Felipe Corrêa - Para Uma Teoria Libertaria Do Poder: resenhas e síntese incompletas

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PARA UMA TEORIA LIBERTÁRIA DO PODER (Resenhas e síntese incompletas) 2015 Felipe Corrêa

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“Para uma Teoria Libertária do Poder” é uma série de resenhas elaboradas sobre artigos ou livros de autores do campo libertário que discutem o poder. Seu objetivo é apresentar uma leitura contemporânea de autores que vêm tratando o tema em questão e trazer elementos para a elaboração de uma teoria libertária do poder, que poderá contribuir na elaboração de um método de análise da realidade e de estratégias de bases libertárias, a serem utilizadas por indivíduos e organizações.

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  • PARA UMA TEORIA LIBERTRIA DO PODER

    (Resenhas e sntese incompletas)

    2015

    Felipe Corra

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    SUMRIO

    INTRODUO 03

    PARA UMA TEORIA LIBERTRIA DO PODER (I) IBAEZ E O PODER POLTICO LIBERTRIO

    04

    PARA UMA TEORIA LIBERTRIA DO PODER (II) BERTOLO E O PODER COMO

    FUNO SOCIAL DE REGULAO 09

    PARA UMA TEORIA LIBERTRIA DO PODER (III) FOUCAULT E O PODER NOS DIVERSOS NVEIS E ESFERAS

    19

    PARA UMA TEORIA LIBERTRIA DO PODER (IV) ERRANDONEA, DOMINAO E CLASSES SOCIAIS

    49

    PARA UMA TEORIA LIBERTRIA DO PODER (V) LPEZ E A DISTINO ENTRE PODER E DOMNIO

    83

    PODER, DOMINAO E AUTOGESTO 97

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    INTRODUO

    Para uma Teoria Libertria do Poder uma srie de resenhas elaboradas sobre artigos ou livros de autores do campo libertrio que discutem o poder. Seu objetivo apresentar uma leitura contempornea de autores que vm tratando o tema em questo e trazer elementos para a elaborao de uma teoria libertria do poder, que poder contribuir na elaborao de um mtodo de anlise da realidade e de estratgias de bases libertrias, a serem utilizadas por indivduos e organizaes.

    Esta srie est ainda por ser concluda e conta, neste momento, apenas com as cinco primeiras resenhas, escritas e publicadas entre 2011 e 2012: 1.) Ibez e o poder poltico libertrio, 2.) Bertolo e o poder como funo social de regulao, 3.) Foucault e o poder nos diversos nveis e esferas, 4.) Errandonea, dominao e classes sociais, 5.) Lpez e a distino entre poder e domnio. Tais resenhas encontram-se seguir e constituem, nesse sentido, apenas o incio de um projeto inacabado.

    O projeto inclui outras resenhas, com contribuies tais como: Rocha e a interdependncia das esferas; FAU, FAG e a concepo de poder popular; Ibez e as relaes entre poder e liberdade; Contribuies dos clssicos anarquistas entre algumas outras. Entretanto, at o momento, no tive como elabor-las e nem sei se terei como fazer isso em outro momento.

    De qualquer forma, produzi um texto de balano, com algumas das contribuies que julguei mais interessantes nesse debate parcial: Poder, Dominao e Autogesto, que tambm se encontra seguir.

    Alm disso, utilizei parte deste ferramental terico-metodolgico para a anlise do anarquismo que realizei no livro Bandeira Negra: rediscutindo o anarquismo (Prismas, 2014). As pessoas que tiverem interesse podem se remeter a este livro para ver como alguns dos elementos de mtodo e teoria aqui discutidos podem ser aplicados concretamente na anlise de um fenmeno histrico real.

    Boa leitura!

    Felipe Corra, maio de 2015

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    PARA UMA TEORIA LIBERTRIA DO PODER (I) IBAEZ E O PODER POLTICO LIBERTRIO

    Neste primeiro artigo da srie, utilizarei para discusso o artigo Por um Poder Poltico Libertrio, de Toms Ibez.[*] Nele, um artigo curto, que no ultrapassa algumas poucas laudas, o autor coloca-se criticamente em relao abordagem libertria que vinha sendo feita do tema. O artigo de Ibez foi escrito originalmente como contribuio para o seminrio O Poder e sua Negao, promovido pelo CIRA e pelo CSL Pinelli, em julho de 1983. At aquele momento, para o autor, o anarquismo estava preso rigidez de conceitos e propostas, na sua maior parte, criados no decurso dos sculos XVIII e XIX. E, para ele, discutir a fundo a questo do poder seria uma relevante renovao no campo terico do anarquismo.

    O PROBLEMA SEMNTICO DA DISCUSSO SOBRE O PODER J naquela poca Ibez identificava que a polissemia [palavra que tem mais de uma

    significao] do termo poder e a amplitude do seu espectro semntico constituem as condies de um dilogo de surdos. Para ele, nas discusses sobre o poder, os discursos se sobrepem e no se articulam uns com os outros. E isso acontece porque tratam de objetos profundamente diferentes, na confuso induzida pelo recurso a um outro termo comum: o poder.

    E por isso a necessidade identificada de circunscrevermos o termo poder, antes de iniciarmos a discusso. Independente do esforo nesse sentido, o autor no acredita ser possvel chegar a uma definio objetiva e assptica da palavra poder, j que se trata de um termo poltico carregado de sentido, analisado sempre de uma localizao poltica precisa, e do qual no possvel possuir definio neutra.

    O PODER A PARTIR DE UMA TRIPLA DEFINIO O primeiro elemento para iniciar uma definio do poder que, dentro de uma

    perspectiva libertria, ele no pode ser concebido somente de maneira negativa: em termos de negao, de excluso, de recusa, de oposio, de antinomia. Para Ibez, o poder pode ser definido a partir de trs interpretaes: 1.) como capacidade, 2.) como assimetria nas relaes de fora, e 3.) como estruturas e mecanismos de regulao e controle. Vejamos, nos termos do prprio autor, como se define o poder em cada um dessas acepes.

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    1. O poder como capacidade Numa das suas acepes, provavelmente a mais geral e diacronicamente primeira, o

    termo poder funciona como equivalente da expresso capacidade de, isto : como sinnimo do conjunto dos efeitos dos quais um agente dado, animado ou no, pode ser a causa direta ou indireta. interessante que, desde o incio, o poder se define em termos relacionais, na medida em que, para que um elemento possa produzir ou inibir um efeito, necessrio que se estabelea uma interao.

    Pensado neste sentido, o poder seria concebido como ter poder de ou ter poder para, uma capacidade de realizao ou uma fora potencial que poderia ser aplicada em uma relao social. Coloca-se como premissa dessa definio de poder as relaes sociais, ou seja, interao entre agentes sociais.

    2. O poder como assimetria nas relaes de fora Numa segunda acepo, o termo poder refere-se a um certo tipo de relao entre

    agentes sociais, e costuma-se agora caracteriz-lo como uma capacidade assimtrica ou desigual que os agentes possuem de causar efeitos sobre o outro plo de uma dada relao.

    Ainda que ancorado no poder como capacidade, esse outro sentido permite pensar nas assimetrias das diferentes foras sociais que se encontram em uma determinada relao social. Essas foras, sempre assimtricas e desiguais, quando em interao/relao, forjam os efeitos sobre um ou mais plos, sendo que cada um deles possui uma fora distinta e, portanto, uma capacidade distinta. Novamente, afirma-se o poder como relao entre agentes sociais, cada um dos quais com uma capacidade distinta de causar efeitos sobre outros.

    3. O poder como estruturas e mecanismos de regulao e controle Numa terceira acepo, o termo poder refere-se s estruturas macro-sociais e aos

    mecanismos macro-sociais de regulao ou de controle social. Fala-se, neste sentido, de instrumentos ou dispositivos de poder, de centros ou de estruturas de poder, etc.

    Assim concebido, o poder constituiria o sistema de uma determinada sociedade, naquilo que diz respeito s suas estruturas e seus mecanismos de regulao e de controle. Seria o conjunto de regras de uma determinada sociedade, que envolve tanto as tomadas de deciso para seu estabelecimento e para definir seu controle, quanto a prpria aplicao desse controle. Uma estruturao da sociedade que faz com que sejam necessrias instncias deliberativas e executivas.

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    QUAIS AS POSSIBILIDADES DE UMA SOCIEDADE SEM PODER? A partir dessas trs interpretaes, pode-se afirmar que falar de uma sociedade sem

    poder constitui uma aberrao, quer nos coloquemos do ponto de vista do poder/capacidade (que sentido teria uma sociedade que no pudesse nada?), quer nos coloquemos ao nvel das relaes assimtricas (o que significariam as interaes sociais sem efeitos assimtricos?), quer por fim nos coloquemos do ponto de vista do poder como mecanismos e estruturas de regulao macro-sociais (o que seria um sistema cujos elementos no fossem forados pelo conjunto das relaes que definem exatamente o prprio sistema?).

    No h sociedade sem agentes sociais com capacidade, assim como no h sociedade com todas as relaes sociais simtricas ou seja, uma sociedade em que todos os agentes sociais tenham a mesma capacidade de causar efeitos sobre outros, em todas as relaes sociais ou sem estruturas e mecanismos de regulao e de controle social. O que nos permite concordar com Ibez em relao ao absurdo que significa, levando em conta as definies apresentadas pelo autor, falar em sociedade sem poder, em luta contra o poder, em acabar ou destruir o poder.

    Ibez acredita que as relaes de poder so consubstanciais ao prprio fato social, so-lhe inerentes, impregnam-no, contm-no, no prprio instante em que dele emanam. Ao se tratar de qualquer aspecto do mbito chamado social, pode-se afirmar que, nele, existem interaes entre diversos elementos que conformam um determinado sistema. Para o autor, alm disso, existem inelutavelmente certos efeitos de poder do sistema sobre os seus elementos, exatamente como existem tambm efeitos de poder entre os elementos do sistema. Ou seja, o poder permeia tanto as relaes entre elementos como as relaes entre sistema e elementos.

    Conceber uma sociedade sem poder significaria, para o autor, acreditar na possibilidade de existncia de uma sociedade sem relaes sociais, sem regras sociais e sem processos de deciso sociais. Ou seja, seria conceber o impensvel.

    UMA CONCEPO LIBERTRIA DO PODER Tal argumentao permite que se afirme que existe uma concepo libertria do

    poder, e falso que esta tenha que constituir uma negao do poder. Negar este fato implicaria, necessariamente, em uma dificuldade tanto em termos de anlise da realidade, quanto em termos de concepo de uma estratgia. Enquanto isso no for plenamente assumido pelo pensamento libertrio, enfatiza Ibez, ele no ser capaz de iniciar as anlises e as aes que lhe permitam ter fora na realidade social.

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    E o que ele argumenta faz sentido se observarmos a histria do anarquismo ou mesmo daquilo que foi chamado de meio libertrio. Indo alm das afirmaes semnticas que muitas vezes davam/do palavra poder um sentido de Estado parece claro que o pensamento libertrio nunca negou a capacidade dos agentes sociais, as assimetrias nas relaes de fora ou as estruturas e mecanismos de regulao e controle.

