Feições do povo brasileiro em Gota d'água

download Feições do povo brasileiro em Gota d'água

of 16

description

Artigo publicado na revista Línguas & Letras, em: http://e-revista.unioeste.br/index.php/linguaseletras/article/view/8687

Transcript of Feições do povo brasileiro em Gota d'água

  • Revista Lnguas & Letras Unioeste Vol. 14 N 27 Segundo Semestre de 2013

    ISSN: 1981-4755

    FEIES DO POVO BRASILEIRO EM GOTA DGUA

    FEATURES OF THE BRAZILIAN PEOPLE IN GOTA DGUA

    Sullen Rodrigues Ramos da Silva

    Luiz Antonio Mousinho Magalhes

    RESUMO: O presente trabalho tem como objetivo analisar elementos da pea Gota dgua, escrita por Chico Buarque e Paulo Pontes a partir de roteiro televisivo de Oduvaldo Vianna

    Filho, baseado na tragdia Media, de Eurpedes. A obra preserva a trama central do texto

    grego, mas apresenta aspectos da realidade brasileira e forte contedo social, tratando de

    temticas que se mantm bastante atuais, como o direito moradia, a situao de dependncia

    da classe pobre, a busca pela subsistncia e a manuteno do poder de ao e de deciso nas

    mos daqueles que detm o capital. No enredo, recriado no subrbio carioca, surge a

    representao do pobre trabalhador brasileiro, sendo a pobreza abordada a partir de um perfil

    distinto daquele difundido por obras recentes da literatura nacional, nas quais se ressalta outra

    faceta das classes sociais mais baixas, vinculando-as criminalidade e violncia, bem como da

    representao ainda mais comum, com nfase na origem negra ou nordestina. Para fins de

    anlise, norteamos nossas ponderaes, sobretudo, por estudos de Antonio Candido (1970, 1989

    e 2006) e Roberto Schwarz (1982 e 2000), articulando texto artstico e srie social via categoria

    personagem, com caracterizao, a priori, atravs das relaes de trabalho. Nossa abordagem

    recai no sobre Joana, que representa Media, protagonista da tragdia grega, mas,

    especialmente, a partir de Egeu, personagem secundrio na pea de Eurpedes, que, entretanto,

    exerce papel importante na verso moderna, sendo imprescindvel no despertar de reflexes

    sobre a sociedade brasileira. Em contraponto, observamos o empresrio Creonte Vasconcelos,

    que representa a fora do capital, e Jaso de Oliveira, personagem dbio, aquele que sofre mais

    transformaes durante a trama, oscilando entre o universo miservel de sua origem e o poder

    econmico, ascendendo socialmente, tornando-se produto da indstria cultural e levando-nos a

    pensar sobre o aproveitamento dos mais capazes pelo sistema capitalista.

    PALAVRAS-CHAVE: Gota dgua; pobreza; personagem.

    ABSTRACT: This paper aims to analyze elements of the play Gota dgua, written by Chico

    Buarque and Paulo Pontes from televised script by Oduvaldo Vianna Filho, based on the

    tragedy Euripides Medea. The work preserves the central plot of the Greek text, but presents

    aspects of Brazilian reality and strong social content, dealing with themes that remain fairly

    current, such as right to housing, the situation of dependence of the poor class, the search for

    survival and maintenance power of action and decision in the hands of those who hold the

    capital. In the plot, recreated in suburban Rio, the representation of poor Brazilian workers

    emerges, with poverty being approached from a different profile than that spread by recent

    works of national literature, in which another facet of the lower social classes is highlighted,

    linking them to crime and violence, as well as the representation even more common, with an

    emphasis on black or northeastern origin. To this analysis we have purposed our considerations

    are guided primarily by studies of Antonio Candido (1970, 1989 and 2006) and Roberto

    Schwarz (1982 and 2000), joining artistic text and social series via character category, with

    characterization, a priori, through labor relations. Our approach lays not on Joana, representing

    Medea, the protagonist of that Greek tragedy, but especially from Egeu, minor character in the

    Euripides play, who, however, plays an important role in that modern version, being imperative

    in the wake of reflections of Brazilian society. On the other hand, we have observed that the

    entrepreneur Creonte Vasconcelos, who represents the power of capital, and Jaso de Oliveira, a

    dubious character, who suffers more transformations during the plot, hesitating between the

  • Revista Lnguas & Letras Unioeste Vol. 14 N 27 Segundo Semestre de 2013

    ISSN: 1981-4755

    miserable universe of his origin and the economic power, rising socially, becoming a product of

    the cultural industry and leading us to think about the use of the most capable people by the

    capitalist system.

    KEYWORDS: Gota dgua; poverty; character.

    Sem dvida, o capital no tem ptria, e esta

    uma das suas vantagens universais, que o fazem

    to ativo e irradiante. Mas o trabalho que ele

    explora tem me, tem pai, tem mulher e filhos,

    tem lngua e costumes, tem msica e religio.

    Tem uma fisionomia humana que dura enquanto

    pode. E como pode, j que a sua situao de raiz

    sempre a de falta e dependncia. (Alfredo Bosi,

    1982).

    Mais do que recriar a trama de Media1 no subrbio carioca, Chico Buarque e

    Paulo Pontes concebem o texto dramtico de Gota dgua uma tragdia brasileira,

    que estreou no Rio de Janeiro em 1975, a partir de um contedo social historicamente

    determinado e referenciado pelos autores em prefcio. O enredo mtico, expresso no

    conflito entre Joana e Jaso2, parece servir de pretexto para o desenvolvimento da ao

    dramtica, destacando-se a vida e as preocupaes dos moradores da comunidade Vila

    do Meio-Dia.

