FEMINICÍDIO: EXPECTATIVA X REALIDADE DOS DIREITOS DA ...€¦ · FEMINICÍDIO: EXPECTATIVA X...

37
FEMINICÍDIO: EXPECTATIVA X REALIDADE DOS DIREITOS DA MULHER NO BRASIL Autores. Luiz Guilherme Gonçalves Silva Prof.a M.a Roberta dos Santos Pereira de Carvalho A violência contra a mulher é algo tão antigo quanto à existência da própria humanidade. No entanto, apenas recentemente viu a sociedade brasileira necessidade de superar esse estigma para que seja edificada uma sociedade verdadeiramente humana. Buscando então, o presente trabalho, constatar a situação dos direitos da mulher no Brasil, na que tange a esfera penal, observando se o disposto em lei transfere-se para a realidade e se a mera tipificação de condutas lesivas a mulher, são eficazes no combate a violência contra esta. No que tange as condutas tipificadas no ordenamento penal brasileiro, analisaremos o Homicídio, a Lei Maria da Penha e o Feminicídio, assim como os resultados e tecnicidades por eles trazidos. Apresentando a incapacidade do Estado de resolver a problemática como um todo, sugerindo que, além da materialização do direito das mulheres no papel, o Estado aja institucionalmente através de programas, projetos, políticas e mecanismos para combater de maneira direta e eficaz esta violência tão arraigada a concepções culturais retrógradas, injustas e machistas. Destacando a importância de o Estado agir além da judicialização do tema, pois se indicará que se a ação estatal se restringir a mera normatização, muito provavelmente os efeitos da Lei do Feminicídio espelharão os da Lei Maria da Penha, resultando em notável melhora, mas, após certo lapso temporal, regressão aos índices anteriores a criação da norma. Palavras-chave: Feminicídio, Lei Maria da Penha, direitos da mulher no Brasil

Transcript of FEMINICÍDIO: EXPECTATIVA X REALIDADE DOS DIREITOS DA ...€¦ · FEMINICÍDIO: EXPECTATIVA X...

Page 1: FEMINICÍDIO: EXPECTATIVA X REALIDADE DOS DIREITOS DA ...€¦ · FEMINICÍDIO: EXPECTATIVA X REALIDADE DOS DIREITOS DA MULHER NO BRASIL Autores. Luiz Guilherme Gonçalves Silva Prof.a

FEMINICÍDIO: EXPECTATIVA X REALIDADE DOS DIREITOS DA MULHER NO BRASIL Autores. Luiz Guilherme Gonçalves Silva Prof.a M.a Roberta dos Santos Pereira de Carvalho

A violência contra a mulher é algo tão antigo quanto à existência da própria humanidade. No entanto, apenas recentemente viu a sociedade brasileira necessidade de superar esse estigma para que seja edificada uma sociedade verdadeiramente humana. Buscando então, o presente trabalho, constatar a situação dos direitos da mulher no Brasil, na que tange a esfera penal, observando se o disposto em lei transfere-se para a realidade e se a mera tipificação de condutas lesivas a mulher, são eficazes no combate a violência contra esta. No que tange as condutas tipificadas no ordenamento penal brasileiro, analisaremos o Homicídio, a Lei Maria da Penha e o Feminicídio, assim como os resultados e tecnicidades por eles trazidos. Apresentando a incapacidade do Estado de resolver a problemática como um todo, sugerindo que, além da materialização do direito das mulheres no papel, o Estado aja institucionalmente através de programas, projetos, políticas e mecanismos para combater de maneira direta e eficaz esta violência tão arraigada a concepções culturais retrógradas, injustas e machistas. Destacando a importância de o Estado agir além da judicialização do tema, pois se indicará que se a ação estatal se restringir a mera normatização, muito provavelmente os efeitos da Lei do Feminicídio espelharão os da Lei Maria da Penha, resultando em notável melhora, mas, após certo lapso temporal, regressão aos índices anteriores a criação da norma.

Palavras-chave: Feminicídio, Lei Maria da Penha, direitos da mulher no Brasil

Page 2: FEMINICÍDIO: EXPECTATIVA X REALIDADE DOS DIREITOS DA ...€¦ · FEMINICÍDIO: EXPECTATIVA X REALIDADE DOS DIREITOS DA MULHER NO BRASIL Autores. Luiz Guilherme Gonçalves Silva Prof.a

1. INTRODUÇÃO

O feminicídio é a mais recente adição legislativa, no que tange a proteção à mulher na esfera penal, adicionada ao ordenamento jurídico brasileiro. Apesar de possuir denominação específica no texto legal, consiste o crime supracitado apenas em qualificadora do crime de homicídio.

De forma geral, o feminicídio tipifica o homicídio cometido contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, com o intuito de proteger a mulher da violência que a cerca na sociedade brasileira.

Busca-se então, com o presente trabalho, constatar a situação dos direitos da mulher no Brasil, na que tange a esfera penal, observando se o disposto em lei transfere-se para a realidade e se a mera tipificação de condutas lesivas a mulher, são eficazes no combate a violência contra esta. Discorrendo sobre as condutas tipificadas no ordenamento penal brasileiro e analisando os temas e resultados por eles trazidos.

Diante de uma preocupação recente em tutelar os direitos da mulher no Brasil, garantindo a ela proteção perante as mais diversas violências em nosso território, paira o questionamento se apenas a tutela legislativa sobre o tema trará resultados palpáveis a problemática, sendo a proposta do trabalho, constatar se as normas penais surtem efeitos reais ou se são meras expectativas de direito.

Para o desenvolvimento do presente trabalho foram utilizadas pesquisas bibliográficas. A pesquisa bibliográfica baseou-se em livros de conceituados doutrinadores penais, além de publicações científicas da área de Direito, textos normativos, entendimentos jurisprudenciais e dados estatísticos extraídos de publicações científicas referentes ao tema.

O presente trabalho de conclusão de curso se estrutura em três capítulos distintos, discorrendo-se no primeiro brevemente sobre a história, conceitos e tecnicidades jurídicas acerca do crime do qual o feminicídio é qualificadora, o homicídio. No segundo capítulo é abordado o contexto da Lei Maria da Penha com o feminicídio, discorrendo brevemente sobre o crime de lesão corporal e, então da violência doméstica, que é complementada pela Lei Maria da Penha, observando sua repercussão tanto no âmbito legal quanto no social. No terceiro capítulo se terá o objeto do presente trabalho, o feminicídio, trazendo breve histórico dos direitos da mulher e demais disposições conceituais, além de esclarecimentos técnicos, análise de dados estatísticos quanto à criminalidade no país.

11

Page 3: FEMINICÍDIO: EXPECTATIVA X REALIDADE DOS DIREITOS DA ...€¦ · FEMINICÍDIO: EXPECTATIVA X REALIDADE DOS DIREITOS DA MULHER NO BRASIL Autores. Luiz Guilherme Gonçalves Silva Prof.a

33

2. CONTEXTO LEI MARIA DA PENHA

2.1. Lei Maria da Penha e o crime de lesões corporais.

A lei 10.886/2004 traz os dispositivos que tratam da violência doméstica e que são complementados pela Lei n. 11.340/2006, popularmente conhecida como Lei Maria da Penha. Não obstante, a conduta supracitada não se trata de tipo penal autônomo, pois a violência doméstica não estipula conduta típica inovadora, acrescentando, somente, circunstâncias que tem o intuito de tornar mais severa a punição sobre o crime de lesões corporais83, que deve ser preliminarmente tratado para que se aprofunde na Lei Maria da Penha.

2.1.1. Crime de lesões corporais e sua conceituação.

O crime de lesões corporais é trazido no Art. 129 do Código Penal da seguinte

forma: “Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem” 84, sendo seu conceito apresentado por Fernando Capez:

[...] o crime de lesão corporal “é definido como ofensa à integridade corporal ou saúde, isto é, como todo e qualquer dano ocasionado à normalidade funcional do corpo humano, quer do ponto de vista anatômico, quer do ponto de vista fisiológico ou mental”. Consiste, portanto, em qualquer dano ocasionado à integridade física e à saúde fisiológica ou mental do homem, sem, contudo, o animus necandi. 85.

Nessa mesma linha se tem Rogério Greco, que traz em seu livro lição pertinente de

Nelson Hungria:

"o crime de lesão corporal consiste em qualquer dano ocasionado por alguém, sem animus necandi, à integridade física ou a saúde (fisiológica ou mental) de outrem. Não se trata, como o nomen juris poderia sugerir prima facie, apenas do mal infligido à inteireza anatômica da pessoa. Lesão corporal compreende toda e qualquer ofensa ocasionada à normalidade funcional do corpo ou organismo humano, seja do ponto de vista anatômico, seja do ponto de vista fisiológico ou psíquico. Mesmo a desintegração da saúde mental é lesão corporal, pois a inteligência, a vontade ou a memória dizem com a atividade funcional do cérebro, que é um dos mais importantes órgãos do corpo. Não se concebe uma perturbação mental sem um dano à saúde, e é inconcebível um dano à saúde sem um mal corpóreo ou uma alteração do corpo. Quer como alteração da integridade física, quer

83 GONÇALVES, Victor – Direito Penal Esquematizado, parte especial, 6ª Edição, 2016, 1.2.3. Violência doméstica, E-book, Editora Saraiva. 84 BRASIL, DECRETO-LEI No 2.848, DE 7 DE DEZEMBRO DE 1940.

85 CAPEZ, Fernando – Curso de Direito Penal 2, parte especial, 16ª edição, 2016, Capítulo II - DAS LESÕES CORPORAIS - 1. CONCEITO, E-book, Editor Saraiva.

Page 4: FEMINICÍDIO: EXPECTATIVA X REALIDADE DOS DIREITOS DA ...€¦ · FEMINICÍDIO: EXPECTATIVA X REALIDADE DOS DIREITOS DA MULHER NO BRASIL Autores. Luiz Guilherme Gonçalves Silva Prof.a

34

como perturbação do equilíbrio funcional do organismo (saúde), a lesão corporal resulta sempre de uma violência exercida sobre a pessoa". 86.

Extraí-se que, neste crime, o agente atenta contra à integridade física ou mental da vítima, sem ter aquele à intenção de matar o último. Destarte, a integridade da vítima é danificada pela ação do agente, tendo sua corriqueira funcionalidade prejudicada seja no prisma fisiológico ou mental, sendo inimaginável dano psíquico não ocasionar distúrbio físico e vice versa.

Destaca Rogério Greco que, ainda que esteja ausente o fator dor ou a efusão de sangue, estas não significam a descaracterização da infração em tela, sendo sua caracterização devidamente procedida.

2.2. Objeto jurídico e material.

O objeto jurídico, do delito em tela, é trazido por Rogério Sanches Cunha em seu livro da seguinte forma: “O objeto jurídico do crime em estudo é a incolumidade pessoal do indivíduo, protegendo-o na sua saúde corporal, fisiológica e mental (atividade intelectiva, volitiva ou sentimental).” 87. Nota-se que a norma visa proteger não apenas a saúde física, mas também a mental do indivíduo, sendo cristalino o objeto amparado.

Nesta linha, se tem também Rogério Greco, que traz também esclarecimento quanto o objeto material:

Bens juridicamente protegidos, segundo o art. 129 do Código Penal, são a integridade corporal e a saúde do ser humano. Objeto material é a pessoa humana, mesmo que com vida intrauterina, sobre a qual recai a conduta do agente no sentido de ofender-lhe a integridade corporal ou a saúde. 88.

Tratando-se do objeto material, tem-se pessoa humana com vida que, é alvo de conduta prejudicial a sua integridade. Podendo esta agressão recair sobre vida intrauterina, sendo Ney Moura Teles esclarecedor:

Evidente, pois, que também o ser em formação possui uma integridade corporal que sustenta sua vida. Se esta é protegida, aquela também o é. E assim deve ser porque importa, para a sociedade, a proteção dos seres humanos em formação não somente contra ações que o destruam, mas também aquelas que o lesionam em sua integridade corporal ou que danificam sua saúde. Seria contrassenso imaginar que a lesão ao feto ou ao embrião, a amputação de um de seus membros ou a ofensa a sua saúde, a um de seus órgãos componentes, fosse um indiferente penal. Também

86 GRECO, Rogério – Curso de Direito Penal Vol. 2, 2015, Editora Impetus, pág. 263.

87 CUNHA, Rogério – Manual de Direito penal, parte especial, volume único, 8ª edição, 2016, Editora JUSPODIVM, pág. 110. 88 GRECO, Rogério – Curso de Direito Penal Vol. 2, 2015, Editora Impetus, pág. 266.

Page 5: FEMINICÍDIO: EXPECTATIVA X REALIDADE DOS DIREITOS DA ...€¦ · FEMINICÍDIO: EXPECTATIVA X REALIDADE DOS DIREITOS DA MULHER NO BRASIL Autores. Luiz Guilherme Gonçalves Silva Prof.a

35

absurdo é considerar o ser humano em formação apenas uma parte do corpo da gestante e incriminar a conduta apenas por ter ela atingido também a gestante. Ainda porque é perfeitamente possível uma lesão atingir tão somente o feto, deixando íntegro o corpo ou a saúde da gestante. 89.

