Federalismo e Separação de Poderes

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE DIREITO FEDERALISMO E SEPARAÇÃO DE PODERES

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UNIVERSIDADE DE SO PAULOFACULDADE DE DIREITO

FEDERALISMO E SEPARAO DE PODERES

So Paulo2014Bethnia Pires AmaroEmanuel PessoaPaulo Guedes FontesRafaela Carolina JuliattoTaciana MaiaTelma Rocha LisowskiThiago Freitas Rubim

FEDERALISMO E SEPARAO DE PODERES

Seminrio apresentado como requisito parcial aprovao na disciplina Fortalecimento Institucional Republicano No Estado Federal Brasileiro: Novos Desafios, vinculada ao Departamento de Direito do Estado (2134), sob orientao do Professor Doutor Alexandre de Moraes.

So Paulo 2014

1. INTRODUO

O tema da separao de poderes, que se delineia desde a Antiguidade Clssica, goza de grande relevncia por se refletir na organizao dos governos das democracias contemporneas. A clssica doutrina tripartite, nesse sentido, defensora uma separao das funes do Estado, distribuda entre rgos estatais independentes, sofreu flexibilizaes e alteraes ao longo dos anos, consagrando a ideia de que os Poderes devem ser legitimados a atuar de forma cooperativa e harmnica, com o compartilhamento de funes estatais, exercidos, ainda que excepcionalmente, por cada Poder autonomamente. Para tanto, tem-se assegurado, nos textos constitucionais, uma srie de garantias e imunidades aos membros do Executivo, Judicirio e Legislativo, bem como estabelecido mecanismos de controle recprocos, de modo a reprimir arbitrariedades.No Brasil, a matria tem sido alvo de grandes discusses doutrinrias e jurisprudenciais, em virtude da crescente crise institucional entre os poderes republicanos, estabelecida notadamente pelo fortalecimento do Poder Executivo e do Judicirio em esferas de competncias tradicionalmente consideradas de responsabilidade do Poder Legislativo. Com efeito, a estrutura constitucional brasileira, organizada com base no presidencialismo norte-americano, tem favorecido uma concentrao constitucional de atribuies nas mos do Executivo, aliando-se cultura poltica nacional que tende a favorecer o poder pessoal. Outrossim, os longos perodos de inrcia legislativa patolgica tm incentivado a ampliao do papel das Cortes, no que se vem denominando de ativismo judicial. A constitucionalizao abrangente promovida pela Carta Magna, ao regular diversos temas sociais e econmicos, aliada adoo de um extenso modelo de controle de constitucionalidade, englobando tanto o sistema de controle difuso norte-americano quanto o controle concentrado europeu, favoreceu a transformao da poltica em direito. possvel cogitar, ainda, da progressiva deferncia legislativa ao Judicirio, evitando o nus eleitoral de decises polticas polmicas, que contrariam diretamente o interesse de grupos eleitoramente vultosos.O presente trabalho, portanto, sem pretender esgotar o tema, visa a analisar a doutrina da separao de poderes e sua influncia na organizao poltica no Brasil e nos Estados Unidos, focando-se na interao entre os poderes e comparando-se os modelos nacional e norte-americano.

2. A DOUTRINA DA SEPARAO DE PODERES

A teoria da separao de poderes, nos moldes atuais, foi fruto de um longo amadurecimento doutrinrio que traa suas origens at a Antiguidade Clssica, quando Aristteles, em sua obra A Poltica, buscando um modelo de governo capaz de assegurar a felicidade social, acentuou a necessidade de limitao do poder poltico, defendendo a existncia de trs rgos responsveis pelos processos decisrios estatais: o Poder Deliberativo, o Poder Executivo e o Poder Judicirio. O Poder Deliberativo, assim, seria responsvel pelos negcios do Estado e exercido mediante assembleias dos cidados, decidindo especialmente sobre a paz e a guerra, a realizao de alianas, a criao e supresso de leis e outras matrias de soberania. O Poder Executivo, por sua vez, seria exercido atravs de magistraturas governamentais, que gerenciariam os poderes constitudos. Por fim, o Poder Judicirio resolveria as disputas e conflitos internos mediante avaliao dos tribunais.Posteriormente, John Locke (TwoTreatiesofGovernment, 1690), abraando a diviso tripartite entre as funes do Estado, a distribuiu entre dois poderes: a funo Federativa, responsvel pelas relaes internacionais do governo e outras prerrogativas reais, tpicas do Chefe de Estado, seria exercida pelo monarca, tal como a funo Executiva, de aplicao das leis e manuteno da ordem interna. A funo legislativa, diversamente, ficaria com o Parlamento ingls, gozando de ascendncia sobre os demais. Todavia, com Montesquieu, em O Esprito das Leis, que se consagra a tripartio de poderes com as devidas reparties de atribuies, incluindo-se o judicirio entre os poderes fundamentais do Estado. O Legislativo, destarte, elaboraria o conjunto de leis vigentes, podendo ainda aperfeio-las e revog-las; o Executivo (poderexecutivodas coisas quedependem do direito das gentes), de que se ocupa o prncipe, envia e recebe embaixadores, estabelece a segurana e previne as invases; e, finalmente, o Judicirio (poder executivo das coisas que dependem do direito civil) d ao prncipe ou ao magistrado a faculdade de punir os crimes ou julgar os dissdios da ordem civil. Nesta tese, Montesquieu defende que as tarefas de legislar, administrar e julgar devem ser realizadas em observncia s normas legais vigentes e jamais concentrar-se nas mesmas mos:

A democracia e a aristocracia no so Estados livres por natureza. A liberdade poltica s se encontra nos governos moderados. Mas ela nem sempre existe nos Estados moderados; s existe quando no se abusa do poder; mas trata-se de uma experincia eterna que todo homem que possui poder levado a dele abusar; ele vai at onde encontra limites. Quem diria! At a virtude precisa de limites. Para que no se possa abusar do poder, preciso que, pela disposio das coisas, o poder limite o poder. Uma constituio pode ser tal que ningum seja obrigado a fazer as coisas a que a lei no obriga e a no fazer aquelas que a lei permite. (MONTESQUIEU, 1997, p. 74)

No por outro motivo, Montesquieu define os juzes como a boca que pronuncia as palavras da lei; so seres inanimados que no podem moderar nem sua fora, nem seu rigor (1997, p. 78). Esta a primeira das formas de controle do Judicirio apontadas pelo autor, sendo a segunda sua prpria estruturao: o Judicirio deveria ser efmero, ou seja, funcionar apenas em determinados perodos para julgamento de casos especficos, com juzes sorteados que poderiam ser recusados pelo ru. A neutralizao dos poderes executivo e legislativo, por sua vez, se daria atravs da relao entre estes dois poderes.Sobre o tema, afirma Roger Stiefelmann Leal (1999, p. 232):

Antes de mais nada, h de se ter em mente que Montesquieu elaborou uma doutrina poltica, e no jurdica, da separao dos poderes. (...) O que parece estar por trs da concepo exposta por Montesquieu a necessidade de limitar ao mximo a liberdade de criao do juiz de modo a preservar o princpio da segurana jurdica, na medida em que se possa ter uma certa previsibilidade do contedo das decises judiciais, o princpio da igualdade, na medida em que os casos iguais no sejam resolvidos de forma distinta, e o princpio da unidade do direito, na medida em que o direito seja aplicado uniformemente no territrio em que vige. (...). Nitidamente, Montesquieu tem a inteno de preservar tais princpios e evitar a viabilidade do uso arbitrrio do poder jurisdicional. De outro lado, provavelmente devido concepo que prevalecia poca, fenmeno chamado por Favoreu de sacralizao da lei, v-se que os poderes, na doutrina de Montesquieu, encontram-se submetidos lei, e, ao que consta, o Poder Judicirio no teria condies de control-la. Alm disso, os rgos judicantes no teriam, a priori, o poder de controlar a atividade exercida pelo Poder Executivo, at porque sua funo limitava-se a questes atinentes s relaes internacionais, ou seja, fazer a paz ou a guerra, enviar ou receber embaixadas, instaurar a segurana e prevenir invases. Tanto o Poder Executivo quanto o Poder Judicirio tinham a funo de aplicar o direito. Previu-se, na realidade, uma diviso de competncias. Enquanto a um cabia aplicar o direito das gentes, ao outro cabia aplicar o direito civil. No se falava em controle judicial da atividade do Executivo. Tal disposio dos poderes traduzia uma prevalncia da lei, o que, em ltima anlise, resulta na supremacia do Parlamento. (grifos do original)