    Um exemplo que significativamente comum na tradio libertria. Considerando as relaes assimtricas de classes na sociedade capitalista e, fundamentando-se na ideia de capacidade da classe trabalhadora, os libertrios buscam promover uma revoluo social, em que a fora da classe dominante seja sobreposta e que se estabelea um sistema de regulao e controle fundamentado na autogesto e no federalismo. Mesmo com esse exemplo genrico, pode-se afirmar que se a classe dominante retirada de sua condio de dominao e d lugar a uma estrutura libertria, ainda que na sociedade futura, essa relao de foras entre classe dominante afastada da dominao e classe trabalhadora constitui uma relao assimtrica.

    Nesse sentido, possvel assumir que, de fato, historicamente, h uma concepo libertria de poder que ainda que no tenha sido discutida com a devida profundidade e que tenha sido complicada por uma srie de fatores possui elementos de relevncia nesse debate que agora realizado.

    DOMINAO COMO UM TIPO DE PODER Quando os libertrios realizam um discurso contra o poder, coloca Ibez, utilizam o

    termo poder para se referirem de fato a um certo tipo de relao de poder, ou seja, muito concretamente, ao tipo de poder que se encontra nas relaes de dominao, nas estruturas de dominao, nos dispositivos de dominao, ou nos instrumentos de dominao etc. (sejam estas relaes de tipo coercitivo, manipulador ou outro). Portanto, para ele, a dominao um tipo de relao de poder, mas no se pode definir dominao como poder, j que constituem categorias distintas. Para o autor, no se pode englobar nas relaes de dominao as relaes que vinculam a liberdade do indivduo ou dos grupos, ou seja, no se pode incorporar na categoria dominao relaes libertrias. Mas isso parece de certa maneira bvio. O que no obvio, na realidade, que quando se equipara poder com dominao, assume-se que o poder contrrio liberdade, uma afirmao da qual o autor discorda. Liberdade e poder no se situam realmente segundo uma relao de oposio simples. E ainda: Poder e liberdade encontram-se, pois, numa relao inextricavelmente complexa de antagonismo/possibilidade. Portanto, assim concebido, o poder poderia ser contraditrio

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    liberdade, mas tambm poderia potencializar a sua realizao. Seria, na realidade, o tipo de poder que determinaria essa relao com a liberdade.

    Assim, Ibez acredita que os libertrios se situam, na realidade, contra os sistemas sociais baseados em relaes de dominao (em sentido estrito). Abaixo o poder! uma frmula que deveria desaparecer do lxico libertrio e ser substituda por Abaixo as relaes de dominao. Mas neste ponto preciso tentar definir as condies que tornam possvel uma sociedade enquanto tal.

    CONTRA A DOMINAO E POR UM PODER POLTICO LIBERTRIO Pode-se afirmar, com base nessa estrutura argumentativa, que os libertrios no so

    contra o poder, mas contra um certo tipo de poder, e em suas estratgias, buscam ser construtores de uma variedade de poder a que cmodo (e exato) chamarmos agora de poder libertrio, ou, mais precisamente: poder poltico libertrio. O que significaria assumir que os libertrios defendem um modelo de funcionamento (libertrio) dos instrumentos, dos dispositivos e das relaes de poder.

    * Toms Ibez. Por um Poder Poltico Libertrio: consideraes epistemolgicas e estratgias em torno de um conceito. Artigo originalmente publicado em 1983 na revista italiana Volont. Utilizo para as citaes uma traduo para o portugus de Miguel Serras Pereira, realizada para uma publicao portuguesa dos anos 1980. O artigo est tambm na compilao chamada Actualidad del Anarquismo, publicada pela Libros de Anarres, de Buenos Aires, em 2007.

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    PARA UMA TEORIA LIBERTRIA DO PODER (II) BERTOLO E O PODER COMO

    FUNO SOCIAL DE REGULAO

    Neste segundo artigo da srie, utilizarei para discusso o artigo de Amedeu Bertolo Poder, Autoridade, Domnio.[*] Seguem apresentadas esquematicamente as principais contribuies do autor.

    OS PROBLEMAS DAS DISCUSSES SOBRE PODER, AUTORIDADE E DOMINAO

    Segundo o autor, o costume, no somente acadmico, comear um discurso de definies semnticas com: 1) um ponto de vista etimolgico e/ou 2) um ponto de vista histrico. No entanto, para ele, ambas as maneiras de abordagem no tm muita relevncia para a discusso que pretende realizar. Segundo sustenta, a etimologia dos trs termos tem origem distante, em termos de tempo, o que permitiria, no mximo, realizar um exerccio de arqueologia lingstica. Alm disso, para ele os trs termos tm um significado original bastante semelhante. Poder, por exemplo, deriva do latim polis (patro, possuidor); Dominao deriva de dominus (dono de casa, chefe de famlia); Autoridade, diferentemente, vem do latim auctor, que em sua origem significa aquele que faz crer, que acrescenta.[1]

    Com relao utilizao histrica dos termos, Bertolo identifica que so polivalentes e podem, em muitos casos, serem substitudos um pelo outro. E neste caso, segundo acredita, uma anlise histrica tambm no poderia solucionar o problema colocado. Para ele, em relao s definies de autoridade e poder, tem de tudo e para todos os gostos, o que lhe motiva a buscar algumas definies que so a seguir reproduzidas.

    Definies de poder O poder a) capacidade ou faculdade natural para atuar [...]; b) faculdade geral ou

    moral, direito de fazer algo; c) autoridade, especialmente no sentido concreto, corpo constitudo que a exerce, governo. (Lalande, 1971) O poder a participao nas tomadas de deciso e uma deciso uma linha de conduta que comporta sanes severas (Lasswell e Kaplan, 1969). O poder direito de mandar (Ferrero, 1981). Chamamos de poder a capacidade de uma classe social de realizar seus interesses objetivos especficos (Poulantzas, 1972). O poder a capacidade de estabelecer e de executar decises, ainda que outros se

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    oponham (Mills, 1970). O poder um corpo permanente ao qual estamos acostumados a obedecer, que possui meios materiais para nos obrigar e que, graas opinio que se tem de sua fora, crena em seu direito de mandar, ou seja, em sua legitimidade e pela esperana em sua beneficncia (Jouvenel, 1947). Por poder, deve-se entender todos os meios dos quais pode dispor um homem para persuadir a vontade de outros homens (Mousnier, 1971). Pode-se definir o poder como a capacidade de realizar desejos (Russell, 1967). Por poder deve-se entender [...] a possibilidade para mandatos especficos (ou para qualquer mandato) de se fazer obedecer por parte de um determinado grupo de homens (Weber, 1980). O poder uma comunicao regulada por um cdigo (Luhman, 1979).

    Definies de autoridade A autoridade qualquer poder exercido sobre um homem ou grupo humano por

    parte de outro homem ou grupo (Abbagnano, 1964). A autoridade um vnculo entre desiguais (Sennet, 1981). A autoridade um modo de definir e interpretar as diferenas de fora (Sennet, ibid.), A autoridade uma busca da estabilidade e da segurana da fora dos outros (Sennet, ibid.). A autoridade uma dependncia aceita (Horkheimer, s/d). A autoridade (psicolgica) superioridade ou ascendentes pessoais [...] e (sociolgica) direito de decidir e/ou de mandar (Lalande, 1971). A essncia da autoridade [...] dar a um ser humano aquela segurana e aquele reconhecimento na deciso que logicamente corresponde a um axioma supra-individual e efetivo ou a uma deduo (Simmel, 1978). A autoridade a posse esperada e legtima do poder (Lasswell e Kaplan, 1969).

    Definies de dominao Distintamente das amplas definies de poder e autoridade, o autor nota que, em

    relao dominao, h um pouco mais de acordo conceitual: a palavra dominao quase univocamente utilizada no sentido de poder impor ad altri (por direito ou de fato) a prpria vontade, com instrumentos de coero, fsicos ou psquicos. O termo dominao, e seus adjetivos e verbos correlatos, menos polivalente que autoridade e poder. Talvez por razo do valor emotivamente negativo difundido que existe em seu uso corrente. Ainda assim, Bertolo destaca trs casos em que a dominao utilizada em um sentido neutro: Simmel (1978), para quem a dominao uma categoria universal da interao social, da qual o poder uma forma particular; Dahrendorf (1970), que prope uma definio da dominao como posse de autoridade, ou seja, como um direito de promulgar ordens autoritrias; Lasswell e Kaplan (1969), que consideram que a dominao um modelo de poder efetivo

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    (porm, o termo ingls utilizado rule e no domination, que poderia ser traduzido de maneira distinta).[2]

    Como bem se pode notar nas definies expostas, a amplitude semntica certamente impe dificuldades ao debate. H, como aponta o autor, uma questo fundamental que se coloca entre o que se poderia chamar de problemtica forma-contedo, em que impossvel aprofundar a discusso tomando somente a forma (o nome dos conceitos como poder, autoridade, dominao etc.), sem entrar nos contedos dados historicamente pelos autores nas discusses sobre os temas. Trata-se, neste sentido, de ir alm dos termos ou seja, o nome que se d para uma determinada caixa e entrar nos conceitos ou seja, investigar o contedo da caixa. Um aspecto que j eliminaria grande parte das polmicas geradas nas discusses do universo libertrio.[3]

    Por isso, coloca Bertolo, necessrio retomar a tentativa de definio a partir de uma identificao dos conceitos e dos contedos, ainda que, naturalmente, esta maneira de proceder implique algumas dificuldades de lxico que tentaremos superar.

    Na realidade, os problemas apontados em relao discusso sobre o poder no existem somente no anarquismo: pode servir de consolo aos anarquistas saber que nem sequer a cincia oficial trouxe muita clareza neste ltimo sculo para esse conjunto de coisas (relaes, comportamentos, estruturas sociais...) que esto classificadas como poder (ou como autoridade ou como domnio). Um problema que, se afeta as cincias humanas de maneira geral, no poderia deixar de incidir sobre o anarquismo.

    O ANARQUISMO E A TEORIA DO PODER Bertolo identifica a lacuna existente nas discusses tericas anarquistas sobre o tema

    do poder. Tratar-se-ia, para ele, no necessariamente de desatar, mas ao menos de precisar claramente um n conceitual extremamente complexo e no simplesmente de colocar-se em acordo em relao s palavras , um n central dentro do pensamento anarquista.

    Paradoxalmente, coloca, o anarquismo que pode ser considerado como a crtica mais radical da dominao explicitada at o momento, crtica terica e crtica prtica no produziu uma teoria do poder mais articulada e sutil do que as apologias da dominao.

    O autor acredita que as geniais intuies sobre o poder que os pais do anarquismo tiveram, no foram seguidas por uma reflexo adequada importncia das mesmas. Intuies que, conforme coloca, ainda hoje seriam fecundas, mas que, se no forem objeto de discusso e aprofundamento, correm o risco de esclerosar-se em frmulas estereotipadas, em

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    crenas, em tabus, perdendo grande parte de sua utilidade como hipteses fundamentais de trabalho para a interpretao e para a transformao da realidade.