    A expresso tragdia brasileira, que subtitula a pea, no remete unicamente

    ao drama grego. Sem nos determos no debate conceitual e mesmo percepo da

    estrutura do gnero, que requerem focalizao especfica, indicamos ser possvel, a

    partir da concepo moderna do trgico (WILLIAMS, 2002), vislumbr-lo em maior

    abrangncia, abarcando as aes permeadas pela explorao e pobreza. O ttulo, Gota

    dgua, no somente reproduz o nome do samba composto por Jaso, que lhe confere

    reconhecimento social e, consequentemente, a possibilidade de ascenso, mas enfoca a

    situao limite qual so submetidos os mais pobres.

    Buarque e Pontes (2006) descrevem como intuito da pea levar o povo para o

    palco, povo que, conforme observam, havia sumido das produes culturais da

    1 Gota dgua foi criada a partir de roteiro televisivo de Oduvaldo Vianna Filho escrito com base na

    tragdia grega Media, de Eurpedes, esta encenada pela primeira vez em Atenas, em 431 a.C. Ver:

    EURPEDES. Media. Trad. Mrio da Gama Kury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1991. 2 Joana e Jaso, respectivamente, Media e Jso na verso clssica, moravam juntos h dez anos e

    tiveram dois filhos. Quando Jaso alcana o sucesso com a composio de um novo samba, abandona

    Joana e torna-se noivo da filha de Creonte (rei na tragdia euripediana e dono das casas do conjunto

    habitacional na recriao brasileira, representao mxima do poder local em ambas). Como no drama

    grego, a situao tem um desenlace trgico com as mortes das crianas provocadas por Joana enquanto

    vingana contra Jaso e, apenas na verso brasileira, com o suicdio da protagonista.

  • Revista Lnguas & Letras Unioeste Vol. 14 N 27 Segundo Semestre de 2013

    ISSN: 1981-4755

    poca, estando presente apenas nas estatsticas e nos noticirios da imprensa. Eles

    propem-se a discutir os rumos do capitalismo no Brasil dirigido por um governo

    autoritrio, no contexto do chamado milagre econmico, com o acmulo de capital

    baseado na explorao das classes baixas acentuando-se cada vez mais, e tomando

    forma um novo momento da hegemonia capitalista no qual os mais capazes e talentosos,

    os detentores de conhecimento e os formadores de opinio, passavam a ser aproveitados

    pelo sistema3.

    Reconhecendo a obra literria como estrutura autnoma, ser por meio da

    narrativa, e no apenas de tais ponderaes, que iremos inferir o contexto social e

    histrico indiciado no texto dramtico, pois entendemos que

    a ligao entre a literatura e a sociedade percebida de maneira viva

    quando tentamos descobrir como as sugestes e influncias do meio se

    incorporam estrutura da obra de modo to visceral que deixam de ser propriamente sociais, para se tornarem a substncia do ato criador.

    (CANDIDO, 1989. p. 163-164).

    O direito moradia, a situao de dependncia da classe pobre e o poder de ao

    e de deciso nas mos de quem detm o capital esto contidos no cerne de Gota dgua.

    Com a abordagem da pobreza, surge o retrato do pobre trabalhador brasileiro, perfil

    distinto daquele difundido por obras mais recentes da literatura nacional nas quais se

    enfatiza outra faceta das classes sociais mais baixas, vinculando-as criminalidade e

    violncia.

    Embora estejam presentes no texto dramtico ideias bastante disseminadas sobre

    as perspectivas de futuro dos mais pobres resumirem-se morte ou priso4 e a respeito

    da existncia de poucos caminhos para a ascenso social5, s h representao de

    violncia (agresso de Jaso a Joana) e morte (infanticdio e suicdio cometidos por

    Joana) resultantes de motivao passional.

    Na Vila do Meio-Dia, quase todos sobrevivem por meio de afazeres espordicos,

    esforando-se para garantirem a subsistncia e quitarem as prestaes de suas casas,

    valores em crescimento gradativo ao sabor de juros e correes exorbitantes. Isto

    3 Os autores referem-se a tais objetivos no prefcio do livro. Ver: BUARQUE, Chico; PONTES, Paulo.

    Gota dgua. 35 ed. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2006. p. 9-19. 4 XUL - Quem nasce nesta vila no tem mais sada, / t condenado a s sair no rabeco / ou no

    camburo... (BUARQUE; PONTES, 2006, p. 41). 5 AMORIM Samba e futebol / so a salvao da lavoura. Duvido / que exista outra maneira de fodido

    / brasileiro arranjar lugar ao sol (BUARQUE; PONTES, 2006, p. 76).

  • Revista Lnguas & Letras Unioeste Vol. 14 N 27 Segundo Semestre de 2013

    ISSN: 1981-4755

    acarreta uma situao na qual os moradores que, com muito esforo, pagaram suas

    mensalidades durante anos, e at j saldaram o valor real de suas casas, ainda devem um

    grande montante a Creonte Vasconcelos, proprietrio dos imveis. Por esta razo, os

    inquilinos correm o risco de despejo, o que depende exclusivamente da vontade do

    empresrio, como sucede a Joana, que seria retirada de casa com o uso de fora policial

    antes de ter conseguido um dia de prazo para mudar-se com os filhos.

    A anlise dos personagens, categoria essencial ao teatro, por meio do que

    revelam sobre si, de suas aes e daquilo que expem a respeito dos demais, nortear

    nossas ponderaes sobre a obra. Baseando-nos nas relaes de trabalho, possvel

    comear a caracteriz-los e distingui-los. Galego, estrangeiro e dono de botequim, e

    Egeu, dono de uma oficina de eletrnicos, so profissionais autnomos, conduzindo

    negcios prprios, embora faam parte do ncleo pobre da comunidade. Creonte e sua

    filha Alma situam-se em polo oposto, enquanto classe proprietria, detentora do poder

    econmico. Jaso a representao do indivduo dotado de talento que se destaca dos

    demais, sendo aproveitado pela indstria cultural e conduzido durante a trama para

    tornar-se parte do ncleo burgus. Os outros personagens, que equivalem maioria,

    esto margem do mercado de trabalho, atuando em quaisquer ocupaes para

    honrarem seus compromissos financeiros.

