosos, sonhando arquiteturas.

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(MA, 541-2)

Leonardo Boff diz que, nos tempos atuais, “perdeu-se a visão do ser humano como

ser-de-relações ilimitadas, ser de criatividade, de ternura, de cuidado, de espiritualidade,

portador de um projeto sagrado e infinito”.164 A perda dessa visão redundou na profusão de

“tanta guerra”. Reparemos como a loucura empreendida pela crença no domínio estilhaçou

nossa comunhão com os nossos irmãos, fragmentou nossa percepção da realidade:

“sangue”, “sangue”, “morte”, “morte” se multiplicam incontavelmente nos versos, atingem

tanto “máquinas de entranhas abertas” quanto homens: “almas desprendidas” que,

empilhadas, alcançariam as estrelas. O “mundo dos homens” apenas “sonha arquiteturas”;

não há ponte entre ele e o mundo natural, e quando este mundo estabelece pontes, tais

construções nos levam à exploração do inumano, ao assassínio do humano, ao ponto de

“armar e desarmar andaimes” tornar-se a ação mais “natural” que a própria respiração.

Banalizada e multiplicada, a guerra invade o cotidiano e torna a vida e a morte humanas

banais aos que se atacam.

Atingindo todos os lados da/na Natureza, a guerra quebra a harmonia do mundo –

antes, “Jardim” cultivado; a lua “se levanta horrível” e, como uma mulher que perdeu seus

filhos nos combates, corre o céu “sonâmbula de auréolas rubras/ com o fogo do inferno em

suas madeixas”; os rios “desistem de seu ritmo”. Todos os demais elementos da Natureza

sentem a ação humana destrutiva, numa resultante quebra de integridade. Espalhados, num

desenho triste, “pedaços de corpo estão ali como tábuas sem uso”, reduzidos a objetos

descartáveis. Em “bocas de recados perdidos” e “coração dado aos vermes, dentro de densos

uniformes”, poemas, memórias, canções e alegrias são caladas em infortúnio, pois o “mundo

mágico”, Jardim de nossa infância, concorre com um terrível “reino dos Facínoras”:

Depois do jardim, percorremos o parque, por onde o regato brincava de saltar pedrinhas, – e estudamos esse deslizar das coisas, essa medida das distâncias, e essa alegria de caminhar sem saber para onde. Essa teria sido a maior das aprendizagens, porque logo nos veio a curiosidade dos aléns do parque, dessas perdidas franjas de árvores onde se conheciam as aves pelo seu ruído entre as folhas (...) Mas os velhos disseram-nos que para lá do parque ficava o reino dos Facínoras, onde tudo era violência e brutalidade. (...) Mas alguns asseveraram aos velhos que era preciso derrotar os Facínoras, e estender até lá o território de nossa mitologia.

165

164

BOFF, Leonardo. Saber cuidar: ética do humano – compaixão pela terra. Petrópolis: Vozes, 2008b. p. 98. 165

MEIRELES, C. Paraíso. In: ---. Op. cit. 1998, 274. (publicada originalmente em Letras e Artes, 'A Manhã', 11 de

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133

É preciso “derrotar os Facínoras”, estendendo sobre seu reino “o território de nossa

mitologia”. É isso que os poetas fazem? Certamente. A memória mítica do Éden, da Idade de

Ouro dos gregos, de Orun e Ayê dos iorubás africanos166... nos faz ter saudades dos jardins

fechados de nossa imaginação. Pela poesia, poderíamos cultivá-los em palavras de ternura e

cuidado, para que transbordassem como plantas rentes à boca. Mas há um vertiginoso ritmo

que o homem impôs ao mundo, que o afastou do pensamento e em tresloucadas atividades

e atitudes, o reduziu a “violência e brutalidade”. “Onde repousar a cabeça? No além?” O

jardim não está além do mundo, se ele é, como temos visto, o próprio mundo. Quem parece

querer colocar-se num além do mundo é o homem, que, desligado do Paraíso, tornou-se um

Facínora. Saudosos de um transcendente escape deste artificial e paralelo mundo de cinzas e

cimento, queremos, assim, a “feitiçaria”:

FEITIÇARIA

167

Não tinha havido pássaros nem flores o ano inteiro. Nem guerras, nem aulas, nem missas, nem viagens e nem barca e nem marinheiro. Nem indústria ou comércio, nem jornal nem rádio, o ano inteiro! Nem cartas nem modas. Tudo quanto havia era o feitiço de um feiticeiro que toldava o mundo e a melancolia. Chegaram agora os pássaros e flores, e de novo guerras, aulas, missas, viagens e marinheiros com remos e barcas vêm saindo lá do horizonte. ............................................................ Por isso é que se tem saudade do tempo da feitiçaria. (V, 153)

julho de 1948.)

166 cf. BRANDÃO, J. Op. cit. p.16 e PRANDI, Reginaldo. “E foi inventado o candomblé...” in: ----. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 524-528

167 Um dado realmente curioso sobre este poema é que, quando enviou os originais para amigos e para o editor da Livros de Portugal, editora de Lisboa, Cecília recomendou que fosse cortado do conjunto de poemas que compunham Viagem. Cf. GOUVÊIA, Leia V. B. Cecília em Portugal. São Paulo: Iluminuras, 2001, p. 84

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Cecília Meireles nasceu no 1º ano do século XX. Em 1901, iniciavam-se os cem anos

que seriam conhecidos como a era da velocidade, do cinema, das indústrias de cultura e de

armas, das guerras atômicas e da corrida espacial que imprimiram ritmo vertiginoso à

humanidade a qual viu, principalmente até o fim da 1ª metade do século XX, a Europa

rebentar em dois duradouros conflitos que acabaram por envolver até mesmo o Brasil em

seus assuntos. Constantemente tachada por alguns críticos desavisados de poeta “alienada”,

“excessivamente espiritual”, “neossimbolista”, “etérea” etc168, a autora de poemas como

“Pistoia: Cemitério Militar Brasileiro”, escrito em homenagem aos pracinhas dilacerados em

Monte Castelo, na Itália, nos apresenta, na contramão de exigências de participação

panfletária e, ao mesmo tempo, distante de alienação irresponsável, uma poética cuja

construção se dá impulsionada pela preocupação com os rumos do mundo, pois que percebe

que aquele “mundo mágico”, frequentemente associado em seus versos ao “reino da

infância”, “ao jardim” ou ao “mar absoluto” escorre entre os dedos da ganância humana, da

ignorância e da perspectiva de progresso. É o poeta mesmo o “feiticeiro” que nos faz sentir

saudade de imagens idílicas que hoje parecem povoar os mitos e as narrativas poéticas, já

que nosso conhecimento pouco se estabelece sem o aval da ciência.

Para tanto, Cecília Meireles confronta esses “mundos”, percebendo uma duplicidade

de imagens que se refletem tanto no espelho do progresso quanto no espelho de “pássaros e

flores”. E, então, seus versos, que nos fazem ter “saudades do tempo da feitiçaria”, recriam a

verdade de um mundo em que não havia nada senão um manto de mistério que “toldava o

mundo e a melancolia”. Em busca de um “Retrato Natural” que de fato seja o retrato do

“mundo em sua profusão”, a poesia de Cecília Meireles atentará para a geometria secreta

dos mitos, com saudade da poesia antiga, da produção edificante de imagens e sons que

valorizam sempre a participação do homem na Natureza como filho e não como algoz.

Assim, se a saudade do “feiticeiro” é, por um lado, a pedra de toque do seu dizer

poético, por outro, é motivada por uma espécie de sentimento coletivo. Por essa

constatação, percebemos que, diante da loucura hodierna da modernização, um mundo

perfeito resguardou-se para sempre nas regiões da fantasia; tornou-se mito oposto a

pretensas verdades; contrapôs-se à cruel realidade das “guerras e aulas”, já que, não se

vendo mais integrados na Natureza, os homens reduziram o mundo, por seu poder de

168

cf. a 3ª seção desta tese intitulada “A (IN)COMPREENSÃO DA CRÍTICA”.

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destruição, à “quermesse da miséria”, como veremos mais à frente, na leitura do poema

“Confissão” (VM, 401).

Assim, em um cenário de guerra e desentendimento, não é difícil perceber na poesia

de Cecília Meireles, uma atitude que soaria, para um leitor desavisado, contraditória, já que,

por vezes, ela canta o “mundo perfeito”, mostrando-o, como vimos, como um “Jardim”, e por

outras, ironiza sua própria poética, descrente da utilidade de cantar este mundo, figurizando

o descompasso entre as “asas velozes” dos sonhos e a lentidão da restrita consciência

mundana para realizá-los:

Não fiz o que mais queria Nem há tempo para cantar ............................................. Chorava belos desertos felizes de pensamento. Mas a alma é de asas velozes e o mundo é lento. (“4”, MR, 1213)

Tal atitude, aparentemente contraditória, denotaria, na verdade, no canto da poeta,

uma dificuldade de ver-se integrada ao que chama de mundo dos homens, lamentando

perceber, solitária, a unidade primordial de tudo na Natureza, pelo que, inúmeras vezes,

flagaremos em seu dizer poético, um constante desejo de fuga, de solidão, e de evasão do

burburinho humano para se afastar das “mágoas” e da impossibilidade de com elas viver:

Quero ir-me embora daqui! - de mágoas e impossíveis morro. Irei para a Ilha do Corvo? Para as praias do Taiti? (“Quero ir-me embora daqui!”, D, 1689)

Por perceber que sua experienciação do mundo é ilhada, e que, sendo vidente

transvê, as formas, num mundo de cegos, Cecília Meireles recria a busca de uma perfeição

que intui, que sente e de que está certa da existência. Afirma assim, a unidade primordial de

todas as coisas:

Se tu não sentes esta coisa simples que eu sinto, esta unidade que não se rompe, mesmo quando compreende e participa... (Então, ó deuses, de que somos, de quem somos, quem somos,

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e como provaremos que somos todos irmãos?) (“O mundo dos homens envolve-me”, D, 1777)

Em certo nível, o poema “Contemplação” (com fragmentos já focalizados) procura,

num movimento quase contrário ao desespero de nossos tempos, nos fazer perceber “o

mundo mágico” que hoje só se alcança sob o efeito encantatório da “Feitiçaria”, ampliação

do mundo em poesia construída sob os escombros das “aulas, missas e viagens” (imagens de

“Feitiçaria”). E é mesmo nos versos de “Contemplação”, tão rico quanto extenso poema, que

Cecília Meireles lembra de que esse “mundo mágico” é o mesmo da época em que “um anel

no dedo pode fazer desabar da lua um temporal”:

Também não sei com segurança, muitas vezes, da oferta que vai comigo, e em que resulta, pois o mundo é mágico! Tocou-se o Lírio, e apareceu um Cavalo Selvagem. E um anel no dedo pode fazer desabar da lua um temporal.

(“Contemplação”, MA, 455)

Seus versos nos fazem procurar os vestígios, no nosso mundo em colapso, deste outro

“mundo”, que é, de fato, “mágico”, transformador. E, por outro lado, por eles podemos

também procurar, sob os despojos da guerra, o porquê de o mundo, em certo nível, ter

deixado de ser, para nós, “mágico”, ou mesmo o porquê de os “anéis” terem deixado de ser

potentes amuletos capazes de “fazerem desabar da lua um temporal”.

Reside, talvez, no espanto, e não apenas no uso político de uma “ciência” da natureza

vista como um objeto, tal como passamos a encará-la, a potência desses questionamentos, já

que “de fato, a concepção do mundo só em pequena escala depende das ideias científicas.

Reflete mais necessidades morais e sociais, até mesmo desejos inconscientes”169, como

afirma Robert Lenoble.

Ao que parece, o mundo deixou de ser mágico, paulatinamente, porque lgo no ser do

homem o leva a querer ultrapassar a própria condição humana. Hannah Arendt interpretou

esse desejo de ultrapassagem como o flagrante ato de criação de um mundo fora da Terra.

No prefácio de seu livro A condição humana, a pensadora comenta que se captou, quando da

169

LENOBLE, R. História da ideia de natureza. Teresa Louro Perez (trad.) Lisboa: Edições 70, 1990 p. 30.

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ocasião do lançamento do satélite Sputnik, uma espécie de “alegria desesperada” no

discurso encabeçado pela imprensa da época sobre o grandioso passo da humanidade. O

satélite não era apenas um enorme avanço tecnológico, mas, mais do que qualquer outro

anterior, significava que o homem poderia agora, finalmente, direcionar-se para cima,

significava que se poderia deixar, um dia, a superfície terrestre, que é curva na realidade,

mas retilínea na aparência. Em 1957, o objeto marcou o primeiro episódio da corrida

espacial, que culminaria na ida do homem à lua em 1969170.

Feito de ferros e certos materiais fundidos pela fabricação, o Sputinik imitava agora o

movimento de outros corpos celestes, como a Lua, o Sol e as estrelas. Arendt diz que esse

feito pode ser considerado uma das maiores descobertas humanas, que ultrapassaria

inclusive a desintegração do átomo, uma vez que a angustiada alegria do lançamento

sinalizava que, finalmente, tínhamos logrado imitar a Natureza e os movimentos circulares

dos planetas que se interpõem a nós já há bilhões de anos e, com isso, concretizar o desejo

de não mais permanecer presos pra sempre na Terra...

Em fevereiro de 2007, capturei reportagem nada novidadeira na revista Istoé, sobre

intenções de o homem enviar tripulações à Lua. Desta vez, chegaríamos juntos ao satélite em

2014 para nos valer de uma experimentação cada vez menos servil daquele objeto, disposto

a nós. A Lua nos daria, segundo os cientistas, além de poesia para namorados e marés para

os mares, uma “quantidade de produtos que podem ser desenvolvidos na Terra a partir da

tecnologia espacial: o teflon, o velcro, os aparelhos de ginástica das academias, entre outras

centenas de mercadorias vendidas em lojas e supermercados”171. Além disso, China e Rússia,

dois dos maiores responsáveis pelo fenômeno alarmante do “aquecimento global”, dado

pelo consumo excessivo de combustíveis fósseis e emissões de gases tóxicos na atmosfera,

estariam dispostas a explorar o solo lunar para dele extrair o hélio-3, elemento químico que

poderia produzir energia limpa e livre de lixo radioativo.

Mais recentemente, em setembro de 2011, a notícia de que um satélite de 6

toneladas, do tamanho de um ônibus, cairia em breve em qualquer ponto da Terra

mobilizou a comunidade científica, que se apressou em dizer que a chance de que o

fragmento espacial atingisse uma pessoa era da ordem de 1 em 3200. Mais do que a

170

ARENDT, Hannah. A condição humana. Roberto Raposo (trad.). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. 171

REVISTA ISTOÉ, 18 de Fevereiro de 2007, p. 82.

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jocosidade do fato, o que espanta é a sua causa: a quantidade de lixo espacial que orbita

atualmente o planeta mostrando que a sempre noção de que algo pode ser afastado da Terra

já atinge proporções grandiosas como vemos na figura abaixo:

Reprodução de imagem da quantidade de lixo espacial na órbita da Terra172

Pela figura, percebemos que excessiva quantidade de detritos espaciais nos impedem

até mesmo de bem avistar o planeta, de ver sua azul beleza. A profusão científica de tudo, a

profusão do mundo dos humanos, expressa, composta, disposta, distribuída, multiplicada

nos materiais humanamente criados, colocou entre nós e a Terra um inexorável véu de

cegueira: véu de excessiva necessidade de ver. Ante tanto lixo e profuso esquecimendo do

mundo, nos mantemos encobertos; mas dessa vez não mais conscientes do perene estado

de encobrimento sob o véu da phýsis de originária criatividade, como vimos, pela poética da

noite, no capítulo anterior. Antes, sob e diante do detrimento de tudo em nome da fuga à

Terra, criamos um simulado véu, um simulacro de “diuturnidade”, que tenta “fazer vir à

tona”, sempre pela técnica, tudo que pode ser fabricado, posto à luz, apenas, por

potencialidades ditas humanas.

Há muito tempo estamos angustiados em sair da Terra. Vênus, então considerado

nosso planeta-gêmeo, já foi cogitado como um lugar habitável. Os primeiros astrônomos a

172

Fonte: http://astropt.org/blog/wpcontent/uploads/2011/05/space_debris.jpg&imgrefurl=http://astropt.org/blog/

2011/05/07/lixo-espacial/&h=1024&w=1280&sz=126&, acesso em 04 de outubro de 2011., cf. nos anexos, fig 3, em tamanho maior.

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observarem Vênus com instrumentos mais capazes, viram apenas cobrir a superfície do

planeta uma densa massa de nuvens, do que concluíram ser uma atmosfera de gases

parecidos aos nossos; logo, um possível refúgio para os homens quando a Terra finalmente

se tornasse insuportável. O que se constatou com observações posteriores mais precisas foi

que Vênus é um verdadeiro inferno, pois, próximo demais do sol, nosso planeta gêmeo não

possui rios e vales, montanhas, céu azulado..., mas uma catastrófica atmosfera de gases

tóxicos a uma temperatura de mais de 300 graus celsius. A atmosfera venusiana é tão densa

que os raios do sol penetram-lhe, chegam à superfície, mas não são mandados de volta ao

espaço, o que aumenta substancialmente a temperatura no seu interior, impossibilitando

toda forma de vida. Esse efeito, que ocorre em Vênus, é o que chamamos de efeito estufa, ou

aquecimento global, fenômeno que impossibilitou a vida naquele planeta. Se não

entendermos a Terra como nosso lar único e definitivo, isso impossibilitará também a vida

aqui.

Diante de tanta aventura dos homens nas tentativas de fuga para além da curvatura

da Terra, Hannah Arendt pergunta-se:

Será que a tão “famosa” emancipação e a secularização da era moderna, que tiveram início com um afastamento, não necessariamente de Deus, mas de um deus que era o pai dos homens no céu, termina com um repúdio ainda mais funesto de uma terra que era a mãe de todos os seres vivos sob o firmamento?

173

As consequências do desejo do homem de fugir de uma difundida prisão terrena são

fruto de nossa fuga à condição humana, diz Arendt. Segundo a autora, isso leva a ciência a se

esforçar por tornar artificial a vida, cortando, se possível, o último laço que faz do homem

um filho da Natureza. Esse desejo se manifesta pelos experimentos como a manipulação da

vida numa proveta ou a construção de corpos mais capazes e superinteligentes. Pelo

mapeamento do código genético, se alteraria, nos seres humanos, o tamanho, a forma e a

função. Caídos na empáfia de fugir à condição humana, violentos e sedentos por mais

presença, por corpos maiores e mais capazes, alimentamos a esperança fúnebre de estender

a vida para além do limite dos cem anos. Nisso, temos pensado como se viver já não pudesse

ser um fardo extremamente pesado e doloroso num mundo que, por nossa escolha, requer

demais de nós.