Montesquieu confere, assim, destaque ao Poder Legislativo, por consider-lo expresso da liberdade: o homem livre na medida em que governa a si mesmo. De modo a formular um governo moderado, Montesquieu defende, ainda, o carter dplice do legislativo, que deve ser dividido entre a Cmara Baixa, integrada pelos representantes do povo, eleitos por voto censitrio; e a Cmara Alta, formada por membros da aristocracia, de modo que uma pudesse frear os excessos da outra.Tambm Hans Kelsen defendeu a diferenciao entre trs funes do Estado legislativa, executiva e judiciria , todas resultantes do poder poltico, que para o autor se consubstancia na validade e eficcia da ordem jurdica imposta. Chama-se de poder legislativo o rgo do Estado que a fonte de todas as normas gerais, em parte diretamente e em parte indiretamente, atravs dos rgos aos quais delega competncia legislativa. Salienta, ainda, que a funo legislativa comumente exercida pelo Executivo atravs do mecanismo da sano/veto e da iniciativa legislativa; e pelo Judicirio, atravs dos precedentes judiciais e controle judicial das leis (funo legislativa negativa). A tese encontra-se inserida na doutrina constitucional kelseniana, segundo a qual a Constituio , do ponto de vista jurdico-positivo, lei fundamental que regula a produo de normas gerais, podendo tambm determinar o contedo de futuras leis.De todo modo, apenas como exceo que os rgos do poder executivo e do judicirio podem, consoante o autor, criar normas gerais. Sua atribuio tpica criar normas individuais com base nas normas gerais criadas por legislao e costume, e levar a efeito as sanes estipuladas por essas normas gerais e individuais. Destarte, segundo Kelsen, a execuo das leis uma funo inerente tanto ao poder executivo quanto ao poder judicirio, que se distinguem somente quanto a sua forma de atuao: o exerccio da atividade jurisdicional volta-se resoluo de uma controvrsia, enquanto o executivo poderia aplicar a lei independentemente da manifestao de quaisquer rgos ou indivduos.Leciona Lus Carlos Martins Alvez Jnior (2009, p. 5):Em sua anlise, Kelsen combateu juridicamente a separao tricotmica de poderes, com o rigor cientfico que lhe era peculiar, ao concluir que, em termos jurdicos, o sobredito princpio a doutrina dos diferentes estgios da criao e da aplicao da ordem jurdica nacional, posto que, repisa, como vimos, no h trs, mas duas funes bsicas do Estado: a criao e a aplicao do Direito. De sorte que, continua ele, impossvel atribuir a criao de Direito a um rgo e a sua aplicao (execuo) a outro, de modo to exclusivo que nenhum rgo venha a cumprir simultaneamente ambas as funes.

Refora o ataque separao de poderes, quando diz que este princpio, compreendido literalmente ou interpretado como um princpio de diviso de poderes, no essencialmente democrtico, uma vez que na ideia de democracia todo o poder deve estar concentrado no povo, e onde no possvel a democracia direta (inexistente nos Estados contemporneos), todo o poder deve ser exercido por um rgo colegiado cujos membros sero eleitos pelo povo e juridicamente responsveis perante ele, posto que o rgo legislativo que tem o maior interesse em ver suas normas rigorosamente executadas. Portanto, arremata, a democracia exige que ao rgo legislativo seja dado controle sobre os rgos administrativos e judicirios. Da porque, segundo Kelsen, a reviso judicial da legislao uma transgresso evidente deste princpio, que em muitas constituies considerado como um elemento especfico da democracia.

Ainda sobre a temtica, Karl Loewenstein afirma que o que se costuma designar como separao de poderes estatais , na realidade, a distribuio de determinadas funes estatais a diferentes rgos do Estado. A ideia de distribuio de poder est essencialmente unida teoria e prtica da representao poltica, assim como a tcnica governamental que nela se baseia. A separao de poderes no , pois, seno a forma clssica de expressar a necessidade de distribuir e controlar, respectivamente, o exerccio do poder poltico.Ainda que pondere acerca da dificuldade em se alterar a doutrina da separao de poderes tal como feita por Montesquieu, o autor prope nova tripartio de funes: policydetermination, policyexecution e policycontrol. A primeira seria responsvel por tomar as decises polticas fundamentais no mbito interno ou externo, como a eleio do sistema poltico e da forma de governo, do sistema econmico, alm do exerccio do poder constituinte. J a segunda executaria a legislao, levando prtica as decises fundamentais. Acrescenta-se, porm, a existncia da funo de controle, indispensvel para a manuteno da democracia e para a salvaguarda da liberdade individual. Nesse sentido, no s deve ser fiscalizada a adequao das opes governamentais s opes populares, ou ao bem comum - controle poltico, para o qual est particularmente indicado o parlamento -, como tambm a aplicao dessas decises aos casos particulares controle formal, para o qual naturalmente indicado o Judicirio.Para Alexandre de Moraes (2004, p.47),

A policycontrol constitui o ncleo da nova diviso de funo de Loewenstein, pois consagra ampla possibilidade de responsabilidade poltica dos detentores das funes estatais, pois como afirma o autor a distribuio de poder significa em si um recproco controle de poder.

Efetivamente, a doutrina da separao de poderes, com os contornos que lhe foram dados por Montesquieu, incorporou-se aos Estados constitucionais contemporneos, passando por aperfeioamentos e modulaes necessrios adaptao s diversas realidades polticas nacionais. Nesse diapaso, condies histricas e polticas levaram a diferentes interpretaes da doutrina de Montesquieu nos Estados Unidos e na Europa continental, pois enquanto nesta a formulao de Montesquieu elevou o Legislativo condio de poder soberano, na Amrica do Norte a mesma concepo resultou no fortalecimento do Executivo e do Judicirio[footnoteRef:1]. [1: Consoante afirma Jos de Albuquerque Rocha (Estudos sobre o Poder Judicirio. So Paulo: Malheiros, 1995, p. 88-91), na Europa, a burguesia revolucionria, desconfiada dos parlements(tribunais do antigo regime), em virtude do seu papel ao mesmo tempo conservador e servil ao soberano, subtraiu do Judicirio idealizado por Montesquieu a competncia para exercitar o controle de compatibilidade entre legislao e as leis fundamentais, ou seja, a competncia do Judicirio para exercer o que se conhece modernamente por controle da constitucionalidade das leis. Nos Estados Unidos, ao revs, os revolucionrios americanos, hostis ideia de submisso s arbitrrias leis que a Assembleia inglesa impunha para as colnias americanas, trataram de controlar o nascente legislativo estadunidense, criando, desse modo, a fiscalizao exercida sobre ele pelo Judicirio, para evitar na Federao americana a instalao da ditadura legislativa que imaginavam existir na Inglaterra, sendo estas, pois, as razes histricas da supremacia do Legislativo na Europa continental e da supremacia do Judicirio nos Estados Unidos da Amrica.]

Alguns autores chegaram mesmo a sugerir uma nova repartio de poderes, com acrscimo de novos ramos[footnoteRef:2], permanecendo a maioria dos Estados, contudo, essencialmente fiel aos delineamentos originais. [2: Nesse sentido, Bruce Ackerman (The New SeparationofPowers, Harvard Law Review, 113, 2000: 642-729) defende a existncia de um ramo regulatrio (regulatorybranch) e um ramo de integridade (integritybranch), sendo o primeiro responsvel pela organizao da produo normativa das agncias reguladoras; e o segundo, voltado moralizao eleitoral, com criao de comits eleitorais independentes para administrao dos pleitos, julgamento de candidatos e financiamento pblico de campanhas. Roberto Unger (DemocracyRealized: a Manifesto, p. 263-277), por sua vez, prev a formao de um ramo reconstrutivo (reconstructivebranch) que se destinaria reconstruo de entidades e instituies com problemas estruturais ligados corrupo e inrcia, tanto no setor privado como pblico.]

Percebe-se, de modo geral, que a separao de Poderes envolve no apenas a diviso entre Executivo e Legislativo, como tambm o aprofundamento da discusso sobre o status constitucional do Poder Judicirio. Trata-se do debate acerca da clara definio do papel de cada um desses rgos e sua influncia na tomada de decises polticas, em prol da eficincia institucional e de uma adequada e otimizada gesto do Estado.