    BOCA Eu sou esparro de boate de turista, carregador de usque de contrabandista,

    vice-camel, testemunha de punguista,

    sou informante de polcia, chantagista,

    mas vigarista nenhum diz que eu no presto

    desde que, como todo cidado honesto,

    no fim do ms pago as minhas contas vista

    (BUARQUE; PONTES, 2006, p. 37).

    JOANA Escuta, voc sabe, eu tou na lona e trabalhar fora no vexame

    Lavo privada, coso pra madame,

    aperto parafuso ou vou pra zona

    Seja como for, tenho que deixar

    eles com algum...

    (BUARQUE; PONTES, 2006, p. 97).

  • Revista Lnguas & Letras Unioeste Vol. 14 N 27 Segundo Semestre de 2013

    ISSN: 1981-4755

    As descries de ofcios feitas por Boca Pequena e por Joana, respectivamente,

    recordam-nos as reflexes de Laura Vergueiro (1982) sobre a importncia dos vadios6

    na sociedade colonial escravista em que serviam como "pau para toda obra", realizando

    uma srie de tarefas alternativas que no podiam ser cumpridas pela mo de obra

    escrava, nem pelos homens laboriosos (VERGUEIRO, 1982, p. 29).

    De maneira anloga, em Gota dgua vemo-nos diante da realidade de uma

    populao pobre na qual, devido ao agravamento de uma j precria situao financeira,

    aqueles que no possuem qualificao profissional tambm so aproveitados pelo

    capital, mas de maneira diversa dos que tm formao ou destacam-se por talento

    individual: marginalizados, tornam-se mo-obra para o desempenho de atividades

    subalternas renegadas pela maioria.

    A situao de pobreza, porm, alm de no ser relacionada marginalidade

    tambm no passa, de maneira direta, pela comum representao literria do pobre

    brasileiro vinculada sua origem negra ou nordestina. Alm de Galego, identificado

    como estrangeiro, inclusive com forte sotaque, a respeito dos demais moradores da Vila

    o que h apenas um elemento que pode ser considerado indicial, mas no definitivo: a

    umbanda, religio de procedncia africana, ainda hoje alvo de preconceito,

    evidenciada na ao dramtica como pertencente ao cotidiano dos mais pobres.

    Quem orienta nossa percepo sobre o recorte social destacado na obra no

    Joana, a protagonista da trama mtica emprestada dos escritos de Eurpedes, mas Egeu,

    personagem aparentemente secundrio, conduzindo-nos s reflexes sobre a sociedade

    brasileira propostas pelos autores. Padrinho de um dos filhos de Joana e Jaso, portanto,

    compadre do casal, marido de Corina, melhor amiga da protagonista, de modo diverso

    ao Egeu da verso clssica, que surge deslocado do enredo7, mestre Egeu desempenha

    papel importante na trama principal, por ter vnculo e acesso ao casal mesmo aps a

    separao, quando esto em conflito. Sua funo central, porm, revela-se na ao

    paralela, que culmina com a manifestao dos moradores pelo no pagamento das

    prestaes e a defesa da permanncia de Joana na comunidade.

    6 Apropriamo-nos aqui, por aproximao, da concepo de Antonil Coelho, citada pela autora, segundo a

    qual vadio o indivduo no inserido na estrutura da produo colonial, e que pode, de um momento para outro, ser aproveitado por ela (VERGUEIRO, 1982, p. 28). 7 O fato criticado por Aristteles inclusive com meno direta forma como Egeu, rei de Atenas, surge

    na tragdia de Eurpedes, fazendo uma visita casual a Media, na qual acaba por comprometer-se a

    abrig-la, dando-lhe novo nimo para seguir com seus planos de vingana. [...] as fbulas no se devem compor de partes irracionais; tanto quanto possvel, no deve haver nelas nada de absurdo, ou ento que

    se situe fora do enredo. (ARISTTELES, 2005, p. 48).

  • Revista Lnguas & Letras Unioeste Vol. 14 N 27 Segundo Semestre de 2013

    ISSN: 1981-4755

    A dedicao de Egeu ao trabalho indicada j na encenao, sendo sua oficina

    um dos sets principais da pea, na qual o personagem sempre se encontra no exerccio

    de seu ofcio. Sua devoo ao labor caracterstica referida nos dilogos, como na fala

    de Boca Pequena, um de seus vizinhos: Faz uns dezoito anos que eu passo na sua porta

    e mestre Egeu est sempre trabalhando (BUARQUE; PONTES, 2006, p. 36). Em um

    dos dilogos travados com Jaso, deparamo-nos com um Egeu que busca crescer por

    esforo prprio, negando-se a recorrer ao auxlio de instituies financeiras, prtica

    comum na dcada 1970, de intensa industrializao do pas movida a partir de

    emprstimos de capital estrangeiro, e na qual ocorreu um gradativo descontrole sob o

    endividamento externo, desembocando em crise na dcada seguinte, agravada com o

    aumento das taxas internacionais de juros (GRASEL; PEREIRA, 2003).

    JASO Puxa, mestre, o senhor cismento Eu j lhe falei pra levantar

    grana num banco. A moderniza

    a oficina, pe pra trabalhar

    uns empregados e nem precisa

    forar a vista. Fica ali s

    na administrao... (Levantando.)