Nota-se que a proteção da integridade física de vida intrauterina também é objeto da norma aqui tratada, pois é de extrema relevância social e jurídica a preservação da vida desde o seu sopro inicial, não devendo o ser em formação ser tratado como mera extensão do corpo da gestante e, muito menos, como atípico penal. Destaca-se que a garantia dos direitos do nascituro já é reconhecida no âmbito civil na corrente concepcionalista, tendo este, desde sua concepção, direitos e garantias fundamentais, indo ao encontro desse entendimento seguinte jurisprudência:

EMENTA: Seguro-obrigatório. Acidente. Abortamento. Direito à percepção indenização. O nascituro goza de personalidade jurídica desde a concepção. O nascimento com vida diz respeito apenas à capacidade de exercício de alguns

direitos patrimoniais. Apelação a que se dá provimento.90.

Trazendo, Pablo Stolze, pertinente análise e contextualização referente à jurisprudência supracitada:

Independentemente de se reconhecer o atributo da personalidade jurídica, o fato é que seria um absurdo resguardar direitos desde o surgimento da vida intrauterina se não se autorizasse a proteção desse nascituro – direito à vida – para que justamente pudesse usufruir tais direitos. Qualquer atentado à integridade do que está por nascer pode, assim, ser considerado um ato obstativo de gozo de direitos. 91.

Tornando-se cristalino, por esse prisma doutrinário, que a integridade, de quem ainda está por nascer, deve sim ser protegida pela norma, sendo o nascituro resguardado para que, futuramente, exerça os direitos mais básicos e fundamentais da existência humana, devendo qualquer conduta que cerceie esse exercício pleno, taxada como transgressora.

Não obstante, Victor Eduardo Rios Gonçalves traz entendimento diverso:

O feto não pode ser sujeito passivo do crime de lesões corporais. Se o agente, intencionalmente, ministra medicamento a fim de provocar deformidade no feto, o fato é atípico. Trata-se de evidente falha em nossa legislação. Só existirá crime se ficar demonstrada intenção de provocar a morte do feto, hipótese em que o agente

responderá por aborto, consumado ou tentado, dependendo do resultado. 92.

Apesar de o doutrinador considerar a lesão corporal acometida contra feto uma conduta atípica, este explicita a lacuna legislativa, evidenciando falha que normativa que não deve ser ignorada.

89 TELES, Ney Moura - Direito Penal, Parte Especial, vol. 2, 2004, Editora Jurídico Atlas, pág. 198-

199.

90 BRASIL, Acórdão proferido em apelação cível n.70002027910, sexta câmara cível, Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Relator: Carlos Alberto Álvaro de Oliveira, julgado em 28/03/2001.

91 STOLZE, Pablo – Novo Curso de Direito Civil, Parte Geral, vol. 1, 9ª Edição, 2007, Editora Saraiva, pág. 84.

92 GONÇALVES, Victor – Direito Penal Esquematizado, parte especial, 6ª Edição, 2016, 1.2.1.1.4. Sujeito passivo, E-book, Editora Saraiva.

Page 6: FEMINICÍDIO: EXPECTATIVA X REALIDADE DOS DIREITOS DA ...€¦ · FEMINICÍDIO: EXPECTATIVA X REALIDADE DOS DIREITOS DA MULHER NO BRASIL Autores. Luiz Guilherme Gonçalves Silva Prof.a

36

2.3. Sujeito ativo e passivo.

Quanto aos sujeitos do crime, no que toca o sujeito ativo, Rogério Greco traz seguinte lição: “A lei penal não individualiza determinado sujeito ativo para o crime de lesões corporais, razão pela qual qualquer pessoa pode gozar desse status, não se exigindo nenhuma qualidade especial.” 93. Não exigindo a lei penal qualquer qualidade especifica para que um indivíduo seja sujeito ativo do crime, deixa de delimitar motivos para que qualquer um não o seja, sendo então o crime de lesões corporais crime comum quanto o sujeito ativo.

Sobre a autolesão, Rogério Sanchez Cunha apresenta relevante lição:

A lei penal considera irrelevante a autolesão. Contudo, destaca CEZAR ROBERTO BITENCOURT que, se um inimputável, menor, ébrio ou por qualquer razão incapaz de entender ou de querer, por determinação de outrem, praticar em si mesmo uma lesão, quem o conduziu à autolesão responderá pelo crime, na condição de autor mediato. 94.

O sujeito passivo, no entanto, traz certas especificidades, como é demonstrado por

Rogério Sanches Cunha:

Sujeito passivo é o homem vivo. Observa-se, no entanto, que, nas hipóteses do art. 129, §§ 1°, IV, e 2°, V, a vítima deve, necessariamente, ser mulher grávida. Aumenta-se a pena de um terço se o crime foi cometido contra menor de 14 ou maior de 60 anos de idade (§ 7°). Tratando-se de lesão corporal dolosa praticada contra autoridade ou agente descrito nos arts. 142 e 144 da Constituição Federal, integrantes do sistema prisional e da Força Nacional de Segurança Pública, no exercício da função ou em decorrência dela, ou contra seu cônjuge, companheiro ou parente consanguíneo até terceiro grau, em razão dessa condição, aumenta-se a pena de um a dois terços (§ 12). E, nesta circunstância, serão hediondas a lesão corporal de natureza gravíssima e a lesão corporal seguida de morte (art. 1°, inc. I - A, da Lei 8.072/90). E se a lesão for cometida contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido o agente, qualifica-se o delito (§ 9°). 95.

Pode-se notar que o sujeito passivo, preliminarmente, pode ser qualquer indivíduo vivo. Não obstante, existem circunstâncias que podem exigir características específicas a vítima. Nas hipóteses trazidas no art. 129, §§ 1°, IV, e 2°, V, respectivamente, a aceleração do parto e o aborto, é cristalino, que para que tenhamos a imputação nestas hipóteses, a imprescindibilidade de que o sujeito passivo seja gestante. Se a conduta recair sobre indivíduo que tem idade inferior a 14 ou superior a 60 anos, a pena será aumentada de um terço. Tem-se, também na lesão corporal, hipótese de maior severidade punitiva quando a conduta for direcionada:

93 GRECO, Rogério – Curso de Direito Penal Vol. 2, 2015, Editora Impetus, pág. 265.

94 CUNHA, Rogério – Manual de Direito penal, parte especial, volume único, 8ª edição, 2016, Editora JUSPODIVM, pág. 111. 95 Idem.

Page 7: FEMINICÍDIO: EXPECTATIVA X REALIDADE DOS DIREITOS DA ...€¦ · FEMINICÍDIO: EXPECTATIVA X REALIDADE DOS DIREITOS DA MULHER NO BRASIL Autores. Luiz Guilherme Gonçalves Silva Prof.a

37

Contra autoridade ou agente descrito nos arts. 142 e 144 da Constituição Federal, integrantes do sistema prisional e da Força Nacional de Segurança Pública, no exercício da função ou em decorrência dela, ou contra seu cônjuge, companheiro ou parente consanguíneo até terceiro grau, em razão dessa condição. 96.

Podendo ainda, a lesão corporal ser hedionda, caso seja praticada sobre os agentes supracitados, se ocasionar lesão corporal gravíssima ou que resulte em morte. Derradeiramente, Rogério Sanchez Cunha, trouxe os sujeitos que, caso o crime de lesão corporal sobre eles recaia, ocasionará na configuração de violência doméstica. Configurado a última, Cunha ressalta ainda que: “[...] tratando-se de ofendida mulher, não se aplica qualquer das benesses previstas na Lei 9.099/95 (art. 41 da Lei 11.340/06).” 97. Extraí-se desta lição que a Lei 9.099/95, que trata do juizado especial criminal e seus benefícios, não devem ser aplicados por vedação explícita da Lei Maria da Penha, Lei 11.340/06, no seu artigo 41: “Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei no 9.099, de 26 de setembro de 1995.” 98. Extrai-se que, por menor que seja a pena atribuída à conduta criminosa do agente, a este não serão concedidos os benefícios da Lei no 9.099, de 26 de setembro de 1995, pois a violência contra a mulher é algo tão reprovável que, por menor que sejam as lesões ocasionadas, deverá recair severa reprimenda.

2.4. Consumação do crime.

Quanto à consumação do crime em tela, Fernando Capez traz pertinente lição:

Trata-se de crime de dano. A consumação se dá no momento da efetiva ofensa à integridade corporal ou à saúde física ou mental da vítima. Estamos diante de um crime instantâneo, de modo que pouco importa para a sua consumação o tempo de duração da lesão. Tal aspecto, ou seja, a análise da permanência da lesão ou sua duração prolongada, importa apenas para a incidência das qualificadoras, como, por exemplo, se da lesão resulta incapacidade para as ocupações habituais, por mais de

trinta dias (CP, art. 129, § 1º, I); se resulta debilidade permanente de membro, sentido ou função (CP, art. 129, § 1º, III) etc. 99.

Nota-se que, a consumação da conduta delituosa, do crime em tela, se dá no momento exato em que ocorre agressão a integridade da vítima, seja esta física ou mental.

Infere-se então, a classificação de crime de dano. Na sua forma simples, trata-se de crime

instantâneo, pois não tem relevância a duração da lesão para a consumação do crime. Não obstante, a reminiscência de lesão ou sua estendida duração, tem pertinência apenas para aplicação das qualificadas do presente crime, impedindo a vítima, por exemplo, de realizar suas ocupações habituais por mais de trinta dias; debilidade permanente de funcionalidade de membro, sentido ou função, et cetera.

96 BRASIL, DECRETO-LEI No 2.848, DE 7 DE DEZEMBRO DE 1940.

97 CUNHA, Rogério – Manual de Direito penal, parte especial, volume único, 8ª edição, 2016, Editora JUSPODIVM, pág. 111. 98 BRASIL, LEI Nº 11.340, DE 7 DE AGOSTO DE 2006.

99 CAPEZ, Fernando – Curso de Direito Penal 2, parte especial, 16ª edição, 2016, Capítulo II - DAS LESÕES CORPORAIS - 5. MOMENTO CONSUMATIVO, E-book, Editor Saraiva.

Page 8: FEMINICÍDIO: EXPECTATIVA X REALIDADE DOS DIREITOS DA ...€¦ · FEMINICÍDIO: EXPECTATIVA X REALIDADE DOS DIREITOS DA MULHER NO BRASIL Autores. Luiz Guilherme Gonçalves Silva Prof.a

Por se tratar de crime de dano e que ocasiona em vestígios, é necessário exame de corpo de delito, como explana Rogério Greco: “Sendo um crime que deixa vestígios, há necessidade de ser produzida prova pericial, comprovando-se a natureza das lesões, isto é, se leve, grave ou gravíssima.” 100.

3.5. Elemento subjetivo.

O crime em tela é punível em três modalidades: a dolosa, preterdolosa e culposa, quanto ao dolo, Fernando Capez traz pertinente explicação:

O elemento subjetivo do crime de lesões corporais é o dolo, consistente na vontade livre e consciente de ofender a integridade física ou a saúde de outrem. Exige-se, assim, o chamado animus nocendi ou laedendi. Assinala Nélson Hungria que,

“pressuposto o animus laedendi, basta que a ação ou omissão seja causa indireta da lesão, para que esta se considere dolosa. Exemplo: um indivíduo atira uma pedra contra o seu adversário, e este, ao desviar-se, resvala e cai, ferindo-se na queda. O agressor, em tal caso, responderá por lesão corporal dolosa”. 101.

Extraí-se que, na situação em que o agente tem plena consciência de sua conduta e é livre de qualquer influência de terceiros, buscando então por motivação própria violar a integridade física ou mental de outrem, se tem o dolo. Como supracitado, mesmo que este ferimento venha de ação ou omissão indireta do agente, existindo o animus nocendi, a lesão ocasionada será dolosa.

Quanto ao preterdolo, modalidade possível no crime em tela, Victor Eduardo Rios Gonçalves traz pertinente explanação:

Os preterdolosos, por sua vez, são crimes híbridos, em que a lei descreve uma conduta inicial dolosa agravada por um resultado culposo. O crime de lesão corporal seguida de morte (art. 129, § 3º) é o melhor exemplo, pois nele existe por parte do

100 GRECO, Rogério – Curso de Direito Penal Vol. 2, 2015, Editora Impetus, pág. 266.

101 CAPEZ, Fernando – Curso de Direito Penal 2, parte especial, 16ª edição, 2016, Capítulo II - DAS LESÕES CORPORAIS - 7. ELEMENTO SUBJETIVO, E-book, Editor Saraiva.

Page 9: FEMINICÍDIO: EXPECTATIVA X REALIDADE DOS DIREITOS DA ...€¦ · FEMINICÍDIO: EXPECTATIVA X REALIDADE DOS DIREITOS DA MULHER NO BRASIL Autores. Luiz Guilherme Gonçalves Silva Prof.a

39

agente apenas intenção de lesionar a vítima, mas, durante a agressão, ele acaba, culposamente, causando sua morte. 102.

Nota-se que, se têm conduta preterdolosa quando o agente realiza uma conduta inicial trazida na lei dolosamente, mas produz resultado agravante de maneira culposa. Sendo a lesão corporal seguida de morte, como trazido, exemplo pertinente, pois o agente tinha desejo de ferir o alvo de sua conduta, mas não de ceifar-lhe a vida.