3. A SEPARAO DE PODERES NO BRASIL

O princpio da separao de poderes sempre foi um princpio fundamental do ordenamento jurdico brasileiro, estando previsto j na Carta Imperial de 1824, a qual, em seu artigo 9, estatua que a diviso e harmonia dos Poderes Polticos o princpio conservador dos Direitos dos Cidados, e o mais seguro meio de fazer effectivas as garantias, que a Constituio offerece.Vigia, ento, uma repartio quadripartite, com incluso do poder moderador defendido por Benjamin Constant (Poder Real), o qual, juntamente com o poder executivo, acumulava-se nas mos do imperador, sob o argumento de que o exercia para resguardar a independncia, harmonia e equilbrio dos demais poderes polticos, conforme texto inscrito no artigo 98 e seguinte da Carta imperial de 1824. A Constituio da Repblica dos Estados Unidos do Brazil, de 1891, por sua vez, retomou a clssica tripartio de poderes e, sob influncia norte-americana, estruturou a federao brasileira, incorporando a sua tradio, portanto, a supremacia do executivo presidencialista e do judicirio, em detrimento do legislativo. A separao de poderes foi ainda expressamente mencionada nas Constituies brasileiras posteriores, com a exceo da Carta de 1937, que apenas fixava a repartio de competncia entre os entes federativos.Outrossim, a Constituio de 1988 predispe, em seu artigo 2, que so poderes da Unio, independentes e harmnicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judicirio. Trata-se de um princpio fundamental do ordenamento jurdico brasileiro, que o legislador constituinte originrio consagrou expressamente como clusula ptrea no artigo 60, 4, III.Acerca da independncia e harmonia dos poderes, discorre Canotilho (apud Moraes, 2008, p. 403)A lealdade institucional compreende duas vertentes, uma positiva, outra negativa. A primeira consiste em que os diversos rgos do poder devem cooperar na medida necessria para realizar os objetivos constitucionais e para permitir o funcionamento do sistema com o mnimo de atritos possveis. A segunda determina que os titulares dos rgos do poder devem respeitar-se mutuamente e renunciar a prtica de guerrilha institucional, de abuso de poder, de retaliao gratuita ou de desconsiderao grosseira. Na verdade, nenhuma cooperao constitucional ser possvel sem uma deontologia poltica, fundada no respeito das pessoas e das instituies e num apurado sentido da responsabilidade do Estado (statesmanship).

Com efeito, de modo a preservar a autonomia entre os Poderes e salvaguardar direitos fundamentais e o prprio regime democrtico, a Constituio de 1988 consagra uma srie de imunidades e garantias aos membros do Legislativo, Executivo, Judicirio e Ministrio Pblico, alm de criar mecanismos de controle recprocos, para garantia da perpetuidade do Estado democrtico de direito. Igualmente, foram introduzidas em nosso regime presidencialista as agncias reguladoras, voltadas a diminuir a ingerncia da vontade unipessoal do Presidente nas questes administrativas, em respeito legalidade, tornando a gesto das polticas pblicas mais eficiente.Consoante ensina Alexandre de Moraes (2004, p. 24 e seguintes), nos Estados Modernos, a clssica separao de poderes operou-se para proteger as liberdades individuais, sendo que hodiernamente o Estado assumiu uma funo mais ativa na garantia de prestaes sociais a seus cidados deste modo, ainda que o sistema tradicional permanea, destaca-se hoje pela inexistncia de concentrao de poderes em um nico e onipotente rgo, bem como pela presena de mecanismos constitucionais de controles recprocos. A defesa de um Estado Democrtico pretende, precipuamente, afastar a tendncia humana para o autoritarismo e a concentrao de poder.

3.1. O FORTALECIMENTO EXECUTIVO

Prossegue o autor afirmando que a separao de poderes, no presidencialismo, criou em especial um sistema de independncia de poderes, em vez da tradicional interpenetrao de poderes no parlamentarismo, tornando mais forte o Poder Executivo, sem, contudo, afastar-se da filosofia poltica essencial de um governo livre, qual seja, a limitao do poder estatal. Com efeito:

Compatibilizando-se a clssica separao de poderes com a evoluo dos regimes de governo, podemos afirmar que os poderes de Estado na prtica so pelo menos cinco, que exercem as antigas trs clssicas funes, pois contabilizaramos a Presidncia, o Congresso Nacional, a Administrao Pblica (em especial as organizaes autnomas, as agncias regulatrias independentes), o Judicirio e a Suprema Corte ou os Tribunais Constitucionais. Todavia, mesmo nesse novo contexto, no presidencialismo, o Presidente da Repblica ocupa a posio central da Presidncia e da Administrao Pblica, tendo adquirido o papel principal de condutor dos negcios polticos do Estado (...), afastando-se a inicial concepo da presidncia como rgo subalterno do Poder Legislativo e mero executor de leis. (MORAES, 2004, p. 129)

Nota-se, assim, que a separao de poderes no Brasil tende a um fortalecimento do Poder Executivo, na medida em que o Presidencialismo promove a centralizao e a personificao do Poder Executivo Central na figura do Presidente da Repblica - enquanto chefe de Estado, representa o pas nas suas relaes internacionais, bem como corporifica a unidade interna do Estado; j enquanto chefe de governo, a funo presidencial corresponde representao interna, na gerncia dos negcios internos, tanto de natureza poltica (participao no processo legislativo), como de natureza eminentemente administrativa. Destarte, o Chefe de Governo exercer a liderana da poltica nacional, pela orientao das decises gerais e pela direo da mquina administrativa.Ademais, em virtude do poder de veto, o Presidente participa do processo legislativo, em contato direto com o Poder Legislativo. O Presidente tem, ainda, direito de iniciativa de lei, veto e elaborao de medidas provisrias. Sua influncia particularmente relevante no campo oramentrio. Alexandre de Moraes (2004, p. 191 e seguintes) observa, contudo, que a independncia recproca do Executivo e do Legislativo rigorosamente assegurada. De fato, o Legislativo rene-se independentemente de convocao do Chefe de Estado, como sucedia nas monarquias, bem como este no pode extinguir o mandato dos parlamentares ou dissolver a Cmara. Ao mesmo tempo, a Cmara no pode destituir o Presidente por quebra de confiana, mas apenas como sano de um crime, mediante o devido processo legal. A Cmara tampouco interfere no resultado da eleio presidencial, em regra.Ainda, ao escolher os membros do mais alto Tribunal do pas, tem o Presidente forte ingerncia no Poder Judicirio, alm de poder conceder graa e indulto. Tambm representa o pas perante as naes estrangeiras, nomeando embaixadores, acreditando seus representantes diplomticos em territrio nacional e assinando tratados internacionais. Ter, portanto, o Presidente da Repblica, o poder de nomear a cpula do Poder Judicirio e o corpo diplomtico, caracterstica esta que nasceu com o presidencialismo. No bastasse isso, o Chefe de toda a Administrao Pblica Federal e Comandante Supremo das Foras Armadas.Esta proeminncia presidencial apenas tende a crescer, com a ampliao das atividades governamentais no domnio econmico e social, o intervencionismo e a gravidade hodierna dos problemas de segurana, que, confiados ao Executivo, tendem a soergu-lo em detrimento do Legislativo. Por outro lado, tal preponderncia se agrava em razo do desprestgio dos parlamentares decorrente da ineficcia e da futilidade dos longos debates legislativos, cujos meandros so incompatveis com a velocidade da vida moderna. As particularidades da realidade brasileira mostram-se favorveis a esta proeminncia presidencial, em especial considerando-se a tendncia para o poder pessoal e a chamada crise do legislativo.