    EGEU (Com autoridade.) Presepada, menino... Tira esse palet

    e senta a. Que banco que nada!

    (BUARQUE; PONTES, 2006, p. 67).

    O crescimento atravs do trabalho que, no caso de mestre Egeu, garantiu-lhe a

    mnima estabilidade de ser dono de seu prprio negcio, parece pouco mesmo aos olhos

    dos que vivem em situao financeira pior, como o caso de Amorim. Apesar da vida

    apertada, com prestaes a pagar, em que Estela, sua esposa, compra fiado no botequim

    certamente menos que o essencial8, Amorim fala com desdm sobre a posio social de

    Egeu ao defender a opo de Jaso abandonar Joana para tornar-se noivo da filha de

    Creonte: AMORIM Trepado nas ancas de me Joana ele ia / Ser o qu? Outro

    mestre Egeu? Aqui, garanto: / qualquer um, para sair desta merda, vendia / a me, a

    mulher, pai, filho e Esprito Santo (BUARQUE; PONTES, 2006, p. 42).

    8 Em uma das cenas, Estela faz compras no botequim de Galego, pedindo que coloque o valor na conta de

    Amorim. A lista de itens bastante representativa da situao de pobreza em que vivem: cinquenta gramas de arroz / e cem gramas de feijo [...] trs cigarros, jornal velho, um po, / quatro bananas e um

    toco de vela (BUARQUE; PONTES, 2006, p. 79).

  • Revista Lnguas & Letras Unioeste Vol. 14 N 27 Segundo Semestre de 2013

    ISSN: 1981-4755

    Por intervenes de outros personagens, tomamos cincia de que Egeu j fez

    poltica, se meteu em greve no passado (BUARQUE; PONTES, 2006, p. 114), indcios

    de uma trajetria de liderana nos movimentos sociais, e que, alm de morador antigo

    da Vila do Meio-Dia, presidente da Associao de Moradores, profissional autnomo

    com conhecimento tcnico, dono de sua prpria oficina, o que lhe concederia mais

    autonomia do que gozam seus vizinhos.

    AMORIM - Mestre Egeu, voc pode dizer

    o que pensa, j que dono de teto e cho

    Dono do seu nariz, no tem nada a perder

    Tem a oficina e tudo o que est dentro dela

    Ento fala correto, justo, d conselhos

    Mas eu devo tijolo, cal, porta e janela

    Acho que no sou dono nem dos meus pentelhos

    EGEU Voc tem razo... (Um tempo.)

    (BUARQUE; PONTES, 2006, p. 33-34).

    Observando as aes presentes em Gota dgua, e sendo o teatro a arte do

    conflito, na qual somente o choque entre dois temperamentos, duas ambies, duas

    concepes de vida, empenhando a fundo a sensibilidade e o carter, obrigaria todas as

    personalidades submetidas ao confronto a se determinarem totalmente (PRADO, 1998,

    p. 92), compreendemos que, alm do embate entre Joana e Jaso, tambm de grande

    relevncia para o enredo as relaes antagnicas entre Egeu, Creonte e Jaso.

    Na trama, Creonte Vasconcelos a personificao do capitalismo. Proprietrio

    dos imveis do conjunto habitacional, de aes, prdios, garagens, carros, caminhes,

    usinas, fbricas (BUARQUE; PONTES, 2006, p. 113), o personagem ostenta sua

    riqueza, a exemplo dos preparativos para o casamento de sua filha. A subservincia dos

    moradores, que se referem a ele como o homem, seu Creonte, rei, dono do

    mundo inteiro, est explcita em vrias passagens do texto dramtico. Na imprensa

    (extrato de notcia de jornal lido em cena sobre o casamento de Jaso e Alma), e em seu

    prprio discurso, ele o grande comerciante benfeitor, que teria lutado sempre pelo

    bem geral da coletividade, ajudando o time, a escola, as famlias, doando fantasias para

    o carnaval, uniformes para o campeonato, providenciando gua para a comunidade. As

    aes de alcance popular que lhe do fama no mudam a situao de pobreza extrema

    em que vivem os moradores e contrastam com a explorao qual submete os

    habitantes da Vila do Meio-Dia.

  • Revista Lnguas & Letras Unioeste Vol. 14 N 27 Segundo Semestre de 2013

    ISSN: 1981-4755

    A partir de sua viso elitista, Creonte define o povo pobre brasileiro como

    porco, relaxado, de alma de marginal, fora-da-lei, malandro, folgado,

    anrquico, negligente, indivduos que s fazem filhos e feitiaria (BUARQUE;

    PONTES, 2006, p. 106), no entanto, perspicaz para saber tirar dele sua riqueza e

    cooptar seus talentos, do qual Jaso exemplo, constituindo-se como um dos

    personagens mais importantes dentre os agentes da trama social.

    Sob a perspectiva capitalista apresentada pelos autores, Jaso torna-se

    rapidamente produto da indstria cultural, referido pela imprensa como novo valor da

    emepeb. Seu samba, que cai no gosto popular, parece ser dotado de qualidade artstica

    e leva-nos a enfocar aspectos da percepo do pblico a respeito da arte.

    Em dilogo entre Jaso e Creonte, descobrimos que o samba pegou no s por

    seus mritos, mas pela atuao do empresrio que pagou para a composio tocar na

    rdio, fazendo-o rodar em tudo o que horrio. Creonte explica a Jaso que se voc

    repete um s estribilho / no coco do povo, e bate, e martela, / o povo acredita naquilo s

    / Acaba engolindo qualquer balela / Acaba comendo sabo em p / Imagine um

    samba... (BUARQUE; PONTES, 2006, p. 48). Desnuda-se, assim, a possvel

    manipulao da populao a partir da difuso e repetio de uma mensagem nica,

    estratgia da qual apropriaram-se os governos autoritrios, mas que constitui um

    artifcio, ainda hoje, utilizado de forma ampla pela indstria cultural.