Derradeiramente, quanto ao elemento subjetivo, se tem a modalidade culposa, Rogério Sanches Cunha traz pertinente lição: “Trata o § 6° da lesão culposa. Tal é a que resulta de negligência, imprudência ou imperícia. Tem a mesma sistemática do crime de homicídio culposo, modificando-se apenas o resultado, já que, nesse caso, a vítima não morre.” 103. A modalidade culposa é similar a do homicídio culposo, como supracitado, sendo o resultado distinto, pois não se tem a morte do sujeito passivo.

3.6. Modalidade tentada.

Sobre a tentativa, Victor Eduardo Rios Gonçalves ensina que é possível, desde que se prove que o agente tinha intenção de ferir a vítima e, no entanto, não obteve êxito. Gonçalves traz ainda pertinente diferenciação de tentativa de lesões corporais e a contravenção de vias de fato:

Na tentativa, o agente quer lesionar a vítima e não consegue por circunstâncias alheias à sua vontade. Na contravenção, fica demonstrado que o agente, desde o início, não tinha a intenção de machucar a vítima. Ex.: empurrão, tapa, beliscão etc. Nesse sentido: “Indiscutível a possibilidade da tentativa no uso de lesões corporais dolosas, impondo-se a condenação do réu se o conjunto probatório se mostra suficiente para embasar a conclusão de que ele agiu com dolo de ferir” (Tacrim-SP

— Rel. Ralpho Waldo — Jutacrim 76/312). 104.

Distingue-se que, na tentativa de lesão corporal dolosa, o agente tinha o animus nocendi de ferir a vítima, mas devido a circunstâncias alheias a sua vontade, não conseguiu obter o resultado almejado, configurando então a tentativa do crime em tela na modalidade dolosa. Não obstante, na contravenção de vias de fato o agente não desejava, desde o início, ferir a vítima, deferindo-lhe, a cunho exemplificativo, beliscão, tapa, mero empurrão, et

102 GONÇALVES, Victor – Direito Penal Esquematizado, parte especial, 6ª Edição, 2016, I. 3.8. Crimes dolosos, culposos e preterdolosos, E-book, Editora Saraiva.

103 CUNHA, Rogério – Manual de Direito penal, parte especial, volume único, 8ª edição, 2016, Editora JUSPODIVM, pág. 122.

104 GONÇALVES, Victor – Direito Penal Esquematizado, parte especial, 6ª Edição, 2016, 1.2.1.1.7. Tentativa, E-book, Editora Saraiva.

Page 10: FEMINICÍDIO: EXPECTATIVA X REALIDADE DOS DIREITOS DA ...€¦ · FEMINICÍDIO: EXPECTATIVA X REALIDADE DOS DIREITOS DA MULHER NO BRASIL Autores. Luiz Guilherme Gonçalves Silva Prof.a

40

cetera. Depreende-se então que, desde que haja conjunto probatório suficiente para a aferição da tentativa de lesão corporal dolosa, não há que se falar de contravenção, pois basta constatação que o agente tinha intenção de lesionar a vítima.

3.6.1. Modalidades de lesão corporal.

Quanto às modalidades de lesão corporal, temos a dolosa e culposa, sendo a primeira subdividida em leve, grave e gravíssima. Traz Rogério Sanches Cunha lição sobre a espécie leve: “O conceito de lesão leve é formulado por exclusão, isto é, não chegando a nenhum dos resultados previstos nos §§ 1°, 2° e 3° (lesões graves, gravíssimas e seguidas de morte, respectivamente), configura-se o tipo básico trazido pelo caput”. 105. Deduz-se que, quando não se obtém o resultado previsto nos parágrafos seguintes, enquadra-se a conduta na espécie leve. Não obstante, Victor Eduardo Rios Gonçalves traz pertinente nota:

No crime de lesão corporal leve a doutrina e a jurisprudência têm aceitado a aplicação do princípio da insignificância para reconhecer a atipicidade da conduta quando a lesão for de tal forma irrisória que não justifique a movimentação da máquina judiciária, com os custos a ela inerentes. É o que ocorre quando alguém dá

um alfinetada em outra pessoa, causando a perda de poucas gotas de sangue. 106.

Extrai-se que, quando o crime de lesão corporal leve advir de conduta lesiva que produza resultado insignificante, ferimento de mínima relevância e de nenhuma gravidade, a doutrina e jurisprudência têm aplicado o princípio da insignificância e reconhecido a atipicidade de tal conduta.

No que toca as lesões corporais graves, Rogério Sanches Cunha traz que são condutas qualificadas pelo resultado obtido. 107. Os resultados aduzidos são: se a lesão corporal resulta em incapacidade para as ocupações habituais, por mais de trinta dias; se ocasiona perigo de vida; se causa debilidade permanente de membro, sentido ou função e se da lesão decorre aceleração de parto. 108. Nota-se que os resultados aqui produzidos são deveras graves, ocasionando evidente perturbação no cotidiano da vítima e periculosidade, seja impedindo-a de realizar suas atividades habituais, colocando-a em situação de perigo de

105 CUNHA, Rogério – Manual de Direito penal, parte especial, volume único, 8ª edição, 2016, Editora JUSPODIVM, pág. 114.

106 GONÇALVES, Victor – Direito Penal Esquematizado, parte especial, 6ª Edição, 2016, 1.2.1.1.2. Tipo objetivo, E-book, Editora Saraiva.

107 CUNHA, Rogério – Manual de Direito penal, parte especial, volume único, 8ª edição, 2016, Editora JUSPODIVM, pág. 114. 108 BRASIL, DECRETO-LEI No 2.848, DE 7 DE DEZEMBRO DE 1940.

Page 11: FEMINICÍDIO: EXPECTATIVA X REALIDADE DOS DIREITOS DA ...€¦ · FEMINICÍDIO: EXPECTATIVA X REALIDADE DOS DIREITOS DA MULHER NO BRASIL Autores. Luiz Guilherme Gonçalves Silva Prof.a

41

vida, ocasionando-lhe debilidade permanente ou provocando aceleração de parto, sendo nesta ultima o feto expelido prematuramente, ainda com vida. 109.

Sobre a lesão de natureza gravíssima, Rogério Sanches Cunha traz o seguinte:

No presente dispositivo temos elencados os casos de lesão gravíssima, de regra irreparável (ou de maior permanência). Apesar de o Código não utilizar essa expressão ("gravíssima"), a doutrina a criou, o que vem sendo aceito pelos operadores do direito como forma de pôr em evidência as consequências mais graves do parágrafo quando comparado com o anterior. 110.

Observa-se que, por se tratarem de lesões de natureza irreparável ou de duração prolongada, a doutrina elaborou a espécie gravíssima para que se explicitem as implicações mais severas e duradouras ao sujeito passivo, quando comparadas ao dispositivo anterior, sendo esta criação doutrinária amplamente adotada dentre os juristas.

O parágrafo segundo do crime de lesão corporal e seus incisos apresentam os hipóteses em que a doutrina considera as lesões gravíssimas, sendo esta caracterizada quando a lesão corporal ocasiona em incapacidade permanente para o trabalho; enfermidade incurável; perda ou inutilização do membro, sentido ou função; deformidade permanente ou aborto. 111.

Quanto à lesão corporal que ocasiona em aborto, inserida no rol acima exposto,

Victor Eduardo Rios Gonçalves destaca:

O aborto deve ter sido consequência culposa do ato agressivo. Com efeito, a lesão gravíssima em análise é exclusivamente preterdolosa, pressupondo dolo na lesão e

culpa no aborto, na medida em que, se o agente atua com dolo em relação à provocação do aborto, responde por crime mais grave, de aborto sem o consentimento da gestante (art. 125 do CP). 112.

Depreende-se que, nesta hipótese, deve o agente agir com a intenção de lesionar a vítima, necessariamente gestante, e não de ocasionar o aborto, sendo puramente preterdoloso. Pois, caso contrário, se o sujeito ativo age com o animus de produzir o resultado aborto, lhe será imputado o crime de aborto sem o consentimento da gestante, deveras mais gravoso.

Tem-se no § 3° a lesão corporal seguida de morte, sendo esta disposta da seguinte maneira no Código Penal: “Se resulta morte e as circunstâncias evidenciam que o agente não quis o resultado, nem assumiu o risco de produzi-lo.” 113. Quanto ao supracitado, Rogério Greco traz pertinente explanação:

109 CUNHA, Rogério – Manual de Direito penal, parte especial, volume único, 8ª edição, 2016, Editora JUSPODIVM, pág. 116.

110 Ibidem, pág. 116-117.

111 BRASIL, DECRETO-LEI No 2.848, DE 7 DE DEZEMBRO DE 1940.

112 GONÇALVES, Victor – Direito Penal Esquematizado, parte especial, 6ª Edição, 2016, 1.2.1.3. Lesões corporais gravíssimas, E-book, Editora Saraiva. 113 BRASIL, DECRETO-LEI No 2.848, DE 7 DE DEZEMBRO DE 1940.

Page 12: FEMINICÍDIO: EXPECTATIVA X REALIDADE DOS DIREITOS DA ...€¦ · FEMINICÍDIO: EXPECTATIVA X REALIDADE DOS DIREITOS DA MULHER NO BRASIL Autores. Luiz Guilherme Gonçalves Silva Prof.a

42

Cuida-se, no caso, de crime eminentemente preterdoloso. A conduta do agente deve ter sido finalisticamente dirigida à produção das lesões corporais, tendo o resultado morte sido produzido a título de culpa. A redação da lei penal é clara no sentido de que o agente, para que seja responsabilizado pelo delito de lesão corporal seguida de morte, não pode ter querido o resultado, agindo, portanto, com dolo direto ou mesmo assumindo o risco de produzi-lo, atuando com dolo eventual. Ressalte-se, por mais uma vez, que a morte, obrigatoriamente, deve ter sido previsível para o agente, pois, caso contrário, somente poderá ser responsabilizado pelas lesões

corporais praticadas, sem a incidência da qualificadora. 114.

Extrai-se que o resultado obtido aqui, assim como o resultado aborto decorrente de lesão corporal gravíssima, é exclusivamente preterdoloso. A norma é cristalina quanto a exigência de culpa quanto a morte da vítima, taxando explicitamente que o agente não quis produzir o resultado morte, o que levaria a constatação do elemento subjetivo dolo direto, e que nem assumiu o risco de produzi-lo, recaindo nesta hipótese no dolo eventual. Nota-se ainda que, o doutrinador explicita a obrigatoriedade do resultado gerado ser previsível ao sujeito ativo, pois caso contrário, este responderá apenas a lesão corporal, ausente da qualificadora em tela.

3.7. Lesão corporal dolosa privilegiada e modalidade culposa.

No que toca a lesão corporal dolosa privilegiada, esta é trazida no § 4° do art. 129 e disposta da seguinte maneira: “Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço.” 115. Rogério Sanches Cunha traz perspicaz nota: “A redação do § 4° acima é idêntica à do § 1° do art. 121.” 116. Dada a similaridade das figuras privilegiadas evoca-se o que foi exposto no homicídio privilegiado, já explanado no presente trabalho.

O inferido acima pode ser aplicado à lesão corporal culposa, pois os elementos subjetivos da modalidade culposa tratadas no homicídio, aqui também se aplicam. Não obstante, destaca Fernando Capez que:

Ao contrário das lesões corporais dolosas, o Código Penal não faz distinção quanto à gravidade das lesões, ou seja, se leves, graves ou gravíssimas. Assim, aquele que culposamente provoca um pequeno machucado no braço da vítima, deverá sujeitar-se às mesmas penas de quem deu causa à amputação de um braço. A gravidade das

114 GRECO, Rogério – Curso de Direito Penal Vol. 2, 2015, Editora Impetus, pág. 278-279.

115 BRASIL, DECRETO-LEI No 2.848, DE 7 DE DEZEMBRO DE 1940.

116CUNHA, Rogério – Manual de Direito penal, parte especial, volume único, 8ª edição, 2016, Editora JUSPODIVM, pág. 121.

Page 13: FEMINICÍDIO: EXPECTATIVA X REALIDADE DOS DIREITOS DA ...€¦ · FEMINICÍDIO: EXPECTATIVA X REALIDADE DOS DIREITOS DA MULHER NO BRASIL Autores. Luiz Guilherme Gonçalves Silva Prof.a

43

lesões deverá ser levada em conta no momento da fixação da pena-base pelo juiz, pois dizem respeito às consequências do crime. 117.

Nota-se que, a gravidade das lesões, não produz diferenciação perante o Código Penal, ou seja, a figura leve, grave ou gravíssima não incide sobre a modalidade culposa do crime de lesões corporais, não gerando distinção entre conduta que gera mero arranhão, daquela que ocasionou amputação. Entretanto, o teor da gravidade não deixará de ser apreciada pelo juiz, sendo levada em consideração no momento da fixação da pena-base, por se tratar de consequência do crime.

Têm-se também, as causas de aumento de pena devido às características do sujeito passivo, supracitados e explanados com detalhe acima.

3.8. Violência doméstica e Lei Maria da Penha.

Pode-se agora tratar da violência doméstica, derradeira qualificadora do crime de lesões corporais e, como já explanado, trazida na lei 10.886/2004 e complementada pela lei n. 11.340/2006, estando disposta no art.129,§9º do Código Penal brasileiro da seguinte forma: “Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade.” 118.