    A necessidade de aprofundamento no debate sobre o poder, portanto, seria fundamental no campo libertrio, para o estabelecimento de mtodos de anlise adequados e de estratgias capazes de levar a cabo a transformao social. Para isso, no bastariam as intuies que Bertolo entende estar presentes nos clssicos: As intuies esclerosam-se e a relativa falta de preciso terminolgica e conceitual, inevitvel e talvez necessria nos primeiros desenvolvimentos da reflexo, convertem-se em obstculo para o progresso do pensamento e da ao, fonte de injustificveis ortodoxias e, portanto, de injustificveis heresias, de imobilismo tradicional e de besteiras inovadoras, de discusses semnticas e de impotncia social.

    O presente escrito de Bertolo tem por objetivo, como ele mesmo afirma, modesta e ambiciosamente propor algumas definies que segundo o autor poderiam tornar o debate entre anarquistas no somente mais enriquecedor, mas tambm tornar menos rdua a confrontao entre anarquistas e no-anarquistas. De outra maneira, acredita, corre-se o risco de continuar num dilogo de surdos. Para isso, prope definir, em termos de forma e contedo, poder, autoridade e dominao: est claro que o trabalho de definio est dirigido no tanto aos termos, mas aos conceitos que esto por trs dos termos e aos contedos que esto por trs dos conceitos.

    PROPOSTAS DE DEFINIO Buscando um alinhamento conceitual, Bertolo sugere definies padro para poder,

    autoridade e dominao.

    Poder A produo e a aplicao de normas e sanes definem ento a funo de regulao

    social, uma funo para a qual proponho o termo poder. O autor acredita que o poder, definido nesses termos, possui relao com o conceito de fora coletiva de Proudhon e tambm com a definio de Lasswell e Kaplan colocada anteriormente: O poder a participao nas tomadas de deciso e uma deciso uma linha de conduta que comporta sanes severas. Acredita que Clastres tambm trabalha com uma definio semelhante ao distinguir o poder no-coercitivo, que se assemelharia a essa definio de poder, e o poder coercitivo, que est prximo da definio do autor para dominao. Para Clastres, o poder poltico como coero (ou como relao de mando-obedincia) no o modelo do verdadeiro

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    poder, mas simplesmente um caso particular. Tambm sustenta que o social no pensvel sem o poltico, em outras palavras, no h sociedade sem poder.

    Neste sentido, h alguns elementos que devem ser destacados. Para Bertolo, poder define-se em torno da regulao social e pode ou no ser coercitivo (implicar dominao, portanto). Neste sentido, como qualquer sociedade possui sistemas de regulao, no haveria, neste sentido, sociedade sem poder, endossando a afirmao de Clastres.

    Identificando que se utiliza na literatura sobre o tema o termo poder para designar distintas categorias conceituais, o autor prope conservar este termo s para definir [...] a funo social de regulao, o conjunto dos processos com os quais uma sociedade regula-se, produzindo normas, aplicando-as, fazendo-as respeitar. E neste sentido, define o poder a partir de um nvel macro, que funcionaria em termos de gesto societria e estaria ligado aos processos de tomada de deciso.

    Autoridade Para a categoria autoridade, Bertolo defende a seguinte utilizao: proponho,

    finalmente, chamar autoridade as assimetrias de competncia que determinam assimetrias de determinaes recprocas entre os indivduos e a influncia nas assimetrias por razo das caractersticas pessoais. Neste sentido, a autoridade estaria ligada fundamentalmente capacidade de exercer bem uma determinada atividade e s mltiplas influncias que, pessoalmente, se exercem neste sentido. Distinguindo as relaes pessoais e funcionais, Bertolo coloca: no caso das relaes pessoais, podemos definir a assimetria como influncia; no caso das relaes funcionais podemos definir a assimetria como autoridade.

    Dominao A dominao define, ento, as relaes entre desiguais desiguais em termos de

    poder, ou seja, de liberdade , define as situaes de supraordenao e subordinao; define os sistemas de assimetria permanente entre grupos sociais. A dominao, neste sentido, implicaria as desigualdades de poder que definiriam relaes de mando/obedincia permanentes, tambm em nvel macro, no entre indivduos, mas entre grupos sociais (castas, classes etc.).

    A relao de dominao fundamenta-se, portanto, nas relaes de mando/obedincia, nas quais o mando possui um contedo de regulao do comportamento daquele que obedece. Essa relao de mando/obedincia, segundo Bertolo, no se d por meio da funo de regulao. Ele defende que no se obedece (em um sentido amplo) uma norma; para ele

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    uma norma se respeita. A obedincia est ligada a um mando, ou seja, forma em que se apresenta a norma dentro de um sistema de dominao. Assim, a dominao estaria ligada fundamentalmente expropriao da funo de regulao exercida por uma minoria, responsvel por impor suas regras ao resto da sociedade ou seja, estaria ligada imposio.

    Portanto, se a funo social de regulao de uma sociedade exercida somente por uma parte da sociedade, se o poder ento monoplio de um setor privilegiado (dominante), isso d lugar a outra categoria, a um conjunto de relaes hierrquicas de mando/obedincia que proponho chamar de dominao. A dominao, assim definida, implicaria monoplio do poder e hierarquia.

    PODER, AUTORIDADE E DOMINAO Definidos nestes termos, Bertolo afirma que poder e autoridade seriam conceitos

    neutros, ou seja, no so necessariamente nem bons e nem ruins. A autoridade implicaria algo evidente na sociedade: as diferenas de competncias entre indivduos e grupos e a interao e influncia mtua que se exerce entre os diversos agentes em qualquer relao social. Ou seja, uma categoria que abarca e assume como inevitvel a diversidade social. Em relao ao poder, coloca o autor: definimos assim o poder como uma funo social neutra e inclusive necessria, no somente para a existncia da sociedade, da cultura e do homem, mas tambm para o exerccio daquela liberdade vista como escolha entre possibilidades determinadas, que tomamos como ponto de partida de nosso discurso.

    Essa relao entre poder e liberdade permite compreender mais as proposies de Bertolo. Para ele, a liberdade est diretamente ligada s possibilidade de escolha que cada um possui e, assim, fundamental para a liberdade como autodeterminao o nvel de participao no processo de regulao, porque o indivduo mais livre [...] quanto maior seu acesso ao poder. Se o poder define-se em torno das funes de regulao de uma sociedade, natural que, quanto mais essas funes forem compartilhadas, maior seria o nvel de liberdade dessa sociedade. Um acesso ao poder igual para todos os membros de uma sociedade , ento, a primeira e iniludvel condio de uma liberdade igual para todos. O que o autor chama de poder para todos, ou seja, uma democratizao generalizada do poder, ou pelo menos uma generalizao das oportunidades para o acesso ao poder, seriam fundamentais para processos societrios de liberdade, de igualdade e, por que no, de democracia.

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    A diferenciao entre os conceitos de poder e dominao fundamental para Bertolo. Poder, como se viu, implicaria regulao social. Este poder pode ser mais ou menos compartilhado em uma determinada sociedade e, quando ele exercido por uma minoria a partir de relaes hierrquicas de mando/obedincia, isso significa que esse poder implica dominao. Quanto mais coletivo o poder, maior a liberdade de uma sociedade e portanto, possvel notar uma ligao realizada pelo autor entre liberdade e igualdade.

    CONTRIBUIES FILOSFICAS O artigo de Bertolo traz ainda algumas reflexes filosficas que podem auxiliar na

    compreenso do tema. Abaixo esto os principais eixos de discusso, que sero apresentados brevemente.

    Bertolo quer levar em conta as determinaes culturais do homem e no as determinaes naturais marcadas pelo instinto e pelo ambiente, que, segundo acredita, no desempenham um papel anlogo nesse estranho animal que o homem. Para ele, o homem no conhece instinto no sentido restrito (ou seja, respostas precisas de comportamento herdadas geneticamente frente a estmulos ambientais dados), mas, no mximo, rastros ou resduos de instinto, que possuem escasso ou nulo significado social. Portanto, ele compreende que para o homem, o ambiente mais cultural que natural, j que o ambiente do ser humano est constitudo por relaes com outros homens e que as relaes com o mundo dos objetos passam por uma mediao simblica. Assim, uma discusso sobre o poder deve fugir da busca dos instintos naturais do homem, que estariam presentes em uma determinada natureza humana.

    Como para ele o ambiente humano muito mais cultural do que natural, o poder, nessa perspectiva de regulao social, no provm de um instinto natural ou de uma determinada natureza humana, mas de uma determinada cultura forjada nas relaes sociais. O homem deve produzir normas, mas pode produzir as normas que quiser. As normas seriam, ento, uma operao central da sociedade e seu contedo no estaria determinado a priori, mas seria forjado em meio a uma realidade que ao mesmo tempo cultural e social.

    Essa realidade social forjada por uma relao dialtica entre indivduo e sociedade, relao em que o indivduo, ainda que tambm possa determinar a sociedade, mais determinado por ela: o indivduo singular sempre mais determinado pela sociedade do que ele pode determin-la. O homem produz a sociedade coletivamente, mas modelado por ela individualmente.

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    Assim, se poderia dizer que um tipo de poder que implique dominao no deve ser analisado pelos instintos naturais ou pela natureza humana do homem, mas por suas relaes, que implicam aspectos sociais e culturais. Bertolo identifica dois tipos fundamentais de justificativas da dominao: um primeiro tipo de enfoque o que, partindo da dominao para o poder, justifica a primeira com motivaes biopsicolgicas (ou seja, mecanismos psicolgicos naturais, inatos): h personalidades predispostas naturalmente dominao e outras naturalmente predispostas submisso. Esse enfoque apia-se nos elementos estruturais mais atrativos chegando a dizer que a subdiviso natural dos homens em duas categorias (os amos por natureza e os escravos por natureza) produz efeito benfico para ambos e, no fundo, um admirvel artifcio da natureza ou da providncia para tornar a sociedade humana possvel e as vantagens que disso derivam. O segundo tipo de enfoque cultural, e aqueles que o defendem consideram insustentveis as explicaes naturais do poder/dominao. A partir desse enfoque, considera-se que o poder/dominao no efeito de uma desigualdade preexistente, mas, ao contrrio, a causa da primeira desigualdade fundamental entre os homens.

    Bertolo acredita ainda poder classificar os enfoques sobre a gnese do poder/dominao diferentemente: aqueles que explcita ou implicitamente o pressupem, aparecendo ao mesmo que o homem e/ou sua sociedade, e aqueles que postulam o nascimento em um certo momento da histria.

    Em seu conceito de dominao, o autor descarta os enfoques biopsicolgicos, naturais, pretendendo uma abordagem cultural da dominao. Para ele, estudos como os de Clastres, como por exemplo A Sociedade Contra o Estado, demonstram que h um histrico de culturas que no possuam dominao, mas apenas poder. Ainda que seja uma hiptese, Bertolo identifica a origem da dominao como uma mudana cultural na sociedade que teria ocorrido num momento determinado, quando o homem j vivia em sociedade.

    ANARQUISMO, PODER, AUTORIDADE E DOMINAO A partir das definies propostas por Bertolo, algumas concluses so possveis.

    Dividindo as assimetrias nas relaes sociais entre autoridade (funcionais) e influncia (pessoais), pode-se afirmar que o autor trabalha com quatro categorias fundamentais:

    1. Poder: Funo social de regulao, conjunto de processos com os quais uma sociedade se regula produzindo normas, aplicando-as, fazendo-as respeitar.