Cecília Meireles recria a loucura de conviver com uma noção de que há algo de errado

173

ARENDT, Hannah. Op. cit. 2010, p. 10.

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na Terra:

CONFISSÃO Na quermesse da miséria, fiz tudo o que não devia se os outros se riam, ficava séria; se ficavam sérios, me ria. (Talvez o mundo nascesse certo; mas depois ficou errado. Nem longe nem perto se encontra o culpado!) De tanto querer ser boa, misturei o céu com a terra, e por uma coisa à toa levei meus anjos à guerra. Aos mudos de nascimento fui perguntar a minha sorte. E dei minha vida, momento a momento por coisas da morte. Pus caleidoscópios de estrelas entre cegos de ambas as vistas. Geometrias imprevistas, quem se inclinou para vê-las? (Talvez o mundo nascesse certo; mas evadiu-se o culpado. Deixo meu coração – aberto – à porta do céu – fechado. (VM, 401-2)

A “confissão”, que se nos apresenta, destrincha, em certo nível, o mundo para além

da noção de “ordem mágica” que estamos acostumados a perceber na poética de Cecília

Meireles. Se por um lado, a poeta expressa seu enternecimento maravilhado em

“Contemplação” da dinâmica da harmonia do mundo, subjacente à noção de que o homem,

com “um anel no dedo” pode fazer “desabar da lua um temporal”; por outro, em

“Confissão”, ao se aperceber de que “Talvez o mundo nascesse certo,/ mas evadiu-se o

culpado”, a poeta nos alerta para a possibilidade de que essa mesma harmonia, expressa

pelo correto nascimento, residente num passado ou numa origem mítica do mundo, foi

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transformada em uma “quermesse da miséria”. E justamente por estar atenta a esses

movimentos do “mundo acabado” em profusão de desperdício, é que Cecília Meireles nos

apresenta, nesses versos, “os cegos de ambas as vistas”, que tomam aqui não o status

privilegiado do cego sábio e vidente do poema “Disse-me um cego na estrada”, visto no

capítulo anterior, mas assumem o caráter de ocularidade viciada, causadora de cegueira, de

impossibilidade de avistar o “caleidoscópio de estrelas” e as “geometrias imprevistas”, que só

o olhar poético consegue alcançar.

Assim, o lixo espacial que, na imagem de reprodução aqui exposta, nos impede de ver

a Terra em sua azul beleza, também interdita a concepção de um mundo harmônico, limpo e

organizado. Órfãos da harmonia, estamos colocados, como no poema, no exercício fúnebre

de uma “quermesse” em que rezamos, cegos e crentes no progresso, fundamentados na

falta de uma visão profunda da noção de nossa relação com a Terra. E é por isso que tal

“quermesse da miséria” não é apenas um microcosmos poético, mas a referência essencial

de nossa infeliz instância hodierna aqui neste planeta.

Está no próprio homem a responsabilidade de perceber a Terra, o mundo como

“mágico” pela “Contemplação” ou transformá-lo, por seu belprazer, em “quermesse da

miséria”. Justifica-se assim, a pergunta desesperada de “Amém”: “Onde repousar a cabeça?/

No além?”

O comportamento cético da poeta na “quermesse”, em que tanto o riso quanto o siso

dos homens são encarados com deboche e descrédito, que, por um lado, como vimos,

também parece contradizer o próprio discurso de que o mundo é “mágico”, por outro o

confirma, uma vez que a poesia de Cecília Meireles acaba por se dizer responsável por

mostrar o mundo como um construto de “geometrias imprevistas”. Tais “geometrias”

apontam, como no diálogo platônico Timeu, para a noção de que o mundo segue uma ordem

compreensível, em que se articulam “geometrias” perfeitas que terminam por fazer condizer

homem e universo, num todo indiviso e harmônico:

quando a divindade principiou a formar o corpo do universo, recorreu primeior ao fogo e à terra. Mas não é possível ligar bem duas coisas sem o auxílio de um terceiro sempre terá de haver entre elas um laço de união. Porém, de todos os laços o melhor é o que por si mesmo e com os elementos conectados constitui uma unidade no sentido amplo da expressão, sendo que faz parte da natureza da proporção geométrica progressiva conseguir esse resultado de maneira perfeita (...) Ora, se o corpo do universo apresentasse apenas uma superfície plana, sem profundidade, bastaria um meio para ligar seus dois termos com ele mesmo; mas, como o mundo tinha de ser sólido, e como os sólidos são ligados sempre por duas

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mediedades, não por uma uma, a divindade pôs a água e o ar entre o fogo e a terra, deixando-os, tanto quanto possível, reciprocamente proporcionais, de tal maneira que o que o fogo é para o ar, o ar fosse para a água, e o ar é para a água, a água fosse para a terra. (...) A esse modo, e com tais elementos, em número de quatro, foi formado o corpo do mundo e harmonizado pela proporção, da qual recebeu amizade, de tal maneira que recebeu unidade consigo mesmo, tornando-se assim, incapaz de ser dissolvido, a não ser por seu próprio construtor.

174

174

PLATÃO. Timeu. Carlos Alberto Nunes (trad.) In: ---. Diálogos. Belém: Universidade Federal do Pará. 1986. v. II, VII-32a, p. 37-8. (Coleção Amazônica Série Farias Brito).

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CAPÍTULO III

DIMENSÕES DO HOMEM

Stanley Kubrik, no polêmico Laranja Mecânica, filme de 1971, nos mostrava como se

comportaria, no futuro, o homem supermanipulado e supercontrolado dos tempos que se

chamariam pós-modernos: o líder de gang Alex vive o prazer de executar, em sua cidade

(metonímia dos tempos futuros), a ultraviolência, que ocorre pela total transgressão à ordem

social e por uma estranha fusão de arte e estupros, que são cometidos ao som de

Beethoven. Ele flagrantemente liga, assim, duas potencialidades humanas – o amor

(conservação da condição humana que se dá pela arte, isto é, a sinfonia de Beethoven) e o

desprezo (a violência dos estupros e torturas que comete). Num único movimento, engendra

a conduta dos novos tempos, isto é, a possibilidade de funestamente manipularmos tudo

para o nosso bel prazer e exercermos certo controle sobre toda a Natureza, humana e não

humana.

O que Kubrik profetizara ocorre, sem dúvida, hoje, na era da informação, em que o

homem parece ser arrastado por uma avalanche de possibilidades de experiências

amplamente manipuláveis, tempos em que a violência e a loucura nas relações humanas se

multiplicam terrivelmente. No desfecho do filme, o garoto é então capturado e, na cadeia,

tem sua mente extremamente transformada, tornando-se “hábil” para viver de novo em

sociedade. Suas pulsões de violência e terrorismo são medidas e controladas por um

tratamento de intensiva lavagem cerebral feita por experimentos científicos, que

transformam Alex num total adverso à violência, incutindo-lhe no corpo, os castigos relativos

a qualquer transgressão à ordem. É que, após o método correcional, toda vez que Alex

tentasse voltar a agir tresloucadamente, sentiria náuseas e um terrível mal-estar.

A vivência do homem consigo e com os outros parece, neste sentido, motivada por

uma rebelião contra a “condição humana” tal como nos foi dada e que desejamos trocar, por

algo que possamos manipular. Entregues aos deuses, ou ameaçados por um meteorito

distante, o homens não se conformariam em manter suas vidas dispostas ao acaso. É preciso

o controle; esta é a nova tecnologia direcionada à chamada condição humana. Em que

direção os homens desejam usar seu conhecimento técnico e científico? Para Hannah

Arendt, essa questão não se resolve pela ciência. O problema tem a ver com o fato de que as

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“verdades” da moderna visão científica do mundo – mesmo que demonstradas em fórmulas

matemáticas e comprovadas pela tecnologia – já não se prestam à expressão normal da fala

e do raciocínio. Assim, não se sabe ainda se a situação vivida por Alex poderá porventura ser

definitiva; mas é possível que, em algum dia, todos nós, que nos pusemos como habitantes

da Terra, jamais cheguemos a compreender, a pensar e a falar sobre aquilo que, no entanto,

somos capazes de fazer. Neste sentido, a manipulação do cérebro de Alex, conseguida pela

ciência em favor da segurança da vida na sociedade e do controle dessa vida, é emblema do

que pode acontecer com o nosso pensamento fugidio à condição humana, já que isso

seria como se o nosso cérebro, condição material e física do pensamento, não pudesse acompanhar o que fazemos, de modo que, de agora em diante, necessitaríamos realmente de máquinas que pensassem e falassem por nós.

175

Alex humaniza-se. Para se resgatar a docilidade humana que nele não se via, nem se

esperava ver, o moderno sistema de correção de delinquentes de que participa proporciona-

lhe o divórcio definitivo entre o seu pensamento – isto é, sua capacidade de expressar-se,

sua capacidade de até mesmo apreciar a arte, que lhe serviu de trilha sonora para cometer

seus estupros – e seu conhecimento, isto é, o seu know-how, seu aparato técnico. Seu modo

de agir no mundo, antes condicionado pela violência, fica agora desprovido de qualquer pré-

julgamento interno, é medido pela tecnologia usada para transformá-lo num cidadão de

bem. Há uma interessante cena no filme que representa bem isso. Uma das vítimas do

jovem, um escritor que fica paraplégico após ser torturado por ele, resolve se vingar

prendendo Alex num quarto ao som de uma sinfonia de Beethoven, o que é para o “ex-

delinquente”, uma verdadeira tortura, já que o processo de regeneração moral por que tinha

passado incluía “tirar” do rapaz toda a capacidade de sentir prazer com a violência – prazer,

neste caso, associado ao som de Beethoven.

Assim como Arendt teria apontado nossa problemática relação com a Terra, o filme,

inspirado no livro homônimo do autor Anthony Burgess, relataria os efeitos da relação entre

a tecnologia e a mente humana, sugerindo que seres humanos manipulados surgiriam no

“novo século”.

Haverá de fato um dia um equipamento capaz de levar o homem a bem resolver-se

consigo mesmo?

175

ARENDT, H. Op. cit. 2010, p. 11.

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Fala-se com os homens, com os santos consigo e com Deus... E ninguém entende o que se está contando e a quem.

(“Amém”, VM, 271 )

Será algum equipamento capaz de permitir ao homem pisar o próprio coração, já

que, diz a sabedoria popular, “coração é terra em que ninguém pisa”?

Que ser é este que até mesmo os deuses parecem não entender? Mesmo preso ao

tempo, à máxima idade dos 120 anos, o homem, segundo a história da ideia de natureza,

não raro se viu como criatura forjada por deuses, à imagem e semelhança de um ser que

domina uma “ordem maior”, supraterrena, por isso, busca fugir ao “limite” que lhe é

imposto, isto é, alimenta a visão de que não se pode limitar à experiência de con-vivência

com os outros seres do planeta. Nesse sentido, acha-se mais digno que a Terra, domina-a,

pois, “advindo dos deuses”, crê-se controlador do próprio destino e o destino do tempo.

3.1. A dimensão técnica do homem ou o insolúvel problema da quadratura do círculo

A noção dualista do real, enganada pela aparência, pela noção de que podemos, pela

técnica, controlar todo aparato “natural” à nossa volta, paramenta uma “relação” em que

fica de um lado “homem”, e de outro “Natureza”, separados. Como é possível essa

separação? É mesmo possível que quando dizemos “homem” não dizemos, ao mesmo

tempo e com o mesmo vigor, Natureza?

O homem constitui-se humano ao tomar distância essencial na Natureza. Mas os

vocábulos “homem” e “Natureza” não são “distâncias mensuráveis”; antes, se, pensarmos e

chegarmos à conclusão de que o homem é um ser em referência locativa a outros entes no

espaço, veríamos que essa separação é impossível, bem como o são a separação do céu e da

terra, da linguagem e da vida. Assim, ao dizermos “homem” esquecendo, de modo flagrante

que ele, o “homem” está na e é “Natureza”, corremos o risco de voltar, circularmente, àquele

esquecimento maior de que falamos no 1ª capítulo de nosso trabalho: o esgotamento do

deixar-ser – isto é da linguagem – como esgotamento primeiro do Ser; o esquecimento de

que o Ser se esquece, que nos trai, há muito, com promessas de acesso às coisas, pela

técnica. Daí, desse esquecimento do esquecimento, advém o problema insolúvel – a

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quadratura do círculo – emblema, aqui, de nosso estranhamento no mundo. Pelo que,

retornando à 3ª estrofe do poema de Cecília Meireles, lemos

Fala-se com os homens, com os santos consigo, com Deus... E ninguém entende o que se está contando e a quem...

Eis a denuncia de um desentendimento. Falas em profusão, em desperdício.

“Ninguém/ entende o que se está contando e a quem”, nos diz Cecília Meireles, nos

advertindo que quando o deixar-ser expira pela fala dominadora do homem, isto é, quando

lixo é jogado no mar, quando o espaço sideral é tomado por pedaços de satétites obsoletos,

quando poluímos o ar e manchamos o seio da Terra com agrotóxicos nocivos à saúde dos

homens e dos animais, quando matamos nossos irmãos pela guerra e pelas batalhas inúteis

de linguagem, estamos, pelo esquecimento do esquecimento do Ser, negando por um lado a

fluidez do mundo, forçando um artificial entendimento, que desfaz o lugar em que vivemos

na contramão dos sentidos da “evolução”; pois, do homem aos deuses, “ninguém entende o

que se está contando e a quem” É como se, com tal “esquecimento” de que nem tudo pode

ser controlado, a palavra des-envolvimento tomasse outros sentidos senão o de se deixar

envolver, se deixar unido, compactado, em íntima relação com a Terra. Des-envolver, que

entendemos como evoluir negativou-se no abandono de seu sentido essencial, des-encobrir.

Do acúmulo de lixo e de desentendimento do homem no planeta decorre uma profusão de

consumo e violência que se nos mostra. Assim, nos tem restado desesperada e ironicamente

perguntar: “Onde repousar a cabeça?/ No além?”.

O que o poema “Amém” reclama é a convivência entre a organicidade do Universo,

em profusão de desperdício, e a não-consciência dessa mesma organicidade: fugimos da

harmonia proposta pelo movimento de dependência entre “terra e sol”, “luas e estrelas”,

como a poeta coloca na última estrofe. Os astros vão girando, elipticamente, equiparando-se,

anulando-se, mas dando sentido, na distância das posições no cosmos, uns aos outros. Ao

assumir dada distância, o sol para com a lua, por exemplo, vai tomando uma distância

circular, numa relação paramentada pelo deixar-ser. Voltemos à questão da “Quadratura do

Círculo”

A tentativa de controle desse movimento “circular”, que, como dissemos, é o símbolo

da Terra, desembocou no que conhecemos como sendo duas trajetórias no Ocidente. Um

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147

Ocidente é o do Círculo, em que a poesia e o mito são dobra de uma mesma instância da

realidade. E outro é o “Ocidente que Quadra o círculo”, no qual a Retórica, a Sofística e a

Filosofia fazem a constante e repetitiva afirmação da diferença, valendo-se da duplicação

dicotomizada de um esquema de círculos (medidos e “quadratizados”) e quadrados.

Poderíamos afirmar que tal como o círculo perfeito, o quadrado é uma abstração. Ele não

existe. Foi construído, mas não se sustenta. O seu modelo, porém, parece seduzir mais o

homem que o “círculo”, difícil abstração com que lidar; talvez por se ver, não raro, fora da

phýsis.

O homem, uma vez afastado do poético, precisa criar para si um construto artificial,

um modo técnico de ser que reduza o círculo ao quadrado. Emblematicamente, percebemos

que phýsis, Natureza, em todo o tempo propõe e faz nascer o redondo, o circular, o curvo, o

espiralar e o oval como lições para a alma humana. Os poetas conhecem a Natureza,

participam de sua obra, pois sabem que são também Natureza. Participam da vigência da

phýsis, Por isso, toda a vigência de sua poética está em retornar, circularmente, à Natureza, à

phýsis que os criou.

Em “A questão da técnica”, Heidegger diz que “a técnica não é igual à essência da

técnica”. Tal reflexão nos guiará na caminhada deste pensamento que privilegia o círculo em

detrimento do quadrado devemos nos perguntar o que é a técnica tão requerida pelo

homem de transformar o círculo – para nós sinônimo de inefável e infinitamente proposto –

em quadrado. Assim, o autor afirma neste artigo que a corrente concepção de técnica é a de

que a técnica “é um meio e uma atividade humana, a determinação instrumental, pois a ela

pertencem a produção e o uso de ferramentas, aparelhos e máquinas, bem como pertencem

estes produtos e utensílios em si mesmos e as necessidades a que eles servem.”176 Tal

concepção, para ele, chega inclusive a tocar a técnica moderna, cujo cerne ainda atende à

noção de instrumento, e de a técnica ser um meio para um fim. E é dessa noção que, para o

pensador alemão, cresce a necessidade cada vez mais urgente de dominá-la. A técnica é,

assim, entendida como meio que visa a um fim. Para o grego, o meio era o compasso, a

régua, o esquadro.

Questionando se a noção de técnica está correta entendida como “um meio para um

fim”, Heidegger admite que a concepção instrumental da técnica tem tentado colocar o

176

HEIDEGGER, M. Op. cit. 2002, p. 12.

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148

homem num relacionamento direto com ela, dando-lhe energia para manusear os

instrumentos como um meio. Chega, portanto, o pensador a se perguntar o que seja o

instrumental em si mesmo (a que pertence os domínios do meio e do fim) já que o meio

induz a um fim, e a causa a uma conseqüência. Põe-se então, como factual a relação entre a

instrumentalidade atribuída à técnica e a causalidade que a filosofia vem nos ensinando,

desde Aristóteles, como quatro causas divididas em Causa Material, Causa Formal, Causa

Final, Causa Eficiente, nas quais impera a nossa visão das coisas.

Para Heidegger, a determinação da eficiência das coisas segundo as quatro causas,

mesmo que ensinada há séculos, permanece obscura. É preciso questioná-la. E Heidegger se

questiona por que sobre a chamada Causa Eficiente cai toda a responsabilidade da

causalidade, a ponto de a Causa Final ter sido esquecida na história do Ocidente que Quadra

o círculo. A prevalência da Eficiência sobre a Finalidade demonstra que a técnica moderna,

em sua instrumentalidade, decide que a eficácia de algo seja o critério para a presença de

algo, de um isto qualquer. Há, porém, um fosso abismal entre a noção aristotélica de

causalidade e a dicção da posteridade sobre o assunto. Os gregos viram na causa, aition, um

modo de responder e de dever: uma participação.