3.2. CRISE LEGISLATIVA

Com efeito, consoante salientado por Manoel Gonalves Ferreira Filho (2012, p.153 e seguintes), o processo legislativo contemporneo no se afastou muito do modelo clssico, o que explica, em grande medida, a atual crise em que se encontra, por no se mostrar apto a atender s novas necessidades legislativas. Em primeiro lugar, manteve-se a possibilidade de mltiplas votaes, emendas e pareceres, o que contribui para a lentido do procedimento; ao mesmo tempo, assiste-se a uma expressiva multiplicao do nmero de leis, seja em razo da sua compreenso enquanto instrumento de poltica governamental, alterada a cada pleito, seja por conta das necessidades de rpidas mudanas demandas pelo Estado-Providncia, sem qualquer esforo de sistematizao ou organizao, tornando absolutamente confuso o cenrio legislativo perante a sociedade.A quantidade de leis cresce ainda mais em decorrncia de os parlamentares muitas vezes buscarem aprovar leis para obter maior visibilidade e reconhecimento junto ao eleitorado, elaborando diplomas de pouca relevncia e baixa preciso. Em verdade, em funo da ampla possibilidade de obstrues, os projetos de lei procuram contornar o problema atravs de textos vagos, imprecisos e mesmo contraditrios, restando jurisprudncia o difcil papel de aclar-los e definir-lhes o sentido mais exato, solucionando conflitos. A baixa qualidade tcnica e jurdica das leis brasileiras inegvel, apesar da existncia de diversas comisses parlamentares responsveis por sua reviso. Isso decorre, principalmente, da ausncia de preparao tcnica e mesmo de ideologia definida de nossos parlamentares, assim como de seus assessores, escolhidos mais por motivos polticos que por seus conhecimentos tcnicos. A inexistncia de mecanismos de sistematizao das novas leis, que englobe tambm as antigas, tem levado extrema insegurana jurdica, desvalorizao das leis e queda de credibilidade do Poder Legislativo. , portanto, plenamente perceptvel a tendncia do Legislativo no sentido de abandonar seu papel tradicionalmente ativo, de elaborao de leis, e assumir papel passivo, de revisor de textos de lei e medidas provisrias de elaborao executiva. Nesse sentido, Rosalind Dixon (2007, p. 395 e seguintes) atribui duas causas ao fenmeno da passividade legislativa: a existncia de blind spots, quando o Parlamento no compreende seu papel na garantia de direitos; e o burdensofinertia, quando o Parlamento acredita ser politicamente menos custoso manter-se inerte. Tal postura leva a excesso de ambos os lados, fragilizando-se o equilbrio e cooperao entre Poderes. No Brasil, a temtica mostra-se extremamente relevante, sendo um exemplo o frequente abuso no uso das medidas provisrias, o qual, no obstante, tem contado com a aquiescncia do Legislativo, que considera mais confortvel avaliar o impacto da medida na sociedade antes de definir sua posio poltica, podendo, em caso de desagrado, censur-la e manter o apoio do eleitorado. Bobbio (1997, passim) aponta, ademais, uma descentralizao do Parlamento enquanto centro de debates polticos, o que j passou a ser feito nos partidos, sindicatos, grupos sociais e outras instituies margem do Parlamento. A desconfiana nas instituies legislativas, preenchidas pelas tradicionais vias eleitorais pautadas na representao indireta, tem favorecido a mobilizao da sociedade civil em busca de novos mecanismos de participao direta, atravs dos quais exprimam integralmente sua cidadania[footnoteRef:3]. Formam-se, em consequncia, verdadeiros espaos pblicos de discusso que concentram enorme poder de crtica, influncia e presso, capazes de qualific-los, no dizer de Diogo de Figueiredo Moreira Neto (2011, p. 56), como verdadeiros contrapoderes sociais. [3: A Constituio brasileira de 1988 parece ter buscado a superao do modelo estritamente representativo de democracia, adotando novas formas de participao popular direta que no se exaurem no exerccio do voto, tendo previsto a realizao de plebiscitos, referendos e iniciativa popular. A democracia participativa, porm, se ramifica ainda em diversos outros sentidos, mormente na proteo das minorias, efetivao de direitos sociais, participao ativa de entes no estatais na formao da vontade poltica e administrativa, bem como na prpria interpretao constitucional, como quis Peter Hberle, alm do prprio ativismo judicial. ]

Fala-se, portanto, numa crise que tambm de legitimidade, na medida em que a sociedade no se sente devidamente representada pelos parlamentares. Com efeito, superada a concepo de que os representantes populares agiriam em prol do bem comum, movidos pela razo universal, de modo que a vontade dos representantes traduziria a prpria vontade do povo (mandato-imputao), restou evidente que os parlamentares eleitos agem em nome de certo grupo de interesses, muitas vezes de carter estritamente pessoal. O advento do sufrgio universal, ao conceder o direito de voto a todos, permitiu a multiplicao de partidos polticos organizados, mas sem programas e ideologias verdadeiramente especficos, de forma a angariar votos dos mais diversos grupos sociais. Por conseguinte, os detentores de mandatos eletivos sofrem pouco ou quase nenhum controle social em sua atuao, afastando-se dos interesses daqueles a quem teoricamente representam.Conclui-se que, seja pela deficincia tcnica, de legitimidade ou por verdadeira m-f dos parlamentares, muitos dos quais esto envolvidos em escndalos de corrupo e improbidade administrativa, o legislativo brasileiro, marcado por emendismos e negociaes de balco, precisa ser repensado, sob pena de comprometimento do prprio Estado Democrtico de Direito. Em verdade, as reformas legislativas vm sendo feitas em diversos pases do globo, buscando, particularmente, a organizao e diminuio da quantidade de leis, com destaque para o programa BetterRegulation, de autoria da comunidade europeia, e do US Code, nos Estados Unidos, em mbito federal.

3.3. O PODER JUDICRIO E A SEPARAO DE PODERES NO BRASIL

O Estado Constitucional deve ser entendido como aquele que possui um sistema normativo com disposies fundamentais acerca da organizao interna, limitao do poder e direitos fundamentais dos seus indivduos. Com efeito, a atuao do Estado Constitucional ora se adaptou doutrina econmica predominante do liberalismo, ora se insurgiu contra o Estado Liberal e patrocinou as causas sociais, mas fato que nunca se distanciou da ideia de um governo de leis e no de homens.A atuao do Poder Judicirio dentro do sistema criado pelo Estado Social, diante da difcil, porm transponvel, barreira da atualizao do Estado, est cerceado pelas novas exigncias da sociedade, e o dever agir com mais intensidade atravs de iniciativas que favoream a implementao das polticas pblicas constitucionalmente estabelecidas.Os limites de atuao do Poder Judicirio so aqueles baseados na existncia de um Estado Democrtico de Direito, fruto de um movimento conhecido como Constitucionalismo, no qual a teoria da separao dos poderes quase que exclusivamente destinada garantia dos direitos fundamentais e construda em funo de grandes conflitos sociais (DALLARI, 2011), dever ser analisada em consonncia com a sua expresso no direito constitucional ptrio.Referida teoria surgiu primeiro na Inglaterra atrelada doutrina anti-absolutista Rule of Law, uma das primeiras formas do que, mais tarde, se tornaria o Estado de Direito, modelo baseado numa constituio mista que surge no para conter o abuso de poder, mas para compor uma unidade poltica s diversas ordens existentes (PIARRA, 1989). Como j exposto, foi John Locke que, em 1690, iniciou a sistematizao doutrinria da teoria da separao de poderes a partir de uma experincia inglesa adepta ao contratualismo e profundamente marcada pela supremacia do Poder Legislativo.Mais tarde, Charles Louis de Secondat, um dos precursores do Iluminismo e conhecido como baro de Montesquieu, estruturou uma nova limitao de poder com o objetivo de promover a liberdade e a legalidade, o que, segundo ele, somente poderia ser concretizado por meio de uma separao de poderes na qual a liberdade no pode consistir seno em poder fazer o que se deve querer, e em no ser constrangido a fazer o que no se deve desejar (MONTESQUIEU, 1997, p. 164).Sobre os estudos de Montesquieu, o prprio James Madison na notvel obra The Federalist (HAMILTON, MADISON, 2002), citou suas teorias e concluses fundamentadas na viso da constituio britnica e baseada no fato de que onde todo o poder de um dos ramos concentrado nas mesmas mos que enfeixam todo o poder de outro ramo, os princpios fundamentais de uma Constituio livre estaro subvertidos. E essa teoria da separao de poderes difundida por Montesquieu que foi adotada pela Constituio Federal de 1988, cuja natureza normativa to qualificada a ponto de se exigir a presena do binmio exigibilidade-obrigatoriedade (SIQUEIRA JUNIOR, 2012) a todas as suas disposies.Isso revela que a teoria da separao de poderes deve ser compreendida com a indispensvel vinculao Constituio vigente, que lhe confere caractersticas peculiares, a fim de torn-la nica e capaz de servir ao escopo do Estado nesses tempos em que se busca que o contedo dos postulados constitucionais alcance concretude ftica, garantindo que sua acepo como simples folha de papel (LASSALE, 2006) no mais seja aceita por representar um retrocesso histrico proteo dos direitos fundamentais do indivduo.Assim, a presente dinmica constitucional demonstra que o poder judicirio mais do que apenas a boca que pronuncia as palavras da lei e que a jurisdio constitucional funciona como garantia da legitimidade da prpria constituio, alm de constituir verdadeiro instrumento de controle poltico. H, portanto, a necessidade de uma releitura da teoria da separao dos poderes aplicada na Constituio e 1988, em especial com relao atuao do Poder Judicirio, bem como de um exame mais minucioso acerca do verdadeiro escopo da aludida teoria, qual seja, a limitao e a eficincia do poder com vistas aos ditames finais estabelecidos na Carta Magna. Deve-se compreender a atuao do Poder Judicirio, no como uma figura que desvirtua o equilbrio entre os poderes, mas sim como uma medida necessria melhor elucidao da real finalidade da aplicao da teoria da separao dos poderes.Para que sejam garantidos os direitos fundamentais individuais e implementados os sociais, a atuao do judicirio merece ser destacada, no como concentrao do poder degenerada judiocracia(LOEWENSTEIN, 1979), mas sim como funo dotada de responsabilidade poltica que o prprio Estado Social lhe imps. Ocorre que, a construo institucional do judicirio moderno segundo Arantes (2007), passou por duas grandes tradies: a americana e a francesa.A tradio francesa no conferiu ao judicirio poder poltico, j na americana este poder foi atribudo sob o fundamento do temor estadunidense de substituir o poder autoritrio de um pelo poder autoritrio de muitos, o que Madison designou chamar de tirania da maioria. Enquanto a tradio francesa era marcada pela desconfiana em relao ao judicirio, essa mesma desconfiana impulsionou os americanos na luta contra a tirania da maioria e na instituio do poder judicirio como poder contramajoritrio, com objetivo de proteger os direitos fundamentais. Neste contexto, examina-se notadamente a hipertrofia do poder judicirio e sua relao com a interpretao constitucional e da mutao constitucional[footnoteRef:4], o que configura nos dias atuais o chamado ativismo judicial. [4: Os processos informais de mudana da constituio surgem no sistema brasileiro sob o termo mutao constitucional. Somente com o advento da Constituio Federal e 1988, a mutao constitucional ganhou notoriedade e, na esfera doutrinria, a partir da publicao da tese de Anna Cndida da Cunha Ferraz (Ferraz, Ana Cndido da Cunha. Processos informais de mudana da Constituio: mutaes constitucionais e mutaes inconstitucionais. So Paulo:MaxLimonad, 1986.)]