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    2. Dominao: Funo social de regulao que exercida somente por uma parte da sociedade, sendo o poder monoplio de um setor privilegiado (dominante) e implicando relaes hierrquicas e de mando/obedincia.

    3. Autoridade: Assimetrias de competncia que determinam assimetrias de determinaes recprocas entre os indivduos.

    4. Influncia: Assimetrias existentes por razo das caractersticas pessoais.

    Quando o autor assume o poder e a autoridade (incluindo tambm a influncia) como categorias neutras, ele est realizando um julgamento a partir da tica/moral anarquista. Neutros, pois o anarquismo historicamente considerou, nesses termos, dentro do seu campo de relaes justificveis tica e moralmente, as relaes de influncia, de autoridade e tambm de poder entendendo-as, claramente, a partir das categorias definidas por Bertolo.

    Historicamente, o anarquismo colocou-se contrrio dominao: para os anarquistas, a regulao social deveria ser coletivizada, e as propostas de autogesto, de federalismo e de democracia direta sempre buscaram este sentido de compartilhar o poder e de exerc-lo em benefcio da coletividade.

    A sociedade capitalista e estatista foi sempre compreendida como uma sociedade no s de poder, mas de dominao, j que o poder no estaria coletivizado e seria exercido somente por uma minoria a qual foi chamada por diversos termos (classe dominante, classe capitalista, burguesia etc.) que exerceria hierarquia e relao de mando/obedincia maioria (a qual chamou-se de proletariado, classe oprimida, classe trabalhadora etc.).

    Neste sentido, a estratgia anarquista estaria voltada para transformar as relaes de dominao em relaes de poder, que no deveriam possuir hierarquia ou relaes de mando/obedincia em seu seio. O poder buscado pelo anarquismo deveria ser coletivizado, socializado, sendo a participao no poder, ou pelos menos a oportunidade de participao, aberta para todo o conjunto da populao, a qual deveria decidir suas regras e garantir sua aplicao com base em mecanismos de fato democrticos (democracia direta), garantidos pela autogesto e pelo federalismo.

    * Amedeu Bertolo. Poder, Autoridad, Dominio: una propuesta de definicin. Artigo originalmente publicado em 1983 na revista italiana Volont. Citaes traduzidas para o

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    portugus a partir da verso em espanhol, traduzida por Helosa Castellanos, disponibilizada na internet [http://www.anarkismo.net/article/15050] e que consta na compilao organizada por Christian Ferrer, El Lenguaje Libertario, publicada pela Libros de Anarres, de Buenos Aires, em 2005.

    Notas:

    1. Recorri, para essa traduo, ao original em italiano Potere, autorit, dominio: una proposta di definizione. Em italiano, Bertolo coloca: Potere deriva dal latino potis (padrone, possessore), cos come dominio deriva da dominus (padrone di casa, capofamiglia); autorit invece viene dal latino auctor che significava originariamente colui che fa crescere, che accresce. Trecho um tanto diferente da traduo para o castelhano: Poder deriva del latn polis (= patrin, amo) as como Dominacin deriva de dominus (dueo de casa, jefe de familia); Autoridad, en cambio, proviene del latn auctor, que en su origen significa el que hace crecer, el que acrecienta. A verso em italiano pode ser lida em http://asperimenti.noblogs.org/files/2010/10/Potere_autorit%25C3%25A0_dominio.pdf.

    2. Bibliografia (por ordem de citao): A. Lalande, Dizionario critico di filosofia, ISEDI, Miln, 1971. / H. D. Lasswell y A. Kaplan, Potere e societ, Etas, Miln, 1969. / G. Ferrero, Potere, Sugarco, Miln, 1981. / N. Poulantzas, in Franco Ferrarotti, La sociologia del potere, Laterza, Bari, 1972. / W. Mills, Politica e potere, Bompiani, Miln, 1970. / B. De Jouvenel, Il Potere, Rizzoli, Miln, 1947. / R. Mousnier, Le gerarchie sociali dal 1450 ai nostri giorni, Vita e pensiero, 1971. / B. Russell, Il potere, Feltrinelli, Miln, 1967. / M. Weber, Economa y sociedad, F.C.E., Mxico, 1980. / N. Luhman, Potere e complessit sociale, Il Saggiatore, Miln, 1979. / N. Abbagnano, Dizionario di filosofia, UTET, Turn, 1964. / R. Sennet, La autorit, Bompiani, Miln, 1981. / M. Horkheimer, citado por T. Eschemburg, Dellautorit, Il Mulino, Bolonia, 1970. / G. Simmel, Il dominio, Bulzoni, Roma, 1978. / R. Dahrendorf, Classi e conflitto de classe nella societ industriale, Laterza, Bari, 1970.

    3. Pode-se falar que Proudhon era contra a autoridade e conseguir facilmente trechos de seus escritos com essa afirmao. Da mesma maneira, pode-se afirmar que Bakunin era contra o poder e tambm conseguir respaldo em seus textos tericos. No entanto, ambas as afirmaes tornam-se vazias se no se coloca o que Proudhon entendia por autoridade e o que Bakunin entendia por poder. Aplicando brevemente uma anlise de contedo em relao s afirmaes colocadas, pode-se dizer que Proudhon, ao afirmar-se contrrio autoridade, opunha-se autoridade como alienao e apropriao por monoplio da fora coletiva; Bakunin, ao opor-se ao poder, colocava-se contrrio ao Estado. Sem o aprofundamento da discusso nesses termos, o debate sobre o poder esvazia-se completamente.

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    PARA UMA TEORIA LIBERTRIA DO PODER (III) FOUCAULT E O PODER NOS DIVERSOS NVEIS E ESFERAS

    Neste terceiro artigo da srie, utilizarei para discusso um conjunto de artigos de Michel Foucault presentes em dois livros: Microfsica do Poder e Estratgia Poder-Saber.[*] Ainda que as reflexes de Foucault sobre o poder estejam presentes em diversos livros e artigos, ligados sempre maneira prtica que ele encontra para a aplicao de suas anlises em casos especficos do poder na medicina, na psiquiatria, na sexualidade, etc. , tentarei extrair, em linhas gerais, os principais argumentos tericos de sua discusso sobre o poder desses textos, sem discutir suas aplicaes prticas.[1]

    importante ter em mente que os pontos de vista aqui colocados constituem muito mais uma hiptese sobre a teoria de Foucault sobre o poder do que uma sntese que interpreta profundamente o conjunto de seu pensamento. Seria impossvel realizar uma interpretao ampla de suas posies acerca do poder sem a leitura da maior parte de sua obra, o que outros autores fizeram muito bem a meu ver.[2] Portanto, meu objetivo com o artigo no dar uma idia sobre a concepo geral de poder em Foucault, mas constituir uma hiptese, fundamentada na bibliografia citada, de elementos que contribuam de maneira mais ampla com uma teoria libertria do poder. Realizarei, nesse sentido, exerccios tericos com o intuito de responder questes que o prprio autor no respondeu em seu tempo, e certamente teve seus motivos para isso. Finalmente, farei uma leitura desses artigos utilizando-me de categorias que no pertencem ao campo de anlise de Foucault; assim, ser evidente o enquadramento e a classificao com base em categorias exteriores ao seu sistema terico, e que podem no lhe ser familiares ou mesmo ter divergncias de sua parte. O que, a meu ver no invalida a anlise realizada.[3]

    A NECESSIDADE DE INSTRUMENTOS PARA A ANLISE DO PODER Foucault acredita que h uma necessidade central de se pensar esse problema do

    poder, assim como a ausncia de instrumentos conceituais para pens-lo[EPS, p. 226]; ou seja, haveria a insuficincia de uma anlise estratgica prpria luta poltica luta no campo do poder poltico[EPS, p. 251]. Para ele, o poder, em suas estratgias, ao mesmo tempo gerais e sutis, em seus mecanismos, nunca foi muito estudado.[MP, p. 141] nesse sentido que considera um de seus principais problemas tericos, forjar instrumentos de anlise [...] sobre a realidade que nos contempornea e sobre ns mesmos[EPS, p. 240].

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    Uma teoria sobre o poder, nesse sentido, teria como papel no formular a sistemtica global que repe tudo no lugar, mas analisar a especificidade dos mecanismos de poder, balizar as ligaes, as extenses, edificar pouco a pouco um saber estratgico[EPS, p. 251]. Esse o foco terico que Foucault d para suas anlises do poder: uma produo que prioriza o micro em relao ao macro e considera, como se discutir adiante, que a estruturao da sociedade possui uma determinao ao mesmo tempo de cima para baixo das grandes instituies e relaes de poder para os nveis mais bsicos e simples das relaes sociais e de baixo para cima, no sentido contrrio; o mesmo movimento que se d entre centro e periferia. Se verdade que os tericos clssicos da poltica investiram significativamente nesse macro-nvel das relaes de poder, Foucault prioriza, distintamente, o micro-nvel dessas relaes, e essa uma de suas grandes inovaes no estudo do poder.

    Para tanto, ele prope que se conceba a teoria como uma caixa de ferramentas, o que significa que se trata de construir no um sistema, mas um instrumento: uma lgica prpria s relaes de poder e s lutas que se engajam em torno delas, e, ao mesmo tempo que essa pesquisa s pode se fazer aos poucos, a partir de uma reflexo (necessariamente histrica em algumas de suas dimenses) sobre situaes dadas.[EPS, p. 251] Essa concepo da teoria como caixa de ferramentas implica, assim, um conjunto de instrumentos que, de acordo com uma situao dada, pode-se utilizar, tendo por objetivo uma anlise determinada e que serve para algumas situaes, mas no necessariamente para todas. Foucault enfatiza ainda a necessidade de que a pesquisa sobre as relaes de poder utilize-se de uma abordagem histrica, o que me parece constituir uma rejeio de esquemas puramente sociolgicos, que poderiam ser aplicados em qualquer circunstncia, independente dos fatores tempo e lugar: se o objetivo for construir uma teoria do poder, haver sempre a necessidade de consider-lo como algo que surgiu em um determinado ponto e em um determinado momento, de que se dever fazer a gnese e depois a deduo.[MP, p. 248]

    Em relao a essa elaborao terica, recomenda Foucault: qualquer um que tente fazer qualquer coisa elaborar uma anlise, por exemplo, ou formular uma teoria deve ter uma idia clara da maneira como quer que sua anlise ou sua teoria sejam utilizadas; deve saber a que fins ele almeja ver se aplicar a ferramenta que ele fabrica que ele prprio fabrica , e de que maneira ele quer que suas ferramentas se unam quelas fabricadas por outros, no mesmo momento. Considero muito importantes as relaes entre a conjuntura presente e o que fazemos no interior de um quadro terico. preciso ter essas relaes de modo bem claro na mente. No se podem fabricar ferramentas para no importa o qu; preciso fabric-las para um fim preciso. Portanto, essa recomendao implica que o terico tenha em mente a

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    finalidade da ferramenta que elabora e saiba como essa ferramenta relaciona-se com a conjuntura que deseja analisar.