Para explicar essa vigência da causalidade, Heidegger viria a expor um aclaramento

dessa questão. Diz que, no cálice de prata, reside a prata que o determina e que por ele

responde, ao passo que o cálice deve à prata sua constituição. Como utensílio sacrifical, o

cálice não deve somente à prata, mas também ao perfil, eidos, que por sua vez responde ao

utensílio de sacrifício177. A responsabilidade pelo utensílio do sacrifício reside num terceiro

modo que Heidegger entende como sendo o que determina, de maneira prévia e antecipada,

a alocação do cálice na esfera do sagrado. Tal ato finaliza o utensílio, mas não se configura

como seu fim, antes dá-lhe chance de ser, após terminado como pronto. É neste momento

que o cálice alcança seu telos, isto é, sua plenitude como resposta, na matéria e no perfil

responde ao utensílio sacrifical.178

O quarto modo conferido por Heidegger é a integração do utensílio pronto, pelo

ourives. O ourives reflete e recolhe os três modos mencionados de responder e dever. Ao

refletir, os três modos anteriores de responder se dão, fazendo aparecer o modo e o fato de

177

HEIDEGGER, M. Op. cit. 2002, p. 14. 178

HEIDEGGER, M. Op. cit. 2002, p. 14.

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produção do cálice sacrifical. O ourives preserva o cálice em seu pensamento, em sua

reflexão, dele parte a integração dos três modos de dever e responder que Heidegger nos

apresenta.179 Assim, Heidegger se pergunta, ainda, o que faz as quatro causas se integrarem

coerentemente nos modos de responder e dever. Para que o caminho dessa questão

continue aberto, o pensador propõe que as quatro causas sejam entendidas e pensadas “de

maneira grega”.

O primeiro passo para o caminho desse pensamento é livrar-nos do sentido comum

de responsabilidade a que estamos acostumados. O autor nos lembra que o dever e o

responder por algo se responsabilizam pelo dar-se e propor-se de algo, neste caso, o cálice.

Volta ao étimo grego e encontra nele a raiz de um dar-se e propor-se como incrustada na

vigência de algo que está em vigor. Os quatro modos de responder e dever levam alguma

coisa a aparecer. Deixam viger, como canta um samba da Mocidade Independente de Padre

Miguel em 1983: “Deixe nossa mata sempre verde/ deixe nosso índio ter seu chão”180. O

deixar-viger como dever e responder, aitia grega, evoca a verdadeira essência grega da

causalidade, que se distancia cada vez mais da nossa noção atual de “deixar-viger” residente

e residida pela noção de ocasião, oportunidade tão caras num mundo dito “sem espaço”.

Heidegger lembra, a seguir, que deixar-viger tem irmandade com o que seja deixar chegar à

vigência o que ainda não vige, deixar aparecer. Quando o sambista rogava em 1983 pelo

verde da mata e pelo chão do índio, rogava como que participando do jogo da pro-dução da

realidade, de uma poiésis181 do chão do índio e do verde da mata. Deixá-las viger

corresponde a participar com elas de uma soma à phýsis, des-cobrir uma luminosidade verde

nas folhas ainda não nascidas e prometidas e uma temporalidade no chão ainda não pisado.

E não só isso, tal deixar-viger corresponde à phýsis, que, segundo Heidegger é “até a máxima

poiésis”182.

A phýsis é o domínio de um surgimento, de uma pro-dução, de um elevar-se por si

mesma, de um eclodir que não pode ser completamente entendido pelo poeta nem por

ninguém como instrumentalidade, medida e controle. Antes, sua experenciação só se dá no

caminho do questionar ante o surgimento do que aparece e se esconde, foge e mostra-se.

179

HEIDEGGER, M. Op. cit. 2002, p. 15 180

O título do samba-enredo do carnaval de 1983 da referida Escola de Samba do Rio de Janeiro é “Como era verde o meu Xingu”, de Paulinho Mocidade e Dico da Viola, Adil e Tiãozinho da Mocidade. 181

HEIDEGGER, M. Op. cit. 2002, p. 16. 182

HEIDEGGER, M. Op. cit. 2002, p. 16.

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A poiésis, diz Heidegger, conduz do encobrimento para o des-encobrimento. Visita o

oculto porque é impossível saber tudo o que ocorre dentro, por exemplo, de uma onda. Tal

impossibilidade inaugurou há muito o mythos e no mythos não reside a medida, muito

menos no círculo, pois a irracionalidade de pi instaura na vigência do círculo um mundo de

possibilidades numéricas. A impossibilidade da medida da transcendentalidade de um círculo

é o que justamente lhe dá possibilidade de infinita criação numérica. Seu arco é uma

completa entrega ao número seguinte que não se sabe qual será. Suas voltas intermináveis

escondem o que seja início e o que seja fim, pois o que se pensa ser início logo em seguida

pode ser fim e, por ser fim e início, entendemos que seja pro-dução infinita de termos. Ao

tentar quadrar o círculo, o homem procurou reduzi-lo a quatro lados. Quatro causas? Ao

rejeitar o mythos, o Ocidente que Quadra o círculo elegeu a razão como única versão de

nossa existência na terra e, assim, reduzimos tudo a aparências com muita vigência poética

esquecida. Por que quereríamos tanto quadrar o círculo? O que isso revela? Lidar com o

círculo, instrumentalizar o seu acesso tornando-o quadrado, significa nos permitir à

facilidade do entendimento? Ledo engano, que fundamenta toda nossa crença nos quatro

lados das quatro causas como únicas-versões das coisas. Este é o traço fundamental da

técnica, como coloca Heidegger: a instrumentalidade. Tornar o inefável o menos próximo

possível de pi, pois calar a dinâmica de encobrimento e des-encobrimento, que esse número

misterioso provoca é um meio para se chegar a um pretendido eficiente resultado. Em pi

está oculto o mistério do incoercível. No mythos, faz sentido a integração com o não-óbvio.

Pois quanto mistério há em dizer que Zeus se tornou em touro branco ou cisne para seduzir

as mais diversas ninfas!

“A técnica não é, portanto, um simples meio. A técnica é uma forma de des-

encobrimento”.183 A técnica des-encobre as possibilidades de a prata ser cálice ou moeda. É

ela a responsável por integrar o homem à sua vontade. Nela, descobrimos a verdade, que os

gregos traduziram por alethéia, isto é, des-ocultação, des-esquecimento, memória, des-

encobrimento. Técnica e verdade não têm sido palavras muito aproximadas ultimamente,

principalmente quando pensamos nos ditos avanços das técnicas modernas. Sempre me

pergunto se há algum avanço em sair todos os meses um celular novo com mais e mais

botões e funções, ao passo que os considerados obsoletos vão todos para a Baía de

183

HEIDEGGER, M. Op. cit. 2002, p. 17.

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Guanabara. Muitas vezes, num celular antigo reside a mesma finalidade, utensilidade que

nos novos: permitir que duas pessoas à distância se comuniquem. Porém, tudo fica velho

muito rapidamente, de sorte que não temos mais lembrança do último aparelho comprado.

Importa-nos carregar menos peso, facilitar a vida, atender às exigências do mercado,

carregar dados, músicas, tirar fotos, acumular dados, dados e mais dados.

A técnica em sua essência é um des-encobrimento. Não há des-encobrimento ou

deixar-viger algum em acrescer às nossas vidas mais e mais aparelhos celulares que vão virar

“lixo” muito em breve. Do que estamos falando então? Heidegger coloca que a palavra

responsável por técnica vem do grego techné, cujo sentido reside não somente na noção de

habilidade manual, artesanal, mas também no fazer da grande arte e das belas artes. Para

haver técnica, é necessário haver poiésis, isto é, pro-dução. Quando trocamos de celular

todos os meses não estamos pro-duzindo nada a não ser acúmulo de detrito184, ou seja,

passamos a atribuir inutilidade ao que antes parecia tão indispensável. Não há pro-dução

nisso, mas reprodução, pois nosso procedimento mais comum é observar nos aparelhos

somente seu caráter de eficiência.

Nossa reflexão retorna ao circulo que Cecília Meireles desenha na segunda estrofe de

“Amém”, ao dizer: “A profusão do mundo, imensa/ tem tudo, tudo e nada tem”.

Para profusão, o Dicionário Eletrônico da Língua Portuguesa185 coloca, dentre outras

acepções, a palavra “prodigalidade”, isto é, fartura, abundância, grande quantidade de algo.

O círculo desenhado no poema pela disposição nas frases dos termos “tudo” e “nada” nos

coloca mais uma vez diante da questão da técnica. Aqui, o caminho se bifurca. Por uma das

vias da bifurcação, caminham os que creem na profusão infinita de um mundo em que tudo

pode ser transformado em instrumento, e os limites da reprodução desses instrumentos

parecem infinitos. Neste caminho, impera o descartável e a instrumentalidade. Pela outra

via, caminham os que se perguntam: “Onde repousar a cabeça?/ No além?”. São aqueles

que veem a técnica como questão cujo toque é um toque no âmbito da poiésis, da produção.

Rejeitam a infinitude da vida, pois sabem que o céu que alguns criaram para repousar a

184

Não falo necessariamente em “lixo” por entender que este tem sido um assunto muito discutido por inúmeros autores que pensam a questão ambiental do lixo. Proponho, à maneira desses autores, que nossa relação com os dejetos seja transformada, na medida em que entendamos ser inevitável a recomposição das coisas. Acredito que devemos rever o que pensamos ser inútil e isso é o que este trabalho, de certa forma, também propõe. 185

HOUAISS, A. Dicionário Eletrônico da Língua Portuguesa. São Paulo: Objetiva Ltda, 2001.

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cabeça não existe como responsável por nós mesmos. Os que se dirigem pela poética,

caminham num caminho em que veem círculos. Os da primeira via, calculam tudo para que

tudo se transforme no que queiram transformar.

Não se trata de maniqueísmo tal reflexão, mas de pensar se o silenciamento dos que

quadram o círculo é um caminho válido de pensamento.

“A técnica é uma forma de aletheiuien”, diz Heidegger (2002: 17), pois a técnica deixa

viger o que não pode viger por si mesmo, o que não se produz a si mesmo e ainda não se dá

ou propõe. Com a técnica, ocorre a criação e visita ao que ainda não se mostrou desde o

oculto. Com a técnica ou poética, os poetas nos permitem abrir os olhos para o que estava

oculto, com as suas imagens generosas de espantosa beleza. Isso só ocorre porque a técnica

pro-duz. A verdadeira técnica não cai no perigo da reprodução, pois como des-encobrir o que

já se sabe o que será? Que vantagem há em serem feitos milhares de celulares igualmente

dispostos ao uso e ao desuso de uma hora para a outra, todos iguais e repetitivos? A técnica

des-cobre novos caminhos. Na verdade, caminhos que estavam escondidos antes e, por

serem desvelados, acabam re-velando outros, isto é, pondo um novo véu nos caminhos

ainda não des-encobertos.

Voltemos às reflexões sobre o habitar. Quando dizemos “Sobre esta terra”, coloca

Heidegger, já dizemos, incolumemente “sob o céu”. Mantenhamos essa congruência para

questionar a matemática relação dos astros no seu giro. Ora, o filósofo ao investigar, no vigor

da linguagem, os sentidos para a palavra “habitar”, chega à conclusão de que tal termo nos

leva ao sentido de “construir”; e que habitar é o modo como os mortais são e estão sobre

esta terra; por conseguinte, habitar no sentido de construir desdobra-se em dois sentidos:

edificar uma construção ou cultivar algo para o crescimento. Assim, construir e habitar se

comportam na vigência dos mortais como um binômio, pois ser homem é ser como quem

habita, e isso, Heidegger, ao voltar-se para o alto alemão, des-encobre relações do termo

com permanecer, de-morar-se, preservar, manter, salvar, resguardar. E estamos diante,

assim, de um “Amém”, pois se os astros estão em relação redonda e locativa, resguardam

estas posições desde sempre, mantêm a rota dos dias, dos anos, estabelecem seus campos

de força e atração gravitacional. Pois, para a lua, dar marés para os mares é ser e resguardar

o seu sentido original, no qual mantém-se salva quando aparece nas múltiplas faces, e

desdobra-se em eclipse, esconde-se para a África quando se mostra para a Oceania. “Amém”.

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Mas quanto aos mortais? Eles habitam quando são trazidos à paz de um abrigo; habitam ao

pertencerem à paz de um pertencimento. Por isso, quando estão sobre a terra, estão de-

morando-se também sob o céu – numa relação redonda com tudo: Estar tanto sobre a terra,

quanto sob o céu supõe “conjuntamente ‘permanecer diante dos deuses` e isso ´em

pertencendo à comunidade dos homens`. Os quatro: terra e céu, os divinos e os mortais,

pertencem um ao outro numa unidade originária”186.

Em astronomia e navegação, há a noção de que o céu é uma esfera celeste, que se

divide na meia esfera do dia e da noite, constituintes da própria abóboda celeste, que é o

céu. Mas tudo parece tão plano... Tudo parece tão distante da curvatura do círculo, da

circularidade da realidade, que acreditamos, por séculos, enganados pela aparência, que a

terra era chata como o chão curvo de que se vale para ser. Visto de qualquer posição (de

prudente posição), o céu forma uma espera de raio indefinido e concêntrico com as

coordenadas da Terra. Todos os objetos que se vêem no céu podem ser então representados

como projeções da abóboda celeste. E tudo parece estar pendurado no ar, sem se balançar,

como se estivessem postos num firmamento. A poesia de Cecília Meireles, nos versos de

“Reinvenção” desprende a noção de enganada firmeza das estrelas, da vida, noção advinda

da linguagem desgastada pelo homem e pelo tempo, e a transfigura como “balanço”, no qual

nossas noções de realidade se inventam, prendendo e des-inventam, des-a-prendendo:

A vida só é possível reiventada. Anda o sol pelas campinas e passeia a mão dourada pelas águas, pelas folhas.... Ah! tudo bolhas que vêm de fundas piscinas de ilusionismo... – mais nada. Mas a vida, a vida, a vida, a vida só é possível reinventada. Vem a lua, vem, retira as algemas dos meus braços. Projeto-me por espaços cheios da tua Figura. Tudo mentira! Mentira

186

HEIDEGGER, Op. cit. 2002, 129.

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da lua, na noite escura. Não te encontro, não te alcanço... Só – no tempo equilibrada, desprendo-me do balanço que além do tempo me leva. Só – na treva, Fico: recebida e dada. Porque a vida, a vida, a vida, a vida só é possível reinventada. (“Reinvenção”, VM, 411)

Os antigos criam, ao observarem as estrelas, já dissemos, que elas estavam fixas e

que eram pontos equidistantes umas das outras, como se não girassem... Eles se enganaram,

repito, pela aparência. Na verdade, se podemos resgatar qualquer coisa do âmbito da

ocultação, se podemos pôr qualquer coisa na verdade, diríamos que o que lhes era

escondido era a seguinte questão: apesar de incorreta a idéia de firmamento, ela é útil, pois

tudo que vemos no céu está de tal modo tão distante de nós que as posições relativas e

inclusive os movimentos são impossíveis de se determinar apenas por observação visual.

Parece que o sol, todos os dias, vai de leste a oeste, da mesma forma que as estrelas, e os

planetas, e a lua “giram de tal maneira bem”. Assim, a profusão de desperdício humano não

se dá somente no fato de o homem fadar-se ao cansaço, e chegar, finalmente, à morte, mas

em esgotar-se em falatório e em engano, achar-se dono das visões de que se vale, tornando-

se escravo do que vê. Por ter sempre os olhos abertos e o corpo disposto no mundo, o

homem, enganado, considera-se senhor da existência. Na verdade bem des-ocultada, no

entanto, funde-se à vida, sendo com ela tudo o que é. Assim, ele gira, roda com os planetas,

crendo que está fixo e firme como se mostram as estrelas do céu. E não parece muito mais

fixa a imagem do quadrado que as sugestões imagéticas do círculo? O quadrado declina-se

num cálculo mais seguro e preguiçoso que o círculo; este sim é arriscado, tonto, e nunca se

satisfaz, o círculo quer conhecer tudo que vê. O homem gira com o círculo, ou não fomos nós

que dissemos que também temos certeza de que o sol amanhã volta porque o temos visto,

noivo fiel, voltar todos os dias? O sol redondo e quente como um círculo.

“Hoje acabou-se-me a palavra”. (“Amém”, VM, 271). Mesmo que se lhe tenha

esgotado a palavra, lugar de sua habitação e medida do seu distanciamento de todas as

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outras coisas, ainda é dado ao poeta o respirar. Heidegger tinha achado na linguagem a

morada do ser e dado aos poetas a incumbência de ser-lhe vigias. A poesia ceciliana aqui é,

mesmo que pela fatídica dissolução da vida, pela profusão do mundo que faz equivaler tudo

a nada, pela subtração de tudo e tudo, a constatação final de que “a vida só é possível

reinventada”. O seu lugar é cantar, ecologicamente, o seu esgotamento, usando o vigor que

ainda lhe resta, isto é, em quatro estrofes, 16 versos e 74 palavras, contar, contando, o

problema até então irredutível da humanidade: deixar de dizer e deixando de dizer, deixar de

ser, mas, como recomendara Parmênides: “Necessário é o dizer e pensar que (o) ente é”187.

Se o Poema não tivesse dito, não teria sido, e se não tivesse sido, não teria tomado distância

de nós todos, sendo, por isso mesmo, nós todos. O seu lamento é o nosso lamento. O lugar

do desentendimento do homem no mundo resulta da tentativa, sempre dualista, de separar

o que se tem como incongruentes.

..............................E ninguém entende o que se está contando e a quem... (“Amém”, VM, 271)

Gastando excessivamente as palavras, estão-se desentendendo Deus e os homens,

homens e os próprios homens, homens e os santos, santos e Deus. São quatro pontas de

uma comunidade que fala liberadamente, sem pensar no que fala e, por isso mesmo, desde

Babel, a torre-símbolo da falta de comunicação entre Deus e os homens e entre os homens e

os homens, largamos a circularidade, a estrutura redonda, a pulsante esfera da comunicação

em que a energia guardada pela palavra, à semelhança dos variados ciclos da natureza, vai e

volta numa constante roda. Se tivéssemos, nos tempos de Babel, ouvido a recomendação de

Cecília Meireles, que tenta salvaguardar – o humano dizendo: “Sê o grande sopro / Que

circula...” (“V”, C, 123), teríamos ouvido uns aos outros e “a profusão do mundo” equivaleria

à comunicação entre nós e tudo o que há, nas nossas relações de distância e aproximação,

187

Tradução de José Cavalcante de Sousa, há, porém, uma gama de interpretações deste polêmico trecho do Poema de Parmênides. Mais recentemente, o laboratório Ousia, entidade de pesquisa da UFRJ, publicou tradução que diz: “Precisa que o dizer e o pensar e o que é seja; pois há ser”, advogando o seguinte sentido: “Buscamos a que apresentasse a forma quase assindética da sucessão de verbos de modo mais simples e direto, no sentido integrante de ‘dizer o que pensa e o que é’ como a ponte de verdade, que vai do ente e do pensamento até a fala.” (disponível em http://www.ifcs.ufrj.br/~afc/2007/parmenides.pdf, acesso em 14 de abril de 2011.) Para nós, no entanto, subsiste a relação entre dizer, pensar e ser, tão requerida no pensamento de Heidegger.