Traz Rogério Greco, pertinente contextualização sobre a norma supracitada:

[...] a violência doméstica, ou seja, aquela que ocorre, especificamente, nos lares, não é um produto de nossa sociedade moderna, pois sempre aconteceu. No entanto, em um passado não muito distante, argumentávamos, a fim de não proteger suas vítimas, que aquilo dizia respeito a um problema de família e que terceiros, estranhos àquela relação, "não tinham que se meter". É muito conhecido o ditado popular que diz: "Em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher". Esses anos todos de passividade estatal fizeram com que a violência nos lares aumentasse cada dia mais. Assim, é muito comum a violência praticada por pais contra filhos, filhos contra pais, avós e, principalmente, por maridos contra suas esposas. Proporcionalmente, é infinitamente superior os casos de agressão contra mulher. Hassemer e Mufíoz Conde, dissertando sobre o tema, esclarecem: "Entre os grupos de vítimas que mais estão representadas nas atuais pesquisas de vitimização e que são objeto de estudos especiais e investigações se encontram as mulheres maltratadas no âmbito familiar por seu companheiro ou cônjuge. Provavelmente nenhuma relação de convivência humana é tão conflitiva e produtora de violência como a família, e dentro dela a conjugal ou de companheirismo." 119.

117 CAPEZ, Fernando – Curso de Direito Penal 2, parte especial, 16ª edição, 2016, Capítulo II - DAS LESÕES CORPORAIS - 8.4. Lesão corporal culposa (§ 6º), E-book, Editor Saraiva.

118 BRASIL, DECRETO-LEI No 2.848, DE 7 DE DEZEMBRO DE 1940.

119 GRECO, Rogério – Curso de Direito Penal Vol. 2, 2015, Editora Impetus, pág. 281.

Page 14: FEMINICÍDIO: EXPECTATIVA X REALIDADE DOS DIREITOS DA ...€¦ · FEMINICÍDIO: EXPECTATIVA X REALIDADE DOS DIREITOS DA MULHER NO BRASIL Autores. Luiz Guilherme Gonçalves Silva Prof.a

44

Depreende-se que, em pouco tempo atrás, o estado não reprimia adequadamente a violência no âmbito familiar, pois estava atrelado a este ambiente o estigma de não interferência de terceiros alheios a este convívio, propiciando um ambiente de crescente violência doméstica, estando às vítimas desta a mercê de seu agressor devido, na maioria dos casos, sua dependência econômica, social e emocional perante o agressor. Nota-se, também, que esta violência pode recair sobre pais, filhos, avós, et cetera. Contudo é inquestionável a incidência em números deveras superiores desta conduta sobre a mulher, pois das relações humanas, supostamente a família é a que mais enseja violência e conflitos, estando intrínseca a ela a convivência conjugal.

Quanto ao objeto jurídico da norma em tela, Rogério Sanches Cunha traz pertinente

lição:

Está clara a preocupação do legislador em proteger não apenas a incolumidade física individual da vítima (homem ou mulher), como também tutelar a tranquilidade e harmonia dentro do âmbito familiar. Manifesta o agente, nesses casos, clara insensibilidade moral, violando sentimentos de estima, solidariedade e apoio mútuo que deve nutrir para com parentes próximos ou pessoas com quem convive (ou já conviveu). 120.

Nota-se que o objeto da norma não se restringe apenas a resguardar a integridade física daqueles que compõem o instituto família, independentemente se homem ou mulher, mas também de proteger o instituto em si, pois do ambiente familiar depreende-se sentimentos positivos como solidariedade, estima e afeto, explicitando o sujeito ativo desta violência, cristalina deturpação moral, profanando umas das formas mais basilares do convívio humano. Complementa ainda, Cunha, ao trazer seguinte entendimento colegiado que:

Recentemente, o STJ admitiu a aplicação da Lei Maria da Penha (11.340/06) numa agressão contra mulher praticada por outra mulher (relação entre mãe e filha). Isso porque, de acordo com o art. 5º da Lei 11.340/2006, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação. Da análise do dispositivo citado, infere-se que o objeto de tutela da Lei é a mulher em situação de vulnerabilidade, não só em relação ao cônjuge ou companheiro, mas também qualquer outro familiar ou pessoa que conviva com a vítima, independentemente do gênero do agressor. Nessa mesma linha, entende a jurisprudência do STJ que o sujeito ativo do crime pode ser tanto o homem como a mulher, desde que esteja presente o estado de

120 CUNHA, Rogério – Manual de Direito penal, parte especial, volume único, 8ª edição, 2016, Editora JUSPODIVM, pág. 124.

Page 15: FEMINICÍDIO: EXPECTATIVA X REALIDADE DOS DIREITOS DA ...€¦ · FEMINICÍDIO: EXPECTATIVA X REALIDADE DOS DIREITOS DA MULHER NO BRASIL Autores. Luiz Guilherme Gonçalves Silva Prof.a

45

vulnerabilidade caracterizado por uma relação de poder e submissão. HC 277.561-AL, Rel. Min. Jorge Mussi, julgado em 6/11/2014. 121.

Depreende-se que, a tutela protetiva concedida à mulher em estado de vulnerabilidade, proveniente de uma relação de poder e submissão, não se restringe apenas a relação com cônjuge ou companheiro, englobando também qualquer outro membro familiar ou pessoa que tenha caracterizado a relação de convívio trazido no tipo, independentemente do gênero do sujeito ativo. No que tange o estado de vulnerabilidade ou hipossuficiência, traz César Dario Mariano da Silva, pertinente nota:

Em todas as hipóteses de violência doméstica e familiar, a mulher deverá se encontrar em situação de hipossuficiência ou de vulnerabilidade, não bastando sua condição de mulher, e que o crime tenha sido cometido por alguém com quem ela conviva, tenha convivido, possua parentesco ou relacionamento íntimo de afeto. Como já decidiu a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça: “Para a incidência da Lei Maria da Penha, faz-se necessária a demonstração da convivência íntima, bem como de uma situação de vulnerabilidade da mulher, que justifique a incidência da norma de caráter protetivo, hipótese esta configurada nos autos”.

Depreende-se cristalinamente que, ao se falar de violência doméstica e familiar, deve a mulher estar em situação de vulnerabilidade, e sedimenta 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça de São Paulo o entendimento de que, a hipossuficiência ou vulnerabilidade da mulher, é presumida pela Lei Maria da Penha:

Esta Corte Superior de Justiça tem entendimento consolidado no sentido de que a caracterização da violência doméstica e familiar contra a mulher não depende do fato de agente e vítima conviverem sob o mesmo teto, sendo certo que a sua hipossuficiência e vulnerabilidade é presumida pela Lei nº 11.340/06. 122.

Ressalta ainda, o referido acórdão, que a violência não precisar ser necessariamente realizada no âmbito doméstico, trazendo Victor Eduardo Rios Gonçalves pertinente explanação:

É possível, ainda, notar, pela leitura de tais parágrafos, que nem sequer é necessário que o fato ocorra no âmbito doméstico para que a pena seja majorada. Com efeito, não consta do texto legal que a pena só será aumentada se o crime contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou contra quem o agente conviva ou tenha convivido, tiver sido praticado dentro de casa. É indiferente, portanto, o local em que a agressão ocorra. Haverá sempre a agravação se a vítima for uma das pessoas enumeradas na lei, tratando-se, contudo, de enumeração taxativa. Apenas nas últimas figuras do dispositivo, ou seja, quando o agente cometer o crime prevalecendo-se de relações domésticas, de coabitação ou de

121 CUNHA, Rogério – Lei do Feminicídio: breves comentários, 2015. Disponível em: http://rogeriosanches2.jusbrasil.com.br/artigos/172946388/lei-do-feminicidio-breves-comentarios, acessado em 30/09/2016.

122 BRASIL, HC 280082, Rel. Min. Jorge Mussi, votação unânime, julgado em 12.02.2015. Disponível em: http://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/178150899/habeas-corpus-hc-280082-rs-2013-0351114-8, acessado em: 22/08/2016.

Page 16: FEMINICÍDIO: EXPECTATIVA X REALIDADE DOS DIREITOS DA ...€¦ · FEMINICÍDIO: EXPECTATIVA X REALIDADE DOS DIREITOS DA MULHER NO BRASIL Autores. Luiz Guilherme Gonçalves Silva Prof.a

46

hospitalidade, é que se pressupõe que o fato ocorra no ambiente doméstico, mas nestas hipóteses a vítima não precisa ser ascendente, descendente, cônjuge etc. 123.

Depreende-se que, do rol taxativo apresentado pela norma, dentre eles a mulher, não há exigência legal de que o crime ocorra no âmbito domiciliar, sendo qualificada a violência quando incidida sobre os sujeitos supracitados. Não obstante, nas figuras em que o agente realiza a conduta prevalecendo-se de relação doméstica, de coabitação ou de hospitalidade, sendo nestes casos irrelevante o caráter familiar da vítima.

Quanto aos §§ 9° e 10°, Gonçalves traz pertinente lição:

No § 10 o legislador estabeleceu causas de aumento de pena de um terço para os crimes de lesão grave, gravíssima ou seguida de morte, se cometidos contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge etc. Com efeito, o § 10 faz expressa menção aos §§ 1º a 3º do art. 129, deixando claro que se refere a essas modalidades de lesão corporal, ficando evidenciado, por exclusão, que o § 9º é exclusivo para as lesões de natureza leve. 124.

Extrai-se que o § 10° agrava a pena dos crimes de lesão corporal grave, gravíssima ou seguida de morte se praticados sobre o rol taxativo trazido na violência doméstica, apresentando explicitamente os §§ dos graus lesivos sobre o qual incide. Depreende-se então, que o § 9º trata apenas e lesões de natureza leve, devido explicita referência aos §§ 1º a 3º no § 10º, sendo cristalina a constatação, por caráter de exclusão, a modalidade leve no § 9º.

Apesar do § 9º referir-se exclusivamente a lesões de natureza leve, o que permitiria a aplicação das penas substitutivas previstas no art. 44 do Código Penal, Greco traz pertinente ressalva: “[...] se o sujeito passivo for mulher, tal substituição não poderá importar na aplicação de cesta básica ou outras de prestação pecuniária, bem como no pagamento isolado de multa, nos termos preconizados pelo art. 17 da Lei nº. 11.340, de 7 de agosto de 2006.” 125. Como já supracitado, a referida lei traz em sua letra impedimento a certos benefícios do Código Penal, para que se evidencie a gravidade da conduta do agente contra a mulher e protegê-la deste tipo de agressão.

Quanto à representação, a Lei n. 11.350/2006 trouxe importante atualização, como demonstrado por Capez:

[...] a lei, ao vedar a incidência da Lei n. 9.099/95, gerou questionamentos no sentido de continuar ou não o crime em estudo a ser de ação penal condicionada à representação da ofendida. Com efeito, dispõe o art. 88 da Lei n. 9.099/95 que dependerá de representação a ação penal relativa aos crimes de lesões corporais leves e lesões culposas. Ora, na medida em que a Lei n. 11.340/2006 vedou a

123 GONÇALVES, Victor – Direito Penal Esquematizado, parte especial, 6ª Edição, 2016, 1.2.3. Violência doméstica, E-book, Editora Saraiva.

124 Idem.

125 GRECO, Rogério – Curso de Direito Penal Vol. 2, 2015, Editora Impetus, pág. 283.

Page 17: FEMINICÍDIO: EXPECTATIVA X REALIDADE DOS DIREITOS DA ...€¦ · FEMINICÍDIO: EXPECTATIVA X REALIDADE DOS DIREITOS DA MULHER NO BRASIL Autores. Luiz Guilherme Gonçalves Silva Prof.a

47

incidência das disposições da Lei n. 9.099/95 aos crimes de violência doméstica e familiar [...] 126.

Não obstante, tal alteração ensejou polêmica entre os juristas, sendo os próprios dispositivos da lei que trazem a vedação, no caso a Lei. N 11.340/2006, passíveis de interpretações divergentes, como demonstrado abaixo:

[...] na medida em que a própria lei, em seu art. 16, faz expressa menção à ação penal pública condicionada à representação e no art. 12 exige que a autoridade policial tome a representação a termo da ofendida, se apresentada, o que pode levar ao entendimento de que não se pretendeu abolir a representação no crime de lesão corporal leve decorrente de violência doméstica e familiar. 127.

Coube ao Plenário do Supremo Tribunal Federal pacificar a questão, trazendo Capez em sua obra o seguinte julgamento de Ação Direta de Inconstitucionalidade:

[...] o (STF) julgou procedente, na sessão de 9-2-2012, a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 4.424) ajuizada pela Procuradoria-Geral da República (PGR) quanto aos arts. 12, I, 16, e 41 da Lei Maria da Penha (Lei n. 11.340/2006). A maioria dos Ministros entendeu no sentido da possibilidade de o Ministério Público dar início a ação penal sem necessidade de representação da vítima. Assim, para os delitos de lesão corporal leve e lesão culposa, a ação penal será pública incondicionada. Para os demais crimes, como ameaça, por exemplo, continuam com o procedimento da representação e audiência específica do art. 16 da Lei n. 11.340/2006. 128.