    Constatando a insuficincia de instrumentos conceituais para uma anlise mais aprofundada do poder, Foucault prope, para suprir essa lacuna, a elaborao de uma teoria que oferea ferramentas capazes de proporcionar a devida compreenso das relaes de poder. Se o poder na realidade um feixe aberto, mais ou menos coordenado (e sem dvida mal coordenado) de relaes, coloca, ento o nico problema munir-se de princpios de anlise que permitam uma analtica das relaes de poder.[MP, p. 248]

    QUESTES CENTRAIS PARA A COMPREENSO DO PODER Seria possvel perguntar: o poder no um tema central das cincias humanas em

    geral e das cincias sociais em particular, que vem sendo estudado h sculos? De certa maneira sim. No entanto, Foucault acredita que as formulaes tericas que buscaram constituir ferramentas para as anlises do poder possuem srias limitaes. Buscando trabalhar sobre esse conjunto terico para a compreenso mais adequada e completa do poder, ele aprofunda as anlises clssicas sobre o tema, agregando novos elementos que permitem uma compreenso mais significativa da questo. Creio, nesse sentido, que a maior contribuio de Foucault seja a elaborao de uma teoria que complemente as anlises clssicas do poder, ainda que, em alguns casos, sua teoria negue aspectos centrais dessas teorias clssicas.

    As questes centrais, para Foucault, so: 1. O que so o poder e as relaes de poder? 2. Aonde est o poder e aonde se do as relaes de poder? 3. Como se constitui o poder e como funcionam as relaes de poder? Ainda que o autor no sistematize dessa forma, creio que essa forma esquemtica permite uma apresentao mais didtica, que facilita a compreenso.

    As questes tericas so trazidas por Foucault no bojo de uma reflexo sobre seus objetos de estudo (medicina, psiquiatria, prises, sexualidade, etc.). Ao mesmo tempo em que ele realiza crticas de abordagens anteriores, formula seus prprios pontos de vista, os quais se constituem, em grande medida, visando suprir as lacunas deixadas por teorias anteriormente concebidas. Por isso o carter muitas vezes dicotmico da apresentao das idias que farei; por um lado criticam e por outro propem. Utilizarei essas dicotomias para explicitar, quando da elaborao de um aspecto terico, quais so as suas posies.

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    O PODER E AS RELAES DE PODER

    O poder como produo Foucault acredita que muitas anlises do poder tentam vincul-lo a uma concepo

    fundamentalmente negativa, repressiva, de reduo dos procedimentos de poder lei de interdio[EPS, p. 246] dando, por esse motivo, ao poder, uma conotao freqentemente jurdica e repressiva, associando-o muitas vezes ao Estado. Para ele, em geral, nessas anlises, o problema sempre apresentado nos mesmos termos: um poder essencialmente negativo que supe, de um lado, um soberano, cujo papel o de interditar e, do outro, um sujeito que deve, de uma certa maneira, dizer sim a essa interdio.[EPS, p. 247] Essa abordagem, do poder essencialmente como elemento de negao, para Foulcault, possui trs papeis fundamentais: 1.) Ela permite fazer um esquema do poder que homogneo no importa em que nvel nos coloquemos e seja qual for o domnio (famlia ou Estado, relao de educao ou de produo. 2.) Ela permite nunca pensar o poder seno em termos negativos: recusa, delimitao, barreira, censura. O poder o que diz no. E o enfrentamento com o poder assim concebido s aparece como transgresso. 3.) Ela permite pensar a operao fundamental do poder como um ato de fala: enunciao da lei, discurso da interdio. A manifestao do poder reveste a forma pura do tu no deves.[EPS, p. 246]

    Por meio dos argumentos apresentados, Foucault vai negar essa abordagem que conceitua o poder somente pela negao. Para ele, o poder pode at ser negao, mas , fundamentalmente, produo, construo: o interdito, a recusa, a proibio, longe de serem as formas essenciais do poder, so apenas seus limites, as formas frustradas ou extremas. As relaes de poder so, antes de tudo, produtivas.[MP, p. 236]

    A abordagem exclusivamente negativa do poder, nesse sentido, seria inadequada: a noo de represso totalmente inadequada para dar conta do que existe justamente de produtor no poder. Quando se define os efeitos do poder pela represso, tem-se uma concepo puramente jurdica deste mesmo poder; identifica-se o poder a uma lei que diz no. O fundamental seria a fora da proibio.[MP, pp. 7-8] Na realidade, o autor acredita que a noo de poder como negao foi aceita de maneira generalizada, o que lhe parece um erro crasso; essa noo negativa do poder estreita e esqueltica.[MP, p. 8]

    Se o poder fosse somente repressivo, questiona, se no fizesse outra coisa a no ser dizer no, voc acredita que seria obedecido? Foucault acredita que no; o que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito simplesmente que ele no pesa s como uma fora que diz no, mas que de fato permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz

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    discurso. Deve-se consider-lo como uma rede produtiva que atravessa todo o corpo social muito mais do que uma instncia negativa que tem por funo reprimir.[Ibid.] Se o poder s tivesse a funo de reprimir, se agisse apenas por meio da censura, da excluso do impedimento, do recalcamento, maneira de um grande super-ego, se apenas se exercesse de um modo negativo, ele seria muito frgil. Se ele forte, porque produz efeitos positivos a nvel do desejo como se comea a conhecer e tambm a nvel do saber. O poder, longe de impedir o saber, o produz.[MP, p. 148]

    Portanto, o primeiro aspecto relevante da teoria de Foucault para se pensar ao poder rechaar seu aspecto essencialmente negativo definido exclusivamente em termos jurdicos, repressivos e, frequentemente, de Estado e assumir que o poder permeia as relaes sociais, produzindo, induzindo, constituindo. Assim, o poder pode possuir aspectos de negao, mesmo que nunca se resuma a eles, visto que ele envolve, acima de tudo, a produo.

    O poder como relao de fora Para Foucault, em sua poca, as abordagens sobre o poder provindas tanto do campo

    da direita como da esquerda eram insuficientes: No vejo quem na direita ou na esquerda poderia ter colocado este problema do poder. Pela direita, estava somente colocado em termos de constituio, de soberania, etc., portanto em termos jurdicos; e, pelo marxismo, em termos de aparelho do Estado. Ningum se preocupava com a forma como ele se exercia concretamente e em detalhe, com sua especificidade, suas tcnicas e suas tticas. Ainda que, aparentemente, se tratasse do tema, ele acredita que a mecnica do poder nunca era analisada. Situao que, segundo sustenta, s se modificaria no fim dos anos 1960: S se pde comear a fazer este trabalho depois de 1968, isto , a partir das lutas cotidianas e realizadas na base com aqueles que tinham que se debater nas malhas mais finas da rede do poder. Foi a que apareceu a concretude do poder e ao mesmo tempo a fecundidade possvel destas anlises do poder, que tinham como objetivo dar conta destas coisas que at ento tinham ficado margem do campo da anlise poltica.[MP, p. 6]

    Para que as anlises do poder fossem realizadas a contento, o modelo que se apia nas solues eminentemente jurdicas que trata a problemtica do poder somente em termos de constituio, lei, proibio etc. deveria ser descartado, pois foi muito utilizado e mostrou [...] ser inadequado. Ainda que trabalhando com hipteses, Foucault afirma que, por essa insuficincia de modelo, pareceria mais adequado um outro modelo, que ele chama de guerreiro ou estratgico, ou seja, aquele que se fundamenta nas relaes de foras.

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    Conceber o poder a partir das relaes de foras o leva a trabalhar com a juno de duas hipteses: por um lado, os mecanismos de poder seriam de tipo repressivo, idia que chamarei por comodidade de hiptese de Reich; por outro lado, a base das relaes de poder seria o confronto belicoso de foras, idia que chamarei, tambm por comodidade, de hiptese de Nietzsche. Duas hipteses que, segundo acredita, no so inconciliveis e parecem se articular.[MP, p. 176] Essa concepo do poder, a partir das hipteses de Reich e Nietzsche, diferencia-se de uma outra mais clssica, se poderia dizer, utilizada por filsofos do sculo XVIII , que se fundamenta no poder como direito originrio que se cede, constitutivo da soberania, tendo o contrato como motriz.[MP, p. 177] Concebido dessa maneira, o poder se fundamentaria na idia de um contrato e os excessos ou rompimentos desse contrato poderiam levar esse poder a tornar-se opressivo.

    As hipteses de Reich e Nietzsche distintamente dessa concepo contratual de poder buscariam analisar o poder poltico, no mais segundo o esquema contrato-opresso, mas segundo o esquema guerra-represso; neste sentido, a represso no seria mais o que era a opresso com respeito ao contrato, isto , um abuso, mas, ao contrrio, o simples efeito e a simples continuao de uma relao de dominao. A represso seria a prtica, no interior desta pseudo-paz, de uma relao perptua de fora.[Ibid.] Na realidade, Foucault acredita que Nietzsche trouxe contribuies relevantes para o estudo das relaes de poder, sendo, por isso, um filsofo do poder, mas que chegou a pensar o poder sem se fechar no interior de uma teoria poltica.[MP, p. 143]

    Tateando para buscar responder a primeira questo central sobre o poder O que so o poder e as relaes de poder? , Foucault coloca que talvez ainda no se saiba o que o poder.[MP, p. 75] Suas investigaes, em grande medida, vo buscar compreender as relaes de poder como colocado, fundamentalmente em seus nveis mais micro para que se chegue a uma resposta adequada para a difcil questo. Apesar dessa reticncia em apontar inicialmente um conceito bem definido, Foucault continua as reflexes e traz elementos relevantes para se pensar a questo. Um primeiro aspecto, negado inicialmente, que no se pode conceber o poder simplesmente como um sinnimo de Estado: a teoria do Estado, a anlise tradicional dos aparelhos de Estado sem dvida no esgotam o campo de exerccio e de funcionamento do poder.[Ibid.] Assim, seria necessrio conceber uma definio mais ampla, que desse conta de um fenmeno que poderia ter relaes com o Estado, mas que no se resumisse a ele. Similarmente, o autor acredita que no seria possvel conceber o poder somente em termos econmicos.

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    Assim, buscando uma definio do poder dentro desses pressupostos, Foucault fundamenta-se na hiptese de Nietzsche colocada anteriormente para questionar: se o poder , em si prprio, ativao e desdobramento de uma relao de fora [...], no deveramos analis-lo, acima de tudo, em termos de combate, de confronto e de guerra?. Trabalhar com essa hiptese, significaria que o poder guerra, guerra prolongada por outros meios. A clssica posio de Clausewitz, de que a guerra continuao da poltica por outros meios, seria, assim, invertida, podendo-se afirmar que a poltica a guerra prolongada por outros meios[MP, p. 176], inverso que implicaria, para Foucault, trs afirmaes.

    1.) Que as relaes de poder nas sociedades atuais tm essencialmente por base uma relao de fora estabelecida, em um momento historicamente determinvel, na guerra e pela guerra. E se verdade que o poder poltico acaba a guerra, tenta impor a paz na sociedade civil, no para suspender os efeitos da guerra ou neutralizar os desequilbrios que se manifestaram na batalha final, mas para reinscrever perpetuamente estas relaes de fora, atravs de uma espcie de guerra silenciosa, nas instituies e nas desigualdades econmicas, na linguagem e at no corpo dos indivduos. A poltica a sano e a reproduo do desequilbrio das foras manifestadas na guerra.