O ativismo judicial engloba todas as condutas positivas e construtivas do poder judicirio e est pautado na concretizao dos direitos fundamentais to amplamente defendida pelos precursores do neoconstitucionalismo, alm de outras condutas relacionadas com a atuao do poder executivo e que afetam o controle de polticas pblicas. O ativismo judicial testa os limites e as consequncias da mencionada teoria da separao de poderes, muitas vezes sendo considerado como verdadeiro motivo de disfuno no exerccio da funo jurisdicional (RAMOS, 2010), na medida em que invade a rea de atuao, constitucionalmente estabelecida, dos demais poderes. Assim, questionamentos acerca da legitimidade de atuao do poder judicirio so levados tona, colocando em destaque a prpria existncia e legitimidade do controle de constitucionalidade das leis.De fato, existe o plano poltico que oscila entre posturas ativistas ou auto restritivas do poder judicirio, um exemplo disso a forada convivncia entre o domnio da maioria e a proteo das minorias que ameaa o equilbrio na separao de poderes e a possibilidade do judicirio suprir lacunas deixadas pela inrcia dos demais poderes ou at invalidar atos destes. cada vez mais comum nas decises do Supremo Tribunal Federal, a afirmao da sua funo contramajoritria, como elemento legitimador de certas decises, como por exemplo, o julgamento do RE 477.554 RgR, rel. min. Celso de Mello, DJe 26.08.11, que tratou das relaes homoafetivas[footnoteRef:5]. [5: Ementa do julgado:A FUNO CONTRAMAJORITARIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E A PROTEO DAS MINORIAS- A proteo das minorias e dos grupos vulnerveis qualifica-se como fundamento imprescindvel plena legitimao material do Estado Democrtico de Direito.- Incumbe por isso mesmo, ao Supremo Tribunal Federal, em sua condio institucional de guarda da constituio (o que lhe confere o monoplio da ltima palavra em matria de interpretao constitucional), desempenhar funo contramajoritria, em ordem a dispensar efetiva proteo s minorias contra eventuais excessos ou omisses da maioria, eis que ningum se sobrepe, nem mesmo os grupos majoritrios, autoridade hierrquico-normativa e aos princpios superiores consagrados na Lei Fundamental do Estado. Precedentes. Doutrina. (destaques no original)]

Trata-se de uma argumentao h tempos presente nas decises dos tribunais constitucionais europeus na Suprema Corte norte-americana e que vem sendo altamente discutida pelos doutrinadores e pesquisadores destes pases.Tocqueville (1977) visualizou bem a caracterstica contramajoritria do judicirio no sistema de separao de poderes norte-americano. Para ele, o judicirio e as atividades essncias para o funcionamento do judicirio passaram a formar uma nova espcie de aristocracia, cuja funo era exercer um papel antidemocrtico. Sobre o assunto, Robert A. Dahl questiona em um de seus artigos - Decision-making in a democracy:theSupremeCourt as a nationalpolicy-maker (1956, p. 284) se realmente se pode identificar este carter majoritrio, o que ele convm chamar de maioria legiferante, ou seja, a soma da maioria das duas casas do Congresso com a vontade polticas do presidente por meio da sano com a maioria nacional (a maioria da populao norte americana). Para Dahl seria ingnuo afirmar que a Suprema Corte combata solitariamente em favor dos fracos e indefesos e conclui que na realidade as vises polticas dominantes na Corte so, por muito tempo, desalinhadas das vises polticas dominantes entre as maiorias legiferantes dos Estados Unidos. Em consequncia, seria sumamente irreal supor que a Corte ficaria, por mais do que poucos anos no mximo, contra qualquer uma das grandes opes defendidas pela maioria legiferante, e que afinal, os presidentes geralmente indicam, em seus mandatos, alguns dos juzes do Tribunal e presidentes no so famosos por indicar juzes hostis as suas prprias vises sobre polticas pblicas. Jeremy Waldrom (2006, p. 1346-1406) tambm critica o carter contramajoritrio como legitimador da atuao dos tribunais e aponta contradies de autores como Dworkin (1989-1990, p. 324-346.). Uma das contradies apontadasfoi, inclusive, em boa medida antecipada pelo artigo Federalista LXXVIII:No se pode dar nenhum peso afirmao de que os tribunais podem, a pretexto de uma incompatibilidade, substituir as intenes constitucionais do legislativo por seus prprios desejos. (...) Caso de dispusessem a exercem a vontade ao invs de julgamento, isso levaria igualmente substituio do desejo do corpo legislativo pelo seu prprio. Se essa observao provasse alguma coisa, seria que no deve haver nenhum juiz alm do prprio legislativo (HAMILTON, MADISON, 2002).

Segundo Waldrom, a maior contradio est em se relativizar a importncia da deciso majoritria prpria ao parlamento na elaborao legislativa e, a seguir, pretender confiar a deciso, sobretudo em questes de moralidadepoltica, para uma Suprema Corte, um rgo judicial coletivo, cujas decises tambm so tomadas segundo o mesmo principio majoritrio, mas cujos membros no so democraticamente eleitos, nem sequer so, a rigor, responsveis perante o parlamento ou a sociedade. Dentro deste contexto de legitimidade ou no do poder judicirio, destaca-se a definio de ativismo judicial dada por Elival da Silva Ramos (2010, p. 308):Por ativismo judicial, deve-se entender o exerccio da funo jurisdicional para alm dos limites impostos pelo prprio ordenamento que incumbe, institucionalmente, ao Poder Judicirio fazer atuar, resolvendo litgios de feies subjetivas (conflitos de interesse) e controvrsias jurdicas de natureza objetiva (conflitos normativos). Essa ultrapassagem das linhas demarcatrias da funo jurisdicional se faz em detrimento, particularmente, da funo legislativa, no envolvendo o exerccio desabrido da legiferao (ou de outras funes no jurisdicionais) e sim a descaracterizao da funo tpica do Poder Judicirio, com incurso insidiosa sobre o ncleo essencial das funes constitucionalmente atribudas a outros Poderes.