    Retrata-se ento uma comunidade na qual os bens culturais de qualidade, a

    prtica da leitura, o contato com a literatura, no fazem parte do cotidiano,

    transformando-se em fator de diferenciao9, e que denota a realidade dos setores mais

    pobres da sociedade brasileira, e mesmo da Amrica Latina, nos quais o rdio e a

    televiso so os meios predominantes de acesso s produes artsticas.

    Dizendo de outro modo: na maioria dos nossos pases h grandes

    massas ainda fora do alcance da literatura erudita, mergulhando numa

    etapa folclrica de comunicao oral. Quando alfabetizadas e

    absorvidas pelo processo de urbanizao, passam para o domnio do

    rdio, da televiso, da histria em quadrinhos, constituindo a base de

    uma cultura de massa. Da a alfabetizao no aumentar

    proporcionalmente o nmero de leitores da literatura, como a

    concebemos aqui; mas atirar os alfabetizados, junto com os

    analfabetos, diretamente da fase folclrica para essa espcie de

    9 Fato perceptvel em comentrio de Amorim sobre Jaso: Ele nunca foi de muita escola e lio, mas

    autodidata, um cara intuitivo, l livro, jornal grosso, inteligente, vivo... T mais pra Rui Barbosa que pra

    Caceto. (BUARQUE; PONTES, 2006, p. 41).

  • Revista Lnguas & Letras Unioeste Vol. 14 N 27 Segundo Semestre de 2013

    ISSN: 1981-4755

    folclore urbano que a cultura massificada. [...] Em nosso tempo, uma

    catequese s avessas converte rapidamente o homem rural sociedade

    urbana, por meio de recursos comunicativos que vo at inculcao

    subliminar, impondo-lhe valores duvidosos e bem diferentes dos que o

    homem culto busca na arte e na literatura. (CANDIDO, 1989. p. 144-

    145).

    O aproveitamento dos mais capazes pelo capital, tese expressa por Buarque e

    Pontes em prefcio, est nas reflexes de Egeu a respeito de Jaso feitas em voz alta

    quando ele est sozinho em sua oficina: Sempre que um cara menos bichado / surge

    aqui, pagam seu peso em ouro / pra lev-lo embora. Resultado: / mais negro fica este

    sumidouro / mais brilhante fica o outro lado / e o seu carnaval, mais duradouro

    (BUARQUE; PONTES, 2006, p. 75). A mesma ideia tambm se encontra em outra fala

    de Egeu, num dos ltimos dilogos com Joana: Mas agora, com habilidade, / Creonte

    pode atrair Jaso / Pode atrair com facilidade / os melhores entre ns que vo surgindo

    (p. 148).

    Recorrendo a reflexes da crtica a propsito de personagens machadianos,

    percebemos que, em Gota dgua, de modo semelhante, valor e espontaneidade

    individual seriam reconhecidos, ou, generalizando, a iniqidade oligrquica abriria uma

    fresta igualdade entre os humanos, particularmente entre proprietrios e pobres com

    educao (SCHWARZ, 1990, p. 65).

    Dentre os personagens, Jaso pode ser definido como o que expressa menor

    linearidade, passando por grandes transformaes internas e externas no s durante os

    acontecimentos trazidos cena, mas em momentos anteriores, aos quais temos acesso

    por meio dos dilogos. Unindo-se a Joana, quatorze anos mais velha, quando ainda era

    muito jovem, permanece com ela por dez anos, compartilhando suas principais

    experincias e moldando-se para a vida adulta. Apesar de aprender pelas mos de Egeu

    sua primeira profisso, o conserto de eletrnicos, atravs de seu sucesso com o samba

    Gota dgua que Jaso adquire reconhecimento social e torna-se genro de Creonte, que

    diz aceit-lo para fazer a vontade da filha, mas tambm por ter vaidade da cano que

    est deixando o bairro mais comentado (BUARQUE; PONTES, 2006, p. 111).

    Numa passagem do texto dramtico marcada por sua intertextualidade, Estela,

    esposa de Amorim, assevera ter sido a mosca azul, smbolo do deslumbramento diante

    do poder10

    , responsvel pela transformao de Jaso, por ela descrito como homem que

    10

    A imagem da mosca azul originria de uma antiga lenda oriental, habilmente retratada em poema de

    Machado de Assis. Cf.: ASSIS, Machado. A mosca azul. In: __________. Obra Completa. v. 3. Rio de

  • Revista Lnguas & Letras Unioeste Vol. 14 N 27 Segundo Semestre de 2013

    ISSN: 1981-4755

    no esboava ambio alguma, vivia a vida inteirinha entre o violo e o rabo da saia

    de Joana, at o dia que o rdio tocou seu samba maldito (BUARQUE; PONTES,

    2006, p. 32).

    Personagem dbio, Jaso oscila entre o universo miservel de sua origem e o

    mundo opulento no qual est prestes a ingressar. Partindo da prpria obra, deparamo-

    nos com indcios de suas aspiraes de ascenso social, em grande parte para satisfao

    de sua vaidade. Ouvindo Alma descrever o luxuoso apartamento que est sendo

    preparado para morarem aps o casamento, Jaso demonstra descaso com os detalhes e

    at certo desprendimento ao questionar a necessidade de tamanha ostentao apenas

    para o casal, bem como desconforto ao considerar o abandono de sua comunidade sem

    levar consigo coisas simples de seu dia-a-dia. Porm, tambm nessa cena que o

    personagem revela algo que sempre ambicionou: um dente dourado (BUARQUE;

    PONTES, 2006, p. 44), sonho comum a outros personagens de origem pobre da fico

    brasileira, a exemplo de Olmpico, de A hora da estrela, o dente de ouro smbolo de

    status, fama e popularidade (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1986).