    2.) Que, no interior desta paz civil, as lutas polticas, os confrontos a respeito do poder, com o poder e pelo poder, as modificaes das relaes de fora em um sistema poltico, tudo isto deve ser interpretado apenas como continuaes da guerra, como episdios, fragmentaes, deslocamentos da prpria guerra. Sempre se escreve a histria da guerra, mesmo quando se escreve a histria da paz e de suas instituies.

    3.) Que a deciso final s pode vir da guerra, de uma prova de fora em que as armas devero ser os juizes. O final da poltica seria a ltima batalha, isto , s a ltima batalha suspenderia finalmente o exerccio do poder como guerra prolongada. [Ibid.]

    Essas trs afirmaes permitem certa anlise. A utilizao da lgica da guerra e da paz para a explicao do poder fundamenta-se no fato de que poder implica fora, j que, conforme coloca Foucault, relaes de poder implicam relaes de foras. Foras que estariam em disputa, em luta permanente, em correlao e num jogo contnuo e dinmico chamado de guerra, dentro do qual distintas ferramentas e tecnologias poderiam ser utilizadas para a ampliao das foras. A guerra, nesse sentido, no deve ser entendida somente como conflito armado ou militar, mas como disputa e luta permanentes entre as diversas foras em jogo, que podem ser mais ou menos evidentes e violentas, mas que sempre existem e possuem um custo para aqueles que detm o poder.

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    o nvel de estabilidade das foras em jogo, conforme elas se assentam, que determina o que se chama mais comumente de situao de guerra ou de paz. Para Foucault, no entanto, a paz no mais do que uma situao de guerra estabilizada, em que determinadas foras se impem, ainda que isso acontea sem o fim das outras foras de menor eficcia. Por isso a afirmao de que, mesmo na paz h guerra, j que, ainda que uma fora tenha se imposto na relao, as outras, ou mesmo novas foras, continuaro a disputa e a luta, mais ou menos evidentemente.

    O conjunto ou o universo de regras que deriva de uma situao de conflito, e portanto da guerra, e que por vezes institui a paz, satisfazem, na realidade, a violncia intrnseca ao jogo de poder: esse universo de regras [...] no destinado a adoar, mas ao contrrio a satisfazer a violncia. Seria um erro acreditar, segundo o esquema tradicional, que a guerra geral, se esgotando em suas prprias contradies, acaba por renunciar violncia e aceita sua prpria supresso nas leis da paz civil. A regra o prazer calculado da obstinao, o sangue prometido. Ela permite reativar sem cessar o jogo da dominao; ela pe em cena uma violncia meticulosamente repetida. O desejo da paz, a doura do compromisso, a aceitao tcita da lei, longe de serem a grande converso moral, ou o til calculado que deram nascimento regra, so apenas seu resultado e, propriamente falando, sua perverso: Falta, conscincia, dever tm sua emergncia no direito de obrigao; e em seus comeos, como tudo o que grande sobre a Terra, foi banhado de sangue.[MP, p. 25] Portanto, para Foucault, a paz a instituio, ou a prpria institucionalizao da violncia da guerra.

    nesse sentido que um conjunto de decises s pode, realmente, vir da guerra, j que as decises surgem a partir do estabelecimento de relaes de poder, as quais envolvem todas as foras em jogo. Foucault sustenta que uma relao de poder tem por base uma relao de fora estabelecida, ou seja, quando, em uma determinada correlao de foras, alguma delas se impe em relao s outras, h uma relao de poder, que est localizada no tempo e no espao. Por isso Foucault caracteriza a poltica como a interveno/participao em uma determinada correlao de foras, sempre desequilibrada, que pode realizar-se em sentido favorvel, de impulsionar determinada fora, ou no sentido oposto, de cont-la.

    A histria, assim, s poderia ser uma histria do poder, forjada nas relaes de dominao, responsvel por estabelecer, no corpo social, dominadores e dominados. Homens dominam outros homens e assim que nasce a diferena dos valores; classes dominam classes e assim que nasce a idia de liberdade; homens se apoderam de coisas das quais eles tm necessidade para viver, eles lhes impem uma durao que elas no tm, ou eles as assimilam pela fora e o nascimento da lgica.[MP, pp. 24-25] Um acontecimento histrico, nesse

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    sentido, uma relao de foras que se inverte, um poder confiscado, um vocabulrio retomado e voltado contra seus utilizadores, uma dominao que se enfraquece, se distende, se envenena e uma outra que faz sua entrada, mascarada.[MP, p. 28] A histria, a realidade, segundo Foucault, deve ser pensada em termos das relaes de poder e, portanto, pode-se inferir que, para ele, o poder o motor da histria.

    Falar que o final da poltica seria a ltima batalha, e que s essa batalha seria capaz de acabar com a situao de guerra e com o prprio poder, parece uma sutileza de Foucault para dizer que o final da poltica, e do prprio poder, s existiria com o fim da histria.

    * * *

    H, no sentido colocado, uma preferncia de Foucault em no falar em poder, mas em relaes de poder, j que o poder em si, para ele, no existiria como noo apartada da idia de disputa e luta de foras que se impem umas s outras. Por isso sua afirmao de que as relaes de poder so uma relao desigual e relativamente estabilizada de foras[MP, p. 250] e que lutamos todos contra todos[MP, p. 257]. A situao de guerra permanente colocaria todos os indivduos, e suas respectivas foras, em disputa e luta permanente, e por isso ele afirmar, como ser discutido mais frente, que o poder se d em todas as esferas e nveis, quando h imposio de fora em uma determinada relao.

    No entanto, h um porm: a pura e simples afirmao de uma luta no pode servir de explicao primeira e ltima para a anlise das relaes de poder. Este tema da luta s se torna operatrio se for estabelecido concretamente, e em relao a cada caso, quem est em luta, a respeito de que, como se desenrola a luta, em que lugar, com quais instrumentos e segundo que racionalidade. Em outras palavras, se o objetivo for levar a srio a afirmao de que a luta est no centro das relaes de poder, preciso perceber que a brava e velha lgica da contradio no de forma alguma suficiente para elucidar os processos reais.[MP, p. 226] Uma condio que, segundo coloca Foucault, no foi cumprida pela concepo de luta de classes marxista, j que aqueles que a formularam se preocuparam principalmente em saber o que a classe, onde ela se situa, quem ela engloba e jamais o que concretamente a luta[MP, p. 242]; ou seja, teriam dado mais ateno ao conceito de classe do que ao conceito de luta. Analisar o poder, e portanto as lutas, implica, portanto, identificar atores que emergem, que entram em cena, um momento em que as foras passam dos bastidores para o teatro, designando um lugar de afrontamento.[MP, p. 24]

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    A relao do poder com a guerra, traz junto outra implicao de relevncia, que a estratgia, termo ao qual Foucault refere-se com freqncia: quando falo de estratgia, coloca, levo o termo a srio; para que uma determinada relao de foras possa no somente se manter, mas se acentuar, se estabilizar e ganhar terreno, necessrio que haja uma manobra [MP, p. 255]. Assim, a estratgia torna-se conceito central ao se tratar do poder, j que a concepo de relaes de foras implicaria sempre uma leitura da realidade, um objetivo estratgico e conjuntos tticos capazes de conduzir estratgia e aos objetivos almejados. Analisar o poder, seria, em outros termos, realizar uma genealogia das relaes de fora, de desenvolvimentos de estratgias e tticas.[MP, p. 5]

    Finalmente, Foucault coloca: o poder um feixe de relaes mais ou menos organizado, mais ou menos piramidalizado, mais ou menos coordenado[MP, p. 248]; uma coisa to enigmtica, ao mesmo tempo visvel e invisvel, presente e oculta, investida em toda parte.[MP, p. 75] Nada mais material, nada mais fsico, mais corporal que o exerccio do poder.[MP, p. 147]

    um risco tentar elaborar uma resposta de Foucault para a primeira questo formulada, j que a anlise aqui realizada considera diferentes artigos, escritos em pocas diferentes, e desconsidera o contexto histrico dentro do qual esto inseridos. Encontra as limitaes colocadas no incio do artigo. Como Foucault sempre buscou elaborar suas reflexes tericas do poder com o objetivo de refletir sobre situaes concretas e reais seus objetos de investigao , retirar os aspectos tericos de suas reflexes, buscando elaborar uma teoria do poder, implica arriscar-se seriamente, j que essa nunca foi a inteno do autor. No entanto, a ttulo de exerccio terico, buscarei, sabendo desse risco, formular, a partir dos argumentos colocados, uma possvel resposta de Foucault para a questo: O que so o poder e as relaes de poder?

    O poder uma relao que se estabelece nas lutas e disputas (na guerra, portanto) entre diversas foras, quando uma fora se impe s outras. Assim, poder e relao de poder podem funcionar como sinnimos. As foras em jogo contnuo, dinmico e permanente, constituem a base das relaes em qualquer sociedade e as lutas e disputas podem estar mais ou menos evidentes, serem mais ou menos violentas, mas sempre existem. As relaes de poder so o conjunto dos poderes que se estabelecem entre as diversas foras em jogo. Relaes que s existem no espao e no tempo e que possuem diferentes caractersticas em termos de organizao, visibilidade, nvel de incidncia e espaos em que se do.

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    O LOCUS DO PODER E DAS RELAES DE PODER

    As trs esferas e o poder A ttulo analtico, trabalharei com a diviso da estrutura sistmica da sociedade em trs

    esferas fundamentais: econmica, poltica/jurdica/militar e cultural/ideolgica estrutura com a qual, aparentemente, Foucault no costuma trabalhar. Ser com base nessas esferas que realizarei a analise de onde Foucault acredita estar o poder, ou seja, como se poderia encontrar uma resposta para a segunda questo central sobre o poder: Aonde est o poder e aonde se do as relaes de poder? estabelecendo, dessa maneira, uma identificao do locus do poder.

    A esfera poltica/jurdica/militar Tratando de estudos prvios aos seus, Foucault afirma: A teoria do Estado, a anlise

    tradicional dos aparelhos de Estado, sem dvida no esgotam o campo de exerccio e de funcionamento do poder.[MP, p. 75] Isso porque o poder, em seu exerccio vai muito mais longe, passa por canais muito mais sutis, muito mais ambguo [que o aparelho de Estado], porque cada um de ns, , no fundo, titular de um certo poder e, por isso, veicula o poder.[MP, p. 160] Por isso, Foucault afirma que a busca pelo locus do poder no pode resumir-se ao campo do Estado. Obviamente, com isso, no est negando que no Estado no haja poder, mas que o poder tambm se d em esferas e nveis que esto para alm do Estado.