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pela pulsante comunicação circular, com a redondeza da linguagem. A redondeza da

linguagem instauraria por si mesma uma re-volução.

Ainda pelo conceito matemático, re-volução188 significa a volta de um corpo sobre si

mesmo, e esta volta é sempre edificante, pois que é um rodar, um girar. Imagine-se uma

dada linha curva que, voltando-se sobre si mesma, muito rapidamente, mostra o que não se

adivinhava: um cone, por exemplo. De um plano, tiramos um sólido, isto pelo exercício da

revolução, da volta, da busca giratória da essência do que não se via. Se por um lado, o que

se vê é uma linha, por outro, assumindo-se o risco do giro, mesmo que o giro promova uma

tonteira, o que se nos mostra é o que é, o que pode ser, sem estar, necessariamente,

aparente. Ora, como o giro “de tal maneira bem”, cantado pelo poema, nos instrui neste

problema? Estamos devotados à incongruência. O mundo, insatisfeito, tem desperdiçado o

ente que, na simulação requerida pelo dualismo, parece que é, opina por ser, até que

perigosamente, na matança das nossas relações e no desentendimento de todos com todos,

vai se equivalendo tudo a nada. Vão se equivalendo Deus e nada, homens e nada, santos e

nada, natureza e nada, num esgotamento total, numa desorganização flagrantemente

anunciada por Babel, a torre da discórdia.

A profusão pela qual “tudo” equivale a “nada” é bem mostrada por Heidegger, em

Introdução à metafísica. Ela decorre da dificuldade de o homem deixar-ser o mundo; do que

resulta a violência à vigência especial de cada coisa. Nada vige quando tudo que há se devota

a não ser o que sempre foi; quando o homem se esgota e se vai separando de tudo, sem

saber o seu lugar, sem saborear o seu bocado na conjuntura gerada pela phýsis. Isso ocorre

quando o combate, que projeta e desenvolve a doação do vazio, a doação do in-audito deixa

de se dar; em outras palavras, quando o que se poderia manifestar não se manifesta:

o mundo se retrai. O ente já não se afirma (i.é. não se conserva, como tal). Aí o ente é apenas o achado. (...) É o objetivamente dado, onde já não se instaura nenhum mundo. (...) O ente se converte em objeto, seja para a contemplação (aspecto e imagem) seja para a ação produtiva, como produto e cálculo. O que instaura mundo originariamente, a phýsis, decai e degrada-se em modelo de imitação e cópia. A natureza se transforma em esfera especial, distinta da arte e de tudo o que se pode

188

O que Martin Heidegger confere em Introdução à Metafísica é que para que se chegue a uma nova postura na relação com a linguagem é necessária uma revolução real. À guisa do próprio filósofo e para seguir nossa linha de raciocínio aparentado com alguns princípios matemáticos, resolvemos fazer uma espécie de diferente escuta do sentido de revolução. Portanto, a revolução proposta não só atende à noção habitual de mudança dada por uma ruptura, como também aponta para a volta. Os vetores de transformação, então, são múltiplos e nos aproximam da busca por uma relação menos técnica e científica com a linguagem.

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157

produzir e planificar.189

Como promover a con-fusão sem estancar a pro-fusão? Uma con-fusão se faz precisa,

isto é, é preciso que se reorganizem, ecologicamente, o espaço, os distanciamentos, as

alocações dos seres e que eles entendam o que são e o que podem dizer uns aos outros,

resgatando a sua essência e entendendo que a sua essência é um distanciamento

interdependente. Ao que nos parece, Cecília Meireles nos recomenda a re-volução dos

corpos. Assim como terra, sol, luas e estrelas têm girado, é talvez na didática do giro, na volta

sobre nós mesmos, que chegaremos à reconciliação do que se tem posto quadrado com o

que se compõe circular – isto é a comunidade dos homens com a comunidade da natureza.

O dualismo recomendou e provou, respaldado pela matemática, a impossibilidade da

equivalência. Mas como não aprender com a circularidade natural de terra, sol, luas e

estrelas? Como separar o homem do que é ele mesmo: a natureza, em dispersão imensa?

Questionando o esgotamento da linguagem acharemos a pátria perdida da humanidade

mecanizada e alheiada do mundo? Como re-unir o homem a tudo, a Deus e aos santos?

Entendimento que se dá pela linguagem e por atender à linguagem?

3.2. “Ando à procura de espaço”: a dimensão poética do homem

No poema “Canção Excêntrica”, somos levados a refletir sobre o dilema e a dinâmica

do espaço. Tais questões nos permitem também refletir sobre o habitar do homem nas

regiões da poesia, a dimensão poética do habitar humano e a residência de uma

redundância na expressão “o homem e sua dimensão poética”.

A poeta canta, assim, sua “Canção excêntrica”:

Ando à procura de espaço para o desenho da vida. Em números me embaraço e perco sempre a medida. Se penso encontrar saída, em vez de abrir um compasso, protejo-me num abraço e gero uma despedida. Se volto sobre meu passo,

189

HEIDEGGER, M. Op. cit. 1987, p. 90.

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158

é distância perdida. Meu coração, coisa de aço, começa a achar um cansaço esta procura de espaço para o desenho da vida. Já por exausta e descrida não me animo a um breve traço: - saudosa do que não faço, - do que faço, arrependida. (“Canção Excêntrica”, VM, )

As rimas entre “espaço”, “embaraço”, “compasso”, “abraço”, “passo”, “aço”, “cansaço”,

“traço”, “faço” e entre “vida”, “medida”, “saída”, “despedida”, “perdida”, “descrida”,

“arrependida” poderiam apenas sugerir uma questão fônica, que, em tese, daria ensejo à

execução da canção. Mas cantar, para um poeta (e para o homem, pois somos todos poetas)

exige muito mais; exige aquilo que o próprio sangue da poesia reinventa: o ritmo, a

entonação correta, a afinação exata, a musicalidade pontual, a audição com que o espírito se

debruça, e ainda o poder do poema de trazer, como nos disse Heidegger, o homem para

junto da terra, sob a responsabilidade de Cura, questão-dilema, sob a qual desde sempre ele

está posto. Cantar exige a vida. Assim como a morte exige a vida.

Martin Heidegger atenta para o verso do seu poeta preferido, Hölderlin: “cheio de

méritos, mas poeticamente/ o homem habita esta terra”. No mito de Cura, residente numa

fábula de um escravo romano Gaius Julius Higynus, que Heidegger retoma em Ser e Tempo,

encontramos o que ele diz ser a essência do ser do homem: o Cuidado. Para “Cuidado”,

temos a palavra que dá nome à deusa “Cura”, cuja responsabilidade, na narrativa mítica, aqui

transcrita se vê no excerto da fábula:

Certo dia, atravessando um rio, Cura viu um pedaço de terra argilosa: cogitando, tomou um pedaço e começou a dar-lhe forma. Enquanto refletia sobre o que criara, interveio Júpiter. A Cura pediu-lhe que desse espírito à forma de argila, o que ele fez de bom grado. Como a Cura quis então dar seu nome ao que tinha dado forma, Júpiter a proibiu e exigiu que fosse dado o nome. Enquanto Cura e Júpiter disputavam sobre o nome, surgiu a Terra (tellus) querendo dar o seu nome, uma vez que havia fornecido um pedaço de seu corpo. Os disputantes tomaram Saturno como árbitro. Saturno pronunciou a seguinte decisão, aparentemente equitativa: “Tu, Júpiter, por teres dado o espírito, deves receber na morte o espírito, e tu, Terra, por teres dado o corpo, deves receber o corpo. Como, porém, foi Cura quem primeiro o formou, ele deve pertencer a Cura enquanto viver. Como, no entanto, sobre o nome há disputa, ele deve chamar-se Homo, pois foi feito de húmus..

190

190

HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. Marcia Sá Cavalcanti Schuback (trad.). Petrópolis: Vozes, 2009, p. 266.

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159

O que vemos pela fábula e por seu potencial de suscitar o pensamento? Que o

homem como questão, mesmo para os deuses, permanece no ínterim da vida “cheio de

méritos”, isto é, cheio de responsabilidades, as quais se reúnem sob o nome do “cuidado”.

Cuidado diz respeito a colher, à cultura. O modo de o homem habitar a terra é cuidando, isto

é, estabelecendo-se como cultura, mas não sob o signo da destruição, mas como um modo

de “construir”, de contribuir para um crescimento, de aedificare. Exposto, lançado, plantado

nesta terra e sob estes céus, que pode fazer o homem? Ser a própria terra. Construir.

Não é apenas a métrica e/ou a seleção vocabular que possibilitam tentarmos cantar

com Cecília Mireles, excentricamente, a construção de uma “habitação poética”. Mas é no

próprio desejo de excentricidade, intrínseco ao homem, habitante poético deste centro, que

a Terra passa a residir no seu cantar.

Em nossa escuta da “Canção”, pensemos o que de nós pensam as rimas, e o que nos

pensa a formação de seus pares, reunidos, indivisos, para que os sentidos da redundância “o

homem e sua dimensão poética” se aclarem. Pensemos a redundância que rima homem e

poesia.

Numa 1ª tentativa de exercício poético, convocam-se as rimas “espaço” – “embaraço”

/ “vida” – “medida”:

Poeticamente o homem habita, diz Hölderlin, frisando, de modo enfático, que esta

habitação se dá (n)“esta terra”. Mas o poeta da “Canção Excêntrica” está, como nós, “à

procura de espaço/ para o desenho da vida” e, como nós, se embaraça em números, perde a

medida, não consegue ater-se aos domínios do cálculo e da razão e, assim, rima a procura do

“espaço” com o “embaraço” dos números.

Ora, como pode o homem poeticamente habitar “esta terra” e, no mesmo

movimento, isto é, no movimento da própria vida, “procurar espaço”? Já não há espaço

suficiente para o homem habitar esta Terra senão a própria Terra? Colocam-se diante de nós,

já de início, muitas questões. Uma delas é o que é o “desenho da vida”?

Hölderlin diz

Deve um homem, no esforço mais sincero que é a vida, levantar os olhos e dizer: assim quero ser também? Sim.

191

191 HEIDEGGER, M. Op. cit. 2002, p 168.

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O desenho da vida não se dá senão com esforço. O desenho da vida é “o esforço mais

sincero” do homem. O homem não repousa sobre este desenho, tampouco se desenha com

facilidade. Isso não se dá simplesmente. Mas é tão somente pelo desenho esforçado da vida

que o homem habita esta terra. O conhecimento habitual diz que, para se construir um

desenho, é necessário todo um instrumental material disponível. Que instrumentos

utilizamos para engendrar, com esforço, o desenho da vida?

Os primeiros hominídeos precisaram gozar da disposição dos instrumentos.

Lembremos, amparados por um texto de Manuel Antônio de Castro192, a marcante cena do

monólito no filme de Arthur C. Clarke & Stanley Kubrick: 2001: uma odisséia no espaço. Dois

bandos de macacos disputam, por sobrevivência, uma fonte de água, num ambiente

inóspito, o qual se reconhece como sendo a Terra nos seus primórdios. Um dos bandos é

interrompido por um estranho zumbido advindo de um pedaço de pedra surgido do nada.

Desde então, pela leitura de Castro e pelo que se vê no filme, a “realidade” nunca mais será

a mesma. O líder de um dos grupos se vale de um pedaço de osso e desfere um golpe mortal

na cabeça de outro “macaco”, do grupo “inimigo” com que disputava a fonte de água. Alegria

geral do grupo vencedor. O osso escapa das “mãos” do “líder” e, num brusco corte de cena,

transforma-se, na nave espacial Discovery, já nos tempos atuais. Que ponte é essa (e sobre

que abismo?) os geniais cineastas esgueram? Para Castro, tanto o osso-arma, quanto a

Discovery reúnem a trajetória do homem em busca da essência da cultura, uma vez que o

objetivo da nave também “é desvendar o mistério do monolito, aparecido em escavações

lunares emitindo forte onda para além da Galáxia”. O osso-arma e a nave espacial reúnem-se

(talvez nunca estivessem separados), com vistas a satisfazer o afã do homem de desvendar o

mistério da origem e atrelá-lo ao “desenho da vida”. Tanto o osso quanto a nave, em si, não

são destrutivos; antes, integram tanto o homem ainda macaco à fonte de água, promotora

de sua própria sobrevivência como o homem de 2001 à lua. Porém, ambos são utilizados

como instrumento cujo propósito, a princípio, integrador, é desviado para um caminho, isto

é, para longe da vida, que não pode ser mantida além do limite da temporalidade de sua

vida. Ao utilizar o osso-arma contra o macaco que agora jaz morto, o homem se percebe na

possibilidade de algo ocorrer fora da vida. O homem percebe, assim, sua ex-centricidade.

192

CASTRO, Manuel Antônio de. Ecologia: a cultura como habitação. In: SOARES, Angélica. (org.) Ecologia e literatura. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1992.

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161

Percebe-se como ser inscrito dentro do prazo da finitude e não podendo dar conta disso,

dessa radicalidade redundada em violência, sangue e morte, o homem, pela leitura de

Castro, passa a querer e questionar. O osso-arma é tanto “a procura de espaço para o

desenho da vida”, cantada ex-centricamente por Cecília Meireles, como o embaraço de não

garantir, com números, régua e compasso (e o que são os números, régua, compasso, osso-

arma senão instrumentos?) a simples finalização deste desenho. É com esforço que se

mantém o desenho da vida. E o desenho não se finaliza apenas pelo bel prazer humano,

quem o finaliza é a morte e, por isso, lhe dá finalidade. Neste sentido, não são os números

(nem o osso-arma) que servem ao homem. Mas os homens é que são servis aos números.

Sua vida está extensa por um prazo e por um espaço que, com números, quantitativamente,

não se mede, mas por números – essencial e eternamente – se mede. Nosso embaraço é,

como o de Cecília Meireles com os números, e tal embaraço não se dá, a priori, por mera

causalidade numérica, mas pela impossibilidade de que essa mesma causalidade seja

apreendida em sua facticidade pelo homem, que somos nós, no movimento da “Canção

Excêntrica”.

Entre as mãos e o papel, estendem-se possibilidades incontáveis, imensuráveis,

infinitas de criação do “desenho da vida”. Mas, como temos visto, este “desenho” não se dá

com facilidade. Mas com esforço. Este esforço é colocado pelo homem no espaço entre o

vazio do papel branco, da parede lisa e o resultado da eternidade da obra de arte. Neste

espaço reside o homem, onde também mora vicejante, pulsante a angústia da pro-cura.

Assim, se a fonte de água é o “espaço”, “o prazo” que determinará a vida dos macacos do

filme de Kubrick, o osso-arma prolongar-lhes-á a vida.

Mas o que difere o osso-arma da fonte de água? Enquanto a fonte não era disputada,

o osso não passava de um osso. Quando a fonte passou a ser a própria medida da vida do

grupo de macacos, seu líder tomou as rédeas do esforço e procurou desenhar a vida para

além da maior medida que se lhe prometia e que se lhe ia mostrar tão radicalmente: a

morte.

Assim, Manuel Antônio de Castro, nesta leitura do filme, constata que “Aquele osso,

até ali indiferente, jogado, passa a se integrar à fonte. Se algo põe (a fonte) em perigo, o osso

será chamado a se fazer presente para assegurar a fonte do homem”193. Entre a água e o

193

CASTRO, M. A. Op. cit. 1992, p. 18.

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homem, se estende uma medida com a qual ele não pode, ou tem de aprender, a lidar: a

vida. Daí, entendemos o porquê de Cecília ter rimado, tão genialmente e não apenas por

motivação fônica, os vocábulos “medida” e “vida”.

Numa 2ª tentativa de diálogo poético, conduzem-nos as rimas de “compasso” –

“abraço” / “saída” – “despedida”.

Se Marco Vetruvio Polião, arquiteto romano do século I a. C., tentou pôr o homem

sob correta medida, foi com Leonardo da Vinci que o desenho194 do homem alcançou a

perfeição.

Com os braços estendidos, este homem serviria de modelo, na tensão do círculo com

o quadrado, para a construção de prédios com a arquitetura ideal, clássica, inquestionável.

Ao que parece, Cecília Meireles sobrevive na mesma tensão, promulgada pelos clássicos,

como essencial à arte: a busca de perfeição e o trabalho íngreme do esforço. Porém, ao

pensar “encontrar saída” que resolva a incongruência dos números com que se serve para

medir, para desenhar a própria vida, o poeta “em vez de abrir um compasso, projeta-se num

abraço e gera uma despedida.” Por que a tentativa de um desenho perfeito da vida, medido,

exato, só se conseguiu num momento da história em que homens e deuses pareceram se

separar para sempre? Em que o Renascimento – de fato – alcançou, se alcançou, o “desenho

da vida” em exatidão de controle e medida?

Sabemos que a releitura das anotações de Vetruvio por Da Vinci ensejam uma

extraordinária lição sobre a noção de centro, de centralidade no Ocidente. Em quaisquer das

194

cf., nos anexos, figura 4 em tamanho maior.

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quatro posições assumidas pela figura masculina desenhada pelo artista italiano, o umbigo

funciona como um centro, promotor este sim, da exatidão do desenho. A visão de simetria

presente na figura é expoente de uma época em que não apenas Da Vinci tem voz na

construção da concepção de homem, como Descartes e Newton contribuem para o sentido

de inflexibilidade dos organismos, baseada na noção de que subjaz a tudo uma estrutura

conceitual inquebrantável, conhecida como princípio mecanicista do universo.

O que parece, por outro lado, diante desta visão, não servir necessariamente ao

“desenho da vida” que o esforço humano prima por considerar, como vemos na poesia de

Cecília Meireles, é algo diferente desta centralidade. Afinal, a canção é “Excêntrica”. Foge do

“compasso”; descompassadamente, não esconde seu esforço para ser executada e, lembra

fantasticamente, por esse mesmo esforço, que o modelo deixado por Vetruvio e logrado por

Da Vinci, não é mais tão acessível quando, na dinâmica da linguagem poética, diz mais do

que na dinâmica do factual desenho: diz sobre a vida. Neste sentido, não é o poema apenas

uma re-apresentação da vida, mas como temos, o tempo inteiro, querido defender: o poema

é a própria vida. Ora, se logrou Da Vinci em sua arte e esforço o alcance da simetria, por que

na linguagem poética (subjacente a tudo, inclusive aos desenhos renascentistas) tal simetria

não é, simplesmente, alcançada? Se repararmos, o poema de Cecília Meireles também é

simétrico, como são simétricos e perfeitos, muitos sonetos de Petrarca, Dante e Camões.

Haja vista sua simetria, de onde e a que se dão a “saída” e a “despedida”, resultantes do

esforço para a construção do “desenho da vida”?