    Significativo para a caracterizao do personagem tambm o palet do qual ele

    faz uso precisamente na cena em que acompanhamos sua mudana mais substancial.

    Principiada com o sambista tratando mestre Egeu como mentor e amigo, hesitando em

    crer que ele esteja de fato mobilizando a comunidade para o no pagamento das

    prestaes, segue com uma argumentao solidria queles que no tm como pagar as

    mensalidades at revelar-se nitidamente em defesa dos interesses de Creonte. O palet

    referido na fala de Egeu que, em tom autoritrio, ordena que o tire, aps demonstrar sua

    reprovao diante da tentativa de Jaso convenc-lo em usar sua liderana para

    desencorajar a mobilizao dos moradores. Resultando em maior distanciamento entre

    as figuras de Jaso e Egeu, este, como vimos, devotado ao trabalho, o palet assume

    sentido de distino, pois evidente a inconvenincia do uso de palet e gravata para o

    trabalho no meio da graxa das mquinas (e nem os salrios pagos so suficientes para

    compr-los). Com isso torna-se um smbolo da classe social que dirige os que pegam no

    pesado (BERNARDES, 1981, p. 79).

    Em cenas iniciais, Jaso sai em defesa de Joana e Egeu, tendo a percepo de

    algum que j foi parte do povo pobre, dizendo-se conhecedor de cada expresso, cada

    Janeiro: Nova Aguilar, 1994. Disponvel em:

    . Acesso em: 5 set. 2012.

  • Revista Lnguas & Letras Unioeste Vol. 14 N 27 Segundo Semestre de 2013

    ISSN: 1981-4755

    rosto, carne e osso, o sangue, o couro... (BUARQUE; PONTES, 2006, p. 112), e ao

    qual define como trabalhador, que, mesmo oprimido, demora a chegar ao limite, sendo

    necessrio para mant-lo ordeiro apenas produzir nele esperana. Ser propriamente a

    sua vivncia, aliada esperteza e ao jogo de cintura do sambista que o far sobressair-

    se.

    Fazendo maquinaes em benefcio prprio, ele carrega consigo os traos do

    malandro astucioso, que em uma dcada ao lado de Joana significou para ela um peso

    morto, quase sempre no futebol, fingindo de cego, no cais do porto, enquanto

    ela trabalhava para sustentar a famlia. O sucesso alcanado com Gota dgua, como

    referido, deve-se em grande parte interveno de Creonte para que a msica fosse

    massificada. Suas atitudes, no entanto, so ainda motivadas pela conjuntura de

    desigualdade social na qual se insere, indicando-nos o contexto dialtico de ordem e

    desordem aludido por Antonio Candido (1970).

    Alguns dos vizinhos pronunciam-se a seu favor, sem censur-lo pelos meios

    atravs dos quais ascendeu. Mesmo mestre Egeu que, juntamente com Corina, conserva

    at o desenlace sua tica, retido e fidelidade amizade de Joana, vislumbra a

    dificuldade de o povo pobre preservar seus valores diante da convivncia diria com a

    pobreza.

    EGEU Comadre, Jaso est dividido entre tudo o que teve de melhor

    na vida, os teus filhos, o teu amor,

    e aquilo que lhe foi oferecido

    Oua, comadre, to duro um sujeito

    passar a vida inteira na penria,

    tendo ao lado tanto luxo e luxria

    que, eu quase diria, tem o direito

    de fazer sei l o que quer que seja

    Pode virar ladro ou assassino

    Quer dar uma rasteira no destino

    pra no seguir vivendo no ora-veja

    e conseguir um lugar no outro lado

    Se Jaso ainda est indeciso

    porque bom. V... V...

    (BUARQUE; PONTES, 2006, p. 82-83).

    As relaes sociais na Vila do Meio-Dia tambm se transformam com o

    desenredar-se da trama, sendo, em princpio, pautadas na sociabilidade, numa vivncia

    em que senso de coletividade, o solidarizar-se com a dor do outro, parece natural, parte

    do cotidiano desses indivduos que convivem com as mesmas carncias. O enredo

  • Revista Lnguas & Letras Unioeste Vol. 14 N 27 Segundo Semestre de 2013

    ISSN: 1981-4755

    inicia-se com os comentrios sobre o isolamento e a inrcia de Joana devido ao

    sofrimento causado pelo abandono. Prontamente as vizinhas dispem-se a ajud-la,

    lavando a roupa, fazendo a arrumao, preparando a comida.

    Tal atitude, contudo, que desponta ainda em outras cenas, nas quais

    presenciamos a defesa de Joana pelas vizinhas e, mesmo, pelo grupo de moradores da

    Vila diante de seu despejo iminente, ir desfazer-se nas cenas finais. Aps Creonte

    anunciar o perdo de dvidas, benfeitorias e oferta de trabalho para as mulheres da

    comunidade, sobressaem-se os interesses individuais, a possibilidade de uma fonte de

    renda e, sobretudo, uma permanncia pacfica em suas casas, mesmo que isto signifique

    total subservincia. O empresrio ressalta reservar-se o direito de eleger seus amigos e

    seus inimigos, impondo condies para acesso s bonificaes prometidas: que o

    morador seja seu amigo (BUARQUE; PONTES, 2006, p. 146).

    A situao de dependncia extrema do pobre trabalhador retratado por Buarque e

    Pontes, novamente recorda estudos a propsito de alguns personagens machadianos

    que, como ocorre em Gota dgua, tm seus destinos definidos pela vontade e

    benevolncia de figuras das classes abastadas.