    Uma viso que no implica, de forma alguma, a inteno de diminuir a importncia e a eficcia do poder do Estado. Mas constitui uma preocupao, j que de tanto se insistir em seu papel, e em seu papel exclusivo, corre-se o risco de no dar conta de todos os mecanismos e efeitos do poder que no passam diretamente pelo aparelho de Estado, que muitas vezes o sustentam, o reproduzem, elevam sua eficcia ao mximo.[MP, p. 161] Assim, nota-se a preocupao de um certo reducionismo que, ao priorizar o Estado como locus do poder deixaria de lado uma srie de outros loci que possuem, para ele, relevncia. A questo do poder fica empobrecida quando colocada unicamente em termos de legislao, de Constituio, ou somente em termos de Estado ou de aparelho de Estado. O poder mais complicado, muito mais denso e difuso que um conjunto de leis ou um aparelho de Estado.[MP, p. 221]

    Estudar o poder para Foucault , portanto, consider-lo mais amplamente que o Estado, j que as relaes de poder [...] passam por muitas outras coisas. As relaes de poder existem entre um homem e uma mulher, entre aquele que sabe e aquele que no sabe, entre os pais e as crianas, na famlia. Na sociedade, h milhares e milhares de relaes de

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    poder e, por conseguinte, relaes de foras de pequenos enfrentamentos, microlutas, de algum modo.[EPS, p. 231] E, se por um lado pode haver influncias do Estado e tambm das dominaes de classe nessas outras relaes de poder, possvel afirmar que o contrrio tambm verdadeiro: Se for verdade que essas pequenas relaes de poder so com freqncia comandadas, induzidas do alto pelos grandes poderes de Estado ou pelas grandes dominaes de classe, preciso ainda dizer que, em sentido inverso, uma dominao de classe ou uma estrutura de Estado s podem funcionar se h, na base, essas pequenas relaes de poder. O que seria o poder de Estado, aquele que impe, por exemplo, o servio militar, se no houvesse, em torno de cada indivduo, todo um feixe de relaes de poder que o liga a seus pais, a seu patro, a seu professor quele que sabe, quele que lhe enfiou na cabea tal ou qual idia? A estrutura de Estado, no que ela tem de geral, de abstrato, mesmo de violento, no chegaria a manter, assim, contnua e cautelosamente, todos os indivduos, se ela no se enraizasse, no utilizasse, como uma espcie de grande estratgia, todas as pequenas tticas locais e individuais que encerram cada um entre ns.[EPS, pp. 231-232]

    Conceber uma teoria libertria do poder, que tenha como objetivo fornecer ferramentas para a compreenso da sociedade e sobre a qual possam ser estabelecidas estratgias de transformao envolve, partido da anlise de Foucault, ter em mente que o poder no est localizado no aparelho de Estado e que nada mudar na sociedade se os mecanismos de poder que funcionam fora, abaixo, ao lado dos aparelhos de Estado, a um nvel muito mais elementar, cotidiano, no forem modificados.[MP, pp. 149-150] E nesse sentido, as anlises e estratgias de transformao tm a necessidade de extrapolar a esfera do Estado.

    Portanto, como dito, h para Foucault poder no Estado, mas uma anlise do locus do poder no pode se resumir ao Estado e, menos ainda, ao governo. Ainda tratando da esfera poltica, e de certa maneira ligado questo do Estado, pode-se localizar o poder tambm no judicirio, nas prises, nos hospitais psiquitricos, na polcia, no exrcito, nas leis etc. Para as pesquisas, Foucault recomenda: em vez de orientar a pesquisa sobre o poder no sentido do edifcio jurdico da soberania, dos aparelhos de Estado e das ideologias que o acompanham, deve-se orient-la para a dominao, os operadores materiais, as formas de sujeio, os usos e as conexes da sujeio pelos sistemas locais e os dispositivos estratgicos. E preciso estudar o poder colocando-se fora do modelo do Leviat, fora do campo delimitado pela soberania jurdica e pela instituio estatal. E preciso estud-lo a partir das tcnicas e tticas de dominao. Esta , grosso modo, a linha metodolgica a ser seguida e que procurei seguir nas vrias pesquisas que fizemos nos ltimos anos.[MP, p. 186]

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    A esfera cultural/ideolgica O poder, para Foucault, como se viu, no se resume esfera poltica. Diversas de suas

    discusses se do em torno da esfera cultural/ideolgica. relevante aqui fazer um esclarecimento de que Foucault geralmente nega o conceito de ideologia, por identific-la com a definio que se aproxima do que foi chamado de significado forte de ideologia: A noo de ideologia me parece dificilmente utilizvel por trs razes. A primeira que, queira-se ou no, ela est sempre em oposio virtual a alguma coisa que seria a verdade. Ora, creio que o problema no de se fazer a partilha entre o que num discurso releva da cientificidade e da verdade e o que relevaria de outra coisa; mas de ver historicamente como se produzem efeitos de verdade no interior de discursos que no so em si nem verdadeiros nem falsos. Segundo inconveniente: refere-se necessariamente a alguma coisa como o sujeito. Enfim, a ideologia est em posio secundria com relao a alguma coisa que deve funcionar para ela como infra-estrutura ou determinao econmica, material, etc. Por estas trs razes, creio que uma noo que no deve ser utilizada sem precaues.[MP, p. 7] Quando trabalho com a ideologia como parte constituinte de uma esfera, utilizo essa precauo e trabalho com uma compreenso mais prxima do que foi chamado de significado fraco de ideologia.[4]

    Ao afirmar que a concepo de Foucault envolve a esfera cultural/ideolgica estou me referindo ao campo das idias, dos discursos, dos valores, da moral, da tica, das motivaes, dos desejos, das aspiraes, dos costumes, das crenas, do saber etc. Aspectos centrais na teoria foucaultiana do poder. Para ele, essa esfera, que envolve os campos mencionados, est cheia de relaes de poder e suas investigaes acerca da verdade e do saber tm muito a contribuir nesse sentido.

    Para o autor, h cinco caractersticas histricas relevantes sobre a verdade: a verdade centrada na forma do discurso cientfico e nas instituies que o produzem; est submetida a uma constante incitao econmica e poltica (necessidade de verdade tanto para a produo econmica, quanto para o poder poltico); objeto, de vrias formas, de uma imensa difuso e de um imenso consumo (circula nos aparelhos de educao ou de informao, cuja extenso no corpo social relativamente grande, no obstante algumas limitaes rigorosas); produzida e transmitida sob o controle, no exclusivo, mas dominante, de alguns grandes aparelhos polticos ou econmicos (universidade, exrcito, escritura, meios de comunicao); enfim, objeto de debate poltico e de confronto social (as lutas ideolgicas).[MP, p. 13] Deixando de lado as relaes entre essa esfera e as esferas poltica e econmica questo que ser abordada mais adiante , pode-se afirmar que, para

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    Foucault, a esfera cultural/ideolgica tambm locus do poder; poderes que se ligam diretamente determinadas concepes de verdade, as quais, muitas vezes, fundamentam-se no discurso cientfico, utilizando-se da cincia para legitimar posies que podem ou no ter contedo, de fato, cientfico. O poder, nesse sentido, estaria nas escolas, nas universidades, na imprensa e na indstria cultural, forjando-se nas relaes sociais que se estabelecem nesses mbitos.

    Foucault sugere compreender verdade como um conjunto de procedimentos regulados para a produo, a lei, a repartio, a circulao e o funcionamento dos enunciados, sendo que ela estaria circularmente ligada a sistemas de poder, que a produzem e a apiam, e a efeitos de poder que ela induz e que a reproduzem. Regime da verdade. Um regime que, na realidade, no simplesmente ideolgico ou superestrutural; foi uma condio de formao e desenvolvimento do capitalismo e, para ser transformado, precisaria ser desvinculado das hegemonias sociais, econmicas e culturais. E tambm coloca: a questo poltica no o erro, a iluso, a conscincia alienada ou a ideologia; a prpria verdade.[MP, p. 14]

    A verdade, portanto, instituiria um determinado campo regulatrio/normativo responsvel pela circulao do poder. Um campo que se alimentaria de outras relaes de poder e ao mesmo tempo as alimentaria, no consistindo em um mero reflexo da infra-estrutura da sociedade e tendo relevncia, tambm, na formulao e no desenvolvimento de outras relaes de poder. A noo de verdadeiro e falso seria capaz de se estabelecer em discursos com influncias morais, e forjar noes de bem e de mal, de certo e de errado, muitas das quais serviriam de base para relaes de poder. A verdade, no sentido daquilo que se d, um acontecimento; deste acontecimento que assim se produz impressionando aquele que o buscava, a relao no do objeto ao sujeito de conhecimento. E uma relao ambgua, reversvel, que luta belicosamente por controle, dominao e vitria: uma relao de poder.[MP, pp. 114-115] Em suma, essas produes de verdades no podem ser dissociadas do poder e dos mecanismos de poder, ao mesmo tempo porque esses mecanismos de poder tornam possveis, induzem essas produes de verdades, e porque essas produes de verdade tm, elas prprias, efeitos de poder que nos unem, nos atam.[EPS, p. 229]

    Foucault acredita, similarmente, que o saber possui uma relao estreita com o poder, ou seja, haveria uma perptua articulao do poder com o saber e do saber com o poder. Pensa que exercer o poder cria objetos de saber, os faz emergir, acumula informaes e as utiliza. No se pode compreender nada sobre o saber econmico se no se sabe como se exercia, cotidianamente, o poder, e o poder econmico. O exerccio do poder cria

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    perpetuamente saber e, inversamente, o saber acarreta efeitos de poder.[MP, pp. 141-142] O saber, nesse sentido, serviria como causa e conseqncia de acontecimentos diversos que seriam parte de inmeras relaes de poder. Foucault trabalha com a hiptese de que as grandes mquinas de poder podem ter sido acompanhadas de produes ideolgicas. Houve, provavelmente, por exemplo, uma ideologia da educao; uma ideologia do poder monrquico, uma ideologia da democracia parlamentar, etc.; mas no creio que aquilo que se forma na base sejam ideologias: muito menos e muito mais do que isso. So instrumentos reais de formao e de acumulao do saber: mtodos de observao, tcnicas de registro, procedimentos de inqurito e de pesquisa, aparelhos de verificao. Tudo isto significa que o poder, para exercer-se nestes mecanismos sutis, obrigado a formar, organizar e pr em circulao um saber, ou melhor, aparelhos de saber que no so construes ideolgicas.[MP, p. 186]

    Essa esfera que chamei de cultural/ideolgica contaria ainda com elementos relevantes como o papel dos intelectuais e das religies, e as noes de desejo e interesse. Sobre esses ltimos, afirma Foucault: as relaes entre desejo, poder e interesse so mais complexas do que geralmente se acredita e no so necessariamente os que exercem o poder que tm interesse em exerc-lo, os que tm interesse em exerc-lo no o exercem e o desejo do poder estabelece uma relao ainda singular entre o poder e o interesse. [...] Esta relao entre o desejo, o poder e o interesse ainda pouco conhecida. Afirmaes que, sem cair em reducionismos generalizantes, do uma idia dos desafios que ainda se colocam queles que se dispem a estudar o poder.