Reparemos no poema que Cecília Meireles, no seu aparato de rimas uniu os

vocábulos “compasso” e “abraço” como fazendo parte ainda do seu projeto de desenhar a

vida através dos números, pelo uso dos instrumentos. O compasso mesmo é um instrumento

que mede, calcula, transfere contagens, arquiteta, racionaliza e prê-vê o próprio desenho. Ao

mesmo tempo em que é o instrumento para essa intencionalidade e para essa profissão de

arquitetar construções, o compasso foge, no poema, ao poeta, o qual acaba por “gerar uma

despedida”.

Martin Heidegger, em seu “... poeticamente o homem habita...” delineia a dimensão

do esforço como sendo a possibilidade de o homem, imbuído de intenções habitacionais e

construtivas, olhar para o céu, “levantar os olhos para os celestiais”. A moderna visão sobre o

Renascimento julga ser justamente neste momento da história do Ocidente que o homem

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deixou de olhar para os celestiais e passou a ver-se, finalmente, na mesma medida (ou até

mesmo numa maior medida) dos deuses. Isso é o que diz a moderna visão, tão

preconceituosa visão, que relegou, por exemplo, o homem medieval à treva do

esquecimento, como se aqueles homens não gozassem de uma iluminadora postura, ao

privilegiarem a escuridão e o mistério. Mas vejamos o que o Hölderlin de Heidegger fala

sobre a medida: “o homem mede-se... com o divino”, isto é,

O divino é a ‘medida’ com a qual o homem confere medida ao seu habitar, à sua morada e demora sobre a terra, sob o céu. Somente proque o homem faz, desse modo, o levantamento da medida do seu habitar é que ele consegue ser na medida da sua essência.

195

Não deixaremos calar-se a fábula de Higyno com sua responsabilidade dada ao

homem no âmbito do Cuidado. Tampouco nos afastamos agora do sentido do Cuidado,

sabendo que esta é a medida sempre “perdida” pelo homem, ao voltar-se “sobre o próprio

passo”. Sua medida com o divino não se dá com a simplicidade do controle, mas com

esforço. Diz-se, como vimos, que nem mesmo o próprio Vetruvio logrou o desenho perfeito

ensejado por Da Vinci. Assim, onde residiria a medida do homem, senão no próprio homem?

E mais que apenas no próprio homem, tal medida pairaria além dele, isto é, não descansaria

na ciência pura e simples do compasso e dos números, da métrica e da geo-metria da Terra

em que, como homens, estamos assentados. A medida perdida por Cecília Meireles, no

poema, é estranhamente, a medida da própria poesia. Heidegger afirma, em sua leitura de

Hölderlin, que “É possível que a poesia seja uma medida extraordinária. (...) Ditar

poeticamente é medir”. E o que é especificamente este medir, para o poeta alemão? O divino

com que o homem se mede é a própria medida de deus, a qual é desconhecida porque deus

é desconhecido. Por outro lado, deus é a medida na medida em que, para o poeta é um Ele,

que se mantém desconhecido mesmo ao se revelar na revelação do céu, para a qual, no seu

esforço de desenhar a vida, o homem dirige seu olhar.

A medição da casa do homem só se dá poeticamente, porque o homem só tem seu

tamanho: comprimento, profundidade, altura, largura alavancados pelo “entre”, no dizer de

Heidegger, em que está posto. Tal “entre” é a medida do Céu para o qual se volta com

esforço construtivo, à Terra, a própria poesia sobre a qual assenta sua vida – e sua morte. A

noção de “erro” no poema de Cecília Meireles, trazida na última estrofe pelos vocábulos

195

HEIDEGGER, M. Op. cit. 2002, p. 172.

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“arrependida”, “exausta e descrida” e pelas orações “não me animo a um breve traço” e

“saudosa do que não faço”, se dá primordialmente por terem sido a noção de causalidade

numérica e mera instrumentalidade os recursos utilizados pelo homem para a construção do

“desenho da vida”.

Assim, a canção é ex-cêntrica por ser, como dissemos em relação ao filme, tanto o

espanto do macaco diante do inimigo morto como a alegria coletiva de matar, pela primeira

vez, utilizando um instrumento assegurador de vida. E é ex-cêntrica ainda por promover um

recuo (“Se volto sobre o meu passo/ é já distância perdida”) diante da morte, recuo que

proporcionaria estes questionamentos perenes de respostas inconclusas: o que é o homem?

Como conseguir espaço para o desenho da vida?

Uma errônea interpretação do homem vetruviano pode pôr a perder a noção de

medida que aqui podemos ver residente na ex-centricidade do homem. Tanto no poema,

como no filme de Kubrick essa ex-centricidade está aí posta, e mais ainda no desenho tão

concêntrico e medido de Da Vinci. Unem-se, no operar da obra homem e outros elementos

da Natureza, num habitar poético que se dá de diversas maneiras, mas nunca sem prescindir

da medida. Tal medida, que se desdobra imediatamente no habitar poético do homem sobre

a terra e sob os céus não é a simples transposição do desconhecido em algo conhecido, a

delimitação da quantidade e o estabelecimento da qualidade. A medida é, dentre tantas

coisas, o osso-arma e a fonte d’água como no referido filme, juntos do homem ameaçando-o

(e medindo-o) com a morte. E a medida é o desconhecido que se apresenta (apresenta-se?)

como deus ao homem, que o espanta, o envolve e mata; o deixa-ser perplexo. É uma medida

cheia de mistério. Não se dobra aos números racionais. É uma medida como aquela medida

que fez a escola pitagórica desmoronar, ao perceber a velha novidade egípcia dos números

irracionais, infinitos, incontroláveis. É a medida com que Édipo foi medido pela Esfinge no

caminho em direção ao “Decifra-me ou eu te devoro”. É a medida com que Édipo respondeu

à Esfinge: “o animal que tem quatro patas na manhã, duas à tarde e três à noite é o homem”.

É a medida que, para Édipo, foi uma resposta, e essa resposta foi um destino. E como

destino, lhe era estranho. Sua medida lhe era estranha mesmo que achasse ele, astuto Édipo,

que alguma coisa estava medindo.

Na 3ª tentativa de leitura dialogal, somos agora encaminhados pelas rimas entre

“aço” – “cansaço” – “espaço” – “traço” – “faço” / “vida” – “descrida” – “arrependida”.

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Em uma noite de novembro de 2006, abri o livro de Cecília Meireles, de sugestivo

nome, Vaga Música. Entre tantos poemas, o que mais me chamou à atenção trazia a

pergunta que atravessou o meu caminho como a Esfinge inquiridora de Édipo. A poeta a

quem tanto prezo, e já prezava desde a infância, punha diante de mim a questão: “Onde

repousar a cabeça?/ No além?”. Assim, deslocada do poema “Amém”, que a veicula, esta

questão que nos é colocada por Cecília, corre o risco de perder sua carga irônica, sua postura

aventurada em direção ao pensamento, seu status de Esfinge para o Édipo, que é todo

homem, em busca de decifrar os enigmas da vida.

Creio que nós, em nossa redundante dimensão poética, estamos sempre nos

perguntando por uma medida que não se alcança com o cálculo “Onde repousar a cabeça,

diante da profusão do mundo?” Onde, Cecília? Onde repousar a cabeça, diante da Esfinge

questionadora, diante do real questionador que nos devora, poeta? Como Cecília, que tem

no nome a cegueira de Tirésias, a cegueira dos poetas, repousaria a cabeça?/ No além? Em

que além? Em que espaço senão no tempo? Pergunta-me tu, Cecília, cega poeta, cujos olhos

vêem dentro: vêem mais.

Poeticamente o homem habita... O que vimos na última estrofe do poema “Canção

Excêntrica” foi finalmente, que o centro de que se quer fugir não é o da própria vida, centro

que se dá como medida para o homem. Deste centro não se foge porque já se está

assentado terminantemente nele. Acreditamos que o centro de que a poeta foge é o da

medida calculada pela instrumentalização pura e simples, sem a dicção poética, sem a

poesia, que é o termo do homem. O centro de que se quer fugir é aquele centro racionalista,

ávido de contagens, qualificações, medições, descrenças, ceticismo, é o centro daqueles que

têm “coração de aço” e sobre a vida desenham apenas “breves traços”. O centro de que

Cecília Meireles nos convida a fugir, de onde devemos nos deslocar, é o centro do “eu faço”;

de um “faço” sem poien, isto é, sem poesia. E a poesia é ela mesma um construir, o construir

verdadeiro de aproximação com o desconhecido, uma maneira de habitar o desconhecido e

assim, ser com tudo, com os céus e com a terra, um espaço. Pois, já que, no dizer de

Heidegger, não há homens e além deles espaço, não faria qualquer sentido o esforço do

poeta para que o desenho da vida seja feito com “espaço” se ele mesmo é este espaço. A

não ser que alheado deste desenho, isto é, preso num centro de razão e descrença, o

homem perdesse o seu espaço e não conseguisse, pelo esforço poético, desenhar a própria

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vida. O homem e sua dimensão poética. O homem e seu espaço poético. Não há homens e

além deles poesia. Assim como não há poesia e, além dela, o homem.

Neste sentido, como poeticamente o homem habita, paramos agora de falar tanto,

neste último movimento de descrença do poeta, onde os versos: “Já por exausta e descrida/

não me animo a um breve traço/ exausta do que não faço/ do que faço arrependida” rimam,

reúnem, aproximam o arrependimento do cetismo.

A presença dos instrumentos euclidianos como o compasso, e possivelmente a régua,

reapresenta, no poema, o problema da quadratura do círculo – com referência a um centro,

do qual o poeta não consegue furtar-se. Preso a esquemas de desenho e delimitação do

espaço, o homem visa à fuga do seu centro de vivência, a terra, a condição humana, as

liberdades solapadas, as biografias humanas e de animais e plantas, deuses e monstros. O

homem anda à procura de espaço! Isso é fato que se con-funde com a devastação do

ambiente, dos modos de habitação e formas de existência.

Ecologia nos remete sempre a espaços e devemos entendê-la sem o vício de nos

voltarmos aos conceitos que hierarquizam e solapam a renovação do conhecimento e da

vida humana. Devemos nos voltar à escuta da palavra “espaço”. Há muitas designações e

entendimentos, diz-se muito e entende-se pouco sobre “espaço”: espaço sideral, espaço

público, espaço privado, espaço cultural, espaço entre seres... E se nos puséssemos a

entender que atividades humanas e não-humanas na comunidade circular de que nos

retiramos são ganhos e perdas de “espaço”? Observaríamos o ser reclamante na poética

“excêntrica”, furtado de sua condição, uma vez que, se o universo é a totalidade quente e

pulsante, viva e loquaz, falante e profusa de todos os espaços, todos os seres, em vigência

espacial, são seres que ocupam, de um modo ou outro, um espaço; e ocupando um espaço,

furtam do outro ser, obviamente, um espaço; furtam, pela lei da impenetrabilidade – pela

qual dois seres não podem ocupar o mesmo lugar no espaço – o lugar do outro. E são, sendo

assim, em distância. São, em si mesmos, espaços. A angústia ceciliana, dada no primeiro

verso do poema, muito nos mostra a condição do homem hoje: perde distâncias, despede-

se de seu sentido no mundo, pensa encontrar saída, volta sobre si mesmo sem exercer

revoluções na linguagem e na sua vivência. E, para além de uma crise habitacional pura e

simples, em que lhe falte uma casa de pedra e tijolos, o que lhe falta é entendimento de

espaço e, por conseguinte, daquela paz que resguarda a maneira própria de ser o homem o

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que é, habitando.

Heidegger, pensando esta questão, diz que “construir já é em si mesmo habitar”196 –

a construção de qualquer coisa, não se dá para que na coisa construída habite o homem, não

se pode dar, então, numa relação utilitária de meio-fim. Outrossim, a construção é em si

mesma uma maneira de mostrar-se o homem existente, quando re-úne elementos que

aparentemente distavam e re-cria, edifica algo. Na linguagem, está toda a força desse

processo, “é o mais alto e sempre o primeiro” meio de o homem construir algo e re-alocá-lo

no mundo. O homem advoga sua permanência demorada no mundo vivendo a simplicidade

da quadratura (ou quaternidade) em que se relacionam bem, não as quatro pontas de um

quadrado finito e limitado, mas do que se constitui circularmente em quatro: terra e céu,

divinos e mortais, como já tínhamos dito. A Terra é toda uma maneira de doação, abre-se

como um campo, mas retrai-se como gruta. É quente e traiçoeira no deserto, gelada e

monótona na neve, e é muito mais porque é com o céu – a abóboda dos astros – e é porque

é com os deuses e é com os mortais. Sobre essa forma de o círculo ser com, quaternalmente,

Heidegger reitera com insistência que ser nessa simplicidade é habitar, e que habitar é

resguardar a simplicidade relacional com tudo. Isso já temos entendido na escuta do poema

“Amém”.

O que é, porém, espaço? Se de-moramos junto às coisas como mortais, de-moramos

quando as coisas abrigam a quaternidade, isto é, são preservadas, protegidas, e quando essa

“procura de espaço para o desenho da vida” for sair de um centro em que se solapou a

existência, um centro matemático e opressor que se dá, não pela preservação, mas

mantendo perversamente a destruição. Parece que o desenho requerido por Cecília Meireles

é uma forma de habitar e habitar é construir, para tanto, é necessário tomar espaço. O que

imagino quando leio tais versos é a tentativa de execução do cálculo de re-volução em que,

por linhas e movimentos, chega-se à conclusão de uma figura geométrica diferente à

disposta pela própria linha de que adveio. A re-volução é a volta sobre um espaço, talvez

sobre si mesmo – não um exercício narcisista e descompromissado com a de-mora junto às

coisas, mas há aí uma espécie de reflexão sobre as necessidades do homem, na medida que

dá sentido ao homem em sua essência, em seu vigor. A busca insistente de espaço é pensar o

que é construído.

196

HEIDEGGER, M. Op. cit. 2002, p. 126.

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O homem, assim, angustiado “projeta-se num abraço”, abarca uma “despedida”,

distancia-se, não do centro que o oprime sempre, fazendo-o voltar à posição de esquecido e

enganado pela aparência. A distância que o homem perde é a distância do pertencimento,

do vigor, da essência. Pois, quando se volta sobre o próprio passo, perde o progresso a que

sempre se dedicou por obter. Perde espaço. Heidegger questiona em que medida construir

pertence ao habitar e pensa, neste caminho, a re-união integradora que faz a ponte. Uma

ponte sobre um rio medita, é um ser-entre, é durável estando com o rio, pois integra a terra.

E a terra, quando une as margens, negocia com o céu a entrega das águas ao ar livre: “A

ponte permite ao rio o seu curso.”197

A ponte: de onde ela surge? Como ela desponta? O que a faz permanecer? Quem

agiu sobre ela a ponto de a ponte lá estar? Qual o papel da ponte como espaço? Como coisa,

a ponte integra terra e céu, divinos e mortais, pois estando entre tudo é com tudo, tornando-

se possibilidade de as outras coisas serem. Quando volta-se sobre si mesma e percebe que é

ponte, a ponte distancia-se de tudo que há, mas volta-se sobre tudo re-unindo tudo a si

mesma e diz, por isso, o que é tudo, isto é, o que são os quatro componentes da

quaternidade de que estamos falando. Mas o que quer tanto essa voz ceciliana quando pro-

cura espaço para o “desenho da vida”? Pôr-se como mortal dentro da simplicidade dos

outros três? Assim como Heidegger questiona da ponte a responsabilidade de ser coisa, o

que Cecília procura é espaço. Pois, fica para nós claro, na leitura deste texto, que a ponte jaz

no seu próprio sentido, ela repousa como coisa porque é simplesmente uma ponte – e isso

basta. A reunião integradora só ocorre quando ela, a ponte, se reconhece e é fiel ao ser

sendo entre tudo e para tudo. Tudo que a rodeia é com ela, temos visto, e assim, configura-

se certamente como um lugar, pois a partir dela vemos que o rio não é uma ponte, e o

espaço dele é estender-se pelas planícies... A coisa, neste sentido, é, com o todo, um, mas é,

própria e unicamente, o que é: um espaço. Assim, quando busca espaço, o homem quer ser

em si, isto é, ser e ser entre tudo o que é. O homem que busca espaço, busca a possibilidade

sempre dada de contorno, de forma e formação, porque a quadratura quer lhe propiciar,

quase que maternalmente, pelo cálculo da vida e da mortalidade, os gestos e a tomada de

espaço e de vivência para que haja, de fato, contorno. Este contorno é dizer e ter cuidado

com a linguagem, pela inclusão do silêncio; nisto o homem contorna-se contornando tudo

197

HEIDEGGER, Op. cit. 2002, p. 132.

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que há, pois o limite do homem se dá na sua mortalidade, e não mais, como sempre pensou,

em assenhorar-se da existência.

Ao lançar o Sputinik, como vimos, o homem sorriu alegremente porque finalmente

poderia se estender até a lua, e a Terra era-lhe uma prisão sem remédio. Uma errônea

acepção de espaço lhe aguardava como resposta a essa alegria pouco ecológica. O espaço é

o que é dado em seu limite, diz Heidegger, e o limite – advindo do termo grego horismos,

não é o término, mas a doação da essência. A plenitude de um ente dá-se no seu término, no

seu limite, naquilo que sem remédio ele pode ser e é. Neste sentido, o espaço não é

limitador, mas é o limiar respeitador do outro.

O ganho de espaço para o desenho da vida preserva a união integradora de tudo, o

limite é uma contribuição, é dizer-se, edificar, dar-se e receber e, dando-se, ver-se como re-

volução, como em tantos versos recomenda Cecília Meireles:

“Te ponha em tudo, Como Deus” (“Cântico I”, C, 121)

Ou ainda:

“A serviço da Vida fui, a serviço da Vida vim” (“Epigrama”, VM, 333)

Neste sentido, a busca de espaço não deveria ser uma revolta desmedida contra o

mundo, mas uma forma de ganho de vivência e movimentação nele e “A serviço da Vida”,

sendo que o lugar do homem dá-se profundamente entre e em tudo, sem pôr-se, enganado,

sobre tudo.