Depreende-se que, no caso de lesões corporais de natureza leve e culposa, tuteladas pela Lei Maria da Penha (Lei n. 11.340/2006), a ação penal cabível será a pública incondicionada. Nos crimes restantes, como o de ameaça, o procedimento a ser adotado será o de representação e audiência especificado no art. 16 da Lei Maria da Penha.

Posteriormente, o Superior Tribunal de Justiça trouxe sedimentação ao tema através da seguinte súmula, trazida também por Capez: “Súmula 542 – “A ação penal relativa ao crime de lesão corporal resultante de violência doméstica contra a mulher é pública incondicionada”.” 129.

Ainda tratando a representação, é pertinente trazer seguinte lição de Capez: “[...] se a vítima da violência doméstica prevista no art. 129, § 9º, for indivíduo do sexo masculino (idoso ou menor de idade), a ação penal continuará a ser pública condicionada à representação do ofendido, na medida em que a Lei n. 11.340/2006 não os alcança.” 130. É cristalino que, ausente a qualidade mulher, a ação penal restara inalterada, pois as alterações trazidas Lei Maria da Penha não englobam sujeito passivo distinto.

126 CAPEZ, Fernando – Curso de Direito Penal 2, parte especial, 16ª edição, 2016, Capítulo II - DAS LESÕES CORPORAIS – 12 – Violência Doméstica, E-book, Editor Saraiva.

127 Idem. 128 Idem. 129 Idem.

130 Idem.

Page 18: FEMINICÍDIO: EXPECTATIVA X REALIDADE DOS DIREITOS DA ...€¦ · FEMINICÍDIO: EXPECTATIVA X REALIDADE DOS DIREITOS DA MULHER NO BRASIL Autores. Luiz Guilherme Gonçalves Silva Prof.a

48

No que toca os meios de proteção à mulher, Rogério Greco traz pertinente posicionamento:

Embora devamos proteger, cada dia mais, as vítimas de violência doméstica, tais situações não devem ficar a cargo, exclusivamente, do Direito Penal. Programas devem ser implementados pelo Estado, fazendo com que os agressores se submetam a tratamentos psicológicos, terapêuticos etc. 131.

A lei penal, apesar de eficaz em inúmeras situações, em crimes como a violência doméstica, que englobam um conglomerado de motivações e problemáticas profundas, a ação do Estado, seja através de programas ou tratamentos, é imprescindível para a eficácia da norma. Pois a mera existência da lei já se mostra ineficaz, como demonstrado por Julio Waiselfisz no Mapa da Violência de 2012:

[...] no ano seguinte à promulgação da lei Maria da Penha – em setembro de 2006

– tanto o número quanto as taxas de homicídio de mulheres apresentaram uma visível queda, já a partir de 2008 a espiral de violência retoma os patamares anteriores, indicando claramente que nossas políticas ainda são insuficientes para reverter a situação. 132.

Nota-se que, apesar de tutela em nosso Código Penal, a real coibição da violência a mulher é deveras ineficaz, exigindo do Estado novas abordagens além da esfera penal.

131 GRECO, Rogério – Curso de Direito Penal Vol. 2, 2015, Editora Impetus, pág. 281-282.

132 WAISELFISZ, Julio – Mapa da Violência 2012, Caderno Complementar 1: Homicídio de Mulheres no Brasil, 2012, Instituto Sangari, pág. 17.

Page 19: FEMINICÍDIO: EXPECTATIVA X REALIDADE DOS DIREITOS DA ...€¦ · FEMINICÍDIO: EXPECTATIVA X REALIDADE DOS DIREITOS DA MULHER NO BRASIL Autores. Luiz Guilherme Gonçalves Silva Prof.a

49

4. O FEMINICÍDIO

4.1. Breve contexto histórico do Feminicídio na América Latina.

A violência contra a mulher é algo tão antigo quanto à existência da própria humanidade. No entanto, apenas recentemente viu a sociedade necessidade de superação desse estigma para que seja edificada uma sociedade verdadeiramente humana. Sendo a judicialização do tema apenas hodiernamente tratada. Deve-se destacar que, neste caso, entende-se como judicialização a criminalização de condutas violentas contra as mulheres, não apenas na esfera normativa, mas também pelo robustecimento de estruturas específicas onde, o aparato policial e/ou jurídico possam prestar uma tutela protetiva as vítimas e a punição dos agressores. 133.

Como supracitado, a judicialização sobre o tema é recente, apesar da longa existência e, infelizmente, corriqueira incidência deste tipo de violência. Quanto à historicidade regional do tema e sua evolução jurisdicional, Luciana Maibashi Gebrim e Paulo César Corrêa Borges trazem pertinente panorama:

Em nível regional, no ano de 1994, foi aprovado, pela Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), o primeiro instrumento específico para fazer frente à violência de gênero: a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará). Em 1999, a Assembleia Geral das Nações Unidas adotou o Protocolo Facultativo da Convenção CEDAW e, em 1995, a Plataforma de Ação emanada da IV Conferência Mundial da Mulher (Beijing, 1995) contemplou a violência contra as mulheres como uma das doze áreas de especial preocupação, estabelecendo os objetivos estratégicos, as medidas a serem adotadas pelos governos, como promulgação e aplicação de leis para pôr fim à violência contra as mulheres, e a necessidade de criar centros de acolhida, assistência jurídica, atenção de saúde e apoio psicológico para as vítimas (TRAMONTANA, 2013, p. 468-469; FRÍES; HURTADO, 2011, p. 115). Diante dos avanços alcançados no cenário internacional, várias reformas no âmbito interno passaram a ser realizadas pelos países da América Latina e Caribe com o fim de adequar suas legislações aos padrões internacionais de direitos humanos. Em uma primeira onda de reformas, houve a descriminalização de delitos como o adultério, o rapto e a sedução, bem como a revogação do dispositivo legal que previa a extinção da punibilidade do crime pelo casamento da vítima com o autor ou com terceiro, com vistas a corrigir a institucionalização da discriminação contra a mulher contida naqueles preceitos legais (FRÍES; HURTADO, 2011, p. 114). Na segunda onda de reformas legais, foram editadas leis específicas com o objetivo de coibir atos de violência contra a mulher dentro da família, assegurando-lhe assistência e medidas protetivas. Também foi regulamentada a atuação do Estado na prevenção, no atendimento das vítimas e na persecução dos responsáveis (FRÍES; HURTADO, 2011, p. 115). 134.

133 WAISELFISZ, Julio – Mapa da Violência 2015, Homicídio de Mulheres no Brasil, 2015, FLACSO BRASIL, pág. 7.

134 GEBRIM, Luciana; Borges, Paulo – Violência de gênero, Tipificar ou não o homicídio? Ano 51, Número

202, abr./jun. 2014, pág. 60-61. Disponível em:

Page 20: FEMINICÍDIO: EXPECTATIVA X REALIDADE DOS DIREITOS DA ...€¦ · FEMINICÍDIO: EXPECTATIVA X REALIDADE DOS DIREITOS DA MULHER NO BRASIL Autores. Luiz Guilherme Gonçalves Silva Prof.a

50

Observa-se que, a integração do combate à violência contra a mulher de maneira jurisdicional e institucional na América Latina ocorreu, preliminarmente, nas esferas internacionais, através de tratados e convenções que traçaram como objetivas essências a eliminação deste tipo de agressão. Esse avanço compeliu diversos países latinos americanos a atualizarem seus aparatos legislativos, com a finalidade de adequarem-se aos padrões internacionais de direitos humanos.

Em um primeiro momento, houve a reforma de preceitos legais que institucionalizavam a discriminação da mulher, como o adultério, o rapto, a sedução, a extinção da punibilidade do agente através do casamento, et cetera. Tais dispositivos evidenciavam o caráter precário das normas que, ao invés de protegerem a integridade da mulher, colocavam-na em situação desfavorável e, não poucas vezes, lhes atribuía responsabilidade pela violação ocorrida.

Na onda subsequente de reformas, houve a inserção de dispositivos legais que visaram coibir, diretamente, a violência no âmbito familiar, garantindo a mulher assistência e medidas protetivas. Sendo a derradeira onda, um direcionamento regulamentado da atuação estatal para a prevenção da violência contra as mulheres, o atendimento das vítimas desta violência e a persecução dos responsáveis.

Apenas em 2006, no Brasil, foi sancionada precursora lei para coibir este tipo de agressão, a Lei n. 11.340, conhecida amplamente como Lei Maria da Penha que, como demonstrado no capítulo anterior, trouxe severa acentuação as penas de crimes a mulher. A mais recente adição do processo de judicialização supracitado teve sua mais recente adição na Lei n. 13.104, a Lei do Feminicídio, que foi sancionada em março de 2015. Salienta-se, no entanto, que o feminicídio, apesar de ter denominação específica no texto legal, consiste apenas em qualificadora do crime de homicídio,135 tendo sido tal nota referenciada já no primeiro capítulo.

4.2. Conceituação do Feminicídio.

Traz Fernando Capez pertinente elucidação quanto à qualificadora em tela:

https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/503037/001011302.pdf?sequence=1, acessado em 29/09/2016. 135 GONÇALVES, Victor – Direito Penal Esquematizado, parte especial, 6ª Edição, 2016, 1.1.1.1.3.5 - Feminicídio, E-book, Editora Saraiva.

Page 21: FEMINICÍDIO: EXPECTATIVA X REALIDADE DOS DIREITOS DA ...€¦ · FEMINICÍDIO: EXPECTATIVA X REALIDADE DOS DIREITOS DA MULHER NO BRASIL Autores. Luiz Guilherme Gonçalves Silva Prof.a

51

Feminicídio é o homicídio doloso praticado contra a mulher por “razões da condição de sexo feminino”, ou seja, desprezando, menosprezando, desconsiderando a dignidade da vítima por ser mulher, como se as pessoas do sexo feminino tivessem menos direitos do que as do sexo masculino. A lei pune mais gravemente aquele que mata mulher por “razões da condição de sexo feminino” (por razões de gênero). Não basta a vítima ser mulher para que exista o crime de feminicídio, é preciso que a morte aconteça pelo simples fato de a vítima ter a condição de sexo feminino. 136.

Depreende-se que, para se configurar a presente hipótese qualificada do homicídio, deve o sujeito ativo ceifar a vida de mulher, dolosamente, e ter por motivação para tal conduta a mera condição de sexo feminino do sujeito passivo, isto é, o agente menospreza a condição de mulher da vítima, desconsiderando qualquer dignidade da vítima simplesmente pela qualidade desta e que a ela estejam atribuídos menos direitos que a do sexo oposto.

4.3. Motivação pelo qual o feminicídio foi inserido de forma autônoma.

O fato de ceifar vida de mulher por razão do seu gênero, anteriormente a Lei n.

13.104/2015, não ensejava em adequação típica ao fato, como demonstra Fernando Capez:

Antes da Lei n. 13.104/2015, não havia nenhuma punição especial pelo fato de o homicídio ser praticado contra a mulher por razões da condição de sexo feminino. Matar uma mulher pelo fato de ela ser mulher caracterizava homicídio qualificado por motivo fútil ou torpe, a depender do caso concreto. Após a Lei n. 13.104/2015, tal motivação acarreta a adequação típica do fato ao art. 121, § 2º, VI, do CP. 137.

Nota-se que, a conduta era considerada qualificada por torpeza, o que já agregava, por si só, caráter hediondo ao crime. Não obstante, demonstra Rogério Sanches Cunha a razão para o feminicídio ser inserido de forma autônoma:

A mudança (...) foi meramente topográfica, migrando o comportamento delituoso do art. 121, § 2º, I, para o mesmo parágrafo, mas inc. VI. A virtude dessa alteração está na simbologia, isto é, no alerta que se faz da existência e necessidade de se coibir com mais rigor a violência contra a mulher em razão da condição do sexo feminino. 138.

Depreende-se então, que o feminicídio foi inserido no ordenamento jurídico brasileiro, para enfatizar a importância de se combater com austeridade a violência em razão do gênero feminino, inserida de maneira autônoma no VI do art. 121, dispondo que o

136 CAPEZ, Fernando – Curso de Direito Penal 2, parte especial, 16ª edição, 2016, Capítulo 11.3.2. Hipóteses previstas no art. 121, § 2º, I a VII, do Código Penal, E-book, Editora Saraiva.

137 Idem

138 CUNHA, Rogério – Lei do Feminicídio: breves comentários, 2015. Disponível em: http://rogeriosanches2.jusbrasil.com.br/artigos/172946388/lei-do-feminicidio-breves-comentarios, acessado em 30/09/2016.

Page 22: FEMINICÍDIO: EXPECTATIVA X REALIDADE DOS DIREITOS DA ...€¦ · FEMINICÍDIO: EXPECTATIVA X REALIDADE DOS DIREITOS DA MULHER NO BRASIL Autores. Luiz Guilherme Gonçalves Silva Prof.a

52

homicídio cometido “contra a mulher por razões da condição de sexo feminino” 139 caracterizaria o crime em destaque, ocasionando em pena de reclusão mínima de doze anos, até a máxima de trinta anos.

4.4. Caráter subjetivo e distinção terminológica.

Traz, também, Victor Eduardo Rios Gonçalves pertinente lição:

De acordo com o inc. VI do art. 121, § 2º, do Código Penal, existe feminicídio quando o homicídio é cometido “contra a mulher por razões da condição de sexo feminino”. Cuida-se, evidentemente, de qualificadora de caráter subjetivo, na medida em que não basta que a vítima seja mulher, sendo necessário, de acordo com o texto legal, que o delito seja motivado pela condição de sexo feminino. 140.