Desta forma, em anlise nacional, o a ingerncia do poder judicirio, notadamente do Supremo Tribunal federal, no exerccio das funes dos demais poderes teria como fundamento primrio um dficit de atuao por parte do executivo e do legislativo e esta insuficincia que habilitaria o tribunal, por exemplo a determinar a realizao de um programa de sade pblica no priorizado pelo governo[footnoteRef:6], ou fixar uma norma geral e abstrata em matria no contemplada pelo Congresso Nacional[footnoteRef:7]. [6: Como decidido, por exemplo, no RE 716.777 AgR, rel. Min. Celso de Mello, DJe 15.05.13, ou no RE 271.286 AgR, rel. Min. Celso de Mello, DJ 24.11.2000.] [7: Como decidido, por exemplo, nos mandados de injuno sobre o direito de greve dos servidores pblicos: MI 670, rel. min. Gilmar Mendes; MI 708, rel. min. Gilmar Mendes; e MI 712 rel. min. Eros Grau.]

Entretanto, no podemos deixar de constar que a este respeito, a atuao de forma positiva do poder judicirio e a utilizao da ferramenta chamada mutao constitucional, j implicou em divergncias do sentido dado pela Corte, por exemplo, infidelidade partidria. O entendimento do Supremo Tribunal Federal nas decises proferidas nos MS 20.916[footnoteRef:8] e MS 20.927[footnoteRef:9] era de que no se exigia a imposio de fidelidade partidria para os detentores de cargos eletivos. Seu entendimento foi posteriormente modificado nas decises proferidas nos MS 26.602[footnoteRef:10],MS 26.603[footnoteRef:11] e MS 26.604[footnoteRef:12], que passou a admitir ser constitucional a perda de mandato em razo da infidelidade partidria. Referida mudana de entendimento, no seno um indicativo de que decises tomadas com base em uma mesma Constituio podem ser contraditrias, e se podem ser contraditrias so polticas e se so polticas cabem a um poder com competncia poltica tom-las. [8: MS 20.916. STF. Rel. min. Seplveda Pertence,DJ 26.03.93.] [9: MS 20.927. STF. Rel. min. Moreira Alves, DJ 15.04.94.] [10: MS 26.602. STF. Rel. min. Eros Grau, DJ 17.10.08.] [11: MS 26.603. STF. Rel. min. Celso de Mello, DJ 19.12.08.] [12: MS 26.604. STF. Rel. min. CrmenLcia, DJ 03.10.08.]

4. SEPARAO DE PODERES NOS ESTADOS UNIDOS

A separao de poderes nos Estados Unidos regulada pela Constituio Federal, que em seus Artigos 1o, 2o e 3o estabelecem as competncias do Legislativo, Executivo e Judicirio, respectivamente. Esse sistema de separao de poderes se aproxima bastante das construes tericas de Montesquieu e John Locke especialmente do primeiro, a quem Madison se referia como o orculo ao qual sempre se consulta , servindo de base para o adotado no Brasil com o advento da Repblica. Conquanto no haja nenhum dispositivo na Constituio norte-americana que expressamente preveja a separao de poderes, esta havida como implcita Carta Magna ianque. James Madison, em 8 de junho de 1789, props diversas emendas Constituio norte-america, sendo que na oitava haveria a previso expressa da separao de poderes, nos termos seguintes:

Que imediatamente aps o artigo 6o., seja inserido, como artigo 7o, as clusulas que abaixo seguem, a saber:Os poderes delegados por esta constituio, so apropriados ao departamento ao qual foram respectivamente distribudos; assim que o departamento legislativo nunca dever exercer os poderes conferidos ao executivo ou ao judicirio; nem o executivo exercitar os poderes conferidos ao legislativo ou ao judicirio; nem o judicirio exercer os poderes conferidos aos departamentos legislativo ou executivo.Os poderes que no foram delegados por esta constituio, nem por elas proibidos aos Estados, so reservados aos Estados respectivamente.(MADISON, 1789, p. 423-437)

De modo geral, portanto, a questo da separao dos poderes nos Estados Unidos bastante similar como ela se d no Brasil. Os pontos nodais do assunto, onde tambm se encontram as diferenas, est no sistema de checkingand balances adotado pelo sistema constitucional norte-americano e pelos limites que este impe s invases de competncias, tratadas naquela doutrina e jurisprudncia como usurpaes (encroachments).As principais construes pertinentes separao dos poderes, portanto, se encontram no judicial review, na vedao do line-item veto e na nondelegationdoctrine.

4.1. JUDICIAL REVIEW

Um dos mais importantes meios de freios e contrapesos no direito norte-americano, entre ns denominado controle difuso da constitucionalidade das leis, a judicial review permite ao judicirio determinar se uma dada lei constitucional ou no. Nesse sentido, ecoa a fala do Chief Justice Hughes, de que ns estamos sob a Constituio, mas a Constituio o que os juzes dizem que ela (apud FERGUSON, 1956, p. 59).Embora a jurisdio constitucional tenha sido proposta na Conveno por Madison e por Wilson, essa propositura nunca chegou a ser assinada por mais do que trs Estados convencionais. A idia deles era no sentido de outorgar aos juizes do Supremo o direito de julgar a constitucionalidade dos atos do Congresso(CLARK, BEARD, 1965, p. 46).No obstante a derrota da proposta na Conveno, a Suprema Corte se encarregou de demonstrar que o judicial review era inerente prpria Constituio. O surgimento da jurisdio constitucional norte-americana se deu em 1803, no deveras conhecido caso Marbury v. Madison, 5 U.S. 137 (1803), o qual fora adequadamente resumido por Charles Beard:

O caso teve origem em um requerimento de Marbury Suprema Crte, solicitando um mandamus que obrigasse o secretrio de Estado, Madison, a comission-lo juiz de Paz do Distrito de Colmbia cargo para o qual fra nomeado nos ltimos dias da administrao Adams. Ao assumir a presidncia, Mr. Jefferson, irritado com a srdida precipitao dos federalistas em se apossar do maior nmero possvel de cargos pblicos, recusou-se a comissionar Marbury. Na primeira parte do parecer, Marshall discute se Marbury teria o direito legal de exigir que lhe dessem posse, e se o remdio seria o mandamus. As concluses foram afirmativas, mas a concesso do mandamus foi denegada, pois a autoridade conferida Suprema Crte pelo Ato Judicirio, de expedir mandamus, no era autorizada, no caso, pela Constituio.(BEARD, 1965, p. 115)

A partir dessa deciso, ficou cristalizado o entendimento de que as leis se sujeitam a um controle de constitucionalidade, pelas Cortes, que ocorre nos casos concretos postos apreciao dessas. A diferena que uma deciso da Suprema Corte vincula todo o pas, ao passo que a deciso de uma Corte inferior vinculada apenas a rea submetida sua jurisdio.De toda sorte, importa dizer que a judicial review tem um precedente mais antigo, em deciso de Coke, na Inglaterra, quando declarou a nulidade de norma do Parlamento britnico que dera poder ao Real Colgio de Mdicos de multar os seus membros, e ser preso caso no as pagassem:

O Real Colgio de Mdicos (CollegeofPhysicians) tinha poderes, segundo um estatuto do Parlamento, de multar os membros que desrespeitassem suas regras. O Dr. Bonham foi multado em dez libras, no pagou e foi preso, em 1610. A multa era dividida entre o Colgio e a Coroa. Interps ao por deteno injusta perante o Tribunal do Rei, presidido pelo grande jurista Coke, do qual participaram os juzes Warburton e Daniel. O tribunal deu-lhe ganho de causa, firmando um princpio fundamental: o estatuto que dava poderes desta natureza ao Real Colgio era nulo, porque ningum pode ser juiz e parte na mesma causa, o que era contrrio ao direito comum e razo natural. O Real Colgio no podia ser o juiz, proferir o julgamento, fazer prender o ru e ter parte na multa. "Assim sendo, se qualquer ato do Parlamento der a algum o direito de julgar de quaisquer questes que lhe forem apresentadas dentro dos seus domnios, no poder julgar ao alguma em que seja parte, porque, conforme ficou dito acima, iniquum est aliquemsuae rei esse judicem". (POUND, 1965)

Apenas em mais um caso, Dred Scott v. Sandford, 60 U.S. 393 (1857), exerceu a Suprema Corte estadunidense o judicial review de leis do Congresso antes da Guerra Civil. Posteriormente a esta, foram diversas as ocasies, notadamente em casos pertinentes Teoria da no-delegao, como se ver abaixo.Sobre Dred Scott, tambm um deveras conhecido caso, no qual a Suprema Corte, liderada por Taney, determinou que afrodescendentes no podiam ser cidados norte-americanos, razo pela qual no tinham capacidade processual, a judicial reviewfoi aplicada para decretar que o Compromisso do Missouri era inconstitucional. O referido Compromisso estabelecia a proibio da escravido acima do paralelo 36o.30, com exceo do Estado do Missouri. Conforme a Suprema Corte de ento, o poder constitucional do Congresso de estabelecer as regras para os Territrios (PropertyClause) se limitava aos Territrios existentes quando da ratificao da Constituio. Assim, o Compromisso do Missouri era inconstitucional e Dred Scott permaneceu um escravo.