Há momentos, na poética ceciliana, em que o ente não se angustia por não ter

espaço, antes revigora-se sabendo que é um espaço entre e a união integradora com o

mundo ocorre, como em “Música”:

Do lado de oeste do lado do mar, há rosas silvestres para respirar, e o chão se reveste de musgos de luar. Do lado de oeste,

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do lado do mar, há um suave cipreste para me embalar. Pássaros celestes Me virão cantar. Coração sem mestre, Sonho sem lugar, quem há que me empreste barco de embarcar? Do lado de oeste do lado do mar, descerei com Vésper até me encantar. Quero estar inerte, Sob a chuva e o luar. Tu, que me fizeste, me virás buscar, do lado de oeste, do lado do mar? (“Música”, VM, 335)

Perfeita e bela integração! Em que o céu desce à terra, repousado como “musgos de

luar”, as rosas se deixam respirar, mesmo sendo “silvestres”. Os limites do mundo se dão do

lado sempre do oeste, em que o sol se põe e se tem como irmão de tudo “o lado do mar”. As

costas do mundo aqui são o próprio mar, e, como isso é dito pela voz poética, da voz poética

jorra o mar e tudo, a quadratura se dá e não há crise habitacional. Isso porque a construção

edificante dessa voz dá-se como coisa que habita junto aos pássaros – não é voz solitária,

“Pássaros celestes”, meio céu, meio terra, conscientes do que fazem, entendem-se com os

homens, “me virão cantar.” O sonho é “sem lugar”, o “coração sem mestre”, pois os lugares

do mundo ferrenho e mecanizado dos nossos dias já estão bem marcados, bem pensados,

muito enfadonhos, é verdade! Na atmosfera de sonho dada pela “Música”, tudo liga-se a

tudo, circularmente, e não há “dono”, não há medida. E se o real é mesmo ambíguo, em que

se vai e volta “à serviço da Vida”, em que sentido podemos nos valer de um “Coração sem

mestre”? Ora, para que houvesse crise habitacional, houve antes uma crise de

entendimento, em que o que se falava não se escutava, nossas reportagens ao mundo eram

falhas – nós todos críamos na ideia de que a terra era reta e quadrática, tudo eram “bolhas

de piscinas de ilusionismo” e “mentiras da lua na noite escura”, nós todos nos pusemos “à

procura de espaço”, e certamente dizíamos que o sol girava em torno da terra.

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Nós todos sorrimos com a possibilidade de fugir do planeta, e sonhamos com a lua

voltando a ser habitável, pois lembramos que nossos antepassados a habitavam em união

integradora quando aquela massa cinza e amarela de pedra era uma deusa que menstruava

junto às mulheres., no seu ciclo de 29 dias. Mesmo dotados de “coração de aço” , de vez em

quando ouvimos a voz poética para permitir que os pássaros cantem o homem, “Vésper”

desça e encante, e o nosso corpo seja junto ao corpo do mundo uma coisa que se dá como

uma pedra “inerte,/ sob a chuva e o luar”, em uma con-fusão verdadeiramente ecológica:

pois, “não existem homens e além deles espaço”198

198

HEIDEGGER, M. Op. cit. 2002, 126.

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CAPÍTULO IV “AMÉM”, A ALMA AO NÍVEL DA TERRA

Eis o poema, mais uma vez diante de nós. Nos seus quatro quartetos, as palavras, as

rimas, os versos nos levaram a algumas das questões que pensamos nas três unidades

anteriores desta tese. A partir de agora, daremos destaque ao “Mas” da última e conclusiva

estrofe, nos questionando aonde ele nos leva ou onde ele nos mantém.

Amém Hoje acabou-se-me a palavra e nenhuma lágrima vem Ai, se a vida se me acabara também! A profusão do mundo, imensa, tem tudo, tudo – e nada tem. Onde repousar a cabeça? No além? Fala-se com os homens, com os santos, consigo e com Deus... E ninguém entende o que se está contando e a quem... Mas terra e sol, luas e estrelas giram de tal maneira bem que a alma desanima de queixas. Amém. (VM, 271, grifo meu)

A última estrofe do poema “Amém” nos instiga de modo flagrante. Cecília Meireles

apresenta um resgate dos sentidos originários da palavra “amém”. Mais do que rasa

concordância, o “Amém” que encerra esses versos revela uma postura que pretendemos

mostrar, neste último e conclusivo capítulo, como subjacente a toda a poética da autora. Que

postura é essa? Como e com que descanso “a alma desanima de queixas” diante do giro

perfeito de “terra e sol, luas e estrelas”?

4.1. Reparando raízes devastadas Sem mais conflitos de linguagem, sem mais escamas sobre a visão, sem

insensibilidade no corpo e na alma, sem orfandade de sentidos ou mudez de cantos, sem

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mais negarmos “a profusão do mundo, imensa”, sem mais taparmos os ouvidos para a escuta

do vazio, para a fala dos outros homens, para o diálogo com Deus, mantenhamos nossa

“alma ao nível da terra” (“Desenhos da Holanda”, PV, 1367).

Cecília Meireles nos auxilia, com seus múltiplos desenhos poéticos, a ver o mundo

como um todo integrado e re-unido. Seus versos nos levam à percepção de que nós, com

“terra e sol, luas e estrelas” vivemos em conluio. Não há, no Universo, elemento que não

prescinda da phýsis; mesmo a “alma” humana que se queixa por não se perceber integrada é

fruto e sementeira dela...

Em Introdução à Metafísica, Martin Heidegger faz flagrante observação sobre como a

phýsis foi interpretada como algo distanciado da “alma” humana na tradição ocidental: a

“restrição da phýsis em direção do ‘físico’ não se deu do modo como hoje imaginamos. Ao

físico opomos o ‘psíquico’, o anímico, o animado, o vivente. Sem embargo, tudo isso, mesmo

para os gregos posteriores [a Aristóteles], ainda pertencia à phýsis.”199

Os versos da 4ª estrofe do poema “Amém”, introduzidos pela conjunção adversativa

“mas”, que coloca um “amém” em contraste às “queixas” dos movimentos anteriores,

expõem a dor de um desenraizado homem, para além do fosso de separação forjada entre

nós e a phýsis. De fato, houve uma deturpação dos sentidos do Cuidado, que desembocou

nas direções do posicionamento (thésis) e do alheamento do homem à participação ativa nos

fenômenos naturais e na totalidade do ente (phýsis) como se o próprio homem não fosse

igualmente um fenômeno da phýsis, como se não fosse coisa em constante surgimento,

expressão das incessantes transformações do Ser na sua tensão com o devir, em des-

velamento:

Phýsis significa, portanto originariamente, o céu e a terra, a pedra e a planta, tanto o animal quanto o homem e a História humana enquanto obra dos homens e dos deuses, finalmente e em primeiro lugar os próprios deuses submetidos ao Destino.

200.

Assim, a compreensão de phýsis distanciada do seu sentido originário (o do

constante e inefável surgir de tudo, surgir até mesmo dos deuses e dos homens) deteriorou-

se no dualismo em que o homem e a natureza são compreendidos pelo contraste. Esse “n”

minúsculo a que foi relegada a Natureza de todas as coisas, a abrangente phýsis, nos impediu

199

HEIDEGGER, M. Op. cit. 1987. p. 46 200

HEIDEGGER, M. Op. cit. 1987. p. 45

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de dizermos com o mesmo esforço dos poetas, a potência tranquilizadora de um “amém”.

Que “amém” é esse? Que ressonâncias ele exerce na linguagem humana, no dizer poético? A

que o “amém” nos convoca e como esse chamado nos é feito pela poesia de Cecília

Meireles?

Raízes devastadas não retornam, facilmente, à terra. Enquanto o homem não deixar

que a terra seja terra, enquanto, ao habitá-la, não a arar com Cuidado, as raízes continuarão

expostas, sem proteção, doentes, em busca de renovadas águas. Enquanto o homem,

enquanto o homem, enquanto o homem... Por que recai constantemente sobre o homem a

responsabilidade dessa força, desse Cuidado? Recaímos no humanismo ao assumirmos tal

responsabilidade pela terra? É ao elogio do homem o direcionar destas perguntas?

Na Carta sobre o Humanismo, Martin Heidegger abre um caminho interessante para

o aclaramento dessas questões, que, desde o início deste trabalho, se nos têm apresentado.

O autor coloca que, enquanto entendermos o agir do homem como a produção de um

efeito, nos manteremos sob a égide do humanismo. O humanismo é o elogio do homem. A

crença no humanismo fez brotar todo o aparato metafísico ocidental sobre que discorremos

como sendo a história equivocada do “amém”, em torno da verdade. A metafísica também se

desdobrou no uso político da ciência e na redução das potencialidades humanas e não-

humanas ao domínio da tecnocracia. A metafísica visou à ultrapassagem da phýsis. A

metafísica substantivou o homem nessa ultrapassagem, colocando-o, sobre a phýsis, reinante

sobre abstrações. Racionalizou o homem no cálculo e na medida e, com esses instrumentos

de chegada e partida aos objetos sujeitos ao homem, calou as questões com soluções e

conceitos. O humanismo, a metafísica, o elogio do homem – uma tríade em torno e em

busca do homem.

Essa tríade é expressão de um campo de forças no qual se acreditou ser possível

determinar o modo de agir do homem. O agir humano reduzido, nesta dimensão, ao simples

fazer, tornou-se as avalições e o alcance de resultados pré-determinados, aos quais

costumamos vulgarmente chamar de ética (transposição latina do grego ethos). Porém, o

ethos entendido de maneira grega não se restringe à moralidade ou à utilidade, ao senhorio

da natureza pelo homem ou à virtude, ao bem ou à salvação da alma201. O ethos diz respeito

à verdade (alethéia) que encaminha à abertura e à liberdade. A liberdade está em “deixar

201

LEÃO, E. C. Heidegger e a ética. In: REVISTA TEMPO BRASILEIRO, 157:63, abr-jun 2004 p. 70.

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agir a verdade do ser no fazer”202 . Ao dizermos, “está no homem a responsabilidade pelo

Cuidado das raízes”, nos voltamos, originariamente, ao nível em que o pensamento e a ação

são frutos do esforço poético de atender nesta terra ao apelo que ela, a phýsis, faz ao

homem: habitar poeticamente o solo, construindo extensas raízes para o mais profundo

conluio com o pensar, com o dizer, com o escutar, com o silenciar, com o “amém”, de quem

“escuta o silêncio e entende-o” (“Ó mármore de ar”, SS, 1311). Apenas aprofundando e

estendendo suas raízes é que a árvore alcança crescimento. Todo fundamento da árvore,

guardado na semente, e multiplicado nas possibilidades de folhas, frutos, tronco, galhos...,

só alcança inteireza mantendo-se fiel a si mesmo, sem se desviar do caminho da raiz que o

sustenta. Assim é o homem. Suas raízes falam. Desde as raízes, o homem fala. E os frutos, os

mais saborosos, são poéticos:

AQUI ESTOU NOS VALES DA TERRA Aqui estou nos vales da terra, em mim dobrada, em tristes raízes. Ó noite, silêncio, grandeza do mundo! E em cima e em redor, e para muito longe continua o oceano do universo. Aqui estou, frágil âncora de ossos e sofrimento, pequena pedra, coisa pensante, fragmento. Julgo que sei e não sei, tímida, entre mistérios amados. Vivo do que sonho, e tudo mais parece morte. Aqui estou sozinha na noite dupla do mundo e da alma. Tudo é tão fulgurante e imenso e mudo: nave mágica, palácio mútiplo, invisível monarca. E eu sou raiz dentro da terra, a âncora caída, eu sou um cãozinho muito cansado, no meio do campo, na úmida praia, no limiar de uma porta solene. Fevereiro, 1961 (SS, 1309)

Como o homem se perceberá enraizado na terra? “A poesia não sobrevoa e nem se

202

LEÃO, E. C. Op. cit. 2004 p. 67

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eleva sobre a terra a fim de abandoná-la e pairar sobre ela. É a poesia que traz o homem

para a terra, para ela, e assim o traz para um habitar”203, diz Martin Heidegger. Um caminho

poético para as raízes percorrerem é um caminho da poiésis, que está constantemente à

espera de homens para trilhá-lo, numa inesgotável e sempre inaugural viagem em torno do

Ser. Este Ser, no poema, fala desde o homem e se multiplica em “pequena pedra, coisa

pensante, fragmento” – imagens que remetem à nossa conexão com o todo do “oceano do

universo” que paira “em cima e em redor, e para muito longe”. A árvore plantada no fundo

da terra recolhe a seiva em si “dobrada” continuando as promessas de vida dos “vales da

terra”, e numa obediência cega ao Ser, “invisível monarca”, cujo “palácio múltiplo” desdobra

“tristes raízes”, oscila seu crescimento entre “o que julgamos saber e o que não sabemos”,

entre os “mistérios” que rechaçamos e os mudos “mistérios amados”. Mas essa timidez que

ora nos impõe o “invisível monarca” ao crescimento das “tristes raízes” não nos impede de

pensar, não nos alivia a sensação e o estado de fragmentação infinda que nos revela a

fragilidade de nossa posição “no meio do campo”, “na úmida praia”, “no limiar de uma porta

solene”. Essas raízes, que crescem “na noite dupla do mundo e da alma”, nos lançam numa

solidão de árvore antiga, que integra nosso corpo e nossa dor à terra e ao céu, ao ar e às

estrelas, ancorados e caídos nos “vales da terra”, abandonados à obediência do Destino e

seguros de que o limiar de ultrapassagem do homem a um outro estado, apenas existe

como “alma” que in-siste, na esfera do Cuidado, em ser terrena, dizendo, inerme: “eu sou

raiz dentro da terra”.

Não há ethos para o homem agir em liberdade em seu acontecer histórico sem que

poeticamente habite, sem que deixe os pés enraizados no fundamento da phýsis. Esse modo

de enraizar-se deve ser um esforço do homem em manter-se homem, em manter-se

humano, manter-se em húmus. Na esfera do Cuidado, deixando as coisas serem e deixando-

se também ser, atendendo ao chamado da poesia, no mundo-Jardim que o abriga, o homem,

todo homem, dobrado sobre as próprias raízes, pode ser poeta e jardineiro.

Percebamos como o exercício de Cuidado revela as direções das raízes do homem,

que, entre o êxtase místico e os “Jardins de raciocínio”, sustentam e abrigam uma “Festa”:

Jardins de raciocínio: teoremas de flor em flor. Assim as pedras e a areia.

203

HEIDEGGER, M. Op. cit. 2002, p. 169.

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Agora, os cultivadores contentes meditam. E as tulipas de todas as cores tecem longos tapetes sossegados. Carrilhões d’água, repuxos de música, e um raio de sol desenhando hipotenusas de canteiro em canteiro. ............................................................................................... E pessoas de todas as idades vêm de suas cidades, de seus campos, de canais e moinhos para sorrirem sobre as flores. Extasiadas respiram o mês de maio. Explicam todos os matizes, pregas de pétalas, pesos de pólen, com sua experiência de artesanato subterrâneo. Jardins de raciocíniio: – axiomas de raiz em raiz. Tão simples, tão cordial, a festa no jardim: Sapatos como pedras passam como borboletas. Os cultivadores sorriem. O ano inteiro se trabalhou por esse sorriso. Por esse tapete de flores. E o raio de sol recolhe os seus desenhos, sobe para o céu, perde-se na bruma como frágil escada de ouro. E os anjos da alegria, de asas abertas, acompanham Descartes. 1953 (“Festa”, PV, 1393)

“Raciocínio”, “teoremas”, “axiomas”, “hipotenusas”... Como a poesia dessas flores

crescendo entre matemática e racionalismo, num jardim cartesiano, convidaria o homem

para sua habitação junto da terra? Este é um poema que recria imageticamente a essência

do agir humano, do resguardo do sentido originário da ciência; é a construção de um jardim

de pensamento, no qual o homem age do modo mais simples e, no entanto, do modo mais

elevado, pois a ação do pensamento é aquela que permite ao homem repousar na sua

referência ao Ser. Ao deixar-ser fazer, isto é, ao pensar, o homem repousa na liberdade. Ao

cultivar o “jardim”, o homem abre-se à pro-cura de sua essência, deixando-se também medir

pela geometria que a própria phýsis enseja sobre ele, bem como sobre as pedras, sobre as

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raízes, sobre as flores, sobre as “hiponetusas” desenhadas pelo “raio de sol”, “de canteiro em

canteiro”. Os “axiomas de raiz em raiz” não são alcançáveis senão pela meditação profunda e

pela reverência “tão simples” e “tão cordial” que redunda em “festa”, onde “os cultivadores

sorriem”. Os resultados incalculáveis do sorriso, da meditação, da simplicidade e da

humildade se debruçam sobre o pensamento como um “tapete de flores” que se estendeu

numa terra renovada, cultivada, cultuada, em que “sapatos como pedras passam como

borboletas” para não machucarem as flores dadas. Nessa idílica comunhão, entre o

raciocínio humano e o inumano florescimento, algo ainda inesperado floresce: a explicação

do inexplicável, eivada de êxtase:

pessoas de todas as idades vêm de suas cidades, ....................................................................... para sorrirem sobre as flores. Extasiadas respiram o mês de maio. Explicam todos os matizes, pregas de pétalas, peso do pólen com sua experiência de artesanato subterrâneo. (“Festa”, PV, 1392)

Quem diria que, neste Ocidente inventado pela razão, seria possível a conjugação do

êxtase-sorriso “sobre as flores”, com a “explicação de todos os matizes”, “pregas de pétalas”

e “pesos de pólen”? Apenas na “Festa” de sentidos poéticos atende-se ao convite do

desvario das certezas, à ultrapassagem das barreiras da razão, onde o êxtase da primavera

aproximante se prepara, se anuncia, se desvela, como nos lembra Friedrich Nietzsche, em O

Nascimento da Tragédia:

Sob a magia do dionisíaco [o homem] torna a selar-se não apenas no laço de pessoa a pessoa, mas também a natureza alheada, inamistosa ou subjulgada volta a celebrar a festa de reconciliação com seu filho perdido, o homem. Espontaneamente oferece a terra as suas dávidas e pacificamente se achegam as feras da montanha e do deserto. (...) Agora, graças ao evangelho da harmonia universal, cada qual se sente não só unificado, conciliado, fundido com o seu próximo, mas um só, como se o véu de Maia tivesse se rasgado e, reduzido a tiras, esvoaçasse diante do misterioso Uno-primordial.

204

Sob a força do dionisíaco, na celebração do êxtase que faz com que as raízes

devastadas do homem retornem ao fundo da terra “inamistosa, subjulgada”, alheia ao

humano, Descartes é acompanhado por “anjos da alegria, de asas abertas”, e o verdadeiro

204

NIETZSCHE, F. O nascimento da tragédia ou Helenismo e Pessimismo. J. Guinsburg (trad.) São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 31

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sentido do cálculo como contemplação da perfeição é resgatado. Conjugam-se pensamento

e ação humanos: brotam flores, e o sol “recolhe os seus desenhos” – tudo no seu devido

lugar, sem violências de hierarquia, pois os sorrisos poéticos desmontam qualquer

condenação da diferença, desfazem as descrenças, abrem o espírito do homem à

compreensão do Todo, do Um-primordial, a ponto de os anjos descerem do Céu para

acompanharem aquele filósofo que interpretou a Razão como local-mor de domínio do

homem.