    No h exagero portanto em afirmar que o favor pessoal, includa nele

    a parte inevitvel e j ento imperdovel de capricho, vem colocado

    em primeiro plano pela estrutura social do pas ela prpria. Foi natural

    que o emaranhado singular de humilhaes e esperanas ligado a este

    quadro se tornasse matria central no romance brasileiro, que em boa

    parte se pode estudar como apresentao e aprofundamento dos

    dilemas correspondentes. (SCHWARZ, 2000, p. 57).

    Com o artifcio de Creonte, sugerido por Jaso, de conceder benesses a um custo

    de rpida compensao, sem se comprometer com nenhuma mudana efetiva, o

    empresrio produz nos moradores a sensao imediata de alvio e esperana. Assim, a

    ratificao de seu poder de ao e de deciso d-se em meio a um clima de entusiasmo,

    resultando no controle da manifestao popular e no desvio de foco da discusso a

    propsito da modificao imprescindvel no sistema de cobrana das mensalidades e do

    despejo de Joana. Pouco antes, fora a argumentao de mestre Egeu, atentando para a

    defesa do direito moradia, de cada um ter sua prpria casa, pelas quais, inclusive, j

    haviam pago o valor principal, prerrogativa aparentemente ameaada, que os uniu em

    torno de uma causa comum. Alm de necessidade primria, a casa local de refgio

  • Revista Lnguas & Letras Unioeste Vol. 14 N 27 Segundo Semestre de 2013

    ISSN: 1981-4755

    pessoal, proteo, desnudamento, espao de total autonomia e liberdade (CHEVALIER;

    GHEERBRANT, 1986).

    EGEU [...] Se a gente deixar Creonte jogar calmamente

    essa mulher na rua, o despejado

    amanh pode ser voc. Voc

    Voc. T certo, Joana tratou mal

    o locador. Problema pessoal,

    no interessa a razo e o porqu

    Mas ningum pode viver num lugar

    pelo qual pagou mais do que devia

    e estar dependendo da simpatia

    de um cidado pra conseguir morar

    tranqilo. No. O seu cho sagrado

    L voc dorme, l voc desperta,

    pode andar nu, cagar de porta aberta,

    l voc pode rir, ficar calado,

    l voc pode tanto querer bem

    quanto querer mal a qualquer mortal

    Voc papa, rei, Deus, general,

    sem ter que depender de Seu ningum (BUARQUE; PONTES, 2006, p. 140-141).

    O aceite das ofertas de Creonte mina a fora de mobilizao e presso dos

    moradores que haviam decidido democraticamente, indignados com a interveno

    autoritria, em votao conduzida por Egeu, confrontar o poder local, vendo-se aqui um

    contraste evidente com o regime autoritrio ao qual o povo brasileiro estava submetido

    na dcada de 1970.

    Mestre Egeu, consciente dos intentos de Creonte e Jaso, apesar de sua

    liderana, sozinho no tem voz. A mudana de postura dos vizinhos deixa Egeu isolado

    e enfraquecido. Sua representatividade torna-se questionvel. A autonomia que sua

    independncia financeira imprimia como qualidade no momento em que a comunidade

    acovardada precisava levar a Creonte suas reivindicaes, transforma-se em

    distanciamento na percepo de alguns moradores: XUL (Falando num jato:) / Ser

    ele o presidente que est errado / autnomo... No paga prestao / O estatuto tem

    que ser alterado / S pode ser presidente... (BUARQUE; PONTES, 2006, p. 151).

    A atitude dos vizinhos, no entanto, pode ser entendida enquanto fruto de

    alienao, viso mope que no lhes permite alcanar a profundidade das questes

    sociais nas quais esto inseridos, falta de formao poltica, mas principalmente como

    resultado da vida instvel, de uma urgncia que se contrape ao sossego

  • Revista Lnguas & Letras Unioeste Vol. 14 N 27 Segundo Semestre de 2013

    ISSN: 1981-4755

    experimentado pelas classes mais abastada, livres dos sobressaltos de quem luta dia a

    dia para garantir o essencial sobrevivncia.

    JOANA [...] teu povo, ele sim, que vive aos trancos, [...] Ele ento no tem tempo, nem amigo,

    nem futuro, que uma simples piada

    pode dar em risada ou punhalada

    Como a mesma garrafa de cachaa

    acaba em carnaval ou desgraa

    seu povo que vive de repente

    porque no sabe o que vem pela frente

    (BUARQUE; PONTES, 2006, p. 135).

    A evidente desproteo dos pobres, diante de um leque dos destinos

    disponveis, de amplitude vertiginosa e catastrfica que , para a parte proprietria, o

    campo das opes oferecidas ao exerccio do capricho. Ante tamanha desproporo,

    claro que este ltimo desenvolve um sentido exaltado de si e da prpria relevncia, que

    o faz brilhar em toda linha (SCHWARZ, 2000. p. 57).

    O desenlace da trama social, com o anncio da transmisso da imponente

    cadeira-trono de Creonte para Jaso, simboliza o triunfo do capital e a fragilidade do

    povo diante do poder econmico. Independente da origem pobre do sambista, a

    transferncia de poder denota apenas a manuteno do sistema de enriquecimento com

    base na explorao de toda a comunidade, frustrando as esperanas daqueles que se

    iludiram crendo na melhoria de condies de vida ao serem representados por um

    semelhante.

    Jaso traz consigo o conhecimento da essncia do povo, mas antes de assumir o

    novo posto iniciado por Creonte nas estratgias de dominao: ter segurana,

    imponncia, demonstrar descontrao, mostrar-se sempre ocupado, aprender a dizer

    no, vigiar as prprias palavras e relacionar-se com base em seus interesses.