Nota-se que o agente é mais severamente punido não por apenas se tratar de vítima mulher, que se trataria de caráter objetivo, mas sim por sua conduta ter sido motivada por razão do gênero da vítima, no caso feminino, demonstrando o cunho subjetivo da ação do agente. Tem-se na primeira hipótese supracitada, conjectura de femicídio enquanto que na segunda feminicídio, pois se entende que tais palavras não são sinônimas, como trazido por Luciana Maibashi Gebrim e Paulo César Corrêa Borges:

Os termos “femicídio” e “feminicídio” embora sejam utilizados indistintamente na América Latina, referem-se aos assassinatos sexuais de mulheres e, portanto, diferenciam-se do neutral “homicídio”. Porém, algumas correntes sustentam que o termo “femicídio” não dá conta da complexidade nem da gravidade dos delitos contra a vida das mulheres por sua condição de gênero, pois etimologicamente significa unicamente dar morte a uma mulher. A expressão “feminicídio”, por sua vez, englobaria a motivação baseada no gênero ou misoginia, agregando a inação estatal frente aos crimes. 141.

Segue também esta linha César Dario Mariano da Silva, que diz: “[...] hodiernamente, tem sido realizada diferenciação entre os conceitos. Enquanto femicídio é o homicídio de mulher, feminicídio é o homicídio de mulher por motivo de gênero – por ser a vítima do sexo feminino, envolvendo ódio ou menosprezo por sua condição.”. 142.

139 BRASIL, DECRETO-LEI No 2.848, DE 7 DE DEZEMBRO DE 1940.

140 GONÇALVES, Victor – Direito Penal Esquematizado, parte especial, 6ª Edição, 2016, 1.1.1.1.3.5 - Feminicídio, E-book, Editora Saraiva. 141 GEBRIM, Luciana; Borges, Paulo – Violência de gênero, Tipificar ou não o homicídio? Ano 51,

Número

202, abr./jun. 2014, pág. 62. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/503037/001011302.pdf?sequence=1, acessado em 29/09/2016.

142 SILVA, César - Primeiras impressões sobre o feminicídio – Lei nº 13.104/2015, 2015, pág. 1. Disponível em: http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/cao_criminal/Artigos/Primeiras%20impress%C3%B5es%20sobre%2 0o%20feminic%C3%ADdio.pdf, acessado em 29/09/2016.

Page 23: FEMINICÍDIO: EXPECTATIVA X REALIDADE DOS DIREITOS DA ...€¦ · FEMINICÍDIO: EXPECTATIVA X REALIDADE DOS DIREITOS DA MULHER NO BRASIL Autores. Luiz Guilherme Gonçalves Silva Prof.a

53

4.5. Alcance do dispositivo legal e polêmica ensejada.

O dispositivo legal busca demonstrar seu alcance, com maior nitidez, no art. 121, inc. VI, § 2º - A, do Código Penal, deixando cristalino “[...] que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve: I — violência doméstica e familiar; II — menosprezo ou discriminação à condição de mulher”. 143.

No que tange o primeiro inciso, traz Victor Eduardo Rios Gonçalves seguinte lição:

Em relação ao inciso I (homicídio contra mulher motivado por razões do sexo feminino por envolver violência doméstica ou familiar), é necessário fazer a conjugação com o art. 5º da Lei n. 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), que conceitua violência doméstica ou familiar como “qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”, no âmbito da unidade doméstica, da família ou em qualquer relação íntima de afeto. 144.

Nota-se que, para plena compreensão do presente inciso, é necessário remeter-se ao o art. 5º da Lei Maria da Penha, que elucida a extensão que se trata a violência doméstica ou familiar, sendo esta ação ou omissão, baseado no gênero mulher, que venha a ocasionar morte, lesão, sofrimento físico, psicológico ou sexual e dano moral ou patrimonial, no âmbito doméstico, na convivência familiar ou em qualquer relação íntima de afeto. Ressalta-se que, como já referenciado anteriormente no segundo capítulo do presente trabalho, não há exigência legal de que o crime ocorra no âmbito domiciliar, sendo qualificada a violência quando esta recair sobre vítima que integre as hipóteses acima elencadas.

No entanto, ainda sobre este primeiro parágrafo e seus incisos, existe crítica doutrinária, como traz Rogério Sanches Cunha:

Feminicídio, comportamento objeto da Lei em comento, pressupõe violência baseada no gênero, agressões que tenham como motivação a opressão à mulher. É imprescindível que a conduta do agente esteja motivada pelo menosprezo ou discriminação à condição de mulher da vítima. A previsão deste (infeliz) parágrafo, além de repisar pressuposto inerente ao delito, fomenta a confusão entre feminicídio e femicídio. Matar mulher, na unidade doméstica e familiar (ou em qualquer ambiente ou relação), sem menosprezo ou discriminação à condição de mulher é FEMICÍDIO. Se a conduta do agente é movida pelo menosprezo ou discriminação à condição de mulher, aí sim temos FEMINICÍDIO. 145.

Nota-se que, é destacada novamente a imprescindibilidade do cunho subjetivo da conduta do agente, sendo este o menosprezo ou discriminação a condição de gênero da

143 BRASIL, DECRETO-LEI No 2.848, DE 7 DE DEZEMBRO DE 1940.

144 GONÇALVES, Victor – Direito Penal Esquematizado, parte especial, 6ª Edição, 2016, 1.1.1.1.3.5 - Feminicídio, E-book, Editora Saraiva. 145CUNHA, Rogério – Lei do Feminicídio: breves comentários, 2015. Disponível em: http://rogeriosanches2.jusbrasil.com.br/artigos/172946388/lei-do-feminicidio-breves-comentarios, acessado em 30/09/2016.

Page 24: FEMINICÍDIO: EXPECTATIVA X REALIDADE DOS DIREITOS DA ...€¦ · FEMINICÍDIO: EXPECTATIVA X REALIDADE DOS DIREITOS DA MULHER NO BRASIL Autores. Luiz Guilherme Gonçalves Silva Prof.a

54

vítima, no caso mulher. Não obstante, ao demonstrar a abrangência da qualificadora no parágrafo em tela, gera-se redundância e possível confusão terminológica, pois o ato de ceifar vida de mulher em âmbito doméstico, sem estar presente à motivação exigida pela presente qualificadora, enseja em femicídio. Sendo a conduta motivada pela subjetividade supracitada, é caracterizado o feminicídio. Nesta linha se tem também Fernando Capez que destaca que: “[...] mesmo em situação de violência doméstica e familiar (inciso I), explicadas na Lei n. 11.340/2006, ainda será necessário que o homicídio seja praticado por razão de gênero.” 146 e Victor Eduardo Rios Gonçalves, que traz apropriada lição:

[...] se a intenção do legislador fosse a de tornar o crime qualificado pelo simples fato de a vítima ser cônjuge, companheira, filha etc., teria adotado a mesma redação do art. 129, § 9º, do Código Penal, o que não ocorreu. Em conclusão, se o marido mata a esposa porque ela não quis manter relação sexual ou porque não acatou suas ordens, ou, ainda, porque pediu o divórcio, configura-se o feminicídio. No entanto, se ele mata a esposa visando receber o seguro de vida por ela contratado, não se tipifica tal delito, e sim homicídio qualificado pelo motivo torpe. O crime de feminicídio pode também ser praticado contra a filha, motivado, por exemplo, pelo fato de ter ela saído de casa para ir a uma festa usando saia curta. No inciso II, a razão da tipificação do feminicídio é o menosprezo ou discriminação à condição de mulher como motivo do crime. Nesses casos, a vítima pode ser até mesmo uma mulher desconhecida do agente. Incorre nesta infração penal, por exemplo, quem mata mulher por entender que elas não devem trabalhar como motoristas ou que não devem estudar em universidades etc. 147.

Em suma, já era possível depreender do texto normativo inserido no inciso VI que, o ato de ceifar a vida de mulher por razões da condição de sexo feminino, já englobava as hipóteses trazidas no primeiro parágrafo, sendo claro que se tivesse o legislador intenção de tornar o crime qualificado apenas por se tratar de cônjuge, companheira, filha, et cetera, teria redigido a hipótese em tela nos termos do art. 129, § 9º, do Código Penal, sendo o fator determinante da presente qualificadora o cunho subjetivo, ou seja, menosprezar ou discriminar o gênero mulher, trazido no inciso II do § 2o-A do art. 121. Não obstante, ambos incisos do § 2o-A podem ser depreendidos da leitura do inciso VI, sendo à existência deste primeiro parágrafo, além de confusa, desnecessária.

146 CAPEZ, Fernando – Curso de Direito Penal 2, parte especial, 16ª edição, 2016, Capítulo 11.3.2. Hipóteses previstas no art. 121, § 2º, I a VII, do Código Penal, E-book, Editora Saraiva.

147 GONÇALVES, Victor – Direito Penal Esquematizado, parte especial, 6ª Edição, 2016, 1.1.1.1.3.5 - Feminicídio, E-book, Editora Saraiva.

Page 25: FEMINICÍDIO: EXPECTATIVA X REALIDADE DOS DIREITOS DA ...€¦ · FEMINICÍDIO: EXPECTATIVA X REALIDADE DOS DIREITOS DA MULHER NO BRASIL Autores. Luiz Guilherme Gonçalves Silva Prof.a

55

4.5.1. Atual denominação doutrinária.

É relevante destacar que, a qualificadora do feminicídio, é denominada pela atual doutrina como norma penal em branco ao quadrado, como demonstra Rogério Sanches Cunha:

O art. 121, § 22, inciso VI revela o que a doutrina atual denomina norma penal em branco ao quadrado. Efetivamente, o inciso VI, ao dispor sobre o homicídio contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, deve ser complementado pelo §2-A, que, no inciso I, referindo-se à violência doméstica e familiar, deve ser por sua vez complementado pela Lei 11.340/06. Os dois casos tratam de norma penal em branco imprópria, pois os complementos emanam do próprio legislador. 148.

Nota-se que é pertinente tal denominação, uma vez que, como traz Luiz Flávio Gomes, este tipo de normal penal “[...] exige um complemento normativo para sua compreensão e este complemento faz referência a outro ato normativo. Trata-se de uma lei duplamente em branco (ou duas vezes em branco).” 149. O feminicídio se enquadra perfeitamente neste tipo, pois as razões da condição de sexo feminino são complementadas pelo §2-A, inciso I, que abrange à violência doméstica e familiar, que por sua vez, deve ser interpretada sob o prisma da Lei Maria da Penha, advindo os complementos necessários do próprio legislador.

4.6. Causas de aumento de pena.

No que toca as causas de aumento de pena, o feminicídio possui três causas específicas para ele (art. 121, § 7º, do CP): “§ 7º A pena do feminicídio é aumentada de 1/3 (um terço) até a metade se o crime for praticado: I – durante a gestação ou nos 3 (três) meses posteriores ao parto; II – contra pessoa menor de 14 (catorze) anos, maior de 60 (sessenta) anos ou com deficiência; III – na presença de descendente ou de ascendente da vítima”. É evidente o elevado grau reprovabilidade destas condutas, visto que com a mera leitura de tais dispositivos explicita a demasiada insensibilidade do agressor, sendo apropriada a aplicação de deveras severa. 150.

148 CUNHA, Rogério – Manual de Direito penal, parte especial, volume único, 8ª edição, 2016, Editora JUSPODIVM, pág. 64.

149 GOMES, Luiz - Você sabe o que é lei penal em branco ao quadrado? - 2015. Disponível em: http://professorlfg.jusbrasil.com.br/artigos/235012958/voce-sabe-o-que-e-lei-penal-em-branco-ao-quadrado, acessado em: 05/10/2016.

150 CAPEZ, Fernando – Curso de Direito Penal 2, parte especial, 16ª edição, 2016, Capítulo 11.3.2. Hipóteses previstas no art. 121, § 2º, I a VII, do Código Penal, E-book, Editora Saraiva.

Page 26: FEMINICÍDIO: EXPECTATIVA X REALIDADE DOS DIREITOS DA ...€¦ · FEMINICÍDIO: EXPECTATIVA X REALIDADE DOS DIREITOS DA MULHER NO BRASIL Autores. Luiz Guilherme Gonçalves Silva Prof.a

56

Quanto ao inciso III, Rogério Sanches Cunha traz importante nota:

Ao exigir que o comportamento criminoso ocorra na “presença”, parece dispensável que o descendente ou o ascendente da vítima esteja no local da agressão, bastando que esse familiar esteja vendo (ex: por skype) ou ouvindo (ex: por telefone) a ação criminosa do agente. 151

Depreende-se que, a presença física de descendente ou de ascendente da vítima é dispensável, bastando para a configuração desta causa de aumento de pena, a visualização ou audição da conduta criminosa, por qualquer meio que possa trazer à baila o ocorrido, trazendo grande abalo psicológico ao ente querido. Nessa linha, se tem também César Dario Mariano da Silva, que esclarece:

A presença pode ser física ou virtual, como quando crime é cometido e transmitido pela internet (Skype, Facetime, Viber etc). Porém, não basta que o crime seja gravado e posteriormente exibido. É exigência da norma que o crime seja cometido “na presença”, o que pressupõe atualidade. 152.