O Cuidado do Jardim é a restauração das raízes humanas ancoradas à Vida. No poema

“Romãs”, escrito na Índia205, Cecília Meireles apresenta outro profundo caminho para as

raízes, o amor:

Não deixaremos o jardim morrer de sede. Mali asperge com um pouco d’água as plantas. Como quem rega? Como quem reza. Cada vaso recebe cinco ou seis gotas d’água e mais o amor de Mali, um amor moreno, sério, de turbante branco. Não deixaremos o jardim morrer de sede. Tudo está calcinado. Pedra, cinza, areia. Mali sacode a água dos dedos: sementes de vidro ao sol. As plantas são magras como donzelas e assim gentis. E duas pequenas romãs amadurecem, rosa e marfim, num casco vestido de folhas foscas. (PEI, 1020)

Reparemos no que faz “Mali”. Ele cuida das plantas “como quem reza”, num gesto

ritual de entrega à terra, entrega de água e de amor. É o que podemos dizer que seja

espiritualidade, uma “atitude que coloca a vida no centro, que defende e promove a vida,

contra todos os mecanismos de morte, diminuição ou estancamento.”206. Nós “não

deixaremos o jardim morrer de sede”, e é Mali – o homem – o elemento da Natureza que

salvará a terra em missão cotidiana e pacífica: regar plantas “como quem reza”. Ele mede e

calcula o seu amor com um gesto derramado; “um pouco d’água” é suficiente para fazê-lo,

205

Poemas escritos na Índia, 1953. 206

BOFF, L. Ecologia, mundialização, espiritualidade. Rio de Janeiro: Record, 2008., p. 52.

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nos relembrando um ritual de batismo, em que “cinco ou seis gotas” sobre cada vaso são a

aspersão de um “amor moreno, sério/ de turbante branco” e oriental! Mali reza sobre as

plantas como “as pessoas de todas as idades” sorriam na “Festa” holandesa. Sorriso e oração

são unívocas formas de Cuidado, de restauração espiritual das raízes devastadas do homem

na terra, pois, como sagradas, as raízes de plantas e de homens têm em sua essência o

movimento de busca pela Vida contra a morte. Quanto mais essas raízes produzem

gentilezas de plantas “magras como donzelas”, o amadurecimento dos nossos frutos, mesmo

sob o sol calcinante e terrível dos nossos dias, será possível; e um “amém”, que asperge amor

sobre as plantas, em forma de gentiliza, de reza e de sorriso reunidos, sob seu toque, será

mais dito. Neste ritual, a phýsis volta-se, como “Mali”, sobre si mesma: “planta”; ergue-se

sobre tudo como “sol” e ressurge renovada como “duas pequenas romãs” que

“amadurecem/ rosa e marfim,/ num casto vestido de folhas foscas.”

O gesto espiritual de Mali e o trabalho dos cultivadores são resultados da capacidade

humana de sentir o outro, de ter compaixão por quem sofre, por humanos e não humanos,

de atender ao chamado do coração à razão207, centralizando, na essência do agir, o

pensamento, a consciência da Vida e da Morte que compartilhamos com todos na dimensão

abarcadora do Destino:

Todos seremos destruídos por ti, Deusa! Somos todos irmãos. Em ti, afinal, irmãos! Somos agora mais tristes, dóceis, filiais, deixando-nos devorar por tua fome, ó Deusa, ó Morte! (“Deusa”, PEI, 1023)

A compreensão de que tudo se reúne sob o véu da Deusa nos direciona mais uma vez

para o sentido abrangente da phýsis, a qual produz também uma “Morte” que nos devora

com a mesma e incalculável avidez com que faz surgir todas as coisas. A “Deusa”, nesta

dimensão, também nos exige um “amém” totalizante. Assim, no gesto de “Mali”, na

“gentileza das plantas”, “no sol calcinante”, nos “teoremas de flor em flor”, as raízes que

sustentam os deuses, homens, animais, plantas e pedras nos mantêm irmãos,

desembocando num “afinal”, premeditado pela Vida, que reunirá “princípio e fim na

207

BOFF, L. Op. cit. 2008 b, p. 101.

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circunferência de um círculo”208:

A vida é a vigilância da morte, até que o seu fogo veemente nos consuma sem a consumir. (“Reparei que a poeira se misturava às nuvens”, SS, 128)

4.3. Abrindo caminhos no campo

Mas terra e sol, luas e estrelas giram de tal maneira bem que a alma desanima de queixas. Amém. (VM, 271)

Quando o homem observa o quão está inteiro, o quão é fragmento inteiro, árvore no

mundo, a alma do mundo, que está nele, pode eivar-se de um esperançoso “mas”, num

movimento de retorno à Terra, e se alimentar. Esse “mas” ameniza os danos do

desentendimento do homem, esse “mas” coloca sobre a alma o bálsamo de uma cura, de um

consolo, finaliza suas angústias, pois é um “mas” que não apenas permite o silêncio de um

“Amém” ainda à espera de ser dito, como antecipa aos ouvidos sensíveis aquilo que já fora

desde sempre ouvido por qualquer alma esvaziada de queixas; esse “mas” des-anima o

homem de seus ideiais e queixas de um “além” da Terra, pois percebe o Céu como espelho

do chão. Ainda por vir à consciência planetária, isto é, ainda por ser ouvido da boca dos

poetas, esse “mas”, que abre nossos ouvidos ao “Amém”, pretende desfazer todas as

esperanças na superação deste mundo e nos realocar no con-junto do solo com o ar, do fogo

do mundo com a água que nos assemelha. Um “mas” por vir à nossa consciência e semear

nossos trabalhos no seio do mundo, como se faz à planta na humildade da Terra. Um “mas”

que nos convoca, hominalmente, a nos perceber como sol, como luas e estrelas entregues,

integrados. Perscrutemos os caminhos desse “mas” e as potências com que nos faz ouvir,

com seu peso adversativo, o silêncio de um “Amém”.

Desde o advento da tradição platônica, diz Martin Heidegger:

a alma pertence ao reino do suprassensível. No âmbito do sensível, a alma só pode

208

HERÁCLITO. Op. cit. 2005. p. 87 (fragmento 103)

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aparecer com uma espécie de abatimento. Aqui, “na terra”, a alma não está na batida certa. A alma não pertence à terra. A alma aqui é ‘algo estranho’. O corpo é a prisão da alma, se não for algo ainda pior. Parece então que para a alma não resta outra alternativa a não ser abandonar o mais rápido possível o âmbito do sensível, que, sob a ótica platônica, não passa de degenaração, sendo o que não é em sentido verdadeiro.

209

Como nos convoca ao pensamento a provocação de Heidegger à tradição platônica!

Diante dos versos de Cecília Meireles, das três estrofes que nos guiaram até aqui – entre

esgotamento da palavra, mundo em profusão, desentendimento do homem com o planeta e

com a própria condição humana, tecnocracia, política, ciência, religião, tentativas de

“quadratura” aos círculos da phýsis, buscas de espaço por geometrias prescritivas,

matemáticas pretensas e inconclusas, desenraizamentos, fuga da terra e violências à

essência do homem – somos levados a um “mas” que nos apresenta à “alma”. Mas a “alma”,

pelo homem desenraizado, tem sido interpretada como incompatível com a terra. Para ela

sempre houve um reino de luz além daqui, onde tudo é horizontal, onde tudo é Ideia, onde

nada sofre. No lá da alma não se pergunta “onde repousar a cabeça” e há um eterno

descanso para que o homem paire sobre um mundo construído de escombros.

A poesia de Cecília Meireles, interpretada por muitos como um neossimbolismo

arredio ao mundo sensível210, não nos fala, na especificidade do poema “Amém”, de uma

fuga da alma para além do mundo, ou de sua alocação única e exclusiva neste além. Pelo

contrário, sua poesia ao dizer “Amém” ao “giro de tal maneira bem da terra e do sol, das luas

e das estrelas”, desconstrói a perspectiva platônica e dualista, como tanto temos defendido.

E as tensões, a que nos leva a descrença no repouso do homem em outro mundo, já se

mostram na chamada “poesia de juventude”, como podemos perceber no livreto Poema dos

Poemas, de 1923. A ascese da alma e sua progressiva desconstrução apresentam-se como

três estágios de consciência espiritual, que brevemente comentamos, com excertos de cada

parte.

Na primeira parte do livro, cujos poemas apontam para um “Eleito” inalcançável, os

textos sãos intitulados assim: “Poema da fascinação”, “Poema da ansiedade”, “Poema da

209

HEIDEGGER, M. A linguagem da poesia: Uma colocação a partir da poesia de Georg Trakl. In: ---. A caminho da linguagem. Márcia de Sá Cavalcante Schuback (Trad.) Petrópolis, Vozes: 2003 p. 29-30.

210 Leila Gouvêa afirma em seu Pensamento e ‘Lirismo puro’ na poesia de Cecília Meireles o seguinte: “um (...) procedimento recorrente na poética ceciliana: a negação da realidade, do mundo sensível, ou a denúncia deste como acidental ou ilusório”. In: GOUVÊA, L. V. B. Op. cit. 2008 p. 92.

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grande alegria”, “Poema da esperança”, “Poema da dúvida”, “Poema da ternura”, “Poema da

tristeza”, que indicam, nos sentimentos focalizados, os sentidos da ausência do Divino. Nesta

dimensão, não existe convergência entre o ser humano e o misterioso “Tu”, a quem se

elevam as súplicas:

POEMA DA TERNURA

Se Tu fosses humano, As minhas mãos Viveriam tecendo Carinhos e sedas, Para te darem trajes prodigiosos De lenda... Se tu fosses humano, ....................................................... (PP, 62)

Há, na verdade, uma distância invencível entre mundos que se opõem. Na sombra, jaz

o homem; na Luz, o Divino se aloca “Com os cabelos carregados de estrelas”:

POEMA DA DÚVIDA

Nesta sombra em que vivo, Sonho que me aparecerás Numa hora extática... E ando a esperar-te, noite por noite... Sonho que te hei de ver, Todo vestido de oiro, Com os cabelos carregados de estrelas E as mãos enfeitadas de luas... Sonho que descerás a ver-me, De tanto me ouvires Cantar e louvar O teu nome Nesta sombra em que vivo De te evocar .......................................................................... (PP, 62)

Na segunda parte, a tentativa de ascese mística perdura no alcance, pela

argumentação persuasiva, do “Eleito”, que está longe, “nesses remotos céus”, alheado do

mundo, já que “a terra” o “viu chorar/ lágrima por lágrima” sua amargura, “sem o receber no

peito”, “sem o abrigar nos braços”. Com vistas a consolar o “Tu” pela rejeição da terra, a

“alma” se oferece como lugar de descanso do divino e assume um papel preponderante no

drama cósmico-místico: ela eleva “o seu perdão” aos céus, e acusa, neles, a apatia de terem

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visto “transe a transe” a dor crística, “sem que uma estrela tombasse” para socorrê-lo. Nesta

dimensão, “alma” e “Tu” divino se separam dos outros elementos da Natureza, numa

flagrante oposição da missão espiritual cristã, executada, em última análise, por humanos, à

isenção participativa de elementos inumanos:

POEMA DO PERDÃO

Eleva, Ó minha alma, O teu perdão A esses remotos céus, Que te viram sofrer, Transe a transe, A tua dor, Sem que uma estrela tombasse, Para te vir socorrer... Baixa, Ó minha alma, O teu perdão Até a alma sombria Da terra, Que te viu chorar, Lágrima por lágrima, A tua amargura, Sem te fechar nos braços, Sem te apertar ao peito, Sem te guardar dentro dela... ......................................................... Eleva, Ó minha alma, O teu perdão A esses remotos céus... (PP, 73)

Noutro representativo poema da mesma parte, a suplicante não recebe da terra

nenhum consolo; antes experimenta abandono por ter “querido deixá-la”, e, mesmo que

deseje voltar a ser “criança” junto ao seu “coração maternal”, há uma surdez insensível na

Natureza que eiva a alma humana de “saudade e arrependimento”. O “Tu”, “infinitamente

impassível” também ignora as súplicas da alma tendo-a deixado “ficar chorando” num

esquema de estilhaçada desintegração:

... a terra se esquecera de mim.... A terra não me conhecia mais A minha voz, De saudade e arrependimento...

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A terra Ó Eleito, ó Eleito, Deixou-me ficar chorando, Como Tu, Infinitamente impassível... (“Poema das lágrimas”, PP, 71)

Na terceira parte do livro, a alma procura desfazer-se das ansiedades vividas

anteriormente, as quais identificaríamos como o último dos estágios do pensamento

humano em re-torno à terra. Com os poemas dessa fase, a alma se percebe abandonada na

incerteza de um além e advoga a inutilidade da busca do “Eleito”. Voltando-se para os outros

elementos da Natureza, reunidos “no chão”, a alma assume uma postura que defendemos

como subjacente a aspectos, a meu ver, pouco focalizados pelos leitores da poética ceciliana:

“beijar as raízes obscuras/ das grandes árvores”, dizer “amém” ao giro perfeito dos planetas

e luas, sem desejo de ideia ou ultrapassagem, numa volta “à alma primitiva de todas as

coisas”:

POEMA DA HUMILDADE

Curvar-me até o chão, E maternalmente velar O imóvel dormir inocente Das pedras... Curvar-me até o chão, E beijar as raízes obscuras Das grandes árvores Gloriosas... E falar, às sementes, Da grandeza de morrer Na treva silenciosa Da terra, Pelo milagre generoso De posteriores reproduções... Curvar-me até o chão Até a alma primitiva Das coisas, Até a alma primitiva Dos seres... Falar a tudo que anda de rastros, A tudo que principia, A tudo que desperta... Curvar-me até o chão... Descer!... Chegar até à alma última Das criaturas! Descer! Curvar-me até o chão... Mais abaixo do chão...

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(PP, 82)

O inacessível e injustiçado “Eleito” das fases anteriores agora se pulveriza em “tudo

que anda de rastros” e, acolhido nas sementes, a quem agora a alma é capaz de falar “Da

grandeza de morrer/ Na treva silenciosa/ Da terra”, infunde-se na “alma primitiva dos seres”,

pois “Era, então, aqui embaixo” que ele estava:

Eleito, ó Eleito! Era, então, aqui embaixo Que estavas? ............................................. Cheguei entre os homens Cheguei aos caminhos De outrora, .......................................... Quem és Tu, Que te mostras, a mim, Vestido de andrajos e de doenças? Quem és Tu, quem és Tu, Que brilhas todo, Assim feito pequeno, Assim tornado em pobre, Assim passando entre os homens?!... (“Poema do regresso”, PP, 82)

A emblemática descida da alma, das regiões celestias do Eleito ao “aqui embaixo”,

“passando entre os homens”, é, temos dito, já na poética da juventude de Cecília Meireles,

apontada como uma postura que se desdobrará, em toda sua obra, à maneira do que Darcy

Damasceno chamará de “profundos vínculos panteísticos”211. O elemento divino que então

se apresentava separado da Natureza, no qual se interligam o elemento humano e o

elemento não humano, tende, na verdade, a “descer” à terra e conjugar-se aos múltiplos

modos de des-velamento do Ser que, em todas as dimensões e direções, sem separações de

Céu e Terra, “fala”; como podemos ler na epígrafe do último livro de Cecília Meireles,

Solombra:

Levantei os olhos para ver quem falara. Mas apenas ouvi as vozes combaterem. E vi que era no Céu e na Terra. E disseram-me: Solombra.

211

DAMASCENO, D. Poeta do sensível e do imaginário. In: MEIRELES, Cecília. Obra poética. Rio de Janeiro: José Aguilar Editora, 1967. p.35 (Biblioteca luso-brasileira)

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(“Levantei os olhos para ver quem”, S, 1262 – epígafre)

As “vozes”, que combatem tanto no Céu como na Terra, comunicam-se com a alma

humana em tons inconclusos, e ela, ao “levantar os olhos”, nada vê, “apenas” ouve o que se

espalha por todas as dimensões. Não há a exclusividade de um refúgio supraterreno imortal,

uma vez que, atenta aos profundos vínculos das raízes humanas com a terra, a poeta que

cantará o Absoluto perceberá que tanto o corpo, quanto a alma, tanto a árvore, quanto o

pássaro, tanto Deus quanto a Deusa, tanto a Morte como a Vida vigem associadas, na

dinâmica da pre-sença, sem separações e sem fronteiras. A compreensão da integração do

divino ao humano, do Céu à Terra, do homem aos outros elementos da Natureza sem

hierarquias, se dá numa poética que se abre horizontalmente ao mundo, no entre do

“descanso imenso” de um “Campo”:

Vem ver o dia crescer entre o chão e o céu, o aroma dos verdes campos ir sendo orvalho na alta lua. Os bois deitados olham a frente e o longe, atentamente, aprendendo a alma futura nas harmonias distribuídas. O mesmo sol das terras antigas lavra nas pedras estrelas claras. Nem as nuvens se movem. Nem os rios se queixam. Estão deitados, mirando-se, dos seus opostos lugares, e amando-se em silêncio, como esposos separados. Neste descanso imenso, quem te dirá que viveste em tumulto, e houve um suspiro em teu lábio, ou vaga lágrima em teus dedos? Morreram as ruas desertas e os ávidos habitantes ficaram soterrados pelas paixões que os consumiam. A brisa que passa vem pura, isenta, sem lembranças. Tece carícias e música nos finos fios do arrozal. Em tua mão quieta, pousarão borboletas silenciosas. Em teu cabelo flutuarão coroas trêmulas de sombra e sol. Tão longe, tão mortos, jazem os desesperos humanos! E os corações perversos não merecem o convívio sereno das plantas. Mas teus pés andarão por aqui entre flores azuis, e o seu perfume te envolverá como um largo céu. O crepúsculo que cobre a memória, o rosto, as árvores, Inclinará teu corpo, docemente, em sua alfombra. Acima do lodo dos pântanos, verás desabrochar o vôo branco das garças.

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E, acima do teu sono, o vôo sem tempo das estrelas. (MA, 560-1)

Nem é preciso mais dizer muito sobre a que nos abre este campo, apenas o ouvir. O

poeta, no meio do Campo nos convoca em imperativo: “Vem ver o dia crescer entre o chão e

o céu”. O chamado a essa experiência é, de todo modo, maduro, e, mesmo os “bois” já o

atenderam: “deitados olham a frente e o longe/ aprendendo alma futura”. Falta, no entanto,

a alguns homens aceitarem o poético convite a um esforço e a uma atitude, que ainda jazem

sob “os desesperos humanos” e “os corações perversos”.

“Vem ver o dia crescer entre o chão e o céu”, num campo onde “o mesmo sol” reúne,

pelo brilho e pela sombra, “nas pedras”, as “estrelas claras”; onde “os rios” não se queixam,

atendem ao convite do silêncio e renunciam não à fala, mas à fuga de sua essência. As

“nuvens” não se movem, espelham-se nos “rios” e, em coabitação, amam-se “em silêncio”;

“de seus opostos lugares”, espelham-se e espalham-se a Terra e o Céu. Falta a outros

homens atenderem o convite da alma poética, que já sabe o que se passa no interior de um

campo, e o campo está dentro de seu peito, aberto ao mundo. Pela boca do poeta, o campo

canta e nos convida a deitarmos, rentes, na curva do chão. O campo canta. O campo fala,

mas nos exige silêncio: “Em tua mão quieta, pousarão borboletas silenciosas”.