    CREONTE [...] Cuidado que existe hora / pra ser amigo e pra ser o poder / No

    queira sair por a afora / dizendo o que pensa. Diga o contrrio / Esquea o nome do seu

    companheiro / e cumprimente o pior salafrrio, / que ningum intil por inteiro

    (BUARQUE; PONTES, 2006, p. 53).

    O caminhar pelas cenas do texto dramtico, numa leitura detida, permite-nos

    observar na prpria obra as ligaes com as vivncias do pobre trabalhador brasileiro e

    coloca-nos diante de um tipo de arte de agregao, inspirada na experincia coletiva,

    acessvel, que procura, neste sentido, incorporar-se a um sistema simblico vigente,

  • Revista Lnguas & Letras Unioeste Vol. 14 N 27 Segundo Semestre de 2013

    ISSN: 1981-4755

    utilizando o que j est estabelecido como forma de expresso de determinada

    sociedade, (CANDIDO, 2006, p. 33)11.

    Em alguns trechos de forma manifesta e por vezes nas entrelinhas, Gota dgua

    mostra-nos o retrato histrico de uma sociedade injusta, imersa nas relaes do capital,

    na qual a assimetria de poder fator cotidiano e a parte pobre no ningum, tudo se

    resume na deciso da parte proprietria, a que no h nada que acrescentar

    (SCHWARZ, 2000. p. 58).

    REFERNCIAS:

    ARISTTELES, HORCIO, LONGINO. A potica clssica. Trad. Jaime Bruna. 12 ed.

    So Paulo: Cultrix, 2005.

    ASSIS, Machado. A mosca azul. In: __________. Obra Completa. v. 3. Rio de Janeiro:

    Nova Aguilar, 1994. Disponvel em:

    . Acesso em: 5 set.

    2012. p. 11.

    BERNARDES, Cyro. A dramaturgia do palet e gravata. Notas e Comunicaes. USP.

    v. 16, n. 4. out./dez. 1981. p. 79-80. Disponvel em:

    . Acesso em: 10 set. 2012.

    BOSI, Alfredo. Sobre Vidas Secas. In: SCHWARZ, Roberto. (Org.) Literatura e

    pobreza. Novos Estudos CebrapSP, v.1.2, abr. 1982, p. 42.

    BUARQUE, Chico; PONTES, Paulo. Gota dgua uma tragdia brasileira. 35 ed. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2006.

    CANDIDO, Antonio. Literatura de dois gumes. In: ___________. A educao pela

    noite & outros ensaios. So Paulo: tica, 1989. p. 163-180.

    CANDIDO, Antonio. Literatura e subdesenvolvimento. In: ___________. A educao

    pela noite & outros ensaios. So Paulo: tica, 1989. p. 140-162.

    CANDIDO, Antonio. Dialtica da Malandragem (Caracterizao das Memrias de um

    sargento de milcias). Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, So Paulo, USP, n. 8,

    1970, p. 67-89.

    CANDIDO, Antonio. A literatura e a vida social. In: __________. Literatura e

    sociedade. 9 ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006.

    CASA. In: CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Diccionario de ls smbolos.

    Barcelona: Editorial Herder, 1986. p. 257-259.

    DIENTES. In: CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Diccionario de ls

    smbolos. Barcelona: Editorial Herder, 1986. p. 417.

    11

    Candido (2006, p. 33) apresenta ainda o conceito de arte de segregao, enquanto tipo que se preocupa em renovar o sistema simblico, criar novos recursos expressivos e, para isto, dirige-se a um

    nmero ao menos inicialmente reduzido de receptores, que se destacam, enquanto tais, da sociedade. Como o prprio autor assinala, os dois aspectos, agregao e segregao, so constantes em toda obra em

    proporo varivel. Assim, h em Gota dgua tanto traos da arte como integrao quanto como meio de diferenciao, a exemplo, neste ltimo caso, dos referenciais da obra de base, Media, acessveis apenas aos conhecedores do texto de Eurpedes, e ao uso renovado do coro, artifcio que deixou de ser

    utilizado na tragdia moderna, mas surge na pea com novas feies, embora ainda mantenha, em

    determinados momentos, algumas de suas funes tradicionais de aconselhamento e apaziguamento, em

    dilogo com a protagonista, Joana, ou intercedendo junto ao sagrado.

  • Revista Lnguas & Letras Unioeste Vol. 14 N 27 Segundo Semestre de 2013

    ISSN: 1981-4755

    EURPEDES. Media. Trad. Mrio da Gama Kury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,

    1991.

    GRASEL, Dirceu; PEREIRA, Benedito Dias. Contextualizao e fases do

    endividamento externo brasileiro: 1964-92. Revista de Estudos Sociais, Mato Grosso,

    UFMT, v. 5, n. 10, 2003, p. 7-21. Disponvel em:

    . Acesso

    em: 2 set. 2012.

    PRADO, Dcio de Almeida. A personagem no teatro. In: CANDIDO, Antonio et al. A

    personagem de fico. 9 ed. So Paulo: Editora Perspectiva, 1998. p. 81-101.

    SCHWARZ, Roberto. (Org.) Literatura e pobreza. Novos Estudos CebrapSP, v.1.2, abr.

    1982, p. 27-47.

    SCHWARZ, Roberto. A sorte dos pobres. In:__________. Um mestre na periferia do

    capitalismo. 4 ed. So Paulo: Duas Cidades, 2000. p. 55-73.

    VERGUEIRO, Laura. Os vadios do sc. XVIII. In: SCHWARZ, Roberto. (Org.)

    Literatura e pobreza. Novos Estudos CebrapSP, v.1.2, abr. 1982, p. 28-29.

    WILLIAMS, Raymond. Tragdia moderna. Trad. Betina Bischof. So Paulo:

    Cosac&Naify, 2002.