Extrai-se que, apesar da presença física ser dispensável, se infere do termo “na presença” a necessidade da atualidade, ou seja, não pode a conduta criminosa ser gravada e posteriormente exibida ao familiar, pois esta ação não faz incidir a presente hipótese.

Destaca ainda, Rogério Sanches Cunha, que para que haja a incidência das hipóteses majorantes supracitadas, deve o agente ter conhecimento destas, evitando-se a responsabilidade penal objetiva. 153.

4.7. Natureza subjetiva da qualificadora

Quanto à natureza da presente qualificadora, Fernando Capez traz relevante lição:

Importante destacar que a qualificadora do feminicídio é de natureza subjetiva, ou seja, está relacionada com a esfera interna do agente (“razões de condição de sexo feminino”). Não pode ser considerada como objetiva, pois não tem relação com o modo ou meio de execução da morte da vítima. Dessa classificação podemos extrair duas conclusões: a) trata-se de circunstância de caráter pessoal, logo, não se comunica com eventual coautor do crime (art. 30 do CP); b) não existirá feminicídio

151 CUNHA, Rogério – Lei do Feminicídio: breves comentários, 2015. Disponível em: http://rogeriosanches2.jusbrasil.com.br/artigos/172946388/lei-do-feminicidio-breves-comentarios, acessado em 05/10/2016.

152 SILVA, César - Primeiras impressões sobre o feminicídio – Lei nº 13.104/2015, 2015, pág. 1. Disponível em: http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/cao_criminal/Artigos/Primeiras%20impress%C3%B5es%20sobre%2 0o%20feminic%C3%ADdio.pdf, acessado em 05/10/2016.

153 CUNHA, Rogério – Lei do Feminicídio: breves comentários, 2015. Disponível em: http://rogeriosanches2.jusbrasil.com.br/artigos/172946388/lei-do-feminicidio-breves-comentarios, acessado em 05/10/2016.

Page 27: FEMINICÍDIO: EXPECTATIVA X REALIDADE DOS DIREITOS DA ...€¦ · FEMINICÍDIO: EXPECTATIVA X REALIDADE DOS DIREITOS DA MULHER NO BRASIL Autores. Luiz Guilherme Gonçalves Silva Prof.a

57

privilegiado, pois só se admite crime de homicídio qualificado-privilegiado quando a qualificadora for de natureza objetiva. 154.

É cristalina a natureza subjetiva da qualificadora em tela, pois como demonstrado anteriormente o que qualifica aqui a conduta não é o meio ou o instrumento utilizado no crime, mas sim a motivação interior que levou o agressor a realizá-la. Nota-se que, por se tratar de circunstância de caráter pessoal, ou seja, subjetiva, não ocorre comunicabilidade com possível coautor do crime. Depreende-se ainda que, por se tratar de qualificadora de natureza subjetiva, não se é admitido modalidade privilegiada, pois esta incide apenas sobre qualificadoras de natureza objetiva. Nessa linha, Rogério Sanches Cunha traz seguinte lição:

É sabido que, apesar da sua posição topográfica, mostra-se perfeitamente possível a coexistência das circunstâncias privilegiadoras (§ 1º do art. 121), todas de natureza subjetiva, com qualificadoras de natureza objetiva (§ 2º, III e IV). Nesse sentido, aliás, é firme a jurisprudência, inclusive dos Tribunais Superiores. O STF, a propósito, já decidiu: “A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é firme no sentido da possibilidade de homicídio privilegiado-qualificado, desde que não haja incompatibilidade entre as circunstâncias do caso. Noutro dizer, tratando-se de qualificadora de caráter objetivo (meios e modos de execução do crime), é possível o reconhecimento do privilégio (sempre de natureza subjetiva)”. O STJ, da mesma forma: “Admite-se a figura do homicídio privilegiado-qualificado, sendo fundamental, no particular, a natureza das circunstâncias. Não há incompatibilidade entre circunstâncias subjetivas e objetivas, pelo que o motivo de relevante valor

moral não constitui empeço a que incida a qualificadora da surpresa” (RT 680/406). 155.

Depreende-se do entendimento colegiado que, desde que não haja incompatibilidade entre as circunstâncias do caso, pode existir a figura de homicídio privilegiado-qualificado. Não obstante, por ser o feminicídio circunstância qualificada de natureza subjetiva, vai de encontro diretamente com as hipóteses privilegiadas, que são sempre subjetivas, ou seja, para o reconhecimento do privilégio, devem ser as circunstâncias que qualificam o crime objetivas, impedindo cristalinamente a hipótese de o feminicídio coexistir com qualquer hipótese privilegiada.

4.8. Sujeito ativo e passivo do feminicídio.

No que tange o sujeito ativo, é cristalino a figura do homem neste polo, no entanto

César Dario Mariano da Silva traz pertinente destaque:

154 CAPEZ, Fernando – Curso de Direito Penal 2, parte especial, 16ª edição, 2016, Capítulo 11.3.2. Hipóteses previstas no art. 121, § 2º, I a VII, do Código Penal, E-book, Editora Saraiva.

155 CUNHA, Rogério – Lei do Feminicídio: breves comentários, 2015. Disponível em: http://rogeriosanches2.jusbrasil.com.br/artigos/172946388/lei-do-feminicidio-breves-comentarios, acessado em 06/10/2016.

Page 28: FEMINICÍDIO: EXPECTATIVA X REALIDADE DOS DIREITOS DA ...€¦ · FEMINICÍDIO: EXPECTATIVA X REALIDADE DOS DIREITOS DA MULHER NO BRASIL Autores. Luiz Guilherme Gonçalves Silva Prof.a

58

Ressalte-se que como a norma não define expressamente quem pode ser sujeito ativo do feminicídio, tanto o homem quanto a mulher poderão cometê-lo. A mulher pode perfeitamente estar em condição de vulnerabilidade em relação à outra mulher com quem ela conviva, tenha convivido, ou possua relação de parentesco ou de intimidade. Nada impede, igualmente, que a mulher cometa homicídio em razão da condição de gênero, nutrindo sentimento de ódio, discriminação ou menoscabo em relação ao sexo feminino, o que caracteriza o feminicídio.156.

Nota-se que, nada impede a própria mulher de integrar este polo, uma vez que esta pode valer-se da condição de vulnerabilidade de outra mulher e devido à natureza de sua relação com a vítima, caracterizando hipótese de violência doméstica e familiar elencada na Lei n.11.340/2006. Destaca-se que, para que se caracterize o feminicídio, deve a mulher, ao ceifar a vida de outrem, estar nutrindo em seu ínterim sentimento de menosprezo e discriminação quanto gênero feminino, independentemente da constatação do inciso I, sendo cristalina a imprescindibilidade do elemento subjetivo para aferição desta qualificadora.

Quanto ao sujeito passivo da qualificadora em tela, Victor Eduardo Rios Gonçalves traz seguinte lição: “Somente mulheres podem ser sujeito passivo de feminicídio. Homens, homossexuais ou travestis não podem figurar como sujeito passivo do delito. O homicídio de um travesti cometido por preconceito constitui homicídio qualificado pelo motivo torpe.” 157. Depreende-se a exclusividade do gênero feminino para aferição do feminicídio, recaindo o homicídio cometido por menosprezo ou discriminação a homossexual ou travesti, na modalidade torpe. Não obstante, no que tange vítima transexual, Rogério Sanches Cunha explana que:

[...] como bem ressaltam Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, “o transexual não se confunde com o homossexual, bissexual, intersexual ou mesmo com o travesti. O transexual é aquele que sofre uma dicotomia físico-psíquica, possuindo um sexo físico, distinto de sua conformação sexual psicológica. Nesse quadro, a cirurgia de mudança de sexo pode se apresentar como um modo necessário para a conformação do seu estado físico e psíquico”. 158.

Ensejando, no que tange sujeito passivo transexual, duas correntes, trazidas também por Cunha:

[...] podem ser observadas duas posições: uma primeira, conservadora, entendendo que o transexual, geneticamente, não é mulher (apenas passa a ter órgão genital de conformidade feminina), e que, portanto, descarta, para a hipótese, a proteção especial; já para uma corrente mais moderna, desde que a pessoa portadora de transexualismo transmute suas características sexuais (por cirurgia e modo

156 SILVA, César - Primeiras impressões sobre o feminicídio – Lei nº 13.104/2015, 2015, pág. 1. Disponível em: http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/cao_criminal/Artigos/Primeiras%20impress%C3%B5es%20sobre%2 0o%20feminic%C3%ADdio.pdf, acessado em 06/10/2016.

157 GONÇALVES, Victor – Direito Penal Esquematizado, parte especial, 6ª Edição, 2016, 1.1.1.1.3.5 - Feminicídio, E-book, Editora Saraiva.

158 CUNHA, Rogério – Lei do Feminicídio: breves comentários, 2015. Disponível em: http://rogeriosanches2.jusbrasil.com.br/artigos/172946388/lei-do-feminicidio-breves-comentarios, acessado em 06/10/2016.

Page 29: FEMINICÍDIO: EXPECTATIVA X REALIDADE DOS DIREITOS DA ...€¦ · FEMINICÍDIO: EXPECTATIVA X REALIDADE DOS DIREITOS DA MULHER NO BRASIL Autores. Luiz Guilherme Gonçalves Silva Prof.a

59

irreversível), deve ser encarada de acordo com sua nova realidade morfológica, eis que a jurisprudência admite, inclusive, retificação de registro civil. Rogério Greco, não sem razão, explica: “Se existe alguma dúvida sobre a possibilidade de o legislador transformar um homem em uma mulher, isso não acontece quando estamos diante de uma decisão transitada em julgado. Se o Poder Judiciário, depois de cumprido o devido processo legal, determinar a modificação da condição sexual de alguém, tal fato deverá repercutir em todos os âmbitos de sua vida, inclusive o penal”. 159.

Extrai-se que, se é permitido legalmente à retificação de registro civil, modificando condição sexual de um indivíduo de homem para mulher, perante o âmbito jurídico, nada deverá impedir que, tal alteração de gênero, reflita em todas as esferas de sua vida, incluindo a penal. Quanto a este entendimento, há acórdão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, que aplica matéria disposta na Lei Maria da Penha não apenas para mulheres, mas também travestis e transexuais, conforme citado por Cunha:

[...] decidiu o TJ/MG, aplicando a Lei Maria da Penha não apenas para a mulher, mas também transexuais e travestis: “Para a configuração da violência doméstica não é necessário que as partes sejam marido e mulher, nem que estejam ou tenham sido casados, já que a união estável também se encontra sob o manto protetivo da lei. Admite-se que o sujeito ativo seja tanto homem quanto mulher, bastando a existência de relação familiar ou de afetividade, não importando o gênero do agressor, já que a norma visa tão somente à repressão e prevenção da violência doméstica contra a mulher. Quanto ao sujeito passivo abarcado pela lei, exige-se uma qualidade especial: ser mulher, compreendidas como tal as lésbicas, os transgêneros, as transexuais e as travestis, que tenham identidade com o sexo feminino. Ademais, não só as esposas, companheiras, namoradas ou amantes estão no âmbito de abrangência do delito de violência doméstica como sujeitos passivos. Também as filhas e netas do agressor como sua mãe, sogra, avó ou qualquer outra parente que mantém vínculo familiar com ele podem integrar o polo passivo da ação

delituosa” (TJMG, HC 1.0000.09.513119-9/000, j. 24.02.2010, rel. Júlio Cezar Gutierrez). 160.

Destaca-se que, a referida decisão, ao tratar o sujeito passivo protegido pela norma, equiparou o termo mulher às lésbicas, os transgêneros, as travestis e as transexuais, que tenha afinidade com o gênero feminino.

4.9. Punibilidade no Brasil e estatísticas de modo geral e especial.

No que tange a punibilidade do homicídio no Brasil, há um relatório elaborado pelo

Conselho Nacional do Ministério Público, o Conselho Nacional de Justiça e o Ministério da

Justiça do Brasil, que traz luz ao tema:

O índice de elucidação dos crimes de homicídio é baixíssimo no Brasil. Estima-se, em pesquisas realizadas, inclusive a realizada pela Associação Brasileira de

159 Idem.

160 Idem.

Page 30: FEMINICÍDIO: EXPECTATIVA X REALIDADE DOS DIREITOS DA ...€¦ · FEMINICÍDIO: EXPECTATIVA X REALIDADE DOS DIREITOS DA MULHER NO BRASIL Autores. Luiz Guilherme Gonçalves Silva Prof.a

60

Criminalística, 2011, que varie entre 5% e 8%. Esse percentual é de 65% nos Estados Unidos, no Reino Unido é de 90% e na França é de 80%. 161.

Depreende-se dos dados acima, um baixíssimo grau de elucidação criminal, no que se refere aos homicídios dolosos em geral, sendo os cometidos contra mulheres, como traz Julio Waiselfisz, provavelmente dotados da mesma impunidade:

Se a impunidade é amplamente prevalecente nos homicídios dolosos em geral, com muito mais razão, pensamos, deve ser norma nos casos de homicídio de mulheres. A normalidade da violência contra a mulher no horizonte cultural do patriarcalismo justifica, e mesmo “autoriza” que o homem pratique essa violência, com a finalidade de punir e corrigir comportamentos femininos que transgridem o papel esperado de mãe, de esposa e de dona de casa. Essa mesma “lógica justificadora” também acontece em casos onde a violência é exercida por desconhecidos contra mulheres consideradas “transgressoras” do papel ou comportamento culturalmente esperado e/ou imposto a elas. Em ambos os casos, culpa-se a vítima pela agressão sofrida, seja por não cumprir o papel doméstico que lhe foi atribuído, seja por “provocar” a agressão dos homens. 162.