    A esfera econmica O tema da economia no significativamente estudado por Foucault, mesmo porque,

    sua principal inteno entender o poder em outras esferas e as determinadas influncias que o poder dessas esferas poderiam exercer na esfera econmica, responsvel pelas relaes de produo, distribuio e consumo. Foucault identifica certa evoluo nesse campo, aparentemente no marxismo, quando coloca, por exemplo, que a explorao s foi realmente compreendida durante o sculo XIX.[MP, p. 75] No entanto, esse salto qualitativo na compreenso econmica da sociedade teria tido como conseqncia o fato de que, desde aqueles tempos, a crtica da sociedade foi feita, essencialmente, a partir do carter efetivamente determinante da economia. S reduo do poltico, certamente, mas tambm tendncia a negligenciar as relaes de poder elementares que podem ser constituintes das relaes econmicas.[MP, p. 237]. Nesse sentido, se por um lado os estudos que vm desde

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    o sculo XIX permitiram uma compreenso mais aprofundada da economia, identificando que nela tambm havia poder e reconhecendo sua relevncia, por outro, eles terminaram apontando para um certo reducionismo, quando a economia passou a ser vista como locus exclusivo do poder ou como uma infra-estrutura que necessariamente determinaria tudo aquilo que se chamou de superestrutura.

    Portanto, considerar o autor dentro de seu respectivo contexto implica, nesse caso, compreender a tentativa de Foucault de extrapolar a esfera econmica para as anlises do poder. E por esse motivo, quando trata de economia, sua abordagem se d mais no sentido de criticar esse economicismo do que de tratar do poder na esfera econmica. Ele se volta contra a idia de um poder que seria uma superestrutura, obedecendo necessariamente a um determinismo da esfera econmica, mas no contra a idia de que este poder , de alguma forma, consubstancial ao desenvolvimento das foras produtivas; ele faz parte deste desenvolvimento e se transforma continuamente junto com elas.[MP, p. 222] Foucault acredita que no se pode reduzir o poder a uma superestrutura, determinada pela economia, mas tambm no se pode negar que na esfera econmica exista poder.

    Isso significa que, para Foucault, existe poder na esfera econmica constituda pelas relaes econmicas que envolvem o campo do trabalho, as classes, etc. que , tambm, locus privilegiado do poder.

    Sua inteno, como mencionado, no ser discutir as questes macro-econmicas que, segundo ele, vm sendo suficientemente estudadas desde o sculo XIX. Foucault se dedicar s funes no campo do trabalho que extrapolam as relaes de produo e privilegiar, como de praxe, as micro-relaes. Referindo-se, por exemplo, ao seu interesse no campo do trabalho, afirma: A funo produtiva [do trabalho] sensivelmente igual a zero nas categorias de que me ocupo, enquanto que as funes simblica e disciplinar so muito importantes.[MP, p. 224] Foucault busca pesquisar as micro-relaes de poder, nos nveis mais fundamentais da sociedade, relaes geralmente menos evidentes, apreendendo-as at as infra-estruturas econmicas, que constituem macro-relaes mais evidentes. E sua teoria deve ser compreendida dentro desse contexto.

    Pode-se, tambm, na discusso do poder na esfera econmica, trazer algumas contribuies de Foucault para o tema das classes sociais e da luta de classes. O autor no nega a existncia de classes sociais e de uma relao de poder e dominao entre elas; uma relao que se realizaria a partir de um conjunto determinado de estratgias e tticas com resultados tanto na classe dominante como na classe dominada: Uma classe dominante no uma abstrao, mas tambm no um dado prvio. Que uma classe se torne dominante, que

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    ela assegure sua dominao e que esta dominao se reproduza, estes so efeitos de um certo nmero de tticas eficazes, sistemticas, que funcionam no interior de grandes estratgias que asseguram esta dominao. Mas entre a estratgia que fixa, reproduz, multiplica, acentua as relaes de fora e a classe dominante, existe uma relao recproca de produo. Pode-se, portanto, dizer que a estratgia de moralizao da classe operria a da burguesia. Pode-se mesmo dizer que a estratgia que permite classe burguesa ser a classe burguesa e exercer sua dominao.[MP, pp. 252-253] A partir da noo de dominao de classe, parece evidente que o saber possui uma relao estrita com ela, j que a famlia, a universidade, o sistema escolar, responsveis pela distribuio do poder, so feitos para manter no poder uma certa classe social e excluir dos instrumentos do poder qualquer outra classe social.[EPS, p. 114]

    A contradio entre as classes sociais que poderia ser chamada de luta de classes, j que luta contradio deve ser objeto de investigao, j que o problema saber se a lgica da contradio pode servir de princpio de inteligibilidade e de regra de ao na luta poltica.[EPS, p. 250] Algo que implica, para Foucault, abandonar a dialtica de base hegeliana, e pensar as relaes de poder em termos luta, sem necessariamente uma sntese como resultado: No sei bem como solucionar este problema. Mas quando se considera que o poder deve ser analisado em termos de relaes de poder, possvel apreender, muito mais que em outras elaboraes tericas, a relao que existe entre o poder e a luta, em particular a luta de classes.[MP, p. 256] E nesse sentido que ele questiona a prioridade que, no marxismo, se deu discusso da classe em detrimento da questo da luta.

    , no entanto, necessrio enfatizar, que, se a luta de classes explica parte das relaes de poder, no se pode generalizar: no acho que seja fecundo, que seja operante dizer que a psiquiatria a psiquiatria de classe, a medicina, a medicina de classe, os mdicos e psiquiatras, os representantes dos interesses de classe. No se chega a lugar nenhum quando se faz isso, mas preciso, contudo, reinserir a complexidade desses fenmenos no interior de processos histricos que so econmicos etc.[EPS, p. 228] Portanto, para Foucaut, no se pode querer explicar todas as relaes de poder com base nas anlises de classe. Assim, a luta de classes pode, portanto, no ser a ratio do exerccio do poder e ser, todavia, garantia de inteligibilidade de algumas grandes estratgias.[EPS, p. 249]

    O poder em todo o corpo social Como se viu, para Foucault h poder nas trs grandes esferas anteriormente

    especificadas; relaes que atravessam, portanto, todo o corpo social: em uma sociedade como a nossa, mas no fundo em qualquer sociedade, existem relaes de poder mltiplas que

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    atravessam, caracterizam e constituem o corpo social[MP, p. 179]; o poder no opera em um nico lugar, mas em lugares mltiplos.[EPS, p. 262]

    Nesse sentido, h poder em todas as esferas estruturadas, tanto em nvel macro, como em nvel micro. No se trata, para Foucault, em seus estudos, de compreender o poder que se encontra nos centros, mas ao contrrio, de captar o poder em suas extremidades, em suas ltimas ramificaes, l onde ele se torna capilar.[MP, p. 182] E corrobora: quando penso na mecnica do poder, penso em sua forma capilar de existir, no ponto em que o poder encontra o nvel dos indivduos, atinge seus corpos, vem se inserir em seus gestos, suas atitudes, seus discursos, sua aprendizagem, sua vida cotidiana.[MP, p. 131] Seu interesse est na vida cotidiana, nas relaes entre os sexos, nas famlias, entre os doentes mentais e as pessoas sensatas, entre os doentes e os mdicos[EPS, p. 233]; e mais: a vida sexual, [...] a excluso dos homossexuais. Para ele, todas essas relaes so relaes polticas.[EPS, p. 262]

    Ainda que seu foco seja nos nveis mais baixos, bsicos, capilares e perifricos do poder, isso no significa negar a presena do poder em seus aspectos altos, mais evidentes e centrais. Para Foucault, as micro-relaes de poder so relevantes, pois, alm de serem influenciadas pelas macro-relaes, tm a capacidade de influenci-las e estrutur-las. H, assim, relaes de poder que se estruturam de forma piramidal, com um pico, um pice, e uma base. Existe, portanto, um pice, ainda que esse pice no seja necessariamente a fonte ou o princpio de onde todo o poder derivaria como de um foco luminoso. [...] O pice e os elementos inferiores esto em uma relao de apoio e de condicionamento recprocos; eles se sustentam[MP, p. 221] relao que ser investigada a seguir.

    O poder estaria sempre ali, nunca permitindo estarmos fora, j que no h margens para a cambalhota daqueles que esto em ruptura, ainda que essa afirmao no implique que se deva admitir uma forma incontornvel de dominao ou um privilgio absoluto da lei. Que nunca se possa estar fora do poder no quer dizer que se est inteiramente capturado na armadilha.[EPS, p. 248]

    Ainda que como hipteses a serem exploradas, Foucault sugere: que o poder coextensivo ao corpo social; no h, entre as malhas de sua rede, praias de liberdades elementares; que as relaes de poder so intrincadas em outros tipos de relao (de produo, de aliana, de famlia, de sexualidade) em que desempenham um papel ao mesmo tempo condicionante e condicionado; que elas no obedecem forma nica da interdio e do castigo, mas que so formas mltiplas; que seu entrecruzamento delineia fatos gerais de dominao, que esta dominao se organiza em estratgia mais ou menos coerente e unitria;

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    que os procedimentos dispersados, heteromorfos e locais do poder so reajustados, reforados, transformados por essas estratgias globais, e tudo isso com numerosos fenmenos de inrcia, de intervalos, de resistncias; que no se deve, portanto, pensar um fato primeiro e macio de dominao (uma estrutura binria com, de um lado, os dominantes` e, de outro, os dominados`), mas, antes, uma produo multiforme de relaes de dominao, que so parcialmente integrveis a estratgias de conjunto.[Ibid.] Posio que se evidencia em sua prpria definio de dominao: por dominao eu no entendo o fato de uma dominao global de um sobre os outros, ou de um grupo sobre o outro, mas as mltiplas formas de dominao que podem se exercer na sociedade.[MP, p. 181]

    Fechando, e novamente, a ttulo de exerccio terico, e consciente dos riscos que isso implica, buscarei uma possvel resposta de Foucault para a questo: Aonde est o poder e aonde se do as relaes de poder?

    O poder est em todo o corpo social, nas distintas esferas da sociedade (macro e micro, do centro e da periferia), as quais possuem, em seu seio, mltiplas relaes de poder que atravessam, caracterizam e constituem esse corpo social. O poder, portanto, no uma exclusividade do Estado e existe para alm da esfera poltica, nas relaes sociais forjadas cultural e ideologicamente, assim como no campo da economia. No entanto, aceitar que h poder na esfera econmica no significa negar que haja poder nas outras esferas e nem que a esfera econmica determine ou se sobreponha, obrigatoriamente, s outras. A esfera econmica e as prprias categorias mais ligadas economia, como as classes sociais e a luta de classes, constituem parte do locus do poder e explicam o poder apenas parcialmente.

    A DINMICA DO PODER E DAS RELAES DE PODER Para estudar a dinmica do poder e das relaes de poder, Foucault rechaa algumas

    posies clssicas que foram e, em alguma medida, ainda so defendidas por tericos e correntes que se debruaram sobre o tema. Prope, contrapondo as posies criticadas, concepes acerca do modus operandi do poder.

    Progresso e evoluo da sociedade Dentre as questes terico-filosficas que nortearam muito do pensamento social

    clssico que inclui os tericos do socialismo est a noo de progresso e/ou evoluo da sociedade. Haveria um sentido progressivo e evolutivo na histria da humanidade?

    Durante o sculo XIX, o pensamento socialista, por exemplo, esteve permeado por uma resposta afirmativa em relao a essa questo. Marx a