“Vem ver o dia crescer entre o chão e o céu”, para que a alma des-anime das queixas

e diga “amém” a pés que andam “entre flores azuis” e, como os rios, se amem e amem as

nuvens e o silêncio de “bois” que aprendem a ter outras almas, no cromo imenso das

“harmonias distribuídas” pelas direções que o vento atinge.

“Vem ver o dia crescer entre o chão e o céu”, para que um “amém” seja dito ao nível

da terra e o céu mais próximo seja “o perfume” e o “crepúsculo que cobre a memória, o

rosto, as árvores” num “acima” que é apenas o “acima do lodo dos pântanos”, onde se pode

ver “o vôo branco das garças”.

“Vem ver o dia crescer entre o chão e o céu”, onde Deus e o silêncio do homem

moram, acima do sono, num “sem tempo de estrelas”.

Cecília Meireles diz ter sido, dentre inúmeras viagens que empreendeu a inúmeros

lugares, de 1934 até o fim da vida em 1964, a Holanda um dos que mais a fascinou, tanto

que seu livro Doze Noturnos da Holanda foi fruto de noites em que não conseguiu dormir,

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por parecer estar numa atmosfera de sonho.212 Do poema “Desenhos da Holanda”, do qual

faremos a leitura da 1ª parte “Campo”, a poeta capta a realidade inatual do país, refletindo

sobre a referência à abertura da alma humana no campo, onde extraordinariamente

entrelaçam-se todos os elementos da Natureza, de “Deus” ao “pão que se coze”:

A alma ao nível da terra: a alma ao longo destes campos, docemente cinzentos, onde róseas crianças bricam, soltas como flores, como ramos secos e cordeiros brancos. A alma ao nível da terra: feliz, entre os cascos dos cavalos, o úmido focinho das vacas, perfumado de água e de erva. A alma ao nível da terra: sem visita de anjos, sem exigência de asas. Também os pássaros vêm pousar na areia, e na areia se esquecem. A alma reduzida à sua pobreza humana, Acomodada aos outros elementos da Criação. (Quando fomos assim? Que antepassados recordamos, diante dessa pesada humildade?) Deus desce, por isso, em flor, e brilha na planície grave. Deus converte-se em leite e fruta, e há uma terna adoração entre os claros olhos aquosos e a rubra e lustrosa cereja e a redonda maçã dura e cheirosa e o espesso leito cor de marfim. Deus faz sua aparição modestamente, sem trovões nem auréolas: em metamorfoses de terra, chuva, sol... (Deus que ainda não é ideia, Deus que é apenas imagem, estampa, natureza-morta, Deus belo, simples e bom, caseiro como o pão que se coze e a roupa que se fia, Deus cotidiano: – Padre nosso, que estais no chão...)

212

cf. GOUVÊA, L.V. B. Cecília em Portugal. São Paulo: Iluminuras, 2001 p.100

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(“Desenhos da Holanda”, PV, 1367-9)

Por que sopro de vida o homem ergue sobre a Terra suas tendas, seus corpos-tenda,

moradas de todos os sóis, preparação do passado aos muitos amanhãs? Por que delícia de

experiência a alma se estende “ao nível da terra” e com toda a terra e toda a alma se funde à

lama de uma “pesada humildade”? “Quando fomos assim?” Apenas alma e corpo, Deus e

lama? Quando deixamos de ser assim e passamos a agri nociva e destrutivamente,

distanciados de nossa humana condição?

Não há respostas que ecoem, mas as ressonâncias dessa comunhão reverberam-se

por todas as partes, “na roupa que se fia”, no “cotidiano”, em “leite e fruta”, em “redonda

mação dura e cheirosa”, “entre os cascos dos cavalos”, onde “os pássaros vêm pousar”. Aos

apelos dos últimos “Desenhos da Holanda”, digamos, desde o “chão”, “acomodados aos

outros elementos da Criação”, com Cecília Meireles, “Amém”.

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APÊNDICES

NOTÍCIA BIOGRÁFICA213

Descendente pela linha materna da família açoriana de São Miguel, nasceu Cecília

Meireles na cidade do Rio de Janeiro, a 7 de novembro de 1901.

Foram seus pais o Sr. Carlos Alberto de Carvalho Meireles, funcionário do Banco do

Brasil, falecido aos 26 anos de idade, três meses antes do nascimento da filha, e D. Matilde

Benevides, professora municipal, falecida quando Cecília tinha três anos de idade.

Os seus avós paternos foram o Sr. João Correia Meireles, português, funcionário da

Alfândega do Rio de Janeiro, e D. Amélia Meireles.

A avó materna, D. Jacinta Garcia Benevides, de origem açoriana, ficou responsável

pela tutela da menina, pois foi a única pessoa sobrevivente da família, depois da morte

prematura dos pais.

Terminou o curso primário por volta de 1910, na Escola Estácio de Sá, acabada de

construir e muito bem equipada. Olavo Bilac era o Inspetor Escolar do Distrito, e dele

recebeu, nessa ocasião, uma medalha de ouro com seu nome gravado, por ter feito todo o

curso primário com “distinção e louvor”.

A ausência dos pais repercutiu fundamente no espírito da poetisa. Ela refere-se ao

fato, mais tarde, em entrevista a Manchete:

Essas e outras mortes ocorridas na família acarretaram muitos contratempos materiais, mas ao mesmo tempo, me deram, desde pequenina, uma tal intimidade com a Morte que docemente aprendi essas relações entre o Efêmero e o Eterno que, para poucos, constituem aprendizagem dolorosa e, por vezes, cheia de violência. Em toda a vida nunca me esforcei por ganhar nem me espantei por perder. A noção ou sentimento da transitoriedade de tudo é o fundamento mesmo da minha personalidade. Creio que isso explica tudo quanto tenha feito, em Literatura, Jornalismo, Educação, e mesmo Folclore. Acordar a criatura humana dessa espécie de sonambulismo em que tantos de deixam arrastar. Mostrar-lhes a vida em profundidade. Sem pretensão filosófica ou de salvação – mas por contemplação poética afetuosa e participante.

Apesar de tudo, a escritora guardou boa recordação de sua infância: Se há uma pessoa que possa, a qualquer momento, arrancar da sua infância uma recordação maravilhosa, essa pessoa sou eu. Já principiei a narrativa dessa infância num pequeno livro de memórias, aparecido numa revista portuguesa, com o título “Olhinhos de Gato”. Mas há muito para contar.

213

Reprodução parcial de NOTÍCIA BIOGRÁFICA. In: ----. MEIRELES, Cecília. Obra poética em um volume. Rio de Janeiro: Companhia José Aguilar Editora, 1967 p.p. 75-88.

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E prosseguindo: Tudo quanto, naquele tempo, vi, ouvi, toquei, senti, perdura em mim com uma intensidade poética inextinguível. Não saberia dizer quais foram as minhas impressões maiores. Seria a que recebi dos adultos tão variados em suas ocupações e em seus aspectos? Das outras crianças? Dos objetos? Do ambiente? Da natureza?

Continuando, recordava ainda a infância: Recordo céus estrelados, tempestades, chuva nas flores, frutas maduras, casas fechadas, estátuas, negros, aleijados, bichos, suínos, realejos, cores de tapete, bacia de anil, nervuras de tábuas, vidros de remédio, o limo dos tanques, a noite em cima das árvores, o mundo visto através de um prisma de lustre, o encontro com o eco, essa música matinal dos sabiás, lagartixas pelos muros, enterros, borboletas, o carnaval, retratos de álbum, o uivo dos cães, o cheiro doce de goiaba, todos os tipos populares, a pajem que me contava com a maior convicção histórias do Saci e da Mula-sem-cabeça (que ela conhecia pessoalmente); minha avó que me cantava rimances e me ensinava parlendas... Minha infância de menina sozinha deu-me duas coisas que parecem negativas e foram sempre positivas para mim: silêncio e solidão. Essa foi sempre a área da minha vida. Área mágica, onde os caleidoscópios inventaram fabulosos mundos geométricos, onde os relógios revelaram o segredo do seu mecanismo, e as bonecas o jogo do seu olhar.

E acrescentava: Mais tarde, foi nessa área que os livros se abriram, e deixaram sair suas realidades e seus sonhos, em combinação tão harmoniosa que até hoje não compreendo que se possa estabelecer uma separação entre esses dois tempos de vida, unidos como os fios de um pano. Foi ainda nessa área que apareceram um dia os meus próprios livros, que não são mais do que o desenrolar natural de uma vida encantada com todas as coisas, e mergulhada em solidão e silêncio tanto quanto possível.

Sobre as suas primícias na leitura e no amor dos livros, despontadas muito cedo, depôs a escritora: Muita gente hoje me pergunta quais foram as minhas primeiras leituras. Na verdade, desde que aprendi a ler – e nisso fui um pouco precoce – li tudo que estava ao alcance da minha mão. Lembro-me que os livros ilustrados me interessavam muito. Além da leitura, os livros também já me interessavam como “objetos”, pelo seu aspecto gráfico, sua encadernação, beiras douradas, etc. Gostava muito desse papel que se chamava “marmoreado” e que servia para forrar as encadernações por dentro e também por fora. Sempre gostei muito de livros e, além dos livros escolares, li os de histórias infantis, e os de adultos: mas estes não me pareciam interessantes, a não ser, talvez, Os Três Mosqueteiros, numa edição monumental, muito ilustrada, que fora de meu avô. Aquilo era uma história que não acabava nunca; e acho que esse era o seu principal encanto para mim. Descobri o Dicionário, uma das invenções mais simples e mais formidáveis e também achei que era um livro maravilhoso por muitas razões. Mas, se antes de saber ler já gostava de brincar com livros, antes de brincar com livros gostava de ouvir histórias. Minha pajem, uma escura e obscura Pedrina, que sobrevivera (embora não por muitos anos) à onda de sucessivas mortes que arrebatou toda a minha família, foi a companheira mágica da minha infância. Ela sabia muito do folclore do Brasil, e não só contava histórias, mas dramatizava-as, cantava, dançava, e sabia adivinhações, cantigas, fábulas, etc. Por outro lado, minha avó, com quem fiquei, depois de perder minha mãe, sabia muitas coisas do folclore açoriano, e era muito mística, como todos os de S. Miguel.

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O meu interesse pelos livros transformou-se numa vocação de magistério. Minha mãe tinha sido professora primária, e eu gostava de estudar seus livros. Desses velhos livros de família, as gramáticas, sobretudo a latina e a italiana me seduziam muito. Assim também as partituras e livros de música.

A vocação para o magistério levou-a a fazer o curso da Escola Normal (Instituto de

Educação), diplomando-se como professora em 1917. Paralelamente, estudava línguas,

ingressando depois no Conservatório de Música, porque um dos seus sonhos era escrever

uma ópera sobre São Paulo, o Apóstolo. Sobreviveram outros interesses – canto, violino, – e,

com o gosto da literatura, as primeiras tentativas literárias, que exigiram a concentração num

só caminho, pela convicção de não poder fazer simultaneamente muitas coisas bem feitas.

Não foi capaz de fixar quando teria surgido nela o impulso pela criação literária.

Falava não num interesse pela literatura, mas em

uma visão da vida mais especificamente através da palavra – e isso, desde o princípio, desde as primeiras histórias ouvidas, das primeiras cantigas, dos primeiros brinquedos. Quando eu ainda não sabia ler, brincava com livros, e imaginava-os cheios de vozes, contanto o mundo. Sempre me foi muito fácil compor cantigas para os brinquedos; e, desde a escola primária fazia versos – o que não quer dizer que escrevesse poesia.

A adolescência deu-lhe também a paixão pelo Oriente – não do Oriente turístico –

mas dos estudos orientais, história, línguas, filosofia, e esses estudos continuariam sempre.

Formada, entregou-se à faina educacional, e seguiu toda a carreira de professora

primária; mas, paralelamente, desenvolveu intensa atividade literária e jornalística,

escrevendo nos principais jornais da imprensa carioca.

Em 1919, deu lume ao primeiro livro de versos, Espectros, que mereceu elogiosas

referências dos críticos, entre os quais o grande João Ribeiro, que assim se pronunciou:

Com o talento e as qualidades poéticas, aqui reveladas, Cecília Meireles em breve, e sem grande esforço, poderá lograr a reputação de poetisa que de justiça lhe cabe.

Educadora, sempre preocupada com os problemas da infância, desde que se

diplomou exerceu o magistério. Em 1930, houve no Brasil um grande surto de esperança em

torno da educação, o que a levou a empenhar-se ativamente nesse movimento de

renovação, participando das reformas e dirigindo, no Diário de Notícias, de 1930 a 1934, uma

página diária dedicada aos assuntos de ensino.

Em 1934, o seu entusiamo pela educação e amor pelos livros levaram-na ao sonho de

criar uma Biblioteca Infantil especializada, que foi instalada no antigo Pavilhão Mourisco, em

Botafogo. A primeira do gênero, durou quatro anos, com grandes realizações e proveito,

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tendo sido o germe de inúmeras bibliotecas desse tipo hoje espalhadas pelos bairros

cariocas, e por todo o Brasil.

Ainda em 1934, a convite do Secretariado de Propaganda, de Portugal, visitou esse

país, onde fez conferências nas universidades de Lisboa e Coimbra, difundindo aspectos da

literatura brasileira.

Em 1935, fundada a Universidade do Distrito Federal, foi nomeada para lecionar

Literatura Luso-Brasileira e, depois, Técnica e Crítica Literária, e exerceu a função de 1936 a

1938. Professou vários cursos livres sobre Literatura Comparada e Literatura Oriental. E em

1957, um de Literatura Oriental, especialmente dramática, na Fundação Dulcina.

Em 1938, o seu livro de poemas, Viagem, conquistou o prêmio de poesia da

Academia Brasileira de Letras, e, em 1939, foi o mesmo editado em Lisboa.

Em 1940, esteve nos Estados Unidos, lecionando Literatura e Cultura Brasileira, na

Universidade do Texas. Depois viajou pelo México, ainda em viagem de intercâmbio cultural,

fazendo conferências sobre literatura, folclore e educação; visitou o Uruguai e a Argentina

(1944), Europa e Açores (1954), Índia, Goa e Europa (1953), Porto Rico (1957), Israel (1958).

Como jornalista, colaborou em quase todos os jornais e revistas do Rio de Janeiro,

especialmente o Diário de Notícias, em épocas diferentes, e A Manhã, no qual publicou, de

1942 a 1944, importantes estudos sobre folclore infantil.

Autoridade em assunto de folclore, desde a instalação da Comissão Nacional de

Folclore, em 1948, com ela colaborou, tendo sido secretária do Primeiro Congresso Nacional

do Folcolore, em 1951.

É sócia honorária do Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro, do Instituto

Vasco da Gama, de Goa, Doutora Honoris Causa, da Universidade de Delhi, Grau de Oficial da

Ordem do Mérito, do Chile, em 1952, e sócia do Instituto Histórico de Minas Gerais.

A Academia Brasileira de Letras concedeu em 1965 a Cecília Meireles, post-mortem, o

Prêmio Machado de Assis, pelo conjunto de sua obra.

A despeito de sua dedicação às letras, e de ensinar literatura, não participou da vida

literária.

Também não me preocupam as escolas literárias senão de um ponto de vista histórico. Não sei se me faço entender. Acho que todos aprendemos com todos. Mas eu não gostaria de fazer discípulos, de ser chefe... etc. Não creio tanto em mim.

Contra os que se queixavam de sua solidão, dizia que ela que sentia não poder

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desfrutar da companhia de muitas pessoas, realmente preciosas.

Mas minha solidão não é uma disponibilidade. É uma consequência natural do meu trabalho, e o seu clima indispensável.

Cecília casou-se em 1921 com o pinto Fernando Correia Dias, do qual teve três filhas:

Maria Elvira, Maria Matilde e Maria Fernanda. Viúva, casou-se em 1940 com o Profº Heitor

Grillo. Deixou cinco netos: Ricardo, Alexandre, Fernanda, Maria, Maria de Fátima e Luiz

Heitor Fernando.

Para completar esse retrato sumário da poetisa, transcrevemos a seguir o flash de

João Condé, publicado nos “Arquivos Implacáveis”, O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 31 de

dezembro de 1955:

Nome: CECÍLIA MEIRELES. Nasceu no Distrito Federal. Casada, tem três filhas e dois netos. Altura, 1,64. Pesa 59

quilos e calça sapatos número 37. É quase vegetariana. Não fuma, não bebe, não joga. Não pratica nenhum

esporte, mas gosta muito de caminhar e acha que seria capaz de dar a volta ao mundo a pé.Não gosta de

futebol e raramente vai ao cinema. Gosta de bom teatro. Responde pontualmente todas as cartas que recebe,

mas atrasa-se às vezes, em agradecer livros, porque só agradece depois de os ler. Adora música, especialmente

canções medievais, espanholas e orientais. Poetas preferidos: todos os bons poetas. Prefere pintores

flamengos. Dorme e acorda cedo. Leu Eça de Queirós antes dos 13 anos. Escreveu o seu primeiro verso aos 9

anos. Estudou canto, violão, violino e, às vezes, desenha. Se pudesse recomeçar a vida gostaria de ser a mesma

coisa, porém melhor. Seu primeiro livro publicado foi Espectros, tinha 16 anos. Principal defeito: uma certa

ausência do mundo. Seu tormento: desejar fazer o bem a pessoas que precisam de auxílio e não o

aceitam. Nunca viu assombração, mas gostaria de ver. Não tem medo de viajar de avião em viagens

longas. Gostaria de tornar a visitar o oriente e chegar até a China. Penso que poderia, pelo menos, ficar muito

tempo no Mediterrâneo. Coleciona objetos de arte popular. Já colecionou xícaras e colheres de café. Agora

acha o café tão ruim que não vale a pena colecionar os acessórios. Teve grande emoção quando chegou aos

Açores, terra de seus antepassados. Outra emoção grande: quando viu sua "Elegia a Gandhi" traduzida em

idiomas da Índia. É o poeta brasileiro mais conhecido em Portugal. Até agora não conseguiu gostar de Paris,

embora admire a França. Admira profundamente São Francisco de Assis, Gandhi e Vinoma Bhave. Coisas que a

horrorizam: tocar em papel carbono, ver comer ostras, aspirar fumaça de ônibus. Coisas que ama: crianças,

objetos antigos, flores, música de cravo, praia deserta, livros, livros, livros, noite com estrelas e nuvens ao

mesmo tempo. Acha que não tem medo da morte. Gostaria de morrer em paz.

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Fig. 1. Krishna

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Fig. 2. Amon

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Fig 3. Figura de reprodução do lixo espacial na órbita da terra

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Fig. 4

O Homem Vetruviano, Leonardo da Vinci

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CECÍLIA MEIRELES

(1901 – 1964)