Nota-se que a violência contra a mulher no Brasil, deve-se grande parte ao estigma cultural do patriarcalismo, sentindo-se o agressor “no direito” de praticar a violência quando age, a mulher, de forma contrária ao papel a ela atribuída por esta mentalidade. Sendo esta “lógica” também empregada por homens, a mulheres estranhas ao agressor que, no seu entendimento, transgrediram o papel ou conduta a elas imposta pelo patriarcalismo. É atribuída a responsabilidade desta violência à mulher, pois “instigaram” a agressão do homem por não agirem da maneira “culturalmente aceita”.

Traz ainda, Julio Waiselfisz, dados referentes a mulheres vitimadas em 2013, no

Brasil:

Só em 2013, último ano com dados disponíveis, foram vitimadas 4.762 mulheres. Para se ter uma ideia do que esse volume significa, nesse mesmo ano, 2.451 municípios do Brasil (44% do total de municípios do País) contavam com um número menor de meninas e mulheres em sua população. Os municípios de menor população feminina do País: Borá, em São Paulo, ou Serra da Saudade, em Minas Gerais, não chegam a ter 400 habitantes do sexo feminino. É como se, em 2013, tivessem sido exterminadas todas as mulheres em 12 municípios do porte de Borá ou de Serra da Saudade. Geraria uma comoção, uma repulsa, de alcance planetário. Mas, como essas mulheres foram vitimadas de forma dispersa ao longo do território nacional, reina a indiferença, como se não existisse um problema. 163.

161 Estratégia Nacional de Justiça e Segurança Pública. Relatório Nacional da Execução da Meta 2: um diagnóstico da investigação de homicídios no país. Brasília: Conselho Nacional do Ministério Público, 2012.

Disponível em: http://www.cnmp.gov.br/portal/images/stories/Enasp/relatorio_enasp_FINAL.pdf, acessado em:

07/10/2016.

162 WAISELFISZ, Julio – Mapa da Violência 2015, Homicídio de Mulheres no Brasil, 2015, FLACSO BRASIL, pág. 75.

Page 31: FEMINICÍDIO: EXPECTATIVA X REALIDADE DOS DIREITOS DA ...€¦ · FEMINICÍDIO: EXPECTATIVA X REALIDADE DOS DIREITOS DA MULHER NO BRASIL Autores. Luiz Guilherme Gonçalves Silva Prof.a

163 Ibidem, pág. 72.

Page 32: FEMINICÍDIO: EXPECTATIVA X REALIDADE DOS DIREITOS DA ...€¦ · FEMINICÍDIO: EXPECTATIVA X REALIDADE DOS DIREITOS DA MULHER NO BRASIL Autores. Luiz Guilherme Gonçalves Silva Prof.a

61

Depreende-se que, a magnitude de mulheres vitimadas todos os anos no Brasil, é deveras preocupante, entretanto, devido à esparsa maneira em que ocorre no amplo território nacional, impera a displicência.

Page 33: FEMINICÍDIO: EXPECTATIVA X REALIDADE DOS DIREITOS DA ...€¦ · FEMINICÍDIO: EXPECTATIVA X REALIDADE DOS DIREITOS DA MULHER NO BRASIL Autores. Luiz Guilherme Gonçalves Silva Prof.a

62

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Podemos observar que, no decorrer do presente trabalho, foram expostas diversas normas jurídicas que demonstram a preocupação da sociedade em combater diversas condutas violentas humanas, muitas delas originárias de nossas era mais primitivas, outras contemporâneas, atreladas a estigmas culturais, que surpreendentemente, ainda estão vigentes.

Apesar de lenta, a atualização normativa de nosso país é constante, tipificando as mais diversas condutas, com o intuito de combater ações violentas, entendimentos retrógrados e reformar antigas injustiças inseridas no próprio ordenamento jurídico brasileiro, como a surpreendente extinção da punibilidade do agente através do casamento.

Não obstante, apesar da proteção a integridade do ser humano, como um todo, ser tipificada na lei desde os tempos originários da sociedade. Apenas recentemente tal preocupação protetiva, no que concerne a proteção às mulheres, começou a ser inserida na esfera jurídica brasileira, movida principalmente pela necessidade de atualizar a legislação vigente, para adequar-se aos padrões internacionais de direitos humanos, que foram incorporados através de tratados e convenções assinados pelo Brasil.

Como demonstrado, apenas em 2006, o Brasil, efetivamente sancionou lei para coibir este tipo de agressão em nosso território, a amplamente conhecida Lei Maria da Penha que, como demonstrado no presente trabalho, apesar de trazer severa acentuação as penas de crimes que envolvam a mulher, resultando em uma perceptível diminuição no número de homicídios de mulheres, recuperou a violência contra a mulher, os índices anteriores, demonstrando cristalinamente que, a judicialização do tema por si só, é ineficaz.

Percebemos que, a violência contra a mulher, esta atrelada diretamente ao “patriarcalismo”, o supracitado estigma cultural que aflige nosso país e que, infelizmente, faz com que certos homens se sintam no direito de agredir suas mulheres ou, até mesmo, mulheres que não conheçam por estarem violando o entendimento deles, de como uma mulher deve se comportar.

Esta justificativa é, assombrosamente, aceita amplamente no país e reflete diretamente nos índices de violência contra a mulher, que não mostram melhora. O Estado novamente interveio, operando através da judicialização, sancionando a Lei n. 13.104, a Lei do Feminicídio, em março de 2015, qualificando a conduta do homem que mata mulher por razão do seu gênero, ou que tenha a matado por menosprezo ou discriminação à condição de mulher.

Page 34: FEMINICÍDIO: EXPECTATIVA X REALIDADE DOS DIREITOS DA ...€¦ · FEMINICÍDIO: EXPECTATIVA X REALIDADE DOS DIREITOS DA MULHER NO BRASIL Autores. Luiz Guilherme Gonçalves Silva Prof.a

63

Apesar de ser promissora e necessária, acredito que a judicialização da proteção a mulher, por si só, é incapaz de resolver a problemática como um todo, devendo o Estado, além de materializar o direito das mulheres no papel, agir institucionalmente através de programas, projetos, políticas e mecanismos para combater de maneira direta e eficaz esta violência tão arraigada a concepções culturais retrógradas, injustas e machistas.

Infelizmente, como demonstrado através de dados estatísticos neste trabalho, o índice de impunidade, no que tange homicídios dolosos, é extremamente elevado em nosso país, tanto no que se refere a vítimas do sexo masculino como nos do sexo feminino. Não obstante, se é tão precária a justiça no que se refere aos homens, a efetiva justiça para a mulher, em uma sociedade tão marcada pelo “patriarcalismo”, é utópica.

Por isso, a importância do Estado agir além da judicialização do tema, pois se a ação estatal se restringir a mera normatização, muito provavelmente os efeitos da Lei do Feminicídio espelharão os da Lei Maria da Penha, resultando em melhora, mas, após certo lapso temporal, regressão aos índices anteriores.

É importantíssimo que o Estado ofereça um acompanhamento social e psicológico, tanto para a vítima quanto para o agressor, buscando uma efetiva recuperação e reintegração social. Sugere-se também, a criação de um sistema de coleta de dados que ofereça parâmetros estatísticos, no que tange a violência contra a mulher, para pesquisadores e o próprio Estado, auxiliando na criação de soluções para o problema.

Encerro o presente, deixando como sugestão para futuros pesquisadores, o

acompanhamento dos resultados que a Lei do Feminicídio trará as mulheres e a sociedade como um todo, pois devido à sanção recente da norma, não se tem dados estatísticos que comprovem que o presente emulará os resultados obtidos pela Lei Maria da Penha.

Page 35: FEMINICÍDIO: EXPECTATIVA X REALIDADE DOS DIREITOS DA ...€¦ · FEMINICÍDIO: EXPECTATIVA X REALIDADE DOS DIREITOS DA MULHER NO BRASIL Autores. Luiz Guilherme Gonçalves Silva Prof.a

64

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BÍBLIA SAGRADA. A. T. Deuteronômio 1 9: 1 - 1 3.

BRASIL, acórdão proferido em apelação cível n.70002027910, sexta câmara cível, Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Relator: Carlos Alberto Álvaro de Oliveira, julgado em 28/03/2001.

BRASIL, CONSELHO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO - Estratégia Nacional de Justiça e Segurança Pública. Relatório Nacional da Execução da Meta 2: um diagnóstico da investigação de homicídios no país, 2012. Disponível em: http://www.cnmp.gov.br/portal/images/stories/Enasp/relatorio_enasp_FINAL.pdf, acessado em: 07/10/2016.

BRASIL, DECRETO-LEI No 2.848, DE 7 DE DEZEMBRO DE 1940, http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm.

BRASIL, HC 280082, Rel. Min. Jorge Mussi, votação unânime, julgado em 12/02/2015. Disponível em: http://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/178150899/habeas-corpus-hc-280082-rs-2013-0351114-8, acessado em: 22/08/2016.

BRASIL, LEI Nº 2.889, DE 1º DE OUTUBRO DE 1956, http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L2889.htm.

BRASIL, LEI Nº 7.170, DE 14 DE DEZEMBRO DE 1983, http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7170.htm.

BRASIL, LEI Nº 11.340, DE 7 DE AGOSTO DE 2006, http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm.

BRASIL, LEI Nº 11.464, DE 28 DE MARÇO DE 2007, http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/Lei/L11464.htm.

Page 36: FEMINICÍDIO: EXPECTATIVA X REALIDADE DOS DIREITOS DA ...€¦ · FEMINICÍDIO: EXPECTATIVA X REALIDADE DOS DIREITOS DA MULHER NO BRASIL Autores. Luiz Guilherme Gonçalves Silva Prof.a

65

CAPEZ, Fernando – Curso de Direito Penal 2, parte especial, 16ª edição, 2016, E-book,

Editora Saraiva, Biblioteca Digital Editora Saraiva, http://central-usuario.editorasaraiva.com.br/leitor/epub:169246.

CUNHA, Rogério – Lei do Feminicídio: breves comentários, 2015. Disponível em: http://rogeriosanches2.jusbrasil.com.br/artigos/172946388/lei-do-feminicidio-breves-comentarios, acessado em 30/09/2016.

CUNHA, Rogério – Manual de Direito penal, parte especial, volume único, 8ª edição, 2016, Editora JUSPODIVM.

FOUCAULT, Michel – Vigiar e punir: nascimento da prisão; tradução de Raquel Ramalhete, 42ª edição, 2014.

GEBRIM, Luciana; Borges, Paulo – Violência de gênero, Tipificar ou não o homicídio? Ano 51, Número 202, abr./jun. 2014, pág. 62. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/503037/001011302.pdf?sequence=1, acessado em 29/09/2016.

GOMES, Luiz - Você sabe o que é lei penal em branco ao quadrado? - 2015. Disponível em: http://professorlfg.jusbrasil.com.br/artigos/235012958/voce-sabe-o-que-e-lei-penal-em-branco-ao-quadrado, acessado em: 7/10/2016.

GONÇALVES, Victor – Direito Penal Esquematizado, Parte Especial, 6ª Edição, 2015 E-book, Editora Saraiva, Biblioteca Digital Editora Saraiva, http://central-usuario.editorasaraiva.com.br/leitor/epub: 169212.

GRECO, Rogério – Curso de Direito Penal Vol. 2, 2015, Editora Impetus.

NUCCI, Guilherme – Código Penal Comentado, 10ª Edição, 2010, Editora Revista dos Tribunais.

SILVA, César - Primeiras impressões sobre o feminicídio – Lei nº 13.104/2015, 2015, pág.

1. Disponível em:

Page 37: FEMINICÍDIO: EXPECTATIVA X REALIDADE DOS DIREITOS DA ...€¦ · FEMINICÍDIO: EXPECTATIVA X REALIDADE DOS DIREITOS DA MULHER NO BRASIL Autores. Luiz Guilherme Gonçalves Silva Prof.a

66

http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/cao_criminal/Artigos/Primeiras%20impress%C3% B5es%20sobre%20o%20feminic%C3%ADdio.pdf, acessado em 29/09/2016.

STOLZE, Pablo – Novo Curso de Direito Civil, Parte Geral, vol. 1, 9ª Edição, 2007, Editora Saraiva, pág. 84.

TELES, Ney Moura - Direito Penal, Parte Especial, vol. 2, 2004, Editora Jurídico Atlas. WAISELFISZ, Julio – Mapa da Violência 2012, Caderno Complementar 1: Homicídio de

Mulheres no Brasil, 2012, Instituto Sangari, http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2012/mapa2012_mulher.pdf.

WAISELFISZ, Julio – Mapa da Violência 2015, Homicídio de Mulheres no Brasil, 2015,

FLACSO BRASIL, http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2015/MapaViolencia_2015_mulheres.pdf.