4.2. LINE-ITEM VETO

A Constituio dos Estados Unidos conta com uma clusula denominada PresentmentClause. A dita clusula estabelece o procedimento legislativo, que deve ser bicamental, e o envio de uma lei aprovada sano presidencial. Embora o texto da PresentmentClauseno seja claro a respeito, o entendimento sempre foi o de que o Presidente deve sancionar ou repelir uma norma submetida a seu crivo em sua integralidade, sem poder vetar apenas partes da mesma. A possibilidade de vetar items de uma lei equivaleria a permitir ao Presidente legislar. Assim, ao contrrio do Brasil, a Constituio dos Estados Unidos no autoriza os vetos parciais.Dada a omisso do texto constitucional, os Presidentes dos Estados Unidos sempre ambicionaram a aprovao de legislao que lhes conferisse o poder de veto parcial sobre as leis, o chamado line-item veto. O Congresso nunca atendeu a esses pedidos, no obstante a quase totalidade dos Governadores goze de prerrogativa do tipo. Apenas em 1996 foi aprovado o Line Item Veto Act, conferindo ao Presidente (ento Bill Clinton) esse poder no tocante a certos gastos autorizados pelo Congresso.Em que pese a presidncia Clinton ser democrata, a legislao foi aprovada por um Congresso eminentemente republicano, tendo sido proposta pelo Senador Bob Dole, com o fito de controlar os gastos federais localizados em determinados distritos, com fins predominantemente locais, conhecido como porkbarrelspending. Curiosamente, Bob Dole fora o adversrio de Clinton nas eleies de 1996.O Senador Byrd, democrata, acompanhado de outros trs senadores e dois membros da Casa dos Representantes, ingressaram com uma ao visando obter nela a declarao de inconstitucionalidade do Line Item Veto Act. Embora tenham obtido um provimento favorvel na Corte Distrital, a Suprema Corte reverteu a deciso, alegando que os autores no demonstraram os danos que sofreram, requisito indispensvel para a legitimidade processual no direito estadunidense. O caso foi nomeado Raines v. Byrd, 521 U.S. 811 (1997), sendo Raines o Diretor do Gabinete de Administrao e Oramento. Em 1998, o Line Item Veto Act foi novamente tema de aes judiciais, por seu uso no Balanced Budget Act e no TaxpayerReliefAct, ambos de 1997, tendo sido as aes consolidadas sob o nome Clinton v. City of New York, 524 U.S. 417. A Corte Distrital de Columbia decidiu contra o Presidente, entendendo que o Line Item Veto Act era inconstitucional, por ferir a PresentmentClause. O caso seguiu para a Suprema Corte, que entendeu que, apesar de a Constituio ser silente no que toca ao Item Line Veto, o silncio a equivaleria a uma proibio expressa.Com esse entendimento, a Suprema Corte afirmou um critrio de separao de poderes que impede o Presidente dos Estados Unidos de vetar parcialmente uma lei, no obstante diversos Governadores tenham essa prerrogativa. Assim, no tocante feitura das leis, h uma separao mais rgida do que a vigorante no Brasil.

4.3. NONDELEGATION DOCTRINE

O conceito de nondelegationdoctrine deveras simples. O Legislativo no pode transferir a outro departamento (poder) a competncia para criar leis. A gnese da referida doutrina est em John Locke, que asseverou:

Quarto, o legislativo no pode transferir o poder de fazer leis a ningum mais: pois ele sendo seno um poder delegado pelo povo, eles que o tm no podem transfer-lo para outros. Apenas o povo pode apontar a forma da comunidade, o qual o fazem constituindo o legislativo, e apontando em cujas mos aquele deve estar. E quando o povo tenha dito, Ns nos submetemos s regras, e seja governado pelas leis feitas por tais homens, e em tais formas, ningum mais pode dizer que outros homens faro as leis para eles; nem pode o povo ser vinculado por nenhuma lei, a no ser as que so decretadas por aqueles que tenha escolhido, e autorizado a fazer leis por ele. O poder do legislativo, sendo derivado do povo por uma concesso e instituio voluntria positiva, no pode ser outra coisa que no aquilo que aquela concesso positiva transmitiu, a qual sendo apenas para fazer leis, e no para fazer legisladores, no pode o legislativo ter poder para transferir sua autoridade de fazer leis, e a por em outras mos.(LOCKE, 2014, p. 155-156)

Do ponto de vista estritamente positivo, embora a Constituio norte-americana no vede de forma expressa a delegao de poderes legislativos aos outros poderes, a redao da Seo 1a. do Artigo 1o. da Constituio permite intuir essa vedao. que o mencionado dispositivo informa que todos os poderes legislativos nela concedidos o so ao Congresso norte-americano. Todavia, a Suprema dos Estados Unidos h muito reconhece a possibilidade de delegao de poderes pelo Congresso.Em 1825, a Suprema Corte dos Estados Unidos enfrentou a questo da possibilidade de delegao de poderes do Congresso em Wayman v. Southard, 23 U.S. 1 (1825). Nessa ocasio, John Marshall liderou a Corte ao entendimento de que o Congresso poderia, por meio de uma norma geral, deixar os detalhes queles que fossem agir sob a referida norma geral(MARSHAL, 1825). Assim, prevaleceu o entendimento de que, apesar da regra constitucional mencionada acima, o Congresso dos Estados Unidos podia delegar os detalhes. J em Field v. Clark, 143 US (1892), afirmou a Corte que o Congresso no poderia delegar ao Presidente o poder de fazer leis, mas sim de discricionariedade quanto aos fatos [previstos na lei].A delegao ampla foi questionada efetivamente pela Suprema Corte dos Estados Unidos apenas em 1935, no caso PanamaRefiningCompany v. Ryan, 293 U.S. 388 (1935). No caso, foi atacada a Seo 9(c) do National Industrial Recovery Act, que autorizava o Presidente a proibir o transporte de petrleo e derivados em comrcio exterior e interestatal. Conforme a Suprema Corte estabeleceu no referido caso, o Congresso no privado de flexibilidade e praticidade pela Constituio, de modo que cabe a ele determinar as polticas pblicas e estabelecer os parmetros, ao passo que instrumentalidades especficas fariam as regras subordinadas conforme os limites prescritos pelo legislativo e decidiriam a quais fatos essas polticas se aplicariam.No mesmo ano, a Suprema Corte enfrentou outro caso de inconstitucionalidade derivado da mesma lei, a saber, SchechterPoultry Corporation v. United States, 295 U.S. 495 (1935). De acordo com o National Industrial Recovery Act, a prpria indstria poderia adotar Cdigos de Concorrncia, e ao Presidente restaria apenas firm-los. Conforme a Suprema Corte, houve delegao inconstitucional do poder de legislar. In casu, como apontado pelo Chief Justice Hughes, possvel a delegao de poderes do legislativo para instrumentalidades, desde que dentro de limites estabelecidos.Em que pese a estranheza (aparente) da construo lingustica, a nondelegationdoctrine no se presta somente a impedir uma usurpao indevida do executivo quanto aos poderes do legislativo, mas tambm a impedir que o prprio legislativo delegue a si mais poderes do que poderia. Esta foi a concluso da Suprema Corte no caso INS v Chada, 462 U.S. 919 (1983).No referido e conhecido caso, Chada era um imigrante indiano nascido no Qunia, de passaporte britnico, que, admitido legalmente nos Estados Unidos, ali permanecera mais tempo do que permitiria seu visto. Chamado a explicar ao Servio de Naturalizao e Imigrao se tinha motivos para ter permanecido alm do que seu visto permaneceria, foi-lhe oportunizado, conforme autorizado pelo ImmigrationandNationalityAct, a demonstrar porque no deveria ser deportado. Por ter residido continuamente nos Estados Unidos por sete anos, ter bom carter, e sofrer dificuldades extremas caso deportado, Chada teve sua deportao suspensa, o que foi comunicado ao Congresso (Seo 244(c)(1) da Lei).O Subcomit Judicirio para Imigrao, Cidadania e Direito Internacional da Casa de Representantes aprovou uma resoluo negando que Chada e cinco outros estrangeiros preenchiam os requisitos legais de permanncia, o que foi aprovado no Comits Judicirio. Aprovado sem debate na Cmara, a deciso no foi enviada ao Senado, pois a dita resoluo no foi considerada lei. Chada, ento, desafiou a deciso da Casa de Representantes, e o caso chegou Suprema Corte.O Juiz Burger, relatando o caso, deixou claro que embora as provises de veto legislativo a decises de agncias do governo estavam se tornando comuns, elas no podiam sacrificar a exigncia do bicameralismo e a PresentmentClause todas as leis devem ser levadas sano ou veto presidencial, o qual notadamente funciona como um freio e contrapeso ao poder do legislativo. Assim, considerando que sem a deciso da Cmara dos Representantes, que foi declarada inconstitucional, Chada teria sido autorizado a permanecer nos Estados Unidos, manteve a Suprema Corte a validade da deciso tomada pelo Servio de Naturalizao e Imigrao, permanecendo Chada nos Estados Unidos.Quando Jimmy Carter era Presidente, ele e o governo do Ir chegaram a um acordo que obrigava os Estados Unidos a porem fim a todos os processos judiciais de cidados norte-americanos contra o Ir, que deveriam ser referidos a um Tribunal Arbitral especial. A empresa Dames&Moore tentou buscar junto ao judicirio valores que entendia devidos contra o Ir e a Agncia Atmica Internacional, por seus servios de estudos de locais para a instalao de uma usina de energia nuclear.Ao decidir o caso (Damesand Moore v. Reagan, 453 U.S. 654 (1981)), a Suprema Corte determinou que o Congresso no pode antecipar e legislar sobre cada ao que o Presidente possa ter que tomar ou cada situao em que venha a se encontrar. Essa falha em delegar autoridade no implica desaprovao congressual de atos praticados, especialmente quando h histrico legislativo nos quais se produziu leis (IEEPA e HostageAct) que aquiesceram com condutas semelhantes.Em 1984, foi criada, sob a autoridade do SentencingReformAct, a Comisso de Sentena dos Estados Unidos, encarregada de criar Manuais de Sentena para os crimes federais. que, por muito tempo, os juzes federais gozavam de grande latitude para determinar as penas, mesmo que estas viessem estabelecidas nas leis. O Congresso, em geral, determinava o mximo da pena, deixando ao juiz grande discricionariedade, o que levava a enormes disparidades e incertezas quanto s penas. Em 1987, John Mistretta foi indiciado por trs acusaes referentes venda de cocana, tendo se declarado culpado em uma delas e o governo retirado as duas outras. Mistretta, porm, apelou da deciso que o condenou a 18 meses seguidos de 3 anos de soltura supervisionada, alegando a inconstitucionalidade dos Manuais de Sentena, por entender que a delegao congressual para a Comisso de Sentena fere a doutrina da no-delegao. O caso chegou Suprema Corte, onde foi considerada a mencionada delegao como sendo constitucional (Mistretta v. United States, 488 U.S. 361 (1989)).Para a Suprema Corte, desde que o Congresso estabelea um princpio inteligvel a ser seguido pela pessoa a quem se delega poder legislativo, a delegao vlida. Assim, o Congresso precisa apenas delinear a poltica pblica a ser seguida, a autoridade a quem se delegam poderes e os limites da delegao. Em Mistretta, a Suprema Corte entendeu que a delegao da fixao de sentenas a um corpo de expertos era apropriada, e que o fato de a lei ter posto a Comisso de Sentena como pertencente ao Judicirio no a tornava uma Corte nem a conferia poderes judiciais, de forma que mera anomalia ou inventividade no feriam a separao de poderes. Haveria violao da separao de poderes apenas se a Comisso tivesse recebido poderes que seriam adequadamente performado pelo Executivo ou Legislativo ou que ferisse a integridade do Judicirio, o que no era a situao. Nada impediria que o Judicirio exercesse a autoridade de fazer regras, se a ele conferida pelo Congresso, como quando autorizou a prescrio de regras de procedimento para cortes inferiores em casos de falncia.Assim, o sistema constitucional norte-americano autoriza certas usurpaes de um poder sobre o outro, nos limites estritos em que a Suprema Corte compreende a nondelegationdoctrine.

5. CONCLUSO

Muitos so os textos e pensamentos que transmitem uma ideia de mitigao da teoria da separao de poderes diante da concesso a um poder, de funo precpua de outro. Estaria se falando em uma suposta relativizao da teoria da separao dos poderes, divorciada da relao constitucional, bem como de uma supremacia de poderes em detrimento de outros, uma concluso um tanto quanto precipitada e frgil, em que pese tida como indiscutvel pela maior parte da doutrina brasileira.Em linhas gerais, o atual cenrio constitucional revela a necessidade de releitura da doutrina da separao de poderes e sua adaptao desde seus contornos iniciais delineados por Montesquieu, at as atuais necessidades dos Estados, notadamente, o Estado brasileiro e sua constituio permeada por direitos sociais e normas programticas. Participam, ento, desta rdua tarefa de adaptao os poderes executivo, legislativo e judicirio que juntos devero debater acerca da clara definio do papel de cada um desses rgos e sua influncia na tomada de decises polticas, em prol da eficincia institucional e de uma adequada e otimizada gesto do Estado.O executivo, com seu crescimento e consequente ampliao das atividades governamentais no domnio econmico e social, revela, na atual conjuntura que aqui se busca identificar, que a dinmica constitucional no configura uma preeminncia do executivo sobre o poder legislativo, e sim uma cooperao de ambos os poderes na concretizao das polticas governamentais, ou seja, dos planos de governo de uma agenda comum e eficaz, altamente possvel diante da prtica efetiva de um dilogo constitucional.Assim como aconteceu no sculo XIX, quando as novas exigncias da sociedade obrigaram o presidente a tomar decises mais frequentes e rpidas sobre diversos assuntos, o que culminou na atribuio decisiva ao presidente da chefia do estado e do governo, hoje, o contexto poltico e social demanda a existncia de um esforo conjunto objetivando aproveitar todos os recursos de um Estado para que os governantes, em posse de instrumento hbil, possam decidir com menos erros e mais eficincia, fazendo com que o estado se torne cada vez mais forte.Fala-se, ento em um presidencialismo de coalizo, um sistema presidencial de governo em que o modo de governar se d atravs da coalizo, ou seja, de um acordo ou aliana parlamentar mais amplo entre legislativo e executivo, gerando consequente apoio condicionado do legislativo na consecuo dos planos de governo do executivo.No plano da crise legislativa, importante se faz a meno das reformas legislativas feitas em diversos pases do globo, buscando, particularmente, a organizao e diminuio da quantidade de leis, com destaque para o programa Better Regulation, de autoria da comunidade europeia, e do US Code, nos Estados Unidos, em mbito federal.Isso porque, conforme mencionado, seja pela deficincia tcnica, de legitimidade ou por verdadeira m-f dos parlamentares, o legislativo brasileiro precisa ser repensado, sob pena de comprometimento do prprio Estado Democrtico de Direito. Comprometimento democrtico que dentro da seara do poder judicirio pode ser degenerado em verdadeira judiocracia. Uma democracia togada, fundamentada na garantia das minorias e na defesa da prpria democracia. Uma distenso entre poderes pautada pela intensificao na concretizao de direitos fundamentais e nas decises que afetam o controle de polticas pblicas. O ativismo judicial testa os limites e as consequncias da mencionada teoria da separao de poderes, se traduzindo em invaso de rea de atuao, constitucionalmente estabelecida, a outros poderes. Assim, questionamentos acerca da legitimidade de atuao do poder judicirio so levados tona, colocando em destaque a prpria existncia e legitimidade do controle de constitucionalidade das leis.Questionamentos estes, que no partilham da exclusividade brasileira e so suscitados inclusive nos Estados Unidos da Amrica, no qual as principais construes pertinentes separao dos poderes citadas foram relacionadas ao judicial review, vedao do line-item veto e nondelegation doctrine.

6. REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

6.1. OBRAS

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6.2. DECISES JUDICIAIS

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